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Kátia Mendonça
Belém - Pará
Marques Editora
2018
Revisão: Kátia Mendonça
Capa: Eliane Miotto - Manipulação eletrônica sobre o Cristo Salvador, de Andrey Rublev. Original: Christ the Redeemer by
Andrey Rublev. (Atualmente exposto na Tretyakov Gallery, em Moscow). Domínio público.
Mendonça, Kátia
A imagem: uma janela para o invisível / Kátia Mendonça.
Belém – PA: Marques Editora, 2018.
Ebook
ISBN 978-85-61468-62-0
1. Imagem (filosofia). 2. Simbolismo (Psicologia). 3.
Religião. 4. Semiótica. I. Título. II. Autor.
CDD 102.230
Para Ele, que caminha pelas trevas da cidade, acossado...
O mundo Imaginal
A ilusão de Heidegger
A liusão da gnose
Essência e Energia
Gregório Palamas
BIBLIOGRAFIA
NOTAS
INTRODUÇÃO
Este ensaio foi escrito após uma vivência acadêmica que envolve, há anos, estudos sobre
imaginário, arte e ética. E quando falamos de ética estamos a falar das relações tecidas entre os
homens e destes com as comunidades, com a Criação e com Deus. Não à toa, Martin Buber tem
sido nosso interlocutor durante todos esses anos. A partir dele novos caminhos surgiram em
diálogo com várias tendências filosóficas, até desembocarmos em estudos sobre o cinema de
Tarkovski e sobre a literatura de Dostoievski. Esse caminho multifacetado não é, contudo,
errático, como possa parecer; ele é caracterizado por uma busca pelo sentido da vida que,
infelizmente, por força de sua origem e desenvolvimento epistemológico, encontra-se ausente
das ciências sociais. Este sentido encontra-se dentro, mas também fora de nós. É visível, mas é
também invisível. Como localizá-lo em meio a um cenário de destruição como enfrentados pelo
nosso país, o Brasil, e pelo mundo, hoje? Pensamos que esta caminhada se fez e se faz orientada
por uma esperança e por uma expectativa que temos quando em meio ao caos e a destruição
olhamos para o céu.
Assim, este não quer ser somente um ensaio sobre as bases do poder da imagem, buscadas
em meio aqueles que meditaram sobre isso, mas, é um momento no percurso do nosso espírito.
Daí nosso diálogo com autores que, a partir de suas tradições, apontam para algo perdido por
nós. Sabemos que nosso olhar sempre será mediado pelas circunstâncias histórico-culturais em
que vivemos no século XXI, na América Latina e na Amazônia. Mas acreditamos que temos que
afastar o pó que envolve nossa visão contemporânea para tentar avançar rumo a um edifício
subterrâneo, convidando outros escavadores para que busquem e avancem mais profundamente
em busca do sentido.
Páscoa de 2018.
Kátia Mendonça
CAPÍTULO I- POR UMA HERNEMÊUTICA ESPIRITUAL
Vivemos em uma sociedade escrava de relações mediadas por imagens visuais produzidas
por uma tecnologia em incessante expansão. Em larga medida o homem contemporâneo gira e
constrói suas relações intersubjetivas e sociais através dessas imagens, seja pela internet, seja
pela televisão ou pelos meios impressos. Em tal processo chega a desaparecer a distinção entre o
real e o falso, tendo o real mesmo perdido o sentido. Seu ponto final é o relativismo extremo, que
das imagens chega aos valores. Diariamente atos de violência são reproduzidos e estampados em
todos os meios de comunicação e o que se assiste é uma verdadeira replicação dos mesmos
expressa em ações que rapidamente se expandem individual e coletivamente.
Ao falarmos aqui de violência não nos limitamos às suas modalidades física ou urbana,
como se banalizaram em nosso país nos últimos anos, mas falamos também de todos os
atentados, dos mais sutis e simulados aos mais explícitos, perpetrados contra a Criação, da qual
faz parte o homem, e contra o Criador. Sim, este ensaio parte da premissa de que esses dois
núcleos estão intimamente ligados e se nós, pelo fato de termos eclipsado Deus, não
reconhecemos nossa condição existencial primordial, de criaturas, isso não elimina o fato de que
o somos. Assim, falar de violência contra a Criação da qual fazemos parte diz respeito aos
atentados que vão desde a imagem pornográfica veiculada na supostamente livre internet e que
hoje se traduz no terrível sexting que já levou tantos adolescentes e crianças ao suicídio no
mundo todo; inclui o sutil assédio moral ou a tortura psicológica perpetrados contra as pessoas
nos mais inesperados ambientes, do lar ao trabalho; mas passa também pela corrupção nas
franjas do Estado, que mata, corrói vidas e que muitos, teimando em ideologizá-la, relutam em
reconhecer como sendo a destruição de qualquer possibilidade de agir político. A violência
transita também por uma ideologização perigosa da liberdade individual que se traduz em mortes
patrocinadas pelo Estado, com recursos públicos, como o são os casos da eutanásia e do aborto.
A violência urbana, que explode em países como o Brasil, é apenas a ponta do iceberg de um
cenário trágico onde a violência já reina há muito tempo e que hoje revela sua extremidade,
quando a camada profunda é muito maior e diz respeito ao profundo afastamento de Deus a que
o homem chegou, a ponto mesmo de perder a sua face humana, de esquecer que é imagem de
uma realidade muito maior e mais bela.
É nesse cenário que podemos afirmar que chegamos à plenitude da violência por
réplica, pressentida nos anos 90 em muitas palestras que fizemos pelo país afora, quando então
tínhamos a forte intuição que tal quadro se aprofundaria no mundo e no Brasil. Tal preocupação
e, mesmo dizendo, tal vivência espiritual, em primeiro lugar, e intelectual, em segundo, deu
origem a este ensaio acerca da imagem, do seu estatuto e do seu poder. Nele serão abordados os
caminhos espirituais e éticos que ela pode abrir para nós, o que esperamos nos ajude a pensar
acerca das possibilidades de reversão desse quadro de destruição crescente.
Lembremos que a discussão sobre o poder das imagens tomou amplitude nos anos 70,
quando Guy Debord lançou o seu clássico A Sociedade do Espetáculo[1]. Na verdade, o
pensamento de Debord apresenta sérias limitações que residem em uma visão materialista da
questão, a qual pressupõe, ingenuamente, que superado o capitalismo, superada também seria a
sociedade do espetáculo, pois esta seria uma fase, a última, da alienação provocada pelo modo de
produção. Além de Debord, autores como Jean Baudrillard[2] e Mario Perniola destacaram que o
estatuto da imagem hoje é o do simulacro onde “imagens e narrativas tornaram-se apenas
sombras, delineamentos de uma ficção para a realidade. O exterior tornou-se o interior, a
aparência se tornou realidade, as imagens de TV tornaram-se a narrativa do que é - não há nada
fora das imagens - até a morte e a morte da guerra se tornaram - como ocorreu na Guerra do
Vietnã - imagens em uma tela (e aqueles que realmente morreram alcançaram seu fim e glória
por um relatório na TV”[3]. A imagem gira em torno de si mesma, precede e, deste modo, dá
origem à realidade (precessão do simulacro), é “"uma imagem sem referente, uma construção
artificial sem modelo, sem protótipo e incapaz de se apresentar como um modelo" ou, como
destaca Russo, na estética moderna não temos mais a querela da proibição das imagens, temos
agora uma situação onde “toda distinção entre visível e invisível é tecnicamente consumada, em
que tudo pode e deve ser visto e, de modo blasfemo Deus substituído por Hollywood e pela
Internet, a imagem tornou-se uma metástase do mundo como panvisibilidade”[4]. Além destes
estudos há que se mencionar o clássico de Freedberg, orientado[5] por um diálogo entre a
psicologia, as neurociências, a história da arte e a antropologia. Buscando ver as especificidades
da recepção da imagem e as reações psicológicas a elas, sua tese central é que as imagens
exercem um grande “poder” emocional e psicológico sobre seus receptores. A partir dessas
análises chegou-se a uma certa concordância de que as noções de cópia e de modelo foram
destruídas no imaginário social.
Mesmo sendo diferente o nosso percurso neste ensaio, nos chama a atenção a dramática
afirmação de Deleuze, em se referindo ao O Sofista de Platão: “à força de investigar o simulacro
e de se debruçar sobre seu abismo, Platão, no clarão de um instante, descobre que ele não é
simplesmente uma falsa cópia, mas que põe em questão as próprias noções de cópia e de
modelo”[6]. Esta é a situação com a qual nos defrontamos hoje: o solo das relações na vida social
e política contemporânea se esvanece na medida em que as noções de cópia e de modelo
desapareceram totalmente, abrindo as portas para a construção do imaginário da pós-verdade[7].
O problema de análises como as de Debord, Baudrillard e Perniola reside no fato de serem
elas marcadas pelo materialismo e pelo positivismo. Isso lhes retira a possibilidade de alcançar
um horizonte espiritual mais profundo, impedindo-as de ver como assustadora é a realidade
encoberta pelas falsas imagens ao tornar-se algo que abala não só as vidas pessoais, mas,
sobretudo, a vida social e a esfera política, ou o que aquilo resta delas. Sem verdade e sem
referentes, o homem perdeu a capacidade de se relacionar consigo mesmo, com a comunidade e,
por fim, com a esfera pública. Seu caminho o defronta, no presente, com a destruição completa
da noção mesma de humanidade.
É catastrófico pensar que não se pode mais confiar em nada e em ninguém, ou que a
palavra perde o sentido, que verdade e mentira, falso e verdadeiro, real e imaginação, são
esfacelados. É assustador não se ter mais o solo da verdade factual, para utilizar a expressão
arendtiana, sobre o qual se constrói a política como arte de atingir o bem comum. É terrível se
perder a percepção acerca de se o visto no ecrã do televisor ou no do celular corresponde ao real
ou a uma montagem; se os vilões são verdadeiramente vilões e se os bons são realmente bons; se
as pessoas mentem, ou não. A resolução para muitos parece estar em deixar de se preocupar com
a verdade, esta incômoda figura, e assumir a posição de “porque se preocupar com a verdade se
ela não existe mais?”. Para dar conta desses dilemas as ciências sociais criaram o conceito de
“verdade socialmente construída”[8].
No mundo da pós-verdade os homens perdendo o contato com o fundo espiritual de suas
vidas, ou seja, com Deus, perderam o caminho de casa, o caminho de sua morada espiritual.
Perderam também a percepção do real e, assim, a compreensão de si próprios como seres
humanos. A centralidade cabe agora a imagens que se fetichizam envolvendo suas vidas como
um furacão, que tudo destrói por onde passa. As consequências da destruição da percepção da
verdade para a espiritualidade humana, assim como para as relações intersubjetivas e sociais, são
ainda inalcançáveis, pois se não há real e se esvanecidas foram as noções de falso e de
verdadeiro estamos em pleno reino previsto pelo personagem de Dostoievski, Ivan Karamazov,
no qual “se Deus morreu, tudo é permitido”.
Sabe-se apenas que isso é algo que, efetivamente, parece estar ocorrendo hoje no caos
espiritual e imagético em que mergulha a sociedade ao adentrar em uma labiríntica Torre de
Babel, onde imagens desconexas e experiências de vida se entrecruzam em uma velocidade
espantosa ancoradas sobre uma potente tecnologia que se faz prótese de comportamentos
individuais e sociais marcados pelo vazio e pela violência. Ao falarmos do imaginário da Torre
de Babel ingressamos no imaginário do Apocalipse. Chega-se à borda da autodestruição pela
tecnologia forjada por seres espiritualmente imaturos para com ela lidar.
Para nos aproximarmos de uma compreensão dessa situação e suas consequências,
desejamos aqui tecer uma hermenêutica espiritual da imagem. Aqui a palavra espiritual carrega
consigo não só a busca de um sentido, de uma orientação, por trás e adiante da imagem e da vida
humana que a produz, mas também, e antes de tudo, a crença de que há um mundo invisível aos
nossos olhos, para além dos nossos sentidos, convivendo com um mundo visível. Dionísio, o
Areopagita diria que os ícones são “representações visíveis de espetáculos misteriosos e
sobrenaturais”. Isso também é verdadeiro para as imagens de modo geral, sagradas ou não,
icônicas ou pagãs, construídas pelos homens ou feitas por mãos não humanas (akeropita).
Sendo assim, a perspectiva que orienta este ensaio vai na contramão das visões de fundo
materialista e niilista que sustentam, em maior ou menor medida, as abordagens contemporâneas
acerca do estatuto da imagem e que, ao final e ao cabo, restringem a questão a expressões seja de
um modo de produção específico, seja de uma ausência de real, seja de uma inautenticidade do
ser. Todas estas percepções, em razão dos limites de compreensão impostos por suas bases
epistemológicas, caem no mesmo vazio que identificam no atual papel da imagem. Os
diagnósticos da imagem como simulacro e como espetáculo, permanecem superficiais a
hermenêutica deles oriunda não consegue fazer uma análise mais densa que supere o vazio, a não
ser aquelas, já sabidas, de união da cultura com a filosofia, como no caso de Perniola, que de
resto, já se encontram em Martin Heidegger ou, mais recentemente, em Mondzain[9], que
bebendo em fontes da antropologia e da psicanálise, aborda a imagem em sua relação com o
sujeito, seja constituindo-o, seja destituindo-o. Ainda assim, se tratam de percepções presas à
matriz racionalista ocidental marcada por uma visão da imagem impregnada pelo subjetivismo
que brota dos pensamentos kantiano, husserliano, heideggeriano e dos chamados mestres da
suspeita - Nietzsche, Freud e Marx; mais precisamente, a imagem como imago do indivíduo, sem
qualquer estatuto de autonomia possível, mas dependente total em sua constituição da relação
como o homem. A nosso ver esta é uma visão redutora da imagem que impede qualquer análise
mais profunda acerca do seu poder sobre a sociedade e sobre os indivíduos. A razão desse
reducionismo tem como raiz o longo processo de construção de uma concepção de mundo que
rompe com o teocentrismo em favor de um antropocentrismo que envolverá toda a cultura
ocidental.
O que se faz necessário destacar é que se temos imagens, como os ícones e demais
imagens religiosas e artísticas, que abrem portas para o infinito e são manifestações da energia
divina, podemos considerar também, que temos aquelas que abrem as portas para a emergência e
para o crescimento do misterioso mal. É inegável o poder que têm as imagens de disseminar
comportamentos sociais desagregadores, particularmente com o alento propiciado pela
tecnologia. Há uma relutância das ciências humanas em perceber o quanto nos dias atuais as
imagens, replicadas velozmente, conduzem as massas a comportamentos violentos e
inconscientes, propagando no mundo uma cultura de medo, de morte e de destruição. Como
então podemos refletir acerca da imagem hoje? A questão, que se coloca desde a antiguidade, foi
perdida ou subestimada pelo pensamento ocidental.
Deste modo, a nossa proposta aqui é de, orientados por uma hermenêutica espiritual,
abrirmos a discussão acerca do estatuto da imagem na vida do homem e do seu papel na vida
social. O debate com pensadores tais como os Padres da Igreja, Florenski, Bulgakov, Tarkovski,
Corbin, Evdokimov, pode vir a contribuir vigorosamente, como chaves hermenêuticas, para a
compreensão acerca do au-delá da imagem e dos seus impactos espirituais e éticos para além dos
puramente estéticos. Para isto nos deteremos em duas dimensões da questão: a imagem como
janela aberta para o infinito e a imagem como energia.
Conclusão do Capítulo:
Este ensaio pretende abrir uma discussão acerca da questão da imagem em sua relação
com a ética. Sua hipótese central, construída em diálogo com diversas vertentes do
conhecimento, é que as imagens são portadoras de energia. Da relação dos homens e da
sociedade com elas podem derivar pensamentos e comportamentos orientados para a violência
ou para a harmonia entre os seres.
Antes de tudo trata-se aqui de uma visão que tem como eixo a percepção de Dostoievski
de que se Deus morreu tudo é permitido, ou seja, a centralidade e precessão da relação dialógica
do homem com Deus, de sua presença ou de sua ausência, é que determinará sua relação não só
com o outro, mas com a produção e com a recepção das imagens. Uma intrincada rede de
relações entre os homens e as imagens é expandida para a sociedade e gera comportamentos que
se replicam ad infinitum.
Assim, nosso fio condutor é a ideia de que a imagem é portadora de energias e, ao mesmo
tempo, uma janela que pode, a depender do seu caráter, ser aberta para a luz divina ou para as
trevas; para Deus ou para o demoníaco; para a harmonia ou para o caos; para a vida ou para a
destruição e para a morte.
CAPÍTULO II- DA IMAGEM EM CORBIN E EM DURAND
O mundo Imaginal
Todos aqueles que se aventuram pelo mundo da imagem e do imaginário irão se defrontar
com Corbin, Eliade e Durand. Em nossa caminhada isso não foi diferente. Nela o que retivemos
e que consideramos de especial importância para os fins deste ensaio foi a concepção de mundo
imaginal proposta por Henry Corbin e que, de per si, já é uma importante janela para a
compreensão da nossa relação com a imagem. Corbin (1903-1978), foi um dos maiores
estudiosos do misticismo islâmico no Ocidente. Primeiro tradutor de Heidegger na França,
utilizou deste a concepção de hermenêutica para aprofundar a compreensão das místicas sufis e
xiitas. Notório crítico da Igreja Católica Romana, rejeitava a Encarnação de Cristo e a Trindade,
se filiando mais à espiritualidade docetista e vendo no Cristo uma epifania do mundo angélico.
Sua visão do homo misticus, precedendo ao homo religiosus de Eliade, o levou a buscar na
espiritualidade oriental, assim como na gnose e na maçonaria, a resposta para suas inquietações.
Corbin participou no início do século XX, no Ocidente, das discussões sobre imagem e
imaginário que brotaram no Círculo de Eranos, do qual fizeram parte Carl Jung, Mircea Eliade e
Gilbert Durand. As investigações desses intelectuais redundaram em obras monumentais e se
deram como reação ao racionalismo ocidental que, para eles, ao impedir o desenvolvimento de
um conhecimento espiritual milenar, trouxe catastróficas consequências para a humanidade. Suas
reflexões se constroem à margem, e, ao mesmo tempo, em diálogo com o saber ocidental. As
teorias que brotaram de Eranos têm como fio condutor, por um lado, a crítica ao racionalismo,
incluindo aquele que se imiscuiu na Igreja ocidental, e, por outro, a busca de um conhecimento
esotérico e gnóstico em diálogo com as religiões e místicas orientais, em um esforço para
alcançar também outras dimensões da espiritualidade do homem que não só o cristianismo.
Embora suas diferenças, o que os une é a percepção da existência de uma realidade invisível para
além dos sentidos físicos.
Corbin ao abordar a questão da espiritualidade islâmica ingressará no campo da energia e
do mundo invisível. Para os propósitos desta discussão, é muito importante sua concepção de
mundo imaginal (mundus imaginalis,) que os teósofos do Islã denominavam de “oitavo
clima”[10]; concepção esta que abre portas para se compreender o fenômeno da imagem para além
de sua materialidade e visibilidade e para interpretá-la como vinculada a um mundo invisível.
A hermenêutica espiritual de Corbin o conduz ao mundo espiritual, à realidade
suprassensível, ao mundo das coisas invisíveis pelos sentidos humanos. A concepção de
realidade do mundo imaginal irá beber nas fontes do platonismo persa presente em Sohravardi e
em Ibn Arabi e se refere a uma realidade infinita que extrapola todas as tentativas de redução
intelectual. Corbin se afasta da palavra imaginário, utilizada por seus companheiros do Círculo
de Eranos, Mircea Eliade e Gilbert Durand[11]. Este último, por exemplo, defenderia com vigor o
termo “imaginário” como, de resto, os demais membros do Círculo, sob a perspectiva de uma
hermenêutica marcada pela instauração de um sentido, ao contrário da hermenêutica da suspeita
e da desconstrução presente no pensamento ocidental. Mas, as reservas de Corbin em relação ao
imaginário se dão, sobretudo, pelas ambiguidades que, segundo ele, o termo carrega, não dando
conta da presença de uma realidade intermediária e mediadora para além do mundo sensível. Seu
ponto de partida será a identificação no sufismo de Ibn Arabi de um mundo com três dimensões:
o universo apreensível pela percepção intelectual, o universo perceptível pelos sentidos e, entre
eles, um mundo intermediário, o mundo imaginal (mundus imaginalis), ontologicamente
situado entre os planos sensorial e inteligível, mundo das ideias-imagens, das figuras-arquétipos,
tão real e objetivo quanto o mundo inteligível e sensível, “constituído por uma matéria real e
dotado de uma extensão real, ainda que em estado sutil e imaterial com respeito à matéria
sensível e corruptível”[12].
O mundo imaginal é alcançado pelo homem em estado de oração. É através dela, como
ato da imaginação criadora, que Deus se epifaniza ao e através do homem. É através da prece
que se revela a dimensão imaginal, ou melhor dizendo, que se abrem as portas para o invisível:
Pois a oração não é petição de nada: é a expressão de um modo de ser, é
um meio de existir e de fazer existir, ou seja, de fazer aparecer, de "ver" o
Deus que se revela; vê-lo, não sua Essência, é claro, mas na forma que ele
precisamente revela ao revelar-se mediante essa forma e nela. E é isso que,
antecipadamente, refuta a objeção daqueles que, totalmente inconscientes
da natureza da imaginação teofânica como criação, propõem que um Deus
que é "criação" de nossa Imaginação não pode ser mais do que irreal e que,
portanto, a oração dirigida a ele carece de sentido. É precisamente porque
ele é essa criação para quem ora, e para isso e por isso é que existe. A
oração é a forma mais elevada, o ato culminante da imaginação criadora[13].
À conclusão semelhante chegará Lukacs, para quem Heidegger desenvolve uma filosofia
diante da qual nos defrontamos
Do lado do pensamento ortodoxo, que será abordado neste estudo, há uma evidente
ignorância de Heidegger quanto aos russos e uma rejeição destes em relação a ele, neste último
caso também pelo vazio ao qual nos conduz a sua filosofia. Assim temos, por exemplo
Viacheslav Ivanov para quem:
Heidegger, tão idolatrado no Ocidente, certamente está na raiz tanto das teologias
secularizadas quanto das ciências humanas em seu estágio atual. Todas romperam o contato com
Deus e com Cristo, todas conduziram à desumanização e ao vazio, com consequências sociais
terríveis para a sociedade, para a Igreja e para a fé. Os efeitos da propagação de tal pensamento
sobre a humanidade a partir da intelectualidade eclesiástica e acadêmica, se fez e se faz sentir
cada dia mais densamente, chegando a um estágio de violência inaudita de uns contra os outros,
seja sob a forma de fundamentalismos religiosos, seja sob a forma do crime na esfera política ou
na sociedade. Estamos diante do trágico vazio em que o pastor foi ferido e as ovelhas
dispersas[41]. E o pastor foi ferido não apenas pelos assaltantes externos, mas por aqueles que
dizem falar em seu nome. Tendo como pano de fundo este quadro é que devemos retomar a
marcante crítica de Berdyaev contra o vazio da filosofia ocidental moderna e, por extensão,
contra Heidegger e Freud:
A questão é que, sedutoramente poderíamos dizer, esse vazio é camuflado por elementos
gnósticos, no sentido de despojar o Deus bíblico do Seu Mistério, como enfatizou Buber. Esses
elementos que, assim como os pagãos e anticristãos estão presentes em Heidegger, irão também
reaparecer naqueles sobre os quais ele exerce sua influência, como, por exemplo, em Mircea
Eliade com sua ênfase na centralidade cósmica do "Ser no mundo"[43] assim como no sagrado
“saturado com o ser”. Destaque-se também o forte anticristianismo de Heidegger, o que torna
ainda mais surpreendente, senão escandaloso, o fato de ele ser tão citado e tão idolatrado por
teólogos ocidentais!
As conotações pseudorreligiosas e, acima de tudo, pseudomísticas e
epistemológicas presentes no trabalho de Heidegger explicam, entre outras
coisas, porque, apesar do seu ateísmo - mais implícito do que explícito - seu
sistema de pensamento será recebido com grande respeito e até mesmo veneração
por importantes setores de crença, tanto católicos como protestantes. Citemos
como exemplo representativo a influência que Heidegger exercerá sobre Rudolf
Bultmann e sua teologia existencialista ou sobre Karl Rahner[44].
Hugo Ott, um dos mais brilhantes alunos de Heidegger, também enfatizaria o fato de que
sua filosofia, ao ter declarado Deus morto, rejeitou toda ética do Décalogo. Porém, o fato de ele
ter criado uma filosofia para além de Atenas e de Jerusalém, cairia no gosto dos teólogos e dos
historiadores da religião, como Corbin, Scholem e Eliade[45]. Aliás, tendo caido no gosto do
homem deste século, Heidegger só poderia exercer grande atração e influência sobre as mentes
vaidosas, posto que seu hermetismo, citado à exaustão, confere não poucos louros e honras
àqueles que supostamente conseguem “decifrá-lo”. Mas esse hermetismo é, na verdade, fruto de
um discurso ambíguo, assentado não apenas numa base pseudomística e pseudorreligiosa, mas,
em uma ambiguidade fundamental tão ao gosto da mentalidade acadêmica presente nas
Universidades e nos seminários ocidentais. Hans Jonas, outro ex-aluno de Heidegger, ilustra
muito bem isso com o relato que faz sobre uma conferência que deu intitulada “Heidegger e a
Teologia”, que foi execrada por teólogos europeus, alemães em particular, pelas ideias abaixo...
É simplesmente devastadora a exortação de Jonas aos cristãos! E também é inusitado, em se
tratando de ser ele uma pessoa de origem judaica e, por isso mesmo, é algo que deveria ser
considerado seriamente pelos teólogos:
Representa a linguagem de Heidegger, não em O Ser e o Tempo, tão utilizado por
Bultmann em sua obra exegética, mas aquela linguagem oracular do Heidegger
tardio, um meio de expressão adequado para articular a teologia? Esse era o
pressuposto básico positivo do qual partia originariamente a conferência. Os
teólogos de fala alemã que simpatizavam com a filosofia defendiam a tese de que
finalmente o pensamento filosófico lhes oferecia novamente a possibilidade de
expressar sua teologia cristã – em lugar da linguagem antiquada do Novo
Testamento e da Bíblia - com a linguagem mais moderna da filosofia mais atual
e na moda. Do mesmo modo que havia acontecido com Hegel, agora seria o caso
com Heidegger. Este pressuposto eu o refutei desde o princípio, e isso com o
argumento contrário segundo o qual a filosofia heideggeriana junto com a
linguagem que havia inventado era, em sua essência, demasiado pagã, e que os
teólogos cristãos ignoravam onde estavam se metendo. Além disso, destaquei
que resultava paradoxal que tivesse que ser um judeu, um filósofo não
cristão, quem protegesse os teólogos de um casamento ou de uma aliança que
não podiam resultar senão funestos para a essência cristã. O ilustrei mediante
expressões e argumentações do Heidegger tardio, que comparei com as da
mensagem bíblica. “Acaso a teologia”, eu interpelava meu auditório através da
filosofia heideggeriana, “se deixará seduzir em solo alheio, mas perigoso graças à
envoltura do misterioso, o tom da inspiração que faz mais difícil reconhecer esse
paganismo que os das filosofias pura e simplesmente profanas? “Amigos meus,
teólogos e cristãos”, gritei-lhes, “Acaso não vedes com quem vós estais? Não
percebeis o profundo caráter pagão do pensamento heideggeriano? Que a
teologia permita a esse inimigo -- um inimigo manifestamente nada
desprezível, do qual poderia apreender tanto acerca do abismo que separa o
pensamento da fé mundanos – penetrar em sua sancta sanctórum, me
surpreende. Ou, me expressarei de modo reverente, ultrapassa minha
razão[46].
Ainda seria o mesmo Hans Jonas quem detectaria que os motivos da atração que
Heidegger exerce sobre o pensamento ocidental, a sua “capacidade hipnótica”, derivam da
“‘natureza impenetrável’ de seu discurso. Assim os alunos tinham a sensação de que apesar de
não compreendê-las, por trás das palavras de Heidegger havia ‘algo digno de compreender-
se’”[47]. Mas, apesar das advertências de Hans Jonas, tal hipnose exerceu e continua a exercer seu
poder entre os teólogos cristãos, principalmente na atual fase de eclipse do cristianismo presente
na chamada teologia pós-moderna ou ontoteologia[48]. O pensamento de Hans Jonas é um
diagnóstico muito preciso e revelador da natureza da maior parte da chamada intelectualidade.
Nada a não ser a ignorância, ou ainda, uma profunda vaidade, é que pode levar tais intelectuais
ao casamento funesto que Jonas tinha percebido. Temos com Heidegger um pensamento que é
revestido de grande verborragia, de obscuridades intencionais, de ambiguidades e de
ambivalências, para fazer-se incompreendido e venerado por um mundo carente de sentido e cujo
escape é enaltecer a razão especulativa desse homem que rompeu o diálogo com Deus
dedicando-se a florilégios verbais, pseudoprofundos, também eles vazios de sentido.
Certa vez, em uma carta dirigida ao poeta Apollon Maikov e escrita em 1870, durante seu
exílio em Dresden, Dostoievski se referia aos intelectuais universitários que queriam a guerra e
se alvoroçavam por ela, quando a população parecia pouco interessada. O escritor, cuja profecia
em torno da arrogância intelectual se concretizaria com a escritura de Os Demônios, deixa um
veredicto sarcástico, porém verdadeiro, sobre o clima que atinge a intelectualidade:
Queremos com essas opiniões contribuir para que o leitor desperte ou, pelo menos, tenha
acesso a uma visão crítica sobre um pensamento que deixa atrás de si um cemitério de ruínas
para a cultura ocidental, as quais são tanto mais trágicas dado o alcance e poder dessas ideias
sobre as universidades, sobre o conhecimento construído no último século e, por fim, sobre a
sociedade.
A liusão da gnose
Não é nossa pretensão discutir, nos estreitos limites deste ensaio, as origens, ramificações
e desdobramentos da gnose, elementos discutidos por scholars como Hans Jonas[53], Ioan
Couliano, Ugo Bianchi e mais recentemente por Harold Bloom. A palavra gnose há séculos vem
sendo alvo de debates e de formulações polissêmicas, confundida com gnosticismo. Assim que
as diferenças entre ambas, deram origem a muitas discussões que culminaram na reunião de
famosos experts no, igualmente famoso, colóquio de Messina em 1966[54]. Resumidamente dir-
se-ia que gnosticismo identificará um fato historico que diz respeito a diversas correntes e
sistemas de pensamento surgidas a partir do século II D.C, enquanto que gnosis diz respeito ao
“conhecimento dos mistérios divinos reservado a uma elite”[55]. Gnosis em grego significa
conhecimento, que na Igreja primitiva tinha, como lembra Leloup, a conotação existencial
judaica, dizendo respeito à experiência de unicidade com Deus, “Ora, a vida eterna consiste em
que conheçam a ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste” ( João 17,3)[56]. Existe,
contudo, uma falsa gnose, “uma gnose heterodoxa, uma pretensa gnose, dirá Santo Irineu.
Aquela que vai contra essa unidade do Real e que oporá Deus e o homem e, por consequência, o
Espírito e a matéria, o corpo e a alma”[57]. É para essa “falsa gnose”, que são tecidas as críticas
aqui apresentadas, incluindo, a mais consistente de todas, para nós, que é a de Martin Buber. A
característica principal da gnose (no sentido de falsa gnose) é o seu “intento de instrumentalizar o
Espírito Santo para fins humanos utilitários”[58]. Além disso, a característica presente em todas as
suas variantes é o dualismo que oculta a presença da graça de Deus no mundo, vendo este como
separado Dele. Sendo o mundo material degradado, recuperar a integração com Deus é tarefa da
gnose. Para romper com esta separação buscam-se vários métodos que transformam o Criador e
Seu Mistério em um objeto a ser atingido e manipulado. Será este dualismo fundamental que
encontraremos na formulação simbólica da coincidentia oppositorum:
A implicação mefistotélica de coincidentia oppositorum é “gnóstica” no sentido
etimológico da “gnose” - ela supõe um "conhecimento" além do conhecimento
humano. Mas sem o reconhecimento das limitações do conhecimento humano,
perdemos a pouca orientação disponível para nós. [...]Para cada passo
fantasmático na dimensão imaginal, nos despojamos de alguma confiança
concomitante, perdemos capacidade adicional para coordenar a direção ética e
racional[59].
Certamente esse será o principal resultado da gnose: não o ecumenismo como pretendido
por Corbin, mas o caos, o andar sem rumo e sem coordenação. Uma ilusão não percebida por
Jambet quando afirma “que bela liberdade, nas gnoses iluminadoras, a sinfonia do maniqueismo,
do cristianismo oriental, de Platão, Plotino, Proclus. Eis que toda geografia [espiritual] se
embaralha e revela-se transformada”[60].
Martin Buber tecerá a crítica ao princípio gnóstico da unificação dos opostos – o bem e o
mal, o feminino e o masculino (que redundará no simbolismo da androginia) - presente no
círculo de Eranos, em Corbin, em Eliade, assim como em Jung, a quem particularmente Buber
critica apontando, com lucidez, o grande perigo de integração do mal e da eliminação da
consciência como encontrado na psicologia junguiana. Nesta, a alma integrada no Self, integra os
opostos do bem e do mal, ao fazer isso dispensa a consciência como tribunal e pode-se dizer
mesmo que a noção de bem e de mal desaparece, ocorrendo a emergência da “função positiva do
mal”. O Decálogo é finalmente rasgado e o solo para Eichmann[61], que não consegue distinguir
o bem do mal, está pronto:
Jung concebe o Self, que é o objetivo do processo de individuação, como a “união
nupcial de metades opostas” na alma. Isso significa, acima de tudo, como foi dito,
a “integração do mal”, sem a qual não pode haver totalidade no sentido deste
ensinamento. A individuação, assim, realiza o completo arquétipo do self, ao
contrário do que no simbolismo cristão é dividido em Cristo e no Anticristo,
representando a sua luz e os seus aspectos escuros[62].
Certamente que na conciliação de opostos reside o germe do mal, dissolvendo-se este na
integração de polos, o que elide todo o trabalho da consciência em julgar o certo e o errado. Na
mandala junguiana Deus é substituído pela totalidade do homem e, deste modo, abrem-se as
portas para o relativismo que envolve o mundo atual, com as consequências sociais disso
decorrentes: violência e criminalidade crescentes e generalizadas. E esta é uma das dimensões
centrais dessa gnose em sua procura por um Deus acessível pelo conhecimento,
instrumentalizado pelo homem. Daí que nesse espírito de busca por um renascimento espiritual
em uma Europa pós-iluminista esvaziada de espiritualidade e virada de costas para o
cristianismo, autores como Nietzsche e Heidegger tenham tido tanto impacto. Para aqueles que
buscavam suprir o vazio provocado pela ruptura do diálogo com Deus, só restavam caminhos
gnósticos e/ou tentar buscar em um autor como Heidegger uma espiritualidade impossível de ser
extraída.
Não esqueçamos que o fundamento da gnose é a busca de liberdade no conhecimento de
Deus, para além dos dogmas, dos concílios, ou de modo mais direto, em se falando da Igreja
Católica Romana, do Vaticano e da sua vinculação com o poder mundano, com o Estado. Se o
fundamento da busca gnóstica, a liberdade, é aparentemente legítimo, no entanto, ela também,
como a teologia, pode cair em um caminho cego, provocado pelo orgulho do conhecimento e
pela falta de percepção da experiência de séculos de uma comunidade, que embora soterrada em
vários momentos pelos limites dos homens (e, sem dúvida, cada dia mais abalada por estes),
ainda carrega consigo, tanto na Igreja do Oriente quanto do Ocidente, o fermento dos Padres da
Igreja, dos Santos, dos místicos ou de um Santo contemporâneo, como São Pio de Pieltrecina que
surge como um signo visível de Cristo diante do sofrimento de sua Igreja, como o foi Francisco
de Assis há séculos atrás. O caos da gnose não conduziu ao aumento da paz e entendimento entre
os homens, antes contribuiu para descristianizar o Ocidente, com a ajuda, é claro, de vários
membros da hierarquia da própria Igreja que contribuíram para isso. Porém, há uma Igreja e uma
tradição apostólica que antes que a liberdade em manipular o universo e o conhecimento de
Deus, busca na humildade a recepção de Seus signos e de Suas mensagens.
Conclusão do capítulo:
O niilismo que alimenta Heidegger e a gnose são mais próximos do que parecem. Daí que
a presença de ambos no pensamento corbiniano, não deva causar surpresa. Aqui faz-se
importante retomar Couliano cujas conclusões embora voltadas para o gnosticismo ocidental, são
a nosso ver perfeitamente cabíveis para o pensamento gnóstico do grupo de Eranos. Inicialmente
o que temos é uma separação entre ambos: o niilismo é antimetafísico e descontrói a
transcendência, enquanto o gnosticismo, sendo metafísico, é a afirmação extrema dela ao negar o
mundo físico. Porém, há algo a uni-los: o fato de que ambos buscam desconstruir a mesma
transcendência judaico-cristã. São, assim, duas formas diversas de niilismo e seu ataque mais
visível, como destaca Couliano, são as Escrituras cristãs, “a personificação para ambos de uma
transcendência falaciosa”[63].
Assim, na medida em que apontam caminhos desconstrutores do cristianismo, a gnose e o
heideggerianismo estão conectados. Logo, não deixa de causar aturdimento ver estudos
teológicos contemporâneos[64], católicos e protestantes, buscarem em Heidegger uma
espiritualidade (no sentido de diálogo com Deus) inexistente, deixando de lado o fato que a sua
concepção de transcendência, além de ser anticristã, é totalmente terrena, “é uma transcendência
na imanência”, como bem pontuou Urbano Zilles[65], despida de caráter religioso, voltada para
os homens, para o futuro. Para Buber o que temos em Heidegger e em Jung, é a apologia de
“uma nova religião, de pura imanência psíquica, a única que ainda pode ser verdadeira”[66] no
contexto desse gnosticismo. O impacto de Heidegger continua sendo enorme sobre o pensamento
ocidental, incluindo sobre aqueles que a ele se contrapõem[67]. Lembremos aqui de Levinas, que
passa a vida em luta contra a ontologia de Heidegger, mas cuja ética é tão permeável a Heidegger
como aponta Henri Meschonnic[68]. Em tempos onde Jesus é escorraçado a seguir sozinho pelas
ruas escuras como na Parábola do Grande Inquisidor, de Dostoievski, Heidegger é e continuará a
ser, por um tempo não sabido, um ídolo.
Assim, a questão do estatuto da imagem sofreu, do século XX até agora, por inúmeros
desvios por parte do Ocidente: o materialismo (Debord), o niilismo (Baudrillard), a gnose e o
heideggerianismo (Corbin, Durand). Embora essas percepções contenham elementos importantes
para discussão, pergunta-se até que ponto tais análises serviram de solo para múltiplas e confusas
experiências existenciais e espirituais que tentam dominar a imagem ou banalizá-la, a ponto de
não se perceber que uma de suas dimensões é o fato de ser marcada por uma energia que ao
receptor envolve, abrindo para universos espirituais insuspeitados.
CAPÍTULO III-EM TORNO DA QUESTÃO DA ENERGIA
A questão da energia é central para a argumentação que aqui desenvolvemos em torno da
hipótese de que as imagens conduzem energias. Retomemos o sentido filosófico como presente
no Dicionário Houaiss onde em Aristóteles energia significa “ação de um motor (físico ou
metafísico) que permite a atualização de uma potencialidade”, ou seja, energia diz respeito à
ação e não é apenas a posse de uma potencialidade, mas o seu exercício. Na Metafísica (Livro
IX, Parte 6) Aristóteles distingue ato (energia) de movimento (kinèsis). Um ato é o seu próprio
fim, um movimento tem um fim definido e exige um tempo. Por exemplo, ver, andar, pensar, são
atos; construir uma casa, esculpir um mármore, são movimentos[69]. Aqui, porém, não será o
sentido aristotélico, mas o cristão que importará, em especial como relação aos temas abaixo,
centrais para nossa reflexão. Cabe observar que, em meio a dúvida acerca das influências
filosóficas gregas sobre a questão das energias parece haver um consenso que - embora haja uma
influência da concepção platônica de Ideia, juntamente com a aristotélica de energia - aos
Padres da Igreja coube, a partir de São Paulo, uma longa elaboração teológica feita no âmbito da
tentativa de cristianizar o pensamento grego[70], na verdade “os Padres ‘teologizaram’, como São
Gregório de Nazianzo coloca, ‘na maneira dos Apóstolos, e não na maneira de Aristóteles’
(Hom. 23. 12)”[71].
Um tema central na teologia bizantina será a distinção entre energia e substância, como o
estabeleceu, entre outros, Gregório Palamas sob influência dos Padres Capadócios. As energias
divinas não são hipóstases e assim não se constituem em realidades independentes, antes a noção
de energia toma lugar então dentro da tríade relacional: “quer seja indiretamente, por intermédio
da noção de potência [(dunamis) = capacidade ou faculdade], ou diretamente, a noção de
energia se encontra em relação com a noção de essência (ousia) ou de natureza divina”[76].
Há uma distinção real entre energia divina e essência divina. Assim, a energia depende e é
subordinada ou inferior à essência que a transcende. A energia não se relaciona com a hipóstase,
somente o faz quanto ao modo de operação ou orientação desta. As três hipóstases (pessoas)
divinas (Pai, Filho e Espírito Santo) têm a mesma energia pois possuem a mesma e única
natureza divina. Os Padres da Igreja, assim como Gregório Palamas, enfatizam que Deus é
incognoscível em Sua essência, mas é cognoscível em Sua energia ou em Suas energias. “Nunca
há uma visão da essência de Deus, radicalmente transcendente, mas sim a mais real participação
das energias divinas incriadas”[77]. Gregório de Nissa, João Crisóstomo e João Damasceno,
contudo, ressaltam que nosso conhecimento das energias divinas é sempre parcial e limitado.
A palavra energia, deste modo, pode dizer respeito tanto à atividade de Deus no mundo
quanto a Seus atributos. Aqui é que a questão das energias divinas se relaciona estreitamente
com a questão dos Nomes de Deus, como veremos mais adiante com Bulgakov, e com a questão
da Luz Divina, pois esta “é uma energia divina e a energia divina se manifesta com frequência
através da Luz”[78].
Para o pensamento patrístico as energias divinas se manifestam no mundo, estão em todas
as partes, envolvem e penetram todas as criaturas. São ao mesmo tempo imanentes e
transcendentes. Incriadas, elas são comunicadas de modo privilegiado aos homens através da
graça pela qual são distribuídos os dons e carismas do Espirito Santo. A Ele elas são ligadas,
mas, Dele são distintas.
Toda essência possui uma energia. A distinção essência – energia se aplica a Deus e não é
somente conceitual, mas é real e objetiva. Assim falamos tanto de energia divina quanto de
energias divinas. A energia divina se manifesta de diferentes e múltiplas formas[79]. E isso,
segundo os Padres e São Gregório Palamas não atenta contra a Unidade e Simplicidade de Deus,
como possam pensar.
Marcante nos Padres gregos e bizantinos, a percepção das energias divinas foi perdida pelo
mundo latino. Dela decorrerá a principal diferença entre as tradições orientais e ocidentais que é
a questão da sinergia, que diz respeito à comunhão com Deus e que não é um ato intelectual,
mas uma ativa participação na vida[80]. Falando mais precisamente, como indica Bradshaw, se
puséssemos em uma palavra a distinção entre Oriente e Ocidente, essa palavra seria
“sinergia”[81]. Apesar de ter pouco lugar no Ocidente, a sinergia como forma de comunhão com
Deus é clara em São Gregório Palamas e em São Paulo. O Ocidente, porém, avançou rumo a
uma percepção da relação entre Deus e o homem como realizável através de meios intelectuais,
percepção que tem seu germe em Santo Agostinho o qual, enfatizando a simplicidade de Deus,
termina por abordar esta relação como acessível por tais meios, algo que será posteriormente
reforçado por São Tomás de Aquino. As consequências disso são profundas para o
desenvolvimento da visão do mundo e da espiritualidade ocidentais.
A ênfase da presença de Deus dentro das criaturas, seja através da participação nas
perfeições divinas ou através da habitação especial da graça, teve que ser
entendida em termos de causalidade eficiente. Isso criou um certo senso de
distância entre Deus e as criaturas - que rapidamente se desenvolveu em um
sentido, não apenas de distância, mas de autonomia. Certamente, não é acidental
que durante os séculos XI e XII, como a Igreja ocidental se desprendia de sua
contraparte oriental, a cultura ocidental como um todo desenvolveu uma posição
nitidamente mais naturalista em áreas como a arte, a ciência, o direito e o
governo, bem como em várias formas de devoção religiosa[82].
Tal naturalismo deu espaço para a percepção filosófica de uma “razão natural”
independente da revelação com consequências sobre a vida religiosa: enquanto a oração e
ascetismo são vistas pelo Oriente como forma de divinização do corpo e da alma, no Ocidente
são vistas como processos disciplinares[83]. A concepção oriental de divinização da pessoa em
corpo e alma está ligada à concepção de sinergia:
A concepção oriental de sinergia depende da compreensão de energeia de duas
formas distintas simultaneamente: como uma atividade que pode ser
compartilhada e como complemento natural e manifestação do ser interior,
pessoal (ousia), daquele que age. Os germes de ambos aspectos deste
entendimento estão presentes em Aristóteles. Energeia como atividade é,
naturalmente, um dos significados aristotélicos regulares do termo, e Aristóteles
também apresenta as energeiai das faculdades da alma como o único caminho
para a compreensão de sua ousia[84].
No centro da elaboração da concepção de energia encontramos São Gregório Palamas para
quem as energias são relativas, ou seja, dependem do poder receptivo das criaturas, não sendo
indicativas da essência, mas da relação com o outro, sendo multiplicadas de acordo com a
diferença do poder receptivo das criaturas. Palamas coloca sob o conceito de energia os dons do
Espirito Santo, a Luz Incriada, as “coisas em torno de Deus”[85], os Nomes Divinos e habitação
do Espírito Santo. Tudo pode ser compreendido como manifestação da essência de Deus através
de suas energias, manifestação da ousia através das energeiai[86]. Daí surgirá um conceito de
imagem diferente do Ocidental, particularmente em Florenski e em Bulgakov, concepção que
será abordada por nós no decorrer desta discussão. De suma importância para nós será a
argumentação de Bradshaw, para quem:
O Oriente não tem conceito de Deus. Ele vê Deus não como uma essência a ser
entendida intelectualmente, mas como uma realidade pessoal conhecida através
de Seus atos, e sobretudo por compartilhar-Se nesses atos. Como eu destaquei,
essa compreensão leva a uma visão distinta do papel do ascetismo e de outras
práticas espirituais. Para o Oriente, estes são vistos não como forma de
disciplinar o corpo, mas como uma contribuição para a divinização da pessoa
como um todo, do seu corpo e de sua alma. Diferença semelhante pode ser
observada em relação à moral religiosa. Para o Oriente, a moralidade não é
principalmente uma questão de conformidade com a lei, nem (em um viés
aristotélico) de alcance da excelência humana através das virtudes. Antes, ela é
uma questão de vir a conhecer Deus, compartilhando Seus atos e manifestando
Sua imagem. É impressionante, a este respeito, que a longa tradição ocidental de
resistência leiga à aplicação clerical da moral não tenha análogo real no Leste.
Neste não se encontra nada como a poesia gótica ou o movimento de amor
cortesão da Idade Média, muito menos a mundanidade estudada por autores como
Boccaccio[87].
Gregório Palamas
A distinção entre essência (ousia) e energia (energeia) foi introduzida como categoria na
filosofia oriental, particularmente com a ocorrência do conflito acerca da adoração do Nome de
Deus (Imyaslavie, Onomatodoxia) iniciado entre os monges russos do Monte Athos.
Ao contrário do discurso filosófico europeu, a tradição ascética ortodoxa oriental
(o hesicasmo), tendo seu centro em Athos, sempre foi baseada em ideias e
intuições energéticas; em particular, o ideal místico (telos) do modo ascético, a
Deificação, sempre foi apreendida intuitivamente como a união energética entre
o homem e Deus. Esta visão energética da Deificação e da comunicação com
Deus, enraizada na prática hesicasta, acabou por resultar no ensino teológico
sobre as energias divinas que foi desenvolvido por São Gregório Palamas no
século XIV[88].
Gregório Palamas (1296-1359) está para a tradição oriental como Tomás de Aquino (1225-
1274) está para a ocidental. Muitos os veem como contrapostos, sendo isso também um dos
elementos de separação entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente[89]. Palamas seria mais intuitivo
e através de sua defesa do hesicasmo como meio para a deificação do homem se afastaria da
lógica, da filosofia e do intelectualismo que dominam a Igreja Ocidental. O centro da teologia de
Gregório Palamas são as questões da essência, da energia e da deificação (theosis). É através das
energias que Deus se manifesta ao homem. Os santos e místicos, por exemplo, têm um vislumbre
de Deus, através da visão de Suas energias, porém não têm acesso à Sua essência que permanece
oculta. A prova de Sua existência está em Suas manifestações e quem não crê nelas também não
crê em Deus. Palamas se afasta de uma concepção intelectualista de Deus, seja de caráter
apofático ou catafático. Sua posição seria existencialista, segundo Meyendorff, pois diz respeito
à percepção da existência de Deus através de Suas energias, sem alcançar a sua essência que
permanece misteriosa e oculta[90].
Ainda segundo Meyendorff, “a distinção em Deus entre ‘essência’ e ‘energia’ - o ponto
focal da teologia palamita - não é senão uma maneira de dizer que o Deus transcendente
permanece transcendente, assim como Ele também Se comunica com a humanidade”[91]. Tal
distinção entre essência e energia torna-se um dos problemas centrais na separação entre as
Igrejas do Ocidente e do Oriente. Como enfatiza Lossky, no Ocidente predomina a visão de Deus
assentada na divina essência da Trindade e nada fora disso, não havendo qualquer lugar, segundo
ele, para a concepção de energia. Mas para Gregório Palamas há algo além: a energia divina,
incriada e coeterna com a substância divina[92]. As energias divinas são agentes da deificação da
criação e compõem uma visão panenteísta de Deus, ao mesmo tempo transcendente (substância)
e imanente (energia). São elas inseparáveis se expressando nos santos e em sua união com
Deus[93]. Temos então que se Deus na visão tomista é inacessível, a não ser que derrame sua
graça sobre o homem, na visão palamita o homem pode ver Deus e com Ele se comunicar através
das energias divinas[94].
O tema central, ou intuição, da teologia bizantina é que a natureza do
homem não é uma entidade autônoma estática e fechada, mas uma realidade
dinâmica, determinada em sua própria existência por sua relação com Deus. Essa
relação é vista como um processo de ascensão e como comunhão - o homem, criado
à imagem de Deus, é chamado a alcançar uma “semelhança divina”. O dinamismo
da antropologia bizantina pode ser facilmente contrastado com as categorias
estáticas de "natureza" e "graça" que dominaram o pensamento cristão ocidental
pós-agostiniano[95].
As consequências dessa posição são imensas para o Leste, pois deixará a marca do
misticismo sempre presente na religião e na arte orientais. O Ocidente, pelo contrário, em sua
teologia privilegiará a lógica e o racionalismo filosóficos deixando de lado a mística e a
experiência bizantinas. Esse abandono talvez esteja na raiz do fato de a teologia ocidental ter
embarcado em um processo de intelectualização, racionalismo e afastamento da relação com
Deus, dando origem tanto ao desencantamento do protestantismo quanto a uma teologia
essencialmente ideológica como é a teologia da libertação[96] presente na América Latina. Esse
caminho do Ocidente marcado pela vinculação com a filosofia e pelo abandono da mística é
fortemente criticado por um pensador como Alexander Kalomiros:
"Protestantes, humanistas, ateus - toda a série de filósofos europeus - todos
se formaram na escola do catolicismo. É por isso que todos eles falam a mesma
língua, a linguagem do racionalismo, e é por isso que, apesar de todas as suas
variações, eles notoriamente se entendem "[97].
Ao se perder a percepção da energia como elemento de comunicação e de união do homem
com Deus se perdeu também a visão da unidade divina de todas as coisas, cujo exceção no
Ocidente temos em São Francisco de Assis. Isto, certamente, é que está por trás de uma tão
profunda e verdadeira afirmação como a de Jean-François Colosimo:
O Deus da Bíblia estava, talvez, ausente de Auschwitz. O Cristo do
Evangelho com certeza estava presente no Goulag[98].
Conclusão do capítulo: Em grande parte, a dificuldade de compreendermos o poder da
imagem decorre da perda da percepção de energia divina. Nos dias atuais a questão é retomada,
afastada da luz cristã original e absorvida pela absorção e mistura esotérica de novas gnoses,
correntes new age e espiritualistas de vertente oriental. A perda para o pensamento ocidental das
noções de energia e de sinergia não é pequena e sem consequências. Se temos imagens, sagradas
ou artísticas, que abrem portas para o infinito e podem manifestar as energias divinas, podemos
considerar também, que na cultura imagética contemporânea, temos imagens que abrem portas
para o mal. É inegável o poder de disseminação, de réplica de comportamentos sociais violentos,
desagregadores, orientados pelo medo, pelo ódio e pela indiferença, provocados pela invasão de
imagens propiciada pela tecnologia midiática. Buscando penetrar neste horizonte é que
abordaremos as obras de Pavel Florenski e de Sergius Bulgakov.
CAPÍTULO IV - PAVEL FLORENSKI: IMAGEM COMO JANELA PARA O
INFINITO
No século XXI, ao mesmo tempo em que ocorreu o avanço no acesso às informações,
houve um aumento acelerado da violência, do crime, do terrorismo e da desagregação social, em
larga medida intermediados pelas imagens e através delas replicados, copiados ad infinitum nas
teias da sociedade ao ponto de não se conseguir distinguir entre o factual e a imagem que do
mundo se cria. Chega-se em um estágio onde o real é precedido pela imagem, algo pressentido
por Baudrillard no que chamou de “precessão do simulacro”.
A sociedade deste século, mais do que as precedentes, se encontra diante da verdadeira
batalha que se trava entre as imagens de agregação e de harmonia contra imagens desagregadoras
e violentas. No final do século XIX e início do século XX, como médiuns iniciais destas
imagens, superando as formas tradicionais de suporte das mesmas (pintura, escultura, etc.)
tivemos a fotografia e o cinema. Posteriormente a televisão, todos exigindo do espectador uma
relação com o tempo específica, o que foi abordado por Walter Benjamin e a noção de “choque”.
Há algum tempo, porém, o espaço desta batalha se deslocou desses meios, embora eles ainda se
façam vigorosamente presentes. As imagens hoje se incorporam como próteses ao corpo humano
mergulhado nos celulares, com a internet indo parar nos relógios, nas geladeiras, nos objetos
diversos que circundam o cotidiano das pessoas. A batalha também é pela memória que
rapidamente se esvai diante da avassaladora enchente imagética no cotidiano do homem. Busca-
se compreender, e não se consegue, o porquê da violência crescente nos comportamentos sociais
que se espalham através das redes sociais. Como previsto por Dostoievski, no sonho de
Raskólnikov em Crime e Castigo, estamos em plena experiência da Torre de Babel. E essa
experiência do caos e da desagregação sociais pode ser melhor compreendida (mas nunca
desvendada totalmente) se dela nos aproximarmos através das noções de janela e de energia que
sustentam para nós a premissa de que:
há um mundo invisível por trás das imagens. Estas abrem portais para
comportamentos que não são meras réplicas psicológicas, meras
imitações ou reações emocionais, mas que são provenientes do
envolvimento sinérgico do espectador com as energias liberadas por
tais imagens, sejam elas agregadoras e de harmonia, sejam elas
destruidoras, caóticas e violentas.
“Como através de uma janela vejo a Mãe de Deus, a mãe de Deus em pessoa, é a ela
mesma que rezo face a face, e não à sua figuração”[116]. Ao dizer isso Florenski reafirma que o
ícone é a janela através da qual se atinge o mundo celestial. Embora não seja uma visão
espiritual, pois esta tem por si própria uma realidade, com ela coincide. Quando o ícone fica à
parte dessa visão espiritual se esgota na matéria de que é feito. Não tem sentido, assim como
uma janela que se abre para uma parede também não o tem. O ícone é a janela que se abre para
a luz, embora não seja ele mesmo a luz. Como uma janela só é janela por sua ligação ontológica
com a luz para a qual se abre, assim também é o ícone. Se a janela não se abre para a luz ela é
simples madeira e vidro, se o ícone é “separado da visão espiritual não é de modo algum um
ícone, mas um pedaço de madeira pintado”.[117] A noção de símbolo em Florenski adota aqui
um sentido ontológico, pois para ele o símbolo não é a representação de algo ausente, mas é
portador de um sentido do qual é inseparável, do contrário não seria um símbolo, mas uma
simples matéria morta. Assim como “uma janela é luz ou então mera madeira e vidro, mas nunca
simplesmente uma janela”, o ícone é inseparável da supra realidade que revela.
Visão do invisível, para o Pseudo Dionísio, signo de Deus no mundo, a matéria do ícone se
abre com o aprofundamento da visão espiritual do homem. O ícone materializa as imagens
celestiais e daí Florenski o abordar sob o prisma de uma materialização do testemunho em dois
níveis: em primeiro lugar, o ícone, de per si, é a materialização das Testemunhas que estão diante
do trono de Deus, ou seja, a madeira pintada é testemunha de ideias suprassensíveis que
permitem ao homem vislumbrar a realidade celestial. Em segundo lugar, “o pintor de ícones
torna-se a testemunha dessas Testemunhas, dando-nos as imagens de sua visão”. Toda essa
dinâmica do testemunho ocorre através de padrões formais envolvendo linhas e cores, portanto,
de uma incrustação na matéria (a madeira) de pigmentos e vernizes naturais simbolizando a
Terra como signo de Deus e fazendo emanar a luz do semblante sagrado do santo, ou, como
afirma Florenski, “a mais persuasiva prova filosófica da existência de Deus é aquela que os
livros nunca mencionam, cuja conclusão talvez possa expressar melhor o significado completo:
existe o ícone da Santíssima Trindade de Santo Andrei Rublev; logo, Deus existe”[118].
O ícone é uma janela aberta para o céu e, ao mesmo tempo, uma testemunha do céu.
Aqui temos a precedência do Criador sobre as obras da criatura que passam a ser testemunhas da
realidade divina. Florenski traslada o sentido do ato de testemunhar da pessoa para a matéria
inerte. Se o mártir é pessoa encarnada que testemunha o Senhor, o ícone é matéria pintada que
também testemunha o Senhor. Quando dotado desse sentido, o ícone é janela para o invisível
celestial. Desprovido desse sentido o ícone é simples matéria, um pedaço de madeira com linhas
e cores.
Assim, podemos dizer que a imagem icônica é inseparável do protótipo, deste ela é um
signo e não meramente uma obra de arte, mas sim a evocação da realidade essencial, uma “onda
evocada pela realidade essencial”, assim como “toda a nossa vida se comunica com a essência da
realidade em uma série de ondas contínuas: porque nós podemos nos comunicar com uma
essência apenas através de suas energias e nunca diretamente com a própria essência. E porque
um ícone faz a luz de uma pessoa iluminada aparecer para nós, ele é uma energia”. Na
visão cósmica da realidade, a terrena e a espiritual, o protótipo e a imagem, “a ontologia e o
ícone são totalmente contíguos”[119].
A dessacralização das imagens
O mundo invisível não está só limitado por nossa visão física, mas pela visão
espiritual que diz respeito à fé em outra vida, em outra dimensão. A comprovação disso, para o
cristão, é a Ressurreição do Cristo que vence a morte, a corrupção e finitude da matéria.
Florenski nunca descurou disso e o ícone será para ele a porta para a realidade transcendente. É
sobre esta percepção do visível/invisível que elabora uma tipologia das formas sob as quais a
relação com a imagem se apresenta: o rosto, a máscara e o semblante.
O rosto (litsó) é o que vemos na realidade terrena, é “quase um sinônimo da palavra
fenômeno”. É o que se manifesta diante da consciência do homem e diz respeito não só ao rosto
humano, mas também a outros seres e realidades como a natureza, por exemplo (o “rosto da
natureza”)[133].
O semblante (lik) é feito à semelhança de Deus, vem da plenitude divina, tem substância
metafísica e vincula-se ao bem.
cadáver astral, “vazio”, inanis, um cliché sem substância deixado pelos mortos, ou
seja, uma força escura, impessoal, vampiresca, que busca sangue fresco e um
rosto vivo para manter-se e ganhar vida, rosto ao qual esta máscara astral poderia
aderir, absorvendo e suplantando esse rosto pelo seu próprio ser[138].
Destaque-se que o vazio que caracteriza o pseudorreal, como lembra Florenski, sempre
esteve presente na sabedoria popular como vinculado ao mal e à impureza. O maligno, o impuro,
carece de espinha dorsal, carece de substancialidade, pois só o bem é real. A substância do
homem é a imagem de Deus, mas este quando deixa entrar o pecado, eclipsa a luz divina e seu
rosto passa a ser então, uma mescla de luz e trevas. Quando o pecado se apodera da
personalidade humana, esta deixa de ser a janela através da qual brilha a luz de Deus e passa a
ser marcada pela escuridão. A manifestação fenomênica da pessoa se separa de sua substância
divina, passa a ser uma casca, vazia de sentido: “o ‘fenômeno’ no sentido que é comum a todos
os povos, no sentido platônico, eclesial, da aparência ou revelação da realidade, se transformou
no ‘fenômeno’ kantiano, positivista, ilusionista[139]. (...) a concepção kantiana aponta para o mal e
para o pecado”. Na razão que calcula, na razão kantiana, reside o mal que, para Florenski, tudo
fragmenta privando o homem da possibilidade de perceber o cognoscível. O homem perde o
contato com o Absoluto e a profecia dostoievskiana, presente na frase “se Deus morreu tudo é
permitido”, se realiza. Estamos diante do império da máscara, uma visão do mundo assentada
na mentira e no vazio, que dominará a cultura, não somente a ocidental, mas em tempos de
globalização financeira e tecnológica, dominará o mundo e fará do homem um ser incapaz de
perceber a luz divina.
A abordagem de Florenski é diametralmente oposta à dos estudiosos e analistas antes
citados (Baudrillard, Penella, Debord, Mondzain, etc.) pois aqueles se restringem a analisar o
drama humano em sua relação com a imagem a partir de referenciais que, ao final, têm em sua
origem Kant e na proclamação da morte de Deus. Pelo contrário, Pavel Florenski tem como
ponto de partida e orientação fundamental a convivência de dois mundos criados por Deus, o
visível e o invisível, daí que suas ideias têm para nós do século XXI um poder de explicação que
efetivamente foi perdido pelas modernas ciências humanas, que se construíram, aliás, sobre a
fragmentação trazida pelo kantismo.
No seio dessa discussão, cabe destacar a análise de Florenski traz à luz sobre a ligação
entre imagem e mal, com este tomando conta dos indivíduos até o ponto de uma total e
irreversível escravidão de suas almas. O que Hannah Arendt chamava de “banalidade do mal”
tem como correlato na hermenêutica espiritual do Padre Florenski a máscara, que em tempos de
revelação, como os atuais, prospera cada vez mais.
À medida que o pecado toma posse da pessoa, o rosto não é mais uma janela da
qual a luz de Deus brilha e, cada vez mais, mostra as manchas de sujeira em seus
próprios cristais. O rosto é desvinculado da pessoa, de seu princípio criador,
perde a vida e se torna rígido, como uma máscara dominada pela paixão.
Dostoiévski mostrou muito bem a expressão de máscara de Stavrogin, uma
máscara pétrea em vez de um rosto; este é um dos passos desta decomposição da
pessoa. E a seguir, uma vez que o rosto se tornou uma máscara, de acordo com a
concepção kantiana nós não podemos descobrir nada sobre o númeno e, de
acordo com os positivistas, não temos base para afirmar sua existência. Uma vez
que, de acordo com o Apóstolo, “têm marcado a fogo a sua própria
consciência”[140] e que nada, nem um só raio único da imagem de Deus, chega a
se manifestar na superfície da pessoa, não sabemos se acaso já terá se produzido
o julgamento de Deus e se já terá sido retirada a sua imagem por parte Daquele
que concedeu à pessoa o sinal da semelhança divina. É possível que não, que o
talento ainda esteja preservado sob o véu de poeira escura, ou é possível que sim,
que a pessoa se tenha tornado semelhante por muito tempo àquilo que carece de
espinha dorsal[141].
Em meio a vida terrena essas almas já podem estar mortas. Nelas o arrependimento
verdadeiro não surge nunca e quando se mostra é por um artificio da mentira, origem de todo o
mal e por esse motivo o demônio é considerado o “pai da mentira” (Jo 8, 44). Na grande
literatura a configuração perfeita do que se tornou semelhante “àquilo que não tem espinha
dorsal” encontramos no esteticamente belo Stavrogin, o mais perverso personagem
dostoievskiano que será a expressão da máscara: desprovida de sentido, carregando em si o mal
que nada mais é do que o vazio pois possui materialidade física, mas não tem substância
metafísica. A máscara de Stavrogin é uma ilusão, uma fraude, enganosa, sedutora e idolátrica.
Seu alcance sedutor e destruidor não atinge apenas seu círculo íntimo, mas chega à esfera
pública. Não à toa Dostoievski deu à sua obra o título de Os Demônios (em algumas traduções
Os Possuídos ou Os Possessos). O ponto de partida será a mentira que se propagará e que fará
dessa obra mais do que, como limitadamente, alguns supõe, uma profecia da Revolução
Bolchevique. Muito mais do que isso, Os Demônios é uma profecia sobre o nosso século, sobre a
assunção do eidolon e o seu predomínio sobre o eikon, do ídolo sobre o ícone, da falsa sobre a
verdadeira imagem. Afinal, o ídolo concentra em si todas as paixões humanas, “os ídolos são
ícones de paixões e pecados e são indignos de veneração”[142]. Esse é o sentido da proibição do
Antigo Testamento em fazer imagens, que se refere ao ídolo, à expressão da “falsidade da
imagem humana que apareceu como uma consequência da perda pelo homem da pureza de sua
humanidade”[143].
Para Florenski, o ícone, ao não se submeter à perspectiva linear, possibilita, através de sua
forma, a abertura da visão e da sensibilidade humanas para as realidades fundamentais que o
homem contemporâneo já não consegue ver em sua cegueira espiritual. O ícone atinge seu
objetivo
quando conduz nossa consciência ao reino espiritual onde vemos “visões
misteriosas e sobrenaturais”. Se esse objetivo não for atingido - se nem o olhar
demorado e empático, nem o olhar rápido e intuitivo evocam no observador a
realidade do outro mundo (como o cheiro pungente de algas no ar evoca em
nós o oceano ainda distante), então nada pode ser dito sobre esse ícone, exceto
que ele não conseguiu ingressar entre as obras da cultura espiritual e que seu
valor é, portanto, meramente material ou, na melhor das hipóteses,
arqueológico[147].
Na visão espiritual que o crente tem do ícone durante a prece ele não é somente uma janela
através da qual se atinge o rosto dos santos, mas para Florenski, é uma porta através da qual os
santos entram no mundo empírico. O que vem através do ícone não é uma invenção da
subjetividade do observador, mas sim uma realidade objetiva e autônoma seja para a visão
espiritual, seja para a visão corporal daquele que ora. Importante é destacar o fato de que a arte
icônica, na percepção de Florenski, é, antes de tudo, uma relação entre o ícone, o crente e o
pintor. De um lado, o pintor é inspirado pelo céu e sua obra não é sua; de outro lado, o ícone
através de sua materialidade toca o crente e abrindo-lhe as janelas para o invisível:
Alguns veem em Florenski uma regressão ao Concílio de Nicéia no que diz respeito à
identidade mágica entre imagem e protótipo, se afastando do uso catequético que a imagem adota
no ocidente e caindo em uma espécie de magicização, fetichização e, mesmo, prática pagã com o
ícone, diante do qual se rezava na Rússia antiga e se reza até hoje, beijando-o e pedindo-lhe cura
e proteção. Para essa perspectiva de análise, do pensamento de Florenski sobre o ícone emerge
um ídolo estético-artístico, uma entidade que parece anular os limites entre a arte e a vida que ela
deveria representar[149]. Na verdade, tais práticas, vistas como estranhas para a mentalidade não-
crente, também se fazem presentes na relação do fiel no Ocidente com as imagens de santos e
são aspectos da relação com a imagem que o intelectualismo dos críticos não consegue perceber.
Mas, no caso específico de Florenski se faz evidente a ligação estreita entre as questões
ético-espirituais e as de ordem técnica como fio condutor do seu pensamento, ou seja, a mudança
na técnica pictórica em sua relação com a crise de sentido da arte e da vida, algo que,
posteriormente, Paul Evdokimov também endossaria em sua crítica acerca do impacto da
perspectiva sobre a arte ocidental que, a partir do século XIII com Giotto, Duccio, Cimabue e
com o “intelectualismo dominicano” de Fra Angélico, embora se torne “ mais refinada, mais
refletida em seu elemento imanente, torna-se menos propensa à recepção direta do
transcendente”[150]. Evdokimov que, como Florenski e Bulgakov, foi um forte crítico dessa
mudança formal, chegaria a denunciar a “falsa magia” da arte abstrata, grau máximo a que
chegou a ruptura entre a arte, o artista e o Criador.
Os fantasmas sempre podem nos oferecer uma certa alegria estética. Eles vagam
pelos vestígios do mundo fragmentado, mas o interesse por eles é bastante débil.
Kandinsky ou Paul Klee podem alcançar uma grande musicalidade simplesmente
porque eles são geniais, mas o homem que olha essas obras nunca é acolhido
neste mundo carente de toda presença e de face. O olho pode ouvir até as
vozes do silêncio; no entanto, a ausência colorida não faz nada além de distrair e,
no final, cansar. É possível entrar em comunhão, esboçar um gesto de ternura
para com uma das mulheres pintadas por Picasso e a quem o padre Sergio
Bulgakov chamou de "cadáveres de beleza", pode-se sentir o desejo de rezar
diante do quadrado de Malévitch?[151]
A vinculação entre técnica e crise espiritual também será abordada por um artista
contemporâneo profundamente espiritualizado como Tarkovski, que vê a crise da arte como
sendo primordialmente espiritual e, neste sentido, a origem do problema não residiria
propriamente no avanço da técnica, pois o cinema é produto disso. Antes, para Tarkovski, em
sua leitura de Florenski, o avanço tecnológico irá responder à necessidade vital e espiritual da
humanidade em determinada fase da sua história:
Tendo como centro a ideia de energia divina Bulgakov estabelece o nexo entre o ícone (a
imagem) e o nome de Deus. O nome, como o ícone, “é uma encarnação das Divinas energias,
uma teofania, uma revelação Divina que imprime sua imagem em nós”[156]. A questão sobre o
Nome de Deus se inscreveu na controvérsia chamada de Imiaslavie (significando “louvar o
nome”), ocorrida no seio da Igreja Ortodoxa Russa e até hoje não resolvida, e se refere a um
movimento denominado de onomatodoxia, corrente dogmática que afirma que o Nome de Deus é
o próprio Deus. Bulgakov e Florenski apoiaram decisivamente esse movimento no início do
século XX. Para Bulgakov
Sob este viés, a sacralização do ícone ocorre quando é nomeado, deixando de ser uma
simples arte religiosa para transformar-se em um objeto sagrado. Aí reside a distinção entre arte
religiosa e arte sacra. A partir de então imagem e nome passam a ser repletas de sentido
religioso. Não são meras representações da divindade, mas são a divindade mesma.
Como ressalta Jakim,” o Nome é uma encarnação das energias Divinas, uma teofania,
uma revelação Divina que imprime sua imagem em nós”. Para Bulgakov “mais precisamente, no
Nome de Deus está presente o Poder de Deus, o qual é inseparável da Essência de Deus e neste
sentido é o próprio Deus”. Com o seu livro clássico The Name of God, Bulgakov, se introduziu
na controvérsia que abalou a Igreja Ortodoxa no início do século XX, acusando os
"onomatoclastas" de quererem destruir o Nome de Deus do mesmo jeito que os antigos
iconoclastas queriam quebrar os ícones em pedaços”. Sua força de argumentação vem do
testemunho de Santo Hilário cuja experiência com a Oração de Jesus o levou a acreditar que "o
Nome de Deus é o próprio Deus e pode fazer milagres"[159].
Assim é que em Bulgakov a imagem visual do ícone como porta para o infinito se
completa com a imagem verbal. Em Bulgakov a questão do Nome de Deus está ligada à da
imagem e, em sua teologia, em diálogo com Florenski, ele também irá enfatizar a condição do
ícone como cópia de uma protorrealidade, hipóstase de uma realidade oculta e, como os pais da
Igreja proclamam (…) “A honra conferida ao ícone se refere à sua protoimagem, e aquele que
venera o ícone venera a hipóstase retratada nele”[160].
Muito longo foi o percurso da relação do homem com a imagem sagrada. A questão tem
sua origem no mundo pagão com as esculturas de deuses e com os ícones de falsos deuses, daí
que “a arte foi a ponte conectando a iconografia pagã com a iconografia cristã”[161]. As primeiras
imagens cristãs vamos encontrar nas Catacumbas Romanas apresentando símbolos como o peixe,
o cordeiro, a pomba, etc., assim como as imagens de Cristo e da Virgem Maria. Paulatinamente
se tornaram difundidas as pinturas de ícones, principalmente no quarto século, tornando-se
habitual e se constituindo em tradição bem antes que qualquer reflexão dogmática a respeito
fosse feita pela Igreja. Bulgakov faz uma análise das imagens pagãs e estabelece uma relação
entre o mal e a forma estética, que ele classifica como demonismo.
O certo é que a questão do ícone irá ultrapassar a teologia e alcançar a antropologia pois
diz respeito à concepção que do homem e de Cristo tem a sociedade. Ao final, essa
controvérsia de séculos se estrutura sobre uma oposição fundamental: de um lado “a ausência de
imagem e, portanto, a não representatividade da Divindade” e de outro, “Sua ‘imagem criada de
acordo conosco’ através da Sua humanização e, daí a sua retratabilidade”[163]. Tal questão foi
resolvida pelos defensores do ícone através de uma conciliação: na medida em que Deus é
inacessível e transcendente não pode ser retratado, mas na medida em que se revela nas coisas do
mundo, na Sua criação, pode ser retratado, em especial pelo fato de ter se revelado na face do
Cristo encarnado.
Na verdade, o iconoclasmo é no fundo uma negação do Cristo, e como para os antigos,
uma heresia. Diante dos ataques dos iconoclastas, os apologistas ortodoxos da veneração dos
ícones (os patriarcas Nicéforo e São Teodoro Estudita) enfatizarão que o iconoclasmo é uma
heresia cristológica, que nega a Encarnação de Cristo, pois se Ele foi verdadeiramente homem
então, consequentemente, poderia ser retratado em imagens e segundo São Teodoro Estudita, “se
Cristo é composto por duas naturezas, ele é, claro, tanto retratável quanto irretratável”. Sua
retratabilidade como homem é conectada por Teodoro com Sua genuína corporeidade natural,
“assim, é possível ter uma imagem artificial de Cristo, com a qual Ele tem uma semelhança”, daí
a retratabilidade de Sua natureza humana[164].
A teologia apofática não pode ser tomada, segundo Bulgakov, como premissa na
concepção do ícone. Fazer isso seria eliminar “a própria possibilidade do ícone”[167]. Para
reforçar essa negação do apofaticismo, Bulgakov recorre a São Paulo quando este diz que “desde
a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se
tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar.” Romanos
(1,20).
O ícone é, portanto, o lugar de encontro entre o mistério e a revelação, entre o material e o
espiritual, entre a transcendência e a imanência. Melhor dizendo, na visão de Bulgakov, é uma
antinomia que contém a fórmula de revelação de Deus no mundo, pois nela temos a visibilidade
do invisível, neste caso, através da obra de arte. Será sempre, então, o ícone um objeto de
revelação e não de conhecimento. Sua profundidade é incognoscível, logo só pode ser desvelada.
Esse caráter antinômico de dimensões que se tocam e em que o imanente e o transcendente se
interpenetram sem perder suas especificidades é para Bulgakov a fórmula da sofianicidade do
mundo: “a única Sophia existe na eternidade imobilizada e no tornar-se temporal”[168].
Mas, o que é o ícone? “O ícone é, em primeiro lugar, um objeto de arte”. Isso é inelutável,
tanto que para Bulgakov a condenação do ícone como feita pelo Concílio de 754 teve um aspecto
ainda mais “pernicioso” do que a própria iconoclastia; foi a condenação da arte mesma, pois
“Deus se revela na arte”[169]. Posteriormente, já no Sétimo Concílio Ecumênico, em 787, como
não poderia deixar de ser, a defesa do ícone ficou atrelada à defesa da arte.
A questão do Sagrado Mistério do Nome de Deus
Basílio de Cesaréia em sua polêmica contra o bispo ariano Eunômio (que negava a Jesus a
essência divina do Pai pelo fato de ter sido nascido de mulher), abordará a relação do Nome de
Deus com as energias divinas, que não são a essência, mas sim realidades em torno da essência.
Seu irmão, Gregório de Nissa, no âmbito da mesma polêmica contra Eunômio, abordará a
questão dos Nomes de Deus também como portadores de energias divinas. Basílio indicará que
os nomes que a Si mesmo Jesus se chamou, assim como os conceitos que atribuímos a Deus não
são vazios de sentido, pelo contrário, são portadores de energias divinas:
Para Dionísio o Areopagita os nomes divinos são formas humanas de celebrar Deus, mas,
isso não esgota o fato de que eles correspondem a uma realidade objetiva independente da
realidade subjetiva do intelecto que os contempla[171]. Com São João Damasceno, contudo,
chegamos a um ponto importante para nossa reflexão: a percepção das energias divinas
presentes tanto nos Nomes de Deus, quanto nos ícones e nos objetos santos.
O debate sobre o nome de Deus contém a questão não apenas sobre a sacralidade do
simbólico, mas sobre o seu mistério. O iconoclasmo adota muitas roupagens e a destruição da
imagem e do símbolo cristão se faz seja pela proibição do mesmo, seja por sua banalização. O
objetivo nos dois processos é destruir a ligação do homem com Deus, destruir a sua fé.
Se a imagem de Deus e o Seu nome são energias, ao destruí-las destruímos um dos
caminhos possíveis da relação do homem com o divino ocorrer.
Subjacente às questões do Nome de Deus e do ícone, o que temos é a luta contra a
secularização impiedosa e contra o desaparecimento dos sacramentos. Florenski afirmava que se
os opositores à deificação do Nome de Deus, os onomatoclastas, estivessem corretos, quanto à
asserção de que “Deus é uma palavra e nada mais”, a conclusão lógica é que “isso significaria o
fim de qualquer possibilidade de sacramento, oração, e mesmo do culto em si, e sob a cobertura
da piedade se levaria ao mais irrestrito positivismo”[179]. A disputa permanece atual também no
seio da Igreja do Ocidente, que luta contra um processo que a partir de dentro busca a eliminação
dos sacramentos e do principal deles, a comunhão eucarística[180].
Hoje, temos um mundo devastado espiritualmente, devastação que partiu potencialmente
de uma Europa que, negando suas raízes cristãs, em nome das teias totalitárias e cegas do
“politicamente correto”, proíbe a exibição pública de qualquer imagem ou gesto religioso cristão.
Porém, diferentemente do tempo de Soljenitsin, hoje o totalitarismo se mostra sutil: ele é
capitalista e “democrático”. Por isso mesmo, à prova de fugas. Nele, o ataque ao Nome de Deus
e aos símbolos cristãos se manifesta de modo difuso, nem sempre direto. Nos países da
Comunidade Europeia ocorre através da proibição de imagens sacras, de crucifixos, de gestos
públicos de fé, etc. A velha Europa, que Dostoievski considerava, já em sua época, como um
cemitério das ruinas da religião cristã, tende a se tornar um deserto. Estamos diante de mais uma
etapa, talvez a última, não se sabe, da longa agonia do cristianismo, para usar a expressão de
Miguel de Unamuno[181], agonia que é universal e que é individual; luta interminável, combate
sem fim...
CAPÍTULO VI - PARA ALÉM DO ÍCONE
Me disseram porém
que eu viesse aqui
pra pedir em romaria e prece paz nos desaventos
como eu não sei rezar
só queria mostrar
meu olhar, meu olhar, meu olhar.
Porém, como não pode viver sem algo que o religue, o homem ao matar Deus o substitui
imediatamente por ídolos que serão os seus políticos, os seus artistas, as suas ideias, etc. O que é
a secularização senão um vasto processo de idolatria do mundo?
Assim, escuros e vazios de sentido, estabelecem os homens o império da máscara. É por
isso que categorias como espetáculo, na acepção de Debord, ou simulacro, na de Baudrillard,
não conseguem dar conta do grande processo de autodestruição em que mergulhou a sociedade.
O melhor dos mundos não veio através da resolução econômica dos problemas como pensa, e
ainda espera, o marxismo. Tampouco, veio com a liberdade no sentido liberal, ou neoliberal, da
palavra. As alianças que esses blocos ideológicos fazem ocasionalmente com correntes dentro
das Igrejas cristãs, estão fadadas ao fracasso, pois padecem de uma contradição interna que é a
total disjunção entre o cristianismo e as visões assentadas na luta de classes materialista por um
lado e na liberdade egocentrada de outro.
A imagem como janela
Mas, o que buscamos com as noções de janela e de energia? Buscamos uma chave para
nos aproximarmos da compreensão acerca do poder da imagem. Esses são conceitos que não se
esgotam no âmbito da teologia. Com eles podemos pensar na imagem, para além do ícone, como
janela para o divino e, do mesmo modo, podemos pensá-la como janela para o mal.
No primeiro caso, dentro da tradição cristã ocidental encontramos essa propriedade
também em imagens ou em obras de arte que não as de cunho eminentemente sacro, como o
ícone. Foi o que vimos mais acima. Neste âmbito, no caso específico da obra de arte (que não
será abordada com maior profundidade neste volume) tomemos o profundo testemunho espiritual
de Paul Tillich acerca de seu encontro com a Madonna de Botticelli.
Estranhamente, eu primeiro encontrei a existência da beleza nas trincheiras da
Primeira Guerra Mundial. Para tirar minha mente da lama, do sangue e da morte
da frente ocidental, eu folheava revistas de fotos nas livrarias do campo. Em
algumas delas, eu encontrei reproduções das grandes e comoventes pinturas das
eras. Em acampamentos de repouso e nas calmarias nas amargas batalhas, eu me
aconcheguei em abrigos estudando esse “novo mundo” com a luz de velas e
lanternas. Mas no final da guerra eu nunca tinha visto as pinturas originais em
toda a sua glória. Indo para Berlim, corri para o Museu Kaiser Friedrich. Ali na
parede havia uma tela que me confortara em batalha: Madonna com Anjos
Cantando, pintada por Sandro Botticelli no século XV. Olhando para o alto, eu
senti se aproximar um estado êxtase. Na beleza da pintura havia a Beleza em si
mesma. Ela brilhou através das cores da pintura como a luz do dia brilha através
das janelas com vitrais de uma igreja medieval. Enquanto eu estava lá, banhado
pela beleza que seu pintor havia imaginado há muito tempo, algo da divina fonte
de todas as coisas veio através de mim. Eu me afastei abalado. Aquele momento
afetou toda a minha vida, deu-me as chaves para a interpretação da existência
humana, trouxe a alegria vital e a verdade espiritual. Eu o comparo ao que
geralmente é chamado de revelação na linguagem da religião[192].
Não se trata apenas de um efeito emocional sobre alguém, mas como diz o próprio Tillich,
trata-se de uma revelação que se dá através da obra de arte, uma iluminação que vem ao nosso
encontro, como vinha o sol pelas janelas medievais cujos vitrais tinham por princípio filtrar a sua
luz através das cores. Estamos diante não da essência divina, mas sim da Sua energia trazida pela
imagem. Aqui, obviamente, a questão se desprende da forma no sentido da visão perspectiva
(inversa ou linear), como foi discutido por Florenski, e se orienta para a imagem mesma e sua
possibilidade de revelação divina. Correlata ao testemunho de Tillich será a afirmação de Paul
Evdokimov acerca os efeitos espirituais da arte:
O belo vem a nosso encontro, se faz íntimo, próximo, relacionado com a
substância de nosso ser. Não se trata de nenhuma maneira de uma ilusão ou de
uma transferência de nossas emoções subjetivas; não acrescentamos nada à
realidade objetiva de uma revelação, simplesmente somos agarrados por ela,
inclusive sem poder encontrar sempre “palavras poéticas” adequadas à nossa
agitada experiência, pois esta não brota da razão, mas sim do coração em um
sentido pascaliano[193].
A imagem como energia
Bulgakov nos deixará também uma análise importante acerca da questão da energia na
imagem, desta vez associada ao milagre e às sagradas relíquias. A teologia das relíquias de
Bulgakov nos ajuda a compreender o seu poder, a presença da energia divina nelas contida e, ao
mesmo tempo, das energias do mal presentes em sua profanação. Retomar essa questão se faz
importante em um tempo onde o que se denomina arte carrega, em muitos casos, a destruição do
sagrado e da fé em nome da liberdade da máscara. Quando Bulgakov escreve seu ensaio “Sobre
as Relíquias Sagradas”, ele se reporta ao “assalto satânico” promovido pelos bolcheviques contra
os templos e relíquias sagradas, ou seja, contra a imagem. Profanações segundo ele marcadas
pela visão do Anticristo, pelo materialismo e executadas “sob o manto da democracia e do
socialismo”[194]. O objetivo final daqueles “gângsteres satânicos” seria destruir a fé, não só de
alguns, mas de toda a Igreja.
Bem, a história se repete, sendo que hoje, também sob o manto da “democracia”, não a
socialista, como no tempo de Bulgakov, mas a de mercado; ambas materialistas. Atualmente, são
inúmeras e crescentes as profanações de locais sagrados cristãos no mundo todo, destaque-se as
ocorridas na Europa, feitas sob proteção legal, como é caso das capelas universitárias.
Diante dessa realidade, ao olharmos para trás o que vemos é o beco sem saída deixado pela
iconoclastiaa. A destruição da visão sacramental é a consequência desse movimento. Sua
expressão política, que dominou através dos bolcheviques o Leste europeu durante sete décadas,
hoje domina o Ocidente sob o manto da democracia expressa, em muito casos, através de algo
mais suave e à prova de fugas: a liberdade, seja ela estética - para a arte e para o artista – seja ela
política.
Tal cultura corresponde a longo processo histórico em que sacralidade de objetos,
sacramentos e milagres tende a ser perdida e destruída a fé nesses elementos, muitas vezes por
membros do clero que, de dentro da Igreja “ferem o Pastor” e “dispersam as ovelhas”. Assim é
que, diante de um quadro político-cultural deliberadamente anticristão, Bulgakov observa que a
preservação e a veneração de relíquias sagradas estão presentes no cristianismo desde suas
origens. Ao se acreditar que a veneração das relíquias sagradas seja uma superstição
desnecessária, pensamento que envolve, repetimos, alguns dos próprios clérigos cristãos, há uma
inclinação para se tomar o caminho do desaparecimento delas. E aí não se atenta para o fato,
destaca Bulgakov, que o edifício espiritual da Igreja é uno: o ato de desfazer-se de algo,
invariavelmente abalará o edifício todo:
Naturalmente, é difícil pré-decidir que tipo de despojamento é desejado: talvez
haja disposição para despojar todos os sacramentos da Igreja e não deixar nada a
não ser um serviço protestante da palavra. Mas aqueles que de fato não desejam ir
tão longe, mas desejam apenas eliminar a veneração das relíquias sagradas,
devem levar em conta claramente o fato de que todas as coisas estão conectadas
organicamente nos ensinamentos da Igreja, e que é impossível remover uma parte
única disso. E, em particular, a veneração às relíquias sagradas está intimamente
ligada ao dogma fundamental do cristianismo - a encarnação divina em prol da
nossa salvação. A deificação do homem, a divindade humana cristã (se é
permissível usar esta frase), é a base da veneração dos santos, bem como de seus
restos corporais, as relíquias sagradas[195].
A questão das relíquias está ligada à do sacramento como presença real do transcendente:
no sacramento o transcendente entra no imanente; o céu e a terra estão unidos de
tal maneira que deixam de existir em sua separação e oposição. Isto é realizado
total e unicamente pelo poder divino, pela graça de Deus [...].o que opera aqui
não um poder físico, isto é, cósmico, de qualquer ordem, mas um poder divino
supracósmico, que age tanto dentro quanto acima do cosmo, transubstanciando-o,
enquanto deixa seus poderes inviolados. O poder e a energia espirituais são
inseridos dentro de um corpo físico”[196].
A Igreja recebe o poder da santificação, que é o poder divino, o poder do Nome de
Deus. Toda atividade litúrgica, assim como toda ação sacramental, é o poder do
Nome de Deus dado aos sacerdotes que O servem. O Nome é a escada entre a
terra e o céu; pelo Nome são realizadas a santificação e a ação sacramental, que
são apenas uma forma estendida da invocação do Nome. Aqui, não nos propomos
a examinar essa questão em detalhes; nos limitaremos à afirmação de que todas
as santificações são ações misteriosas do Nome, inscrições do sagrado
Tetragrama. Mas as ações deste poder são multifacetadas e concretas e,
portanto, os próprios objetos sagrados são diversos. Em particular, todas as
coisas sagradas cultuais, o templo, os ícones e assim por diante, são inscrições do
Nome. O que é significativo para a santidade do ícone não é a própria
imagem icônica (pois isso seria apenas uma imagem ou esquema), mas a
santificação do Nome, ao passo que a imagem é apenas um hieróglifo do
Nome. O ícone é um sacramento do Nome; esta propriedade do ícone
permaneceu não revelada no Sétimo Concílio Ecumênico, onde a veneração de
ícones foi definida[197].
A imagem do ícone vincula-se ao mistério do Nome de Deus e, se desaparecida para o
homem a sacralidade do Nome, desaparece também a sacralidade sacramental. Daí é apenas uma
questão de tempo para a profanação ocorrer e tudo o que é sagrado desaparecer, inclusive a
sacralidade da vida. Nada mais restará senão a violência de uns contra os outros. Foi isso que
Dostoievski mostrou em Os Demônios. A sua profecia é sobre o mundo sem sacramentos, por
escolha do homem, o mundo marcado pelo vazio do mal, pelo império da máscara. Muitos
analistas restringem a dimensão profética de Os Demônios aos eventos da Revolução Russa,
ocorridos após a morte de Dostoievski. Porém, a dimensão profética dessa obra vai muito além e
diz respeito ao mundo contemporâneo e à vida dos homens em meio a perda da fé.
O mesmo Dostoievski foi amigo e influenciou Soloviev (melhor dizendo, reciprocamente
se influenciaram), que apontou a vinda do Anticristo que ocorrerá em um mundo que a tal ponto
perdeu a noção de valores e de santidade que tal personagem aparecerá como o pacificador, o
homem bom e amigo dos homens, enfim, o redentor. Será um falso Messias, embora do
Redentor verdadeiro, apresente todas as características. Estas, agreguemos comporão a máscara
que se amoldará aos desejos da massa, perdida ela também em meio às suas mentiras. Assim, ele
não surgirá como um deus ex machina, mas virá atraído e em comunhão com o mundo que se
afastou do Cristo. Não sabemos se ele chegou e se chegará em breve, mas os sinais para a sua
recepção clamorosa estão colocados diante de nós neste momento histórico.
Apesar de tudo isso, de modo cristão, só nos resta manter a esperança e a fé de que nossa
cegueira seja curada e se transmute em uma percepção dos sinais do Absoluto. E que isso nos
ajude a reverter a nossa rota rumo ao abismo.
Sexta-feira Santa do ano de 2018.
BIBLIOGRAFIA
[120]“Estes são termos bem estabelecidos na teologia. Mas muitos hoje em dia interpretam erroneamente esses termos como algo
subjetivo e "psicológico", torcendo e falsificando radicalmente o pensamento dos Santos Padres; além disso, sob o pretexto de
defender os ícones, eles recriam uma iconoclastia mais violenta do que aquela forma do século VIII da Igreja derrotada há muito
tempo: pois os iconoclastas antigos eram mais pensativos, intrincados e corteses do que nossos contemporâneos "defensores dos
ícones" que falam sem refletir e assim reduzem a verdade antiga quando argumentam contra racionalistas protestantes. Os antigos
iconoclastas nunca negaram a utilidade espiritual genuína da arte religiosa, aquela arte à qual atribuímos agora o ícone; os
iconoclastas contemporâneos, no entanto, em sua insistência sobre o valor psicológico meramente subjetivo dos ícones como seu
único valor, negam assim completamente a conexão ontológica entre o ícone e o protótipo. E nisso negam toda a veneração dos
ícones - rezar para eles, beijá-los, acender-lhes velas, colocar lâmpadas diante deles, incensá-los através do sacerdote. Nesta
negação, que vê no ícone apenas uma "representação artística" que se refere a si mesma e ao espectador, mas nunca ao seu
protótipo, todas as práticas centenárias do cristianismo tornam-se idolatria criminosa”. Cf. Pavel Florenskij, Le porte Regali;
saggio sull’icona, cit., p.67, (trad minha).
[121]
Cf. Felix Schwarz, Symbolique des Cathédrales, miroirs de l’univers, Paris, Éditions du Huitième Jour, 2002. Cf. também
Georges Duby, O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-142, Lisboa, Editorial Estampa, 1979
[122]
Cf. Andrei Tarkovski, Discours sur l’Apocalypse, 1984, disponível em
http://centrebombe.org/Tarkovsky-Discours.sur.lApocalypse.pdf, (trad. Minha).
[123]
Cf. Pavel Florenskij, Le porte Regali; saggio sull’icona, cit., p.67.
[124]
Cf. Fredric Jameson, Ensaios sobre el posmodernismo, Buenos Aires, Ediciones Imago Mundi, 1991.
[125]
Cf. Andrei Tarkovski, Discours sur l’Apocalypse, cit.
[126]
Cf. Chiara Cantelli, L’icona come metafisica concreta,Neoplatonismo e magia nella concezione dell’arte di Pavel
Florenski, Palermo, Aesthetica Preprint, 2011.
[127]
Cf. Pavel Florensky, Beyond Vision; Essays on the Perception of Art, London, Reaktion Books, 2002, p.207 (trad. minha).
[128]
Cf. Pavel Florensky, Beyond Vision; Essays on the Perception of Art, cit., p.208-209 (itálicos do autor, trad. minha).
[129]
Cf. Pavel Florensky, Beyond Vision; Essays on the Perception of Art, cit., p.216 (trad. minha).
[130]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, Michigan, Wm. B. Eerdmans Publishing Co, 2012, Kindle Edition.
[131]
Cf. Andrei Tarkovski, O Sacrifício, São Paulo, É Realizações Editora, 2012.
[132]
Cf. Maurice Merleau-Ponty, O Visível e o Invisível, São Paulo, Perspectiva, 2003. Cf. também Maurice Merleau-Ponty,
Fenomenologia da Percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999.
[133]
Cf. Pável Florenski, El Iconostasio, Una Teoría de la Estética, cit., p. 52, (trad. minha).
[134]
Cf. Pável Florenski, El Iconostasio, Una Teoría de la Estética, cit., p. 53, (trad. minha).
[135]
Cf. Pável Florenski, El Iconostasio, Una Teoría de la Estética, cit., p. 53, (trad. minha).
[136]
Cf. Katia M.L. Mendonça, Duas luzes em meio à escuridão: Etty Hillesum e Sônia Siemiônovna. In John David Barrientos
Rodríguez, Diego I. Rosales Meana y Ángel Viñas Vera (eds.), La filosofía y el Bien, Agradecimientos a Miguel García-Baró,
Madrid, Ápeiron Ediciones, 2018.
[137]
Cf. Pável Florenski, El Iconostasio, Una Teoría de la Estética, cit., p. 54, (trad. minha).
[138]
Cf. Pável Florenski, El Iconostasio, Una Teoría de la Estética, cit., p. 55, (trad. minha).
Los romanos llamaban Lemures o Larvas a las almas de los difuntos que durante su vida habían sido malvados o culpables de
algunas fechorías, así como a los espíritus que perdían su condición de Manes, es decir, de seres benévolos y protectores,
convirtiéndose en perseguidores de los vivos por una ofensa de estos. Para congraciarse con los Lemures, se celebraban ritos
expiatorios especiales durante el mes de mayo. Con tal ocasión, el cabeza de familia se levantaba en plena noche, se lavaba tres
veces las manos, daba vueltas por la casa chasqueando los dedos y dejaba caer tras de sí nueve veces habas negras, a la vez que
decía: Manes exire paterni («salid, espíritus paternos»). Se suponía que así los espíritus se detenían para recoger dichas habas.
Entonces, el cabeza de familia pronunciaba otra fórmula mágica, con la cual se les invitaba a salir de la casa. Los Lemures a
veces aparecían incluso de día. Se creía que eran almas de difuntos insepultos, que iban errantes pidiendo sepultura. Cf. J. C.
Escobedo Enciclopedia de la mitologia, Mexico, De Vecchi Ediciones, 2011.
[139]
Cf. Pável Florenski, El Iconostasio, Una Teoría de la Estética, cit., p. 57, (trad. minha).
[140]
Florenski se refere a 1Timóteo 4,1-2: "O Espírito diz expressamente que, nos tempos vindouros, alguns hão de apostatar da
fé, dando ouvidos a espíritos embusteiros e a doutrinas diabólicas, de hipócritas e impostores que, marcados na própria
consciência com o ferrete da infâmia.
[141]
Cf. Pável Florenski, El Iconostasio, Una Teoría de la Estética, cit., p. 58, (trad. minha).
[142] Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[143]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[144]
Cf. Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método II, Petrópolis, Vozes, 2002.
[145] Cf. Marie de Solemne, Innocente Culpabilité, Paris, Dervy,1998, p.19.
[146]
Cf. Marie de Solemne, Innocente Culpabilité, cit., p.17.
[147]
Cf. Florensky, Pavel. Iconostasis, cit., p. 65, (trad. minha, grifos meus).
[148]
Cf. Florensky, Pavel. Iconostasis, cit., pp. 71-72, (trad. minha).
[149]
Cf. Chiara Cantelli, L’icona come metafisica concreta,Neoplatonismo e magia nella concezione dell’arte di Pavel
Florenski, cit.
Cf. também M. Alpatov, Le icone russe. Problemi di storia e di interpretazione artistica, Torino, Einaudi, 1976.
[150]
Cf. Paul Evdokimov, L'art Moderne ou la Sophia Désaffectée, Revue francaise de l' orthodoxie, Numero special L' Icone, no
32, 1960. Disponível em: <http://www.myriobiblos.gr/texts/french/contacts_evdokimov_moderne.html>.
[151] Cf. Paul Evdokimov, El Arte del icono; Teología de la belleza, Madrid, Publicaciones Claretianas, 1991, p.92, (trad. minha,
grifos meus).
[152]
Cf. Andrei Tarkovski, Esculpir o tempo, São Paulo, Martins Fontes, 1990, p.95.
[153]
Cf. Marie-José Mondzain, Can Images Kill? Critical Inquiry, Vol. 36, No. 1 (Autumn 2009), pp. 20-51
[154]
Cf. Wim Wenders & Mary Zournazi, Inventing Peace, A Dialogue on Perception, London, I.B. Tauris, 2013.
[155]
Cf. Boris Jakim, Introdução a Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit. (trad. minha, grifos meus).
[156]
Cf. Boris Jakim, Introdução a Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha, grifos meus).
[157]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[158]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[159]
Cf. Boris Jakim, Introdução a Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha, grifos meus).
[160]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[161]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[162]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[163]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[164]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[165]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (destaque do autor, trad. minha).
[166]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (em itálico pelo autor, trad. minha).
[167]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[168]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[169]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[170]
Cf. Basílio de Cesareia, Tratado sobre o Espírito Santo, São Paulo, Paulus, 1999, p.52. Cf. também Jean-Claude Larchet, La
Théologie des Énergies Divines, des origines à Saint Jean Damascene, cit., p. 151.
[171]
Cf. Jean-Claude Larchet, La Théologie des Énergies Divines, des origines à Saint Jean Damascene, cit., p. 315.
[172]
"Conhece a fundo os caminhos que conduzem à sabedoria, galardoando com ela Jacó, seu servo, e Israel, seu favorecido.
38.Foi então que ela apareceu sobre a terra, onde permanece entre os homens." Baruc, 3 -Bíblia Católica
Online.https://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/baruc/3/
[173]
Cf. São João Damasceno. Apologia Contra os que Condenam Imagens Sagradas. Ed. Apologistas católicos, s/d, p.15. In:
https://portalconservador.com/livros/Sao-Joao-Damasceno-Apologia-Contra-os-que-Condenam-imagens.pdf. Cf. também Jean-
Claude Larchet, La Théologie des Énergies Divines, des origines à Saint Jean Damascene, cit., p. 442.
[174]
Cf., São João Damasceno, Apologia Contra os que Condenam Imagens Sagradas, cit., p.5.
[175]
Cf. Sergius Bulgakov. Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[176]
Cf. Pseudo Dionisio Areopagita, Los Nombres de Dios, Obras Completas, Teodoro H. Martín (ed.), Madrid, Universidad
Pontificia de Salamanca, 2007.
[177]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[178]
Cf. Alexander Soljenitsin, Agosto de 1914, Rio de Janeiro, Edições Bloch, 1973, p.533, (grifos meus).
[179]
Cf. Sergius Bulgakov, Icons and the Name of God, cit., (trad. minha).
[180]
Cf. Horacio Bojorge, Proceso de protestantización del Catolicismo, Revista Arbil, 101, disponível em
http://www.arbil.org/101bojo.htm
Cf. também Alfredo Sáenz, Desacralización de la Liturgia; la Quimera del Progresismo, Editorial Cruz y Fierro, Buenos Aires,
1981, pp. 229-250.
[181]
Cf. Miguel de Unamuno, La Agonia del Cristianismo, Buenos Aires, Editorial Losada, 1938.
[182]
Cf. Randall Sullivan, Detetive de Milagres, Rio de Janeiro, Editora Objetiva,2005, p.19.
[183]
Cf. José Maria Guimarães Ramos, A aparição de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará, Belém, Ed. Paka-Tatu, 2018.
Cf. Raymundo Heraldo Maués, O homem que achou a santa; Plácido José de Souza e a devoção à Virgem de Nazaré, Belém, Ed.
Basílica Santuário de Nazaré, 2009.
[184]
http://www.paieterno.com.br/site/
[185]
Cf. Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, cit.
[186]
Cf. Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, cit., p.216.
[187]
Exemplos devastadores sobre essa situação encontamos em Jon Ronson, So You've Been Publicly Shamed, Pan Macmillan.
Edição do Kindle. Cf. também edição em português Jon Ronson, Humilhado; como a era da internet mudou o julgamento
público, São Paulo, Best Seller, 2015.
[188]
Cf. Ralph Ellison, O Homem Invisível, São Paulo, Marco Zero, 1990.
[189]
Cf. Hermann Cohen, El prójimo, Barcelona, Anthropos Editorial, 2004. Prefácio e Posfácio de Martin Buber.
[190]
Cf. Katia Mendonça, Crime and Punishment: Prophecy and Mercy in Dostoyevsky, Mundo Eslavo, 16 (2017).
[191]
Nicolás Berdiaev, Uma Nueva Edad Media, Buenos Aires, Ediciones Carlos Lohlé,1979.
[192]
Cf. Paul Tillich, On Art and Architecture, New York, Crossroad, 1987 pp.234-235 in Robert K. Johnston, God’s wider
Presence, reconsidering general revelation, Michigan, Baker Academic, 2014, p.110 (trad. minha).
[193]
Cf. Paul Evdokimov, El arte del icono; teología de la belleza, cit., p. 26 (trad. minha).
[194]
Cf. Sergius Bulgakov, Relics and Miracles, Two Theological Essays, William B. Eerdmans Publishing Company,
Cambridge, UK, 2011, Kindle Editions, (trad. minha).
[195]
Cf. Sergius Bulgakov, Relics and Miracles, Two Theological Essays, cit. (trad. minha).
[196]
Cf. Sergius Bulgakov, Relics and Miracles, Two Theological Essays, cit. (trad. minha).
[197]
Cf. Sergius Bulgakov, Relics and Miracles, Two Theological Essays, cit. (grifos meus, trad. minha).