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Bonfim, F. G., & Schechter, R. C. A docência como performance feminista

A docência como uma performance feminista

The Teaching as a Feminist Performance

La enseñanza como una performance feminista

Erika Cecília Soares Oliveira1

Resumo

A partir de teorizações produzidas pelos feminismos subalternos, abordarei neste artigo a ideia de uma docência
como uma performance capaz de criar outras ficções em cenários e escritas acadêmicas. Essas ficções se
contrapõem às cosmovisões fossilizadas da ciência moderna, trazendo a possibilidade de cruzamentos com
epistemes alternativas. Dessa hibridização, resultam escritas e pesquisas que tomam como parâmetro sujeitos do
conhecimento fraturados, que se inspiram em suas incertezas epistemológicas, entrelaçando vida e ciência,
conscientes da conexão que há entre elas. A partir de concepções que trazem a possibilidade de que o saber
das(os) subalternizadas(os) venha à tona, enceno o encontro de quatro mulheres, “as mortas-vivas do
conhecimento”: Carolina Maria de Jesus, Anastácia, Tia Marcelina e Gloria Anzaldúa. Desse encontro
improvável, mas fecundo, resulta uma escrita feminista e poética banhada na pluriversalidade e que serve de
parâmetro para inspirar performances discentes, em um movimento no qual nossos corpos se afetam
mutuamente.

Palavras-chave: Epistemologias. Feminismos subalternos. Políticas de escrita. Pluriversalidade.

Abstract

From the theorizations produced by the subaltern feminisms, in this article I will approach the idea of a teaching
as a performance able to create other fictions in scenarios and academic writings. Those fictions are opposed to
the fossilized worldviews of modern science, bringing the possibility of intersections with alternative epistemes.
This hybridization results in writings and researches that take as parameter fractured subjects of knowledge, who
get inspired by their epistemological uncertainties, interlacing life and science, aware of the connection between
them. From the conceptions that bring the possibility that the knowledge of the subaltern people comes up, I
stage the meeting of four women, “the living dead of knowledge”: Carolina Maria de Jesus, Anastácia, Aunt
Marcelina e Gloria Anzaldúa. From this unlikely, but fruitful meeting, results a feminist and poetic writing
bathed in pluriversality and that serves as a parameter to inspire student’s performances, in a movement in which
our bodies mutually affect each other.

Keywords: Epistemologies. Subaltern feminisms. Writing policies. Pluriversality.

Resumen

A partir de las teorizaciones producidas por feminismos subalternos, abordaré en este artículo la idea de una
enseñanza como una performance capaz de crear otras ficciones en escenarios y escritos académicos. Estas
ficciones contrastan con las cosmovisiones fosilizadas de la ciencia moderna, trayendo la posibilidad de
intersecciones con epistemes alternativos. De esta hibridación, derivan escritas y investigaciones que toman
como parámetro sujetos de conocimiento fracturados, que se inspiran en sus incertidumbres epistemológicas,
entrelazan la vida y la ciencia, conscientes de la conexión entre ellos. A partir de concepciones que traen la
posibilidad de que surja el conocimiento de los subordinados, avivé la reunión de cuatro mujeres, “las muertas
vivas del conocimiento”: Carolina María de Jesús, Anastácia, Tía Marcelina y Gloria Anzaldúa. De este
encuentro improbable pero fructífero resulta una escritura poética y feminista bañada en la pluriversidad y que
sirve como parámetro para inspirar las actuaciones de los estudiantes en un movimiento en el que nuestros
cuerpos se afectan mutuamente.

Palabras clave: Epistemologías. Feminismos subalternos. Políticas de escritura. Pluriversalidad.

1
Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestra em Educação para as
Ciências. Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Campus A.
C. Simões, Maceió/Alagoas. E-mail: oliveiraerika000@gmail.com.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(3), São João del-Rei, julho-setembro de 2020. e-3540
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Mortas-vivas sentadas em círculo algodão, segura em uma delas uma caneta.


Sobre seu colo repousa uma pequena
Um personagem levantou-se e disse. Isto é máquina de datilografar. Com a outra mão
uma história. E eu disse. Sim. É uma come uma fatia de tortilha e o cheiro do
história. Por isso podem ficar tranquilos nos
seus postos. A todos atribuirei os eventos
milho perfuma todo o ambiente. Sorri.
previstos, sem que nada sobrevenha de Estar ao lado de suas irmãs terceiro-
definitivamente grave. Outro ainda disse. E mundistas lhe enche o peito de alegria.
falamos todos ao mesmo tempo. E eu disse. Carolina retribui o sorriso, está atarefada
Seria bom para que ficasse bem claro o dobrando os papéis amarelados que estão
desentendimento. Mas será mais eloquente.
Para os que creem nas palavras. Que se
espalhados sobre seus pés, ao redor dela e
entenda o que cada um diz. Entrem devagar. das outras mulheres. São cinco mil páginas
Enquanto um pensa, fala e se move, escritas com sua letra caprichada. Ela abre
aguardem os outros a sua vez. O breve uma folha, lança um olhar mais demorado,
tempo de uma demonstração. (Jorge, 2010) afasta um pouco o papel, junta as
sobrancelhas e lê com a voz alta, segura:
Estão sentadas em círculo, no
coração de Abya-yala,2 Gloria Anzaldúa, Muitos fugiam ao me ver
Anastácia, Tia Marcelina3 e Carolina Pensando que eu não percebia
Maria de Jesus. A roda dá a elas toda a Outras pediam pra ler
liberdade para lamuriarem suas ladainhas Os versos que eu escrevia.
Era papel que eu catava
sem serem julgadas, renovarem suas Para custear o meu viver
esperanças, pactuarem. Confere uma E no lixo eu encontrava livros para ler
perspectiva mística e, em alguma medida, Quantas coisas eu quis fazer
terapêutica. Encontram-se ao redor de uma Fui tolhida pelo preconceito
instalação construída por Rosana Paulino Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto
por ocasião da exposição Assentamento, na Adeus! Adeus, eu vou morrer
Pinacoteca de São Paulo. No chão, pedaços E deixo esses versos ao meu país
de galhos, braços e antebraços de Se é que temos o direito de renascer
negras(os), arrastados de suas terras, Quero um lugar, onde o preto é feliz4
formam aquilo que viria a ser uma
fogueira. Gloria, a chicanita do fim do - Foi um longo caminho até
mundo, com suas mãos de plantadora de encontrar alguém que publicasse meus
textos, mas o que eu queria mesmo era
2
De acordo com Lisboa (2014), no período das publicar romances, poesias, provérbios.
invasões, houve uma desqualificação epistêmica Sabe o que eles diziam? Que eu deveria
direcionada a todo o conhecimento indígena, por esquecer isso, que me desse por satisfeita,
parte de europeus, o que resultou, entre outras que me aposentasse. Queriam me colocar
coisas, na negação de nomes já existentes. Como dentro de uma jaula, esquadrinhar o meu
exemplo, temos a homenagem a Américo
Vespúcio, que resulta no nome América para essa pensamento, os meus projetos. Fui
região, ignorando o fato de que existiam inúmeras construída pra ser a escritora favelada,
denominações para estas terras cunhadas pelos aquela que fazia um retrato em tempo real
povos originários. Abya Yala tem sido utilizada do Brasil miserável. Mas alguém alguma
como forma de renomear toda a América, sendo vez se deu ao trabalho de saber quais eram
um vocábulo provindo da língua Kuna, nação
indígena que vive no litoral do Panamá e que os meus sonhos?
nunca se submeteu à conquista europeia. Significa Carolina olha para Anastácia, os
terra madura, terra de vida. olhares delas se entrelaçam em uma
3
Tia Marcelina foi a mais famosa Yalorixá de
4
Alagoas, tendo fundando o candomblé no estado. Poema retirado do livro Carolina: uma biografia
Nascida em África, trouxe o rito nagô para cá. (Farias, 2017, p. 186).

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amorosidade transatlântica. Anastácia traz tira saber. Ah, e como eles batiam. Batiam
entre as mãos a máscara de ferro que lhe tanto que parecia que eram eles que
vedava a boca. Olha para ela longamente, estavam com medo. O sangue pingava do
mas seu olhar é altivo. meu corpo e cada pingo era como a vida
- Eles diziam que a gente iria comer que se despede. Primeiro virou um
o cacau e cana-de-açúcar enquanto nos riozinho, uma enxurrada e, então, o mar
obrigavam a trabalhar. Tinham medo de com suas ondas quebrando no meio da
que a gente comesse terra também, escuridão. Meu corpo era um oceano de
tentando se matar e acabar com todo o sangue onde meus algozes naufragavam.
sofrimento. Eles faziam de tudo pra tapar Em Alagoas, Xangô se rezou baixo
nossa boca, calar o mais fundo do nosso por muito tempo, sem tambores e
pensamento. Tinham medo, um medo todo zabumbas, que era para não chamar tanta
branco do que a gente poderia dizer, medo atenção. Tia Marcelina se senta, torna-se
de tudo o que estourava dentro da gente. novamente uma velhinha miúda. Sons de
Medo de que, se colocássemos para fora, atabaques e de palmas explodem no
iríamos estourá-los também, arrebentá-los espaço, envolvem o corpo dela com braços
com as nossas verdades. longos.
Anastácia aproxima-se de Tia Gloria se lembra dos castigos que ela
Marcelina, que traz sobre suas costas um e os irmãos sofriam quando durante o
manto branco e vermelho bordado com recreio ousavam falar o espanhol. Da mãe
estrelas e silêncio e o peito coberto de obrigando-a a tapar o rosto para não ficar
rosários. Ela se curva e estende a mão para com a pele escura de uma índia. Dos
a idosa que lhe sorri e se levanta, vagarosa. livros, filmes e músicas que se
Tia Marcelina desata o nó que amarra o envergonhava de ler, assistir e ouvir por
manto na altura de seu pescoço, deixando- trazerem a cultura chicana. Da cultura
o esparramar-se para perto de seus pés. Em patriarcal e heterocentrada que impedia sua
atitude de oração, ela permanece alguns voz de ecoar. Lembra-se do dentista que
segundos de cabeça baixa. Então, seu queria domesticar sua língua, encher de
semblante se fecha e, subitamente, algodão, acabar com sua selvageria. Do
rejuvenesce. Ela é ela, mas é também medo que tinha de escrever e ser mal
Dandara e Aqualtune. O corpo alquebrado interpretada. Gloria tira a folha que está na
é pura memória de um início de século no máquina e lê:
qual uma tal liga de combatentes
republicanos, composta por milicianos, em “Nós vamos ter que fazer alguma coisa com
uma afrontosa operação denominada a sua língua”, eu escutei a elevação raivosa
na sua voz. Minha língua retém-se,
“Operação Xangô”, destruiu terreiros e empurrando pra fora os tufos de algodão,
objetos de culto e espancou filhas e filhos repelindo as brocas, as longas agulhas finas.
de santos. “Eu nunca tinha visto nada tão forte ou tão
- A gente resistiu, ê, a gente sempre resistente”, ele diz. E eu penso, como você
resiste. A gente resiste no corpo do oceano, doma uma língua selvagem, adestra-a para
ficar quieta, como você a refreia e põe sela?
embaladas no berço dos navios negreiros. Como você faz ela se submeter? (Anzaldúa,
Nossos corpos são desconjuntados, 2009, p. 305)
desarticulados, mas a gente continua
interligado uns nos outros. Alagoas é nosso - O medo de escrever e de falar e
templo sagrado, é e sempre será. Quando sermos mal interpretadas. Elas dizem
me pegaram e começaram a bater em meu juntas. O medo, o medo. Para mulheres
corpo com um sabre, eu gritei com a força como elas não rola ter medo. Os opressores
que me restava: Bate, moleque. Quebra também sentem medo. Sentem pavor
braço, quebra perna, tira sangue, mas não quando percebem que elas podem abrir

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suas bocas. As chicas desbocadas. Das jurídica?6 Qual é a condição dela se


verdades coloniais que podem sair desse somente pode existir, no Brasil, com
orifício úmido, que pode engoli-los, escolta policial? Tendo sofrido inúmeras
despedaçá-los, reduzi-los a pedacinhos. ameaças por defender os direitos
Das línguas molhadas que podem sugar o reprodutivos das mulheres – o direito de
conhecimento deles, transformar em coisas abortar –, Débora exilou-se porque os
mais potentes. Dos dentes brancos que ataques se intensificaram, se amplificaram,
mastigam e deixam tudo miudinho. O espalharam-se para outros alvos: família,
medo, o medo. Também os opressores o estudantes, todas(os) aquelas(es) que
têm. estivessem próximas(os), que fizessem
Elas se levantam e seus corpos parte de sua constelação político-afetiva.
parecem arranha-céus; resta-nos erguer Pior que isso, ela passou a figurar na lista
nossas cabeças e olhar para cima. Como das personas non gratas de figuras
dervixes,5 rodam no ar e parecem etéreas. públicas, como o ex-ministro da Educação,
Não se encontram sozinhas. Junto delas que a bloqueou de suas redes sociais,
dançam os orixás e todo o terreiro se impedindo-a de realizar o exercício
ilumina. As mortas-vivas do conhecimento democrático de participação política.
são como rainhas em uma torre encarnada Escrever, pensar, refletir, nos tempos
de santos, um altar. Cosmovisões atuais, são ações que envolvem grande
ancestrais batem como ondas em seus risco, são altamente desestimuladas,
corpos, espatifam-se e voltam a bater, combatidas pelo governo. Daí ser
ininterruptamente. Banhadas, as quatro importante praticá-las como forma de
mulheres murmuram, falam em línguas, resistir. Praticá-las, de preferência,
soltam labaredas pelas narinas. As coisas incansavelmente.
ditas por elas me calam profundamente e A escrita é uma performance, uma
sinto que não tornarei a ser a mesma política, por isso me entregarei ao
depois de tê-las ouvido. Mordi, mas fui, exercício de insubordinação confrontando
sobretudo, mordida. as próprias políticas narrativas da
academia. Esse afrontamento se dá pela
Lugares partidos, escritas fraturadas: junção de teoria e experiência de vida, por
reinvenções de si teorizar a experiência e experienciar a
teoria; algo que as escritas acadêmicas,
Escrevo este texto inspirada na antropóloga com seu ideal de neutralidade e
Débora Diniz (2012), que, em seu livro objetividade, procuram evitar. Dá-se
Carta de uma orientadora, afirma que também pela ficcionalização da narrativa,
escrever é arriscar-se. Quem mais que ela pela tentativa de levar essa ideia ao
para saber o que é arriscar-se? Exilada, ela extremo, de contar uma história de maneira
se pergunta: se não sou desterrada nem literária, unindo fatos e ficção, produzindo
refugiada, qual é a minha condição bricolagens entre acontecimentos,
contextos interpretativos, teorias, narrativa
poética. Trata-se, pois, de um trabalho de
memória. Memória de um antigo fazer que
5
Dervixes são praticantes do sufismo, uma vertente foi sendo desautorizado pela tradição
mística dentro do Islã. No caso deste artigo, estou
científica que não recomenda que nos
me referindo aos dervixes da ordem sufi Mevlevi
ou Ordem dos Dervixes Rodopiantes, criada pelo pronunciemos poeticamente diante do
poeta Jalal Uddin Rumi (1207-1273), na Turquia.
Samá, a dança girante praticada por eles, tem
6
como finalidade colocar os dançarinos em Recuperado de
comunhão com o universo, possibilitando um https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/22/politica
êxtase místico. /1550871025_250666.html.

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mundo. Esse fazer antigo cola-me possível de ser seguida, pois reúne história
novamente à minha adolescência e ao ato pessoal e coletiva, utiliza-se de elementos
de escrever e ler literatura que sempre fictícios, sendo uma espécie de
estiveram intensamente presentes nesse autobiografia ficcionalizada ou memória.
período, sendo abandonados, aos poucos, Trata-se, pois, de tensionar a
ao entrar na graduação e resgatados, com individualidade para compreender o que
toda a força, a partir do doutorado e da acontece no mundo (Joysmith, 1993).
introdução das epistemologias feministas Judith Butler (2004), ao analisar a
em minha vida. Uma pergunta, então, se produção de Gloria Anzaldúa e sua
torna necessária e permeia esse processo proposta de hibridização e pensamento
de escrita performática: as verdades fronteiriço, pontua o modo como esse tipo
produzidas na academia se tornam menos de abordagem tem como finalidade
verdadeiras quando trazemos a carga afrontar o sujeito unitário da ciência
poética e ficcional para figurar em nossas moderna. Sujeito que já sabe quem é, que
narrativas? A ela se junta outra indagação: entra em uma conversação do mesmo
o quanto permitimos que os efeitos das modo como sai dela. O sujeito unitário, ao
leituras feministas modifiquem nossas encontrar-se com o outro, não arrisca suas
escritas, de modo a produzirem próprias certezas epistemológicas,
intervenções nelas próprias? permanecendo inalterável, em seu lugar,
Aqui recorro ao pensamento de Val convertendo-se em um emblema de
Flores (2010), para quem a palavra é o propriedade e território (Butler, 2004).
destino de quem recusa o cativeiro. Essa Escrever em uma perspectiva
autora intitula-se como uma proletária da feminista é reconhecer a intencionalidade
linguagem, tomando a língua como um desse ato, encontrando-se nele. Escrever
órgão a partir do qual ela pensa. Utilizar a para reconciliar gerações, como faz Ida
língua para pensar é a proposta de uma Freire (2014), escrever para criar alma,
nova figuração (Araujo, 2019) que alquimia: “A escrita é uma ferramenta para
podemos utilizar como aposta, pois com penetrar naquele mistério, mas também nos
ela podemos colocar sob perspectiva o protege, nos dá um distanciamento, nos
monolinguismo das línguas dominantes. ajuda a sobreviver” (Anzaldúa, 2000, p.
Indomesticável, a proletária da linguagem, 232). Escrever para não esquecer e também
ao escrever, coloca-se contra as estruturas para ocupar espaços dos quais fomos
da ciência e da racionalidade ortodoxa. terrivelmente apartadas. Escrever para
Para que seu projeto possa ser produzir outras cosmologias.
desenvolvido, alimenta-se dos cânones Patrícia Hill Collins (2019) e Grada
periféricos e subalternos e dá as costas aos Kilomba (2019), ao discutirem o que é
dosificadores da razão, aparta-se de ideias epistemologia, salientam que o significado
como trunfo, revelação, descobrimento. da palavra tem a ver com a investigação de
Partir da ideia de escrevivências, como padrões utilizados para avaliar o
propõe a escritora Conceição Evaristo conhecimento e porque consideramos algo
(2005), fundir vida e ciência, esgotar a como verdadeiro. Tradicionalmente,
técnica que fossiliza o relato (Flores, 2010) verdadeiro tem sido o conhecimento
é a proposta deste artigo. Ele persegue, atribuído a uma comunidade interpretativa
assim, a afirmação formulada por Gloria específica, dotada de poder simbólico e
Anzaldúa ao se referir às normatividades material para definir o que é a verdade e
acadêmicas (2000, p. 233): “[...] eles quem pode dela se servir. Nesse sentido,
mentiram, não existe separação entre vida um aparato poderoso chamado
e escrita”. A auto-história, conceito conhecimento científico moderno se
formulado por essa autora, é uma linha edifica, distribuindo regras sobre como a

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verdade deve ser validada como tal. O convidadas(os) e todas(os) se sentam em


aspecto pessoal é extirpado dessa uma mesa, como se fossem confraternizar.
construção e cria-se uma engenhoca Antes, porém, levantam seus vestidos ou
asséptica, falsamente neutra e objetiva. No abaixam suas calças para se alojarem,
entanto, Boaventura de Souza Santos confortavelmente, nas cadeiras que, na
(2002), ao falar sobre o caráter verdade, são privadas. Começam a
autobiográfico do ato científico, demonstra conversar, mencionando como as ruas de
que mesmo Descartes, em seu Discurso do Paris estão com um odor desagradável de
Método, mostra as trajetórias e valores que comida. Uma menina, subitamente, diz
participam de seu discurso científico, e o para a mãe que sente fome e é repreendida
faz de maneira evidente, anunciando que por falar algo tão grotesco na frente das
mostrará os caminhos que ele seguiu e pessoas. Um dos convidados, um homem,
expressando seu desejo de representar sua levanta-se e vai até um pequeno cômodo,
vida, como em um quadro (Santos, 2002, senta-se e abre um compartimento da
p. 84). parede e dele retira um prato com comida,
Quer queiramos assumir ou não, refeição que come vorazmente. Alguém
nossa vida está imbricada nos modos como bate à porta e ele diz: está ocupado!
produzimos conhecimento e temos Ao apresentar essa cena, tenho como
aprendido a ignorar esse fato, apagando-o intenção produzir uma articulação entre ela
de nossas narrativas. Para Uma Narayan e as reflexões do teórico jamaicano Stuart
(1997), é improvável que existam pessoas Hall (2016) a respeito de cultura e a
que não estejam inseridas no mundo de produção de conhecimento. Para ele,
algum modo, o que resulta na culturas são mapas de significados
impossibilidade de um ponto de vista que compartilhados por uma sociedade, isto é,
seja neutro. Assim sendo, recorro neste são códigos distribuídos por determinados
artigo às experiências vividas a fim de grupos para darem sentido às coisas ao seu
contrapor o modo como o pensamento redor. Seres humanos são interpretativos,
cartesiano varreu para debaixo do tapete o daí a realidade não ser um mero decalque,
universo das sensações e percepções como um mapa que contornamos
corpóreas, pretendendo-se abstrato e automaticamente. Por mais concretude que
descorporificado. A trama que compõe as possua, somos nós que interpretamos,
práticas de conhecimento é muito nomeamos, compartilhamos e damos
complexa, daí a necessidade de narrar a significados ao mundo. As turmas para as
mim mesma, trazer minhas memórias, quais apresento essa cena geralmente a
mostrar, de alguma forma, alguns dos encaram com espanto. Mas a ideia é
caminhos que segui. Insere-se, desse desnaturalizar e debater o fato de que
modo, em um movimento de fazer uma mesmo as funções fisiológicas – comer,
bricolagem de escritas e subjetividades, urinar, defecar – são significadas
“cavoucando entre lugares, inaugurando- coletivamente, de modo que
os” (Oliveira, Rocha, Moreira & Hüning, convencionamos usar a mesa para comer
2019). com outras pessoas e o banheiro para
Tenho levado há alguns semestres, urinar e defecar isoladamente, mas
na disciplina de Psicologia e Processos poderíamos utilizá-los e significá-los de
Socioculturais, do curso de Psicologia de outros modos. Essa primeira
uma universidade federal localizada na desnaturalização abre espaço para tudo o
região Nordeste, a cena do filme O que vem depois e que, em última instância,
fantasma da liberdade, de Luís Buñuel, tem a ver com um projeto de
dirigido no final dos anos de 1970. Nela, descolonização. Para Carvalho (2019),
as(os) anfitriãs(ãos) recebem as(os) descolonizar é um modo de intervir na

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constituição do espaço universitário em têm poder de contar a história que melhor


todas as suas dimensões: corpo discente e lhes couber. Levando para a área
docente, no formato institucional, no acadêmica, docentes, editores e outros
convívio e em sua conformação epistêmica especialistas são responsáveis por
como um todo (nos cursos, disciplinas, processos de certificação e aquilo que eles
ementas, teorias, entre outros aspectos). afirmam ser conhecimento acaba por,
Além disso, essa discussão tem forçosamente, atender a critérios políticos
aberto a disciplina para pensarmos como e epistemológicos vigentes (Collins, 2019).
estereótipos são construídos em torno de Para afrontar a hegemonia do
determinados grupos sociais, de modo a conhecimento normativo que chega até
essencializar as diferenças, criando um nós, tenho convidado aquelas(es) que estão
fosso entre aquelas(es) que são ao meu redor a falarem “outras línguas”,
consideradas(os) civilizadas(os) e os línguas faladas por pensadoras feministas e
“outros”. Tem também servido como decoloniais e também por autoras(es) do
espinha dorsal da disciplina para deixar pensamento negro (Oliveira, no prelo). Ou,
exposto o modo como a ciência moderna é como sugere Paul Beatriz Preciado (2005),
um mapa de significados compartilhados tenho produzido um debate epistemológico
de modo hegemônico, a ponto de tornar-se a respeito da objetividade e neutralidade
quase uma verdade naturalizada sobre as eurocentrada para uma genealogia política
distintas realidades planetárias. dos saberes. Um saber que confronta a
Compreendendo a ciência como uma ideia de transcendentalidade, daí Preciado
prática social cujos códigos são propor que ele seja um saber-vampiro: para
compartilhados, secularmente por alguns conhecer é preciso morder e ser
poucos grupos, resta pensarmos quais mordida(o), ser testemunha(o) de sua
grupos têm ficado de fora da produção de própria mutação, objetividade que se
conhecimento, ou melhor, quais grupos encarna. Para ele, ao ter acesso às
têm produzido conhecimentos que não tecnologias de produção de saber e
chegam às universidades e por que estamos deslocar o sujeito da enunciação científica,
sendo apartadas(os) delas(es). Nesse uma ruptura epistemológica acontece.
sentido, não existe melhor modo de Trata-se de estabelecer a “noite dos
mostrar o que entendo por epistemologia mortos-vivos do conhecimento”, como
senão a partir da discussão realizada por afirma o autor. Aquelas(es) que, até o
Patrícia Hill Collins (2019), para quem momento, haviam sido construídos(as)
epistemologia, sendo uma teoria geral do como objetos de perícia (médica,
conhecimento, procura compreender o psiquiátrica, antropológica e colonial),
porquê de considerarmos algo como passam a reclamar a produção de um saber
verdadeiro, como dito anteriormente. Para que é local, que é sobre elas(es)
tanto, Collins (2019) traz a história de mesmas(os) e que, principalmente,
Sally Hemings, mulher negra escravizada interroga o saber hegemônico.
por Thomas Jefferson, presidente dos As mortas-vivas do conhecimento, as
Estados Unidos, e que viria a ter com ele mulheres, tenho recorrido insistentemente
vários filhos. A versão dos descendentes de a elas, aos saberes que elas têm nos
Sally sempre foi desqualificada, até que contado há séculos. De acordo com Susan
conseguiram provar o parentesco com Bordo (2000), dificilmente vemos teóricas
Jefferson por meio do DNA. Antes disso, feministas referenciadas ao lado de
eram proprietários da verdade os teóricos como Foucault, Derrida, Kuhn,
descendentes brancos do presidente. Stuart Hall, como críticas de Disciplinas,
Contextos interpretativos, assim, são das Ciências, Filosofia, Cultura. Esses
estruturas dominadas por aquelas(es) que autores – e outros tantos também – são

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apresentados como responsáveis por consideradas ignorantes, incautas, pouco


discutirem cultura e textos, ao passo que as cultas, mesmo quando ocupam espaços de
teóricas feministas são vistas como aquelas poder. Na cena que imaginei, a boca é a
que discutem temas específicos, com superfície de domesticação e, ao mesmo
implicações limitadas, de pouco impacto tempo, da resistência sexo-colonial, e essa
para constituir novos conhecimentos sobre ideia se inspira nas discussões feitas por
questões sociais e culturais. Pensadores Grada Kilomba (2019) sobre a boca da
brancos costumam ser apresentados como escrava Anastácia. O que pretendo
responsáveis por produzirem produzir é uma performance docente, uma
conhecimentos genéricos e universais paródia tal como a da drag queen que cria
sobre o mundo. Nas palavras dela: em torno de si uma ficção, inventando
“Somente os homens fazem filosofia; as personagens e descortinando universos
mulheres servem mais para escrever, impensados. Tomo esse ponto como o
quando muito, sobre os fatos de nossa ápice da insubordinação da escrita
própria condição” (Bordo, 2000, p. 12). acadêmica, porque aqui reúno história,
Desse modo, há uma tradição que tem se ficção, teorias. Parto do princípio de que
perpetuado, na qual se acredita que essas mulheres são questionadoras e
somente homens são capazes de produzir agentes de suas vidas e dos saberes a elas
teorizações. Uma proposta feminista e associados. De acordo com Maldonado
decolonial, proposta-intervenção, tem a ver Torres (2019), a voz das(os)
com mostrar para estudantes o corpo- colonizadas(os) produz ansiedade em
objetificado de Sara Bartmaan pela ciência quem as ouve, pois existe uma fobia em
moderna até levá-las(os) para as relação às pessoas escravizadas e
cosmovisões de pensadoras(es) negras(os), colonizadas e também um terror por parte
em um exercício de inversão: não mais das(os) sujeitas(os)-cidadãs(ãos) modernos
somos nós que explicamos o mundo a quando se deparam com o fato de que a(o)
partir de nosso ponto de vista branco. colonizada(o) também pode ser agente. O
Agora são elas(es) que nos mostram tudo encontro das colonizadas encenado na
aquilo que não quisemos enxergar, afinal, abertura deste artigo traz como
somente é global o pensamento que é possibilidade a tentativa de elevar essa
capaz de utilizar dos arquivos de todo o ansiedade em sua potência máxima, de
mundo, já nos ensinou Mbembe (2017). modo a explodir aquelas(es) que se
Arquivos escritos e orais, cabe ressaltar. ancoram, tal como o sujeito unitário do
Encontrados em bibliotecas e também nas conhecimento moderno, em suas certezas
comunidades, nas histórias narradas pelas epistemológicas. Com toda a crítica
pessoas. necessária para pensar no conceito, a ideia
Por isso mesmo, iniciei este artigo de vantagem epistêmica (Ulman, 1997)
com os saberes produzidos por quatro pode figurar no encontro dessas quatro
mulheres reunidas em uma cena. mulheres, ao pensarmos que suas falas
Compreendo essas mulheres que ocupam revelam que conhecem seus contextos de
diferentes espaços geopolíticos como opressão, mas também os contextos de
formuladoras de pensamentos encarnados. suas(seus) opressoras(es). Isso lhes permite
Seus corpos, como todos os corpos, circular pelos mapas discursivos e pelas
produzem conhecimentos situados. práticas de ambos os grupos. Nas palavras
Diferentemente do corpo masculino que de Ulman (1997, p. 288), “[...] a decisão de
opera como norma (científica, médica, se situar criticamente em dois contextos,
filosófica) para todas(os) (Bordo, 2000), os embora possa levar a uma ‘vantagem
corpos delas se inscrevem nas rachaduras epistêmica’, provavelmente exigirá um
do conhecimento. Muitas vezes elas são certo preço. Pode acarretar uma sensação

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de total falta de raízes ou de qualquer imposição de alcançar objetivos


espaço em que seja possível relaxar e ficar semelhantes, muitas vezes em uma
à vontade”. dissociação entre lugar epistêmico e lugar
Mesmo colocadas(os) nas bordas do social (Bernardino-Costa, Grosfoguel,
conhecimento, as(os) mortas(os)-vivas(os) 2016).
agarram qualquer oportunidade para Nosso olhar faz tudo parecer
construírem o mundo com suas próprias homogêneo e, de algum modo, ele vai
palavras. De verdade, embora sejam muitas sendo domesticado. Converso, em algumas
as estratégias e esforços coletivos para ocasiões, com um funcionário terceirizado
apartá-las(os), cruzar muros é uma prática que faz a limpeza no bloco de aulas da
que se faz antiga, de resistências. Somos universidade na qual leciono. O que chama
levadas(os) a acreditar que todo mundo, ao minha atenção e que mobiliza nossa
cruzar os muros acadêmicos, compartilha conversa são as plantas que ele traz de sua
de um mesmo passado e de um mesmo casa e leva para o bloco. Ele vai apontando
futuro. Recordo-me de, nos últimos anos e apresentando cada uma, dizendo o nome
do ensino técnico-profissionalizante, e de quanta água precisa. Vou escutando e
estudar para o vestibular nas apostilas que esquecendo na sequência, conectada ao
um amigo, estudante de graduação, havia zelo que vai transformando um lugar sem
me dado. Da maneira mais disciplinada plantas, árido, em um pequeno jardim: o
que uma jovem de 16 anos poderia tomar jardim que ele nos dá de presente. Ele
para si, eu lia uma a uma as apostilas, costuma ficar na porta da sala de aula, do
todos os dias, horas a fios, e um mundo se lado de fora, ouvindo. Às vezes nós o
abria. Nele existiam coisas até então convidamos para entrar, mas ele sabe que
desconhecidas para mim: um universo não pode entrar e nós também sabemos que
inédito. Conteúdos de Biologia, História e não, sob risco de ser penalizado. Um dia,
Geografia que eu jamais acessara nas conversávamos enquanto esperava as(os)
escolas públicas pelas quais passei. No estudantes chegarem para começarmos a
último semestre do meu curso, uma de aula. Ele me contava que gostava de
minhas tias, observando meu esforço, trabalhar no hospital universitário para
auxiliou-me com as mensalidades de um estar perto do universo de conhecimentos
cursinho preparatório para o vestibular, que facilmente ficava à disposição de seu
mas nada substituiria o conhecimento olhar. Uma vez quiseram colocá-lo em um
adquirido na solidão do quarto de uma setor que não permitia que visse as peças
pequena casa na periferia do interior mergulhadas em formol. Executaria um
paulista. Um conhecimento de qualidade trabalho sem riqueza intelectual, confinado
não cai no colo das pessoas com a mesma em algum ambiente fechado. Rindo, ele me
facilidade ou como num passe de mágica; disse que se recusou a ir. O que o
embora as universidades, por muito tempo, interessava, de fato, era estar próximo do
tenham tentado desviar os olhos, fingindo conhecimento que ia sendo produzido, que
não enxergar a heterogeneidade de saltava por entre os dedos das pessoas, que
suas(seus) estudantes e também de chegava até ele, mesmo que ficasse parado,
algumas(ns) de suas(seus) docentes. Se do lado de fora da porta, atento, ouvindo.
parto da auto-história, que tipo de Ele nos mostra que o conhecimento não é
conhecimento produzo a partir dela que, de distribuído em proporções iguais e justas e,
outro modo, não existiria? Evidentemente, mesmo já alocadas(os) em salas de aulas,
evidencio o fato de que nem todas(os) embora acreditemos que aquele espaço seja
as(os) pesquisadoras(es) e docentes vieram democrático, uma “zona livre”, como diz
dos mesmos lugares, embora quase bell hooks (2013), onde a vontade de
todas(os) tenham, sobre suas cabeças, a estudar e aprender torna a todas(os) iguais,

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isso não retrata toda a verdade. Nada lugares, propondo modos diferentes de
melhor que as(os) mortas(os)-vivas(os) do encarar o mundo, a academia, partindo ao
conhecimento, com suas epistemes meio as práticas que circulam,
subalternizadas, para falarmos de outros incontestáveis, por seus corredores.
Tomo para pensar a atuação política
Performances discentes para um mundo desse estudante, a partir da discussão feita
decente7 por Judith Butler (2018) a respeito dos
corpos em alianças e as políticas das ruas.
Gostaria agora, para finalizar este Ela nos conta que, quando os corpos se
artigo, de refletir um pouco sobre o modo juntam nas praças, estão exercitando um
como as minhas performances como direito plural, coletivo e também
docente têm afetado e produzido em performativo de aparecerem. Essa ação
algumas(ns) estudantes performances tem como função expressiva transmitir
singulares. Tenho tentado convidá-las(os) a uma exigência corpórea por condições de
conhecerem obras de autoras(es) que falam vida mais suportáveis. Esse exercício de
do local fraturado da diferença colonial. aparecer, que a autora denomina de
Elas(es) têm sido convocadas(os) a se exercício performativo, tem conexão com
expressarem por meio de outras um direito de aparecer, uma demanda
racionalidades que não as ditadas pela corporal que grita: eu existo, não sou
ciência moderna. Racionalidades estéticas descartável. Ao exercitar esse direito, uma
têm configurado a teia de fazeres e saberes rede de solidariedade se esparrama pelo
em sala de aula. Assim, são construídos tecido social, já que só é possível existir se
cordéis, estandartes, pinturas, quadros, houver tal solidariedade. E existir nas ruas
maquetes. Gostaria, contudo, de me deter tem sua importância, algo que temos cada
em uma performance que não foi solicitada vez mais tomado consciência em nosso
durante a disciplina tampouco em outros país desde as manifestações de junho de
espaços. Esse movimento, que estou aqui 2013. Além da conexão corporal que
nomeando como performativo, nasceu nossos corpos nas ruas produzem, são
espontaneamente, pode-se dizer que seja justamente as ruas, os espaços públicos que
uma ressonância. Comecei a observá-lo são negados para alguns grupos sociais,
durante as três manifestações8 de rua que como o de mulheres negras como Carolina
aconteceram em protestos às medidas Maria de Jesus. Então, quando Will coloca
autoritárias e aos cortes na educação do seu corpo na rua, em um turbilhão de
governo de ultradireita do PSL a partir de outros corpos, andando por algumas horas,
maio de 2019. Nelas, o estudante Will,9 geralmente sob um sol escaldante,
que tem trabalhado comigo há dois anos na reivindicando o direito à educação ante os
Iniciação Científica intitulada “Pistas de cortes e abusos do ex-ministro da
Carolina Maria de Jesus para a intervenção Educação, ele carrega consigo um direito
psicossocial”, produz um apelo político e que foi usurpado historicamente: o direito
estético ao figurar nas ruas levando frases e de mulheres e homens negras(os) terem
fotografias da Carolina nos cartazes acesso à educação e o de jovens como ele,
confeccionados por ele. que, atualmente, correm o risco de perder
esse acesso duramente conquistado. Não só
7
Estou parafraseando o título de um livro de à educação, mas também à moradia,
Boaventura de Souza Santos: Saberes prudentes saneamento, alimentação, saúde. Ele torna
para uma vida decente.
pública a presença de Carolina ao tomar o
8
As manifestações aconteceram nos dias 15 e 30 de próprio corpo como extensão que segura o
maio e no dia 14 de junho de 2019, em todo o
estandarte pelas ruas. Apresenta a escritora
Brasil.
9
para aquelas(es) que não a conhecem,
Trata-se do estudante Willamys da Costa Melo.

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performa uma política de reconhecimento foram disponibilizadas pelo próprio


na qual seu corpo se conecta, em estudante: “[...] estar vivo já é estar
deferência, à memória da escritora. Ele conectado com o que é vivo, não apenas
reivindica e protesta para si, mas também além de mim mesmo, mas além da minha
para aquelas(es) que vieram antes e que humanidade, e nenhum ser e nenhum
virão futuramente. humano pode viver sem essa conexão com
Concluo este artigo com um uma rede biológica de vida que ultrapassa
pensamento de Butler (2018, p. 51) e, na o domínio do animal humano”.
sequência, imagens das performances que
Figura 3. Performance de Willamys da
Figura 1. Performance de Willamys da Costa Melo 3
Costa Melo 1

Fonte: Foto de Cláudia Leite da Silva.


Fonte: Foto de Letícia Taynara dos Santos Silva.
Figura 2. Performance de Willamys da
Costa Melo 2 Figura 4. Performance de Willamys da
Costa Melo 4

Fonte: Foto de Karoliny Nascimento.

Fonte: Foto de Letícia Taynara dos Santos Silva.

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Recebido em: 24/10/2019


Aceito em: 6/7/2020

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