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CABARET

FILOSÓFICO
Belo Horizonte, n.1, p. 01 - 116, dez. 2012

Belo Horizonte | Minas Gerais | Brasil


Colaboradores: Ana Cecília Carvalho, Antônio Alder SUMÁRIO
Teixeira, Cibele Horizonte, Eduardo Viveiros de Castro,
Imaculada Kangussu, Hilan Bensusan, Horácio Ferreira,
Liliane Camargos, Nayana Finholdt Shimaru (editora),
Thiago Reis (editor).

07. editorial

08. a filosofia como cabaré


Ernst Bloch

16. gambiarra, ou a arte de acertar com o errado


Cibele Horizonte

23. o paradoxo da formação de uma identidade


Ana Cecília Carvalho

29. ratos e urubus, larguem minha fantasia ou cross-


dressing: fantasia de gênero, fantasia de classe, fanta-
sia de raça
Hilan Bensusan

45. filosofia brasileira?


Imaculada Kangussu

65. esboço de análise de um aforismo de guimarães rosa


Eduardo Viveiros de Castro

74. entrelinhas da vida concreta


Horácio Ferreira
78. ver para não olhar: a cegueira branca, a censura
e os sonhos de angústia
EDITORIAL
Liliane Camargos

90. olivier de sagazan: estilhaços da matéria-prima


Série de fotos por Nayana Shimaru

100. a alegoria platônica de abbas kiarostami O primeiro número da revista Cabaret Filosófico traz
Antônio Álder Teixteira como texto inaugural um pequeno artigo do filósofo ale-
mão Ernst Bloch, intitulado “A Filosofia como Cabaré”.
Trata-se de uma resenha sobre o livro A Rua de Mão Úni-
ca, de Walter Benjamin. Entretanto, muito mais do que
um mero comentário, Bloch faz uma apologia ao modo
como Benjamin propõe o filosofar. Nesse contexto, te-
mas marginais, assuntos cotidianos, comparações pouco
usuais e capazes de causar espanto até mesmo a essa velha
senhora, a filosofia, são colocados em pauta. Inspirada
nessa atmosfera, a ideia da revista Cabaret Filosófico sur-
ge: sem a exigência – ainda que ela possa existir – do
tradicional rigor acadêmico, abrimos aqui o espaço para
uma exposição de reflexões inventivas, algumas ideias
ditas perigosas, temas que habitualmente não dialogam
entre si, filosofias sui generis, ontologias made in China...
Nesta primeira edição, numa mistura babilônica,
reunimos artigos que vão da psicanálise à gastronomia,
da filosofia ao cross-dressing, passando pela literatura,
cinema, performance, antropologia, gambiarrologia. Ao
leitor, bom proveito com os rastros de sentido que te fis-
garem aí.

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permanecem na rua que se abre aqui. Algumas partes são
muito pessoais e outras nos lembram inutilmente de coi-
sas antigas. Trata-se do livro “Rua de Mão Única” que
Walter Benjamin acaba de publicar, e que representa, de
maneira típica, o pensamento surrealista. Esse eu surre-
alista é muito próximo do nosso, mas está em constante
A FILOSOFIA
mudança. São mesmo inumeráveis eus, de maneira que
COMO CABARÉ* quase toda frase é um recomeço que prepara coisas dife-
rentes de um modo diferente. O livro utiliza meios extre-
Ernst Bloch
mamente modernos, com uma graça tardia, para conteú-
dos frequentemente marginais ou esquecidos. Sua forma
é aquela de uma rua: é uma sucessão de casas e de lojas
que colocam suas ideias à mostra.
Um livro desse gênero, sem ter em si um propósito, so-
mente poderia surgir nos dias de hoje. É apenas nos dias
Quando aparece um cabaré, alegremente aproximamo-
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de hoje que o capricho próprio, e sobretudo real, pode
-nos – e então, alguma coisa começa a incomodar, trans- ser levado a sério sem que fique isolado, incomunicável
forma-se em algo diferente, toma outros rumos. Essa é e inapreensível. Principalmente porque a grande forma
a impressão que o ensaio de Benjamin, o primeiro desse filosófica tornou-se obsoleta. A tradicional ordem bur-
gênero, nos oferece. As comparações engraçadas não fal- guesa, com a sua encenação aristocrática e a sua cultura
tam, ainda que pudessem. As comparações mais sérias decadente, não floresce mais. Vindas das ruas, dos par-
nem sempre atingem o seu objetivo; em vez disso, elas ques de diversão, dos circos e das ficções baratas, outras
* Do original alemão “Revueform in der Philosophie” (1928), trata-se formas, antes conhecidas apenas de maneira depreciada,
de uma resenha do livro Einbahnstraße (Rua de Mão Única) de Walter emergem, tornando-se maduras. O clown irrompe sobre
Benjamin. A versão utilizada para esta tradução consta em uma cole-
tânea de artigos, reunidos na obra Erbschaft dieser Zeit, Zürick, 1935. o moribundo balé, a iluminada e arejada habitação fun-
(Tradução e notas por Nayana Finholdt Shimaru, email: nfshimaru@ cional [Wohnmaschine] toma o lugar dos ultrapassados
gmail.com. A tradução foi cotejada com a versão francesa de Jean
Lacoste. Revisão: Thiago Reis). estilos arquitetônicos e o improviso do cabaré substitui as

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belas formas da antiga construção cênica. Em si mesmo, ele havia assumido e desenvolvido sua coerência idealís-
é verdade, há bem pouco no espetáculo de cabaré além de tica exclusivamente a partir desse mesmíssimo princípio.
sua estrutura “relaxada” (e que pode se tornar rígida). A Os edifícios autônomos da filosofia estão desmoronando
partir dele não surgiu nenhum novo teatro, e tem servido conjuntamente ao cálculo fechado e abstrato da burgue-
apenas ao populacho ávido por entretenimento, perma- sia, de tal forma que Nietzsche poderia definir o sistema
necendo tão amorfo quanto esse. Entretanto, de maneira filosófico como uma “vontade de desonestidade” [Wille
indireta, o espetáculo de cabaré pode ser utilizado como zur Unehrlichkeit]. É por isso que as impressões ques-
uma das formas mais abertas e, involuntariamente, mais tionadoras de Simmel encontraram lugar. Vimos surgir
honestas do presente – como a réplica do espaço oco no o coro dos peregrinos acadêmicos, cantando incansavel-
qual nada pode ser feito sem se tornar uma farsa, em que mente “sistemas, sistemas” – como em Hörselberg 2 – sob
se encontram e se misturam apenas fragmentos. A im- a forma daquilo que se chama filosofia da existência, e
pressão indireta produzida pelo cabaré se deveu à força que possui complexos, mas não sistema. No pequeno
e à vivacidade das cenas desconexas, que se metamor- experimento formal de Benjamin, o cabaré assume uma
foseiam e se engendram umas às outras, aproximando- forma definitivamente diferente: uma improvisação pen-
-se do mundo dos sonhos. De Piscator até a Ópera dos sada, restos de uma coerência despedaçada, uma suces-
Três Vinténs, o cabaré representa uma forma de arte são de sonhos, de aforismos e lemas dentre os quais, na
bastante diferente. Os novos aspectos do “impromptu” melhor das hipóteses, uma afinidade eletiva espera se
não faltam. Essas mesmas ações tornaram-se filosóficas instaurar transversalmente. Se o espetáculo de cabaré é
em Benjamin: como uma forma de interrupção, como uma viagem através de uma cultura em desintegração, o
uma forma de improvisação, nos súbitos olhares trans- ensaio de Benjamin nos dá os instantâneos, ou melhor, a
versais que apreendem detalhes e fragmentos, e que não fotomontagem dessa jornada.
buscam a construção de um “sistema”. Aforismo, precei- Dissemos anteriormente que os novos eus sempre se
to, diálogo, tratado – esses sempre foram gêneros filo- dissolvem. Na realidade, não há, objetivamente, pessoa
sóficos exteriores aos sistemas. Eles precedem, há muito, alguma nas ruas, apenas suas coisas, seus objetos, que
os sistemas modernos e ainda persistem conjuntamente
a eles. Atualmente o sistema desaparece ao mesmo tem- 2
Alusão à Tannhäuser de Wagner e à lenda de Hörselberg, montanha
rica em cavernas e assombrada por Vênus – tal montanha é por vezes
po que o princípio racional a priori da burguesia, já que chamada de Venusberg. [Nota da tradução francesa].

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parecem subsistir por conta própria. Somos tomados que o eu, ou de que o nós, não pode ocupar essa rua de
por pressentimentos que podem ser expressos apenas sob modo mutável, ausente e desumano. De fato, o eu per-
o modo de fragmentos exteriores, os quais assumem a manece nessa rua apenas enquanto um corpo que saiu
forma de signos e mostruários, transformando-se nessa para um passeio. Num primeiro momento, não ouvidos
rua de mão única – não como uma estrutura deliberada, ou olhos, não o calor, nem a bondade e a surpresa, mas
como um lugar vazio, como simples sonhos, mas enquan- o tato e o gosto climatopáticos [klimatopathischer]. Se
to um bazar e fio condutor filosófico. O resultado é a mais podemos aqui evocar um conceito de Bachofen, diría-
estranha forma em que já se arranjaram ideias. Os capí- mos que um “espírito ctônico” encontrou refúgio nesse
tulos trazem títulos como “Posto de gasolina”, “Sala de pensamento em forma de rua ou, mais precisamente, em
desjejum”, “Relógio normal”, “Parada para não mais de forma de passagem3. Assim como veleiros em garrafas,
três carruagens”, “Artigos de Fantasia”, “Nº 13”, “Guichê árvores floridas e torres cobertas de neve, que aparecem
de achados e perdidos”, “Vestiários de máscaras” e assim fechados e preservados em bolas de vidro, os filosofemas
por diante. A eles correspondem fragmentos filosóficos do mundo são mantidos atrás das vitrines das lojas. Esse
que estão dispostos em lugares específicos, em vitrines espírito está novamente em contato com o cosmos devido
específicas, ainda que sejam em grande parte variáveis à vista interior do gosto, ou gosto da vista, uma espécie de
e permutáveis. Catedrais, por exemplo, aparecem como embriaguez (veja “A Caminho do Planetário”). Uma rua
sendo “estações religiosas”, para logo reaparecerem sob de sonho à flor da pele, com lojas nas quais se cristaliza
um olhar alegórico: “vagões-leito para a eternidade são o gosto da época e casas em que os conteúdos variados
aqui despachados na hora da missa”. Uma crítica à “esta- de um tempo se condensam – esse é, ou poderia ser, o
ção religiosa”, certamente; todavia, esses vagões também panorama dessa experiência. Temos aqui, portanto, não
fazem o caminho inverso – da eternidade e seus reinos apenas a inauguração de um novo comércio da filosofia
míticos até à estação, para aí descarregar o contrabando. (que não tinha lojas antes), mas também uma orgia de
O estilo de linguagem benjaminiano possui a mesma ri- destroços, uma montagem surrealista de olhares perdidos
queza de associações mentais encontradas nos surrealis- e de coisas as mais familiares.
tas, de Max Ernst à Cocteau: a junção do Além com o Olhando o conjunto desta pequena obra, ela pode ser
Aqui e Agora, do caos originário até a ordem precisa do vista como a representação de muitas coisas que não se
cotidiano. Ressurge assim, mais uma vez, a questão de 3
Em referência às antigas galerias de Paris. (N. do T.)

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concretizaram [vieram-a-ser] em nossos dias. Benjamin de suas escavações transversais, não residem em caracóis
é um pensador que capta detalhes com extrema precisão, ou cavernas misteriosas, atrás de uma vitrine. Ao contrá-
formulando-os incisivamente, sem contudo mencionar o rio, as imagens se encontram no processo público, como
valor das moedas oferecidas. Ele imprime valores que não figuras dialéticas da experimentação do processo. A filo-
têm importância nem no mundo burguês, nem alhures. A sofia surrealista é um exemplo de como uma montagem
nós é visível apenas a significação anarquista desses ajun- polida dos fragmentos permanecem múltiplas e descone-
tamentos, dessas emoções: coletando, cavando ruínas, xas. Essa filosofia é fundamental para a construção de
conservando, mas sem um ajuste substancial. O olhar verdadeiras ruas, de tal maneira que não a intenção, mas
que desagrega, que decompõe, também congela e solidi- o fragmento é que morre quando há verdade, para ser
fica o rio múltiplo (guardando a sua direção), petrifica, à utilizado em proveito da realidade; as ruas de mão única
maneira eleática, até mesmo a imaginação e seus diversos também possuem uma finalidade.
entrelaçamentos; o que faz com que a filosofia de Benja-
min seja como a própria Medusa, a qual, segundo a defi-
nição dada por Gottfried Keller, é “a imagem petrificada
da inquietação”. Mas o impetuoso cabaré, perpassando a
filosofia surrealista, revela um outro “caleidoscópio”, que
surge a partir de significações salvas de ruínas. Porque os
vazios de nossa era (como aqueles do século XIX, cujas
alegorias fantasmas se projetam na filosofia surrealista)
não se encontram no vazio ele mesmo, mas no domínio
da intenção concreta, na tendência material que não é
de modo algum indeterminada. Na filosofia de Benja-
min “a verdade é a morte da intenção”, e a verdade se
divide em ideias fixas rodeadas por seu halo: as imagens.
Contudo, as imagens autênticas, os detalhes cortantes e
a exata profundidade desse livro, a sua preocupação com
o que se encontra à margem, tanto quanto as descobertas

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vidade – “quase” porque algumas gambiarras de tanto
serem repetidas tornaram-se clássicas, como, por exem-
plo, usar latinhas de cerveja como cinzeiro, na ausência
deste. A gambiarra realiza perfeitamente o movimento
classificado por Hegel como Aufhebung, traduzido como
“suprassunção” (por Paulo Meneses, na Fenomenologia do
GAMBIARRA,
Espírito) e como “superação” (por Marco Aurélio Werle,
OU A ARTE DE ACERTAR COM O ERRADO nos Cursos de Estética), cujo sentido é “ultrapassar man-
tendo”. A gambiarra supera o problema de um modo tal
Cibele Horizonte
que ele continua visível, às vezes até mais evidente. Ao
colocar as cinzas e as gimbas do cigarro na lata de cerveja
encontra-se uma maneira de solucionar a questão da falta
de cinzeiros e, ao mesmo tempo, sinaliza-se a existência
dessa mesma falta. A gambiarra resolve e mantém presen-
te a dificuldade superada. É isso que gambiarras sempre
Gambiarra é um substantivo feminino originalmen- fazem: ao resolver o problema por uma espécie de desvio,
te destinado a nomear um conjunto de lâmpadas liga- chamam a atenção para sua existência. Trata-se de uma
das em um mesmo fio. O dicionário diz também que, solução que presentifica a carência. Com isso, criam situ-
na linguagem popular, gambiarra nomeia um conserto, ações cômicas, porque a dificuldade ultrapassada conti-
um arranjo provisório. Definição formal, esta última, na nua expressa, produzindo uma situação dúbia, tipo “re-
medida em que qualquer coisa pode ser utilizada como solvida mas não muito”, ou “provisoriamente superada”.
gambiarra, pode ser desviada de sua destinação de origem “Gambiarra” foi o nome dado por Cao Guimarães à
e usada para quebrar um galho. “Quebra galho” parece serie de fotografias realizadas entre 2001 e 2011 (dez anos
ser o melhor sinônimo de gambiarra. de trabalho) expostas na mostra “Segue-se ver o que qui-
A gambiarra é criada para resolver um problema cuja sesse”, em Belo Horizonte, de maio a junho deste ano. As
resolução “correta” não está disponível, é impossível na- imagens são lindas, quase sempre incríveis e surpreenden-
quele momento, etc... É quase sempre índice de criati- tes, e retratam, entre outras coisas, os múltiplos objetos

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usados como cinzeiros (de garrafas à minúscula metade tema de um trabalho fotográfico é um ovo de Colombo.
de um limão!), o clipes que segura a alça do soutien, o A originalidade, tanto do trabalho do fotógrafo quanto
tijolo cujos buracos servem de suporte para vassouras, a das próprias gambiarras, é contagiante e entusiasma ao
lata transformada em banco, a lixeira da rua usada como tocar na mais elevada das faculdades humanas, na capa-
secador de tapetes, o coco verde utilizado como traves- cidade da imaginação criativa. E, nesse caso, repetimos,
seiro, os pregadores de roupa – que parecem destinados entusiasma duplamente: pela originalidade do artista ao
a mil e uma utilidades – nas mais diversas funções, to- escolher o tema da obra e pela não menor originalidade
das distintas daquela à qual teriam sido originalmente das próprias gambiarras. Assim, as imagens fazem jus à
destinados. Algo poético emana dessas fotos de objetos fabulosa capacidade de dar um jeito, seja lá como for. Na
desviados de sua função primeira, ligado talvez ao índi- falta dos meios adequados – que permanece enquadrada
ce de boa vontade e de humor, ao desejo de resolver a – aqueles antes inadequados adequam-se de modo feliz,
situação, de resolver um impasse, de passar por cima dos mesmo que provisório. É ótimo ver gambiarras a partir
problemas, de encontrar uma saída com aquilo que está à da dimensão estética, à qual de fato elas pertencem, se
mão, sem se deixar intimidar pelos empecilhos materiais tomarmos o termo aesthesis, em seu sentido original, i.e,
exteriores, presentes em toda gambiarra. relativo ao sensível. Gambiarra é – ou foi em um primeiro
Além da indubitável mestria de Cao Guimarães na momento – invenção. É a linguagem da carência em sua
captura e no enquadramento dos objetos fotografados, expressão material.
cada foto tem de quebra a potência da história que es- Lembro-me, particularmente, de duas situações com-
tes carregam: a história do momento em que alguém en- plicadas solucionadas por gambiarras. Na primeira, uma
controu uma solução, tosca é verdade, quando os meios amiga contou que estava na estrada debaixo do maior
“normais” estavam indisponíveis. As fotografias des- temporal quando o limpador de parabrisa começou a en-
pertam entusiasmo a partir de duas fontes. A primeira crencar, a visibilidade ficou comprometida e, com isso, o
ligada ao prazer proporcionado pelo encontro de uma prosseguimento da viagem. Depois de descer do carro e
saída para um impasse, a segunda ligada ao fato de ver ficar ensopada, percebeu que faltava um parafusinho mi-
esses encontros transformadores transformados em obra núsculo em uma das articulações de um dos limpadores,
de arte. Todo mundo conhece gambiarras, elas pululam para o qual obviamente não dispunha de sobressalente. A
mundo a fora, e, mesmo assim, a idéia de reuni-las como solução encontrada – depois de algum desespero – foi, no

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lugar do parafuso perdido, colocar seu brinco, que reve-
lou-se do tamanho preciso. Soube dessa história porque
estranhei ver (meses depois do ocorrido, tão bem funcio-
nou o arranjo) algo parecido com um brinco na falta de
orelha do parabrisa...
A outra história aconteceu no inverno de Ouro Preto,
quando um chuveiro elétrico, que costumava ser exce-
lente, começou a pingar na junção com o cano, ou seja,
antes de a água entrar no sistema de aquecimento. Era,
portanto, um pingo gelado, capaz de transformar o ba-
nho em tortura. Um dos moradores da casa minimizou o
problema prendendo uma touca de banho no cano e no
chuveiro, de modo que ela ficasse debaixo do lugar onde
pingava. O desafio passou a ser então, não mais encontrar
estratégias para escapar do pingo e sim ficar de olho na
touca, porque se ela ficasse cheia e transbordasse seria o
famoso banho de água fria. Nesse caso, foi simples, fácil
e barato passar uma fita veda rosca na junção, mas isso,
entretanto, não elimina o caráter criativo e muito, muito
mais trabalhoso da gambiarra.
Moral da história, ou melhor, morais das histórias:
mesmo quando não funcionam direito – maioria dos ca-
sos – gambiarras revelam a possibilidade de se fazer as
coisas de múltiplos jeitos, para além do jeito bem feito,
para além de bem e mal... Gambiarras são si belles... A
tecnocracia emburrecedora faria bem em lembrar-se de
sua origem: no início era a gambiarra...
Foto de CIBELE HORIZONTE apud CAO GUIMARÃES

20
O PARADOXO DA FORMAÇÃO DE UMA
IDENTIDADE

Ana Cecília Carvalho*

Gosto de observar as diferenças culturais sempre que via-


1

jo. Pode levar algum tempo até eu conseguir compreen-


der a linguagem não verbal e as mensagens codificadas
que ela transmite. Mas todas as vezes que obtive algum
conhecimento num país estrangeiro, mesmo sem falar
uma palavra sequer de um determinado idioma, acabei
tendo de concordar com o velho ditado: “Quando estiver
em Roma, faça como os romanos.” Assim, é preciso pres-
tar muita atenção aos detalhes que se encontram além do

* Ana Cecília Carvalho nasceu em Belo Horizonte. É psicanalista e


escritora, autora de O livro neurótico de receitas (Editora Ophicina de
Arte&Prosa, 2012). [e-mail: anacdecarvalho@gmail.com]

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som das palavras. Eles podem nos dar dicas importantes nalíticas, que, com o tempo, se tornam como que clones
sobre, por exemplo, a noção de espaço pessoal – ou seja, uns dos outros na linguagem afetada e no pensamento
a distância que devemos manter do nosso interlocutor estereotipado.
quando conversamos. Em um país, qualquer tipo de pro- Isto me lembra o personagem Zelig, de um filme de
ximidade em público, incluindo demonstração de afeto, Woody Allen. Como um camaleão, Zelig tinha a capa-
é vista com maus olhos; enquanto em outro país, uma cidade de se transformar completamente até ficar indis-
atitude mais reservada pode parecer indiferença ou mes- tinguível daquele com quem estava se relacionando. Essa
mo frieza, se não falta de educação. Em suma, é possível condição havia se originado do desejo que Zelig tinha de
encontrar tanto uma cultura que suporta bem ou valori- ser aceito e amado. Ele pensava que, para isso, tinha de
za as diferenças entre os indivíduos, como uma outra que, ser igualzinho ao outro de quem esperava amor e aceita-
pelo contrário, julgando intolerável qualquer diferença ção. Se Woody Allen tinha ou não conhecimento da teo-
ou carecendo do conceito de singularidade, impõe regras ria sobre a “fase do espelho” de Lacan, para construir esse
rígidas de massificação. personagem, não sei dizer. Mas com o drama de Zelig
Mas não é preciso estar num país estrangeiro para ele nos mostra como uma identidade se constrói através
logo vermos como certos padrões de comportamento de- de um delicado processo de apropriação ou imitação da
finem e distinguem as pessoas no nosso próprio lugar, identidade alheia, e, ao mesmo tempo, de distanciamento
sobretudo nos grupos, desde uma família até um grupo ou desidentificação em relação aos nossos modelos. Isso,
de amigos que escolhemos na escola. Se decidirmos ou na verdade, acontece com todo sujeito humano. A identi-
não vestir o mesmo “uniforme”, isto depende da manei- dade é, em outras palavras, o resultado do nosso esforço
ra como constituímos e preservamos a nossa identidade. para sermos como o outro e, ao mesmo tempo, sermos
Para alguns, é insuportável fazer parte da “maioria com- diferentes dele.
pacta” como dizia Freud, para quem manter-se como que Tudo isso me veio à cabeça quando, diante de alguns
exilado na própria cultura foi uma condição importan- poucos ingredientes de que dispunha na cozinha, um dia
te para que ele inventasse a psicanálise. Para outros, é acabei produzindo, para um brunch, um prato muito sa-
questão de sobrevivência falar, vestir e andar exatamente boroso que somente pode ser definido por exclusão: não
como todos de um determinado grupo. De vez em quan- é nem um suflê, nem uma frittata, nem um bolo salgado,
do isto acontece com os membros das instituições psica- muito menos uma omelete, embora tenha traços de cada

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um deles. Como que avesso a qualquer rótulo identifica- 1/2 xícara (chá) de leite (integral ou desnatado);
tório, tendo sido feito com os mesmos ingredientes de um 1 colher (sopa) de manteiga amolecida ou margarina;
suflê, de uma frittata, de um bolo salgado e de uma ome- 1 xícara (chá) de queijo mozarela ou cheddar ralado;
lete, ele insiste em portar uma identidade única e diferen- 2 colheres (sopa) de farinha de trigo;
ciada, para assegurar o seu lugar no mundo. Tal como o 3 colheres (sopa) de cream-cheese amolecido; se preferir,
adolescente que se define como “alguém que ele não quer use a mesma medida de requeijão cremoso;
ser”, esse prato bem pode se chamar “Sou o que eu não temperos a gosto: pitadas de páprica, pimenta caiena ou
sou”. Eis aqui o paradoxo de uma receita que, como você do reino em pó, manjericão desidratado; orégano; sal.
poderá descobrir, nunca produzirá o mesmo sujeito que
você pretendia criar. Desindentificando-se de tudo que o Modo de fazer:
compõe, ele será sempre e apenas... ele mesmo.
1) Pré-aqueça o forno em temperatura alta.
2) Numa panela pequena, cozinhe as batatas em água
Ingredientes: com um pouco de sal, mas retire-as do fogo antes de cozinha-
rem completamente. Escorra e reserve.
2 colheres (sopa) de cebola picada; 3) Numa frigideira, esquente o azeite. Frite a cebola até
2 colheres (sopa) de alho-poró cortado em fatias finas; dourar; acrescente o alho-poró, o pimentão, as abobrinhas
3 cogumelos grandes frescos cortados em fatias; e os cogumelos. Acrescente os temperos, menos a páprica.
1 pimentão vermelho cortado em tiras; Cozinhe durante uns 5 minutos, mas não deixe os legumes
1 abobrinha verde pequena cortada em fatias; amolecerem demais. Acrescente as batatas e tempere com a
1 abobrinha amarela pequena cortada em fatias; páprica. Junte as azeitonas. Misture cuidadosamente. Retire
3 batatas médias descascadas e cortadas em fatias finas; do fogo.
1 xícara (chá) de peru defumado; Unte com manteiga um pirex ou uma forma de cerâ-
½ xícara (chá) de azeitonas pretas sem caroço cortadas mica refratária e coloque ali os legumes cozidos, achatando
em metades; com uma espátula. Reserve.
2 colheres (sopa) de azeite; Usando velocidade média, misture na batedeira os ovos
3 ovos grandes inteiros e a manteiga (ou a margarina). Junte aos poucos a farinha

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de trigo, o leite, o cream cheese (ou o requeijão cremoso) e o
sal a gosto. Continue batendo para misturar bem. Desligue
a batedeira. Incorpore a esse creme o queijo ralado. Misture
delicadamente.
Cubra completamente com esse creme os legumes cozidos RATOS E URUBUS, LARGUEM MINHA
e colocados no fundo da forma.
FANTASIA* OU CROSS-DRESSING: FANTASIA
Leve para assar em forno pré-aquecido durante 30 ou
40 minutos ou até que cresça e fique dourado. Sirva quente.
DE GÊNERO, FANTASIA DE CLASSE,
FANTASIA DE RAÇA

Hilan Bensusan**

Quando os mortos ou os vindouros necessitarem de uma


estância, escreve Rilke em uma carta de 19241, que re-
fúgio lhes poderia ser mais propício e agradável que o
espaço imaginário? Ali é o outro lado da vida, que é como
o outro lado da lua, aquele que fica sempre escuro, mas
sem o qual, na imagem de outra carta de Rilke2, a lua não
é uma esfera. Ali fica a invenção. Ela faz parte do que há.
Para onde zarpam os delírios produtores, onde há galáxia
* Enredo do desfile de Joãosinho Trinta para a Beija-Flor no ano 1989.
Este texto é também uma celebração de Trinta, que compreendeu a
natureza da fantasia em um desfile de escola de samba. E também ao
desfile de 1989 da Beija-Flor.
** Professor Adjunto da Universidade de Brasília.
1
Carta de Muzot, 11 de agosto de 1924
2
Carta de 6 de janeiro de 1923 (recolhida no Inselalmanach)

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para cada ālam mithālī (cada mundo imaginal), para as ginal. Buraco negro, cavalo d´água, cabelos soltos já que
possibilia – o que está para aquém de tudo o que poderia as coisas transbordam. Fantasia não conta contos de fada
ter sido e foi. O desvio na rota que não foi tomado, a rou- sobre a realidade – dos pais, das mães, das genitálias ou
pa que não foi vestida, o corpo que não foi beatificado, o das represálias –, conta contos de fada sobre a fantasia.
sangue que não foi jorrado. Corbin3 pensa que os mundos Mas a fantasia é a Grande Recusa5, realíssima, ainda que
imaginais são criações, confabulações e são aléns: além desiluminada, verdade vital, ainda que fora da ordem dos
da montanha do Qâf, a fronteira do mundus imaginalis. E fatos. E fatos ela tece, ficto arma facto, a fantasmagoria
o gerado aumenta a realidade – como no poema de Rilke assombra os castelos mesmo quando eles já viraram lu-
no Von der Pilgerschaft (em Das Stundenbuch)4 que diz gares públicos de visitação e compras. Existe já que é in-
para Deus: meu filho és. É o que creio no que crio e o que ventado. Como os casamentos, os rios, os tutus servidos
me salva não é aquilo que me criou e que me tem seguro, com torresmo. E sobem-lhe as fúrias. Hilda Hilst clama
mas aquilo que eu solto em disparada rumo ao que não a Deus6: olha-me a mim, antes que eu morra de águas,
vejo. A teologia da invenção. A fantasia é uma deserção. aguada do que inventei.
E ela tece os véus da realidade um a um, conspiradora, Freud diz que a introdução do princípio de realidade
sonâmbula, esdrúxula, inteira. Vai rumo a ela a corrente soltou uma atividade de fantasiação, de divagação que
das coisas. A fantasia é desertada – ela é posta em exílio, abandona sua dependência dos objetos reais. É prazer.
largada pelos becos do subliminar, higienizada como os Faz uma fenda, enfia uma cunha, solta os lobos. Não é
desejos, posta ao serviço das roldanas instituídas. Ela é que o princípio do prazer não trisca o princípio da rea-
posta para significar para dentro e não para fora. Como lidade, eles se bolinam, se ciscam, se apalpam. Um cos-
com os desertores: eles são perigosos e não quilombolas, tura o outro. Mandar as possibilidades para a terra de
infecciosos e não etnogênicos, maus exemplos e não mu- ninguém – a expressão de Marcuse no Eros & Civiliza-
tações adaptativas. A deserção é especiação: é um mo- tion7 – inaugura um exílio. Um exílio ontogenético tam-
vimento de cindir, de tramar outra clique, outro nicho, 5
Conceito de Whitehead em Science and the Modern World (New
outro arco-íris de miasmas, ontogênese. Imaginário, ima- York, Macmillan, 1926). Citado por Marcuse no capítulo 7 de Eros &
Civilization. Interessante considerer a influência de Whitehead e sua
3
“Mundus Imaginalis, the Imaginary and the Imaginal”. Spring, 1972 filosofia do organismo (hoje mais chamada de filosofia do processo) sobre
pp. 1-19. New York: Analytical Psychology Club of New York, Inc. Marcuse.
4
Das Stundenbuch, edição brasileira: Civilização Brasileira, Rio de 6
Cf. poema XI de Poemas malditos, gozosos e devotos.
Janeiro, 1993, pp. 99-100. 7
Boston: Beacon Press, 1966.

30 31
bém. Vai, pare teus filhos alhures e volta a Tebas. Réduire adoção. Jackie Kay escreveu um romance10 sobre um fi-
l’ imagination à l’esclavage, diz o manifesto surrealista de lho adotivo assimilando que o pai morto, trompetista,
Breton8, c’est se dérober à tout ce qu’on trouve, au fond era uma cis-mulher que havia escolhido ser Joss para ter
de soi, de justice suprême. Só a imaginação dá conta do uma carreira no Jazz. O pai defunto era mulher na ge-
que pode ser e exorciza o interdito terrível. E o manifesto nitália. Nunca nadou comigo, ele... Uma mentira? Uma
diz mais: C’est vraiment à notre fantaisie que nous vivons, adoção. Colman, o filho, sabia que era adotado, mas não
quand nous y sommes. As sociedades secretas. As correntes sabia que Joss havia também adotado em seu corpo uma
subterrâneas. Breton acena para o testamento, essa peça mulher. Identidades são curvas no destino. Tortas. Col-
de legislação para o tempo inventado, a ficção constituin- man entende a adoção. Uma jornalista o persegue, quer
te: eu demando que levem meus restos ao cemitério em a história real de seu pai fêmea. Quer o sensacionalismo
um caminhão de mudança. Que se faça. A investidura. do princípio de realidade. Quer o tribunal da anatomia.
A fantasia reclama seus direitos torcendo os regimes de Colman foge dela: ratos e urubus me larguem. Por que
realidade. A realidade é torção. Fantasia retorcida. Per- a transsexual tem que passar, tem que ser mais mulher
formada quand nous y sommes. Me dizem Valdemar, eu que a cissexual? Ratos e urubus, larguem minha fantasia.
sou Lucia. Me dizem favelado, me visto de bacana. Uma Imitar. Quero ser a mamãe, quero ser o objeto de desejo
camisa listada e saí por aí. Anatomia não é destino. Eco- da mamãe... Fantasia faz o monge. Demora. A fantasia
nomia não é destino. Melanina não é destino. Eu fiz que de quem nasceu para matar, para ser tua, para ser estrela.
fui não fui. Eu fiz que era. Paris is burning.9 Todos se Quand nous y sommes.
travestem: é a terra de ninguém, é a estância no espaço A investidura. O hábito faz o monge, faz o rei, faz
imaginário, a terra do outro lado do arco-íris no meio o escravo, faz a mulher, faz o guarda da esquina. Faz o
de um baile subalterno de New York City. A fantasia é servo e o escravo e faz aparecer o mortal e divino. O há-
bito faz os hábitos, os gestos, os trejeitos. Uma saia faz os
8
Primeiro manifesto, de 1924. Cf, por exemplo, Manifestes du gestos dos joelhos, das coxas, das mãos. Agamben11, em
surréalisme, Paris: Flammarion, 1973.
9
Filme de Jennie Livingston, de 1990 que retrata o mundo dos desfiles 10
Trumpet, Londres: Picador 1998 (Tradução brasileira: São Paulo:
de roupas pelos submundos de Nova Iorque. Paris is burning tem um Record, 2002).
flerte com os desfiles de carnaval: a fissura da fantasia. Porém cada pessoa 11
Refiro-me ao curso de Agamben sobre a vida monástica que teve lugar
cria, monta e inventa sua personagem. Trata-se de um festival de cross- na Universidade de Paris 8 em 2011 e depois recolhido em De la très
dressings de toda sorte. haute pauvreté : règles et forme de vie, Payot & Rivages, Paris, 2011.

32 33
sua investigação da vida monástica, mostra como a in- um ninho, fazer ali um nicho. É um corpo que habita o
vestidura de um monge o tornava parte de uma vida co- hábito. O hábito é uma intervenção no corpo. Julia Ser-
mum e o capacitava a realizar certas performances. Sem rano12 insiste que o feminismo abarca todas as formas
o hábito, não há monge. Não há ritual. Com ele, mesmo de efeminismo. A unha pintada, o vestido de bolinhas,
que o monge deserte por dentro do hábito, há o monge. a bota, o estrogênio, o gesto. Não há que se fazer um
A liturgia se associa a um processo, a um modo de vida. baculejo biológico para saber quem é cis e quem é trans.
O hábito faz o monge que diz: eis aqui a vida que eu Ali não tem um Rubicão. Quem habita é quem adota.
calcei. Eu executo esta liturgia. Uma investidura – minha Quem habita é adotado. Squat. Ocupa, ocupa, ocupa e
vida está investida desta vida. A vida em que eu emprego resiste. O hábito faz o corpo, o cachimbo deixa a boca
minha vida, talvez a bios em que eu emprego minha zoé: torta. A vida por trás da vida é roída pela fantasia. Finjas
à notre fantaisie que nous vivons. A qualidade do batis- que crês, recomenda Pascal13, e crerás. A melhor maneira
mo, ou de qualquer liturgia, não depende da qualidade de fingir alguma coisa, diz Austin14, é sê-la. Notre fantasie
do oficiante, mas da qualidade da investidura: é ela que que nous vivons. Performá-la. Não é uma recomendação
faz a ação, que a executa ex opere operato. Não depende para atuar de acordo com a fantasia, é antes uma outorga
da vida por trás da vida, de quem é o padre por trás da para que o hábito carcoma o corpo, let the dress be in you.
batina, de qual é a zoé, a intenção do gesto executa ape- Mas Agamben também ressalta o que Tomás de Aquino
nas ex opere operantis que não afeta sua validade. Quem vaticinou acerca da liturgia do batismo: a validade do ato
faz o monge é o hábito, não quem o veste. O hábito se é manchada se o oficiante o executar por gozação. Goza-
torna um princípio de realidade por adoção. A fantasia ção. Onde o princípio da realidade? É como quando se
que vivemos. Não irão os ratos e urubus desmantelar o mostra como vestir um vestido, como quando em Pyg-
hábito do monge herege, infiel, descrente e banhado em malion de Bernard Shaw15 o professor Higgins mostra a
pecado. O hábito está protegido dos roedores. Está inves- Liza Doolittle como se portar na alta sociedade e carregar
tido. Consagrado. Eu na vida sou mendigo na folia eu sou
rei. Analogamente, pode-se falar da biologia ou da eco- 12
Whipping Girl: A transsexual woman on sexism and teh scapegoating
of femininity, Berkeley: Seal Press, 2007
nomia por trás do monge, ou do rei, ou da mulher, mas 13
Pensées, publicado originalmente em 1669.
o que se fala não afeta a validade. Uma mulher é quem 14
“Pretending”, artigo de J. L. Austin de 1958. Em Philosophical Papers,
Oxford: Oxford UP, 1970.
habita uma mulher. Habitar é também adotar, fazer ali 15
A peça é de 1912 e o filme, "My fair lady", de George Cukor, de 1964.

34 35
em seu corpo as roupas e os chapéus apropriados a uma sim como roupas tornam possíveis ou mais fáceis certos
fair lady. Liza ainda não está se portando. Higgins está gestos. A investidura produz uma impostura. Visto uma
induzindo a metamorfose. Ela ainda não está em estado minissaia e, pronto, já cruzo as pernas de outro modo e
presencial. Trata-se de um exemplo. Apenas um exemplo. minha barriga já se encolhe personificada. E visto um
Uma representação e não uma apresentação. Um ensaio terno elegante e meus cabelos ganham a dignidade do
técnico, antes da investidura. A diferença está na repre- alto clero, meus gestos se apropriam. O hábito veste em
sentação: o padre estupra a criança e a batiza e o ato é mim, calça em mim. Mas calça em mim, na complexi-
válido; já se ele está de gozação, não. Há um baile de dade do meu corpo vestido. Mais que uma performance,
máscaras: operato, operantis, prazer, realidade, imaginá- uma intervenção. Uma interferência. Meu prazer de ver
rio, imaginal. A complexidade é do baile de máscaras. Es- as pernas que saem da minissaia, a realidade do corpo es-
ther Newton, citada por Butler em Gender Troubles16 , diz tranhado – a anatomia espeta o destino. Quando há uma
que a travesti diz “minha aparência ´externa´ é feminina, representação, há uma imitação? Fazer um batismo por
mas minha essência ´ interna´ é masculina e ao mesmo tem- gozação. Posso latir como um cachorro, mas ainda não se
po simboliza a inversão oposta: “minha aparência ‘externa’ trata de uma presença de mim no hábito do cachorro. De
é masculina, mas minha essência ‘ interna’ é feminina. E um devir. O devir é a metamorfose de Liza Doolittle, não
Butler entende que o travestismo subverte a distinção en- o papel da personagem. Uma investidura. O hábito que
tre os espaços psíquicos internos e externos. Paródia. E é habita. O princípio de realidade incorporado, travestido,
paródia a liturgia – desde que investida. presentificado, posto em liturgia e batizado. E há o prin-
Deleuze e Guattari, em Mille Plateaux17, traçam algu- cípio de realidade rato, urubu e caguete. Faz o baculejo
mas diferenças entre devir e imitar baseados no que de- e encontra a anatomia por trás do destino. Ou a econo-
vir, mas não imitar, interfere nas potências de um corpo mia por trás do destino. Liza travestida da alta sociedade
específico. Devir-cachorro não é latir como o cachorro pode virar desertora e também espiã, e também infiltra-
da rua, mas antes vestir sapatos nos pés e nas mãos e ter da. Veste-se o hábito, faz-se a liturgia. O filme Close-Up
que amarrar o quarto pé com a boca. O hábito produz de Abbas Kiarostami18 documenta o julgamento de um
dificuldades e incapacidades em um corpo específico as- homem que personificou o diretor Mohsen Makhmalbaf
16
London: Routledge, 1990.
17
Paris: Minuit, 1980. 18
Filme de 1990 (título original: Nema-ye Nazdik).

36 37
diante de uma família, apenas por que adotou a fantasia culino com uma mini-saia. Fazê-lo habitar outra roupa.
de Makhmalbaf. Adotou apenas. O homem, Hossein Sa- O hábito é também um elemento que instaura, institui,
bzian, defende seu hábito: um nicho onde ele pudesse ser patrocina um monge, uma mulher, um mendigo, um in-
Makhmalbaf. C’est vraiment à notre fantaisie que nous vi- tocável ou um bacana. E nada subsiste sem patrocínio
vons, quand nous y sommes. Cabe ao tribunal decidir entre – aquela palavra de Heidegger, gestiftet, aquela palavra
o princípio de realidade e o princípio de prazer. A vali- de Etienne Souriau: instauration20 . Instaurar, instituir,
dade da adoção. Da investidura. Como coube a Colman instar. A fantasia é como um hóspede que se acomoda
decidir a identidade do seu pai. A diferença entre devir e ao corpo – mas que faz o corpo se habituar a ele. De
imitar está talvez na controvérsia em torno do velho livro quem é a investidura? Visto a saia porque quero a mu-
de Janice Raymond, The Transsexual Empire: the making lher habitando em mim. Querer morar em uma mulher.
of the she-male19. Ela diz que as mulheres trans são ho- Na sua pele. Habitar aquela pele. Chamam autoginefilia
mens infiltrados que nos imitam para nos violar. São en- dos homens (e das mulheres que se aprontam para, com
ganos, engodos, estratagemas masculinos como cavalos seu apron, para se tornarem mais natural women) que
de Tróia. São imitações sem investidura. Mas onde está querem habitar aquele nicho. A Wikipédia diz sobre um
a investidura? Julia Serrano, por exemplo, diz: elas estão apron: an apron is an outer protective garment that covers
investidas, investiram sua vida em sua efeminização, em primarily the front of the body. O corpo interno e o corpo
seu porte na saia, em seus peitos, em sua neovagina, em externo. A intenção do monge, a intenção do hábito. A
se verem no espelho habitando o corpo de uma mulher. intervenção.
Estaria aqui na biologia o princípio de realidade? Ratos Mas habitar uma pele pode também ser um ato de
e urubus, larguem minha fantasia. As mulheres cis são um arbítrio, de uma Reppublica di Salò. Como no filme
biológicas, as mulheres trans são biológicas. A biologia é de Almodovar: la piel que habito21. Vestir a força o hábito
mutação, adoção, promoção de nicho, adulteração, tra- no monge – fazer o monge a força. Não é sempre que a
vestismo. Há o hábito que se muda com uma cirurgia. intenção precede o gesto. Os corpos estão para jogo, tan-
Não uma representação, uma investidura. to para o jogo de esconde-esconde dos governos nervosos
O hábito é uma incorporação, cross-dressing. Romper centrais – a enteléquia que fica coordenando e animando
alguma fronteira e vestir um corpo habituado ao mas-
20
Cf. Les differents modes d´existence, Paris: PUF, 2009.
19
Nova Iorque: Beacon Press, 1979 21
Filme de 2011.

38 39
o corpo que lhe cabe – quanto para o jogos territoriais poor das cidades americanas. Despiu a carreira, o cartão
de grandes tabuleiros em que os monges e os hábitos são de crédito e a casa própria e foi procurar emprego. Com-
populações inteiras. A moda. Os escravos eunucos. A cas- prar uma experiência, uma incorporação? She came from
tração de meninos para fins líricos, tornados desde jovens Greece she had a thirst for knowledge, she studied sculpture
em corpos com vozes de ersatz-mulheres. As correções de at Saint Martin’s College, that’s where I, caught her eye. She
gênero das populações intersexo, Brenda virando David, told me that her Dad was loaded, I said “In that case I’ ll
David virando Brenda 22 para que nada fique pelo meio do have a rum and coca-cola.” She said “Fine.”and in thirty
caminho. E além dos arbítrios, há os oportunismos. Há seconds time she said “I want to live like common people,
o oportunismo travesti. E há o arbítrio travesti. Vestir o I want to do whatever common people do, I want to sleep
apron para eludir Eros, para sincopar o ritmo da sedução. with common people, I want to sleep with common people,
Para embalar as aparências, aquilo que os olhos vêem e o like you.” Well what else could I do - I said “I’ ll see what I
coração sente. Vestir o esplendor, incorporar o esplendor can do.” I took her to a supermarket, I don’t know why but
no ombro, no gingado, eikón, protótipo, monótipo, este- I had to start it somewhere, so it started there. I said pretend
reótipo. Estereoscopia. Ver o corpo e ver no corpo o que you’ve got no money, she just laughed and said, “Oh you’re
o corpo encorpora. Os medievais falavam do que se vê: o so funny.” I said “yeah? Well I can’t see anyone else smiling
id quo e o id quod: o que se vê e o que se vê no que se vê. in here.24 Mas tem o arbítrio dos ratos, dos urubus, da
Reluziu, é ouro ou lata, formou a grande confusão. O es- fantasia ser só um véu, só uma máscara, e não uma cara:
petáculo precisa de uma vestimenta, de uma fantasia, de But still you’ ll never get it right, cos when you’re laid in bed
uma incorporação. Quem vai com esta roupa? Quem vai at night, watching roaches climb the wall, if you call your
com esta genitália? Mas também quem vai com este salá- Dad he could stop it all. Todas as máscaras caem, ele diz,
rio? Em 1998, Barbara Ehrenreich – ela conta em Nickel apenas as caras ficam – só quem é common people pode
and Dimed23 – embarcou em um cross-dressing do working viver a vida de common people. Mas o hábito tem pode-
res. Às vezes, ele invade, se infiltra pelo corpo, o possui.
22
Cf, sobre o caso, “Doing justice to someone: Sex reassignment and Incorporação é possessão. Como Ernesto Melo Antunes25
allegories of transsexuality”, de J. Butler em Undoing Gender, London:
Routledge, 2004. Consultar também Borges, F e H. Bensusan, "Brenda e outros, combatentes portugueses em África que foram
comendo David", em Breviário de Pornografia Esquizotrans, Brasília:
Ex-Libris, 2010. 24
Partes da letra de Common People da banda Pulp.
23
Nova Iorque: Holt, 2002. 25
1933-1999.

40 41
contagiados por contato com o MPLA. Desertores. Vira- denominador comum. Porque a classe também se fanta-
-casacas. Aqueles que descobrem que cabem perfeitamen- sia. Uma fantasia de classe. Eu na vida sou mendigo na
te naquela imagem. Naquela fantasia. Habitam. Se sen- folia eu sou rei – a fantasia é um uniforme também. Os
tem em casa. Como Quincas Berro d’Água 26 que deixa os ricos, os famosos, os remediados de Nilópolis todos de
hábitos, os trejeitos, os ímpetos de cachaceiro matarem o plumas brancas, reluzentes, bem acabadas, e encardidas.
Joaquim Soares da Cunha, correto funcionário da Mesa Como quando as aparências enganam, nem toda per-
de rendas Estadual que habitava seu corpo. Os corpos es- formance subverte o monge e instaura o mosteiro. Há
tão em disputa: não tem destino, nem na anatomia, nem a investidura. A fantasia às vezes é roída. Mas ela rene-
na certidão de nascimento, nem no berço de ouro, nem gocia. Ela tenta patrocinar outra coisa. O princípio da
na matriz hormonal e nem sequer no maktub das espirais realidade – aquele dos ratos e urubus que não largam a
de ácido desoxiribonucleico. Todo sujeito está sujeito a fantasia – senta-se à mesa com os cross-dressers e trocam
tudo. A intervenção não conhece fronteiras. olhares de quid pro quod. Protesto. Protesto aceito. Mas a
Cross-dressing é também dressing up e dressing down. realidade está no salário, na genitália, na anatomia. Tudo
Vestir-se para além de suas posses, vestir-se para aquém é fantasiável. Tudo pode ser assombrado. A tecnologia
de suas posses. Um mendigo na pele do rei, que se des- da fantasia, uma atuação. Marc Boulet 27, escritor, fez-se
veste, se reveste e sai do armário. Aqueles que largam suas de stalinista na Albânia pré-1991 (antes de sua revolução
casas e vão morar na rua – o voto de pobreza já que voto de veludo), de protestante em Hong-Kong e de dalit na
também é hábito, é começo de hábito. Fingir-se. Fingir- Índia. Com tintura de cabelo e nitrato de prata ao sol,
-se mais ou fingir-se menos. Quand nous y sommes. As ele escureceu a pele até se tornar um intocável. E, mo-
escolas, os empregos, os presídios e outras mercearias da rando na rua, se tornou um cross-dresser de uma outra
disciplina impõem ao seu pessoal uniformes. Que não se raça – vestiu a veste dos dalit, a camisa dos dalits, os pés
vistam, nós os vestimos. O uniforme é corpo conquista- descalços dos dalits. E vivendo na rua como um deles,
do. Mas é também um termo médio entre aqueles que se desprezado e nunca tocado pelos mais brancos, ele se tra-
abaixam até o uniforme e aqueles que economizam seus vestiu de dalit. Na venda, o troco não era mais entregue
vinténs para comprar a gravata, o tailleur, a mochila. Um na sua mão. Vagante. Dress down: o viajante a que não
26
Personagem de romance de Jorge Amado, A morte e a morte de Quincas 27
Cf. Dans la peau d´um intouchable, Paris: Seuil, 1994. Tradução
Berro d´Água, publicado originalmente na revista Senhor, 1959. brasileira: Na pele de um Dalit, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

42 43
quer ser o branco europeu na Índia. Ele quer ser como
os dalits na Índia, como os stalinistas em Tirana. Ele
quer se infiltrar, ter sua pele enegrecida, ser um negro
no hábito, e ver o hábito descendo pelo gargalo dos seus
músculos. E, de outro lado, o embranquecimento. Que
é areia na farofa. O investimento de fortunas, de famas, FILOSOFIA BRASILEIRA?
de gerações sucessivas no embranquecimento – a química
que alisa os cabelos, o nariz fino de Michael Jackson, o
pó de arroz. Pó de arroz e nitrato de prata. Testosterona Imaculada Kangussu*
em gel, progesterona em cápsulas. A química da fantasia
é a química da conspiração. Identidade é confabulação.
Nada está à prova de confabulação. Nada está à prova
de fantasia. Hormônio não é destino. Melanina não é “Tupi or not tupi”
Oswald de Andrade
destino. Nitrato de prata não é destino. Fantasie-se, mas
teus genes, teus neurotransmissores, tua flora íntima vão
pelejar para te fantasiar também, eles também vêm pra Proponho, neste texto, encarar a possibilidade (e também
avenida. Te põem rugas, te dobram e te desdobram, te seu contrário) de pensarmos uma filosofia brasileira. As-
cobrem de anos. sim como existe um modo bastante próprio de abordar
E em todo caso, a fantasia é incorporação, ela adere, as questões filosóficas em alguns países, o que nos leva
os genes que ficam escondidos por trás dos panos, os pa- a conceber – através das diferenças evidentes – a exis-
nos por baixo da roupa, em camadas de máscaras quase tência de uma filosofia francesa, de uma filosofia alemã,
sem fundo. O véu da roupa, da pele, dos ossos. Nada inglesa, italiana, e, depois da globalização, de uma filoso-
além das camadas. Camadas como as camadas geológicas fia japonesa, árabe, e de outras nações cujas culturas são
que vão até o lado escuro da lua. O espaço imaginário. As
* Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e lecio-
camadas se sobrepõem inventando uma sobre a outra – e na na Universidade Federal de Ouro Preto. É autora de Sobre Eros (Scrip-
quem haverá de fazer o inventário das invenções? É que o tum Editora, Belo Horizonte, 2007) e Leis da Liberdade (Edições Loyola,
São Paulo, 2008). Realizou pesquisa de pós-doutorado sobre “Phantasia e
princípio de realidade ama esconder-se. Razão” na New York University, como visiting scholar.

44 45
distintas da judaico-cristã; parece-me pertinente a ques- (bem) escolhido para esse encontro e pela familiaridade
tão: as singularidades de nosso país podem produzir um com o território1, escolhi como exemplo de capacidade
pensamento original ao ponto de configurar um “modo criadora original Oscar Niemeyer, responsável pela volta
de pensar” brasileiro? E ainda, encontramo-nos capazes, das curvas e da sinuosidade na arquitetura – com uma
com nossa formação filosófica, de sermos intérpretes do mestria capaz de reformular a sensibilidade e a perspec-
Brasil? tiva de um dos grandes defensores da funcionalidade, Le
Para tratar da pergunta, abordaremos três tópicos, os Corbusier. A relação entre estética e crítica fica evidente
dois primeiros ligados a diagnósticos históricos e o último nos processos construtivos propostos por Niemeyer. Em
a um possível devir. São eles: a excelência estética, inespe- suas palavras: “sobre minhas idéias políticas direi que fui
rada em um país periférico, o espírito desterritorializado sempre um revoltado”,2 e o enorme número de trabalhos
que faz parte de nossa história, e as possíveis saídas. por ele realizados pode demonstrar, “como é possível atu-
ar na profissão sem se omitir, mantendo-se politicamente
Excelência estética engajado, como se diz”.3 Além do engajamento político,
seus projetos desafiam as limitações funcionalistas (e o
lema “forma é função”), a imposição de sistemas cons-
Julgamos esse tópico importante na medida em que
trutivos, e, na época em que era exaltada a idéia da “má-
pode servir de índice da capacidade criadora do genius
quina de morar” (Bauhaus, construtivismo, Mies van der
loci. Vale destacar o caráter original das obras de artistas
Rohe, Frank Lloyd Wright e, sobretudo, Le Corbusier),
brasileiros que transformaram o cenário internacional de
Niemeyer prefere recordar as “obras do passado tão cheias
suas respectivas áreas. Dizemos original tanto pelo fato
de invenção e lirismo [...] os velhos períodos, quando o
de produzirem formas novas e inéditas, quanto por esta-
arquiteto penetrava, corajoso, no caminho do sonho e
rem vinculadas a determinadas e evidentes origens.
da fantasia”4; e (re)indroduz a curva e a sinuosidade em
Mesmo consciente de que o artista brasileiro cuja obra
pode ser considerada a mais influente no mundo contem-
1
O texto foi escrito para o VII Encontro do GT de Estética realizado
no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, projetado por Oscar
porâneo é Tom Jobim (a refinadíssima e easy-listening Niemeyer. A autora é graduada em Arquitetura e Urbanismo.
batida da bossa nova consegue ser onipresente nos high
2
Niemeyer, oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro: Avenir
Ed., 1978; p.12.
top places do mundo global contemporâneo), pelo lugar 3
Ibidem, p.10.
4
Ibidem, p.19 e 20, respectivamente.

46 47
novas formas permitidas pelo concreto armado, a nova
matéria que provoca novos modos de formar. Essa ou-
sadia é fundamental na definição de uma linguagem ar-
quitetônica conhecida internacionalmente como “Estilo
Brasileiro”. O arquiteto conta sua história:
Com a arquitetura contemporânea vitoriosa, voltei-me
inteiramente contra o funcionalismo, desejoso de vê-la
integrada na técnica que surgira e juntas caminhando
pelo campo da beleza e da poesia. E essa idéia passou a
dominar-me, como uma deliberação interior irreprimí-
vel, decorrente talvez de antigas lembranças, das igrejas
de Minas Gerais, das mulheres belas e sensuais, das mon-
tanhas recortadas esculturais e inesquecíveis de meu país.
“Oscar, você tem as montanhas do Rio dentro dos olhos”,
foi o que um dia ouvi de Le Corbusier.5

A idéia que o domina “como uma deliberação interior


irresistível” realiza-se na prática, leva sonho, fantasia e
imaginação a emergirem como realidade, tomarem corpo
no mundo dos objetos, ultrapassando assim a causalidade
lógica e funcional, deslocando o sentido da função para
o significante, para a forma, para o espaço da imagem.
A “deliberação interior irresistível”, entendida como
“vontade”, no sentido filosófico do termo, i.e, como “prin-
cípio das realidades e como motor de toda transformação”6,
pode também ser percebida na obra de alguns grandes ar-

5
Ibidem, p.22.
6
FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía. Madrid: Alianza
Editorial, 1985; p.771.

48
51
tistas brasileiros que ignoraram estilos, leis formais, e outros
obstáculos objetivos, historicamente presentes no tempo de
suas vidas, em uma espécie de voluntarismo audacioso ali-
mentado por uma “idéia formal”, se for possível juntar es-
sas duas palavras. Penso em Glauber Rocha, em Guimarães
Rosa, em Tom Jobim, que transformaram paradigmas ao
atualizar a eficácia da forma radical, ouso dizer, para além
do conteúdo. A quem interessariam os míticos faroestes ca-
boclos, as escatológicas e quase sempre caladas paixões dos
sertanejos, o balanço das ondas e das garotas de Ipanema,
salvo pelo movimento de transformar forma e ritmo em
idéias constitutivas de novas molduras?
Ao contrário dessa vontade de mergulhar nas próprias
raízes, tão bem sucedida no caso dos artistas mencionados,
o sentimento mais compartilhado pelo “povo brasileiro” foi
percebido no desejo de substituí-las por outras, de fugir da
própria origem (“três raças tristes”, conforme o poeta). Se
qualquer criação original inicia-se como negação, i.e,
como essencialmente crítica, o simples fato de a questão
relativa à originalidade ser tão raramente proposta, con-
forme observa Antonio Cândido, “revela que, nas cama-

52 53
das profundas da criação (as que envolvem a escolha dos Em Minha formação (1900), de Joaquim Nabuco,
instrumentos expressivos) sempre reconhecemos como pode-se ler um juízo mais subjetivo, que confirma essa
natural a nossa inevitável dependência”.7 posição: “as paisagens todas do Novo Mundo, a flores-
ta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para
Espírito desterrado mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de
Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do
Conforme aprendemos com os intérpretes do Brasil, velho Louvre”. E mais recentemente, em carta a Mario de
o desejo de fugir de nossa própria posição gera uma alie- Andrade, Carlos Drummond, também de Andrade, es-
nação específica – a do desterro. No conhecido primeiro creveu: “sou hereditariamente europeu, ou antes: francês
parágrafo de Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda [...] agora como acho indecente continuar a ser francês no
registra: Brasil, tenho que renunciar à única tradição verdadeira-
mente respeitável para mim, a tradição francesa. Tenho
A tentativa de implantação da cultura européia em extenso que resignar-me a ser indígena entre os indígenas sem ilu-
território, dotado de condições naturais, se não adversas,
largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens sões”. Mario responde mordaz: “enquanto o brasileiro não
da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em se abrasileirar é um selvagem”.
conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas Nas peripécias dos trajetos históricos que nos levaram
de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando
em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável a ser o que somos, o sentimento de desterro parece confi-
e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Po- gurar nossa alienação específica. A introjeção do desterro
demos construir obras excelentes, enriquecer nossa huma- e da dependência, como “destino e vocação”, foi muito
nidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o
tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o bem diagnosticada, na década de 60, por Luis Washing-
fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece partici- ton Vita:
par de um sistema de evolução próprio de outro clima e de
outra paisagem.8 Cumprindo seu destino e vocação, o pensamento brasilei-
ro, mais do que criativo, é assimilativo das ideias alheias
e, ao invés de abrir rumos novos, limita-se a assimilar e a
7
Cândido, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento”, em
Argumento. São Paulo: Paz e Terra, out., 1973; p.8. incorporar o que vem de fora. Daí a história da filosofia
8
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil, em Intérpretes do no Brasil ser, em geral, uma história da penetração do
Brasil, volume 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002; p.945, grifo pensamento alheio nos recessos de nossa vida especula-
meu. tiva, ser, em suma, a narrativa do grau de compreensão,

54 55
da nossa capacidade de assimilação e nosso quociente de Por outro lado, vale lembrar que, tanto nas artes quan-
sensibilidade espiritual.9 to nas teorias, houve tentativas de reterritorializar esse es-
pírito desterrado e até mesmo de torná-lo orgulhoso de
Intérpretes e divulgadores, no máximo. Na mesma dé- suas raízes. Antes dos cronologicamente anteriores e mais
cada, Vilém Flusser publica o artigo “Há filosofia no Brasil? barulhentos movimentos da Semana de 22 (90 anos neste
Demonstração em três pensadores expressivos”, cujo argu- ano), vale lembrar a magnífica Visão do Paraíso que Sergio
mento vai em outra direção: o filósofo considera que a filo- Buarque de Holanda publica, em 1959. Vê-se nessa obra
sofia distingue-se de outras formas de saber por não possuir até onde muitos dos fatores que presidiram a ocupação do
geografia nem história e ser “independente do tempo e do Novo Mundo, pelos europeus, podem ser organizados,
espaço”. Sendo assim, poder-se-ia dizer que há filosofia no “num esquema altamente fecundo”11, também em torno
Brasil porque filosofamos, como expressam, na opinião de da imagem fantástica do Éden, tal como esta encontrava-
Flusser, as obras de Vicente Ferreira da Silva (estética exis- -se difundida na era dos grandes descobrimentos. Com
tencialista), Leônidas Hegenberg (gnoseologia positivista) a expansão marítima portuguesa, as terras paradisíacas
e Miguel Reale (ética culturalista). De todo modo, concor- voltaram ao imaginário dos navegantes, e o Éden “de-
demos ou não com a posição do autor, são bonitas (tanto buxado por inúmeros cartógrafos, afincadamente busca-
quanto vagas) as palavras finais de um texto posterior onde do pelos viajantes e peregrinos, pareceu descortinar-se,
a questão foi por ele recolocada: “há filosofia no Brasil? Há, enfim, aos primeiros contatos dos brancos com o novo
e haverá, se quisermos e se pudermos”.10 continente”, escreve Holanda, e prossegue:
O espírito desterrado talvez possa criar, a partir – apesar
e por causa – desse particular modo de ser, novos horizontes Não admira se, em contraste com o antigo cenário fami-
filosóficos. liar de paisagens decrépitas e homens afanosos, sempre a
debater-se contra uma áspera pobreza, a primavera inces-
sante das terras recém-descobertas devesse surgir a seus
9
Vita, Washington luis. Escorço de Filosofia no Brasil. Coimbra: primeiros visitantes como uma cópia do Éden. Enquanto
Atlântida, 1964; p.9. no Velho Mundo a natureza avaramente regateava suas
10
Flusser, Vilém. “Há filosofia no Brasil? Diálogo de Nelson dádivas, repartindo-as por estações e só beneficiando os
Nogueira Saldanha e Vilém Fluser”, em Revista Brasileira de Filosofia. previdentes, os diligentes, os pacientes, no paraíso ame-
São Paulo, n.67, jul/ago/set, 1967, p.304. O texto anteriormente
mencionado, “Há filosofia no Brasil? Demonstração em três pensadores
expressivos”, foi publicado em número anterior da mesma revista: n.65, 11
HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos
jan/fev/mar, 1967. no descobrimento e na colonização do Brasil; p.ix.

56 57
ricano ela se entregava de imediato em sua plenitude, rio”. E mais: “Já tínhamos o communismo. Já tínhamos a
sem a dura necessidade – sinal de imperfeição – de ter de língua surrealista. A edade do ouro [...] A magia e a vida.
apelar para o trabalho dos homens.12
Tínhamos a relação dos bens physicos, dos bens moraes,
dos bens dignarios. E sabiamos transpor o mysterio e a
O fantasioso tema paradisíaco imprimiu traços du-
morte com o auxilio de algumas formas grammaticaes”.14
radouros à colonização da América Latina: em sensível
O autor do manifesto e os participantes da chamada “Se-
contraste com a América Inglesa, onde os primeiros co-
mana de 22” assinaram embaixo da afirmação de que
lonizadores pretendiam lutar contra os rigores da terra e
“Antes dos portuguezes descobrirem o Brasil, o Brasil
construir uma comunidade abençoada, aqui eles chega-
tinha descoberto a felicidade [...] O mundo não datado.
ram com a esperança de encontrar um paraíso que a eles
Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César”.15 O riso, a
se oferecesse como um dom gratuito, observa o autor. O
ironia, o excesso, a zombaria, que saltam dessas passa-
efeito de os sectários calvinistas e de os católicos ibéricos
gens, mesmo quando “irracionais” (“nunca admitimos
serem movidos por sentimentos diversos está presente até
o nascimento da lógica entre nós”), alcançam eficácia
hoje nos “comportamentos contrastantes de seus netos
crítica e fazem surgir uma auto-imagem própria, talvez
nestes continentes”.13
inapropriada...
Antes desse texto seminal, a visão paradisíaca do Bra-
sil aparece exuberante – “alegria é a prova dos nove” -
Possíveis saídas
no “Manifesto Antropófago” (maio de 1928, ano 347 da
deglutição do Bispo Sardinha) de Oswald de Andrade,
onde, “contra todos os importadores de consciência enla- Se considerarmos toda criação como um fenômeno
tada”, afirma-se que “nunca soubemos o que era urbano, original cujas origens nunca podem ser inteiramente ex-
suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no ma- plicadas - nada parece poder explicar completamente a
ppa mundi do Brasil. Uma consciência participante, uma origem de uma forma de pensar – podemos perceber a
rhythmica religiosa [...] nunca fomos cathechisados. Fize- impossibilidade de se herdar uma filosofia alheia, uma
mos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Impé- herança filosófica: cada nova situação histórica é posta

14
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago”, em Revista de
12
Ibidem, p.x. Antropofagia, ano 1, número 1. São Paulo: maio de 1928; p.3.
13
Ibidem, p.xiv. 15
Ibidem, p.7.

58 59
por um ato criador. O novo seria apropriarmo-nos de as múltiplas narrativas de seu antagonismo próprio – e
nosso passado recalcado e reprimido (considerando aqui universal – ligado ao modo como toda a multiplicidade
a posição “ufanista” como minoritária, e tida como “alu- dos mundos encontra-se encaixada no sistema capitalis-
cinada”), e olharmos criticamente tanto as condições ex- ta, relegando esse aspecto universal à consideração de ser
ternas e internas que impediram essa apropriação, quanto apenas mais uma subespécie histórica. Descrevendo o
o fascínio pelo que vem dos, até agora, países vencedores. movimento da modernidade, Jameson escreve:
Para apresentar essa característica própria sem cair na
relativização absoluta típica da chamada pós-moderni- Agora todo mundo sabe a fórmula: isso significa que pode
haver modernidade para todo mundo, diferentes do mo-
dade, desejo manter essa posição pari passu com a idéia, delo anglo-saxão standard ou hegemônico. O que quer
aqui apresentada a partir de Flusser, da universalidade da que você não aprecie neste, inclusive a posição subalterna
filosofia, que se distingue da maioria das outras discipli- na qual ele te deixa, pode ser apagado pela noção tranqui-
lizadora e “cultural” de que você pode moldar (fashion)
nas por não possuir geografia nem história e ser “inde- sua própria modernidade diferentemente, de modo que
pendente do tempo e do espaço”. pode haver uma espécie latino-americana, ou uma espé-
Diante do relativismo pós-moderno e da conseqüente cie indiana, ou uma espécie africana, e assim por diante...
mas isto é neglicenciar o outro sentido fundamental da
multiplicidade irredutível de diversos mundos, cada qual modernidade que é o do próprio capitalismo mundial.16
sustentado por jogos de linguagens, visões, tradições e
valores específicos, cada qual se configurando como a Sem desconsiderar as diferenças, trata-se de perceber
narrativa que seus participantes adotam de si mesmo, a universalidade – deixada fora da cena, obscena portan-
sem uma linguagem comum a estes mundos, o proble- to – do próprio capital. Vemos tudo, o campo da reali-
ma da filosofia é como estabelecer algo que permaneça dade, os pedaços de mundo, através de uma matriz de
o mesmo em todos esses mundos – ou visões de mun- inteligibilidade que considera alguns fatores – com pesos
do – possíveis. Entretanto, esse recurso à multiplicação e medidas diferentes – e deixa outros de fora. Essa matriz
parece falso, menos pelo fato de não reconhecer nada pode ser vista como uma espécie de moldura que nos dá a
em comum entre as multiplicidades e mais pelo fato de a forma a objetividade. Pensar uma filosofia brasileira pode
multiplicação funcionar como negação do antagonismo parecer a proposta de uma moldura brasileira, dentre ou-
inerente à todas essas visões: em outras palavras, a fal-
JAMESON, Fredric. A Singular Modernity. New York, London:
16
sidade da multiplicação reside no fato de que ela liberta Verso, 2002; p.12.

60 61
tras, no bazar posmoderno. No momento atual, a dese- A importância de pensarmos uma filosofia brasileira
jada universalidade – que o capitalismo encarna – pode – seja considerando a existência de um modo de pensar
ser encontrada nessa percepção da existência de molduras próprio (que por sua vez pode ser ufanista ou desterrado),
simbólicas singulares, que a mera troca de molduras não seja considerando o Brasil como objeto – faz parte de um
resolve: perceber o limite da moldura e, mais ainda, o universo mais amplo onde, por um lado, as coordena-
que cria esse limite é o fundamental. Há uma simetria das simbólicas organizadoras da chamada “realidade” são
em trocar uma moldura por outra que inexiste entre (1) definidas em sua positividade pela regência quase hege-
uma forma de moldura e (2) a reflexão sobre a existên- mônica do capital; e por outro lado, a reflexão crítica re-
cia dessa moldura. Se na primeira temos uma percepção vela os limites (e a necessidade) de qualquer moldura, pa-
distorcida, na segunda podemos perceber a existência drão de inteligibilidade, paradigma, ideologia em suma.
da distorção criada pelos limites de qualquer moldura – Quando se deixa de lado essa dupla universalidade – do
sem as quais a inteligibilidade torna-se impossível e que sistema capitalista e dos limites da inteligibilidade (tendo
são, por isso, indispensáveis. De modo que a percepção em vista a finitude dos padrões ideológicos) – a reflexão
da distorção, para ir adiante, ao invés de substituir uma permanece cega aos fundamentos (mesmo que simbóli-
moldura por outra “mais correta” talvez ganhe mais se cos, no primeiro caso) do sentido.
for capaz de movimentar-se entre elas de modo a incluir
todas as obscenidades, o que já foi chamado de “parte da
não-parte”, o que, sistematicamente, é deixado fora de Bibliografia
cena, i.e, a parcialidade da moldura. Trata-se não de ver
as coisas de um ponto de vista próprio ou do ponto de ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropofago”, em Revis-
vista de outro, e sim de perceber a realidade que é exposta ta de Antropofagia, ano 1, número 1. São Paulo: maio de 1928.
através da diferença existente entre os dois. Em um an- Cândido, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento”, em
tagonismo irreconciliável, nenhuma das posições possui Argumento. São Paulo: Paz e Terra, out., 1973.
densidade substancial em si mesma. A verdade é o salto
FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía. Madrid:
sobre o vazio que separa os antagonistas, sobre o abismo Alianza Editorial, 1985.
que isola perspectivas distintas, percebidos – vazio e abis-
mo – apenas no movimento de ultrapassá-los. HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil, em Intérpre-

62 63
tes do Brasil, volume 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
______. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento
e na colonização do Brasil.
JAMESON, Fredric. A Singular Modernity. New York, Lon-
don: Verso, 2002.
ESBOÇO DE ANÁLISE DE UM
Niemeyer, oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro: AFORISMO DE GUIMARÃES ROSA*
Avenir Ed., 1978.
Flusser, Vilém. “Há filosofia no Brasil? Demonstração em Eduardo Viveiros de Castro**
três pensadores expressivos”, em Revista Brasileira de Filosofia.
São Paulo, n.65, jan/fev/mar, 1967.
______. “Há filosofia no Brasil? Diálogo de Nelson Nogueira
Saldanha e Vilém Fluser”, em Revista Brasileira de Filosofia.
São Paulo, n.67, jul/ago/set, 1967.
Vita, Washington luis. Escorço de Filosofia no Brasil. Coim-
bra: Atlântida, 1964. “A vida é nunca e onde”.1 O que nos propomos a demons-
trar é a hipótese de que este enunciado se desenha como
reverso de um virtual “A vida é aqui e agora”, cuja perti-
nência como construção assenta numa tradição – numa
mitologia – não mais popular, mas letrada. Em outras
palavras, procuraremos reconstituir a relação de inversão
assimétrica que o “aforismo” de G. Rosa estabelece com o
* Agradecemos o autor por nos conceder a permissão de reproduzir
este artigo, originalmente publicado em "A Metamorfose do Silêncio",
Org. Luiz Lima, Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.
** Etnólogo americanista, com experiência de pesquisa na Amazônia.
Professor titular de antropologia social na UFRJ.
1
ROSA, Guimarães. “João Porém, o Criador de Perus”. In: Tutaméia,
Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

64 65
enunciado índice de uma determinada problemática ide- lor apenas de referência). A transformação entre os dois
ológica. Enunciado este que, atualizando uma estrutura enunciados se faz, então:
equilibrada e, ao nível da mensagem, confinando o sen-
tido no presente pontual da consciência, termina dissol- “A vida é aqui e agora”:
vido, após a química rosiana, num espaço aberto e num [Fonde] + [Fquando]: termo particular central (positivo) +
antitempo que, tensos, apontam para o lugar da falta. termo particular central (positivo).
*** “A vida é nunca e onde”:

Deixando-se de lado o tema comum, sobre o qual se [Fquando] + [Fonde]: termo geral negativo + termo aberto.
estabelece a paródia de Guimarães (“A vida é...”), traba-
lharemos no âmbito da armadura e do código. Assim, Assim, o enunciado rosiano se constrói sobre duas meto-
construa-se o quando de indicadores espaço-temporais: nímias quanto ao enunciado-base, mas, em seu conjunto,
inverte metaforicamente o sentido deste último. O que
QUANDO ONDE nos indica, como princípio gerador da paródia, uma rela-
sempre "em toda parte" ção metonímica entre textos e metafórica entre contextos
antes agora depois "aquém" aqui "além", alhures (contexto, entenda-se aqui, num sentido amplo, diferente
nunca nenhures
do atribuído acima às codificações espaço-temporais do
enunciado). Isto é, uma relação de contiguidade textual
(ao nível da armadura e do código) e uma substituição-
-inversão de contextos (ao nível da mensagem).
Considere-se os termos “Quando” e “Onde” como codi-
ficações ou contextos temporal e espacial, e represente-se ***
por: [Fquando] e [Fonde]. Considere-se os termos “antes”,
“agora”, “depois”, e “aquém”, “aqui” e “além” como ter- Esta conclusão, entretanto, se nos revela demasiado sim-
mos particulares. E os termos “sempre”, “nunca”, “em plista. A distinção radical entre código e mensagem, en-
toda parte” e “nenhures” como termos gerais. (A escolha tre metonímia e metáfora, não deixa ver como interagem
dos termos não observa nenhum critério especial, tem va- as instâncias semiológicas indicadas acima. Com efeito,

66 67
é a assimetria da transformação rosiana que, efetuando [Fx(a) : Fy(b) ~_ Fx(b) : F-a(y)]
uma espécie de curto-circuito entre o código e a mensa-
na qual, dois termos a e b sendo dados simultaneamen-
gem, sobre uma torção na armadura, possibilita o resul- te do mesmo modo que duas funções x e y, afirma-se
tado parodístico (sem esquecermos ainda que o contexto que existe uma relação de equivalência entre duas situ-
é uma instância textual). Tal assimetria se manifesta sob ações, definidas respectivamente por uma inversão de
termos e de relações, sob duas condições: [1] que um dos
dois aspectos: termos seja substituído por seu contrário (na expressão
acima: a e –a); [2] que uma inversão correlativa se pro-
1) A ordem dos contextos é invertido: [Fonde] + [Fquando] duza entre o valor de função e o valor de termo de dois
no enunciado hipotético (“A vida é aqui e agora”), e elementos (acima: y e a ).”2
[Fquando] + [Fonde] no aforismo de Rosa.
Compare-se a fórmula lévi-straussiana com a equação:
2) No eixo dos indicadores espaciais, o contexto vira
[Fonde(aqui) : Fquando(agora) → Fquando(nunca) : Fonde(onde)],
termo. Realmente, tinha-se [Fonde (aqui)] e passou-se a
ter [Fonde (onde)]. que representa a relação de transformação entre os dois
*** enunciados. Para o ajuste e superposição desta equação
com a fórmula canônica, leve-se em conta:
Ora, esta transformação do contexto em termo nos
traz imediatamente à memória a passagem da Antropo- 1) A tradução para a notação lévi-straussiana da equa-
logia Estrutural em que Lévi-Strauss enuncia a “fórmula ção proposta seria: [Fx(a) : Fy(b) → Fy(-b) : Fx(x)], que é
canônica”, bastante conhecida por todos aqueles que se evidentemente diferente da fórmula canônica. Mas, ve-
interessam pela análise estrutural da narrativa: jamos:
a) A transformação do contexto espacial (“Onde”) em ter-
mo implica a exclusão do termo particular central “aqui”,
“(...) Quaisquer que sejam as precisões e modificações
carecidas pela fórmula abaixo, estamos desde logo 2
Esta passagem está no artigo “A Estrutura dos Mitos”, p.251, In: An-
convencidos de que todo mito (considerado como o tropologia Estrutural, R. de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. Lá, em vez
conjunto de suas variantes) é redutível a uma relação da notação (-a) aqui utilizada, lê-se a notação (a-1), que dispensamos por
canônica do tipo: comodidade de apresentação. Sublinhe-se a equivalência das notações.
Acrescente-se que nossa acepção de “contexto” corresponde à de “fun-
ção” na passagem citada.

68 69
que é negado. O que sugere que seu contrário se tenha trans- avessas, o latim “hic et nunc” (aqui e agora), a homofonia
formado em contexto. Teríamos então: [F-aqui(onde)]. E já fi- dos significantes nunca e nunc recobrindo uma comple-
zéramos acima, facilmente: ta oposição de significados (nunca: termo geral negativo;
nunc-agora: termo particular positivo). Assim, a inversão
[Fquando(nunca)] = [Fquando(-agora)] = [Fy(-b)]. da ordem dos contextos supre o lugar da contextualização
trocada sofrida pelos termos na transformação canônica.
A equação proposta apresenta-se:
2) Se o termo “nunca” nega metonimicamente o ter-
[Fonde(aqui) : Fquando (agora) → Fquando (-agora) : F-aqui(onde)]. mo “agora”, o faz segundo um princípio de equilíbrio,
por simples inversão homogênea – ambos os termos são
Ou seja: “fechados”; ver a expressão “agora ou nunca”. Mas a ne-
gação, ainda metonímica, do termo “aqui” pelo termo
[Fx(a) : Fy(b) → Fy(-b) : F-a(x)] “onde” é assimétrica: como vimos, o contexto (termo
aberto) vira termo, o que não ocorria no outro caso. É
b) O que permanece de irredutível nesta equação
possível pensar que essa inversão com assimetria, que,
quanto à fórmula canônica [Fx(a) : Fy(b) ~_ Fx(b) : F-a(y)]
juntamente com a inversão da ordem dos contextos, afeta
deve-se a esta última indicar a contextualização trocada,
a relação global do aforismo rosiano com o enunciado-
ou melhor, visto que um dos termos passa a contexto e
-base, está diretamente ligada à passagem das duas me-
vice-versa, uma combinação diferente dos pares termo-
tonímias parciais ao efeito metafórico-parodístico total
-contexto (|a| : |x|, |b| : |y| : : |b| : |x|, |y| : |a|). Mas esta
– a fórmula canônica de Lévi-Strauss não ilustra funda-
diferença poderá ser reduzida se se considerar, na relação
mentalmente a relação entre as incidências metafórica e
de transformação entre os dois aforismos, a ordem dos
metonímica sobre o discurso?3
contextos como contexto. Isto se justifica na medida em que
3) Essa inversão com assimetria é tematizada em ou-
a expressão “aqui e agora” está cristalizada nesta ordem
tra passagem de Lévi-Strauss sobre a relação canônica:
(espaço + tempo), e que a inversão rosiana da ordem dos
“(...) em equilíbrio sobre um eixo, o grupo manifesta seu
contextos é significativa para o efeito parodístico. Levan-
te-se a hipótese de que a expressão “nunca e onde” nega, 3
Cf. Pierre Maranda e E. Kongäs Maranda. Structural Models in Folk-
lore and Transformational Essays, p. 28 (Paris: Mouton, 1971). A nega-
tomando-a de trás para diante como se fora um eco às ção “aqui-onde” lembra-nos a metonímia “com um matiz vagamente
metafórico” de que fala Jakobson a respeito da poesia.

70 71
desequilíbrio sobre um outro eixo. Essa pressão inerente Tudo o que foi dito aqui pretendeu esboçar algu-
ao pensamento mítico preserva seu dinamismo (...) De mas hipóteses gerais sobre a relação paródia-objeto, bem
direito, se não de fato, o mito não possui inércia.”4 como mostrar a aplicabilidade da fórmula canônica de
E transcrevemos essa passagem para sublinhar uma Lévi-Strauss fora de seu domínio original. Nada, eviden-
diferença irredutível entre a fórmula canônica de Lévi- temente, serviu para acrescentar algo à compreensão da
-Strauss e as transformações do aforismo de G. Rosa aqui obra de Guimarães Rosa. Para isto seria preciso que se
propostas: entre os mitos, toda transformação por inver- pusesse em jogo todo o aforismo de Rosa (“A vida é nunca
são assimétrica é recíproca – ambos os pólos da trans- e onde”), ligando-o ao conjunto de sua obra. Indicaremos
formação são desequilibrados –; mas no caso da relação algumas entradas possíveis, como por exemplo: confron-
entre discurso de representação, literário, e discurso de tar a concepção rosiana da vida expressa neste aforismo
reduplicação ideológico (ou, de qualquer modo, na rela- com a concepção rosiana da arte, fortemente marcada
ção entre paródia e discurso-objeto), o desequilíbrio está pelo projeto utópico de Rosa (que marca também uma
inteiramente na relação singular que funda o discurso concepção da vida e da natureza, onde o “nunca e onde”
da representação: o discurso ideológico é, por estrutu- dá lugar ao sempre, à perenidade).6 Projeto utópico este
ra, equilibrado, simétrico – lógico, dado que existe para que indicará a penetração do ideológico no interior do
ocultar a contradição, ou reduzi-la. Ao contrário de recí- discurso literário – podendo-se ver, assim, que a não-
procas, as relações entre discurso literário e discurso ideo- -reciprocidade entre os dois tipos de discurso não implica
lógico são presididas pela não-reciprocidade absoluta: do absolutamente uma impossibilidade de coexistência.
primeiro para o segundo, assistimos a um movimento de
crítica, desequilíbrio, tensão – invenção; do segundo para
o primeiro, o que se verifica é: reequilibramento, apazi-
guamento, apaziguamento, diluição – repressão.5

4
Lévi-Strauss, Du Miel aux Cendres, p. 211 (Paris, Plon, 1967).
5
Observe-se que o sinal de equivalência ( ~_ ) da fórmula canônica foi
substituído, na transformação rosiana, pelo sinal de transformação
(→). Isto decorre precisamente da não-reciprocidade da relação paró-
dia-objeto, isto é, da não-“equivalência entre duas situações”, de que 6
Cf. LIMA, Luiz (org). A Metamorfose do Silêncio, Cap. V. Rio de
nos falava Lévi-Strauss na passagem da Antropologia Estrutural citada. Janeiro. Eldorado, 1975.

72 73
ENTRELINHAS DA VIDA
CONCRETA

Horácio Ferreira

LEGENDAS:
75

vida morte férias regulares


76 77
o primeiro contato com tal obra foi o fato de Saramago
descrever uma cegueira, mas não uma cegueira qualquer.
Falta de luz, escuridão, trevas, todas são palavras as-
sociadas à condição concreta ou metafórica de cegar-se.
Em consonância com essa ideia de que a cegueira está re-
lacionada com a pouca quantidade de luz que penetra os
VER PARA NÃO OLHAR:
olhos e que, para quem possui dificuldade de enxergar, o
A CEGUEIRA BRANCA, A CENSURA E OS SONHOS DE
ANGÚSTIA
aumento da luminosidade é uma medida possível, temos
o exemplo histórico e paradigmático de nosso imperador
D. Pedro II que pode ser lembrado aqui. Numa nobre
Liliane Camargos* atitude, doa um de seus terrenos na beira do mar e de-
termina, através do Decreto Imperial n.º 1.428, de 12 de
setembro de 1854, a construção do Instituto Benjamin
Constant, virado para o sol1 com o objetivo de facilitar
a entrada da maior quantidade possível de claridade na
Muito nos impressiona a obra de José Saramago (1922 edificação.
- 2010) por sua genialidade criativa e sensibilidade para Voltando a Saramago e seu livro, contemos resumi-
questões humanas. Em Ensaio sobre a cegueira (1995), so- damente a história de Ensaio sobre a cegueira. Um dia
bre o pano de fundo de uma história intrigante, somos, qualquer um homem dirigia seu carro normalmente, mas
particularmente, expostos do início ao final do livro a quando estava parado esperando abrir o sinal para poder
acontecimentos que provocam, ao mesmo tempo, mal- prosseguir em sua trajetória, repentinamente, percebe
-estar frente às incômodas situações descritas e incitam que não via mais, fica cego. Diferentemente de outros ti-
reflexões, por exemplo, sobre pontos fracos dos nossos 1
Nomeado Imperial Instituto dos Meninos Cegos a princípio, foi a
pilares sociais. Intrigante em particular para nós, desde primeira instituição no Brasil criada para atender a população cega e
hoje se tornou um centro de referência e oferece diversos serviços para
a população com deficiência visual, para profissionais e instituições. É
*Psicóloga e psicanalista, mestre em teoria psicanalítica (UFMG), psi- possível ler mais sobre o Instituto e sua história na primeira edição da
cóloga judicial do TJMG e autora do livro: “Do ver ao perder de vista: Revista do Instituto Benjamim Constant no site: http://www.ibc.gov.
a psicanálise do olhar”. br/?catid=4&blogid=2&itemid=408 .

78 79
pos de cegueira, essa é branca. O que parecia se tratar de organizando e ajudando de forma solidária? Não é bem
um fato isolado, se transforma numa epidemia com pro- isso que acontece. Estupro, saques, mortos e lixo pelas
porções incalculáveis: com exceção da mulher do médico ruas da cidade, cada um buscando se proteger da ameaça
que atendeu esse homem primeiro a cegar, no avançar da da cegueira, resguardar-se dos absurdos, defender-se uns
história, não temos notícias de outro vidente. dos outros. Em síntese: um autêntico e tenebroso pesa-
Comportamento provocador de indignação já se apre- delo!
senta nas primeiras páginas: um voluntário que gentil- Ao refletirmos sobre a cegueira branca associada com
mente se dispõe a ajudar o primeiro cego, conduzindo a situação hipotética descrita por Saramago, nos sur-
seu veículo, mostra a que veio logo em seguida: ao entre- preendemos ao encontrar um interessante paralelo com a
gar o homem cego e desorientado em sua casa, enxerga teoria da psicanálise relativa à interpretação dos sonhos.
ali uma boa oportunidade e rouba seu carro, passando a O que da dinâmica psíquica subjacente aos sonhos – sua
partir daí a ser nomeado como o ladrão. Os personagens formação e vivência – pode se equivaler à metafórica ce-
de Saramago não possuem nomes próprios, ao se perder gueira branca e ao fechar dos olhos, à exposição a situa-
a visão, perdem também sua identidade. Temos uma su- ções de horror e à prática de ações inimagináveis?
cessão de nomeações: a rapariga dos óculos escuros, o ga- Quando sonhamos, somos confrontados com aberra-
rotinho estrábico, o médico, o velho da venda preta, etc. ções de todos os tipos. Não raro temos a sensação de es-
Frente ao desconhecido de uma epidemia de cegueira tranheza, de falta de lógica e a certeza de que na vida real
branca sem causa conhecida e sem contenção possível, não seríamos capazes de fazer as ações representadas nos
o desespero se instaura. Os primeiros doentes são isola- sonhos. Freud com sua ousadia veio nos ensinar que esse
dos do restante da sociedade num edifício que em outros absurdo é aparente. Os sonhos, por mais estranhos que
tempos funcionara um hospício. São obrigados a sobre- possam parecer, são, sem exceção, dotados de sentido.
viverem cegos e sozinhos, proibidos de saírem enquanto Experiência que faz parte da vida psíquica dos seres
havia soldados videntes a vigiá-los. humanos, o sonho possui um ponto de partida comum.
Toda a infra-estrutura existente se desfaz, fontes de Sua motivação primordial se baseia em um desejo insis-
energia, água e alimentação ficam escassos, meios de tente que encontra uma brecha para se manifestar duran-
transporte simplesmente param de funcionar: o caos se te o adormecer. E Freud vai mais além ao classificar este
instaura... E, o que seria o esperado? Todos se unindo, se tipo de desejo como inconsciente e infantil. Desejo muito

80 81
bem guardado e oculto da consciência até então, precisa, que ocorreria caso ficássemos sem esse anteparo, sem essa
por sua aparição, agora, pagar um pedágio para a econo- proteção? Vislumbramos essa realidade psíquica nos efei-
mia psíquica: precisa ser distorcido, censurado. tos dos sonhos de angústia e chegamos novamente até a
No cenário composto predominantemente pelos res- sociedade assolada pela cegueira branca de Saramago: um
tos diurnos, por memórias recentes, vivenciamos situa- pesadelo sem limites.
ções de todos os tipos: banais, prazerosas e algumas ex- Com a “cegueira branca”, temos um homem com
tremamente angustiantes. O que determina o roteiro que medo, que mata para sobreviver, que discrimina e classi-
será ao mesmo tempo exibido e vivido pelo sonhador é o fica seu semelhante por alguma característica sem lhe in-
resultado do que Freud chamou de trabalho dos sonhos. teressar saber o nome dessas pessoas, ou seja, um homem
Esse trabalho dos sonhos – de transvestimento do desejo que revela seu lado insuportável, que não deveria ser vis-
– sob direção da censura é composto por sua vez pelos to. Temos um homem que se depara com sua fragilidade
mecanismos de condensação, deslocamento e elaboração e desamparo absolutos, que se demonstra completamente
secundária. dependente da visão física. Ver nos sonhos e na cegueira
Na trama da psicanálise do olhar podemos traduzir branca é também uma forma de não ver, de se disfarçar o
assim: sonhar é uma forma de exibição, de ver algo dese- que não pode ser visto, a melhor opção para camuflar o
jado tomando forma e, ao mesmo tempo, de manter os incessantemente negado.
olhos fechados para esse desejo. Num sonho, tentamos Por isso, supomos, a cegueira branca indica não uma
dosar o grau de abertura de nossas pupilas; permitimos cegueira, mas um excesso de visão. Encontramos um ho-
que os olhos se abram um pouco mais e, literalmente, mem que perde seu anteparo criado pelo recalque e que se
criamos as imagens necessárias para essa solução de com- desorienta quando passa a ver demais, jogando por terra
promisso, vemos e não vemos ao mesmo tempo, somos todos os construtos que mantêm sua estrutura social de
autores e expectadores “passivos” da cena onírica. pé. Ele vislumbra as consequências do fim do recalque
O mecanismo guardião que controla o grau de aber- e a explicitação desordenada das pulsões. Saramago não
tura de nossas pálpebras é a censura. Cumprindo sua cegou o homem; ele o fez ver algo insuportável, abriu seus
função honrosa, ela cria um anteparo que nos protege, olhos e o fez ver demais: fez o homem ver a si mesmo.
quando possível, da angústia, tecendo um envoltório psí- O efeito de uma cegueira branca, assim como a des-
quico para o desamparo de lembrar/ver/saber demais. O crita na obra de Saramago, é exatamente o efeito da ofus-

82 83
cação, do deixar de ver pelo excesso de luz, o que ocorre uma defesa contra algum desejo, ele é submetido à cen-
quando se dilata a pupila em grau elevado: não vemos sura e à distorção, ou seja, ao fechamento necessário das
nada por ver demais2. A realidade entra num grau exa- pupilas para que se torne aceitável para todas as ins-
gerado e cega a retina, saturando-a pelo excesso de lumi- tâncias envolvidas. Nos sonhos, “não há neles nada de
nosidade. Temos que fechar os olhos e controlar a quan- arbitrário”.4 Até na dúvida sobre a exatidão do relato de
tidade de estímulos e excitações que penetram em nós um sonho, ou de algum de seus pormenores, Freud afir-
a todo o momento. Se essa excitação exceder os limites ma que aí também há “um derivado da censura onírica,
suportáveis por nosso aparato psíquico, nós a limitamos, da resistência à irrupção dos pensamentos oníricos na
fechamos completamente nossos olhos e nos cegamos. consciência. Essa resistência não se esgotou nem mesmo
Os sonhos de angústia, diríamos, representam um com os deslocamentos e substituições que ocasionou;
instante em que abrimos demais nossos olhos e acabamos persiste sob a forma de uma dúvida ligada ao material
vendo o insuportável do que foi rejeitado, ou seja, um que foi admitido [na consciência]”.5
momento em que vislumbramos a “cegueira branca” de
Saramago. São aqueles sonhos em que um desejo oníri- (...) alguns sonhos que são realizações indisfarçadas de
co foge à censura e à sua distorção consequente, fazendo desejos. Mas, nos casos em que a realização de desejo
com que o sonhador experimente sensações desagradá- é irreconhecível, em que é disfarçada, deve ter havido
alguma inclinação para se erguer uma defesa contra o
veis. Eles ocorrem quando a censura está total ou par- desejo; e, graças a essa defesa, o desejo é incapaz de se
cialmente ausente, e “a subjugação da censura é facilitada expressar, a não ser de forma distorcida.6
nos casos em que a angústia foi produzida como uma
sensação imediata decorrente de fontes somáticas”.3 O “fechar os olhos” e o esquecimento dos sonhos tam-
Em outras palavras, quando surge a necessidade de bém se equivalem. Freud apresenta a falta de garantia que
temos de conhecer os sonhos tal como realmente ocorre-
2
O magnífico filme Blindness de Fernando Meirelles (2008) cujo rotei-
ro foi baseado no livro Ensaio sobre a cegueira (1995) representa, com
ram, tendo em vista uma tendência comum ao esqueci-
a filmagem e regulação das câmeras, a nosso ver, a cegueira branca de mento de parte dos sonhos, ou de sonhos inteiros na vida
forma análoga ao que descrevemos com relação aos olhos: temos cenas
muito claras justamente pelo aumento da abertura, pelo excesso de ex-
posição do filme à luz. Ele não deixou entrar menos luz e informação, 4
FREUD, 1900, p. 547.
mas sim o contrário para atingir o efeito desejado. 5
Ibidem, p. 578.
3
Idem, p. 293. 6
Ibidem, p. 176.

84 85
de vigília, devido aos efeitos da elaboração secundária e visa a disfarçar as circunstâncias fundamentais em que
da organização que damos aos sonhos ao relatá-los. Com se formam os sonhos e desviar o interesse de suas raízes
o passar do dia, também é comum acentuar-se o esqueci- pulsionais”.
mento dos sonhos, considerado por Freud como tenden- Concluindo, reafirmamos a função da censura, com as
cioso e, em grande parte, como efeito da resistência, pois palavras de Freud: “Assim, podemos notar claramente a fi-
é muito mais “frequente o sonho arrastar consigo para o nalidade para a qual a censura exerce sua função e promove
esquecimento os resultados [de sua] atividade interpreta- a distorção dos sonhos: ela o faz para impedir a produção de
tiva do que [sua] atividade intelectual conseguir preservá- angústia ou de outras formas de afeto aflitivo”.7 A censura é
-lo na memória” (FREUD, Op. Cit., p. 294). mais uma tentativa de cegar o sujeito. É mais uma forma de
Fundamentalmente, o esquecimento estaria relacio- fechar os olhos ou, então, de controlar a abertura deles, pois
nado ao recalque. Segundo ele, o recalque “(ou, mais distorcer as coisas é apresentar para si mesmo uma forma
precisamente, a resistência criada por ele) é a causa tanto aceitável de algo recusado. Temos um sonho e, pela ação
das dissociações quanto da amnésia ligada ao conteúdo da censura, nos esquecemos dele: fechamos nossos olhos
psíquico destas”. Além disso, “o estado de sono possibilita novamente, agora, porém, imersos no escuro. E a censura
a formação de sonhos porque reduz o poder da censura em Ensaio sobre a Cegueira, onde estaria? Além da já dita ce-
endopsíquica” (Idem, p. 294). gueira branca que cega/censura totalmente pelo excesso, a
Fechamos mais uma vez, progressivamente, nossos censura se manifesta, por mais paradoxal que possa parecer,
olhos, depois de os termos abertos durante a noite. Freud, não por meio de quem não vê, mas também pelos olhos de
porém, tenta manter essa abertura e dispensa sua inter- um vidente, a mulher do médico, única pessoa que conti-
pretação, tanto a elementos mais ínfimos e insignifican- nua enxergando durante a trajetória de cegueira das demais
tes, quanto aos mais certos e nítidos, ou seja, atribui idên- pessoas, dando testemunho de toda uma organização que
tica importância “a cada um dos matizes de expressão se tornou falida e, ao mesmo tempo, dosando as informa-
linguística em que eles nos forem apresentados” (Ibidem, ções que transmitia para seus companheiros cegos, servin-
p. 295). do, assim, de seu anteparo, mantendo seus olhos fechados.
Outro movimento ao qual daríamos a mesma conota-
ção de fechar os olhos é o que Freud identifica nas teorias
de sua época sobre os sonhos como “uma tendência que 7
Ibidem, pp. 293-294.

86 87
Bibliografia ______. Sobre o início do tratamento. Rio de Janeiro: Imago,
1995. (Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
CAMARGOS, L. Do ver ao perder de vista: a psicanálise do pletas de Sigmund Freud, 12).
olhar. Petrópolis: KBR editora, 2012.
______. Sobre o narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro:
FREUD, S. A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica Imago, 1995. (Edição standard brasileira das obras psicológi-
da visão (1910). Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Edição standard cas completas de Sigmund Freud, 14).
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,
SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Compa-
11).
nhia das Letras, 2001.
______. A interpretação de sonhos (1900). Tradução de Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard bra-
sileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5).
______. A interpretação dos sonhos (1900). Tradução de Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1972. (Edição standard bra-
sileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 4).
______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas com-
pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1999. (Legível
por máquina).
______. Interpretação das afasias. São Paulo: 70 Editora; Per-
sona, 1997.
______. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sig-
mund Freud, 19).
______. Recomendação aos médicos que exercem a Psicanálise.
Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).

88 89
OLIVIER DE SAGAZAN: ESTILHAÇOS DA
MATÉRIA PRIMA

Série de fotos por Nayana Shimaru (nfshimaru@gmail.com).


Referentes à apresentação “Matéria-prima”, de Sagazan.

“O que se faz necessário jamais esquecer é que isso não vai


durar muito tempo e que precisamos absolutamente estar
conscientes daquilo que nos acontece, procurar em vários lu-
gares... eu gostaria de retomar um pensamento de Artaud:
quando você se coloca em estado onírico, com os olhos presos
ao inconsciente, você percebe que, num sonho, tem olhos que
não sabe mais a que servem e a atenção voltada para dentro.
É importante – isso é realmente uma resposta aos filósofos –
irromper a linguagem para tocar a vida e voltar justamente
a essa capacidade de se sentir por si mesmo, como qualquer
coisa de estranho e de inacreditável – há muito o que se dizer
disso, a questão foi enorme. O que é imprescindível perce-
ber, voilà, é que existe alguma coisa de absurdo no mundo
e que estamos nele com uma consciência a qual se alimenta
somente de sentido. Tem um paradoxo... muito estranho. É
necessário aí se embrenhar”.1
1
[Nascido em Brazaville (Congo) em 1959, Olivier de Sagazan é
reconhecido internacionalmente pelas suas performances, capazes
de suscitar sentimentos viscerais, estranhos e cruelmente silenciosos.
Pela primeira vez no Brasil, o artista se apresentou no FIT BH 2012 e
pudemos, nessa ocasião, ter uma conversa com ele. A partir disso, re-
produzimos aqui um pequeno trecho, no qual Sagazan discorre sobre
o que ele jamais se esquecerá].

91
(Juliette Binoche) é uma francesa simples que sobrevive
da exploração de um antiquário. Uma história desprovida
de qualquer complexidade, como vemos, não fosse essa
história o pretexto de que se vale Kiarostami para atacar
a raiz do estatuto de obra original e da delicada fronteira
que separa a realidade artística da realidade do mundo,
A ALEGORIA PLATÔNICA DE ABBAS
uma discussão recorrente, através dos tempos, em dife-
KIAROSTAMI rentes campos acadêmicos.
O filme, pois, tem uma estrutura narrativa aparen-
Antônio Álder Teixeira*
temente simples, em obediência aos padrões do cinema
clássico. Aparentemente, uma vez que, como defendemos
neste artigo, Abbas Kiarostami realiza com Cópia Fiel (ou
fornece suporte para que se o faça) o que supomos ser
uma leitura absolutamente excepcional de um dos mitos
mais importantes da grande Filosofia. Referimo-nos ao
Cópia Fiel1, o filme de Abbas Kiarostami, narra a histó-
Mito da Caverna, que aparece no livro VII da República
ria de um homem e uma mulher que se encontram num
de Platão e que constitui a cena inaugural da metafísica
pequeno vilarejo da Toscana. Ele, James Miller (William
no Ocidente2. Na forma de uma narrativa alegórica, o
Shimell) é um escritor britânico convidado a proferir pa-
filósofo grego descreve a ignorância humana decorrente
lestra numa universidade local por ocasião do lançamen-
das limitações impostas à alma pelo corpo, o que torna o
to do livro de sua autoria intitulado Cópia Fiel. Ela, Elle
homem escravo das aparências e das conclusões engano-
* Cronista e crítico de cinema. Professor de Filosofia e Estética da sas. Compara-o, assim, a prisioneiros que tomam por rea-
Arte, de Estética do Filme e de Análise do Texto Dramático do
Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará. Autor, lidade as sombras dos objetos que veem projetados na pa-
entre outros, do livro "Componentes dramáticos da poesia de Carlos rede de fundo de uma caverna em que estão acorrentados.
Drummond de Andrade". Doutorando da EBA-UFMG, onde escreve
tese sobre a obra de Ingmar Bergman.
1
CÓPIA FIEL. Direção: Abbas Kiarostami. Fotografia: Luca Bigazzi. 2
REALE, G. História da Filosofia Grega e Romana, 3º vol. Tradução:
França/Itália/Bélgica: MK2 Productions, 2010. 1 DVD (106 min), Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições
color. Título original: Copie conforme. Loyola, 1994.

100 101
O filme começa com um plano geral demorado de o real. Citemos, a propósito, as palavras de conhecida
uma mesa de auditório em que se veem o microfone e, estudiosa do cinema 3:
disposto de forma destacada, um exemplar do livro Cópia
Fiel, de James Miller. Em face do atraso do conferencista, O termo impressão de realidade, empregado por
Metz, nos remete a ambiguidade do caráter ilusório
o diretor da universidade usa da palavra para se justifi- das imagens cinematográficas. Embora o cinema seja
car aos presentes, quando este, coincidentemente, aden- a arte da ilusão, ele recria, através da ficção, uma apa-
tra o espaço pela porta dos fundos. Em profundidade de rência de real. A construção de sentido se apoia nessa
dicotomia para produzir o discurso fílmico entre de-
campo, a câmera mostra James Miller autografando um notações e conotações. A decupagem clássica consti-
exemplar do seu livro para Elle. O enquadramento e a tui a base dessa construção do falso. O “real” no cine-
perspectiva da tomada são bastante sugestivos, posto que ma tem caráter subjetivo, já que se baseia nas escolhas
do realizador ou do espectador.
as duas personagens são apresentadas ao espectador como
se este se encontrasse numa posição frontal, enquanto,
Voltemos ao filme:
no plano da diegese, todo o auditório se volta, aparecen-
James Miller dirige-se à mesa de conferência e, en-
do momentaneamente de costas, no écran. Importante
quanto se justifica pelo atraso, olha para o fora de quadro
frisar que espectador e personagens, todavia, vão trocar
à sua esquerda e diz a primeira fala bastante sugestiva
de ‘papeis’ em diferentes passagens do filme. O casal, em
em relação ao que consideramos uma visada do cineasta
princípio, é o elemento ficcional de que valerá Kiarosta-
iraniano do mito famoso: - “Eu preferia estar lá fora, ao
mi para representar as irrealidades que o espectador, a
sol.” Na sua alegoria, de extraordinária força, Platão iden-
exemplo do público no plano da diegese, tomará como
tifica o mundo fora da caverna como o mundo do sol, da
realidade. Como a intenção é confundir o espectador, o
Ideia, em oposição ao mundo das sombras do interior da
que torna o filme uma metáfora prodigiosa do mito, da
caverna. Numa sequência particularmente sugestiva do
metade para o fim da história realidade e irrealidade se
filme, pouco depois da cena do auditório, vemos James
confundem no conteúdo narrativo, para não falar que a
descer uma cave através de uma escada íngreme em cuja
própria experiência do espectador no cinema ou diante da
base está a casa de Elle. O ambiente é sombrio, cavernoso,
tevê em que assiste a Cópia Fiel já é, por excelência, um
contrato transitoriamente firmado entre as partes (o filme
3
ORTEGOSA, M. Cinema Noir, espelho e fotografia. São Paulo:
e o público) no sentido de que o irreal seja aceito como Annablume, 2010.

102 103
precariamente iluminado por um pequeno abajur. James, pria arte, tomada em sua independência e autonomia em
acidentalmente, aciona um interruptor de luz, apagando- relação aos demais valores, éticos, políticos ou quaisquer
-a. Em meio à escuridão, aciona novamente o interruptor outros. No final de A República, dissemos acima, pela voz
e acende a luz, o que, na sequência final fará novamente, de Sócrates ouve-se a sentença implacável: - “Nosso argu-
num outro contexto do filme, num detalhe que parece mento nos força a expulsar a poesia da Cidade”.
orientar metaforicamente um admirável jogo de verdade Defensor da arte no campo de batalha em que foi co-
e mentira em que vão se enredar as personagens centrais locada por Platão, James Miller abrira a sua conferên-
da história de Cópia Fiel. Quando Elle surge do interior cia com a seguinte reflexão: - “Ver meu livro [sua tese,
da casa, propõe-lhe que tomem um café juntos, ao que portanto] acolhido na terra de Michelângelo e Da Vin-
James responde: - “Gostaria de sair da cidade”. ci, é um grande elogio. E sou grato por isso.” A câmera
Tomando por base esta metáfora extraordinária da ca- alterna plano e contraplano, num movimento que mais
verna, Platão considera o artista uma ameaça ao mundo ainda enriquece a sugestão da imagem do auditório como
da luz, pois os prazeres que proporciona impedem a aqui- uma caverna. No primeiro deles, vê-se o conferencista,
sição do conhecimento. Numa fala, já no início do filme, no segundo, o auditório silencioso e atento. Aprisionado.
James diz sobre as cópias na arte: - “É melhor manter James prossegue: - “Escrever sobre arte não é fácil.” A câ-
distância. Elas são atraentes, mas podem lhe fazer mal”. mera mostra agora o público, enquanto se ouve a voz em
Para Platão, também, a arte arruína a capacidade inte- off do conferencista: - “Não há pontos fixos de referên-
lectual do homem, instaurando um reino de aparências cia. Não há verdades imutáveis em que se apoiar. Minha
e sombras, dentro da alma e fora dela, na Cidade, razão decisão de explorar os aspectos filosóficos e psicológicos
por que propõe sem meias-palavras a sua expulsão. James desse tema tornou minha tarefa mais difícil do que eu
Miller, ao lidar diretamente com arte, especializando-se esperava.” Em seguida, agradece ao colega italiano pela
em estudar a sua realidade tensionada, a dialética entre o qualidade da tradução do seu livro. Hermeneús, que em
original e a cópia, que defende na sua tese como absolu- grego significa tradutor, é uma palavra-chave na filosofia
tamente válida, procura se contrapor à visão do filósofo, de Platão, da qual se origina a hermenêutica, a interpre-
mas vai incorrer em contradição em diferentes passagens tação. “Ele conseguiu interpretar o verdadeiro sentido do
de Cópia Fiel. Em princípio, contudo, a posição de James meu livro”, conclui. Em seguida, inicia a palestra propria-
se contrapõe à do filósofo, que ataca a razão de ser da pró- mente dita com a frase de abertura do livro: “Esqueça o

104 105
original, consiga uma boa cópia”. Questões sobre a origi- Com efeito, a exemplo da caverna de Platão, a sala
nalidade na arte, o estatuto que lhe confere a condição de de projeção do cinema é o espaço por excelência em que
coisa única e sagrada, num diálogo estreito com o mito impera a impressão de realidade, ou seja, onde a ilusão
de Platão, vamos encontrar, num texto absolutamente ocupa uma posição dominante, constituindo-se numa
indispensável sobre o assunto, em Walter Benjamin, a espécie de zona fronteiriça entre a aparência e a essência,
que nos reportaremos adiante. O filme de Kiarostami vai entre o mundo das sombras e o mundo da Ideia, entre o
girar em torno dessa relação verdade/mentira, original/ simulacro e o modelo, entre o original e a cópia. O ma-
cópia, modelo/simulacro. terial cinematográfico que chega ao espectador é apenas
Voltemos ao mito. Entre os grandes estudiosos, não uma cópia, das milhares espalhadas mundo afora. Estar
raro se tem considerado o mito de Platão como o início dentro da sala de projeção do cinema é realizar uma expe-
do próprio cinema. Arlindo Machado, em respeitado es- riência não muito distante de descer a caverna de Platão,
tudo sobre a matéria, diz sem meias-palavras4: entregar-se num contrato previamente acordado, como
dissemos, ao mundo da ilusão, do duplo que nos dá a
A primeira sessão de cinema nos moldes em que co- medida de uma falsa realidade, em que tudo é, a um só
nhecemos hoje, ou seja, numa sala pública de pro-
jeções, aconteceu há dois mil anos, muito antes que tempo, ficção e verdade.
Louis Lumière mostrasse as paisagens animadas de La As imagens do fundo da caverna têm seu equivalente
Ciotat no Grand Café de Paris. Ela teve início na ima- nas imagens projetadas na tela do cinema. Recuando no
ginação de Platão (que, por sua vez, a credita a Sócra-
tes, num diálogo com o discípulo Glauco) e veio a ser tempo, não seriam os desenhos da caverna, de Lascaux e
conhecida posteriormente como a alegoria da caverna. Altamira, por exemplo, fantasias projetadas? Por que es-
Ela inaugura também, na história do pensamento oci- sas pinturas eram realizadas em espaços tão inacessíveis,
dental, o horror à razão dos sentidos, o escárnio das
funções do prazer, a repulsa a todas as construções onde era absoluta a inexistência da luz? E por que esses
gratuitas do imaginário, a negação, enfim, de tudo homens deliravam ao deparar com o efeito bruxulean-
isso que, dois milênios depois, seria a substância da te dessas imagens sob a luz de tochas? Por que eram as
arte que, paradoxalmente, o próprio Platão inventava.
curvas, saliências e reentrâncias das paredes da caverna
os espaços escolhidos, por esses ‘cineastas primitivos’, se
não a intenção de percebê-las como se estivessem em mo-
4
MACHADO, A. Pré-cinemas e Pós-cinemas. 6ª ed. São Paulo: Papi-
rus, 2011. vimento?

106 107
Em Cópia Fiel, em recorrentes tomadas, não raro o filho e a mesma reflexão em torno dos problemas do
numa sequência inteira, Kiarostami vai explorar diferen- relacionamento e da condição feminina que pontua parte
tes efeitos de reflexividade e espelhismo. Quando James do diálogo entre James e Elle.
Miller e Elle saem de carro da cidade, numa sequência Esse espelhismo (ou efeito de reprodução em super-
demorada, as imagens da rua são refletidas no para-brisa fícies espelhadas), vai estar presente em diferentes pas-
e o que vemos não é senão uma imprecisa reprodução sagens do filme. Numa delas, quando Elle dirige-se a
de homens, árvores e coisas, numa sugestiva referência às um espelho para retocar o batom e colocar um par de
imagens do fundo da caverna. Oportuno é observar que brincos, não é o espelho que nos é mostrado. Nós, en-
a sequência começa com um plano americano em que quanto espectadores, ‘somos’ o espelho. De frente para
vemos James e Elle colocando seus cintos de segurança, a personagem, portanto, nossos olhos deparam, em se-
no que podemos tomar, dada a duração do plano sobre gundo plano, com as imagens externas mal vistas através
o que poderia ser um detalhe absolutamente desimpor- da persiana de uma janela, o mundo lá fora, onde reina
tante, como uma referência subliminar aos grilhões que a luz. Também no Mito da Caverna o mundo externo,
aprisionam os homens da caverna de Platão. numa inversão intencional do autor, representa não mais
A perspectiva do prisioneiro, contudo, como obser- o mundo sensível, das aparências, mas o mundo inteli-
vamos acima, vai alternar entre os dois personagens e gível, a realidade da Ideia. É que não se pode entender
os espectadores do filme, estabelecendo um jogo de que o pensamento de Platão, no que respeita à existência dos
passamos a participar ativamente: enquanto James e Elle dois mundos, senão nos valendo dos fundamentos da me-
põem os cintos, os espectadores podem ver, através do tafísica e da dialética. Tais inversões, oposições, paralelis-
vidro traseiro do carro, o que se passa lá fora, na rua. A mos, têm para ele um valor metodológico. O que, aliás,
essa altura, devemos lembrar que em Kiarostami muitas vai também orientar a tessitura dramática de Cópia Fiel.
cenas se passam no interior de um carro. O mundo de A exemplo do leitor dos diálogos, envolvido em ardis,
fora é recorrentemente visualizado através do recorte de o espectador de Cópia Fiel é envolvido numa trama, num
uma janela. É assim em Através das Oliveiras (1994), O jogo de ficção em que já não se pode separar a realidade
Gosto da Cereja (1996) e Dez (2001), em que, a exemplo da irrealidade. No fio tênue que separa o real do irreal, o
de Cópia Fiel, além das cenas se passarem dentro de um original da cópia, reside a centelha ofuscante da verdade,
carro, vamos encontrar o conflito da mãe-motorista com quase nunca acessível ao homem. Numa outra cena mar-

108 109
cante do filme, enquanto Elle conversa com estranhos Suas palavras, ditas entre lágrimas, causam ao espectador
que acabara de conhecer, James observa-os através do re- um certo estranhamento. Seria ela a tal mulher? Kiaros-
trovisor de uma motocicleta estacionada. E há, bem à sua tami nos coloca, assim, mais uma ambiguidade.
frente, um espelho, em plena praça. Mais adiante, quando adentram o espaço de um mu-
Numa cena anterior e particularmente significativa seu, Elle conduz James Miller a uma redoma em que está
do filme, quando o casal está num café, e James se retira exposta uma tela antiga, a obra intitulada Musa Polim-
para atender no celular, a dona do estabelecimento con- nia.Ouvimos através da explanação de um guia turístico
funde-os a marido e mulher. Ao retornar à mesa, James que a obra há cinquenta anos fora considerada original,
é colocado a par do equívoco e os dois, curiosamente, quando enfim se veio a descobrir tratar-se de uma cópia.
decidem alimentar o engano. A partir de então, o efeito O equívoco, todavia, confere à tela uma nova aura e, ago-
ficcional será tanto mais intensificado, que o espectador ra, passa a despertar o interesse de todos por essa razão.
passa a ver pelo olhar do outro, e, como que, adentra Contraditoriamente, no entanto, James, que defende a
o universo diegético. Um mundo espaço-temporal que validade das cópias no seu trabalho acadêmico, num de-
tradicionalmente exclui o espectador, agora o traga e o talhe que faz a diferença no contexto da história, tal qual
leva também a confundir-se em relação aos dois: “Afinal, Platão, afasta-se do local. “Eles dizem que adoram aquela
são ou não casados? Foram casados antes?” É a pergunta pintura, mas é uma cópia. O original está em outro lu-
que todos se fazem a partir daí. E que Kiarostami, fiel gar”, diz a uma dada altura.
ao mundo de Platão, decide não responder. A propósito, A obra não lhe interessa mais, o que é notado por Elle,
na mesma sequência do café, há um diálogo entre James que o repreende. Para ele, desfizera-se com a informação
Miller e Elle, em que este vai se reportar a uma situação a aura do sagrado, o status de coisa única. Aqui, entra
que lhe ocorrera anos antes, em Florença, quando, pelo Benjamin. Num texto clássico, A obra de arte na era de
recorte de uma janela de hotel, pôde acompanhar andan- sua reprodutibilidade técnica5, o pensador alemão estu-
ças de mãe e filho pelas ruas da cidade. O detalhe de um da as implicações da destruição da ‘aura’ que envolve as
momento vivido por ambos à frente de uma estátua de obras de arte enquanto objetos individualizados e únicos.
David, quando o garoto se mostra decepcionado ao saber,
através da mãe, que se tratava de uma cópia da obra origi- 5
BENJAMIN, W. Textos Escolhidos: Walter Benjamin, Max
Horkheimer, Theodor Adorno, Jürgen Habermas, 2º ed. Tradução:
nal, emociona Elle: - “Eu não estava bem naquele tempo.” José Lino Grunnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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O cinema, particularmente (e a fotografia) é a lingua- falsários, quem haverá de esquecer o clássico de Orson
gem com que Benjamin vai afirmar essa perda do status Welles F for Fake, subintitulado Verdades e Mentiras, de
de raridade e, o que vê com bons olhos, dissolvendo-se 1973? Neste brilhante filme Welles vai explorar de for-
essa aura em incontáveis reproduções do original, a obra ma incisiva o mundo dos falsificadores, tendo à frente o
de arte desfaz-se do valor aristocrático e religioso que a lendário Elmyr Hory e seu confidente Howard Hughes.
tornam um objeto acessível a poucos, ganhando, assim, Uma defesa em face da acusação de se ter apropriado in-
uma dimensão social. O cinema conforme o compreende debitamente do roteiro de Cidadão Kane? Improvável. O
Abbas Kiarostami. filme vale e permanece como ficção, como arte. A mentira
Mas a maior contribuição do cineasta, no filme, se dá que é capaz de revelar a verdade, segundo Pablo Picasso.
em relação à estética. ‘A obra de arte é perecível’, parece Jorge Coli6, em conhecido estudo sobre ‘o que é Arte’
nos dizer ele. Outro cineasta, Jean Renoir, filho do pintor afirma: - “Os filmes também se modificam: as cores po-
não menos famoso, discorrera num depoimento à Cahiers dem alterar-se, as cópias deteriorarem-se e sofrerem cor-
du Cinèma, em novembro de 1958: “Pergunto-me se não tes; na projeção pode haver, com a evolução dos apare-
seria mais honesto abordar a obra de arte como se ela fos- lhos, mudança de formato, de velocidade. E todos esses
se provisória e irá desaparecer, e que, na verdade, relativi- fatores, bem diversos, atuam profundamente na percep-
zando, não há diferença entre uma obra arquitetural feita ção da obra”.
em mármore e um artigo de jornal, impresso em papel e O que pretendeu Kiarostami, com o seu belíssimo Có-
jogado fora no dia seguinte”. pia Fiel? Por certo explorar a necessidade de ficção que
A essa altura, todavia, cabe-nos levantar uma reflexão: acomete a todos nós: - “A arte existe para que o homem
até onde se pode falar de originalidade nas artes quan- não morra de tanta realidade”, afirmou Nietzsche. “Os
do, mesmo as obras aparentemente eternas, a exemplo de homens”, disse Mário Vargas Llosa7, “não estão contentes
quadros como a Gioconda, de Da Vinci, são periodica- com o seu destino, e quase todos – ricos ou pobres, ge-
mente submetidas a processos de limpeza e restauração niais ou medíocres, célebres ou obscuros – gostariam de
que lhes modificam a textura, o viço das cores e as grada- ter uma vida diferente da que vivem”.
ções dos tons etc.?
A discussão, podemos constatar, despertou sempre o 6
COLI, J. O que é Arte. 15ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2010.
7
LLOSA, M. V. A Verdade das Mentiras. Tradução: Cordelia Maga-
interesse de grandes cineastas. No caso das cópias e dos lhães. São Paulo: Ars, 2004.

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Para combater a arte e o artista, Platão tece um dis-
curso mágico, vale-se da poesia e do mito, alcançando
com sua escritura não somente as camadas intelectuais
da alma, mas também, arriscamos dizer, sobretudo a di-
mensão emotiva e fantasista do ser. É intencionalmente
contraditório.
O filme de Kiarostami rompe as fronteiras que sepa-
ram o fato real do fato criado pela imaginação, mesmo
na perspectiva da diegese, do mundo da ficção, e vale-
-se do mito de Platão, sorrateiramente, para nos mostrar
isso. Mas o faz como que em espelho, com seus jogos de
reflexo, onde as imagens se duplicam, confundem, ilu-
dem. Ele nos conduz ao interior da caverna, nos convida
a jogar, e nos encanta.

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Fontes utilizadas: ADOBE GARAMOND e FRANKLIN GOTHIC
[versão online: www.cabaretfilosofico.net]
2012

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