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Patrocínio Cultural:
IV
Banco Credibel S/A
Produção: discurso editorial
Capa: Marco Giannotti
Editoração: Guilherme Rodrigues Neto
ii
discurso editorial
Revisão: José Teixeira Neto
Impressão e acabamento: Bartira Gráfica e Editora
Tiragem: 1.000 exemplares
Imaginário - USP, n. 3,p.7-29,1996. 6
Apresentação
Entrevista:
Profa. Dra. Marlyse Meyer
era considerado folhetim. Fui estudardisse que a avó dela no interior (quase
romance folhetim. Foi uma novidade todo e o mundo era do interior) lia ro-
uma "bomba", porque numa área toda mance folhetim que ela recortava, que
sofisticada, de repente se falava emela guardava, mas isso suscitou um
romances de "segundo time". Trabalheilitígio,^prque, eu me lembro, um aluno
com novela, que ninguém falava. Equesti o onou: "A gente vem do interior
pessoal não levava muito a sério, maspara os estudar teoria literária, e a senhora
cursos foram funcionando lindamente.vem falar de porcarias?" Eu digo: Uai!
Durante as aulas eu descobri uma A culpa não é minha! Afinal de contas,
telenovela que estava fazendo muitonão fui eu que criei vocês, vocês foram
sucesso na época, acho que era Ãgua criados por mães e avós que leram, e
Viva, quando comecei a dar um curso isso ajuda a construir o imaginário.
de teoria sobre como era estruturado Assi o m surgiu a palavra. E eu lá me
romance folhetim do século XIX. Pensei perguntei sobre o que era o imaginário?
que era meio bobagem ficar explicandoPerguntei nada! Nesse momento nasceu
esta teoria, e mandei acompanhar a no- a idéia de reunir... aconteceu o seguinte,
vela, que poucos viam na época. o curso era destinado à literatura brasi-
leira, e o pessoal não queria se separar,
e as minhas turmas sempre foram se
P.: Pelo menos poucos diziam que viam. repetindo, apenas os nomes dos cursos
iam mudando... foi surgindo um grupo,
M. M.: É, poucos admitiam que viam. ligado pelo afeto, pelo tema. Tinha gente
E, de repente, não sei como surgiuq,ue trabalhava com novela que veio
alguém tinha ido assistir ou ouvido falafal
r ar comigo. Tudo isto era considerado
sobre Os Três Mosqueteiros, e uoma assunt "meio baixo". E então disse:
aluna falou que sua avó tinha ido assisctiormo vamos chamar isso? Recordando
ou algo do gênero e eu quis fazer udm aaFrança, da École de Hautes Études,
"pesquisazinha" sobre quem tinha do que existia lá, eu falei: vamos chamar
ouvido falar de tal coisa. Foi muito Instituto dos Altos e Baixos Estudos do
engraçado, porque a mesma coisa Imaginário, isso a Miriam^ deve ter
aconteceu com o Carlos Magno (que falado para você, e a palavra começou
aparece na congada)..., estou falando a e se construir. E um ou outro me dizia:
vai surgindo na memória... uma aluna "Mas o que você entende por
12 Entrevista
imaginário?" Eu digo: não tenho sõesa até a noite, tinha uma porção de
menor idéia! Imaginário é aquilo coi quseas. Em 78, eu bolei uma SBPC
a gente imagina, aquilo que a gentienteinrãamente
o nova e louca que nunca
vê todo dia na rua, são as invenções, a
tinha acontecido, inteiramente à noite,
ficção... e não fomos muito além disso,
com vários temas: raízes culturais
em termos conceituais, sobre o que eranegras, raízes populares, produtores
o imaginário. O grupo foi se estru- intelectuais das classes populares. Tinha
turando, eu estava chegando da Europa,"mestre de Congo", então, se você
no Brasil ainda era a época de quiser, já naquela época eu estava
repressão.... Em 1975, eu fui imediatrabal
- hando com manifestações ficcio-
tamente para a SBPC. Eu ia, ouvinai a,s imaginárias do povo. Eram
aprendia sobre o Brasil, percebia que manifestações populares estudadas
não tinha negros em temas onde sedentro de uma certa perspectiva. Na
falava de negro (a cultura popular — verdade, são reconstruções do imagi-
isso era nos anos 70 — era um negóci o
nário, nesse sentido que me recolo-
muito "enquadrado" dentro das análisescaram a questão, porque o Carlos Magno
marxistas), e eu fui vendo as coisas.éJáreinterpretado no imaginário. Onde
que eu falava em congadas, quando fui há a reinterpretação? Não há teoria por
morar em Campinas, fui ver (já queparte de um "mestre de Congo" que
sabia que congada era em 13 de mai enoc)ena uma Batalha de Oliveiros e
na Rodoviária de Campinas e perguntei Ferrabrás, senão reconstruções "na
onde tinha um São Benedito aqui maicabeça"
s dele. Então o imaginário foi
perto. E me disseram: Itapira. E lá fuientrando
eu dessa forma: como uma
para Itapira. Nesse momento comecei readapt
a ação da cultura de fora, rein-
pensar não no imaginário, masterpretada, em ressignificada aqui. Eram
cultura popular. E fiz a minha primeirreconstruções
a do imaginário, essa
comunicação em 76. Foi uma épocapalavra mais uma vez entrando, mas
muito complicada, porque, não sei sseem preocupação. Em 79 ou 80,
você se lembra, em 76 a polícia impedi u
finalmente pudemos ir para o Ceará e,
a SBPC no Ceará, e a PUC a albergou. aí, eu resolvi chamar gente do meu
(...) Levantei a questão se tinha negros
grupo. Junto com a Maria Lúcia^
que queriam acompanhar essa história,criamos um título que acabou ficando a
então, inventei de prolongar as discus-nossa marca registrada: Caminhos do
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 13
Imaginário no Brasil, que, aliás,Mel acaloboeu Souza, você fez uma "imagina-
dando um título a um livro meu. Partição"
de em cima de verossimilhança. Eu
uma realidade minha, que era uma fui procurando coisas e fui aproxi-
preocupação em ver como a culturamando... ou foi minha "cabeça" que fez
européia era reinterpretada aqui no isso. E aí eu precisava encontrar um
Brasil, o que ainda continua sendo umtítulo
a para a minha comunicação e
obsessão. Qualquer livro que eu encontrei um título muito bonito. Na
começo, eu começo com isso. Entre verdade,
as são as palavras que me
linhas de Antonio Cândido e Robertoencantam, o que é falado da Maria
Schwarz, eu optei pela linha do AntoniPadi
o lha (e eu estava falando na Maria
Cândido, que diz que a cultura de foraPadilha) e o modo como ela foi sendo
construída chamei de Um Imaginário
ajudou a construir a cultura de dentro,
que há ressignificações da cultura deAndarilho. E, no ano passado, fui ho-
fora, e que, para mim, são ressignim - enageada na ABRALIC, que é a
ficações que acontecem no imaginário. ação Brasileira de Literatura
Associ
E não fui muito mais longe do que isComparada,
so. e houve uma mesa à minha
É uma palavra que eu gosto e, agora volta, que al
g uém intitulou Um Imagi-
acabei de fazer uma comunicação em nário Andarilho, e ficou designando a
mim. E eu digo: estou sempre pas-
Lisboa, o tema era "globalização", e eu
fui convidada. "Joguei" o tema da seando! (risos)... Mais sobre imaginário
comunicação que era A Igreja Católicanão sei te dizer.
e a Globalização no Século XVI. Então
são reconstruções de religião que
acontecem no imaginário e eu teP.: nhoO que a gente percebe é que,
um livro sobre Maria Padilha^ que realé mente, em vez de a senhora
uma reconstrução imaginária minha, conceituar teoricamente o imaginário,
onde a minha imaginação com aequest
çou ãao está muito relacionada à sua
pensar, se é que a imaginação "pensa",vida pessoal e à sua própria maneira de
como é que um nome pode designar, pensar. Porque em Caminhos do
tanto uma princesa espanhola do séculoImaginário no Brasil a senhora tem
XIV, quanto uma reza de feiticeira duoma passagem que diz assim, sobre o
século XVIII, ou uma pomba-gira deimaginário cultural: "Um imaginário
umbanda. Então, como diz a Laura dqeue tento reconstruir a partir do meu
14 Entrevista
que trato meus temas e vou chamandoP.:a Só que me parece que é preciso ter
atenção do leitor... E eu acho que façocoragem para se escrever desta maneira^ ^
isso mesmo! Porque você tem que notar e, me parece, também que não é qualquer
que tem essa parte de autodidata, muam s que pode escrever assim. Parece-
outra coisa é que eu nunca escrevi antm ese uma forma didática, pelo menos
de ter dado aula. Todos os meus textos para quem lê. Porque muitas vezes a
são produtos da aula, e não o contrári o. e lê textos que são brilhantes, mas
gent
Há um desejo de me fazer entender. eles exaltam ou emanam um certo ar
Isso, talvez, explicaria esse tom de fala.
pernóstico. Parece que o autor, real-
Porque há um certo tom oral nos memente, us domina o assunto e coloca
textos. O Maria Padilha não nascseoume de
nte suas certezas, e nunca as suas
aula, mas de banca de tese. Eu nunca dúvidas. O que é diferente da senhora,
comecei escrevendo. Onde escrevia que coloca inclusive as incertezas. E,
porque escrevia, para comunicações oupara o leitor, serve para que ele perceba
na Europa, meus amigos me ajudaram que ele mesmo, futuramente, se acaso
muito, sempre, através de cartas... vier a escrever alguma coisa, vai passar
Quando, depois de muito tempo, por esses caminhos da dúvida. Não
consegui dar aula na França (a gentexat e amente da maneira como a senhora
não poderia voltar aqui, por causa doescreve, porque temos de reconhecer
AI-5), a gente não era emigrado político,
que é preciso ter uma certa erudição
mas aqui as universidades estavam para escrever como a senhora escreve.
fechando. Depois de Paris, a gente foi Principalmente porque hoje não se tem
para a Suíça. Lá outra vez fiquei semai m s a formação humanista como anti-
dar aula. Meus amigos me sugeriramgament ir e. Principalmente os jovens
a todos os congressos onde se falavaperderam
de isso. Mas acho que tem esse
Brasil, e eu fui. Então o Carlos Magno duplo aspecto. É preciso ter uma
nasceu de uma situação dessas, e eu sou erudição e uma coragem de mostrar as
boa professora. Parece bagunçado, masincertezas, como as idéias vão se cons-
não é. tituindo. Porque, na verdade, isso
envolve uma criação. Não só o texto
artístico, mas o teórico tem esse aspecto
de criação que, na realidade, é um pro-
cesso, onde o todo vai-se constituindo.
16 Entrevista
que me marca, o jeito que eu semprecom fui a realidade que é por aí. Eu acabo
e o que consegui passar para a meninada,
achando que eu crio sim, porque eu sou
é de não se levar muito a sério! Isto incapaz de inventar. Eu sou capaz de
também está nos meus livros. Claro, euimaginar como é que as coisas foram,
levo muito a sério o que estou então é um problema de imaginário,
estudando, com isso não se brinca, mo ansde entra a criação. Eu achava que não
a gente... E, tenho um mestre nisso qera
ue capaz de fazer um trabalho de criação
é o Antonio Cândido. Ele tem um outro e, de repente, estou vendo que eu
jeito de escrever, mas ele tem, entre também estou fazendo uma criação.
parênteses, uma "modéstia". Mas nemAgora, quer ver onde entra outra vez o
eu sou modesta, nem ele. Nós não nimaginário
os ? É quando escrevi um texto,
sobrestimamos. Eu acho sim que sou que eu gosto muito, que é o "Voláteis e
erudita, mas isso não me dá motivo para
Versáteis...Não sei se você conhece
ser superior. Uma de minhas qualidadeseste artigo, sobre crônicas, eu fiz isso
é que eu circulo com a mesma facilidade
quando passei um mês em Minas, e
no interior de Alagoas ou num outro ficava todo dia batucando na máquina
lugar qualquer. Acho que é um jeito de escrever, feito uma louca. Estava
ser. Não é porque eu mexo com literatura
fazendo uma pesquisa a partir do levan-
que valho mais que um homem que tfaz amento na Biblioteca Nacional, que
almanaque. Se acaso isso não passar hoje, quando eu vejo o material, penso:
nos meus textos, pelo menos passou no como é que pode uma pessoa sozinha
meu ensino. É uma questão de persona- pesquisar o que eu pesquisei, criando
lidade. Mas eu tenho um grande mestre: filhos, cozinhando e sem empregada,
Maria Isaura Pereira de Queiroz. O me u na Europa não tinha nada disso...
porque
conhecimento de Brasil foi de Mariaé paixão de pesquisar! Eu estava com os
Isaura, ela me ensinou muito. E elameus cadernos todos, construindo este
também leva essas coisas. A gente escre-
texto, aí uma moça passou na janela e
veu sobre Carnaval, mas a gente brinca me disse: "A senhora está escrevendo à
o Carnaval. Eu saí na Mangueira, commáqui o na?" E eu disse: sim. E ela me
maior prazer. E Maria Isaura e eu perguntou: "A senhora escreve?" E eu
fizemos o Carnaval na Bahia. É um diasse: não... E ela ficou satisfeita! Pense
relação, que hoje se chama de objetoudm e pouco: escrever no intransitivo é
estudo, e que eu chamo de a relação escrever poesia, versos, está ligado à
18 Entrevista
uma base bastante sólida, não estouLima, que faz uma literatura sofisti-
brincando ao afirmar que não sei nada, cadíssima, o Jurandir Freire Costa, falou
pois acho que sei, e muito! Mas, e sobre
m a violência. Maria Isaura falou
cima do que eu sei e estudei, eusobre fui o Carnaval etc. E cada um de nós,
autodidata. Eu dizia, parece piada, manas fala, era acompanhado por um
vou ler uma congada como leio italiano, porque foi a La Sapienza^^ que
Marivaux. E soube, um pouco depoiorganis, zou o encontro. No meu caso,
que há uma teoria de que, por exempltin o,ha uma antropólogo que conhecia
o Victor Turner, que é antropólogo antropologia lusitana, porque ele, jus-
(que eu li um pouco, não li muito),tamente, trabalhava nas Ilhas de São
também diz que ele e mais uns outros Tomé e Príncipe. Ao apresentar o meu
criaram uma leitura do fato social que,texto, disse que estávamos diante de
no fundo, eu estava fazendo instin- uma das boas ilustrações da antropolo-
tivamente. E, nessa hora, o que eu estougia pós-moderna! Mas quando falo na
fazendo, sem perceber? Estou fazendoMaria Padilha... eu acho que a história
uma pluridisciplina. Transformo um da pluridisciplinaridade está mal
evento num texto, num texto escrito. pensada,
E e, quando a gente vai em coló-
faço uma leitura onde vejo a parte quios onde se fala sobre isso, a gente vê
que está mal conceituada. Existe outra
estética, a sintaxe etc. Isso é a pluridis-
ciplina. Se eu tivesse um aluno agora, palavra que está na moda, que é mui-
diria o que eu sempre disse: não ticulturalismo.
se Se você está a fim de
preocupe! Sem querer você vai extra-estudar o seu objeto... você está preo-
polar e varar as fronteiras. E parece qucu
epado em entender aquilo que você
isso é o mérito do pós-modernismoquer estudar, acho que você não pode
hoje: não ter mais fronteiras. Eu que, se deixar prender, principalmente com
em 1978, construí um curso chamadal ogo tão "volátil" e sutil, como é o
Novelas sem Fronteiras, estouimaginário. na "crista Você não pode se deixar
da onda"! Em Roma, no ano passado, prender por uma teoria. Não! Você vai
houve um congresso sobre cultura contornando o objeto e aí vai, quase
popular... perdão, sobre cultura brasi-que sem querer, vai entrando. Talvez,
leira, e o Massimo Canevacci estava sláe você quiser fazer uma pesquisa numa
e conhecia o meu texto sobre Marilainha mais antropológica, terá que estu-
Padilha. Estava também o Luís Costdar a mais detidamente um ou dois livros
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 25
Natureza e Naturalistas
Miriam Lifchitz Moreira Leite*
reza do ser vivo, à estrutura do programa, à maneira como é recopiado em cada gera-
ção. As modificações do programa acontecem às cegas".
Os naturalistas viajantes que escreveram Livros de Viagem tornaram-se não só
mais conhecidos do grande público, como deram também sua contribuição às
Ciências Humanas, com as minuciosas descrições do encontro de populações, lín-
guas e diferentes culturas, bem como das relações entre imigrantes europeus e as
populações locais (Pranchas 4 e 5).
Mas houve outros viajantes naturalistas, menos conhecidos, que trabalharam e
contribuíram para a Ciência, junto às primeiras associações científicas e museus, já
com maiores restrições econômicas e margem de manobra mais reduzida em sua ati-
vidade. Não tinham nem a autonomia, nem o prestígio de que gozaram alguns dos
naturalistas consultados. Estavam sujeitos a restrições e cortes de verbas e à ideolo-
gia dos diretores dos museus, sempre às voltas com a utilidade imediata de seus
trabalhos, que precisava ser demonstrada em atividades didáticas e em sua partici-
pação na resolução dos problemas do país em que estavam. Começava a se delinear
o perfil do funcionário (Figueirôa, 1987 e 1992; Lopes, 1993) sobre o do cientista.
Alguns deixavam de se enquadrar propriamente como viajantes estrangeiros, pois
inúmeros não voltaram ao país de origem, constituindo família no Brasil ou morren-
do afogados na travessia de rios ou sob o peso de montanhas de papel.
No Arquivo do Museu Nacional, encontrou-se correspondência relativa a tra-
balhos estáveis ou temporários, como os de Frederico Sellow, Emilio Germon, Fre-
derico Wagner, Luiz Riedel, Eng. Henrique Guilherme Fernando Halfeld, Arsene
Boraguin, Julião Brassus, Conde de Ia Hure, Dr. Herman Blumenau, Dr. Couto
Magalhães, Carlos Schreiner, Dr. Wilkelen, Dr. Fritz Muller, Carlos Schwake, Louis
Couty, Dr. Orville Albert Derby, Herbert Huntington Smith, Dr. Hermann von
Ihering, Dr. A. Glaziou, Dr. Emilio Augusto Goeldi, Gustavo Rubels e Ernest
Heinrich Georg Ulle.
Observou-se nesse mesmo Arquivo uma alteração na atitude das normas
estatais diante de seus cientistas. São dois os aspectos revelados: de um lado mostra-
se a conveniência de preencher, por concurso, os lugares de naturalistas, o que tanto
pode significar a busca de melhor preparo de seus funcionários, como a existência de
maior número de candidatos aos limitados lugares. O outro aspecto é a alteração do
título do cientista. A partir de 1894, a correspondência está registrada como referente
a naturalista ajudante. É possível pensar num erro do escrivão, já que erros é que não
faltam nesses registros. Mas a repetição, daí por diante, da designação de naturalista-
ajudante, e da abertura de inscrição para o concurso para esse cargo, acaba certifican-
do que houve uma desqualificação da função, em todas as seções do Museu. Essa
32
Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.44-57,1996.
Anexo I
Naturalistas Estrangeiros Consultados^^
Nome Origem Estada no Brasil Idade Profissão Obras
Consultadas
Langsdorff
1774* - 1852-^ Wollstein 1813-1830 48 Diplomata Diário
Sellow, F. Cartas e
1789* - 1831'u' Potsdam 11814-1831 25 Naturalista Testamento
Maximiliano
1782* - 1831'u' Prússia 1815-1817 33 Naturalista Relatório
Martius
1794* - 1868'fr Ba viera 1817-1821 23 Botânico Diário
Spix
1781* - 1826'í^ Ba viera 1817-1820 36 Zoólogo Diário
Pohl, J. E.
1782* - 1834'u' Áustria 1817-1821 35 Mineralogista Diário
St.-Hilaire
1779* - 1853-^ França 1820-1821 39 Botânico Diário
D'Orbigny
1802* - 1857'u' França 1825 28 Naturalista Relatório
Darwin, C. R.
1809* - 1882Í' Inglaterra 1832 23 Naturalista Diário
Lund, P. W. Cartas e
1801* - 1880í= Dinamarca 1825-1880 24 Paleontólogo Biografia
Gardner
1812* - 1849D' Escócia 1836-1841 24 Médico Diário
Castelnau
1812* - 18801h França 1843 31 Diplomata Relatório
L
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.45-57,1996.
Pfeiffer, I.
1795* - 18581r' Áustria 1846 51 Geógrafa Diário
Bates, H.
1825* - 18921^ Inglaterra 1848 23 Entomólogo Diário
Burmeister, H.
1807* - 18761^ Prússia 1850 43 Naturalista Relatório
Clark, H.
s./d. Inglaterra 1856 s./d. Entomólogo Cartas
Avé-Lallement
1807* - 187611' Lübeck 1857-1858 45 Médico Relatório
Tschudi,
1818* - 188711' Suíça 1857 39 Diplomata Relatório
Hart, C. F.
1840* - 18781}' Canadá 1865 25 Geólogo Relatório
Agassiz, L. Suíça
1807* - 187311" EUA 1865 58 Naturalista Diário
Giglioli, E. H.
1845* - 19091}" Itália 1865 20 Anatomista Diário
Müller, F.
1822 - 18971}" Erfurt 1852-1897 30 Naturalista Diário
Derby, 0. Relatório e
1851* - 19151}" EUA 1875-1915 19 Geólogo Teses
Smith, H. H.
1851* - 19191}" EUA 1873-1878 27 Naturalista Relatório
Tereza
1850* - 19251}" Ba viera 1888 38 Naturalista Diário
Goeldi, E.
1859* -19171}" Suíça 1886 - 1917 27 Naturalista Relatório
* Nascimento lí" Morte
32
Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.46-57,1996.
Notas
Referências Bibliográficas
Ensaios Biográficos
Livros de Viagem
j
32
Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.50-57,1996.
* Instituto de Geociências-UNICAMP.
60 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.
Emílio Goeldi, o zoólogo suíço que vai ser o diretor do atual Museu Paraense
Emílio Goeldi em Belém, de 1894 a 1907, seria implacável com seus antecessores,
delimitando uma "espécie de marco separativo entre o passado e futuro do Museu"
(Goeldi, 1894: 375), que fora fundado por Domingos Soares Ferreira Penna, nos
anos de 1870.
De fato, transformando a instituição em um Museu científico característico do
final do século passado, Goeldi propunha que o Museu Paraense se dedicasse "ao
estudo, ao desenvolvimento e à vulgarização da História Natural e Etnologia do
Estado do Pará e da Amazônia em particular e do Brasil, da América do Sul e do con-
tinente americano em geral'"^.
Se, para isso, o diretor do Museu Paraense tinha sua instituição bem equipada
com os já então imprescindíveis Jardins Botânico e Zoológico e sua revista científi-
ca - o Boletim do Museu Paraense - no entanto, as mesmas imagens dos palácios
das ciências vitorianos, que dançavam nas cabeças dos homens de museus nas
colônias inglesas, como dizia Sheets-Pyenson (1988), também povoavam a mente de
Goeldi.
66 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.
de estudo, outra das preocupações centrais de Ihering foi manter o caráter científico
da Revista do Museu Paulista.
Como F. A. Barthe, curador do British Museum, que, em sua viagem de
levantamento dos Museus vinculados ao Império Britânico, dividiu os museus em
metropolitanos e coloniais, ou L. V. Coleman, que agrupou os museus latino-ameri-
canos, em nacionais, provinciais, universitários, escolares e particulares (Bather,
1895: 193-239; Coleman, 1939), Ihering também propôs sua tipologia de Museus,
após uma viagem à Europa exatamente para estudar os "progressos e a organização"
dos diferentes tipos de museus. Ele distinguiu três grupos de Museus, baseados em
suas coleções científicas: museus centrais, provinciais e especializados (Ihering,
1907: 431-49).
"Museus Centrais" seriam apenas os das grandes capitais dos principais países
da Europa, que como tais só se manteriam se conseguissem sair da sua então situação
crítica, por meio de uma reorganização completa. Os Museus das Províncias, dos
Municípios e das Universidades caracterizavam-se em geral por não terem planos
muito definidos de pesquisa e, quanto aos museus especializados, apesar de serem em
número limitadíssimo, eram os que em sua opinião melhor correspondiam às exi-
gências da ciência. Ihering, criando uma polêmica com o Museu Nacional do Rio de
Janeiro, dizia existirem na América do Sul apenas dois Museus Especializados e de
excelência científica: o seu em São Paulo e o de Goeldi na Amazônia. E propunha que
seus exemplos fossem seguidos.
Duvidando que os grandes Museus fossem capazes de acompanhar as modifi-
cações que o desenvolvimento da ciência exigia, declarava que o futuro seria dos
Museus Especializados.
E aí partia para o que hoje nos soa um pouco estranho: a defesa de um "Museu
de Moluscos". A bem da verdade, defendia mesmo e valorizava a sua especialidade,
que considerava, até então, bastante injustiçada pela ciência dos museus:
"Um dos grandes grupos do Reino Animal, que é o mais descuidado em todos os
Museus, é o dos moluscos, que em geral entregam-se todas as classes a um único
especialista que às vezes ainda tem de se ocupar das conchas fósseis (seu caso)
enquanto para os insetos por exemplo já existem especialistas distintos para Lepi-
dópteros, Coleópteros etc. É excusado dizer que é absolutamente impossível a um
naturalista estudar ao mesmo tempo os moluscos terrestres, de água doce e do mar,
as lesmas tão bem como os Nudibranchios, os Cephalopdes e ainda os Pteropodes, não
falando dos moluscos fósseis... É só um Museu dedicado aos Moluscos que será capaz
de executar trabalhos dessa ordem" (Ihering, 1907: 445-6).
69 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.
Considerações finais
de sua produção científica e de sua pesquisa experimental, ao lado das funções de ca-
talogação e classificação das coleções. Especializaram-se na tentativa de não ser
superados e exerceram um papel pioneiro na institucionalização de áreas de conhe-
cimento no país, como a Paleontologia, Antropologia e mesmo Fisiologia Experi-
mental, rompendo a mesma tradição naturalista que inauguraram enquanto institui-
ções no país.
Abstract: During the 19th century the National Museum ofRio de Janeiro and other
Brazilian museums established their contribution to the process of institucionalization
of Natural Sciences in the country. These institutional loci, constituted especifically to
gather collections and to allow the advancement oftaxonomic and systematic studies,
have witnessed not only the existence ofscientific activities in Natural History in the last
century in Brazil but also demonstrated that the quantity, the quality and the continuity
of their scientific manifestations have surpassed many expectations, Thispaper comments
upon some aspects ofthe different world vision, conceptions and institutional models
that coexisted in Brazilian museums, from the point ofview offoreign naturalists who
have visited them or have worked there,
Key-words: natural sciences - museum - taxonomy - institutional models
74 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.
Notas
Referências Bibliográficas
toria Natural e Ethnographia, Belém: Typ. de Alfredo Silva & Cia. (Fase. 1,
Vol. III), 1896.
. "Relatório sobre o Estado do Museu Paraense, apresentado a S. Exc. o sr.
Dr. Governador do Estado do Pará". In: Relatórios apresentados ao sr.
Governador do Estado do Pará Dr, Lauro Sodré pelos Chefes das Reparti-
ções Estaduais. Belém: Typ. do Diário Official, 1894.
GRAHAM, M. Diário de uma Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1990 (Reconquista do Brasil, 2. série, vol. 157).
IHERING, H. von "História do Monumento do Ypiranga e do Museu Paulista".
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Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Introdução à
Herpetologia do Brasil
*
O Systema Naturae de Lineu, que chegou à maturidade por volta de 1758, foi
o clímax da primeira fase da zoologia moderna, isto é, um catálogo profissional dos
animais conhecidos. Sua importância é comprovada por ter sido escolhido como o
fundamento da nomenclatura zoológica, mas também pelo grande número de tradu-
ções e adaptações áosystema e de obras gerais semelhantes (por exemplo, Lecépède,
* Fac-símile Reprints in Herpetology. Society for the Study of Amphibians and Reptiles, 1981 (com
autorização da Sociedade Patrocinadora). Tradução de Miriam L. Moreira Leite.
** Museu de Zoologia-USP.
80 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Os naturalistas
Johann Baptist von Spix^ (fig. 1) nasceu em Hõchastad-an-der-Aisch, Baviera,
em 9 de fevereiro de 1781, e morreu em Munique, em 15 de maio de 1826. Preten-
dia fazer uma carreira religiosa, mas, após dois anos num seminário teológico de
Würzburg, mudou para medicina e se formou em 1806. Foi para Paris, em 1809, pa-
ra se especializar em anatomia comparada, provavelmente no laboratório de Cuvier.
De volta a Munique, publicou uma longa crítica a todas as classificações zoológicas,
de Aristóteles a seus dias. Por causa desse trabalho foi indicado para curador do
museu da Academia Bávara de Ciências. Em 1813, publicou nos Denkschriften da
Academia um artigo sobre primatas, principalmente sobre algumas espécies do Novo
Mundo. Este artigo parece ter tido pouca repercussão; pelo menos, não consegui
encontrar dele nenhuma citação substantiva. Então, em 1815, Spix publicou sua
Cephalogenesis, pequena monografia sobre anatomia e embriologia comparada do
crânio dos vertebrados, que é citada de maneira neutra em algumas fontes do início
do século XIX (como a Erpétologie Générale de Duméril, Bibron e Duméril).
Em 1817, Spix estava nesse ponto quando foi escolhido para juntar-se à
expedição para o Brasil: 36 anos, boa formação, posição profissional respeitável e
algumas publicações sólidas, se não brilhantes. Era, sem dúvida, uma escolha natural
para a metade zoológica da tarefa.
Não se dava o mesmo com Karl Friedrich Philipp von Martius (fig. 1), o
companheiro que lhe designaram. Nascido em Erlangen, em 17 de abril de 1794,
faleceu em Munique, em 13 de dezembro de 1868. Martius, o filho de um farma-
cêutico, estudara medicina em sua cidade natal, e se formara em 1814. Sua disserta-
tio inauguralis era sobre as plantas dos jardins botânicos de Erlangen; pouco depois
(1817) publicou (sem dúvida, como decorrência) a flora criptogâmica da região.
Entrou na Academia Bávara como aluno em 1814, e foi nomeado assistente em 1816. A
expedição para o Brasil foi seu primeiro emprego profissional.
83 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
O itinerário
É evidentemente necessário compreender os caminhos seguidos por Spix e
Martius em suas viagens, do ponto de vista prático da identificação de localidades-
tipo. Contudo, é uma necessidade menor, se comparada à de seguir a percepção que
tiveram dos principais tipos de vegetação. O texto da Reise é detalhado, e o mapa
que a acompanha, grosseiro como não pode deixar de ser, tão repleto de localidades
que torna uma tarefa imediata passar a limpo o itinerário. É notável que, com a única
exceção da estrada entre Rio de Janeiro e São Paulo, por razões políticas que virão
84 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
explicadas abaixo, os velhos caminhos são usados até hoje; a maioria agora está
debaixo de asfalto ou concreto.
Apesar de trabalho prévio de outros autores sobre este fácil itinerário, preferi
listar todas as localidades^ e identificar especificamente aquelas necessárias para a
preparação do mapa (fig. 2), ou outras merecedoras de menção. No que segue, utilizo
nomes correntes, omitindo comentários sobre ortografia imprópria ou obsoleta e
mudanças de nomes; estas serão discutidas somente quando tiverem uma importância
específica.
Fazenda Mandioca
Durante sua estada no Rio, Spix e Martius, como todos os naturalistas euro-
peus contemporâneos, visitaram a Fazenda "Mandioca", propriedade do Barão
Langsdorff, o cônsul russo e por sua vez um bom naturalista, nas fraldas da Serra dos
Órgãos, ao norte do Rio. Foram um pouco além da fazenda, chegando perto de Três
Rios, próximo ao Rio Paraíba. Não é possível avaliar exatamente a extensão da
viagem, mas, aparentemente, levou entre uma e duas semanas; foi o primeiro contato
real com a Floresta Atlântica.
Minas Novas
Atingiram esta área depois de algumas semanas de viagem direta, descendo o
vale do Rio Araçuaí para Minas Novas, Araçuaí e Virgem da Lapa (então São Do-
mingos). Essa é uma área extremamente complicada no que se refere à vegetação, e
Martius apresentou um valioso relatório sobre ela. Não ficaram lá por muito tempo,
mas continuaram logo (aparentemente na primeira semana de julho) para o São
Francisco.
De Salvador a Juazeiro
A primeira parte desta viagem, que começou em 18 de fevereiro de 1819, foi
realizada em embarcações até Cachoeira, onde Spix e Martius reuniram sua tropa de
muares e partiram, primeiro para o norte e depois para o noroeste, pelas caatingas,
para Queimadas e Senhor do Bonfim. A seca era intensa, os rios e poços estavam
secos.
Apesar da estação desfavorável, os viajantes não abandonaram seu propósito
de visitar o meteorito de Bendegó, perto de Monte Santo, uns 100 quilômetros a les-
te de Senhor do Bonfim. A viagem durou de 16 a 25 de maio e foi bem-sucedida:
não só viram a pedra, mas também coletaram diversos fósseis de mamíferos. Trinta
e nove dias depois de deixar Salvador, chegaram a Juazeiro, no São Francisco, a 29
de março.
De Juazeiro a Oeiras
Spix e Martius ficaram na margem direita, ao sul do Rio São Francisco, por
pouco mais de três semanas; em 21 de abril, atravessaram o rio para Pernambuco e
foram para Oeiras, que era então a capital do Piauí, pela via mais curta: através da
Serra dos Dois Irmãos, um pouco ao sul da atual estrada de ferro e ao longo do vale
90 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
do Rio Canindé. Voltaram, então, das caatingas para os cerrados. Chovia nas
caatingas do oeste de Pernambuco, e a viagem, que durou 13 dias, não foi difícil;
contudo, a malária estava maltratando os dois viajantes, que resolveram partir ime-
diatamente para São Luís do Maranhão.
Belém e vizinhança
Spix e Martius ficaram em Belém até 21 de agosto. Evidentemente fizeram
muita coleta de material em volta da cidade e fizeram uma excursão subindo o Rio
Guamá, no leste do Pará.
De Belém a Manaus
Os naturalistas aparelharam um barco de 15 toneladas tripulado por oito índios
e uma escolta militar e subiram o Amazonas. Belém não fica no Amazonas: fica na
91 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Baía de Marajó, que é a continuação do Rio Pará. Este não é propriamente um rio, mas
uma série de baías drenando o Rio Tocantins e as terras a oeste dele. Para atingir o
Amazonas, de Belém, viaja-se para oeste baía acima, e da-se a volta para o norte ao
longo de um dos furos que constituem o limite ocidental impreciso da Ilha de Mara-
jó e que fluem para o Amazonas, próximo ao estuário. Para chegar à Baía de Marajó
a partir de Belém, pode-se tomar o caminho direto, que é perigoso para uma pequena
embarcação, dada a força das ondas, ou utilizar uma série de braços protegidos que
ligam o Guamá inferior ao estuário do Tocantins. Spix e Martius tomaram esta úl-
tima opção e viajaram através da mata da várzea, que sofre enchentes sazonais dos
rios e diárias das marés. Pararam em Breves, no estreito do mesmo nome, passaram
o estreito de Tajapuru e atingiram o Amazonas, abaixo de Gurupá. Subiram o
Amazonas da forma usual para embarcações pequenas, evitando os segmentos
diretos e desimpedidos, que permitem que o vento levante águas turbulentas,
preferindo os canais laterais estreitos e protegidos ("paranás" e "furos"). Entraram
assim na boca do Xingu, atrás da grande ilha de Urucuricaia, desembarcaram no
Porto de Moz, e depois continuaram paralelamente ao Amazonas, atravessando o
Furo de Aquiqui. Prosseguiram para Santarém, na embocadura do Tapajós, onde
pararam para descansar. A parada seguinte foi Parintins, onde fizeram boas coletas.
A região de Silves e de Itacoatiara também foi visitada. Atingiram Manaus três meses
e meio depois de deixar Belém.
O Solimões e Ega
A estada em Manaus foi curta ("alguns dias"), e incluiu uma rápida excursão
a Manacapuru, no Solimões, que Martius insistiu em chamar "Manacaru". Aqui
foram coletados dois grandes jacarés e foram preparados seus esqueletos; foi um dos
poucos casos em que as notas de viagem permitem que se associe espécime a loca-
lidade. Ao subir o rio, viram pela primeira vez a postura de ovos da Podocnemis
expansa na praia de Ajaratuba, perto da embocadura do Purus; teriam mais duas
oportunidades de ver a extração da gordura dos ovos. Pararam em Coari para um
rápido descanso, e fizeram algumas coletas na vizinhança. Contam que viram aí uma
família de jacarés brincando com a cabeça de um índio, morto dois dias antes pelo
maior dos animais. A próxima parada foi Tefé, provavelmente em 19 ou 20 de
novembro, pois a viagem de Manaus levou cerca de 17 dias. Na área geral do Lago
Tefé, os viajantes ficaram umas três semanas, e então, pela segunda vez desde sua
92 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
chegada ao Rio, separaram seus caminhos por algum tempo: Spix seguiu pelo
Solimões (e depois pelo Negro) e Martius percorreu o Japurá até onde é hoje ter-
ritório colombiano.
Os livros herpetológicos
A ordem pretendida dos três livros herpetológicos era: I, Lacertae; II, Serpen-
tes; III, Testudines, Ranae. Contudo, os volumes II e III foram publicados em 1824,
e o volume I, em 1825. Vamos discuti-los na ordem cronológica. Não comento a
situação atual das espécies quando a informação encontra-se nas listas remissivas de
Peters & Orejas Miranda (1970), Peters & Donoso-Barros (1970), Wermuth &
Merten (1961), Gorham (1966) ou Duellman (1977). As mudanças posteriores estão
discutidas nas notas de rodapé.
Tartarugas e cágados
Spix descreveu como novas 16 espécies de quelônios, das quais somente três
eram válidas. Como no caso das cobras, uma espécie européia, Mauremys caspica
leprosa, se insinuou na coleção.
Rãs e sapos
Spix descreveu 53 espécies de sapos. Em três casos (Hyla bicolor, Bufo agua,
Bufo nasutus), usou nomes específicos dos autores anteriores nas espécies corretas,
mas sem referência explícita. Por analogia com as serpentes, assumo a posição de que
essas formas não foram descritas como novas, mas só citadas, seja na forma original,
seja em novas combinações. Dezessete espécies efetivamente descritas são aceitas
correntemente como válidas.
Lagartos e crocodilos
No último livro, Species Novae Lacertarum, Spix descreveu quatro jacarés e
37 lagartos. Apenas um dos jacarés é correntemente considerado válido. Como no
caso dos sapos, três espécies (Polychrus marmoratus, Tupinambis monitor e Tejus
ameiva) não poderiam ser consideradas novas: são nomes previamente existentes,
utilizados adequadamente por Spix. Dos 34 lagartos, 14 são aceitos correntemente
como válidos e 20 são considerados sinônimos.
As localidades
o conceito atual de "localidade-tipo" - o lugar geográfico em que o holótipo
de uma espécie foi coletado - não existia e, na verdade, não era necessário no início
do século XIX. O dado importante era a "pátria", a área geral em que a espécie se
encontra. Portanto, a maneira habitual de fornecer a informação era falar do habitai
("Habita" - alternativamente, "é raro no" ou é "abundante em" - um determinado
lugar). Este lugar era registrado em variável detalhe, dependendo das circunstân-
cias: às vezes, o nome do país era considerado suficiente, mesmo quando havia
informação mais precisa; em outras ocasiões, vinha citada uma localidade bem
definida. Nos livros de Spix encontram-se todos os tipos possíveis de citação e cada
uma deve ser discutida em seus próprios méritos.
Ao tratar de localidades antigas, mesmo as mais bem definidas, é necessário
levar em conta diversos problemas práticos ligados a mudanças sofridas pelos
aglomerados humanos depois de visitados pelos naturalistas. Muitas localidades
cresceram, algumas geometricamente; o que era "perto do Pará" (ou Rio de Janeiro),
no tempo de Spix, está hoje muito mais próximo do centro que da periferia da cidade.
Por essa razão, ignoro aqui os advérbios "ad", "prope", e "juxta", que indicam proxi-
midade, e cito unicamente o nome da respectiva localidade (por ex.. Rio de Janeiro,
Bahia, Ega). Outra conseqüência do crescimento das cidades e da expansão da agri-
cultura é obviamente a mudança ecológica. Uma localidade-tipo pode ter se altera-
do tanto, que se tenha tornado sem sentido.
Desse ponto de vista, é preciso dizer que, por conterem quase infalivelmente
notas ecológicas, as localidades de Spix são mais úteis do que se tivessem sido mais
bem definidas geograficamente.
É também freqüente para as localidades mudar de lugar e manter o nome, pelo
lugar ter sido considerado insalubre, ou o traçado de uma estrada mudar, ou um rio
cortar um meandro etc. Os livros de Spix não contêm esses problemas; nem apre-
sentam dificuldades provenientes de mudanças sucessivas dos nomes dos lugares ou
da escrita errada dos naturalistas. Levanta algumas dúvidas, mas é fácil a sua solução.
O único problema maior das localidades de Spix resulta de um hábito da antiga
América do Sul de dar o mesmo nome a uma província e à capital; isso acontece nos
casos do Rio de Janeiro, Bahia e Pará, que serão discutidos abaixo.
Ao discutir as localidades-tipo seguirei tão de perto quanto possível a seqüência
da Reise, Deve-se lembrar que a mesma espécie pode ter duas ou mais "localidades-tipo",
pelo fato de os viajantes as terem encontrado e reconhecido em partes diferentes do país.
106 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Espécies excluídas
A seguir, omito as espécies para as quais não foram citadas as localidades;
omito também as quatro espécies de serpentes e as três de lagartos para as quais não
houve intenção de descrever como novas, mas apenas como novas combinações:
Elaps melanocephalus, Natrix chiametla, N. bicarinata, Bothrops surucucu, Hyla
bicolor, Bufo agua, B. nasutus, Polychrus marmoratus, Tejus ameiva e Tupinambis
monitor.
Finalmente, antes de entrar na discussão de localidades específicas, é necessá-
rio considerar as seis espécies européias que penetraram na coleção brasiliana: Emys
marmórea (Mauremys caspica leprosa), Amphisbaena oxyura (= Blanus cinereus),
Natrix bahiensis (= Coluber hippocrepis), Natrix lacertina (=Malpolon
monspessulanum), N. cherseoides (= N. maura) e N, ocellata (= N. maura), Estas
espécies têm uma coisa em comum: ocorrem todas na Península Ibérica e no nordeste
da África. Isso torna tentador imaginar que foram acrescentadas involuntariamente
à coleção brasileira em Portugal, na ocasião em que o material trazido do Brasil nu-
ma embarcação portuguesa foi transladado para a austríaca. Contudo, não existe
coisa alguma na Reise que apóie essa hipótese.
Por outro lado, estas seis espécies européias introduzidas nos ensinam uma
lição valiosa: para cinco delas Spix cita localidades brasileiras tão bem definidas
quanto quaisquer outras da coleção. Não conhecemos o sistema de etiquetagem ou
rotulação utilizada na ocasião, mas, evidentemente, admitia erros graves.
Rio de Janeiro
A cidade do Rio de Janeiro apresenta até hoje florestas e parques que abrigam
uma rica fauna; naturalmente 160 anos atrás deve ter havido muito maior abundân-
cia e diversidade de animais. As espécies seguintes foram coletadas na cidade do Rio
ou suas vizinhanças: Elaps venustissimus, Leposternon microcephalus (também na
Mandioca), aculeatus ePygopus cariococca. Especificamente desta última se
diz que foi coletada no Corcovado, perto da fonte chamada "da Carioca", que os
naturalistas grafavam "Cariococca". Todas essas espécies existem hoje na cidade.
As seguintes formas foram atribuídas especificamente à Província do Rio de
Janeiro: Rana pachypus (com variedades na Bahia e Pará), R. labyrinthica, Hyla
107 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Bahia
Da cidade da Bahia (hoje Salvador, 13"00'S, 38°30'W) estão listadas sete
espécies: Pipa cururu (também do Amazonas), Jacaretinga moschifer, Natrix G.
Forsteri (também na província), N. punctatissima, Ophis merremii, Bothrops me-
gaera e Rana mystacea. Todas as atribuições são plausíveis, com exceção da Pipa
pipa, que não existe em Salvador. Contudo, a Pipa carvalhoi existe. Para duas
espécies, Gymnodactylus geckoides e Agama cyclurus, a localidade fornecida é
''corifinibus Bahiae'\ Consultei colegas versados em latim e sua opinão foi que a
expressão significa mais provavelmente os limites da província que os arredores da
cidade. Não concordo. A expressão "confinibus" é também usada por duas vezes por
Spix. Uma é para Xiphosoma ornatum, que ''habitai in aquis fluminis Solimõens
confinibus", com a versão francesa, "encontra-se nas águas do rio Solimões". O ou-
tro caso de emprego da palavra é no caso do Anolis violaceus: ''confinibus Parae
A aplicação da expressão a um rio parece excluir a idéia de territorialidade e propi-
ciar a de proximidade, indicando a cidade, e não a província. O caso do Pará será
discutido abaixo.
Explicitamente da província são citados: Natrix G. Forsteri (também na
cidade), Natrix melanostigma, Bothrops leucostigma, B. neuweidi, B. leucurus,
Crotalus cascavella, Amphisbaena vermicularis, Testudo cagado, Rana pygmaea,
Hyla ranoides, H. albomarginata, H. bipunctata, H. strigilata, H. x-signata, Büfo
stellatus, B. ephippium, B. albifrons, B. granulosus, Agama nigrocollaris, Gecko
cruciger, Thecadactylus pollicaris, Tejus tritaeniatus.
No caso do Bothrops taeniatus o texto latino (''ad flumen Amazonum'')
contradiz o francês ("na província da Bahia"). Como a espécie é um sinônimo de
Bothrops jararaca, a última localidade evidentemente deve ser preferida, pois
jararaca não existe na Amazônia. Restam também ser compreendidas como referen-
tes à província as localidades "no mato", de Iguana lophyroides (''in sylvis Rio de
Janeiro, Bahiae"), Lophyrus margaritaceus ("in sylvis Bahiae et Solimõens'') e
Polychrus acutirostris ("in sylvis Bahiae"). Da mesma forma, diz-se que a Iguana
squamosa ocorre "ad ripam lacus etfluminum Bahiae, Parae'' (nas margens dos la-
gos e dos rios). Da Bahia sem outra qualificação r e g i s t r a r a m p a c h y p u s var. 1,
Agama hispida (também Rio de Janeiro) e Té-jw^ ocellifer. As mesmas considerações
aplicam-se como no caso do Rio.
Spix e Martius viajaram extensivamente na Província da Bahia, que era menor
que o estado atual: as fronteiras do norte e do sul eram as mesmas, mas a oeste a
109 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Rio Itapicuru
A viagem pelo Piauí não deixou marcas nos livros herpetológicos de Spix.
Depois da Bahia, a primeira localidade citada é o Rio Itapicuru no Maranhão
(Jtapicuru na ortografia de Martius). Registraram: Elaps martii, Bufo semilineatus,
B. globulosus, Iguana viridis (também do São Francisco) e Kentropyx calcaratus.
Spix e Martius atingiram o rio em Caxias, que escrevem "Cachias"(04''50'S,
43"2rW), e desceram calmamente até o atual Arraial (02"37'S, 44°4rW)2o.
Pará
"Pará" no século XIX designava a província, mas também como abreviatura
de Santa Maria de Belém do Grão Pará, a atual cidade de Belém ( 0 r 2 6 ' S , 48"^
29'W). Duas espécies são explicitamente atribuídas à cidade, Stenostoma albifrons
e Chelys matamata.
Dizia-se que uma espécie, Anolis violaceus, existia em ''confinibus Parae'\
Acho que, como no caso da Bahia, é uma referência aos subúrbios da cidade, e não
às fronteiras da província. Spix e Martius atravessaram as fronteiras do Pará apenas
uma vez, rapidamente, ao subir o Amazonas; todo material da região é chamado
''flumen Amazonum'' ou alguma variação gramatical disso. Quanto ao mais, os na-
turalistas não viajaram na Província do Pará, a não ser por uma rápida excursão de
Martius sozinho^\ em 1820, para ver a "pororoca". Subiu o Rio Guamá (cuja em-
bocadura fica em Belém propriamente dita) até a embocadura do Capim (OlMrS,
47"7'W).
Três espécies referem-se ao Pará sem outra qualificação: Rana pachypus var.
1, Iguana squamosa (também na Bahia) e Scincus bistriatus. Acredito que a cidade
de Belém deveria ser considerada como sua localidade.
Rio Amazonas
o Amazonas quando entra no Brasil adquire o nome de Solimões, que mantém
até a boca do Negro, onde volta a ser Amazonas, ou, no uso local, o Baixo Amazonas.
Como se disse na discussão do itinerário, os canais a oeste de Marajó e do Rio Pará
111 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
não são considerados parte do Amazonas. Spix e Martius parecem ter estado
conscientes disto^^, embora exista uma citação perturbadora: dizem que Chelys
matamata existe "perto da cidade de Belém em águas estagnadas do Rio Amazo-
nas". Creio ser melhor considerar esta referência como um lapsus calami e tomar
**flumen Amazonum " neste caso como a faixa do rio entre a embocadura do Taj apuru
( 0 r 0 2 ' S , 5 r 0 2 ' W ) e a embocadura do Negro (03°08'S, 59"55'W) e os canais
paralelos ("paranás"e "furos") seguidos normalmente pelos viajantes em embarca-
ções pequenas.
As espécies rotuladas "Rio Amazonas" são Natrix sexcarinata, Xiphosoma
dorsuale, Bothrops fúria, B. taeniatus. Testado sculpta, T. carbonaria, Rana gigas,
R. palmipeSy R. coriacea, R. miliaris, Hyla affinis, H. variolosa, H. abbreviata, Bufo
lazaruSy B. naricus, B. nasutus, Pipa cururu (também na Bahia), Caiman niger,
Lophyrus ochrocollaris, L. aureonitens, Leposoma scincoides. Três dos nomes se
aplicam a espécies que não se sabe se existem na Amazônia: Bothrops taeniatus (=
B. jararaca), Hyla abbreviata (= thoropa miliaris) e Rana miliaris (= T. miliaris).
Rio Solimões
As espécies seguintes estão listadas no Solimões: Elaps melanocephalus,
Natrix cinnamomea, K occipitalis, N. semilineata, Xiphosoma ornatum, Micrurus
spixii, Emys amazônica (também Rio Javari e Rio Branco), E. rufipes, E.
erythrocephala, E. canaliculata, E. dorsualis, E. stenops, Kinosternon brevicau-
datum, Testudo hercules, Rana scutata, Bufo maculiventris, B. proboscideus, Caiman
niger (também Amazonas), Lophyrus rhombifer, L. margaritaceus (também da
Bahia) eL. xyphosurus. Três dessas espécies não são conhecidas como do Solimões:
Emys erythrocephala ( = Podocnemis erythrophala), Lophyrus rhombifer ( = Enyalius
c. catenatus) e Lophyrus margaritaceus (= E, c. catenatus).
Rio Japurá
Martius continuou pelo Japurá da foz (03°08'S, 64°66'W) até as quedas de
Araracuara (00°24'S, 72°17'WOX então em território disputado, hoje da Colômbia.
As espécies mencionadas são Elaps schrankii, E. langsdorffi, Natrix scurrula e N.
sulphurea.
Rio Negro
São citadas quatro espécies da rápida expedição de Spix, subindo o Negro até
Barcelos (00°58'S, 62°56'W), com uma viagem marginal ao baixo Branco. Xipho-
soma araranboya e Bufo albicans são citados no Negro, sem outros dados. Emys
amazônica é citada no Branco (foz a 01°24'S, 61°5rW), bem como no Solimões e
Javari. Emys macrocephala foi obtida em "Airon" (= Airão, Or58'S, 6 r i 9 ' W ) e
no Rio "Yau" (= Jaú, foz a 0 r 5 4 ' S , 67°26'W).
113 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Outras localidades
Entre as localidades das espécies não descritas como novas apenas três pre-
cisam ser comentadas. Hyla bicolor (Phyllomedusa bicolor) coletada em Tonantins
(02°47'S, 67°47'W); é o único registro da localidade. Bufo agua (= B, marinus) foi
obtido em Marabitanas, no alto Negro, em 00°58'N, 66®5rW. Nem Spix nem
Martius chegaram lá, nem existe nos livros qualquer indicação de como as duas
espécies foram conseguidas. Natrix bicarinata (= Chironius bicarinatus) foi regis-
trada do Solimões, onde não existe.
Todas as outras formas foram registradas nas localidades discutidas acima e
plausíveis a partir do ponto de vista da distribuição.
História subseqüente
A publicação do livro de Spix provocou naturalmente alguma discussão.
Concentrando-se na identidade de espécies individuais num tempo em que as
coleções eram pequenas e não eram representativas, as primeiras discussões duran-
te o período 1820-1828 feitas por Kaup, Wied, Wagler, Spix, Boie e Fitzinger têm
pouco interesse; Vanzolini (1977, 1978) tem um índice cruzado das referências a
répteis.
Durante algum tempo acreditou-se que praticamente todas as coleções de Spix,
em Munique, tinham sido destruídas pelo bombardeio durante a Segunda Guerra
Mundial. Conseqüentemente, deu-se grande importância às revisões de tipos do
século XIX (jan.,1859; W. Peters, 1872, 1877), bem como às notas incidentais de
Lorenz Müller, que por muitos anos foi curador de Munique.
Agora, todavia, enquando escrevo, soube que a maioria das espécies de Spix
tinha sido localizada na Staatssammlung em Munique e no Ryksmuseum de Leiden
e que está em preparo um relatório sobre elas. É claro que são notícias muito bem-
vindas.
114 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Conclusão
Três grandes expedições destacam-se na história da exploração zoológica do
Brasil, de fato, da América do Sul: a de Wied, a de Natterer e a de Spix e Martius. A
última foi a mais produtiva. Wied foi o melhor zoólogo entre eles e também o melhor
escritor, um admirável cronista da Floresta Atlântica em condição quase selvagem;
todavia nunca avançou além dela. Natterer viajou mais e acumulou as maiores
coleções de todos, mas os resultados de seu trabalho se diluíram, nunca foram pu-
blicados como um todo e sua influência na herpetologia foi muito menor do que
poderia ter sido.
Spix e Martius amostraram um continente quase virgem; eram abertos, católi-
cos, compreensivos e meticulosos. Os livros herpetológicos devem ser avaliados
como parte de um esquema preconcebido, incluindo a Reise, a Flora Brasiliensis,
os trabalhos zoológicos. O fato de um esquema enorme como esse ter sido desen-
volvido até o fim deve-se principalmente à tenacidade de Martius e a seu tempera-
mento muito especial, que lhe permitia levantar fundos sem se degradar. Mas não
menos à reconhecida qualidade dos materiais, que tornaram imperativo o seu estudo
e publicação.
Devo acrescentar que o valor desses livros não é exclusivamente histórico. A
taxonomia alpha dos anfíbios e répteis neotropicais está longe de ser exaustiva; todos
os dias encontram-se novas espécies. Ao mesmo tempo, estudos evolutivos provo-
cam continuamente a necessidade de uma definição melhor de formas reconhecidas.
As obras herpetológicas de Spix continuam a ser um instrumento importante na pes-
quisa sistemática, e ainda demorará para que se retirem para a estante das curio-
sidades exóticas.
Abstract: This article is the introduction to Herpetology of Brazil, Society for the Stu-
dy of Amphibians and Reptiles, 1981. It follows one ofthe mostfamous scientific expe-
ditions in XIX century, written in Reise in Brasilien by Spix and Martius. The main
interest here are Amphibians and Reptiles collected. It begins considering the Natura-
lists envolved, their education and career^ the indication to accompany Austrian
princess Leopoldina to Brazil, their work and afterward, the writing of results. Re-
writes, then, the itinerary of the Reise in Brasilien, from Rio de Janeiro to Belém do
Pará, describing the time elapsed, transport, health and scientific work conditions, ma-
terial collected and doubts about results obtained.
Key-words: herpetology - naturalists - Reise in Brasilien - Spix & Martius
115 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.
Notas
Referências Bibliográficas
Ecologia Polissêmica
Marilia Coutinho*
Resumo: Uma das principais características exibidas pelo discurso ecológico é a disponi-
bilidade de perspectivas alternativas^ disputando a preferência dos ecólogos. Tem sido
assim desde o nascimento da ecologia. Essa característica foi, em geral, identificada
através de disputas notórias entre certos referenciais teóricos: entre a ecologia de
comunidades do início do século e a ecologia de ecossistemas. Estas oposições, ao con-
trário de um eterno debate filosófico, expressam a constituição de sistemas discursivos
descontínuos e muito diferentes, sob contextos sociais específicos.
Palavras-chave: discurso ecológico - ecossistema - meio ambiente - holístico
O que é ecologia?
Apenas uma reflexão rápida e superficial, em que se procure buscar um
conteúdo associado a esta palavra, já é capaz de indicar que a pergunta acima não é
trivial: qualquer pessoa minimamente familiarizada com o termo pode lembrar mais
de um significado para ela, sem grande esforço intelectual.
Essa experiência em si não tem nada de extraordinário, pois parece pouco
contestada a idéia de que um termo não possui um sentido na língua, e sim muitos
sentidos. Assim, diante da pergunta, podemos nos recordar de várias definições
independentes. Podemos associar ecologia a "preservação", a uma "disciplina
científica", a um "movimento político" ou mesmo a uma "filosofia" ou "religião".
Por que pudemos fazer estas associações, que, dentro de uma certa racionalidade
admitida, são até mesmo incompatíveis e contraditórias? Por que pudemos construir
tantos significados diferentes? O fato é que, diante do desafio cognitivo de definir
ecologia, recuperamos significações já interiorizadas que integram nosso aparato
récologie une conception plus étroite. Pour eux le domaine de Vécologie se limite à
ce que nous appelerons Vécologie des écosystèmes. Ils considèrent Vétude des
populations comme une discipline distincte, que Von peut appeler dynamique des
populations et ils excluent Vécologie des individus, ou autoécologie que s'apparente
alors à Ia physiologie (écophysiologie) et à Ia biogeographie. Si Von adopte ce
dernier point de vue Vécologie peut être défmie comme Vétude de Ia structure et du
fonctionnement des écosystèmes (Dajoz, 1985).
No segmento 2, a ecologia^ra uma subdisciplina da biologia e se desenvolveu
no sentido de tornar-se uma ciência autônoma. Então a ecologia:
a. era uma disciplina biológica,
b. não é mais.
Se não é mais biológica, então o que é agora? Neste mesmo segmento, vemos
que esta nova ciência autônoma inclui aspectos do funcionamento da sociedade
humana. De modo que a ecologia não é mais biológica não por ter deixado de ser
biológica, mas porque é mais do que biológica: é também social.
No segmento 2, aparentemente ela também não é biológica, pois os pontos de
vista da biologia e da ecologia são mencionados aditivamente. Mas também não
inclui os aspectos econômicos e institucionais que obviamente estão implicados na
definição do segmento 32.
Finalmente, no segmento 3 a ecologia é uma disciplina plenamente biológica,
mesmo que vasta. O segmento 3 também mostra o conflito de definições e a defesa
deste autor quanto à competência da ecologia. De fato, o ponto de vista de
que a ecologia é uma disciplina biológica, ainda que com competência para
compreender objetos sociais (e os abrange a partir de sua perspectiva biológica), é
hegemônico entre os cientistas. Além disso, o segmento 3 deixa entrever um outro
conflito que se expressa na própria definição do objeto natural da ecologia, ao qual
voltarei a seguir.
Então, aqui temos exemplos de definições que associam ecologia a uma
disciplina biológica, a uma ciência natural e a uma ciência mais do que natural -
também social. Mas há mais diversidade no que diz respeito ao entendimento da
ecologia como ciência. Vejamos a seguinte passagem:
Meanwhile in psychology, Gibson has proposed an "ecological theory of
perceptwn'' which makes information central (...) In the cases above, ecological
^alue and amounts of information matched nicely and this might suggest that
ecological epistemology could be pursued entirely in terms of information
^aximization (Grandy, 1987: 197).
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 124-149, 1996.
2. A diversidade no tempo
Até agora fizemos explodir a unidade ecologia mediante um corte sincrônico
nos discursos científicos produzidos. Vejamos o que nos aguarda um corte diacrônico:
1. By ecology we mean the body ofknowledge concerning the economy ofnature -
the investigation of the total relations of the animal both to its inorganic and to its
organic environment; including, above ali, its friendly and inimical relations with
those animais and plants with which it comes directly or indirectly into contact - in
a word, ecology is the study ofall those complex interrelations referred to by Darwin
as the conditions ofthe struggle for existence (Haeckel, 1870, in Mcintosh, 1985: 7).
2. The increasing sanity of physiological problems is due in large measure to the
wholesome influence of ecology. In the old days when physiology was a mere
laboratory science, and therefore artificial, no experimental test could be too bizarre
to be applied to plants (Cowles, 1909, in Mcintosh, 1985: 40).
3. Usually ecology is defined as the study ofthe relation of organisms or groups of
organisms to their environment, or the science ofthe interrelations between living
organisms and their environment. Because ecology is concerned especially with the
biology of groups of organisms and with functional processes on the lands, in the
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 125-149, 1996.
oceans, and infresh waters, it is more in keeping with the modem emphasis to define
ecology as the study ofthe structure andfunction ofnature, it being understood that
mankind is a part ofnature (Odum, 1971: 3).
4. Natureza e preservação
O objeto da natureza com o qual a palavra ecologia é mais identificada é meio
ambiente. No texto "Rio Ciência 1992" (elaborado por cientistas reunidos por
ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimen-
to), onde se afirma que as populações se iorndimguardiãs da ecologia (em condições
socialmente justas), estão se tornando protetoras do meio ambiente, ou da natureza.
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 128-149, 1996.
5. Representar e prescrever
Há algo que chama atenção em muitas definições de ecologia - tanto naquelas
em que a palavra é associada a um conteúdo político como a um conteúdo científico.
E a proposição da ecologia como perspectiva normativa em relação ao próprio
conhecimento. Veja por exemplo este segmento, onde há um pouco de cada uma
destas significações:
"São reações que postulam pelo que hoje se rotula como 'desenvolvimento
sustentável' ou 'ecodesenvolvimento', conceitos que iremos aprofundar,
oportunamente.
Estas reações são oriundas de muitas fontes de conhecimentos, inicialmente es-
pecíficos, mas que se inter-relacionam, amarrados pela força holística contida nos
propósitos da Ecologia, um campo científico que nasceu na Biologia, não tão novo
como aparenta ser à opinião leiga" (Lago, 1991: 13).
Em primeiro lugar, aqui a ecologia é um campo científico, Este campo:
a. nasceu na Biologia,
b. tem propósitos.
Este discurso é portanto normativo, pois exibe uma intencionalidade explícita
(propósitos). Para garantir a implementação destes propósitos, os mesmos são
dotados de uma força. Observamos em seguida que a natureza desta força é
epistemológica, pois é uma força holística, capaz de inter-relacionar fontes de
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 130-149, 1996.
conhecimento. Portanto, a ecologia constitui muito mais do que uma ciência empí-
rica: trata-se de um verdadeiro sistema filosófico aqui. É assim que a ecologia parece
ser entendida freqüentemente como uma nova "visão de mundo", um verdadeiro
sistema de valores, como fica evidenciado pela associação entre feminismo e
ecologia feita por F. Capra (1986: 38). É nesta categoria de enunciados que
encontramos a tendência que contraria a diferenciação entre conteúdos científico e
político identificada mais acima. Examinemos, por exemplo, o seguinte segmento:
1. Ecology is the study ofthe structure andfunction of Gaia, or of Gaia as a total
spatio-temporal system. 2. Ecology is the study ofGaian laws, 3. Ecology is a non-
disciplinary study. 4. Ecology is holistic. 5. Ecology is subjective. 1. The most
fundamental ecological knowledge is acquired by intuition. 8. Ecology is emotional
(Goldsmith, 1988(a): 161-3).
Goldsmith insiste que ecologia não deixa de ser ciência (é um estudo) por ser
holística e normativa. Todas estas proposições parecem estar num contexto dialógico
bem definido: a ecologia deve ser subjetiva em oposição à objetividade, deve ser
emocional em oposição à racionalidade, deve ser não disciplinar em oposição às
fronteiras da ciência institucional e seus conteúdos devem ser adquiridos por
intuição em oposição à experimentação e verificação, presumivelmente. Na verda-
de, esta definição de ecologia desafia as definições científicas, as fronteiras dese-
nhadas por definições políticas e propõe uma readequação de conteúdos. Ela não se
submete à partição de domínios de competência mencionada anteriormente e
reivindica em relação aos mesmos legitimidade universal. Qual seria o significado
disto? Antes de ensaiar uma resposta, prossigamos mais um pouco.
Nesta rota seguem também proposições ainda mais abrangentes quanto ao
alcance da ecologia como visão de mundo. Trata-se das perspectivas para as quais a
ecologia é uma referência religiosa^^ Assim, a re-sacralização da natureza, ou
reencantamento do mundo (Mangabeira Unger, 1991), redefiniria a ecologia como
um discurso sobre um objeto sagrado, e, portanto, como um discurso religioso.
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 131-149, 1996.
6. Definições e contradefinições
no campo científico
Dediquemos agora um pouco de atenção às definições científicas de ecologia,
especificamente aquelas encontradas em livros-texto e artigos de periódicos da área.
A primeira coisa que se destaca é o fato de tantas definições serem tão claramente
contradefinições (Latour, 1987). Um exemplo:
"The word ecology carne into use in the last halfofthe nineteenth century. Henry
Thoreau in 1815 used the word in his letters, but he did not define it. Ernst Haeckel
in 1869 defined ccology as the total relations ofthe animal to both its organic and its
inorganic environment. This very broad definition has provoked some authors to
point out that if this is ecology, there is very little that is not ecology. Since four
biological disciplines are closely related to ecology - genetics, evolution, physio-
logy, and behavior - the problem ofdefining ecology may be viewed schematically
in the following way: (...) Broadly interpreted, ecology overlaps each of these
subjects; hence we need a more restrictive definition.
Charles Elton (1927) in his pioneering book Animal Ecology define d ecology as
scientific natural history. Although this definition does point out the origin ofmany
ofour ecological problems, it is again uncomfortably vague. Eugene Odum (1963)
defined ecology as the study ofthe structure and function ofnature. This statement
has the merit of emphasizing the form-andfunction idea that permeates biology, but
it is not a completely clear definition.
A clear and restrictive definition í?/ecology is this: Ecology is the scientific stu-
dy ofthe distribution and abundance of organisms (Andrewartha, 1961). This defi-
nition is static and leaves out the important idea of relationships. Ecology is about
relationships, and we can modify Andrewartha 's definition as follows: Ecology is the
scientific study ofthe interactions that determine the distribution and abundance of
organisms. This definition of ecology restricts the scope ofour quest to a manageable
levei and forms the starting point for this book. We are interested, then, in where
organisms arefound, how many occur there, and why" (Krebs, 1985).
I
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 132-149, 1996.
1. Relação sociedade-natureza
2. Propriedade da natureza / relações entre organismos e com ambiente
3. Natureza
4. Meio ambiente
5. Uma ciência
6. Uma ciência que nasceu na Biologia
7. Uma ciência que transcendeu a biologia / que transcendeu as ciências naturais
8. Uma ciência diferente da biologia
9. Uma ciência biológica
10. Um domínio inter ou transdisciplinar
11. Um estudo não-disciplinar
12. Núcleo das ciências ambientais
13. Uma ciência com prescrições sobre a sociedade
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 134-149, 1996.
with environment and pollution. This was a distortion of the modem historical
development of the science in two respects: it placed more emphasis upon the
inanimate surroundings than upon the organisms and more emphasis upon the
applied than upon the pure science'' (Mcintosh, in Egeiton, 1984).
Mcintosh constata e lamenta muito essas relações semânticas que chamei aqui
de apropriações e que ele considera uma "distorção" (apropriação num sentido
"errado" ou "ilegítimo"). A causa parece ser, para o autor, o uso do termo pelo grande
público (public awareness), insubordinado às regras de conduta e aos consensos da
comunidade científica. E a distorção se materializa em duas tendências: a ênfase no
ambiente inanimado e a ênfase na ciência aplicada. Ora, estas críticas podem muito
bem ser dirigidas por um ecólogo populacional (como também é Mcintosh) ou
evolutivo à ecologia de ecossistemas, pois, nos vários segmentos associados àquelas
vertentes, percebemos que os autores se ressentem da ausência do organismo na
ecologia de ecossistemas (veja o texto de Dajoz, por exemplo). O mesmo se pode
dizer do caráter aplicado da ecologia.
Voltando a Mcintosh, ficamos sabendo que as vozes do grande público
passaram a emitir idéias segundo as duas tendências de distorção apontadas pelo
autor, no final dos anos 60. E também sabemos que estas tendências já se encontra-
vam no interior da própria ecologia. Isso parece indicar que as relações de apropri-
ação que identifiquei acima devem ter começado ou se intensificado nesse momento,
produzindo, então, novos significados associados à palavra ecologia e novas repre-
sentações das práticas designadas por ela - científicas ou políticas.
Resumindo: a palavra ecologia surgiu no contexto da biologia evolutiva em
1869; foi tomada por agentes de fora deste campo para com ela constituir uma nova
disciplina com seus objetos e problemáticas próprias entre o final do século passado
e início deste; sofreu diversificação de significados no interior do campo científico
desde então e finalmente, sobrepondo-se a esta, teve novos significados não cientí-
ficos a ela adicionados por volta dos anos 60.
O que mostra este exercício de reflexão que fiz, tentando relacionar os
segmentos tomados casualmente de textos variados, é que este tipo de transformação
semântica e conceituai está associado à dinâmica de agentes específicos, à organi-
i I
zação de campos, às estratégias de legitimação. Também mostra que, para compre-
ender a diversificação de significados, seja sincronicamente ou diacronicamente, é
preciso interpretar a lógica das relações sociais que comandam estes fenômenos.
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 145-149, 1996.
Abstract: One of the main features display by discourse is the availability of the
alternative theorical viewpoints disputing the preference ofthe ecologists. It has been
so since the very birth ofecology. This discursive features has generally been noticed
through the disputes which became popular among certain theoretical perspectives:
early community ecology being opposed by individualistic population ecology and,
afterwards, population ecology opposing ecosystem ecology. It seems that this trait,
rather then representing the development of any everfasting philosophical debate,
expresses the constitution ofvery different and discontinuous discursive system under
specific social contexts.
Key-words: ecological discursive - ecosystem - environmental discussion - holistic
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 146-149, 1996.
Notas
1. A análise destes discursos é sempre uma análise documental, pois é sempre possível
referir os textos aos contextos institucionais que os compreendem; ver M. Pêcheux,
Analyse Automatique du Discours (Paris, 1969).
2. Refiro-me aqui a livros como os de F. Capra (Capra, 1986), ou o de G. Bateson (Ba-
teson, 1972), que ficam entre o texto acadêmico e o texto de divulgação.
3. Refiro-me aqui à estrutura teórica da ecologia de ecossistemas. Esta vertente é
representada, por exemplo, por E. P. Odum, cujo segmento de texto é analisado aqui.
4. Por exemplo, a proposta de Steward de se utilizar do conceito de ecologia para enten-
der o efeito do ambiente sobre a cultura (Steward, 1955).
5. O uso da expressão "economia da natureza" remonta a C. Linnaeus, no século XVIII.
6. "Uma 'viagem' pela causa ecológica" (manchete do JB, Ecologia & Cidade,
5/6/92, p. 4).
7. Sobre a busca de distinção, ver Bourdieu, 1981.
8. Ver: Educação Ambiental em Unidades de Conservação e de 'Produção. São Paulo,
1991, p. 18.
9. Eco-92 foi o apelido utilizado pela imprensa paulista para a Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ocorreu no Rio de Janeiro em
1992. Esta é também a forma que escolhi para me referir ao evento.
10. JB, Ecologia & Cidade, 5/6/92, p. 10.
11. Mangabeira Unger, 1991: 53 e OESP, Ambiente, 14/06/92, p. 1.
12. Ver identidade dos leitores de TheEcologist em Coutinho, 1994: ref 8.
13. "Theory laden", termos teoricamente carregados, em oposição a termos
observacionais.
14. Onde Geertz invoca, respectivamente, Heidegger e Wittgenstein.
r 122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 149-149, 1996.
Referências Bibliográficas
Indígenas e Camponeses:
uma relação de conflitos
Regina de Toledo Sader*
Este artigo visa tecer algumas considerações sobre a imagem que ao longo do
tempo foi sendo construída dos indígenas por certos setores da população que hoje
ocupa porções do oeste do município de Imperatriz, às margens do Tocantins.
Nessa área encontrei historiadores locais, que procuraram, ao escrever seus
livros, perpetuar fatos que viveram ou escutaram dos habitantes mais antigos.
Considero-os uma excelente fonte de informações na medida em que perpetuam uma
história oral. Não se trata de uma história acadêmica, porquanto tais autores não têm
nenhuma formação nesse nível. Na busca dos fatos consigo o registro do que os
mesmos significaram e ainda hoje significam no imaginário dessas populações
camponesas ou não, no momento sob minha lente de pesquisadora. Não há possibi-
lidade de reconstituições sob uma ótica positivista. Se a realidade é construída so-
cialmente e se devo analisar o processo em que este fato ocorre (Berger e Luckmann,
1978), então, são esses a quem chamo de historiadores locais que, juntamente com
os camponeses entrevistados, possibilitam que eu alcance meus objetivos.
Os dois historiadores a que tive acesso são ambos moradores da cidade de
Imperatriz: Edelvira de Moraes Barros, que escreveu Eu, Imperatriz (Moraes Bar-
ros, 1970), professora primária cujo livro foi editado pela Prefeitura do Município,
lugar, se a gente podia morá. Então o moço falou que podia, só que era um pouco
perigoso, porque em 1945 morou os últimos pessoal aqui, e saíram mandado dos
índios onde nesse grotão aqui que chama Machado, foi um senhor fulano de tal
Machado que assituou. Este Machado ele saiu daqui mandado dos índio assim:
eles mandaram o Machado saí, e o Machado preocupado com a criação, as
galinhas, essas coisas. Eles disseram que entregavam na frecha. Aí o Machado
falou que não, assim matava, eles disse que frechavam no pé, e assim fizeram.
Pegaram as galinha do Machado, tudinho criação e o mandiocal que tinha, eles
arrancaram também, só que as maió raiz eles ficavam, e a menor davam pro
Machado. (...) Mas eles colaboraram com nóis que durante esse tempo que nóis
termo nos Frades, eles ficaram, parece que se entedemo, eles dividiram a lista
deles, eles vinham pescá (...) nóis viamo rastro deles, mas lá nos Frades eles não
iam (...y.
"Uma veiz quando a gente foi caçá, chegou um do povoado com a frecha entre o
casco da cabeça e o cabelo, se tivesse pegado na testa tinha morrido. A gente nem
soube donde veio a frecha, então a gente deu um tiro com rifle pra cima e o caboclo
correu, nem vimo ele. Isso foi a mais de três léguas daqui, lá perto do Centro do
Abraão. E aí ficamo um tempão sem caça pra lá"^.
Os índios a que os entrevistados se referem são os Gaviões que foram sendo
empurrados para oeste pelos posseiros, com o mesmo ímpeto que estes eram expulsos
de suas terras e, também, caminhavam na direção oeste. Na primeira entrevista logo
acima, fica claro que os índios desocuparam Frades sem matanças, e até ajudaram a
reunir a criação e a colher a mandioca, mesmo que com certa artimanha, como diz o
lavrador. Mantiveram um certo acordo com os novos moradores de Frades quando,
vinte anos depois, vieram se estabelecer novas levas de camponeses: "Eles dividiram
a lista deles". Mas seis anos depois, em 1961, foi fundado o povoado de Bom Jesus,
e os Gaviões foram novamente para oeste. Há consenso nas entrevistas feitas em
locais distintos de que essa área era dos índios. Em outras entrevistas, há menção
explícita: "Eles vinham pra Frades, Viração e Bom Jesus, que era lugar deles". E não
poderia ser de outra forma, pois:
"Quando a gente ia cavá buraco, buraco assim pra fazê a parede da casa, achava
aqueles potes. Eu mesmo achei um pote deste tamanho assim (mostra os braços
curvados e bem afastados do corpo). Dentro desse potão tinha outros negocinhos
deste tamanhozinho, com pedacinho de osso. Tirei bem uns vinte, aqueles potão
um do lado do outro. Mas quebrava logo tudo, de ficá no sol, na chuva"^
156 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205
Mas ninguém mais achou nenhum "potão" no antigo cemitério indígena, que
fica num promontório do Tocantins lá em Frades, coberto por mangueiras, diz-se que
seculares...
As entrevistas se contradizem. Enquanto um dos fundadores de Frades,
Viração e Bom Jesus diz que os índios "colaboraram com nóis (...) parece que se
entendemo", e que depois de fundada Bom Jesus, os índios foram para o ribeirão dos
Frades e "não ficaram permanente", em Frades há convicção de que os índios
atacaram:
"Aqui nunca mataram gente, mas na Viração e no Saranzal frecharam um bocado
de gente. Uma veiz disseram que vinham invadir Frades nesses treis dias. Aí
pegamo uma canoa pesada e fomo lá pra praia (nota: praia de uma ilha no meio
do Tocantins) de oito a deiz dias lá, esperando. Os porcos e galinhas ficaram tudo
aqui. Aí vinha um (dos posseiros) devagarinho, vê se tinha índio
"Essa violência dos caboclo acabou com um povoado. Alto Alegre foi acabado
pelos índios. Por isso quando falavam qualquer coisa nóis corria pra praia.
Mataram tudo. Tem gente que conheceu. Estavam assistindo a missa"^
Uma das características do preconceito é a imprecisão dos fatos relacionados
ao grupo discriminado, fatos que no fundo buscam a justificação de ações contra esse
grupo. É o rumor, tão bem analisado pelo sociólogo francês Edgar Morin no filme
intitulado La Rumeur d'Orléans. Pelas entrevistas nota-se que os índios nunca apa-
recem atacando na área onde está o interlocutor, mas sempre em outra: "Aqui nunca
mataram gente, mas na Viração e no Saranzal"... E mesmo distante no tempo:
novamente o massacre do Alto Alegre a centenas de quilômetros de distância e há
quase um século. O exagero é evidente na última entrevista: "... e lá acabaram com
tudo. Mataram tudo". Não são mais 4 padres, 7 freiras e todos os assistentes da mis-
sa. É toda a população.
Permito-me um ligeiro parêntese para uma breve discussão de um dos dilemas
como pesquisadora: como analisar o processo em que ocorre um determinado fato?
Certa vez quando fazia minha pesquisa no Bico do Papagaio, fui entrevistar um casal
em sua fazenda. Eram ambos do interior de São Paulo e eram considerados "grilei-
ros", em primeiro lugar, por terem comprado terras "griladas" e cujos ocupantes
haviam sido expulsos com violência; e, em segundo lugar, porque com o apoio do
GETAT (Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins) reivindicavam uma
faixa de terra ocupada por posseiros residentes no povoado vizinho, que eu já co-
nhecia. Finda a entrevista, a mulher do fazendeiro começou a queixar-se dos pos-
Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205
seiros (ignorando minha relação com os mesmos, pois eu não havia dito nada a eles).
A certa altura conta-me com lágrimas nos olhos que talvez tivessem que partir, pois
sentiam-se terrivelmente ameaçados. E o casal me explica que, havia poucos dias,
chegara no povoado uma grande caixa contendo metralhadoras italianas (!) e que,
chegado o momento, haveria um levante dos posseiros do Bico do Papagaio. Sem
saber o que dizer diante do que considerei paranóia, pois o medo deles era real, fui
conversar com dois rapazes que com teodolitos e guias procediam à medição de uma
porção do terreno. Contaram-me terem vindo de Minas, eram agrimensores, ambos
muito jovens, e queixaram-se da violência, e do medo que tinham de trabalharem em
sua profissão. Terminado o trabalho ali, voltariam para Minas, disseram-me.
Naquele mesmo dia cheguei ao povoado onde passaria algum tempo. Como
meu compromisso era com os posseiros, perguntei-lhes como estava a relação com
o casal que eu entrevistara. Disseram-me que havia piorado, que estavam todos com
medo de irem sozinhos para as roças e que o faziam em grupos. É que os "grileiros"
haviam contratado dois pistoleiros, que acabaram de chegar, bem armados, para
atacá-los. Inutilmente tentei convencê-los de que eram só agrimensores, que não
tinham armas, mas aparelhos de "medição de terrenos". Não me acreditaram, e,
encerrando a conversa, me convidaram para ver alguns slides sobre o Bico do Pa-
pagaio, porque alguns dias antes havia chegado o projetor com gerador, numa
enorme caixa, conseguidos pelas religiosas da CPT...
Nem os agrimensores eram pistoleiros, nem a caixa de grandes proporções
eram metralhadoras. A única coisa verdadeira era o medo. Medo fundado dos
posseiros que vinham de múltiplas expulsões, que ou foram vítimas ou presencia-
ram violências sem número. Medo dos "grileiros", não somente porque houve deles
que pagaram com a vida suas barbaridades, mas porque, e sobretudo, a área do Bico
foi área de refúgio da chamada "guerrilha do Araguaia", onde as Forças Armadas
atuaram, justificando a enorme violência, veiculando histórias sobre "farto mate-
rial bélico de origem estrangeira" encontrado por elas.
E o medo está em toda parte nessa região da Pré-Amazônia, como já tive
oportunidade de apontar em artigo anterior (Sader, 1989). Seria talvez ele, o medo,
a verdade única a que se refere Adam Schaff (1987)?
O massacre do Alto Alegre faz parte do imaginário dos homens dessa área de
minha pesquisa. Se os fatos são fiéis ao sucedido é algo irrelevante. O que importa
também aqui é o medo. E os dividendos que pode render.
"Mas aí tem outro problema que a vista do índio muita gente aproveitou. Por
exemplo, a CID A, que é uma companhia (nota: madeireira) que fundou aí e depois
158 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205
desapareceu. Ela quis tirá esse povo dessa região. A última vez que nóis ficamo
na praia foi a CIDA que provocou. (...) Aí veio um barco de Imperatriz pra levá
nóis pra praia. Chegamo lá era tudo mentira (...) eles queriam era que nóis corria
pra liberá terra e eles tomarem (...) Aqueles que não teve coragem, correu. E
perdeu a posse^.
E os Gaviões partiram para oeste, para o Pará, onde terminariam se fixando.
Roberto da Matta (Laraia e da Matta, 1978) relata o que considerou a tragédia dos
Gaviões, um grupo tribal que "diante de um sistema dominador e mais poderoso -
a sociedade nacional brasileira - buscava brechas por onde pudesse sobreviver
enquanto sociedade. Baseando-se e completando Curt Nimuendaju, mostra da Matta
que o povoamento do vale médio do Tocantins incorporou ou destruiu os grupos
indígenas da área. No Tocantins se deu o entrecruzamento de quatro vias de
penetração dos pioneiros do século XVIII, que vinham de São Luís do Maranhão,
através do Mearim e do Itapicuru; do Pará, pelo Tocantins; de Goiás, descendo o
Tocantins; da Bahia, através do sertão nordestino; e pela franja pioneira que desce
pelo Norte.
A história do Maranhão, de 1759 a 1850, é a própria história do desaloja-
mento, escravidão ou destruição dos grupos Timbiras do interior.
Ao recolher essas entrevistas que se referem a fatos ocorridos em meados da
década de 1950 nesses povoados que percorri, percebi duas coisas: primeiro, é que,
após todos esses anos, a imagem que os habitantes guardam dos indígenas, em sua
grande maioria, é ambígua. Histórias coletadas em toda a área falam de índios que
viram bichos quando velhos se não foram batizados, mas ao mesmo tempo a mãe-
d'água é linda. Em segundo lugar é que a mesma postura em relação aos Gaviões -
mantendo relações pacíficas para uns e cruéis para outros - foi encontrada por da
Matta (op. cit.) na região de Marabá, há mais de vinte anos.
Essa ambigüidade encontra-se no próprio nome dado ao grupo tribal pelos
brancos, pois, como diz o antropólogo, se gavião é uma ave de rapina, uma espécie
infra-humana, é também uma ave nobre, evoca coragem, união. Na realidade,
enquanto não houve a valorização das terras nas margens do médio Tocantins os
grupos indígenas aí não eram encarados com terror. Quando a castanha se torna
produto de exportação, quando a terra passa a ter valor e começa a se tornar rara, os
Gaviões surgem como "obstáculos ao progresso e à civilização". Assim, as palavras
pacificação, catequização, ou simplesmente extermínio, passaram a constituir proje-
tos de ações que moviam as pessoas mais interessadas em estabelecer relações com
os índios.
Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205
Um antigo posseiro, hoje pequeno sitiante, que me havia sido apontado como
"matador de índio" por um dos habitantes de um povoado, ao se sentir diante de seus
pares incomodado por minhas perguntas sobre o início da ocupação, foi incisivo:
"O que se fez com os índios é o que tinha que sê feito. Eles andavam sem roupa
até dentro do povoado. E depois, nem batizados num eram..."^
O fato de não serem "nem batizados" vem reforçar uma diferença marcante
entre posseiros e índios. Mostra que não participam do mesmo universo cultural, do
mesmo espaço de relações e representações. Afinal, se essa população é fortemente
mesclada de índio, o batismo cristão funciona como um rito de iniciação à cultura
nacional. E é necessário que marquem bem a distinção.
Isso explica por que D. Maria, de um povoado do município de Marabá,
entrevistada por mim quando eu fazia minha tese, disse indignada:
"Nóis trabalhava liberto. Fazia roça onde queria. Aí veio o governo do Pará
chamado Barata - já ouviu falá? - pois ele veio e falou que nóis era índio, e
mandou nóis vim pra cá
Podem-se detectar no discurso de D. Maria dois aspectos que explicam a in-
dignação: um é o fato de serem considerados índios; o outro é que o governo, ao fazê-
lo, justifica a expulsão do grupo, já que índio é para ser expulso.
Mesmo nas lendas que recolhi, o preconceito se manifesta de forma cruel:
"Aí achamo na mata os sinais do Capelobo, sabe o que é? É um bichão feio,
medonho, todo coberto de pêlo, e come gente"
Mas que não se pense por esses exemplos que o preconceito seja apanágio des-
se campesinato sofrido. Um advogado de uma das unidades do GETAT, oriundo e
educado no Sul do país, faz apelo a sua cultura adquirida nos filmes de cow-boy
para afirmar diante de mim e de um pesquisador do Museu Goeldi do Pará: "Falta
aqui, para nós, um General Custer"...
Agnes Heller (Heller, 1972), fazendo uma série de reflexões sobre o precon-
ceito, mostra sua origem na fixidez do pensamento cotidiano (que implica compor-
tamento), a partir do que assumimos estereótipos, esquemas já elaborados, ou estes
nos são impingidos.
Não é por acaso que nos povoados mais politizados encontramos camponeses
que lideram, de certa forma, o processo de luta, favoráveis aos índios, olhando-os
com admiração e respeito e vendo neles um exemplo a ser seguido:
Imaginário - USP, n. 3, p. 163-233, 1996. 219
As Felizes Culpas
do Ocidente*
Dario Sabbatucci**
As penas do pavão
Por volta do fim do século passado circulava entre os Cherokees o seguinte
conto^:
"Há muito tempo um guerreiro que gostava de vagar foi em direção ao oriente às
estâncias dos brancos, onde viu pela primeira vez um pavão.
As suas belíssimas longas penas o impressionaram... conseguiu comprar algumas
delas e as trouxe consigo para as montanhas, escondendo-as - na espera de usá-las
- na toca de um velho castor perto da beira do rio... Depois pôs-se a trabalhar es-
condido e fez para si um cocar, com as penas longas e retas na frente e caindo pelas
costas, e as mais curtas dos lados. Por ocasião da primeira dança colocou o novo co-
car, declarando ter estado no céu, e dizendo que as suas penas eram de estrelas. Depois
fez um longo discurso, asseverando que aquilo era uma mensagem que ele tinha
recebido dos espíritos das estrelas para comunicá-la aos homens... Todos admiraram
as magníficas penas... e ninguém pôs em dúvida que ele tivesse estado no céu e ti-
vesse falado com os espíritos. Assim se fez passar por um grande profeta...".
Os novos atualíssimos "profetas" ou expoentes das ideologias indigenistas
que circulam entre os índios da América Setentrional^, eles também, atingiram às es-
tâncias dos brancos.
A salvação da natureza
Para não nos deixar envolver desde o início por conteúdos político-ideoló-
gicos que, se assumidos em função de nosso encaminhamento, desviariam a nossa
atenção do problema real, tentaremos reduzir a mensagem indigenista dos índios à
ecologia. No fundo, o tema ecológico é nela recorrente e vemo-lo formulado em to-
da a sua extensão na assembléia de Genebra do ano passado: "A Filosofia Indígena
e a Terra". Quase a dizer: quem mais que nós, "povos da natureza" (Naturvõlker,
como os definia tempo atrás a etnologia alemã), pode erigir-se em defensor da mes-
ma natureza?
A ecologia foi antes um ramo da biologia que estudava a relação entre os
organismos vivos e o ambiente. O nome desta disciplina biológica foi dado por
E. Haeckel em 1866. No começo do nosso século, encontrou aplicação prática na
agronomia, especialmente nos EUA. Nos anos 1950, começando pelos EUA, tor-
nou-se uma ciência autônoma, analítica e experimental. Paralelamente, sempre nos
anos 50, e devido à iniciativa dos Estados Unidos, esta "ciência moderna" trans-
formou-se em uma "ciência em moda". Graças à ação da mídia, divulgaram-na como
valor, e não como uma problemática científica, mantida evidentemente inacessível
aos profanos. Dela distorceram objetivos e finalidades. Transformaram-na em uma
espécie de cruzada em defesa da natureza. Assim, na linguagem comum, o termo
ecologia tornou-se sinônimo de "defesa da natureza".
A substituição dos problemas ecológicos pelos valores ecológicos criou um
movimento ético-filosófico (quase religioso) ao qual poderíamos dar o nome de
"ecologismo". É um movimento que encontrou dois canais de difusão que, con-
vencionalmente, chamaremos "marxista" e "tradicionalista".
O ecologismo marxista tem a ver com Marx de forma totalmente indireta.
Serve-se da análise de Marx sobre as sociedades humanas abstraindo-a do contexto
sociológico e projetando-a na consideração da relação homem-natureza (ou entre
cultura e natureza). Neste caminho, acaba por individualizar substancialmente a
"exploração" da natureza pelo homem, que vem equiparada eticamente à explo-
ração do homem pelo homem. Naturalmente, nesta equiparação existe alguma coisa
que não funciona: lá onde na análise de Marx o sujeito e o objeto da exploração são
humanos, na proposição ecológica o sujeito é humano e o objeto é extra-humano
(sobre-humano? divino?). Remedia-se, então, contaminando dois sistemas inte-
lectivos, aquele que se refere à contraposição homem/natureza, do qual partiram os
ecologistas, e aquele que nasce da contraposição cultura/natureza. Dessa maneira.
167 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.
à
168 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.
nada pela cultura ocidental é, pelo visto, uma "mistificação literária", típica da
mesma cultura ocidental. Digo "mistificação literária", porque evoca os Poemas de
Ossiariy aquela mistificação que conseguiu tanto sucesso entre os românticos de to-
da a Europa, respondendo plenamente ao gosto da época. Agora a questão é: que
parte têm os índios nesta mistificação? E como ela responde aos gostos de nossa
época?
Os índios sonham com uma volta ao tempo no qual a pradaria era cheia de
bisões, cuja caça bastava para suprir as suas necessidades. Os ecologistas ajudam-nos
a sonhar, asseverando que aquela era a "condição natural" do continente norte-
americano; convidam-nos a reestabelecê-la promovendo a volta dos bisões, e esta
promoção torna-se um elemento recorrente nos programas neo-independentistas.
Descuida-se, por outro lado, de qualquer aprofundamento científico contrastante
com o juízo de valor expresso acerca da pressuposta condição natural; por exemplo,
o fato de que o equilíbrio ecológico da América Setentrional tenha sido perturbado
pelos próprios bisões antes que pelo homem, pois que se deve a eles a formação da
pradaria, um ecossistema diferente daquele que antecedeu o aparecimento e a difu-
são do bisão. Definir como "natural" uma condição, somente porque retida como
ótima pelos índios e pelos ecologistas, é com certeza arbitrário; mas pouco impor-
taria o arbítrio se ele não reduzisse os índios a "caçadores de bisões" e não
gratificasse os ecologistas com uma paisagem romântica (pradaria + bisões + índios)
a ser consumida nos week-ends. Quero dizer que, nesta direção, a relação entre o
homem e o seu ambiente viria a ser resolvida com a transformação do homem-índio
em elemento da paisagem.
Trata-se, enfim, da mesma orientação que a ONU-UNESCO tomou depois da
contestação global e da revolução cultural da memória de 1968, quando proclamou
1970 o "ano ecológico". É a orientação que tem levado hoje a discutir no Palácio das
Nações o tema "Os povos indígenas e a Terra". Esta associação entre os índios e a
Terra constitui uma maneira totalmente nova de repropor os "povos da natureza", os
Naturvõlker, que há um tempo vinham contrapostos aos Kulturvõlker, como o sel-
vagem ao civilizado e, amiúde, como o animal ao homem. Agora, vista a estrita
associação deles com a Terra, estes "homens da natureza" (Naturmenschen) arris-
cam-se a passar do reino animal para o reino vegetal, se não, de todo, ao reino
mineral. Pelo visto, como se dizia acima, arriscam-se a se tornar parte integrante da
paisagem.
170 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.
A salvação da humanidade
Gostaria de dar um relevo especial à soteriologia implícita nos discursos dos
ecologistas e explícita nos projetos indianistas. Isto enquanto teorias da salvação que
interessam particularmente ao escrevente (o autor), que é um historiador das reli-
giões, e de qualquer maneira podem oferecer elementos de juízo que não são, com
certeza, de uso corrente.
Nos projetos indianistas encontra-se, em substância, a passagem - lógica ou
ilógica - de um independentismo contingente, ligado à vicissitude histórica dos in-
dígenas norte-americanos, a uma teoria da salvação absoluta, perceptível, pelo visto,
por parte de um historiador das religiões. A reconquista dos próprios territórios
como finalidade do protesto indígena - um projeto já temerário na situação atual -
torna-se irrisória diante da conquista do mundo a que leva a soteriologia elaborada
pelos atuais movimentos independentistas indígenas. Tentamos seguir esta gran-
diosa passagem do particular ao universal.
O ponto de partida é a reconquista dos territórios. Mas não podemos entendê-
la como uma simples volta ao "antes dos brancos", porque o projeto indianista, assim
como é apresentado nos organismos institucionais (entre as quais, a ONU), inclui
pelo menos dois conceitos ocidentais, o de propriedade e o de Estado, genetica-
mente coligados a um terceiro conceito fundamental, o do direito. Somente com
estes instrumentos conceituais foi possível aos índios organizar as duas Assem-
bléias das Nações Não-Governamentais realizadas em Genebra no Palácio das
Nações; tanto é que um dos pontos na ordem do dia da segunda Assembléia era
textualmente este: "direitos territoriais dos povos indígenas, tratados internacio-
nais, sistemas de propriedade da terra".
A retomada dos conceitos de propriedade e de Estado é significativa mesmo
se usados com sentido negativo. A mesma cultura ocidental elaborou, além dos
conceitos de propriedade e de Estado, também a contestação tanto da propriedade
quanto do Estado, baseando-a contudo no irrenunciável conceito de direito. Por ou-
I í
tro lado, sem tais conceitos, sejam eles positivos ou negativos, o protesto indígena
torna-se "injustificado" (pelo visto, destituído de ius, de "direito") e não encon-
traria audiência nas sedes "jurisdicionais" (onde são formulados e são garantidos
os direitos). Quero dizer, sem conceito de direito, os direitos dos índios não seriam
tais. Uma vez eliminado o direito, qualquer direito e a qualquer título, podemos
perguntar aos indianistas por que em determinados territórios somente os índios
poderiam viver a seu modo e os brancos não.
171 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.
A invenção do índio
Poderíamos também nos perguntar qual a objetividade da distinção entre
"cívico" e "religioso", a que atribuímos tanta importância no parágrafo precedente.
Respondemos: a mesma objetividade que tem na cultura ocidental; a distinção é
válida enquanto colocada nos termos da cultura ocidental, porque é própria da cul-
tura ocidental que a produziu e a usa (também correntemente: como, por exemplo,
na distinção entre festas cívicas e festas religiosas).
A eventual questão da validade da dicotomia cívico/religioso portanto não
pode e não deve ser formulada em nível ético-filosófico, mas mantida completa-
mente na ordem histórica, ou seja, deve referir-se: à genese e à função da dicotomia;
à importância que ela tem na qualificação exclusiva da cultura ocidental.
Esses problemas gerais, reduzidos nesta ocasião, podem resumir-se à questão
particular: se, e até que ponto, a dicotomia cívico/religioso consegue impedir um
diálogo real entre o neo-indianismo, que não distingue (não quer distinguir) um
"cívico" de um "religioso", e o Ocidente que não pode deixar de fazer esta distinção.
173 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.
Tácito não é um teólogo e, portanto, não podemos esperar que discuta de libero
arbítrio à maneira de Erasmo. Ele é um historiador, e como historiador o vemos
descrever admirado e contrariado a prática germânica do jogo de azar. Contrariado,
como Erasmo estava pelo comportamento de Lutero. A equiparação das duas con-
trariedades nasce da possibilidade de igualar o ser escolhidos pela sorte ao ser
escolhidos por Deus, enquanto em ambos os casos não é o homem o sujeito do ato
de escolher. Isto é o que diz Tácito fG^rm. 24): "O jogo de azar, estranho a dizer-se,
praticam-no como uma coisa séria e não em estado de embriaguez; com tanta des-
consideração no ganhar e no perder que, quando têm perdido qualquer coisa,
num último golpe decisivo jogam também a própria liberdade pessoal. O vencido
encaminha-se à escravidão voluntariamente; mesmo se for bastante jovem e robus-
to, deixa-se prender e ser posto à venda sem reagir. Tanta é a obstinação no vício;
mas eles o chamam de honra".
A descrição que Tácito faz dos jogadores germânicos, como escrevi uma vez
num estudo sobre o jogo de azar praticado pelos índios da América Setentrional
(Sabbatucci, 1964: 26), "adapta-se perfeitamente ao jogo de azar indígena, até nos
pormenores significativos da seriedade, da não embriaguez, da desconsideração, da
liberdade pessoal colocada em jogo, da obstinação e da honra".
Não queria que a introdução de Tácito em nosso esquema fosse considerada
um mero expediente para voltar ao discurso sobre os índios da América Setentrional.
A equiparação destes índios aos Germânicos de Tácito coloca, na realidade, um pro-
blema histórico-cultural que supera com certeza o momento presente. A questão é
que relação existe entre as duas culturas, a indígena e a germânica, tão afastadas
entre si no tempo e no espaço?
Em outros tempos a resposta teria sido: existe a relação que une todos os
"primitivos", todos os "povos da natureza". Hoje a resposta deve ser: Germânicos
e índios aparecem unidos na visão que deles tem a cultura romano-ocidental nos
momentos em que interrogou a si mesma acerca da sua própria conformação.
Mas o fato, concreto e absurdo, de ambos se dedicarem com seriedade (e até
ritual) aos jogos de azar não constituiria uma ligação objetiva, independente da con-
sideração subjetiva por parte da cultura ocidental?
Iremos responder a esta objeção: também neste caso o fator de união não é um
fato objetivo que parece ser o "jogo de azar absurdamente praticado com serie-
dade", mas é próprio da cultura ocidental objetivar, com esta fórmula, determinados
fatos de outras culturas que resultariam, de outra forma, para ela incompreensíveis.
É a nossa cultura ocidental que decifra arbitrariamente, do seu próprio modo e para
178 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.
Notas
i
180 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.
Referências Bibliográficas
O Sonho Indiano:
uma metáfora iniciática na literatura
de viagem dos séculos XV e XVI
Adone Agnolin*
Resumo: Este trabalho é uma tentativa de analisar a relação particular que os relatos de
viagem estabelecem na construção de uma realidade específica: o Novo Mundo. O universo
conceituai em que os viajantes dos séculos XV e XVI estão mergulhados sugere-nos, para
sua análise, a adoção de uma ''metáfora iniciática Trata-se de peculiaridades dos rela-
tos de viagem (com os próprios instrumentos ''rituais" de controle, além de conhecimento
e de representação privilegiados) e dos ritos iniciáticos. A narração da viagem parece en-
tão se configurar, de um lado, como momento de reintegração no espaço cultural de origem
e, de outro, como momento de reinterpretação de sua cultura.
Palavras-chave: memória - história - imaginário - representação - alteridade - relatos
de viagens - ritos de passagem
i
182 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
O seu espaço cultural originário. Neste aspecto vemos o afastamento mais significa-
tivo do esquema iniciático.
De fato, ressaltamos que, enquanto na perspectiva tradicional é fundamental-
mente o drama mítico que estrutura a ordem do mundo, neste caso o ordenamento
é constituído por um pré-ordenamento fortemente condicionado (i. é., interpretado)
por uma nova ordem que constitui a alternativa ao presente histórico. O mito perde
o seu poder exclusivamente paradigmático em relação ao presente, para assumir, de
forma complementar e interpretativa, também a característica de uma perspectiva
escatológica.
Assim, em contraposição ao rito que tem uma dinâmica própria dentro da qual
acontecem as mudanças, parece "se concretizar a tomada de consciência da não
atualidade, da desagregação da visão do mundo dada e (...) criam-se as premissas para
experimentar novas dimensões da operabilidade no mundo humano, novas hipó-
teses de valorização do mundo" (Massenzio, 1980: 151). O afastamento do esquema
iniciático das relações de viagem está, portanto, na reviravolta da dialética mito/
história colocada numa nova relação com as categorias culturais de caos/ordem.
Se, de fato, o rito iniciático se caracteriza pela exigência de transformar o jo-
vem num membro efetivo da comunidade - para fazê-lo conforme a "norma"
comunitária através de uma segregação, realizada num contexto diferente daquele
normal o objetivo não é somente providenciar "a perpetuação da própria exis-
tência", mas sobretudo defender "a própria civilização, isto é, as próprias tradições,
a própria linha de conduta: através das iniciações, a sociedade perpetua-se, regenera-
se, tal e qual ela quer ser'' (Brelich, 1969: 24). Nos relatos de viagem, ao contrário,
encontramos muitas vezes uma crítica à sociedade (ocidental) que os viajantes dei-
xaram, ao partir (sociedade que constitui amiúde a motivação principal da viagem).
Essa crítica permite, às vezes, uma supervalorização do mundo "selvagem"
que, pouco a pouco, se descobre em todo o seu fascinante exotismo, além de algumas
depravações características. Por fim, este percurso fecha-se com a reintegração no
espaço cultural originário, mas somente em favor da "vitalidade crônica" de "um
antimodelo que - oposto ao Ocidente - identifica suas peculiaridades" (Mazzoleni,
1986: 219; idem, 1992). Tratar-se-ia enfim do constituir-se de uma verdadeira e
própria visão profética, qual antecipação de uma futura dimensão da nova ordem, seja
como resgate à crise presente na sociedade ocidental, seja na tentativa de orientar
normativamente a necessidade de transcender à mesma crise.
O interesse para com o Novo Mundo, com as miragens de riquezas secretas,
difundia-se nos reinos da Europa Ocidental e trazia, nos novos e ilimitados terri-
tórios, grupos de pouco prováveis civilizadores. Quando ainda as "Colunas de
185 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
uma função decisiva também uma geografia interessada mais em repartir o cosmo
segundo uma organização qualitativa do espaço, orientando-o entre alto e baixo, céu
e terra, paraíso e inferno.
Na Idade Média ocidental, portanto, afirmou-se uma "geografia do Além'"^' e
não desse mundo. Afinal, este mundo, em cima do qual adejava a espera do
caelum novum e da terra nova, desenhados pela geografia escatológica agostinia-
na (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 20.16), era destinado a desaparecer com o
fim dos tempos. Este horizonte conceituai permitia conceber o mundo só de duas
formas, "aliter in peccatoribus, aliter in sanctis"^. Portanto, para a definição do
espaço terrestre, reservado ao exercitium hominis, podia ainda ser suficiente uma
geografia herdada pela latinidade tardia, quando a articulação vertical do universo
não tinha então assumido uma forma definitiva.
Para o homem da Idade Média, portanto, cada lugar e espaço do mundo
conhecido (e desconhecido) superava assim a própria dimensão física para tornar-se
parte de um complexo sistema simbólico e evocar realidades e dimensões de ordem
metafísica: a Terra e até as próprias ilhas tornavam-se imagem da Igreja e das
Escrituras, como dos inimigos delas e da depravação humana. A história não podia
ser separada da alegoria. Cada geografia era então reconduzida à autoridade cos-
mológica das Escrituras, na ausência de uma clara delimitação entre literatura cien-
tífica e produtos do imaginário.
Levado a se reconsiderar, por causa das progressivas deslocações dos confins,
o mundo antigo tinha assistido a uma rápida dilatação dos espaços e a uma verifi-
cação da própria identidade diante das novas culturas com as quais se encontrava.
Numa obsessiva procura de certezas, ele via proliferar as mais diferentes viagens. A
ordem cósmica sancionada pelas divindades tradicionais ia se desagregando para se
recompor num caótico cosmo povoado por fantasmas e démoni entre a terra e o céu,
por monstros ameaçadores nos limites extremos das terras conhecidas. A crise que
o mundo antigo atravessa investe também a visão do universo. Ultrapassar os con-
fins eqüivale a superar a "medida" que a cultura grega clássica tinha estabelecido
como limite próprio do homem.
Da mesma forma, a sociedade européia dos séculos XV e XVI, entre a
reiteração de modelos geográfico-cosmológicos da Idade Média e a reestruturação
da nova realidade geográfica e cultural, começa a delinear, não sem contradições e
arquétipos tradicionais, a nova visão do universo.
Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996. 187
A índia Ocidental
a conexão com a ''margem"
A época das descobertas é caracterizada por uma forte integração religiosa:
o descobridor da América pensava de fato na possibilidade de utilizar o ouro ame-
ricano numa eventual "Cruzada" contra o "Infiel". Esta religiosidade mostra-se de
forma evidente lá onde Colombo assume as características daquele que realizava a
profecia, subtraindo-se à atitude empirista de quem procura conhecer, e subordi-
nando-se, pelo contrário, ao argumento de autoridade que repousa sobre verdades
preestabelecidas. A mesma descoberta representa, então, a realização da vontade
divina preanunciada pelas profecias. É assim que, trazendo consigo a bagagem
conceituai própria do Ocidente, e aplicando-a ao novo âmbito cultural, ele determi-
na, exemplarmente, o comportamento próprio de navegantes, conquistadores, mis-
sionários e colonizadores que o seguirão. Sendo assim, os diários nos propõem de
fato relatos de viagem que, se por um lado prestam atenção à narração exemplar de
Marco Polo, por outro parecem apresentar a empresa inaudita da mesma maneira
que aquela de Odisseu. Da mesma forma, então, Colombo determinava a fundação
de um universo cultural que condicionou por muito tempo o Ocidente. Via os
habitantes das Grandes Antilhas como "necessitados de tudo". Mas com o fato de
reconhecer aos índios uma humanidade suscetível de civilização, tanto mais ur-
gente quanto mais eram carentes de bens culturais por um lado, ou submissos a uma
civilização distorcida por outro, o europeu era chamado a uma obra de "recuperação
cultural" do selvagem. "Ao contrário, os bens de que necessitam os europeus, e que
Colombo irá pedir de modo insistente no momento em que tenta estabelecer uma
relação com os índios, são bens igualmente preciosos, mas são bens naturais:
pérolas, ouro, prata etc." (Mazzoleni, 1986: 73). Além da conotação defectiva,
emerge, porém, a possibilidade daquela relação de troca, fundamental à economia
mercantil européia. A exaltação da natureza americana na obra de Colombo se
contrapõe ao não reconhecimento dos bens culturais indígenas. Esta relação, "que
irá agir com recíproca vantagem das partes, concretiza-se, portanto, em uma troca
de bens culturais contra bens naturais. Os ameríndios, cedendo os bens de que a
Europa tem tanta necessidade, obterão em troca uma progressiva promoção cultural
e a integração política" (id., ibid.).
Mas outra atitude exemplar, que contaminará a sucessiva literatura de via-
gem, é representada pelo mito do "bom selvagem" (os tainos) em contraposição ao
selvagem mau (os bárbaros e não humanos Caribi). Esta contraposição reclama pa-
i
188 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
da, entre os séculos XIX e XX, pela "escola histórico-cultural", particularmente pelo
Urmonotheismus de Padre Schmidt, que relevava o fato de que, quanto mais
primitiva era uma civilização, tanto mais relevante a figura de um "Ser Supremo",
indicação esta da existência de uma verdadeira e própria religião monoteísta na fa-
se mais antiga da história humana.
Da mesma forma, continuando o confronto com Vico, ''truoverassi che le
razze, prima di Cam, poi di Giafet e finalmente di Sem, elleno, senza Ia religione dei
loropadre Noè, ch*avevano rinniegata (...) essendosi sperdute, con un errore o sia
divagament o ferino y dentro Ia gran selva di questa terra, (...) destate da un terribile
spavento d*una da essi stessi finta e creduta divinitá dei Cielo e di Giove (...) si
ritrovarono aver ivifondati e divisi iprimi domini delia terra, i cui signori nefuron
detti 'giganti'''^^.
A "descoberta" da América manifesta-se primeiramente como a aproximação
a uma realidade, a uma dimensão da cultura humana que, se por alguns aspectos é
anterior à Verdade revelada, por outro lado, se configura em oposição, mas também
como fundamento, à cultura humana no sentido ocidental. No momento da difícil
passagem iniciática, devendo interpretar fatos próprios de outras culturas, de outra
forma incompreensíveis, o Ocidente opera uma decifração que se torna útil so-
bretudo para decifrar a si mesmo na sua nova condição histórica. É assim que se,
desde o passado, o Terceiro Mundo "tinha estimulado numerosos e multiformes
interesses pelos mais diversos níveis de cultura no Ocidente (...), a barreira tradici-
onal do Humanismo ocidental, fechado também nas expressões mais liberais ao
reconhecimento de um papel ativo às sociedades diferentes, começa a quebrar-se"
(Lanternari, 1974: 41).
A América torna-se a concretização dos mitos de um Paraíso Terrestre, que é
tal enquanto antecede a concepção do bem e do mal (revelação), mas isto verifica-se
só naquilo que diz respeito aos loci amoeni. Os emblemas vegetais e a fauna voltam
a desenhar no imaginário europeu um fragmento do Éden perdido, o sonho de es-
paços incorruptos, enquanto a atmosfera espiritual da Contra-Reforma, nos pri-
meiros decênios do século XVII, elaborava uma prolongada reflexão acerca da
interpretação religiosa do novo exotismo botânico e da mensagem hermética
outorgada à nova flora. "Fé e botânica contraíram mais íntimos vínculos enlaçando
uma cerrada rede de símbolos onde os enigmas e os arcanos vegetais tornaram-se
motivo de reflexão e de reformulação dos destinos e das vicissitudes humanas"
(Camporesi, 1991: 41).
Em comparação com essa "edenização" do novo espaço geográfico, resulta
ainda mais evidente o contraste com o aspecto "infernal" que caracteriza, pelo
194 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
contrário, o mundo dos homens, de uma forma até então desconhecida a toda a
teratologia européia. Afinal, foi o mesmo Colombo, como já ressaltamos, a inaugurar
a "edenização" da natureza e a "desqualificação" dos homens do Novo Mundo.
Se o Novo Mundo representava o Inferno, sobretudo pela sua humanidade
diferente, animalesca e demoníaca, por outro lado representava o Purgatório (dan-
tesco) pela sua condição colonial. Constituía-se assim em oposição estrutural à
Europa "civil", lugar da cultura verdadeiramente humana. Se à Europa metropo-
litana cabia resgatar os "americanos" da perdição e do pecado nos quais viviam,
corrigindo-os, a imagem do Purgatório vem, paralelamente, representar o ponto de
convergência pela sua função de resgate da dimensão barbárica interna à própria
Europa "civil".
Nesse quadro a hierarquia dos espaços cósmicos põe-se em relação com os
relatos de viagem, que denominamos "rito de passagem" interno à cultura européia.
Se, no fim do século XV, as formulações das imagens do Purgatório entravam em
relação com a função purificadora conferida à travessia marítima, os primeiros
navegantes parecem caracterizar-se quase como "operadores sagrados", se não dire-
tamente como "heróis culturais", que "criam" a nova realidade. É neste ato cultural-
mente criativo que podemos encontrar o significado mais profundo da literatura de
viagem.
Temos visto de fato que os diários de Colombo pretendiam elaborar contos
inauditos que teriam tido a função de percorrer de novo a empresa fundadora de
Odisseu. Neste propósito, torna-se iluminante a sua febril necessidade de rebatizar
os lugares da descoberta: quer nomeá-los, operando assim uma criação, além de uma
tomada de posse. É nesta função que as cerimônias de nomeação, em presença do
notário régio munido de tinteiro, assumem a importância e a característica de um
verdadeiro e próprio ritual de fundação ocidental: uma atribuição do nome, opera-
da por meio da escritura. E se o amplo ato de nomeação revela a função fundante da
ação de Colombo, por outro lado os nomes mesmos revelam, em realidade, um ato
de re-fundação através de uma tensão própria e de interpretação "finalística", apon-
tando sobretudo o texto bíblico. Não se trata portanto, para o navegador genovês,
propriamente de uma descoberta, mas de uma re-descoberta da verdade bíblica já
conhecida com antecedência (Todorov, 1992: 17-40).
Nas pequenas embarcações que penetravam os novos espaços atlânticos, o
"escrivão" de bordo era uma figura sempre presente; evidentemente ele tinha uma
função prevista pela sociedade à qual pertencia e, então, necessária à mesma cultu-
ra européia. Não por acaso a escrita constitui, nessa época, um saber dominado por
um número ainda muito reduzido de pessoas, e o "escrivão" desses séculos possui
195 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
Abstract: This article tries to analyse a specific relation between Travei Narratives and
the construction ofthe New World reality. By XV and XVI centuries, travellers entered
a conceptual universe that suggests an ''iniciatic metaphor" to its analysis, or to
explicit common and dijferent characteristics among Travei Narratives and iniciation
rites by means of privileged rites control instruments, knowledge and representations.
By this way, travei narrative configure a moment of reintegration in the cultural space
ofthe traveller and, in another, as a reinterpretations of his culture.
Key-words: memory - history - imaginary ~ representation - alterity - travei narratives
~ passage rites
198 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
f
Notas
9. Id., ibíd., p. 58: "Porém, o melhor fruto que dela (carta) se pode tirar me parece
que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela
deve lançar. E que não houvesse mais que ter aqui Vossa Alteza esta pousada para
a navegação de Calicute, isso bastava. Mais ainda, disposição para nela cumprir-se
- e fazer - o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber: acrescentamento da nossa Santa
Fé!"
10. "O país é muito temperado, fértil e sumamente deleitoso; e, embora haja muitas
colinas, é contudo irrigado por infinitas nascentes e rios (...). ... é dirigido ao meio-
dia, com o céu de tal maneira temperado que no inverno não têm frio, nem no verão
são molestados pelo calor (...). Aqui o céu e o ar é (são) raras vezes assombrado(s)
pelas nuvens; quase sempre os dias são serenos. Às vezes cai o orvalho mas le-
vemente: quase não existe vapor nenhum e o orvalho não cai mais que por espaço de
três ou quatro horas e a guisa de névoa desaparece" (Vespucci, 1984: 107-9).
1 1 . 0 primeiro encontro dele com o "outro" indígena tinha sido de fato com os
Margaiás, tribo aliada dos portugueses (católicos) e portanto inimiga dos franceses
(neste caso reformadores).
12. Esta semiliberdade "se explicava com a sua nova condição: temporariamente pelo
menos, ele tinha deixado de ser um inimigo para tornar-se um membro da comunidade
da aldeia" (Léry, 1980: 56).
13. "Se descobrirá que as raças, antes de Cam, depois de Jafé e finalmente de Sem,
sem a religião do próprio pai Noé, que eles tinham renegado (...), tendo-se disper-
sado, com um erro ou seja devaneio ferino, dentro da grande selva desta terra, (...)
despertadas por um terrível susto de uma, por eles mesmos simulada e acreditada,
divindade do Céu e de Júpiter (...) encontraram-se ter aí fundados e divididos os pri-
meiros domínios da terra, cujos senhores foram chamados 'gigantes'" (Vico, 1988:
95).
14. Trad. "onomástica" e "léxico" (Febvre, 1974: 335).
200 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
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LÉRY, J. de. Viagem à Terra do Brasil. La Rochelle 1577. São Paulo, 1980.
201 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
Matraga,
seu pai, seu filho
Renato da Silva Queiroz*
Resumo: O artigo analisa um conto de João Guimarães Rosa, "A Hora e a Vez de Au-
gusto Matraga*\ acompanhando a trajetória de seu principal personagem por meio de
um enfoque antropológico, com destaque para os processos conhecidos como ''ritos de
passagem
Palavras-chave: antropologia da literatura - ritos de passagem - liminaridade - ritos
de transição
Abstract: The article analyses a short story by João Guimarães Rosa, Hora e a Vez
de Augusto Matraga approaching his main character's course oflife from an anthro-
pological viewpoint, with special emphasis on processes known as "rites de passage "
Key-words: "rites de passage ''-Augusto Matraga - Guimarães Rosa - antropological
approach - liminarity
Notas
Referências Bibliográficas
Meditações sobre
a desordem
Goffredo Telles Jr.*
ta, decepciona, prejudica, infelicita, desola. Às vezes, é o nome da ordem que causa
arrependimento. Mas a desordem é sempre uma ordem, eis o que precisa ficar bem
claro.
A desordem se pode verificar - expliquei - tanto no mundo da natureza física,
como no mundo do comportamento humano.
No mundo da natureza, a desordem dos elementos é sempre uma ordem
produzida por forças físicas ou químicas, ou físico-químicas, mas ordem que
contraria interesses humanos, não sendo, portanto, a ordem desejada pelo homem.
Por exemplo, as desordens orgânicas, as doenças de todas as espécies, são
ordens - ordens rigorosas de fenômenos, encadeamento de causas e efeitos, dispo-
sições impostas às coisas para os desígnios da natureza. Embora sejam ordens,
recebem o nome de desordens, porque não são ordens convenientes para fins hu-
manos: produzem sofrimento e tristeza.
A visão das ruínas deixadas por um incêndio ou por um furacão faz surgir, no
espectador humano, sentimentos de angústia, de aflição, de temor ou, ao menos,
sensações de tristeza ou de mal-estar. Ali está, de certo, na desolação dos escombros,
no caos dos destroços, na confusão das coisas destruídas, uma imagem flagrante da
desordem.
Sucede, porém - disse eu - , que, se o espectador se detiver na meditação sobre
qualquer dessas catástrofes, uma evolução espontânea de seu espírito irá transfor-
mando impressões, e acabará por fazer pensar que tudo, afinal, naquela cena de
tragédia, pode ser explicado pelos fatos que ali aconteceram. O espetáculo aberto
diante de seus olhos, responsável pela referida imagem da desordem é composto de
elementos que são os efeitos certos de causas certas. Estas causas é que espalharam
as coisas por toda parte, e as puseram nos lugares em que se encontram. Tendo havido
tais causas, os efeitos só poderiam mesmo ser aqueles. Cada coisa, portanto, na
localidade flagelada, estará ocupando, após o sinistro, seu lugar próprio, ou seja, o
lugar que ela não poderia deixar de ocupar, em virtude do que ali aconteceu. Cada
coisa estará em seu preciso lugar em razão dos antecedentes. As coisas foram
transportadas por forças naturais e inelutáveis, conduzidas para as situações em que
se acham. Elas foram dispostas pelas energias que movem a matéria para fins que
necessariamente existem, mas que escapam ao entendimento humano. Em razão
desses fins, todas aquelas coisas estão dispostas convenientemente. Estão, pois, em
ordem.
Por que, então - perguntei - , o homem confere a essa ordem o nome á^desordeml
A resposta é simples. A essa ordem, o homem confere o nome de desordem
porque ela não é a ordem que o homem deseja, a ordem que o satisfaz. Ela não
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 207-215, 1996.
constitui a ordem que lhe éconveniente. Pelo contrário: ela é a ordem que o desgosta
e infelicita.
Exprimindo inconformismo, o homem chama de desordem a ordem que ele
encontra, no lugar da ordem que ele quer. Mas o nome que ele confere à disposição
das coisas não altera, evidentemente, a realidade objetiva. O que ele chama de
desordem continua sendo uma ordem.
Em suma, a desordem é a ordem que não nos convém. É a ordem que não
queremos (ou que não deveríamos querer).
Não havendo o referido inconformismo - não havendo desgosto, contrarieda-
de, prejuízo para o homem - , nenhum fenômeno da natureza, nem mesmo um
cataclismo, receberá o nome de desordem. A explosão de uma estrela, uma super-
nova, é uma colossal catástrofe nas imensidões dos céus. Mas ninguém a chamará
de desordem. Por quê? Porque a destruição de uma estrela e o lançamento de seus
destroços pelo firmamento não afetam interesses humanos. Todos dirão, simples-
mente, que a supernova se situa dentro dos planos da natureza e pertence à ordem
do Universo. E, realmente, estarão certos.
No mundo do comportamento humano - continuei a desordem ou é volun-
tária ou é involuntária.
Pode alguém, voluntariamente, produzir a desordem? Pode, deliberadamen-
te, dispor as coisas de maneira inconveniente para outrem, como seria o caso, por
exemplo, de quem baralhasse, por malícia, os livros de uma biblioteca. Essa dis- A
posição é conveniente para a pessoa que a fez, pois alcança o fim ou objetivo al-
mejado. Que fim, que objetivo será este? É o de criar uma disposição inconvenien- I
te para outra pessoa. Para a outra pessoa, a disposição baralhada dos livros é uma
desordem - uma desordem produzida intencionalmente por alguém. Mas tal dis-
posição, chamada desordem, não é ausência de ordem, uma vez que ela é uma or-
dem deliberadamente dada às coisas.
A desordem é voluntária quando a disposição dada às coisas é disposição
conveniente para a consecução dos fins de quem a fez deliberadamente, mas incon-
veniente para a consecução dos fins de outrem. Enquanto disposição conveniente, a
disposição é ordem; enquanto disposição inconveniente, a disposição é desordem.
É evidente - disse eu - que a mesma ordem pode ser ordem e desordem, isto
é, pode ser ordem para alguém e desordem para outrem; pode ser disposição para os
fins de alguém, e disposição inconveniente para os fins de outrem.
No caso especial do pecado, a desordem voluntária é conveniente e inconve-
niente ao mesmo tempo, para a própria pessoa que o pratica - e não há necessidade
de fazer a demonstração de uma tal evidência.
J
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 208-215, 1996.
O certo é que a desordem voluntária nunca exclui a ordem. Pelo contrário, ela
é sempre uma ordem, como se acaba de verificar.
A desordem - continuei a desordem no mundo do comportamento humano,
pode ser involuntária. Ela é involuntária quando a disposição das coisas é dada com
a intenção de ser conveniente e, depois, é julgada inconveniente. Mas, neste caso,
também, a desordem não é ausência de ordem. Ela é uma ordem na intenção que a
inspirou. Ela é, como foi dito, a disposição conveniente segundo o julgamento de
alguém, embora essa disposição possa depois ser tida como inconveniente, segundo
outro julgamento.
Incluem-se entre as desordens involuntárias as desordens resultantes de
desmazelo, imprudência, imperícia. O exame de todos esses casos de desordem leva
sempre à conclusão de que são ordens, como as demais.
Quem joga as coisas descuidadosamente dentro de uma gaveta, com o intuito
de abrir espaço sobre a mesa, faz ordem: não ordem na gaveta, mas ordem sobre a
mesa. Na gaveta, note-se, as coisas atulhadas também estarão em ordem: não, evi-
dentemente, na ordem buscada pelo homem, mas na ordem em que as dispuseram as
forças da natureza, ao serem lançadas por mão desleixada.
Os livros despejados por um caminhão sobre um terreno não são uma biblio-
teca; são um montão de livros. Para quem os quisesse como biblioteca, acham-se tais
livros na mais completa desordem. Mas para quem quis livrar-se deles, talvez
queimá-los numa fogueira, os livros se acham convenientemente amontoados, isto é,
acham-se em ordem. A desordem para a biblioteca é ordem para a fogueira.
Uma observação ainda pode ser feita - disse eu - sobre este último exemplo.
Os livros despejados de qualquer maneira, amontoados em confusão sobre um
terreno, caíram e deslizaram uns sobre os outros, e se imobilizaram, afinal, em seus
respectivos lugares. Submetidos a forças físicas inelutáveis, os livros ficaram dis-
postos numa ordem semelhante à ordem das ruínas deixadas pelo furacão.
Bergson demonstrou que tudo quanto o homem chama de desordem é sempre
ordem. Diz o filósofo que a desordem tida como ausência de ordem é impossível,
por ser intrinsecamente contraditória. Ela há de ser, forçosamente, não a ausência,
mas a presença de uma ordem, embora esta ordem desagrade, prejudique, infelicite.
Na realidade, a ausência de uma certa ordem não é desordem, mas a presen-
ça de outra ordem.
Suprimir uma ordem é fazer outra, como sucede quando a ordem ditada pela
vontade é substituída pela ordem imposta pelo furacão. Logo, a desordem não existe.
A desordem não é a ausência da ordem, mas a ausência de uma certa ordem.
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 209-215, 1996.
De real, o que existe é a ordem. Nunca se viu a ausência da ordem, como nunca
se viu o nada. Se, na disposição das coisas, não há uma vontade humana criando a
ordem, é porque há determinismo físico; se não há determinismo físico, é porque há
uma vontade humana. Mas, dentro da realidade, a ordem existe sempre: eis o fato.
A desordem, pois, não pertence à realidade. Não passa de uma pseudo-idéia, de
uma ilusão.
O que a realidade ensina - observei - é que tudo quanto se chama "desordem"
compreende dois elementos, a saber: 1. fora do homem, uma ordem criada pela
vontade humana ou resultante do determinismo físico; 2. dentro do homem, uma
representação ou idéia de ordem - um imaginário da ordem - , diferente da primeira,
mas que é a que interessa ao próprio homem.
A desordem, portanto, é composta de duas ordens: uma, objetiva; outra,
subjetiva.
Eis por que a desordem não pode ser ausência de ordem. Não sendo ausência
de ordem, é presença de ordem. Logo, a desordem é ordem,
O que faz que, a essa ordem, se confira o nome de desordem é o desacordo en-
tre a ordem existente na realidade e a idéia que o homem faz da ordem. É o desacor-
do entre a realidade e o imaginário.
Por outro lado, jamais se dará à ordem o nome de desordem quando a ordem
real coincide com a idéia de ordem. Em cada homem, a realidade será tida como
ordenada na exata medida em que ela corresponde a seu pensamento.
A ordem, pois, para cada ser humano, é um certo acordo entre o sujeito e o
objeto. Neste sentido, ordem é o espírito se encontrando com as coisas.
Mas, neste sentido - como bem salienta Bergson - , as noções convencionais
de ordem e desordem, autolimitando-se, são exclusivamente práticas, a serviço da
linguagem e da ação, são mais nomes do que idéias, O homem dá o nome de
"desordem" à ordem que não lhe convém.
É assim que se diz que uma biblioteca está em desordem quando a ordem dos
livros nas estantes não é a ordem que agrada ou que serve a fins estabelecidos.
É assim, igualmente - afirmei - , que os governantes, em regimes de força,
chamam os adversários da ordem vigente de promotores da desordem, de subver-
sivos ou de demagogos, enquanto estes consideram demagogos, subversivos e
partidários da desordem precisamente aqueles que defendem a ordem vigente.
O nome desordem, cujo uso simplifica a linguagem, não tem, contudo, nenhum
emprego na especulação filosófica, porque não significa nada de verdadeiro, não
representa coisa alguma,/Zaíw^ voeis.
Imaginário - USP, n. 3, p. 211-233, 1996. 219
Resenhas
Título: A Cor dos meus Sonhos:
Entrevistas com Georges Raillard / Joan Miro.
Edição: Tradução de Neide Luzia Rezende. edição.
São Paulo: Estação Liberdade, 1992. 213p.
intensidade que caracterizam suas obras, pela mesma força que almeja arrancar da
estagnação e da "preguiça mental" o espírito dos homens. Esquivando-se dos exer-
cícios de teorização e escapando sempre da interpretação simbólica dos elementos
recorrentes de sua obra, Miró nos puxa para a arena de sua atividade criativa: luta
incansável contra o conformismo de toda "concepção senilizada de pintura" e
embate cotidiano com a resistência das matérias. Interessa-lhe fazer e provocar uma
revolução permanente no interior da qual as transformações plásticas implicam,
necessariamente, transformações de idéias.
O ato de poesia - e Miró não estabelece nenhuma diferença entre poesia e
pintura - constitui o centro de irradiação de suas idéias e opiniões. O movimento dos
temas que se encadeiam mimetiza o próprio movimento de criação, configurando
um corpo comunicável desconcertante e perturbador. O corpo das formas de suas
obras que quer tocar, impressionar, chocar o espírito se re-apresenta nas palavras
que quase querem dizer, em síntese: veja, é assim que eu faço!
A atividade criativa constitui-se como aprendizado de liberdade. Miró des-
creve uma espécie de ritual que começa com o seu caminhar pelo ateliê, olhando pa-
ra os materiais (sente-se atraído tanto por um papel especial japonês quanto por um
papel de embrulho), para as telas nas quais simultaneamente trabalha, para as
manchas de tinta no chão ou na mesa. Responde ao chamado das coisas, da matéria.
Prioriza o material em detrimento do instrumento e é da vida do material que rece-
be o estímulo para iniciar seu trabalho: "O papel de pacote já teve uma existência
antes, aproveito essa vida" (p. 155). O começo, análogo ao nascer, é sua razão de
viver e, no ponto de partida, nem reflexão intelectual, nem sentimentos. Sobre a
sua motivação, diz: "Preciso de algo que me provoque uma emoção. É a emoção que
me move. Não é algo do domínio do sentimento: é como se um alfinete me espe-
tasse" (p. 110).
A imagem do alfinete, ser de ínfima proporção, associada ao choque que
desencadeia a criação, nos aproxima do modo singular através do qual Miró
"hierarquiza" o poder estimulador das coisas. Para ele, "um talinho de capim tem
mais importância do que uma grande árvore; uma pedrinha, mais do que uma
montanha: uma libelulazinha, tanto quanto uma águia" (p. 54). Quando passeia, não
olha a paisagem, mas o sol e o céu e em Son Abrines, localizado diante de uma
magnífica paisagem mediterrânea, trabalha no andar inferior, com as janelas fecha-
das para a paisagem - "O que existe quando trabalho é isto aqui: esta manchi-
nha branca no chão" (p. 41). Ao mesmo tempo, os elementos que dão origem às
formas aparentemente simples e parcimoniosas com que Miró constrói sua obra são,
para ele, universos. Isto fica claro quando declara que "um único espinho é o resumo
Imaginário - USP, n. 3, p. 217-233, 1996. 219
de todas as outras plantas" (p. 54) ou quando diz, literalmente, que o que chama de
mulher não é a criatura "mulher", mas um universo.
O surgimento destes universos é fruto de uma aventura que se apoia no tempo
e no acaso: "Quando desço ao ateliê e pinto, não sei para onde vou" (p. 58). Miró
mantém muitas telas em andamento, por acabar, iniciadas em épocas diferentes.
Volta a elas numa sincronicidade com processos de amadurecimento cujos tempos
variam, às vezes quatro ou cinco anos, às vezes quarenta. Paralelamente, deixa-se levar
por acidentes como um escorrimento de tinta ou uma imperfeição numa chapa de cobre.
Não há gratuidade, porém, na invenção destes universos. O sentido do conjunto
de sua obra revela-se como direção, rumo e, por isso, reside adiante, na potência
transfomadora do gesto de criação e seu impacto sobre as pessoas. Este sentido não é
informado por uma noção de representação do mundo, nem pela de exteriorização do
"mundo interno" do artista. Por este motivo, talvez, Miró se mostre tão esquivo à
interpretação de símbolos, reiterando, sempre, que o lado plástico supera o simbóli-
co em sua produção. Trata-se, para ele, de buscar o "choque das formas no espírito".
A tradução interpretativa, bem como toda elaboração intelectual, ficam aquém do
poder que atribui a toda expressão plástica. Em várias passagens das entrevistas ma-
nifesta um desconforto com relação às tentativas de explicação, como quando afirma
que, se pudesse explicar suas telas, isso seria uma coisa intelectual, fria e morta: coisa
de teórico. Ou quando, veementemente, concorda com Raillard sobre uma observa-
ção deste sobre seu modo de encarar a interpretação: "Sim! Não traduzo nada" (p. 147).
Nos temas abordados em conexão com o processo de criação, Miró apresenta
a mesma disposição de combate e resistência a tudo que represente aprisionamento
e cerceamento da expressão: o horror ao franquismo; o ódio ao dogma; a descon-
fiança com relação ao virtuosismo que, acredita, leva à acomodação; as ligações com
o movimento surrealista e com o comunismo; a aversão à publicidade, à comercia-
lização das obras de arte e aos burgueses.
Em um único momento concede a Raillard sua concordância em relação a uma
interpretação de sua obra. Falando sobre dois elementos bastante presentes em suas
pinturas - pássaro e personagem - , atribui ao pássaro o significado de liberdade, pelo
seu movimento ascendente na tela, e à personagem o significado de prisão. Esta
oposição diz muito sobre aquilo que está no centro de sua prática, mas é, talvez, do
embate destes elementos que a obra de Miró retira seu sentido. Ninguém melhor do
que ele mesmo para dar este testemunho: "E minha pintura não é, em absoluto, um
diário secreto. E uma força de combate que se exterioriza" (p. 181).
218
Resenhas
1
Título: Por que Almocei meu Pai
Autor: Roy Lewis
Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
O aspecto mais interessante de Por que Almocei meu Pai está na comicida-
de com que o autor, o jornalista e sociólogo Roy Lewis, apresenta a evolução do
homem das cavernas.
Para Roy Lewis, Adão e Eva não passam de eufemismos religiosos: nossa
evolução foi mesmo a partir dos símios. Com base nessa idéia Lewis escreveu esse
primeiro romance cult book nos anos 60.
Ernest é o narrador de Por que Almocei meu Pai. Sensato, ele conta as
aventuras de seu pai Edward, considerado o homem-macaco mais importante do
Pleistoceno.
Edward é um tipo peculiar cuja obsessão é transformar os membros de sua hor-
da nos primeiros representantes do Homo Sapiens na Terra. Inquieto, o homem-
macaco progressista acredita que só a evolução permitirá aos homens dominar o
mundo.
Contrariando seus princípios está tio Vanya, um sujeito esquisito que defen-
de a volta dos homens-macacos às árvores.
Assim, Ernest conta como seu pai dominou o fogo, ocasionou um incêndio,
instituiu a exogamia e como sua horda descobriu a dança, a pintura, a comida e no-
vas utilidades para a pedra lascada.
Com uma linguagem bem-humorada e anacrônica, cheia de jargões científicos
e pratos franceses, Lewis reescreve, por intermédio de Ernest, a pré-história do
homem.
Sem deixar de lado o aspecto geográfico e social da coisa, Lewis descreve com
uma riqueza de detalhes deliciosos a África de 2 milhões de anos atrás, transpor-
tando o leitor para um mundo já extinto, mas não menos real que o nosso. No aspec-
to social, especialmente o psicólogo, Ernest é quem dá a deixa. Em seus momentos
i
* Graduanda em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo.
219
Imaginário - USP, n. 3, p. 221-233, 1996.
* * *
lizado pelas marcas de intensificação pessoal dos fatos relatados. O uso freqüente da
primeira pessoa do singular dá a impressão de o autor ter testemunhado os fatos por
ele relatado.
Neste sentido, Mandeville, por intermédio da narrativa do outro, dá a entender
que não quer possuir terras, ou qualquer riqueza material, mas sim, domesticar
através do maravilhoso bíblico\ juntamente com o maravilhoso narrado pelos ro-
mances de cavalaria - que marca uma visão mais laica da sociedade - , as diversas
formas de representação cultural, demonstrando que todos poderiam converter-se
ao cristianismo. O ato da possibilidade de conversão é claramente um ato de posse
imaginária^.
No segundo exemplo de posse do maravilhoso, o autor elege Colombo como
paradigmático. Mas por quê?
A novidade de Colombo está em haver rompido a fronteira oceânica e com is-
so todas as agruras da distância. Como Colombo narrou esse mundo tão distante e
portanto tão longe de qualquer outro que havia sido relatado?
Narrou o maravilhoso natural, ou seja, descreveu um lugar tão exuberante,
com paisagens e climas tão diferentes de qualquer descrição até então relatada, que
a narrativa não precisava utilizar-se das metáforas ou ironias, figuras de linguagem
que caracterizavam as narrativas de outros viajantes.
Colombo é o agente da colonização e da posse de terras estrangeiras, e um dos
atos que caracteriza a posse reside no processo de renomeação das ilhas descober-
tas. Assim como o processo de criação do mundo por Deus está intimamente ligado
ao ato de nomeação, Colombo como sinal de posse silenciará qualquer voz indígena.
O autor nos aponta que "em face do desconhecido os europeus usam estrutu-
ras intelectuais e organizacionais convencionais, moldadas durante séculos de
contatos indiretos com outras culturas, essas estruturas impediam em grande parte
uma percepção clara da radical alteridade das terras e dos povos americanos". A
representação construída sobre o índio era o resultado da mentalidade européia da
época das colonizações. Colombo estava possuído pela leitura dos relatos de via-
jantes que ultrapassaram as fronteiras européias, desde Marco Polo até Mandeville.
No entanto, o que o diferencia é a empreitada que realiza, ou seja, vai conquistar
terras, vai dominar e, para tal ato, como indica Greenblatt, utiliza-se dos símbolos de
dominação de sua própria cultura, ritualizados pelo ato de posse daqueles a quem
representava, a Coroa espanhola.
As práticas discursivas juntamente com os rituais europeus legitimaram a
posse dos colonizadores. A ausência de contestação por parte dos nativos tinha um
218
Resenhas
!
sentido de concessão para Colombo - tal fato seria importante para estabelecer uma
reivindicação legal da coroa espanhola sobre as terras recém-descobertas^
A necessidade de conquistar, ou seja, de tomar posse, incluía também o do-
mínio dos habitantes. Para tal tarefa, Colombo necessariamente teria que se comuni-
car. Num primeiro momento, a circulação mimética se resumia em atos mímicos e
permuta de objetos. O autor afirma que "praticamente inexistia reciprocidade no in-
tercâmbio de representações entre os europeus e os povos do Novo Mundo, nenhu-
ma igualdade do dar e receber" (Todorov, 1991: 160).
Não existe reciprocidade porque a priori não há igualdade entre os universos
li
simbólicos, logo, a reciprocidade, nos termos de Mauss, só acontece quando ocorre
um compartilhamento de representações. O sistema de prestações totais, definido
por Mauss, o potlach, que simboliza a circulação de riquezas, tanto matérias quan-
to simbólicas, necessariamente é feito dentro de um mesmo universo de representa-
ção para que haja a reciprocidade, ou seja, para que não ocorra insatisfação de ne-
nhuma das partes, o que pode provocar uma guerra.
A circulação mimética neste primeiro momento chega a ser quase nula. O
discurso colonizador e suas práticas de colonização foram construídos com a total
ausência do nativo, o qual, desqualificado para ser construído e representado como
objeto de investigação, nunca chegou a tomar posse do discurso através do prono-
me eu. Pois, segundo a antropologia, a diferença lida através do enfoque da desi-
gualdade gera a sobreposição de uma prática simbólica sobre a outra, desenca-
deando uma prática de dominação.
Sabemos que a disputa pela posse da América foi feita por vários agentes (a
coroa, os missionários etc.). Cada um criava sua narrativa, eliminando qualquer
vestígio de posse pelos nativos. Neste sentido, a representação do eu nativo dentro
da narrativa não existe. Ele é criado e representado dentro da narrativa européia"^.
Posto isto, a circulação mimética do discurso de Colombo, no primeiro mo-
mento, tende à monossemia, pois a função discursiva é de " domesticar o estrangei-
ro" atribuindo-lhe vozes abafadas ou desqualificando-o ou, na maioria das vezes, au-
sentando-o do discurso, anulando assim a sua identidade.
O símbolo-chave, "maravilhoso, funciona como agente de conversão: um
mediador fluído entre o exterior e o interior, o espiritual e o carnal, a esfera das coi-
sas e as impressões subjetivas por elas provocadas, a recalcitrante alteridade de um
mundo no voe o efeito emocional causado por essa alteridade" (Greenblatt, 1996:102).
Assim, Colombo codificou toda essa alteridade jamais vista, como algo que se
assemelhasse ao seu imaginário, ou seja, a descrição do Éden, o paraíso terrestre.
Neste sentido podemos fazer um paralelo, tal como os havaianos achavam que Cook
f 219
Imaginário - USP, n. 3, p. 225-233, 1996.
(Sahhlins, 1988) era o deus da colheita, Colombo achou que a América era o paraíso
terrestre.
Na medida em que novos sujeitos vão surgindo no processo de colonização e
de posse surge também a figura do intérprete. Ele, se assim pudermos dizer,
representa a posse das duas narrativas culturais. Por meio dele é que se efetuará a
circulação simbólica que antes tendia para a monossemia. Assim, D. Marina repre-
senta o elo entre Cortez e os Astecas.
Diferentemente é o uso do agente mediador para Montaigne, o criado que narra
as aventuras do Novo Mundo representando os índios repletos de símbolos que ca-
racterizam as proezas e vícios da cultura européia.
Não procura no Novo Mundo o Éden, e sim as explicações, através do espelho,
para o momento histórico tão peculiar que vivia. Neste sentido, em sua obra Os
Canibais, os nativos são representados como nossos ancestrais, apontando a per-
versidade produzida pela sociedade em que vivia.
Foi por meio dos relatos sobre o Novo Mundo que Montaigne pôde identifi-
car sua própria cultura. O maravilhoso está em horrorizar o outro como um reflexo
de sua sociedade.
Como bem assinala o autor, na introdução, o seu interesse não é o conhecimen-
to do outro, mas a ação sobre o outro. As estratégicas discursivas apresentadas levam-
nos a distinguir dois grupos: Mandeville, que representa através da narrativa a
construção áo outro, tendendo de uma alteridade radical, em termos de um estranha-
mento que o diferencia de si mesmo, para uma identidade, na qual o outro o leva para
o auto-reconhecimento. O eu é o outro e o outro é o eu (Greenblatt, 1996: 176).
Colombo e Bernal Díaz por outro lado, constroem a narrativa sobre os índios
com os símbolos da posse simbólica e material que os levam da identificação para o
estranhamento total, tornando-se, portanto, objeto estranho, uma coisa que pode
destruir ou incorporar à vontade (id., ibid.).
Com a reprodução e a circulação do capital mimético, o maravilhoso, símbo-
lo-chave, explica a forma de dominação da Europa sobre os outros "mundos". Assim,
podemos constatar que todos os personagens eleitos pelo autor possuem o objeto de
seu discurso, o que varia é a forma dessa possessão.
Sem dúvida, este livro representa um marco interdisciplinar que resulta numa
análise original de documentos extremamente trabalhados pela historiografia, levan-
do-nos à impressão de estarmos diante de algo inédito. O autor faz-nos entrar num
estado dõ maravilhamento nãturãl, que causa admiração; surpreendente, espantoso,
excelente, primoroso, magnífico, diante de tal originalidade textual.
218
Resenhas
ra, trazia em si, já, o desejo de ultrapassagem da própria fronteira americana então
alcançada, para se buscar passagens ao norte e ao sul, que abrissem as portas para o
Oriente.
Quase 400 anos separaram as descobertas dessas passagens: Fernão de Maga-
lhães encontrou o estreito ao sul em 1520, mas somente em 1905, após inúmeras ten-
tativas frustradas e fatais, Roald Amundsen, o grande herói polar, descobriria a Pas-
sagem Noroeste, cruzando o Estreito de Bering.
Apesar do tempo separando a descoberta e a conquista, os pólos geográficos
da Terra estiveram, no imaginário de diferentes épocas, entrelaçados por um prin-
cípio de simetria, no qual o Ártico seria, obrigatoriamente, equilibrado por um anti-
Ártico (a Antártida). Segundo Ulisses Capozoli, os dados científicos acumulados
até agora sobre essas regiões diametralmente opostas, de certa forma, confirmam
esse princípio de equilíbrio:
"Ficou claro que o pólo norte não passa de uma grande depressão coberta por uma
espessa capa de gelo na superfície, enquanto a Antártida é uma enorme protuberân-
cia continental. Já se comparou esta situação como parecida ao resultado da pressão
de um grande polegar cósmico no pólo norte, que resultou num afundamento da re-
gião, produzindo, em compensação, a protuberância do Sul. Medidas de áreas e alti-
tudes dão consistência a esta imagem, pois enquanto o Oceano Ártico tem uma área
em tomo de 14,35 milhões de quilômetros quadrados, a área da protuberância
antártica, coberta de gelo, é de 14 milhões de quilômetros quadrados. (...) Mesmo a
profundidade máxima no Ártico, de 5.335 metros, tem uma relação com a altitude
máxima da Antártida, de 4.897 metros do maciço Vinson" (p. 142).
Além dos aspectos geomorfológicos, o princípio de simetria parece ter per-
meado também ~ e principalmente ~ o processo de aproximação e conquista; muitos
navios e exploradores ligaram seus nomes a ambos os pólos, o que torna impossível
a construção de uma historiografia separada. O treinamento dos homens, o desenvol-
vimento dos equipamentos, o financiamento das expedições, bem como as tragédias
pessoais dos conquistadores foram fatores que, segundo Capozoli, deram um mes-
mo e único sentido para uma lenta aproximação em relação a esses territórios.
Na virada do século XIX para o XX, no entanto, conquistadas já as fronteiras
geográficas, foi o desejo de alcançar os pólos magnéticos que surgiu como um novo
desafio, desencadeando uma verdadeira corrida contra o tempo^. De forma mais
dramática e densa, homens e desejos, norte e sul se mesclaram, pondo à mostra signi-
ficados ambíguos para essa conquista de passagem de século: aventura ou ciência?
Esse conflito, expresso sem rodeios na frase do contemporâneo Freud, deixava
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Imaginário - USP, n. 3, p. 229-233, 1996.
de previsão em relação aos alimentos e aos combustíveis, fizeram com que o grupo
de Scott encontrasse lentamente a morte, em fevereiro de 1912. Somente seis meses
mais tarde os corpos seriam encontrados.
Mesmo premiado pela inebriante sensação de poder dar "uma volta ao mundo"
em poucos passos, Amundsen, no entanto, não descartou o acaso em sua vitória. Re-
ferindo-se em seu diário ao sonho desfeito do pólo norte e à conquista inesperada do
pólo sul, ele registrou:
"não conheço nenhum homem colocado em posição mais distante" (p. 124).
Enquanto isso, o diário de Scott, por outro lado, aceitava os últimos registros
da derrota:
"Ó Deus, que lugar horrível. É muito desalentador ter sofrido tanto para chegar e não
ser recompensado pela glória da prioridade. (...) Talvez amanhã o vento nos seja
favorável" (p. 114).
O vento não seria mais favorável a Scott. Ele queria ser herói, mas para ser he-
rói nas novas - e últimas - fronteiras, é preciso chegar primeiro.
Notas
1. Citado em Schwartz, Hillel. Fim de Século. São Paulo: Cultura Editores Asso-
ciados, 1992, p. 287.
2. Entende-se por pólo geográfico cada uma das extremidades do eixo imaginário so-
bre o qual a Terra executa o seu movimento de rotação. Os pólos geomagnéticos são
os dois pontos da superfície terrestre em que a inclinação magnética é igual a 90 graus.
Os pólos magnéticos não são diametralmente opostos e nem se mantêm fixos na su-
perfície da terra. Cf. Buarque de Holanda Ferreira, Aurélio. Novo Dicionário da
Língua Portuguesa.
3. Hoje a conquista de Peary é interpretada por muitos como uma grande fraude e
questiona-se se o capitão Cook não poderia ser considerado o primeiro explorador
europeu a atingir o pólo norte. Por outro lado, considera-se com unanimidade que o
russo Thaddeus Bellingshausen foi o primeiro a colocar os pés no continente antárti-
co em 1820.