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Franz Kafka – O romancista do “absurdo”

MAURÍCIO TRAGTENBERG*

Explicação Preliminar obra de Antônio Cândido “Panorama da


O presente “Ensaio” tem como Literatura Brasileira” e a de Hugo
finalidade básica analisar o tema do Friedrich na sua Die struktur der modern
“absurdo” no seu “desenvolvimento lyrik (von Baudelaire bis zur
Gegenwart).
histórico”, estruturado por Dostoievski
em seus romances, desenvolvido por *
Franz Kafka no sentido transcendental e O grau de validade de uma crítica
por Albert Camus no sentido imanente. literária situa-se entre o nexo histórico
Pretende ele analisar também o tema da que capta a realidade objetiva e a análise
incomunicabilidade ligado ao “absurdo”, psicológica e literária que constitui seu
partindo de textos considerados básicos suporte subjetivo; da interação desses
na bibliografia kafkiana, quais sejam, “O elementos é que a criação literária recebe
Castelo” e seu “Diário”, evitando cair sua configuração última, adquirindo
numa análise estilística tão a gosto dos autoconsciência dos problemas que
adeptos do modern criticism1 como a analisa e das medidas propostas.
uma redução sociologística da obra de A criação intelectual, como toda criação,
arte, cultivada pelos epígonos modernos nasce e se desenvolve num complexo
de Taine. cultural determinado, onde os fatores
Crê o autor, que o equilíbrio entre o objetivos – econômicos ou ideológicos –
aspecto psicológico, literário e histórico são captados pelo intelecto em conexão
permite uma visão mais “integrativa” do com seu suporte subjetivo – o
universo literário, sem cair nos psicológico.
reducionismos atraentes, porque fáceis, Portanto, impõe-se a análise do
de cunho estilístico ou sociologizante.
pensamento intelectual, – o “espírito
Nessa linha de equilíbrios integram-se a

*
In Memoriam.
MAURÍCIO TRAGTENBERG foi professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola de
Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP); autor de “Burocracia e Ideologia”
e “Administração, Poder e Ideologia”, entre outras obras.
Fonte: Separata da Revista ALFA. Nº 1. Departamento de Letras da F.F.C.L. de Marília – 1962.
1
Aliás, já Marcel Proust num artigo publicado na “Nouvelle Revue Française” no ano de 1920 sob o título
A propos du style de Flaubert já fazia o que hoje os adeptos do new criticism anglo-saxão tão empafiamente
chamam de ‘análise estilística” ou “crítica interna”.
subjetivo” da intelligentsia – dentro de própria posição social, dificilmente
um marco sociocultural, donde ele chegavam a autoconsciência teórica de
emerge individualmente diferenciado. sua situação, e fornecendo teóricos aos
movimentos populares. Marx, Engels e
1. A “Intelligentsia”
Trotsky são a materialização da
Um dos fatores mais significativos da intelligentsia “pequena-burguesia” pelo
criação intelectual na atualidade, estilo de vida, e por seu contato com o
consiste em que esta, contrariamente às povo, que os habilitava à posição de
civilizações anteriores, não é exercida porta-vozes dos seus interesses mediatos
por uma casta fechada, mas por uma e imediatos.
camada, que em sua gênese aparece
desligada de qualquer classe. A possibilidade de se aliar a classes que
não pertencem era dada originariamente
Esse fenômeno sociológico é que aos intelectuais, porque podiam adaptar-
determina a universalidade do se a qualquer ponto de vista e devido
pensamento que já se inicia com o também a sua posição intermediária
humanismo e cristaliza-se na entre as duas grandes classes sociais.
“Ilustração”, na sua forma leiga e
mundana, oposta à “sacral”. Essa decisão voluntária tinha a virtude de
unir os intelectuais a essa classe durante
Criado pela Revolução francesa, surge a luta, mas nem por isso eles se
esse estrato social destinado a libertavam da desconfiança dos
salvaguardar a herança intelectual, membros dela originários.
cumprindo o mesmo papel que as castas
sacerdotais no mundo antigo. Segundo Karl Mannheim, tal
desconfiança é um sintoma de uma
Enquanto que os homens que tomam realidade social: a assimilação dos
parte ativa na produção social, provindos intelectuais a uma classe estranha é
de diferentes classes, têm um estilo de limitada por suas características sociais e
vida e pensamento correspondente à sua psíquicas que lhes são próprias. Somente
“situação de classe”, os intelectuais, à luz dessa desconfiança é que se entende
além de trazerem o cunho de sua o fanatismo dos intelectuais radicados
afinidade classista, são também nos movimentos totalitários, sejam
determinados pelo meio intelectual, este fascistas ou estalinistas. Esse fanatismo é
contém em si todos os elementos uma compensação psicológica pela falta
contraditórios da vida social, e fornece de integração mais profunda numa classe
aos intelectuais os elementos potenciais e pela necessidade de vencer a própria
que os habilita a desenvolver uma insegurança e a desconfiança da mesma
sensibilidade social, sintonizada com as classe, à qual pretende ele se ligar.
forças em conflito.
A intelligentsia como parte orgânica de
Duas são as linhas de ação adotadas
uma estrutura social determinada, dela
pelos intelectuais para sair dessa posição
recebe sua configuração específica –
intermediária: filiação voluntária a uma
conservadora ou revolucionaria – e a
das classes antagônicas ou o exame de
amplitude e limites lógicos de seus
suas próprias raízes sociais que os
problemas.
condicionam a defender a herança
cultural da sociedade em seu conjunto. Assim a intelligentsia russa que trocou os
Em relação à primeira atitude, diplomas universitários por uma bomba,
encontramo-los fornecendo teóricos para o estudo pela ação conspirativa,
os conservadores, que, devido a sua representada por Netchaev, Bakunine e
Vera Figner, era fruto de uma estrutura 2. Franz Kafka.
social feudal e do absolutismo político;
Sua obra constitui a materialização das
somente a industrialização e o
tensões sociais numa alma pequeno-
aparecimento das Dumas é que permitiu
burguesa, isso aparece na sua dicotomia:
o surgimento dos Plekhanov ou Jordânia.
profissionalmente é gerente de uma
Enquanto isso a intelligentsia ocidental, companhia de seguros, e subjetivamente
formada na tradição parlamentar é um intelectual, um artista.
ingressava nas universidades oficiais. No
O vácuo existente entre esse
entanto, à medida que entrava em
“desdobramento” foi preenchido pela
contato com as realidades fundadas pela
crise. Essa antinomia marcou sua
revolução industrial ela se ligava, sob a
existência, tornando-o um tipo
ação da propaganda ou da vaidade, ao
introvertido. Daí seu estilo alegórico e o
totalitarismo, seja nazista, fascista ou
tema da “incomunicabilidade” entre os
estalinista, tendo um destino trágico.
homens, vivido por José K. no “O
Ela é a parte da sociedade que reflete Processo” e pelo agrimensor no “O
mais diretamente sua ascensão ou Castelo”.
decomposição. Sua deterioração, seu
Justifica-se essa atitude de reserva, pois
aniquilamento físico, a perda de sua
ele, como intelectual, é olhado com
liberdade de crítica, mostram o processo
suspeita pelo seu próprio grupo social e
de decomposição das elites dirigentes e
familiar, por esses burgueses rotineiros
do estalinismo.
que compensam suas frustrações
O nazismo e o fascismo sabiam bem o quotidianas no culto fetichista do cheque
que faziam, quando exterminaram a bancário que lhes garante a segurança
intelligentsia independente de financeira, da religião, que assegura um
vinculações estamentais, suprimindo-a passe livre ao céu e do Estado, supremo
ou transformando-a em simples parafuso protetor de suas propriedades.
de máquina burocrática, estatal ou
Franz Kafka choca-se com uma
partidária.
organização social que impõe como
No entanto, a intelligentsia não pode “anormal” toda atividade que não vise
flutuar no ar: coloca-se o problema de um lucro, não propicie uma felicidade
orientá-la num sentido positivo, pois ao sonante, como a do escritor que faz
ver-se privada do apoio dos grupos profissão do mental e do “ocioso”, num
progressistas da sociedade, ela volta-se mundo de valores pragmáticos e
contra si mesma erigindo sua “torre de contábeis.
marfim”.
O drama de F. Kafka é o drama de um
Ela deve procurar esse apoio nos grupos membro de uma família pequeno-
sociais ascendentes, pois ela é a burguesa.
materialização do espírito histórico da
A “incomunicabilidade” kafkiana não é
cultura, em oposição aos grupos sociais
uma categoria abstrata de caráter
decadentes que tomam e da cultura,
extraterreno, ela pertence à
devido a uma “falsa consciência” de sua
“contingência”, “ao quotidiano” da vida
situação específica – grupo decadente –
de cada um.
identificando-a com a situação da
sociedade global. Ela é um “recurso” literário e artístico
refinado como consequência de sua
oposição ao Pai. Segundo seu próprio
testemunho, toda sua obra advém do 3. O tema do “absurdo” no seu
conflito com seu pai. O pai, um tipo desenvolvimento histórico. (De
bonachão, audacioso, de temperamento Dostoievski a Kafka)
brutal e dominador, o filho, o oposto: um
Na preparação do caminho para a
“intelectual”, um contemplativo.
interpretação do “absurdo” na vida
A incomunicabilidade leva a oposição de humana situa-se o homem
caracteres; daí advém uma luta surda e “dostoievskeano”, que aparece como
Kafka se sente como um criminoso que negação de um racionalismo de
espia um crime que não cometeu. perfumaria, de um Botroux ou de um
Alain.
É a mesma sensação de esmagamento
que José K. sente ao enfrentar o No homem “dostoievskeano” a alma é
Tribunal, de um criminoso sem culpa puro caos. Encontramos ébrios por
formada e formalizada, julgado sem desejo de pureza (Marmeladov), homens
saber por quem e condenado sem saber que violam virgens por respeito à
como. inocência. O amor e o ódio, a volúpia e a
fraqueza confundem-se em
É uma antevisão kafkiana da tragédia “transposições” ininterruptas.
judaica no processo da 2ª guerra mundial
Svidrigailov, Fedor Karamazov e
– a de perseguidos sem culpa, pela onda
Raskolnikov são dissolutos, no entanto
totalitária.
estão separados por um abismo dialético.
No entanto, deve-se ressaltar que seu A volúpia de Svidrigailov e a depravação
desligamento de um grupo social “fria” de Karamazov representam “a
ascendente o impediu de levar sua obra a alegria de viver”. Raskolnikov encarna a
uma espécie de uma tomada de maldade intelectual unida à perversão.
consciência de uma realidade universal e Dostoievski decompõe a volúpia e
ao mesmo tempo particular: a do homem remonta às suas raízes, às suas
do século XX, entre duas guerras. composições mais misteriosas,
Essa unilateralidade sociológica é insistindo na antinomia entre o “mundo”
compensada por qualidades pessoais: o e o “eu”, o aniquilamento do homem em
sentido kafkiano da arte como atividade favor de forças invisíveis.
vital e sua sensibilidade em captar o que É o profundo sentido do “absurdo da
há de trágico e grotesco no quotidiano do vida”, que tem suas raízes em
homem moderno. Dostoievski, ramificando-se em Albert
Camus com La Peste num sentido
Se O Processo é o retrato da
“imanentista” e assumindo “traços
desintegração da personalidade humana
transcendentais” em Franz Kafka.
ante um Estado totalitário e impessoal,
América é uma crítica severa a uma O “absurdo” atinge sua máxima
civilização que erige como ideais de expressão em Dostoievski, na lenda do
vida, a televisão, a geladeira ou o Grande Inquisidor nos Irmãos
automóvel. Karamazov e no suicídio de Kirilov n’Os
Possessos.
Na legenda do Grande Inquisidor, Cristo
desce à terra na época da inquisição
espanhola. O Grande Inquisidor justifica
sua missão terrena mostrando a Cristo
que ele dando liberdade ao homem – “a Em Franz Kafka o “absurdo” é
verdade vos tornará livres” – “eu sou a transcendental; reside na
verdade” – deu-lhe um fardo pesado para incomunicabilidade do homem com o
suas costas fracas e o Grande Inquisidor homem, formando uma trama de
“tirando-lhe a liberdade em troca da relações pessoais “sem” sentido,
segurança” revelou-se seu amigo, ao impostas por circunstancias alheias ao
mesmo tempo em que transferia toda homem. O agrimensor n’O Castelo não
responsabilidade dos atos humanos na se comunica com a autoridade suprema,
terra para si, deixando para o homem o Klamm. O personagem de O Processo
pão terrestre. Em nome do homem e do José K., não se comunica com uma
cristianismo o Grande Inquisidor poderia justiça, que permanece eternamente na
atirar Cristo à fogueira. penumbra, assim como Kafka não se
comunica com Deus.
Nessa legenda, além de Dostoievski
mostrar todo o processo de O fenômeno mais significativo no
burocratização da Igreja Romana a quem pensamento de F. Kafka consiste na
ele odiava por ser ortodoxo, ele nos desierarquização espiritual que coloca
mostra que toda ideia religiosa ou social seres, objetos e situações em nível de
se desenvolve sob o signo do absurdo. idêntica força causal.

Em sua fonte original a ideia é limpa e Nele tudo assume a forma de uma
pura: o cristianismo na pessoa do Cristo. categoria capaz de transcendência; o fato
Quando, porém, ela se institucionaliza – mais insignificante converte-se em
Igreja, dogma e clero -, ela se nega a si símbolo, em sonho. Assim, o
própria. Daí o cristianismo poder findar sobrenatural pertence também a esse
em Inquisição, como o culto à “deusa mundo quotidiano. Sua irônica dialética
razão” terminou no “despotismo da a respeito do conhecimento além do real,
liberdade”, contra a tirania, de encontra sua expressão nessa sentença
Robespierre. típica: “o conhecimento é a etapa que
leva à vida eterna e o obstáculo colocado
Se Deus não existe, tudo é permitido, diante dela”.
então eu gozo de uma liberdade 4. O Processo
ilimitada. O máximo de liberdade
consiste na prova de meu aniquilamento. Essa obra de F. Kafka é a previsão das
Eu me mato para provar a minha maiores farsas judiciais dos tempos
liberdade e ao mesmo tempo que Deus modernos, como os Processos de
não existe. Moscou e Budapeste. É o supremo
protesto contra a volta aos aspectos mais
Esse é o “absurdo” do homem que vai da negativos da Renascença, materializados
liberdade ilimitada ao auto no culto à “razão de Estado”, sob os
aniquilamento. regimes totalitários.
Em La Peste de Albert Camus esse Essa antevisão aparece no destino
absurdo tem um aspecto imanentista: é a trágico e absurdo de José K., escravo e
morte; uma multidão de ratos invade joguete de forças estranhas e invisíveis,
uma cidade, espalhando-a tornando-a tão impessoais como a burocracia que o
quotidiana. A coabitação com a morte condena.
tira dela qualquer aspecto “trágico”. É o Nessa obra aparece com maior clareza o
inumano bordejando o humano: ele é traço original que liga a vida à obra de F.
imanente à própria existência. Kafka.
O personagem principal de O Processo O “absurdo” em F. Kafka rejeita todas as
coloca-se diante de um problema de formas de “alienação”, seja a família,
caráter finalista: “da direção e sentido de profissão, dinheiro, sistemas filosóficos,
sua existência, de seu destino inexorável religião e o patriotismo. Elas nada
que culmina com a morte”. podem contra o “escândalo” que consiste
no simples existir.
Pelo fato de viver “para” esse destino é
que o homem kafkiano se converter num O herói kafkiano rejeita a santidade
condenado permanente sem outro como o desespero: sua atitude é de
consolo que suas meditações sobre uma imobilidade ante o absurdo.
culpa inexplicável, projetada em sua vida José K., faz a prova da liberdade,
por uma autoridade impessoal e invisível permanecendo imóvel ante a Autoridade
como ela própria. Essa luta contra o e atraindo sobre si “livremente” todas as
absurdo finalismo de nossa existência consequências de sua atitude.
adquire aspectos patéticos no homem
kafkiano. No decorrer do processo, José K.,
comportar-se-á como culpado do
Ela é expressa por Kafka quando no seu princípio ao fim; em vez de inquirir
Diário escreve: “porque” o acusam interessa-lhe saber
“Eu luto mais que os outros. A maior
mais “quem” o acusa, tentando manter-
parte luta com sonhos como quando se lúcido, a única arma que lhe resta. Sua
se agita a mão para desviar minhas tristeza é ter que se ir, sem conhecer nem
forças com reflexão e minúcia”. saber que juiz o condena.
O personagem verdadeiro de O Processo A impessoalidade da burocracia judicial
é a culpa. Uma culpa surda e invisível transparece claramente no encontro entre
ligada organicamente ao ser, à José K. e o pintor:
existência. - Os grandes advogados quem são?
Como podem ser vistos? – pergunta
José K., não enfrenta a luta, limita-se a José K.
padecê-la como um doente experimental
que sofresse sozinho os efeitos da culpa. - Você nunca ouviu falar deles? –
Esse herói é um tipo comum de responde o pintor. Não há nenhum
acusado que não sonhou com eles
funcionário bancário que enfrenta a durante algum tempo. Não se deixe
Autoridade, “sofrendo” uma culpa cuja dominar por essa debilidade. Quem
origem e razão ele próprio desconhece. são? Não sei. Quanto a conhecê-los,
impossível.
Com essa passividade de José K., diante
da culpa e da Autoridade invisível, Franz Vemos o tema da autoridade unido
Kafka esforça-se em mostrar que o que estreitamente à culpa. José k., não pode
existe “fora” de nós, consiste viver sem se justificar. Então, tende a
simplesmente no aniquilamento e no procurar a Autoridade. E se tal
“absurdo”. O inumano sempre bordeja o Autoridade não existisse, pensa ele, para
humano. E todas as consolações que então essas idas e vindas, todo esse
edificantes expressas em sistemas sofrimento, todo esse absurdo? Ela
filosóficos nada mais são do que existe, mas não é acessível a José K.
“racionalizações” desse absurdo, que só Estamos diante da
é apreendido pelo processo novelesco. “incomunicabilidade”. A Autoridade, o
Daí a opção de Kafka pelo gênero conto Conselho Judicial de um lado, o homem
ou romance. do outro.
É a presença hofmaniana dessa máquina “caso” com outrem, como se outro fosse.
judicial, de uma justiça invisível que No entanto ele, nem sempre pode levar-
deixa no ar o gesto cego e impensado de se pelos voos da imaginação e manter-se
uma acusação e uma sentença que calmo.
parecem agitar-se no vácuo, funcionando
mecanicamente que acaba reduzindo o Há momentos em que o desespero se
indivíduo a condição promíscua de sub- apodera dele. Então, é quando sente a
homem. necessidade de conversar
despreocupadamente, justificar-se
Na prisão de José K. revela-se perante os outros. José K. procura
novamente a incomunicabilidade. Os contato com a vida, com os bens
funcionários que o prenderam nada terrestres, coisa que Kafka aspirará
podem dizer. Estão aí para prendê-lo, encontrar em sua vida, mais inutilmente.
para cumprir ordens. “Tudo existe, mas
nada se comunica”. A desconformidade Angustiado José K. procura comunicar-
do movimento parcial é a lei. Cada se; sente uma incoercível necessidade de
fenômeno move-se em seu próprio falar sobre o “caso” com a Senhora
círculo hermeticamente fechado, sem Grubach, travar com ela relações mais
ligação com o general. amigáveis, quotidianas.
O espanto de José K. ante sua detenção
O que importa n’O Processo é o culpado
não tem limites. Nascido sob o agasalho
mais do que a justificação ou não da
de uma Constituição que garantia os
causa, que é pouco menos que
direitos individuais, não concebe essa
secundaria, porque a justiça é
invasão em sua vida e ainda
inacessível, permanecendo
desconcertado pergunta:
incomunicável com o homem. Essa
- De que falam? A que serviço máquina permanece só, sem gestos, nem
pertencem? Ninguém lhe responde. aparatos, como uma presença insólita no
Essa experiência do pacato cidadão drama do humano.
diante da Autoridade é uma visão
Nesse singular processo pouco interessa
antecipadora do processo de sujeição do
o dia do julgamento: ele se efetua num
homem ao totalitarismo vivido na
“domingo”. O lugar onde funciona o
experiência do fascismo, nazismo e
tribunal pouco importa, num “local
estalinismo.
abandonado”. Pouco importa o “nome”
José K. sente a força do destino em sua do acusador; José K. é confundido com
vida: este está traçado. Se o deixassem um pintor de paredes. Uma
em liberdade condicional o pacato José promiscuidade horrível reina em seu
K. seguiria sua existência normal: ir ao redor e tudo se processa numa marcha
Banco, visitar semanalmente Elsa, “mecânica” e “indiferente”. Pressente-se
passear com o chefe. Tenta iludir-se que o desfecho inevitável do drama, que
pensando que sua detenção nada pode ter se passa num ambiente opressor, junto às
de terrível. lavadeiras inexplicáveis, é a “morte”.
José K. achega-se ao guarda principal e Isso todos sabem porque todos estão
os outros se achegam por sua vez, envolvidos. A intervenção inexplicável
formando um grupo cerrado. Por um do tio do acusado no processo representa
processo de abstração ele se imagina “simbolicamente” um chamado à vida
tomando parte no grupo que o persegue, familiar, de cujo círculo Franz Kafka
o “acusado livre” comenta o seu próprio permaneceu inteiramente afastado.
O advogado sob cuja tutela o herói anuncia o equívoco havido. Após sua
permanecerá durante o transcorrer do conversa com o alcaide, K., começa a
processo, representa a transição com a duvidar da própria existência de tal
corrupção, a cujos sinistros mecanismos chamado.
é mister submeter-se e a cuja autoridade
é impossível atingir. Essa é a É informado que O Castelo prescinde de
significação exata da presença de seus serviços, que tudo se encontra
Titorelli, pintor medíocre, amigo, tal medido. Inicia-se aqui a luta violenta
como o advogado, de juízes subalternos, com o “inimigo”. Apesar de tudo, o
servis, que pouco farão por José K., lhe agrimensor obstina-se em ser admitido.
diz: Sua esperança é entrar em contato com
Klamm, ser admitido, ouvir de seus
- Pertences à Justiça? Para que me lábios a palavra decisiva; essa é a
queres? aspiração constante que o domina.
- A Justiça nada quer de ti. Toma-te
Não consegue realizar seu desejo, sua
quando vens e deixa-te quando vais.
vontade é consumida num continuo
Certa noite a Justiça vestida de negro rodeio, fica sempre detido nas
aparece diante de José K. Levam-no a imediações, nas medidas preliminares;
um local afastado e com três facadas no outro aspecto da “incomunicabilidade”
coração liquidam-no. Onde estava o kafkiana.
juiz? Onde estava a Alta Corte que o
condenou? Continuam sendo entidades Busca ele apoio para se ligar, entrar em
abstratas e incomunicáveis com o contato com a autoridade inacessível:
humano, com José K. transformado em Klamm. Liga-se a Frieda, à hoteleira e a
símbolo. Barnabé. A hoteleira torna-se amiga de
Klamm, o chefe poderoso.
5. O Castelo
Sem ser poderosa aspira a sê-lo e admira
A vontade de possuir uma casa, ter uma secretamente os que estão nas altas
segurança mínima é o que alenta o posições da escala social. Essa burguesia
incansável agrimensor de O Castelo. média despreza o idealista que sai de
“As primeiras experiências do suas próprias fileiras, tendo maior
agrimensor K., desenvolve-se na consideração pelos tipos vazios que
trama sutil armada pelo absurdo que frequentam o “Hotel dos Senhores”. Em
acolhe o homem em suas malhas”. outro plano, a hoteleira representa uma
liberdade submissa à autoridade
O agrimensor K. choca-se com o
(Klamm).
sentimento de impotência, com as casas
semidestruídas, que aglutinadas entre si O princípio do mundanismo é
formam um bloco compacto claramente refletido pela hoteleira,
representando o inacessível, que o princípio que quer salvar pela sua
homem tenta atingir, mas não consegue. oposição ao matrimonio de K., com
O agrimensor esmagado pela Frieda. A hoteleira teme por seu mundo.
incomensurabilidade do Castelo, chega a Receia no fundo qualquer contacto entre
duvidar de si próprio, perguntando-se: K. e Klamm.
“quem sou eu pois?”. No entanto, uma “Isso mostra que a Autoridade está
carta da Alta Autoridade do castelo sequestrada pelos submissos. E a
chama-se para lá; ela é assinada por um submissão que tem medo de
chefe poderoso, Klamm. Logo se modificações, dos que querem
‘continuar’ que confere a ela sua O fracasso configura toda a existência de
força inaudita”. K., pois as aspirações realizam-se de um
modo “absurdo”, a realidade as deforma.
A hoteleira pressente que o encontro
entre K. e Klamm dissolve o princípio da Frieda e K. têm plena consciência que
Autoridade da qual ela depende. sua união é impossível: apesar da
vontade subjetiva de unir-se, o destino de
Quão comovente é a descrição do cada um é diferente. O destino de Frieda
episódio em que o agrimensor diferencia-se profundamente do destino
desesperado se decide a falar trágico de K. Ela não é um tipo para
diretamente com a Autoridade, Klamm, abandonar sua família, seu estilo de vida
de quem depende diretamente seu tecido de fins imediatos. Ela representa o
destino. A espera inútil, o ambiente no quotidiano, o comum, o banal.
“Hotel dos Senhores”, a descrição desse
ambiente, que parece não conter em si Essa passagem está impregnada do
outra vida, senão de forjar a “vivencia” drama pessoal de Franz Kafka, o
do herói, é de uma força digna de um biográfico, o psicológico e o literário se
Dostoievski. confundem.
Numa carta memorável destinada ao pai
K. permanece distraído e cansado no F. Kafka expõe os motivos que o levam
interior de um trenó esperando a chegada a renunciar a uma união conjugal. Em
de Klamm. Um homem vem ao seu primeiro lugar, ela se opõe à sua vocação
encontro: não é Klamm. Informa-lhe que literária. Tudo que não é literatura, para
este não virá. Há um instante em que o ele é penoso e insuportável. Outro
recém-chegado, o cocheiro e o trenó se motivo, sua constituição débil e
retiram. Então K. sente que se “cortou” enfermiça, seu caráter nervoso e
toda união, que goza de uma terrível insatisfeito. F. B. sua noiva é o oposto,
liberdade, ninguém teria o direito de “um ser tão natural e robusto”.
jogá-lo, tocá-lo ou falar-lhe. Nada tão
desprovido de sentido e aterrador como Apesar de todos os protestos da noiva ele
essa intangibilidade do herói. sabe que o matrimônio a desgraçaria.
Desprovido de todo o sentido de família
Enquanto K. sonha chegar ao Castelo, a união contribuiria para efetivá-lo.
Frieda sente a nostalgia da quietude
olhando com sugestiva simpatia esses A hoteleira n’O Castelo não vê com bons
seres despreocupados que lhe são afins. olhos a união de Frieda com K.
Ainda que bobos ou inconscientes, Ela é a imagem de uma sensatez doentia,
Jeremias e Artur representam a que consiste em compor as partículas em
“segurança”, o não-compromisso. K. vê- que se dividem as circunstâncias com o
se obrigado a compactar com eles. mundo. Ela considera K. um insensato e
Sujeita-se a viver na mesma habitação, uma loucura, sua pretensão de entrar em
na escola. contato com Klamm, expoente do único
poder que ela reconhece e respeita.
Essa curiosa residência e a
promiscuidade reinante, simbolizam As dificuldades com que tropeça K., não
com maestria a transação, o se erguem só em seu caminho ao Castelo,
compromisso a que nos obrigam com elas aparecem insistentemente no mais
desgraça frequência as circunstâncias da humilde acesso a um oposto, por
vida. pequeno que seja, na comunidade.
Esta sociedade não é digna do herói. mediações. É o fenômeno da
Nela as coisas estão organizadas no incomunicabilidade, que marca não
sentido de uma submissão hipócrita, de somente O Castelo mas o sentido
uma “convivência” com a Autoridade profundo dos escritos de Franz Kafka2.
que K. não aceita, pois, aspira a se
realizar no seu ofício de agrimensor.
Mas, o meio sugere-lhe outra solução. Obras consultadas
Klamm, Frieda incitam-se a manter-se Sobre a ‘intelligentsia’ ocidental e seu papel
longe de seus desejos íntimos, social: Karl Mannheim, “Ideologia e Utopia”,
conformando-se com as “mediações”. K. págs. 141-151. Ed. Globo, 1950, onde o autor
defende a famosa tese da “desvinculação
não aceita o meio termo que as classista” do intelectual e a existência de várias
circunstâncias lhe impõem, assim como alternativas colocadas ante o mesmo, permitindo
F. Kafka – é um rebelde, um uma tomada de posição perante outros grupos
insubordinável. sociais. Essa noção do “intelectual” livre está
vinculada a tradição da filosofia especulativa do
Franz Kafka havia explicado ao seu idealismo clássico onde o pensador aparece
amigo Max Brod como terminava essa colocado ante o produtor de um lado, e o
novela, truncada, como o fora a vida de consumidor de outro. A crítica a esse “fetichismo
da consciência intelectual desvinculada dos
seu autor. O agrimensor finalmente grupos sociais” aparece com clareza em Irving
consegue obter uma parca satisfação. Louis Horowitz, “Sociologia cientifica y
Mantêm-se firme, não se dobrando. Mas sociologia Del conocimiento”. Lib. Hacchete.
morre de esgotamento. Em redor de seu Buenos Aires, pág. 60. Ed. 1958-1959.
leito mortuário a comunidade se reúne e
nesse instante chega do Castelo uma
Sobre o histórico do tema do ‘Absurdo’ em
decisão que declara não ter K. realmente Dostoievski:
direito à cidadania no lugar, mas, não
Sobre a vida de F. Kafka – Max Brod “Franz
obstante, tem autorização para viver e Kafka”. Ed. Gallimard. Paris, 1945.
trabalhar na localidade.
1. “Crime et chatiment”. Ed. Gallimard. Paris,
Há algo mais simbólico que esse final? 1950.
Não é visível que o herói como o seu 2. “Les Fréres Karamazov”. Ed. Gallimard. Paris,
Autor “preferiu” a morte? 1952.
O que agravara a luta entre o herói e o 3. “Les Demons”. Ed. Gallimard. Paris, 1955.
Castelo, foi o fato deste não lhe dar Em Albert Camus – 1. “La Peste”. Ed. Gallimard.
combate, oferecendo-lhe uma resistência Paris, 1947.
passiva. Desesperante e esgotadora. K. é Obras de F. Kafka utilizadas:
“vivido” pelo Castelo e as coisas se
1. “The Diaries of Franz Kafka”. Ed. Schocken.
sucedem com predeterminação absoluta.
New York, 1948.
A essa vivência deve-se o fato da vida do
agrimensor desenvolver-se ligada a um 2. “El Processo”. Ed. Losada. Buenos Aires,
1939.
equívoco fatal: o erro consiste em crer
que se está lutando para chegar ao 3. “America”. Ed. Routledge. Londres, 1938.
Castelo, quando não se faz outra coisa na 4. “The Castle”. Ed. Konpf. New York, 1947.
realidade, do que permanecer nas

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Trabalho premiado pelo Centro Literário
“Barros Casal” (Rio Grande do Sul): 1º prêmio
no gênero “Ensaio literário”.

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