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Trópico

A substância supérflua
Por José Galisi Filho

“Ao desvalorizar a força viva de trabalho, a terceira revolução industrial destrói o próprio valor e
coloca todo o sistema de produção de mercadorias em xeque”, diz, em entrevista, o ensaísta
Robert Kurz

Uma das características mais notáveis do ensaísmo de Robert Kurz, 63, partilhada por seus leitores
marxistas ou não, é a capacidade de dramatizar, com ironia, no movimento do texto, o tecido complexo
da trama contemporânea, agregando, à observação do detalhe, a fantasia de imaginar um mundo
diferente com categorias experimentais.

Essa qualidade é, por assim dizer, literária, uma antiprosa, cujo saldo decorre daquilo que o
dramaturgo Heiner Mueller chamou certa vez de a “pressão da experiência autêntica” no movimento
do material. Nesse sentido, a reflexão de Kurz sobre a constelação pós-Guerra Fria precisa ser
pensada, em seus devidos termos, dentro da particuliaridade da experiência alemã nos últimos 16 anos
desde a Reunificação, nos quais seu país, relativamente civilizado e pacificado pela social-democracia
depois da barbárie, transformou-se novamente num laboratório social e num pesadelo darwinista.

Ninguém menos que o poeta e editor Hans Magnus Enzensberger reconheceu prematuramente nessa
imaginação sobre a fatalidade histórica da Reunificação e seu curso de desastre o convite para entrar
em um território desconhecido. No outono de 1991, “O Colapso da Modernização”, de Kurz, era
lançado na Andere Bibliotheke, editada por Enzensberger, dois anos antes da publicação de “Visões
sobre a Guerra Civil”, livro deste poeta e ensaísta.

A sombra do argumento de Kurz projeta-se literariamente no argumento de Enzensberger sobre o


excesso e o autismo de uma violência libertada das antigas amarras ideológicas nos Balcãs como
metástase de uma crise que se irradia da periferia para o centro do sistema. Uma das características
mais marcantes do ensaio é a homologia subjacente entre o “êxtase” dessa “subjetividade
balcanizada” e o pathos niilista da crítica cultural pós-moderna.

Ao despedir-se das armadilhas morais do universalismo esclarecido, impotente pelo bombardeio de


informações, Enzensberger convidava o leitor a uma ética da responsabilidade civil, além da política
partidária. Se, para Kurz, o colapso do socialismo de caserna significava menos uma vitória do
capitalismo sobre a antiga ditadura do SED (sigla em alemão do Partido Socialista Unificado da
Alemanha, que se converteu depois no Partido Social-Democrata da Alemanha - SPD), do que o signo
de uma crise da própria concepção de “trabalho abstrato” arraigada na ética protestante tanto no
Leste como no Ocidente, Enzensberger sinalizava nesse processo o termo histórico da modernização.

A questão da pós-modernidade era objeto da antologia de Kurz de 1999, “O Mundo como Vontade e
Design, Estilos de Vida de Esquerda e Estetização da Crise”, uma cartografia do novo yuppismo
intelectual nas figuras dos críticos Nobert Bolz e Diedrich Diederichsen e do desinteresse
“individualizado” de uma geração, os ex-plebeus 68 que “chegaram lá”, a política como pose de
charutos e ternos Armani, no auge da bolha financeira da “new economy”. Amor virtual, internet, Love
Parade, analfabetismo funcional, legiões de mães solteiras empobrecidas, colapso da masculinidade,

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Kurz traçava um inventário da miséria individualizada da geração “single”.

Em 2000, “O Livro Negro do Capitalismo” dava forma enciclopédica ao programa categorial da


antiga revista “Krisis”. Pela primeira vez, uma obra de Kurz ganhava ressonância nacional, chegando
a ser considerada pelo “Die Zeit” como o mais importante lançamento nos últimos dez anos.

Ao contrário do sociólogo Ulrich Beck, que se tornou conselheiro da ala modernizadora do SPD
durante os anos da coalizão vermelho-verde, Kurz sempre manteve uma distância crítica da política
partidária. Mas sua reflexão, em sentido concreto, é antes de tudo um ajuste com a “chispa
desembestada” (na expressão de Roberto Schwarz) da esquerda tradicional alemã que, entre outras
aberrações, se transformou em terrorismo anti-semita no início dos anos 70 e se aglutina hoje em torno
da “LinkBuendnis” capitaneada por Oskar Lafontaine, na forma de uma crítica vulgar do capitalismo
financeiro, emparedada pela dessolidarização do rápido desmonte da máquina social.

Na entrevista a seguir, Kurz fala sobre a atual situação da Alemanha e do capitalismo e responde à
pergunta da Documenta: “A modernidade é nossa Antigüidade?”.

Quando se fala no fim da modernização, à qual paradigma estamos ainda nos referindo?

Robert Kurz: O conceito de moderno é bastante mutável e apreendido de maneiras inteiramente


distintas, dependendo do contexto no qual se argumenta. Entre os históriadores, por exemplo, existe o
conceito de “pré-moderno”, datado entre os séculos 16 e 17, e o moderno compreenderia todo o
processo histórico a partir dessa época. Já na filosofia, o início do moderno é frequentemente assimilado
ao Esclarecimento (ou Iluminismo) do século 18, ao qual todas as teorias e ideologias posteriores até
hoje se referem direta ou indiretamente. Para a maioria dos economistas e sociólogos, por sua vez, o
moderno começaria com a industrialização no início do século 19, da qual se origina uma história das
diversas revoluções industriais, que culminaria hoje na terceira revolução industrial da microletrônica.

No campo da arte e da cultura, o conceito de moderno se estabelece de maneira marcante na reflexão


apenas no século 20, antes da Primeira Guerra Mundial, não se estendendo como “clássico moderno”
além das décadas de 50 e 60, quando parece se esgotar e desembocar no assim chamado pós-moderno.

Do campo da arte e do aparelho cultural, o tema do fim do moderno e do início de um pós-moderno


estendeu-se, neste entretempo, para a filosofia, as teorias da história, a sociologia e até para a economia.
A “nova economia” do capitalismo-cassino-internet foi descrita como um paradigma socioeconômico
pós-moderno, como uma nova era de acumulação de capital e prosperidade, cuja bolha, de maneira
patética, já estourou há alguns anos.

A desorientação parece tão completa, que Juergen Habermas já proclamava, no início dos anos 80, uma
“nova intransparência”. O problema consiste no fato de que, no desenvolvimento do moderno, a
perspectiva da totalidade social e da história se torna cada vez mais fugidia. As ciências sociais se
“diferenciaram”, as teorias referem-se cada vez mais apenas a “partes do sistema”. O conjunto se
perdeu, e desse refluxo e vazio o pós-moderno fez precisamente soar sua hora no culto desta
desconexão.

Na pós-história, a história mesma foi atomizada; na sociologia, os “processos de


individualização” (Ulrich Beck) reabilitados; e na economia os pontos de vista “microeconômicos”
realçados e o conjunto capitalista dissolvido na particularidade dos “sujeitos econômicos”.

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A mesma atomização processou-se na arte, na indústria cultural e nos estilos de vida alternativos. Cada
um por si e Deus contra todos. Essa tendência à atomização não é apenas pura ideologia, mas apresenta
também pressupostos sociais bem objetivos, que, não obstante, não foram até agora refletidos. A
sociedade parece se dissolver numa ausência de conexão real, e esse processo é pensado de maneira
igualmente sem conexão com a base social real, isto é, ele é reduplicado idealmente. Nesse sentido, o
pós-moderno é, por assim dizer, a realização de sua própria profecia.

Mas uma outra perspectiva se oferece quando consideramos o conjunto da sociedade e da história. O
moderno constituiu um contínuo e uma conexão categorial, uma certa formação histórica da sociedade,
diferenciada de suas formas agrário-religiosas tradicionais. Essencial nesse processo é a constituição do
capitalismo, por um lado, isto é, do moderno sistema de produção de mercadorias, e, por outro, das
relações modernas entre os gêneros, no qual o patriarcado, bem como a reprodução social, foram
“objetivados”.

O “trabalho abstrato”, a forma da mercadoria, a mediação do mercado mundial e a concorrência


universal tornam-se determinações centrais. Essas formas aparentemente neutras são também
“estruturalmente masculinas”, isto é, espelham a supremacia masculina na política e na economia, em
certo sentido, também no aparelho cultural. As mulheres estão representadas neste setor, mas são
também, como afirma a socióloga Regina Becker Schmidt, “duplamente socializadas”, pois aqueles
momentos não originários da reprodução social (atividades domésticas, educação dos filho, empatia,
trabalho amoroso), no “trabalho abstrato”, na política e no aparelho cultural foram apartados pelo
capitalismo ascendente da sociabilidade oficial e historicamente delegados às mulheres. O capitalismo, o
objetivo do moderno sistema de produção de mercadorias como da “valorização do capital” e de sua
esfera política, constitui, dessa forma, igualmente, um sistema de “separação de gêneros” (Roswitha
Scholz).

Mas o assim entendido “moderno” não constitui nenhum contínuo estático, porém dinâmico. Por essa
razão, o conceito de “moderno” vai a par com o de modernização. A modernização foi inicialmente um
processo de colonização externa e interna, ou seja, um processo de consolidação das modernas
categorias sociais através do colonialismo europeu, externamente, e de subversão das velhas relações
agrário-religiosas e dos vínculos pessoais, internamente. Esse processo foi desigual e completou-se nas
diversas partes do mundo fora da Europa e da América do Norte em ondas intermitentes sucessivas, que
se estenderam pelo século 20 adentro. Por esse motivo, fala-se também em “não-simultaneidade
histórica”.

Mas, em segundo lugar, o conceito de modernização designa o desenvolvimento das modernas relações
a partir de “seus próprios fundamentos” (Marx), a história da Revolução Industrial, as metamorfoses
emergentes da esfera política (democratização) e as novas formas de expressão e da separação entre os
gêneros.

Seria, portanto, o pós-moderno uma época essencialmente distinta do moderno. Por outro lado, o
discurso do pós-moderno pressupõe que a modernização teria atingido seus limites históricos. O
capitalismo e sua divisão de gêneros tornaram-se, na globalização, um sistema planetário e, nessa
simultaneidade, esse desenvolvimento interno pareceria ter se esgotado. Há, de fato, novas formas de
individualização, a internet, a economia transnacional, mas as modernas categorias sociais tornaram-se
vazias e ocas. As mudanças econômicas, sociais e técnicas não correspondem mais aos novos conteúdos
e perspectivas. Isso se mostra particularmente claro na esfera sensível da arte e da cultura. Mas essa
dinâmica é apenas exterior. Com Paul Virilio, poderíamos falar de uma “rasante inércia”.

Tudo isso vem a par com um “crise econômica radicalizada”, que se estende da periferia até os centros

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capitalistas, na imagem do desemprego e da miséria em massa, nas infra-estruturas desarticuladas, no


declínio da classe média, com as pessoas cada vez mais lançadas na precariedade social, entre elas
muitas existências intelectuais e artísticas. Também a crescente migração global é parte da síndrome. No
conjunto, estamos diante de uma crise global de nova qualidade. O pós-moderno não é uma época além
do moderno, mas sim uma época da crise fundamental do moderno, uma época de transformação crítica
rumo ao desconhecido, já que não se pode ser “mais moderno”, isto é, a modernização não encontra
mais espaço para avançar.

A teoria e a ciência majoritariamente não compreenderam essa nova situação e procuram ainda navegar
ao sabor do vento, pois não querem reconhecer o pós-moderno como crise do moderno em suas
fronteiras históricas. Em parte, o pós-moderno é apresentado como uma suposta e completa nova época
de virtualidade auto-confiante e de contigências “abertas”, enquanto que a realidade social se esfacela na
dureza dos pressupostos reais do capitalismo, que já não podem mais nem sequer serem preenchidos.

É dessa maneira que Ulrich Beck e Anthony Giddens falam de uma “modernização reflexiva” e de uma
“nova descoberta do político”. O moderno deve tornar-se “auto-reflexivo” em relação aos seus próprios
potenciais engendrados e ameaças crescentes, sobretudo em relação ao equilíbrio ecológico. Mas aqui
não há nenhum modo de trabalho compatível com o moderno. A destruição capitalista dos recursos
vitais prossegue irrefreada e politicamente não há nada de novo a ser descoberto, pois a política, como
instrumento corretivo de regulamentação do Estado nacional, não surte mais qualquer efeito na crise
globalizada.

E também no cotidiano das relações essa crise fundamental se mostra evidente. Os indivíduos
atomizados não se suportam mais entre si, as relações se precarizam no amor, a divisão de gêneros se
decompõe e o cotidiano e o trato pessoal são, por assim dizer, “barbarizados”. O pós-moderno como
uma nova época, ou como continuação da modernização, é simplesmente um embrulho enganador.

E como se definiria nossa época em contraste com esse ciclo que se encerra e o atual estágio da
acumulação capitalista?

Kurz: Se podemos descrever nosso tempo como crise do moderno, marcado por uma perda de
substância, então esse problema tem um fundamento social elementar na economia do moderno sistema
de produção de mercadorias. Segundo Marx, o trabalho abstrato constitui a transferência da energia
humana com a finalidade de valorizar a substância do capital. Na terceira revolução industrial da
microeletrônica, essa substância mesma torna-se cada vez mais supérflua.

Pela primeira vez na história do capitalismo, a racionalização da produção supera a expansão dos
mercados. Na medida em que a força de trabalho humana, em pulsos sucessivos, é retirada do processo
produtivo, o capital real fica para trás. Ele deixa de ser a instância de entrelaçamento do conjunto
econômico e do social. A transferência da capacidade de produção para países de baixos salários, como
a China ou a Índia, não é um jogo de soma zero, mas está ligado à exportação de alta tecnologia. Ela se
limita nestes países apenas a uma minoria de “zonas preferenciais de exportação”.

Na globalização, não existe mais nenhum “desenvolvimento” econômico nacional, no qual a população,
como um todo, possa ser integrada. Também nesse sentido a modernização acabou. O capitalismo
tornou-se um capitalismo de minorias. Ele estabeleceu a conexão planetária da humanidade, mas apenas
em sentido negativo, como processo de crise, que em toda parte dissolve as conexões elementares do
social. A sociedade capitalista mundial constituída não pode mais integrar a maioria das pessoas.

Mas esse não é apenas um problema de miséria e desemprego em massa. A crescente fragmentação

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social libera, na mesma medida, nos níveis macro e micro, processos de desintegração “pós-políticos”.
Em todas as partes no mundo desenvolvem-se, como continuação da concorrência por outros meios,
novas relações de força. Podemos falar, por um lado, de um processo sorrateiro de desestatização. No
lugar das guerras tradicionais aparecem, nessa anomia, guerras civis de um novo tipo, ligadas a uma
violência particular contra mulheres e crianças. As zonas de insegurança crescem a cada dia.

Mas o capitalismo planetário sufoca não apenas em função de sua própria incerteza auto-produzida. Na
mesma proporção em que a força de trabalho é desvalorizada, processa-se simultaneamente uma
“dessubstancialização” do capital. O valor e sua forma de aparição como dinheiro resultam, em última
instância, de uma energia humana transferida, e apenas por essa razão é que os produtos assumem sua
forma de mercadoria, isto é, numa abstrata “coisicidade de valor” em oposição a sua qualidade sensível.
Ao desvalorizar a força viva de trabalho, a terceira revolução industrial destrói o próprio valor e coloca
todo o sistema de produção de mercadorias em xeque. A crise do “trabalho abstrato” torna-se a crise do
capital ele mesmo, pois a “valorização do valor” atinge suas fronteiras históricas.

Como entender a produção cultural neste contexto? O sr. acredita que, no plano da arte, a
modernidade é nossa Antigüidade?

Kurz: Acredito que, referidos à relação econômica como centro da sociedade oficial, mostra-se uma
clara distinção entre moderno e pós-moderno. O moderno foi o contínuo da ascensão histórica e da
consolidação do trabalho abstrato. A substância do capital tornou-se, no processo de acumulação, cada
vez mais rarefeita. Ela compreende cada vez mais esferas da vida e se estende à produção cultural, que
se organiza dentro da lógica capitalista da indústria cultural.

Literatura e arte refletem imanentemente esse movimento substancial, cujo nome é modernização, até os
poros mais remotos e nichos do cotidiano, como mudanças das relações psíquicas, dos caracteres
sociais, da sexualidade e da percepção do mundo. Nesse ponto, tanto a crítica tradicional de esquerda
como aquela do antigo campo do socialismo real, bem como a conservadora em todos os seus matizes,
não pouparam esforços. Mas essa crítica teve sempre a dinâmica da expansão do trabalho abstrato como
seu presuposto silenciado.

Isso se mostra não apenas do ponto de vista cultural, mas também político e econômico. A
“democratização” política foi idêntica com a integração das massas no capitalismo. O reconhecimento
do trabalhador assalariado como sujeito de direito civil, bem como da cidadania (eleições universais,
voto feminino apenas no século 20, direito à greve e à liberdade de reunião) constituem apenas reverso
da medalha de sua submissão ao trabalho abstrato. E o socialismo real foi apenas um sistema alternativo,
concebido a partir dos mesmos fundamento sociais e ontológicos. Como socialismo real na periferia do
mercado global desde a Revolução de Outubro, ele se desenvolveu como um paradigma da
modernização recuperadora, na qual o trabalho abstrato não foi superado, senão apenas tardiamente
introduzido e aplicado.

Em contrapartida, o pós-moderno representa o processo de dissolução e declínio do trabalho abstrato. O


fim do socialismo real pertence a esse contexto e marca o fim da modernização recuperadora. O sistema
mundial unificado não pode mais atribuir uma unidade substancial, senão em pequenas zonas insulares
de rentabilidade decrescente. Enquanto que a coerência nacional clássica do moderno se esfacela, a
dessubstancialização do capital se irradia, agora, em direção inversa, a todos os domínios da existência
como um sentimento de esvaziamento geral e crise.

A crise da substância econômica e, em consequência, a crise da política tornam-se a crise da moderna


identidade masculina, que tinha seu ancoramento nessa substância, enquanto que as mulheres, em

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função de sua dupla socialização e fixação nos momentos apartados da reprodução real, sempre foram
semi-integradas. Nessa crise, as conquistas do movimento feminista vão sendo sucessivamente -e até
agora sem grande resistência- revogadas. No território desse refluxo, a identidade esvaziada masculina
avança “desembestada”, exprimindo-se, em toda parte, numa violência sexista cada vez maior.

Com uma nova vestimenta, retornam os velhos demônios da modernização -racismo, anti-semitismo,
etnonacionalismo-, seja nos homens ou nas mulheres. Eles representam apenas uma reação destrutiva à
nova ameaça existencial para restabelecer, de maneira imaginária, o nexo social perdido sob delegação
do “outro”.

O mesmo esvaziamento se observa na produção cultural. Por isso, a crise da cultura e da arte não
decorre apenas de uma crise financeira e da precariazação de seus atores, mas também de seus
conteúdos. O novo é apenas um remake de segunda do velho (retrô). Não apenas as séries televisivas são
infinitamente repetidas. Modas e conteúdos esvaziados retornam à circulação em intervalos cada vez
mais curtos. Culturalmente, a dinâmica do desenvolvimento transformou-se numa espécie de eterno
retorno do mesmo.

Já que tudo se tornou indiferente, a arte não pode mais provocar. Nudez e banhos de sangue suíno nos
palcos alemães provocam um grande bocejo. Sensacional mesmo, hoje, na Alemanha é quando os atores
aparecem em cena vestidos. Não há mais nenhum conteúdo cultural a ser expresso na forma capitalista,
justamente porque ela mesma perdeu o seu conteúdo. A fragmentação social e a desintegração como
desconexão universal tornam-se uma falta de conteúdo universal ou uma desrrealização de todos os
conteúdos críticos do passado, que opunham um sinal negativo a esse desenvolvimento.

O reducionismo tecnológico mostra-se também na comunicação. Quanto mais os indivíduos


incrementam e são mobilizados pelo arsenal tecnológico multimídia, cada vez menos têm a dizer entre
si.

As ciências sociais não estão excluídas dessas tendências. Ulrich Beck fala também de si mesmo,
quando se refere a uma perda de significado e irrealidade da sociologia auto-infligidas. A irrealidade da
sociologia é a mesma da arte e da cultura, e ela é justamente “culpada”, na medida mesma em que
recalca essa perda de substância ao inventar conceitos vazios. Por esse motivo, a sociologia não pode
mais oferecer nenhuma resposta aos problemas urgentes da crise. Ela descreve superficialmente alguns
fenômenos, mas se recusa a reconhecer a correlação entre eles.

Para sairmos desta fila de espera do pós-moderno só há uma saída: se a teoria novamente referir-se “ao
todo”, partindo da crise do “trabalho abstrato” e das modernas relações entre os gêneros, realizandoo
uma crítica radical da ontologia capitalista, que para os críticos obsoletos do passado ainda era
pressuposta de modo postivo. Talvez, com essa intenção crítica profunda, seja possível fazer da arte algo
novamente provocador.

Pode-se falar ainda em luta de classes? O proletariado pode ser considerado ainda uma força de
oposição ao capital?

Kurz: Desde a industrialização, o moderno foi marcado pelo antagonismo de classes entre “trabalho
assalariado” e “capital”, entre “proletariado” e “burguesia”. Essa oposição parecia ser ontológica,
porque o “trabalho abstrato” era entendedido como uma necessidade natural eterna e, apenas num
sentido totalmente externo, como substância do capital. Na ideologia oficial burguesa, a forma
capitalista era inseparável da necessidade do “trabalho” mesmo, e na ideologia socialista o “trabalho
eterno” deveria supostamente libertar-se da forma capitalista.

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Hoje, os pressupostos sociais comuns de ambas ideologias foram corroídos e percebeu-se, por assim
dizer, que ambos os lados tinham, apenas em parte, metade da razão. A substância abstrata do trabalho é,
de fato, parte inseparável da forma capitalista, mas apenas na medida em que essa forma é
sucessivamente esvaziada de sua própria substância. A “ontologia do trabalho” revela-se historicamente
limitada e caduca como as mercadorias universais e a forma monetária do capital.

Aqueles “exércitos do trabalho” invocados por Marx, em sua época, como base organizada da luta de
classes desapareceram. Apenas aparentemente repete-se hoje a mobilização desses “exércitos” em zonas
de exportação preferenciais da China e da Índia, nas quais, simultaneamente, no mercado interno e na
produção agrícola, o “trabalho” é, em grande parte, desmobilizado. Do ponto de vista global, o volume
absoluto do trabalho regular declina sem parar.

O capital reage a essa crise interna com a constituição de uma economia interligada como bolha
financeira. Uma vez que investimentos reais e fábricas, máquinas e força de trabalho são cada vez
menos rentáveis e em toda a parte revela-se uma “sobrecapacidade”, que cada vez mais têm de ser
desmobilizada (com o fechamento de fábricas, por exemplo). O capital financeiro foge numa virtual
(fictícia) acumulação nos mercados financeiros. Os ganhos não decorrem mais da produção ou da venda
de mercadorias, mas quase que somente das elevações, sem substância, dos preços nos mercados de
ações e imobiliários, da transação com títulos financeiros de conglomerados e suas partes (batalhas de
aquisições hostis, por exemplo).

Assim como as ciências sociais em suas reflexões teóricas, o capital também procura, de um ponto de
vista econômico prático, navegar ao sabor do vento. Também essas zonas preferenciais minoritárias de
exportação na China e na Índia, geridas pelos conglomerados transnacionais, são, em realidade,
dependentes da economia de bolha financeira, sobretudo do déficit externo dos Estados Unidos, e não
representam nenhuma acumulação real produtiva.

O processo sociológico de individualização descrito por Ulrich Beck esteve, desde o início, ligado a essa
virtualização econômica do capital. Nele, o proletariado clássico se dissolvia e a tradicional luta de
classes perdia, com o “trabalho”, sua base ontológica. Quando, em 1986, Beck constatava a liberação
das pessoas de seus antigos vínculos de classe, ele deixava totalmente de lado o caráter de crise desse
mesmo processo econômico. Nesse entretempo, ele mesmo teve de desmentir seu otimismo inicial, mas
ainda se recusa a admitir a relação interna entre individualização e caráter de crise da virtualização.

A oposição entre miséria e “riqueza abstrata” (Marx) radicalizou-se dramaticamente na forma


monetária, mas ela não resulta mais da exploração da força viva de trabalho. As pessoas são justamente
individualizadas e socialmente atomizadas, na medida em que o capital pode acumular cada vez menos.
No interior dessa nova miséria de massa, desenvolvem-se campos de disparidade sociais, que não podem
mais ser trazidos a um denominador comum de uma “classe” social uniforme.

Enquanto que nos países ocidentais ainda existem restos do Estado de Bem-estar Social, um número
cada vez mais crescente de pessoas torna-se dependente da transferência de recursos públicos, que
caminha a par com o crescente endividamento estatal. Quanto mais restritivas essas transferências são na
administração da crise estatal, mais se ampliam as formas de trabalho precarizado, para além do trabalho
remunerado industrial.

A maior parte dessas novas relações empregatícias não se referem mais à produção de bens, mas à esfera
da circulação, ao puro processo de mercado de compra e venda ou a serviços individuais, às falsas
atividades autônomas, ao trabalho compulsório comunitário dos beneficiários do seguro desemprego,
aos empregos de 1 euro, aos serviços de assistência precários, à ajuda no trabalho doméstico, às brigadas

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de varredores de rua, às atividades em calls centers, à venda de serviços telefônicos, aos trabalhos
temporários, à assim chamada sub-ocupação (algumas horas por semana no supermercado no caixa
enchendo sacolas de compras ou arrumando prateleiras), aos empregos em bares, ao pequeno comércio
de rua, ao tipo de “empreendimento da miséria” e até mesmo à simples mendicância.

Essa tendência já atingiu há muito a jovem geração dos acadêmicos da classe média, que, em grande
parte, não encontra mais nenhuma ocupação regular e tem de se virar até o limiar dos 40 anos com
“estágios” de pequena ou nenhuma remuneração, ou mesmo contratos de trabalho temporários. Na
França já se fala de uma “génération precaire” (geração precária).

Nessas condições, os indivíduos não são apenas sociológica e psicologicamente, mas também
economicamente atomizados. Eles não encontram mais uma instância comum de unificação das formas
de organização de suas ocupações precarizadas. Sob a pressão do empobrecimento e da piora das
condições de vida, eclodem novas lutas sociais, como os protestos de massa da juventude acadêmica na
França. Mas esses movimentos sociais (e os também chamados movimentos antiglobalização e seus
foros sociais) não podem mais ser unificados sob a etiqueta da “luta de classes” ou de uma “classe
trabalhadora”, como procura inutilmente a esquerda anacrônica tradicional. Já nos anos 70 os “novos
movimentos sociais” tinham se afastado do paradigma da velha “luta de classes”.

Disso resultou naturalmente um enfraquecimento do poder e da capacidade reais desses movimentos de


fazerem prevalecer suas reivindicações. Frequentemente, trata-se de um puro “movimento de causa
única” para questões específicas. Também os protestos sociais permanecem pontuais e sem
sustentalidade organizada. Isso tem a ver com o fato de que a “classe trabalhadora” obsoleta e o fim da
“luta de classes” entre os campos sociais díspares não apenas têm dificuldades na questão organizatória,
mas também, como nos novos movimentos sociais, de modo semelhante à sociologia e nas práticas
culturais, a perspectiva do conjunto social se perdeu.

Não há mais nenhum objetivo comum, o velho entendimento do “socialismo” foi liquidado, como a
ontologia do “trabalho”. Precisamente em sua crise histórica, o capitalismo parece como uma pura
condição de natureza social intransponível. Para unificar os movimentos sociais de homens e mulheres
atomizados como uma nova força histórica seria preciso estabelecer também novos objetivos comuns
além do capitalismo, uma crítica generalizada do “trabalho abstrato”, do moderno sistema de produção
de mercadorias e de sua divisão entre gêneros.

Atualmente, muito pouco disto pode ser vislumbrado. No lugar disso, mostra-se uma disseminada e
ampla nostalgia capitalista. Quanto mais o capital, através de sua própria dinâmica se
“dessubstancializa” e mais obsoleto e precário torna-se o “trabalho” residual, maiores as saudades de um
tempo passado de relações de trabalho estáveis e do “milagre econômico” de depois da Segunda Guerra.

Essa nostalgia é perigosa, porque o caráter ilusório dessas ilusões retrospectivas torna-se logo consciente
como contradição e desemboca em vínculos ideológicos destrutivos. Os novos pobres, e precisamente os
mais instruídos entre eles, não são melhores pessoas. É justamente o ressentimento desses que sai à caça
dos culpados, em vez de questionar de maneira crítica suas condições de existência socialmente
modificadas. O capitalismo da bolha financeira virtualizada, no qual, de preferência, se deseja participar
como aventureiro, aparece simultaneamente como ameaça subjetiva, através de seus “gafanhotos” em
Private Equity Fonds e outras sociedades de investimento com uma proximidade clara com o anti-
semitismo (o clichê dos “judeus financeiros”).

Teorias conspiratórias estão na ordem do dia em best sellers, bem como uma “crítica” abreviada e vulgar
do capitalismo na forma de um antiamericanismo tosco. Aquelas fronteiras claras do passado entre
ideologias de “direita” e “esquerda” se diluem na crise dos pressupostos socialmente comuns. O futuro

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dependerá de os movimentos sociais se fazerem prevalecer, além da velha luta de classes e da tendência
nostálgica, anti-semita e antiamericana. Ou se, em contrapartida, se realizar uma crítica radical às
aparentes leis naturais das formas sociais do moderno.

Na peça sobre o esclarecimento prussiano, de Heiner Mueller, “Gundling”, sobre Lessing, a


domesticação do corpo, pela camisa de força, é apresentada pelo professor aos seus alunos, no
manicomômio, como um “instrumento da dialética” diante um paciente em estado de
masturbação compulsiva. “Cada um torna-se sua própria Prússia”, afirma ironicamente. No
entanto, o instrumento somente parece aumentar no paciente a intensidade do impulso masoquista
em ir além. A quase que completa colonização do imaginário pela nova virtualidade dispensa a
camisa de força real. O que sobrou do espaço da fantasia?

Kurz: É, sem dúvida, uma bela metáfora de Heiner Mueller. É preciso estabelecer uma ligação entre o
esvaziamento da subjetivdade e a virtualização do capital, na medida em que os indivíduos se tornam
cada vez mais reprimidos, quanto mais se distanciam da realidade nesse mergulho virtual.

O que se passa na bolha financeira transcorre também de maneira concreta no cotidiano das relações. Na
psicologia, temos o conceito de instabilidade na personalidade “borderline”. Essa cena refere-se ao
processo de tântalo da colonização interna da subjetividade. Na medida em que o capital, em função da
intensidade tecnológica, recua da realidade e avança na intimidade, nos sentimentos e pensamentos, na
economização dos sonhos, sem devolver a substância viva retirada, a auto-repressão aumenta, e os
indivíduos comportam-se, em quase todos os domínios, como pequenos empresários, administrando essa
substância esvaziada.

Ocorre então a economização total das relações, das mulheres das crianças e dos amigos. Tudo deve
estar de acordo com uma “qualidade gerencial” e ser organizado como uma pequena firma, pois,
justamente na medida em que cada vez menos firmas reais existem, tanto mais devemos estender esta
estrutura contra nós mesmos. Essa forma sem conteúdo é também muito bárbara em sua crueza e
desemboca, na vida prática, facilmente em agressão física, porque a idéia insuportável de uma
irrealidade crescente no virtual procura inevitavelmente uma válvula de escape. Esse mundo nos torna
capazes e preparados para tudo. Os indivíduos tornam-se cada vez mais imprevisíveis.

Este artigo é publicado por Trópico como contribuição à documenta 12 magazines, um projeto editorial
coletivo que reúne em todo mundo mais de 70 publicações impressas e on-line, bem como outras
mídias.

link-se

www.documenta.de

José Galisi Filho


É doutor em germanística pela Universidade de Hannover (Alemanha).

http://p.php.uol.com.br/tropico/html/print/2773.htm 14/1/2007
Trópico - A substância supérflua Página 10 de 10

www.uol.com.br/tropico

http://p.php.uol.com.br/tropico/html/print/2773.htm 14/1/2007

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