Você está na página 1de 14

Início » Michel Pêcheux » Formação discursiva e interdiscurso – Michel Pêcheux

Formação discursiva e interdiscurso – Michel Pêcheux


A formação discursiva entra como resolução dos problemas que as condições de produção do discurso haviam dado a
Pêcheux no início do desenvolvimento da Análise do Discurso Francesa (AD). Mais a frente, ela se relaciona com o conceito
de formação ideológica e interdiscurso: a formação discursiva é aquilo que a rma o que se pode dizer dentro de uma
formação ideológica dada e é de nida através dos interdiscursos que lhe dão possibilidade de existência. Por m, o conceito
implode na terceira fase da AD.

by Vinicius Siqueira
Published abril 2, 2017
6 Comentários
MENU
Da série “Michel Pêcheux: Conceitos Fundamentais“.

As abordagens não-subjetivas do discurso, como as de Michel Foucault e Michel Pêcheux, necessitam de uma explicação que dê luz à produção dos
enunciados, já que nem eles, nem o sentido que assumem na prática social, são de nidos pelo sujeito.

O conceito de discurso, assim, depende de um conceito descritivo anterior: o de formação discursiva (FD). Primeiramente formulado por Foucault, a
formação discursiva pode ser de nida quando

 se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos,
as escolhas temáticas, se puder de nir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se
trata de uma formação discursiva.[1]

Pêcheux, por sua vez, absorveu a noção foucaultiana de formação discursiva e desenvolveu a sua própria alinhada ao materialismo dialético, como é
possível ver no primeiro artigo em que cita o conceito [2].

Para o autor, as formações discursivas são elementos relacionados diretamente com as formações ideológicas. Vejamos primeiro os fundamentos do
conceito de formação ideológica: em uma formação social dada, é possível identi car um modo de produção especí co que a domina e um estado de
relações de classe que a compõe. As práticas sociais vigentes através dos aparelhos estatais são a forma concreta que essas relações de classe se expressam.
Tais relações dão espaço a posições de classe especí cas, que não constituem indivíduos, mas con guram formações que mantêm, entre si, relações de
antagonismo, aliança ou dominação [3].

A formação ideológica é o “conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam
mais ou menos diretamente a posições de classes em con ito umas em relação às outras”[4], que se localiza exatamente na conjuntura ideológica de uma
MENU social dada em um momento dado. Isso pois,
formação
 em sua materialidade concreta, a instância ideológica existe sob a forma de formações ideológicas (referidas aos aparelhos ideológicos de Estado), que, ao mesmo
tempo, possuem um caráter “regional” e comportam posições de classe: os “objetos” ideológicos são sempre fornecidos ao mesmo tempo que a “maneira de se
servir deles” – seu “sentido”, isto é, sua orientação, ou seja, os interesses de classe aos quais eles servem.[5]

Cada ideologia particular (como aquela nos sindicatos, como a dos partidos políticos, como a da igreja) é uma formação ideológica historicamente
concreta dentro de um todo complexo com dominante de formações[6].

Cada formação ideológica comporta, para Pêcheux (e diferentemente de Foucault, que não desenvolveu um conceito similar ao de formação ideológica),
uma ou várias formações discursivas interligadas. As formações discursivas determinam

 o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um pan eto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição
dada numa conjuntura dada: o ponto essencial aqui é que não se trata apenas da natureza das palavras empregadas, mas também (e sobretudo) de construções nas
quais essas palavras se combinam […] as palavras “mudam de sentido” ao passar de uma formação discursiva a outra.[7]

Neste primeiro momento, no artigo de 1971, o conceito de formação discursiva se fecha na citação acima, entretanto, já em 1975, em Semântica e Discurso,
Pêcheux relaciona a formação discursiva com o interdiscurso, o que lhe dá gás teórico e analítico para explicar a dissimulação da formação discursiva. Esta
se coloca como verdadeira na medida em que ela própria constitui os indivíduos em sujeitos e, assim, também faz ser verdadeira a condição da forma-
sujeito.

Ou seja, a primeira mudança no conceito de formação discursiva desloca gradativamente o foco da unidade da formação para seus interstícios, a
interdiscursividade, já que é

 próprio de toda formação discursiva dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que
determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e
independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas.[8]

O interdiscurso é o “todo complexo com dominante” das formações discursivas, portanto, é aquilo que está na diferença entre elas, que se situa em seus
pontos de troca, de relação. A con guração do todo complexo com dominante é o interdiscurso e as regras do interdiscurso determinam as formações
discursivas.

Ao mesmo tempo, é através do interdiscurso que o funcionamento da Ideologia em geral, interpelando indivíduos em sujeitos, se realiza. O interdiscurso
constitui aquilo que determina o discurso do sujeito e, no processo discursivo, é reinscrito no próprio sujeito.

A respeito da primeira reelaboração proposta por Pêcheux em Semântica e Discurso, Gregolin[9] vai apontar as duas modi cações drásticas na noção de
MENU discursiva de 1975:
formação
1. A relação entre as formações discursivas e o interdiscurso, que promove a noção de que os sentidos que uma FD pode prover são dependentes do
interdiscurso, já que é neste lugar que se constituem os objetos que os sujeitos falantes se apropriam na construção de seus enunciados, assim como as
articulações entre eles. É assim que o enunciador dá coerência ao que pretende praticar dentro de uma dada FD.

2. A relação entre intradiscurso e interdiscurso, ou seja, a relação entre o sistema da língua e a discursividade. Gregolin entende que Pêcheux se deu conta
da impossibilidade de olhar o discurso como uma máquina lógica (como era feito na primeira fase da análise do discurso). As fronteiras entre o
intradiscursivo e o interdiscursivo não são estanques e xas, pelo contrário, são móveis e colocam o Outro em foco, dividindo lugar com o mesmo.

Desta forma, até agora entendemos que as formações discursivas, que determinam o que pode e deve ser dito, são delimitadas pelo interdiscurso. É no
interdiscurso que os objetos apropriados pelo sujeito do discurso surgem e se articulam, portanto, é ali que a coerência constitutiva de uma formação
discursiva é completa.

O interdiscurso é todo complexo com dominante das formações discursivas, sendo assim, se situa num local tenso, em fronteiras voláteis, como o outro do
discurso. “Uma FD é atravessada por várias FD’s […] toda FD é de nida a partir de seu interdiscurso”[10].

Fim da formação discursiva?


A formação discursiva ancora na noção de condições de produção do discurso aquilo com o que Pêcheux já havia se confrontado: a necessidade de uma
teoria do discurso materialista. O conceito abria margem para interpretações psicologistas, considerando o jogo de imagens entre os sujeitos e a “situação”
como componentes das condições de produção. A noção de formação discursiva insere a história e a ideologia perfeitamente, esclarecendo que as ditas
“circunstâncias” das condições de produção do discurso e a troca de impressões imaginárias, feitas pelos sujeitos se dão dentro de um conjunto de regras
especí co que, não só delimita o que se pode dizer, como ordena o que se deve dizer.

O papel do Outro ganha cada vez mais destaque nos textos de Pêcheux e é inevitável que ele próprio proponha uma implosão do conceito de formação
discursiva. Com a heterogeneidade sendo constitutiva do discurso (pois ele é um lugar de dispersão mais que de uniformidade), a alteridade passa a ter
mais espaço nas re exões do lósofo, que termina questionando a validade da noção de identidade no discurso.

Essa identidade não é nunca fechada, já que o interdiscurso revela sempre a exibilidade de seus limites, portanto, mostra a primazia do Outro sobre o
mesmo. A radicalização da dispersão dos sentidos em Discurso, estrutura ou acontecimento, de 1983, vai levar o autor a concluir que, se a noção de discurso
como maquinaria estrutural não se sustenta, talvez a noção de formação discursiva não tenha mais utilidade para a análise do discurso. No último texto de
Pêcheux, o discurso assume a característica de instabilidade radical.
MENU
Desenvolvimentos de Courtine
Jean-Jacques Courtine desenvolve os conceitos de FD e interdiscurso de Pêcheux: segundo o pesquisador, Pêcheux não explorou a exterioridade
constitutiva dos enunciados, ou seja, as condições que produzem um dado sentido no interior da FD. Isso causaria o estabelecimento do discurso como algo
homogêneo, problema enfrentado por Pêcheux na terceira fase da Análise do Discurso [11].

Uma formação discursiva tem fronteiras instáveis, porosas, que se recon guram constantemente através da intervenção de saberes imediatamente alheios
a ela, mas que passam a fazer parte de uma transformação. Isso ocorre em falhas no ritual de identi cação do sujeito com a FD que o interpela[12].

Considerações nais
A noção de formação discursiva, então, tem um trajeto especí co como ferramenta de análise, já que serviu para Pêcheux como delimitação das práticas e
fortalecimento da noção de condições de produção do discurso; em seguida, foi peça-chave para entender o efeito do Outro sobre o discurso, através da
noção de interdiscurso; por último, a noção entra em crise e seu estatuto é questionado: assumindo a impossibilidade de limitar o discurso como uma
estrutura fechada, assim, expulsando o conceito de identidade para fora de sua teoria e análise, já não seria impossível realizar a análise do discurso com o
suporte do conceito de formação discursiva? Não seria este conceito já ultrapassado, segundo o desenvolvimento teórico da AD?

MENU
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.47.

[2] HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso. Linguasagem – Revista Eletrônica de
Popularização Cientí ca em Ciências da Linguagem. Acessado em 2 de abril de 2017. Disponível em <<https://tinyurl.com/y9jbvcvv>>.

[3]  HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso.

[4]  HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso.

[5]  PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à a rmação do óbvio. Traduzido por Eni Pulcinelli Orlandi, Lorenço Chacon J. lho, Manoel Luiz
Gonçalves Corrêa e Silvana M. Serrani, 2ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p. 146.

[6]  PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à a rmação do óbvio… p.151.

[7]  HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso.

[8] PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à a rmação do óbvio… p.162.

[9] GREGOLIN, Maria do Rosário. Formação Discursiva, Redes de Memória e Trajetos Sociais de Sentido: Mídia e Produção de Identidade. Texto
apresentado no II Seminário de Análise do Discurso (SEAD), na UFRGS, Porto Alegre, 2005, p.4-5.

[10] HELENA, H. Nagamine Brandão. Introdução à Análise do Discurso, Campinas, SP: Editora da Unicamp, Ed. 2004 e 2006, p. 89.

[11]  ZANDWAIS, Ana. Recon gurando a noção de Formação Discursiva: deslocamentos produzidos a partir de um contraponto. Leitura Maceió, N.50, P. 41-
59, JUL./DEZ. 2012.

[12] INDURSKY, Freda. Formação Discursiva: ela ainda merece que lutemos por ela? IN GADET, Françoise. HAK, Tony. Por uma análise automática do
discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 5ª edição.

Vinicius Siqueira
MENU
Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do biopoder nos textos foucaultianos.
Autor dos e-books:

Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;


Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.

Compartilhe agora!

   

Curtir isso:

Carregando...

Publicado em Filoso a, Michel Pêcheux

6 Comentários

Lucas Piter Alves Costa disse:


abril 8, 2017 às 10:59 pm

Cara, uma versão dos seus textos em PDF, já com paginação e indicação bibliográ ca, seria bacana. Embora a academia ainda tenha o receio de usar fontes
MENU
sem ISSN, ninguém pode tirar o seu reconhecimento institucional que é o seu título. Eu baixaria o seus textos.
Responder

Vinicius Siqueira disse:


abril 8, 2017 às 11:03 pm

Muito obrigado pelo elogio, Lucas! Estamos trabalhando em já colocar todos os artigos em PDF!

Responder

Luciano disse:
abril 27, 2017 às 8:20 am

Olá amigo.
Gostei muito do site.
Vc teria algum livro do Zygmunt Bauman em pdf para disponibilizar?

lucianooliveira370@gmail.com

Agradecido desde já.

Responder

Vinicius Siqueira disse:


abril 29, 2017 às 8:22 pm

Olá! Obrigado, Luciano!

MENU
Não temos!
Responder

Antônio Oliveira disse:


julho 30, 2020 às 4:43 am

Creio que o conceito de formação discursiva ainda é valido, contanto que seja utilizado numa perspectiva materialista-dialética e não dissociado dos
outros conceitos, tal como o de “interdiscurso” e “pré-construído”. Esta última noção abarca justamente o caráter heterogêneo da formação discursiva,
que a faz ter uma identidade na medida em que está correlacionada com as outras e, ao mesmo tempo, fornece o efeito de universalização dentro do
interdiscurso. E essa é uma sacada muito boa de Pêcheux. É impossível haver FDs separadas, pois, do contrário, os sujeitos não reconheceriam os sentidos
outros. Eles precisam estar dentro de suas FDs e, simultaneamente, estar no interior das outras FDs componentes do interdiscurso. Permita-me a
metáfora: o interdiscurso não é como uma caixa cheia de bolinhas de gude (FDs), é uma caixa onde várias substâncias líquidas distintas (FDs) se misturam
e formam uma só cor. Essa cor homogênea é o efeito causado pelo pré-construído, o que não quer dizer que, a partir de instrumentos cientí cos
adequados, não possamos descobrir a identidade de cada cor separada, isto é, as FDs. Nesse sentido, acho a noção de Pêcheux mais exata que a de Foucault.

Responder

Vinicius Siqueira disse:


julho 31, 2020 às 7:05 pm

Obrigado pelo comentário, Antônio!

Responder

MENU
Deixe uma resposta
Digite seu comentário aqui...

Anterior
5 livros de Zygmunt Bauman para você entender o essencial

Próximo
Sheherazade e Silvio Santos: qual a função da polêmica?

MENU
BUSQUE NO SITE

Buscar …

AUTORES

Zygmunt Bauman

Georges Canguilhem

Sociologia Brasileira

Marxismo

Michel Foucault

Michel Pêcheux

Giorgio Agamben

Friedrich Nietzsche

Ferdinand de Saussure

Friedrich Engels

Leandro Konder

Eni Orlandi

Ortega Y Gasset

Gilles Deleuze

Roberto Machado

Vladimir Safatle
MENU
Maria do Rosário Gregolin

TEMAS

Arqueologia do Saber

Análise do discurso

Niilismo

Modernidade Líquida

Pós-Modernidade

Individualidade

Emancipação

Loucura

Filoso a

O Alienista

Fascismo

Comunismo

“Deus Está Morto!”

Alienação em Marx

ASSINE E RECEBA POR E-MAIL!


MENU
Receba nossas atualizações, assine!
Junte-se a 3.072 outros assinantes

Endereço de e-mail

Quero receber!

E-BOOKS DO COLUNAS TORTAS

– Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;

– A Disciplina em Michel Foucault

– Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;

– Foucault e a Arqueologia;

– Homo Psychologicus: Lendo Doença Mental e Psicologia de Foucault;

– Introdução a Ferdinand de Saussure para Análise do Discurso;

– Modernidade Líquida: uma introdução;

– O Alienista, de Machado de Assis ;

MENU
MENU

Você também pode gostar