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5 Apresentação

7 Entrevista: Profa. Marlyse Meyer


Dossiê Natureza
31 Natureza e Naturalistas
Miriam Lifchitz Moreira Leite
59 Viajando pelo Mundo dos Museus:
Diferentes Olhares no Processo de Institucionalização
das Ciências Naturais nos Museus Brasileiros.
Maria Margaret Lopes
79 Introdução à Herpetologia do Brasil.
O Contexto Científico e Político da Expedição Bávara ao
Brasil de Johann Baptist von Spix & Johann Georg Wagler
P. E. Vanzolini
121 Ecologia Polissêmica
Marilia Coutinho
151 ^Indígenas e Camponeses: uma Relação de Conflitos
Regina de Toledo Sader
163 ^^ Felizes Culpas do Ocidente
Dario Sabbatucci
181 ^ Sonho Indiano: uma Metáfora Iniciática
na Literatura de Viagem dos Séculos XV e XVI
Adone Agnolin
203 Matraga, seu Pai, seu Filho
Renato da Silva Queiroz
209 Meditações sobre a Desordem
Goffredo Telles Jr.
217 Resenhas
Revista publicação do Núcleo de
Imaginário Estudo Interdisciplinar
do Imaginário e Memória
n. 3 - 1996 da Universidade de São
ISSN 1413-666X Paulo - NIME-USP
Conselho Editorial: Antonio Cândido, Decio de Almeida Prado, Miriam Mo-
reira Leite, Renato da Silva Queiroz, Maria Regina Toledo
Sader, Maria Luiza Sandoval Schmidt, Maria Amélia
Império Hamburger, Paulo Vanzolini, Sheila Maria Dou-
la, Adone Agnolin, Maria de Lourdes Beldi de Alcântara
Diretoria Executiva: Maria de Lourdes Beldi de Alcântara, Sheila Maria Doula
Endereço para correspondência:
Imaginário
Laboratório de Geografia Política e Planejamento Territorial e Ambiental da FFLCH-USP
Av. Lineu Prestes, 338 - Prédio de Geografia e História, mezanino
Cidade Universitária
CEP 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil

Patrocínio Cultural:

IV
Banco Credibel S/A
Produção: discurso editorial
Capa: Marco Giannotti
Editoração: Guilherme Rodrigues Neto
ii
discurso editorial
Revisão: José Teixeira Neto
Impressão e acabamento: Bartira Gráfica e Editora
Tiragem: 1.000 exemplares
Imaginário - USP, n. 3,p.7-29,1996. 6

Apresentação

Imaginário n- 3 é o primeiro da revista após o reconhecimento d


Interdisciplinar do Imaginário e da Memória (NIME) pela Pró-Reito
da Universidade de São Pauloy em 30 de novembro de 1995.
Os n^ 1 e 2, referentes à Dinâmica do Simbólico e à Memória,
te, homenagearam o professor Ruy Coelho, publicando um de se
e a bibliografia que recolheu, em seus últimos dias de vida, sobre
tivos, cedidos pela psicóloga Lúcia Maria Salvia Coelho, que acre
artigo "Afinal o que é Cognitivismo'\ Procuramos, assim, deixar re
tribuição inestimável de Ruy Coelho para a discussão interdiscipli
combinando a Antropologia, a Psicologia, a Literatura, a música
preocupação central do Núcleo.
Uma preocupação fundamental desta publicação é torná-la u
to produtivo de trocas de trabalho para alunos e professores da
promovendo contatos sistemáticos entre os diferentes campos d
volvidos, com a determinação de criar condições para a prática da
ridade, que ainda existe como esperança, apesar das inúmeras
assinadas.
Enfrentando os sorrisos céticos com que Imaginário é recebida
programa de aproveitamento de esforços interrompidos (como a
Ruy Coelho), de revalorização de publicações secundárias com
Catálogos, do incentivo a formas alternativas de educação, com
monográficas, as exposições-inventário e as exposições-síntese
entrevistas dos pesquisadores e traduções de artigos considera
nossos propósitos pelo conselho editorial.
Sem a certeza de atingir esses objetivos, desejamos não
publicação universitária, mas registro de trabalhos que combinem
específica e produtiva, dados, percepções, reflexões, insights e re
outras áreas de pesquisa. Que criem uma unidade do entendime
e rigoroso, a partir da mistura de planos e de imagens, de obser
tadas, reflexões interrompidas ou do automatismo do processo c
sempre a uma formulação adequada, que nem sempre é a habitu
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Entrevista:
Profa. Dra. Marlyse Meyer

Pergunta: Gostaríamos que a senhorasobre a minha vida. A primeira parte de


desse um depoimento para a Revista, minha formação acadêmica é na
porque o seu nome é sempre lembrado Universidade de São Paulo, na sua
por aqueles que trabalham, de alguma Faculdade de Filosofia, no que se cha-
forma, com o tema imaginário, mava, como naquela época, de Cadeira de
um dos primeiros ou, talvez, a primeiLi
rateratura Francesa, ondefizo meu
pessoa que tratou do tema no Brasil.doutoramento,
A e o tema que eu escolhi
senhora poderia discorrer um pouco a para minha tese era a oposição, que
respeito do porquê de seu interesse atualmente tem outro nome, entre ficção
pelo tema, como ele foi surgindo na su
earealidade. Ficção vista como aquilo
vida intelectual e como ele se que era imaginado, sem tentar desen-
desenvolveu. volver muito essa questão da ima-
ginação. A minha tese de doutoramento
Marlyse Meyer: Isso me soa muitofoi sobre um autor francês do século
engraçado porque, realmente, não é umXVIII, muito reputado, que era
tema que eu usei, muito menos, comoMari
se vaux, e se chamou inicialmente
diz hoje, um conceito, Era uma palConvenção
avra, no Teatro de Amor de
sem muita preocupação de uma defini- MarivauxK E, quando a tese estava
ção... Eu tive uma vida um pouco com-pronta, defendida etc., por motivos
pessoais, lá fomos nós para a Europa, e
plicada, e eu teria que falar um pouco

* Entrevista concedida a Mário Yasuo Kikuchi, pesquisador do NIME e doutorando no Departamento


de Sociologia da FFLCH-USP.
9 Entrevista

eu continuei trabalhando, mas sem Literatura Comparada. E foi o jeito que


emprego. Descobri Ruzante^ e comeceieu encontrei, encorajada pelo meu
a trabalhar nuns artigos. E realmente eu compadre Lourival Gomes Machado,
pensava, no meu primeiro artigo^ que de resolver um dilema real que eu vivia
havia uma relação entre uma situaçãoentre duas culturas. Filha de franceses
"real" de cotidiano, que eu mesma estava que optou pelo Brasil. Eu nasci aqui,
descobrindo, porque eu estava morandome criei aqui, eu recusei o liceu francês,
numa cidade perto de Veneza, Pádua, fiz o ginásio,fizuma opção brasileira,
ligada às condições de vida, da pobreza aqui no Brasil, mas tive uma fraqueza e
dos camponeses do século XVI italiano.escolhi o mais fácil, literatura francesa,
Foi no século XVI que se viu nascerpara a entrar na faculdade. Quando estava
commedia deli 'arte, que é a coi nasaFrança,
mais eu queria continuar a
desbraga4a em termos de fantasia, ddesenvol
e ver alguma coisa relacionada
irreal. Esfòu deixando a palavra com a minha tese, com Marivaux etc.
imaginário de lado. Então, no mFui eu procurar o Jacques Scherer, que eu
estudo de La Moschetta"^, por exempl o, to no meu livro, fui mostrar a
cito mui
eu tento articular a realidade vênetaminha tese, ele era professor da
com o fazer poético, um pouco oníricSorbonne
o e um dos criadores do Centro
do Ruzante. Depois fui morar em Parisde . Estudos Teatrais, naquela época...
Lá consegui, depois de muito tempo,fins de 59, 60. E ele achou que minha
entrar como leitora na Sorbonne. Leitoratese não tinha interesse, e eu fiquei
não é nada na Sorbonne. Na época mui erato mal... Com o tempo eu consegui
doutora em São Paulo e leitora namostrar a tese, não sei como, para o
Sorbonne. Mas de literatura brasileira.Fréderic Deloffre, que é o grande
Então, evidentemente, li e devorei conhecedor de Marivaux. Bem mais
Antonio Cândido, o seu Formação danum outro pedaço da minha vida,
tarde,
Literatura Brasileira, e comecei euaconheci
me o Henri Coulet em Aix-en-
colocar a questão da volta, porque Provence, e ele estava fazendo uma tese
queria voltar e fazer uma tese de livre-sobre Marivaux. Perguntou se eu
docência. Então, a partir das reflexõesconhecia alguém no Brasil que havia
de Antonio Cândido, sobre as condiçõesfeito um trabalho sobre Marivaux.
de construção de uma literatura num Naquele tempo eu já estava mergulhada
país colonizado, escolhi um assunto dcompl
e etamente no Brasil e eu disse:
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conheço, sou eu! É a vingança do partida, real, disso eu tenho consciência.


destino. Não sei se você sabe, existeEu na fui procurar a ficção estrangeira que
França a coleção Pléiade, que é ateria informado o futuro público que lia
consagração dos autores clássicos. Saiuromance no Brasil, a partir de Sinclair
uma edição do Marivaux nova (já tinha das Ilhas. Mas também comecei a me
uma antiga), e o meu livrinho, a minpreocupar
ha com questões da cultura
"tesezinha" está lá na bibliografia dapopular e escolhi um tema que achava
Pléiade. Então eu fiquei muito orgu-divertido, que foi Maria Isaura Pereira
lhosa, porque não tem muitas obras ddee Queiroz que me indicou, um livro
franceses e o meu lá está! Procurava dela a respeito do movimento do
este aspecto "ficção e vida", ou melhor Contestado, no Paraná. Depois, Duglas
"convenção e vida". Vida, convenção,Teixeira Monteiro^ também trabalhou
não sabia bem o que era. Na verdade,sobre eu isso. Eu peguei o tema do Carlos
estava trabalhando com estas categoriasMagno e os Doze Pares de França,
opostas, onde, se você quiser, pode como um tema de comparativi^mo
entrar "escondida" a questão do cultural, porque ele é um tema francês,
imaginário^ embora na época não tiovesse mais popular da cultura popular
a menor reflexão sobre isso. Na França, francesa, dizem os grandes historia-
depois na Suíça, pensando na futuradores. A partir daí, o meu primeiro
livre-docência, que, aliás, acabei nãotexto foi um estudo sobre o tema cristãos
fazendo, continuei minha reflexão sobree mouros na literatura, e, como descobri
o que era lido no Brasil em matériadepoi de s, nas festas. Engraçado, resol-
ficção estrangeira. José de Alencar nosveram publicar esse meu texto no Rio
dá uns exemplos, ele fala em livrinhos Grande do Norte^ que nunca havia sido
do tipo Sinclair das Ilhas... publ e falaicado. E, como ele falava do Câmara
também das estórias de vaqueiros quCascudo,
e junto com o Mário de
contavam para ele. Essa foi a vertente Andrade, ele será publicado em Natal,
que me orientou, então, a partir daí, enm a homenagem ao Câmara Cascudo.
vida: compreender e entender a literatura(...) Voltei ao Brasil em 75, para traba-
brasileira. Compreender, na linha delhar na cadeira de Antonio Cândido. Na
Antonio Cândido, o papel cultural da época fazia parte do Departamento de
metrópole na construção cultural de umLingüística e Línguas Orientais. Então,
país colonizado, esse é o meu pontom deus "anjos protetores", que faço
10 Entrevista

questão de citar, que foram Maria Isaura,commedia delVarte. Quando acabei


José Aderaldo Castelo e Antonio tudo isso eu continuei sem emprego, na
Cândido, sugeriram que eu voltasse aUSP, o pelo menos sem "tempo integral",
Brasil dando vários cursos de pós- como eu queria. Mas aí eu mantive
graduação. E havia a possibilidade desses cursos por alguns anos, e depois
eu ir para a UNICAMP, mas, por fui para a UNICAMP, onde me
motivos pessoais, eu não queria ir... epropuseram
u Antropologia, mas eu
queria voltar para a minha casa, que erarecusei, porque não sou antropóloga.
a USP. Então, eu resolvi aceitar osNessa ocasião, Antonio Cândido criou
cursos de pós-graduação, mas, na hora um Instituto de Linguagem, abrindo um
em que eles me deram as matérias,esepuaço no curso de Literatura Compa-
fiquei com medo! Uma das matérias era rada, que, por várias circunstâncias,
Literatura Brasileira, que trabalhava não se concretizou para mim. Então,
com romances estrangeiros; outra lembrei que tinha uma tese sobre teatro
matéria era Literatura Comparada, quee, na época, estava se construindo um
eu já tinha trabalhado; a outra, HistóriInstituto
a de Artes na UNICAMP e pedi
do Teatro, que eu também já tinhapara nele trabalhar. Era a única que não
trabalhado; e finalmente Cultura era artista no Instituto. Ajudei a criar o
Popular, de que eu sabia quase nada! Depart
Só amento de Artes Cênicas, onde
sabia do meu texto do Carlos Magno. in E,ventei o Núcleo de Estudos Com-
por razões burocráticas da USP, parados de Cultura Popular, e pude
aconteceram alguns imbróglios, e Mari levaraum pouco as minhas coisas dentro
Isaura chegou e disse: "Você precisa de uma certa "invenção"... Mas eu
começar a trabalhar". E lá fui eu darconti o nuei dando cursos na USP. Nessa
curso de cultura popular no Depar- ocasião, Miriam Moreira Leite foi minha
tamento de Ciências Sociais. Assim aluna. Então o que aconteceu? Aquilo
comecei, depois de anos de Europa, era na novidade para a USP na época,
USP, onde até então só dava literatura porque ninguém trabalhava com isso.
francesa... Para resumir, dei todos estesEu trouxe para os cursos minha pesquisa
cursos, em vários departamentos. sobre as origens do romance brasileiro,
Literatura Brasileira, Literatura Com- que eram romances do chamado
parada, História do Teatro foi dado no "segundo time", as tais "novelas sem
Departamento de Italiano, por causa dafronteiras", tipo Sinclair das Ilhas, que
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era considerado folhetim. Fui estudardisse que a avó dela no interior (quase
romance folhetim. Foi uma novidade todo e o mundo era do interior) lia ro-
uma "bomba", porque numa área toda mance folhetim que ela recortava, que
sofisticada, de repente se falava emela guardava, mas isso suscitou um
romances de "segundo time". Trabalheilitígio,^prque, eu me lembro, um aluno
com novela, que ninguém falava. Equesti o onou: "A gente vem do interior
pessoal não levava muito a sério, maspara os estudar teoria literária, e a senhora
cursos foram funcionando lindamente.vem falar de porcarias?" Eu digo: Uai!
Durante as aulas eu descobri uma A culpa não é minha! Afinal de contas,
telenovela que estava fazendo muitonão fui eu que criei vocês, vocês foram
sucesso na época, acho que era Ãgua criados por mães e avós que leram, e
Viva, quando comecei a dar um curso isso ajuda a construir o imaginário.
de teoria sobre como era estruturado Assi o m surgiu a palavra. E eu lá me
romance folhetim do século XIX. Pensei perguntei sobre o que era o imaginário?
que era meio bobagem ficar explicandoPerguntei nada! Nesse momento nasceu
esta teoria, e mandei acompanhar a no- a idéia de reunir... aconteceu o seguinte,
vela, que poucos viam na época. o curso era destinado à literatura brasi-
leira, e o pessoal não queria se separar,
e as minhas turmas sempre foram se
P.: Pelo menos poucos diziam que viam. repetindo, apenas os nomes dos cursos
iam mudando... foi surgindo um grupo,
M. M.: É, poucos admitiam que viam. ligado pelo afeto, pelo tema. Tinha gente
E, de repente, não sei como surgiuq,ue trabalhava com novela que veio
alguém tinha ido assistir ou ouvido falafal
r ar comigo. Tudo isto era considerado
sobre Os Três Mosqueteiros, e uoma assunt "meio baixo". E então disse:
aluna falou que sua avó tinha ido assisctiormo vamos chamar isso? Recordando
ou algo do gênero e eu quis fazer udm aaFrança, da École de Hautes Études,
"pesquisazinha" sobre quem tinha do que existia lá, eu falei: vamos chamar
ouvido falar de tal coisa. Foi muito Instituto dos Altos e Baixos Estudos do
engraçado, porque a mesma coisa Imaginário, isso a Miriam^ deve ter
aconteceu com o Carlos Magno (que falado para você, e a palavra começou
aparece na congada)..., estou falando a e se construir. E um ou outro me dizia:
vai surgindo na memória... uma aluna "Mas o que você entende por
12 Entrevista

imaginário?" Eu digo: não tenho sõesa até a noite, tinha uma porção de
menor idéia! Imaginário é aquilo coi quseas. Em 78, eu bolei uma SBPC
a gente imagina, aquilo que a gentienteinrãamente
o nova e louca que nunca
vê todo dia na rua, são as invenções, a
tinha acontecido, inteiramente à noite,
ficção... e não fomos muito além disso,
com vários temas: raízes culturais
em termos conceituais, sobre o que eranegras, raízes populares, produtores
o imaginário. O grupo foi se estru- intelectuais das classes populares. Tinha
turando, eu estava chegando da Europa,"mestre de Congo", então, se você
no Brasil ainda era a época de quiser, já naquela época eu estava
repressão.... Em 1975, eu fui imediatrabal
- hando com manifestações ficcio-
tamente para a SBPC. Eu ia, ouvinai a,s imaginárias do povo. Eram
aprendia sobre o Brasil, percebia que manifestações populares estudadas
não tinha negros em temas onde sedentro de uma certa perspectiva. Na
falava de negro (a cultura popular — verdade, são reconstruções do imagi-
isso era nos anos 70 — era um negóci o
nário, nesse sentido que me recolo-
muito "enquadrado" dentro das análisescaram a questão, porque o Carlos Magno
marxistas), e eu fui vendo as coisas.éJáreinterpretado no imaginário. Onde
que eu falava em congadas, quando fui há a reinterpretação? Não há teoria por
morar em Campinas, fui ver (já queparte de um "mestre de Congo" que
sabia que congada era em 13 de mai enoc)ena uma Batalha de Oliveiros e
na Rodoviária de Campinas e perguntei Ferrabrás, senão reconstruções "na
onde tinha um São Benedito aqui maicabeça"
s dele. Então o imaginário foi
perto. E me disseram: Itapira. E lá fuientrando
eu dessa forma: como uma
para Itapira. Nesse momento comecei readapt
a ação da cultura de fora, rein-
pensar não no imaginário, masterpretada, em ressignificada aqui. Eram
cultura popular. E fiz a minha primeirreconstruções
a do imaginário, essa
comunicação em 76. Foi uma épocapalavra mais uma vez entrando, mas
muito complicada, porque, não sei sseem preocupação. Em 79 ou 80,
você se lembra, em 76 a polícia impedi u
finalmente pudemos ir para o Ceará e,
a SBPC no Ceará, e a PUC a albergou. aí, eu resolvi chamar gente do meu
(...) Levantei a questão se tinha negros
grupo. Junto com a Maria Lúcia^
que queriam acompanhar essa história,criamos um título que acabou ficando a
então, inventei de prolongar as discus-nossa marca registrada: Caminhos do
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 13

Imaginário no Brasil, que, aliás,Mel acaloboeu Souza, você fez uma "imagina-
dando um título a um livro meu. Partição"
de em cima de verossimilhança. Eu
uma realidade minha, que era uma fui procurando coisas e fui aproxi-
preocupação em ver como a culturamando... ou foi minha "cabeça" que fez
européia era reinterpretada aqui no isso. E aí eu precisava encontrar um
Brasil, o que ainda continua sendo umtítulo
a para a minha comunicação e
obsessão. Qualquer livro que eu encontrei um título muito bonito. Na
começo, eu começo com isso. Entre verdade,
as são as palavras que me
linhas de Antonio Cândido e Robertoencantam, o que é falado da Maria
Schwarz, eu optei pela linha do AntoniPadi
o lha (e eu estava falando na Maria
Cândido, que diz que a cultura de foraPadilha) e o modo como ela foi sendo
construída chamei de Um Imaginário
ajudou a construir a cultura de dentro,
que há ressignificações da cultura deAndarilho. E, no ano passado, fui ho-
fora, e que, para mim, são ressignim - enageada na ABRALIC, que é a
ficações que acontecem no imaginário. ação Brasileira de Literatura
Associ
E não fui muito mais longe do que isComparada,
so. e houve uma mesa à minha
É uma palavra que eu gosto e, agora volta, que al
g uém intitulou Um Imagi-
acabei de fazer uma comunicação em nário Andarilho, e ficou designando a
mim. E eu digo: estou sempre pas-
Lisboa, o tema era "globalização", e eu
fui convidada. "Joguei" o tema da seando! (risos)... Mais sobre imaginário
comunicação que era A Igreja Católicanão sei te dizer.
e a Globalização no Século XVI. Então
são reconstruções de religião que
acontecem no imaginário e eu teP.: nhoO que a gente percebe é que,
um livro sobre Maria Padilha^ que realé mente, em vez de a senhora
uma reconstrução imaginária minha, conceituar teoricamente o imaginário,
onde a minha imaginação com aequest
çou ãao está muito relacionada à sua
pensar, se é que a imaginação "pensa",vida pessoal e à sua própria maneira de
como é que um nome pode designar, pensar. Porque em Caminhos do
tanto uma princesa espanhola do séculoImaginário no Brasil a senhora tem
XIV, quanto uma reza de feiticeira duoma passagem que diz assim, sobre o
século XVIII, ou uma pomba-gira deimaginário cultural: "Um imaginário
umbanda. Então, como diz a Laura dqeue tento reconstruir a partir do meu
14 Entrevista

próprio, me procurando e me reencon- pessoal, não é? Não é nada de preme-


trando através desta imaginária recons-ditado, acho que é uma coisa natural.
trução, que é procura e aspiração a uma
comum identidade" (p. 14). Eu achoM, M.: É. As coisas vão acontecendo.
que está ligada à questão dãidentidade A minha tese não é assim, mas é o que
e àquilo que a senhora, depois, diz eu da digo: é o meu jeito de autodidata.
redescoberta do Brasil, ou, quem sabe, Claro, digo autodidata em cima de uma
à descoberta do Brasil. E confesso que,formação seríssima! Eu digo autodidata
num primeiro momento, quando a li,na descoberta do Brasil. Autodidata em
esta frase tinha me deixado um pouco me enveredar por caminhos que são
preocupado, porque eu tinha ficado na etiquetados, porque, na verdade, agora
dúvida. Será que a partir do meutodo o mundo me quer, dizendo que sou
imaginário seria a partir do meu antropóloga para uns, teórica para
particular, isto é, da senhora (Marlyseoutros, mas, na verdade, eu fui
Meyer), ou de um eu qualquer? construindo essas coisas. Aí entra a
vivência, sim! Pela necessidade e pela
M. M.: É do meu mesmo. falta de diálogo, porque vivi anos na
Europa isolada e levei anos para começar
a trabalhar. Eu conversava com meus
amigos, fiz cursos quando voltei ao
P.: A senhora cria um clima em queBrasil. o Então o meu aprendizado de
leitor vai-se tornando meio que um Brasil foi totalmente autodidático. Na
"cúmplice", porque a senhora vai verdade, eu me acostumei a isso, e
"contando", talvez este nome não sejaparece
o que acabou virando um método!
mais adequado, mas o caminho queAgora a eu estou achando bonitinho o
senhora está percorrendo, como que aqsue você está falando sobre que as
coisas estão acontecendo, como a pessoas acabam ficando cúmplices,
senhora está articulando as idéias, porque Antonio Cândido escreveu o
inclusive as dúvidas ou os "erros" queprefáci
a o para o meu livro que vai sair
senhora diz que comete, e vai re- pela Companhia das Letras e a primei-
construindo tudo isso. Então o leitorra coisa que ele aponta é justamente
vai ficando meio que cúmplice da isso! Posso até te mostrar, porque agora
senhora. Isto é uma coisa absolutamentejá é público, que é a familiaridade com
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 15

que trato meus temas e vou chamandoP.:a Só que me parece que é preciso ter
atenção do leitor... E eu acho que façocoragem para se escrever desta maneira^ ^
isso mesmo! Porque você tem que notar e, me parece, também que não é qualquer
que tem essa parte de autodidata, muam s que pode escrever assim. Parece-
outra coisa é que eu nunca escrevi antm ese uma forma didática, pelo menos
de ter dado aula. Todos os meus textos para quem lê. Porque muitas vezes a
são produtos da aula, e não o contrári o. e lê textos que são brilhantes, mas
gent
Há um desejo de me fazer entender. eles exaltam ou emanam um certo ar
Isso, talvez, explicaria esse tom de fala.
pernóstico. Parece que o autor, real-
Porque há um certo tom oral nos memente, us domina o assunto e coloca
textos. O Maria Padilha não nascseoume de
nte suas certezas, e nunca as suas
aula, mas de banca de tese. Eu nunca dúvidas. O que é diferente da senhora,
comecei escrevendo. Onde escrevia que coloca inclusive as incertezas. E,
porque escrevia, para comunicações oupara o leitor, serve para que ele perceba
na Europa, meus amigos me ajudaram que ele mesmo, futuramente, se acaso
muito, sempre, através de cartas... vier a escrever alguma coisa, vai passar
Quando, depois de muito tempo, por esses caminhos da dúvida. Não
consegui dar aula na França (a gentexat e amente da maneira como a senhora
não poderia voltar aqui, por causa doescreve, porque temos de reconhecer
AI-5), a gente não era emigrado político,
que é preciso ter uma certa erudição
mas aqui as universidades estavam para escrever como a senhora escreve.
fechando. Depois de Paris, a gente foi Principalmente porque hoje não se tem
para a Suíça. Lá outra vez fiquei semai m s a formação humanista como anti-
dar aula. Meus amigos me sugeriramgament ir e. Principalmente os jovens
a todos os congressos onde se falavaperderam
de isso. Mas acho que tem esse
Brasil, e eu fui. Então o Carlos Magno duplo aspecto. É preciso ter uma
nasceu de uma situação dessas, e eu sou erudição e uma coragem de mostrar as
boa professora. Parece bagunçado, masincertezas, como as idéias vão se cons-
não é. tituindo. Porque, na verdade, isso
envolve uma criação. Não só o texto
artístico, mas o teórico tem esse aspecto
de criação que, na realidade, é um pro-
cesso, onde o todo vai-se constituindo.
16 Entrevista

com seus fluxos e refluxos e a senhora P.: O que me parece importantíssimo


coloca isso nos seus textos. que a senhora recuperou, ou melhor,
nem recuperou, mas descobriu para se
M. M.: Fico contente. Nesse aspectoestudar é essa chamada "literatura de
que é didático você tem toda a razão, segeundo time". Porque para se compre-
realmente tem esse aspecto que eu vou ender uma dada realidade ela é funda-
descobrindo as coisas, e devagar. Eu fiz mental, tanto quanto a "grande lite-
isso no Sinclair das Ilhas e semratura", querer. ou até em coisas que a "grande
Já no Maria Padilha eu fiz issoliteratura" um deixou de lado. Acho que,
pouco querendo, na medida em queem o termos sociológicos ou antropoló-
Sinclair das Ilhas foi dado por umgicol egatem tanta importância ou, em
cos,
meu das Ciências Sociais, como umalguns aspectos, são até mais inte-
exemplo de método de trabalho, o qu e es do que a "grande literatura".
ressant
eu achei muito engraçado. Agora,
coragem, eu não sei, porque não sei M. M.: E não só sociologicamente. Aí
fazer de outro jeito. Agora o meu vamos pegar essa palavra de que eu
problema com a Companhia das Letras tenho medo, que é o imaginário. É o
é que a revisora não entendeu nada! que está por trás do meu livro sobre
Primeira coisa que ela revisou foi assimfol
: hetim. Até onde é grande literatura,
"Machadinho! Como a senhora se refere até onde não é, e quando as pessoas me
assim a Machado de Assis!" Eu disse:jogam e que ou trabalho com folclore ou
não pode? Primeiro, porque não fui eu com não sei o quê, aí eu "atiro" o
que inventei. E passei todo mês deMarivaux, que é o mais sofisticado autor
agosto assim. A cada dois dias entregavafrancês do século XVIII, e minha tese é
o texto corrigido, e a revisora querilia teratura pura, e as pessoas gostam
mudar! Não entendia e queria mudaraionda hoje. Hoje eu acho que tenho um
meu jeito de escrever! certo nome, mas faz vinte anos que
cheguei! Eme custou 'muitasbatalhas.
Por isso que nós brincávamos muito no
nosso grupo (o "Altos e Baixos"),
porque nos adorávamos, e é um grupo
que existe ainda hoje. Festejamos os
quinze anos ultimamente. Acho que o
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 17

que me marca, o jeito que eu semprecom fui a realidade que é por aí. Eu acabo
e o que consegui passar para a meninada,
achando que eu crio sim, porque eu sou
é de não se levar muito a sério! Isto incapaz de inventar. Eu sou capaz de
também está nos meus livros. Claro, euimaginar como é que as coisas foram,
levo muito a sério o que estou então é um problema de imaginário,
estudando, com isso não se brinca, mo ansde entra a criação. Eu achava que não
a gente... E, tenho um mestre nisso qera
ue capaz de fazer um trabalho de criação
é o Antonio Cândido. Ele tem um outro e, de repente, estou vendo que eu
jeito de escrever, mas ele tem, entre também estou fazendo uma criação.
parênteses, uma "modéstia". Mas nemAgora, quer ver onde entra outra vez o
eu sou modesta, nem ele. Nós não nimaginário
os ? É quando escrevi um texto,
sobrestimamos. Eu acho sim que sou que eu gosto muito, que é o "Voláteis e
erudita, mas isso não me dá motivo para
Versáteis...Não sei se você conhece
ser superior. Uma de minhas qualidadeseste artigo, sobre crônicas, eu fiz isso
é que eu circulo com a mesma facilidade
quando passei um mês em Minas, e
no interior de Alagoas ou num outro ficava todo dia batucando na máquina
lugar qualquer. Acho que é um jeito de escrever, feito uma louca. Estava
ser. Não é porque eu mexo com literatura
fazendo uma pesquisa a partir do levan-
que valho mais que um homem que tfaz amento na Biblioteca Nacional, que
almanaque. Se acaso isso não passar hoje, quando eu vejo o material, penso:
nos meus textos, pelo menos passou no como é que pode uma pessoa sozinha
meu ensino. É uma questão de persona- pesquisar o que eu pesquisei, criando
lidade. Mas eu tenho um grande mestre: filhos, cozinhando e sem empregada,
Maria Isaura Pereira de Queiroz. O me u na Europa não tinha nada disso...
porque
conhecimento de Brasil foi de Mariaé paixão de pesquisar! Eu estava com os
Isaura, ela me ensinou muito. E elameus cadernos todos, construindo este
também leva essas coisas. A gente escre-
texto, aí uma moça passou na janela e
veu sobre Carnaval, mas a gente brinca me disse: "A senhora está escrevendo à
o Carnaval. Eu saí na Mangueira, commáqui o na?" E eu disse: sim. E ela me
maior prazer. E Maria Isaura e eu perguntou: "A senhora escreve?" E eu
fizemos o Carnaval na Bahia. É um diasse: não... E ela ficou satisfeita! Pense
relação, que hoje se chama de objetoudm e pouco: escrever no intransitivo é
estudo, e que eu chamo de a relação escrever poesia, versos, está ligado à
18 Entrevista

imaginação. Como eu iria explicarP.:para Para uns o imaginário se refere ao


aquela moça que o que eu estava universo simbólico, ou que são as men-
escrevendo tinha uma certa seriedade?talidades de um determinado grupo
A partir dos meus cadernos de pesquissoci
a al. Parece-me que a senhora não
estou reconstruindo dados da imprensadefine o imaginário, ou a senhora não
brasileira do século XIX. Engraçado!quer colocá-lo dentro de um limite dado
Aí tem uma espécie de clivagem. O qpor ue uma definição: "Isto é imaginário,
ela estava cobrando de mim era ume aquilo outro não o é".
certo imaginário de criação, e eu res-
pondo: não, estou fazendo uma pes- M. M.: Entende, Mário, depois que eu
quisa. Mas, agora, o meu imaginário lancei o livro Caminhos do Imaginário,
também entra. Um dia cheguei paraou o quando eu dava o curso em torno do
meu amigo Saraiva^^ e disse: agora q euue virou o livro, eu chegava e dizia:
não sei mais o que sou, porque extrapolnãeoi me perguntem o que é imaginário,
todas as fronteiras e mexo com tudo.porque
E eu não vou responder, porque
ele me disse: "Não, você é uma historieu
a- não sei, e vamos lá!
dora da cultura". Eu digo: por quê?
"Porque você é capaz de estabelecer as
relações entre as coisas". Eu te digo,
Mário: há pessoas que conseguem P.: Se bem que é impossível o ima-
estabelecer relações e outras não, eginário da gente não estar impregnado
quando eu estabeleço as relações eu em tudo que a gente escreve e como a
deixo as pessoas loucas! Deve ser gente manifesta.
também um problema de minha ima-
ginação. Eu te pergunto: é o mM. eu M.: Mas é o que eu digo, o meu
imaginário? Se você quer "apertar" o
imaginário está em tudo que eu escrevo,
conceito, é complicado! nem que sej a para reconstituir uma rela-
ção possível entre a Doíia Maria de
Padila, amante, existente e verdadeira,
do rei D. Pedro I, rei de Espanha, o
Cruel, e uma pomba-gira. Agora, o que
me permite fazer isso, fui eu que ima-
ginei, eu perguntei o que será que há?
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 19

(...) Eu construí uma verdade possíveloralmente não sei quando, mas a


de Maria Padilha, agora eu estou vendo primeira vez que foi impressa foi em
bem isso. Uma verdade a partir de dad1400,
os com a invenção da imprensa. Isso
onde entrou o meu imaginário e tadm ábuém século, entre a existência real da
o dos outros, e vou te dizer já por quê.Maria Padilha e o romanceiro escrito.
A Maria Padilha realmente existiu, eNo meio tempo houve circulação oral.
como eu cheguei até ela, foi por acaso. Houve um pedaço em que essa princesa
Peguei um livro sobre o romanceiroé transformada em feiticeira. Eu tam-
espanhol e quando o abri, de repente,beu ém comecei a imaginar, mas foi no
estava saindo de uma banca de tese coimaginário
m das pessoas que houve uma
Laura de Mello e Souza, que estava criação. Um imaginário construído
falando na Maria Padilha como um por uma Igreja que era contra. Então
conjuro de feiticeira. E eu sabia quhouve e uma indução. Houve uma cons-
Maria Padilha era o nome de uma trução. Muita gente diz que a feiticeira
pomba-gira de umbanda. E de repente é uma construção da Igreja durante a
eu estava procurando um texto sobre Inquisição. Há uma indução... eu o
Carlos Magno, e dou de cara com esisneduzo,s o tQuimaginário, e, de repente,
nomes. Aí me perguntei: o que é isso? você vê em mim uma feiticeira. O que a
Fui, então, estudar por curiosidade. MasIgreja trabalha com os fiéis é o nível do
onde entra o imaginário dos outros? imaginário,
Já não sei qual outro nível
na poesia popular, porque o fato verídicpoderi
o a ser. Como hoje em dia. Como
é de 1380/1390. É como o Carlos no caso dos fundamentalistas, o horror
Magno, o fato verídico é de 780, deos seguidores do Edir Macedo. Não
quando é a canção? Em 1100! Entsei ão se você é da Igreja Universal do
entre 780 e 1100 houve uma construção Reino de Deus, se for, eu lamento muito,
do imaginário, e, aí, não há outrama s ael-es estão "fazendo a cabeça" dos
pal
vra. E não minha, mas o imaginário fiéis para darem uma surra na gente do
coletivo, que não sei o que é, mas fun- candomblé, porque eles encarnariam o
cionou. E Maria Padilha morreu emdiabo! Isto não é no nível do
1300 e pouco, era amante do rei, imaginário?
mandou matar a mulher do rei e foi
acusada de feitiçaria etc. De repente, a
poesia a seu respeito começou a circular
20 Entrevista

P.: Sim, sem dúvida, isso se dá no nível


aconteceu com a Maria Padilha: na
do imaginário. minha imaginação (ou não sei se é no
imaginário, não sei se são a mesma
M. M.: Então, voltando à Maria Padilha.coisa...), eu comecei a pensar: será que
Comecei a estabelecer relações. Eu aquela Maria Padilha, de verdade, tem
inventei uma "estorinha" na minha a ver com essa da feitiçaria, tem a ver
cabeça e depois que a inventei imaginceiom isto que é uma "reza", mas no
que a Maria Padilha tem a ver comsenti ado negativo. E eu pensei... éomeu
pomba-gira da umbanda. Fui verificar.imaginário andarilho. Mas veja: ela, de
Aí entra minha scholarship. Agora, carne e osso, virou uma personagem de
quando eu leio o romanceiro e vejo qfeitiçaria,
ue induzida, talvez, pela reflexão
a Maria Padilha teve uma vida concreta,
maquiavélica dos padres, mas através
morreu, foi enterrada, objetivamente; do imaginário daqueles que recebiam
por conseguinte, não era, ela mesmae,sse romance e que o cantavam.
uma feiticeira; ela já é descrita comPortanto,
o no caso do pesquisador, a
feiticeira, é o tipo da coisa que trans-
imaginação entra em movimento e ele
forma o cinto de pedras em cinto dvai e procurar como ela vai mudando. O
serpente. E foi por indução da Igrejcaaso do Carlos Magno é um exemplo
que queria "desmanchar" a imagem delaconcreto,
. porque o Carlos Magno e os
Agora, é a Igreja que induz, mas, seDoazse Pares de França influenciaram
pessoas aceitam, é porque há algo. toda a cultura brasileira, a América
Então, imaginário é esta coisa, quespanhol
e faz a, as ilhas de Madeira, São
a gente viver. Tomé e Príncipe... Aqui no Brasil,
referem-se alguns episódios, que são
reproduzidos no cordel, nas festas etc.
P.: Para a senhora o imaginário se
torna criativo, porque com base nele aP.:
s Mas eles são recriados.
pessoas começam a pensar, a articular...
M. M.: Recriados sim. Primeiro na
M. M.: É. Suscita outra coisa, e, aí, memória. Guarda-se na memória um
pode "descambar" novamente para aepisódio que depois é recriado. Aí você
razão, para a reflexão. Então o quetem a Batalha de Cristãos e Mouros,
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 21

que no Brasil nem se chama assim, m as E, no fim, a senhora escreve: não é


P.:
se chama a Batalha de Ferrabrás eaquele homem "que nem eu", mas
Oliveiras. Ela é sempre a mesma, mtam s bém "quem sou eu?" Na verdade
ao ver uma porção de festas me dei tem essa identidade também com o
conta de que é sempre diferente. Semp"homem
re comum", porque, a partir do
a mesma e é diferente! Outra vez tem-semomento em que eles também criam,
a recriação. Na Ilha de São Tomérecri e am, eles são tão intelectuais quanto
Príncipe, o que eles guardaram na nós. Ou, se a gente pensar em termos
memória, do livro, já é um outro epi - anos, todos os homens são
gramsci
sódio... E por quê? Eu não tenho filósofos,
a uma vez que todos têm uma
resposta para isso. Mas acho que entraconcepção de mundo. Acho que tem
tudo, como diz a Maria Isaura, o ima- isso na senhora: a maneira com que a
ginário é um fato social. Terásenhora havido encara a produção do outro.
um fato social que fará com que a
memória lembre um episódio em M. M.: Tanto é verdade que, quando da
particular, e não o outro. nossa SBPC sobre cultura popular, em
que nós convidamos os intelectuais das
camadas populares, eu fiz questão de
P.: Eles são ressemantizados e recriaarranj
- ar verba para os "mestres"^^ num
hotel igual para os convidados que
dos. Neste sentido, eu voltarei um pouco
ao que a senhora escreveu. A respeivitonham da Europa. Os outros, a gente
da descoberta do Brasil, a senhora arranj
se a, porque cada um hospedou nas
pergunta: descobrir o quê? E a senhorasuas casas, deu-se um jeito. Mas, para
responde: "Descobrir a terra e o os "mestres", eu pedi dinheiro para
homem". Mas que homem? E a senhora, hospedá-los, j á que eram os intelectuais
se não me engano, usa uma frasedd ae
s classes populares. Claro, porque
Mário de Andrade, que diz "aquele são intelectuais orgânicos, já que você
homem comum, que nem eu". falou em Gramsci.
M. M.: É o Acalanto do Seringueiro.
22 Entrevista

P.: Muito embora eles mesmos, fre-mentado em disciplinas. Ainda que o


qüentemente, não se vejam assim. imaginário seja uma construção social,
como diz Maria Isaura, ela não está
M. M.: Mas eles têm capacidade dn euma disciplina. Se o imaginário está
chefia e eles detêm um saber. dentro da cabeça da gente, a cabeça da
gente "voa". É complicado, porque,
novamente, é o meu imaginário de que
P.: Tão importante quanto o saber doest s ou falando, ou do imaginário do
grandes... objeto de minha pesquisa? Se eu trabalho
com gente, eu posso imaginar ou atri-
M. M.: Não tenho a menor dúvida.buir É ao imaginário do mestre de congo.
exatamente isso que eu estou pensando.as como vocês vêem ou trabalham
M
com o imaginário? No seu caso é pa-
recido comigo, porque você parece que
P.: Sim, mas, para os estudiosos em trabalha na minha linha, com produção
geral, para quem não tem um mínimoliterária,
de de imigrantes japoneses, mas
erudição, há uma certa dificuldade em como se está trabalhando?
se trabalhar com o imaginário, porque
pressupõe-se uma certa interdisciplina-
ridade. A pessoa não pode ser muitP.: o Bem, é complicado se falar nisso,
"fechada", apenas num determinado porque há várias linhas. Temos colegas
aspecto. No caso da senhora, emborano assos que trabalham com literatura,
senhora diga que não tenha uma forma- mas também com o discurso da Igreja,
ção em ciências sociais ou antropologiac,om o imaginário, mas não só como e
hoje a senhora é conceituada em diversas por que ele é produzido de uma deter-
áreas, tanto na antropologia como em minada forma, mas também como ele é
outras áreas. Mas outras pessoas podem "recebido", como ele é ressemantizado.
ter dificuldades, porque a interdiscipli-
naridade faz parte do estudo do M. M.: Você vê como passa por tudo?
imaginário.
M. M,: Porque o imaginário, mesmo
sem tentar defmi-lo, não está comparti-
l

Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 23

P.: É. Então, me parece que, segundocomento a que ficou muito engraçado,


seu ponto de vista, quando lidamos com
porque era um método de escola
o imaginário temos que ter umasecundári preo- a, utilizada para uma discussão
cupação de, além de pensarmos em tão sofisticada. Com isso, me lembrei
termos teóricos, conceituais, sempre de que, quando eu dava aula, nunca quis
associá-lo a uma população, ou a usaber m de teoria. Eu queria ler o texto,
segmento social, ou a uma instituição...pois fui formada pelo prof. Bonzon^^
pelo método da explication de texte.
M. M.: Então! Isso obriga a uma pluri-Eu o lia, uma palavra depois de outra.
disciplinaridade! Isso me parece in- Isso na década de 60. Mas aí o pessoal,
discutível, mas pluridisciplina é, de às vezes, reclamava que eu fazia
novo, um conceito! Então, se ele éliteratura! Isso aconteceu na França
pensado antes, é complicado. Mas staembém. Depois de 68, eu dei curso
você vai trabalhando, ele vai nascendo,sobre Graciliano Ramos. O pessoal me
instintivamente, das necessidades. cobrava que o curso não era político, e
Digamos que, no meu caso, eu tenho assim por diante. Eu disse: olha, se
vocês aprenderem a ler direitinho o
uma certa erudição, porque eu tive opor-
tunidade de estudar muitas coisas, mas,texto do Graciliano, palavra após
na hora em que eu fui trabalhar o Car/pal
o^-avra, sintaxe após sintaxe, compre-
Magno, em que fui ver as festas, nãondme erem o que está escrito, vocês lêem
coloquei o que eu era. Eu fui ver qual as quer Marx da vida! Mas as leituras
festas. Mas aconteceu uma coisa que as pessoas fazem são uma leitura
interessante, em termos de método. simples. Essa leitura que eu sei fazer de
Quando eu fui ver as festas, eu as texto lia escrito, eu "carreguei" comigo
como lia os textos de Marivaux: palavrauando eu fui ver as festas. Tinha um
q
por palavra. Eu fui educada pelos antropólogo que era colega de lá e, às
franceses no velho método de expli- vezes, eu percebia coisas que as pessoas
cation de texte, E, não sei se você não vileau,
m, porque estavam "enqua-
ontem, na Folha, um artigo do Roberto dradas", porque tinham que fazer um
Schwarz contando sobre os Seminários"diário de campo", e fazer mais não sei
de Marx? Às tantas, ele diz que o o quê. Eu não estava vendo coisa
Giannotti^^ introduziu o método francêsnenhuma desse tipo, porque eu não sei!
da explication de texte, O Roberto Eu não estou brincando! Em cima de
24 Entrevista

uma base bastante sólida, não estouLima, que faz uma literatura sofisti-
brincando ao afirmar que não sei nada, cadíssima, o Jurandir Freire Costa, falou
pois acho que sei, e muito! Mas, e sobre
m a violência. Maria Isaura falou
cima do que eu sei e estudei, eusobre fui o Carnaval etc. E cada um de nós,
autodidata. Eu dizia, parece piada, manas fala, era acompanhado por um
vou ler uma congada como leio italiano, porque foi a La Sapienza^^ que
Marivaux. E soube, um pouco depoiorganis, zou o encontro. No meu caso,
que há uma teoria de que, por exempltin o,ha uma antropólogo que conhecia
o Victor Turner, que é antropólogo antropologia lusitana, porque ele, jus-
(que eu li um pouco, não li muito),tamente, trabalhava nas Ilhas de São
também diz que ele e mais uns outros Tomé e Príncipe. Ao apresentar o meu
criaram uma leitura do fato social que,texto, disse que estávamos diante de
no fundo, eu estava fazendo instin- uma das boas ilustrações da antropolo-
tivamente. E, nessa hora, o que eu estougia pós-moderna! Mas quando falo na
fazendo, sem perceber? Estou fazendoMaria Padilha... eu acho que a história
uma pluridisciplina. Transformo um da pluridisciplinaridade está mal
evento num texto, num texto escrito. pensada,
E e, quando a gente vai em coló-
faço uma leitura onde vejo a parte quios onde se fala sobre isso, a gente vê
que está mal conceituada. Existe outra
estética, a sintaxe etc. Isso é a pluridis-
ciplina. Se eu tivesse um aluno agora, palavra que está na moda, que é mui-
diria o que eu sempre disse: não ticulturalismo.
se Se você está a fim de
preocupe! Sem querer você vai extra-estudar o seu objeto... você está preo-
polar e varar as fronteiras. E parece qucu
epado em entender aquilo que você
isso é o mérito do pós-modernismoquer estudar, acho que você não pode
hoje: não ter mais fronteiras. Eu que, se deixar prender, principalmente com
em 1978, construí um curso chamadal ogo tão "volátil" e sutil, como é o
Novelas sem Fronteiras, estouimaginário. na "crista Você não pode se deixar
da onda"! Em Roma, no ano passado, prender por uma teoria. Não! Você vai
houve um congresso sobre cultura contornando o objeto e aí vai, quase
popular... perdão, sobre cultura brasi-que sem querer, vai entrando. Talvez,
leira, e o Massimo Canevacci estava sláe você quiser fazer uma pesquisa numa
e conhecia o meu texto sobre Marilainha mais antropológica, terá que estu-
Padilha. Estava também o Luís Costdar a mais detidamente um ou dois livros
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 25

de antropologia. Foi mais ou menoseosuas três vertentes, sendo a terceira, a


que aconteceu comigo. Fui dar umapopular. Parto de José de Alencar.
olhada no Turner, porque diziam que eu Minha primeiríssima indagação foi:
o usava. Eu não conhecia nada do Tumer quais os modelos de fora? Alencar disse
e fui ver. Mas, em cima de um passado, que era o Sinclair das Ilhas (os histo-
meu, sólido. Agora, vocês que estãoriadores da literatura da época, como o
começando, eu acho que não têm queAntoni se o Cândido, falavam em folhetins
deixar prender, a priori, E a pluri- traduzidos). Eu sabia que os folhetins
disciplina vai nascendo normalmente. eram Os Três Mosqueteiros, O Mistério
de Paris, que eram os famosos roman-
ces de folhetim franceses. Então eu tentei
P.: Deixar fluir. ver se o Sinclair das Ilhas era romance
de folhetim francês, porque o folhetim
M. M.: Deixar fluir. A palavra é essa. francês é uma coisa especial, do século
Deixar fluir a sua própria cabeça, a su a Ao estudá-los descobri que o
XIX.
própria imaginação, o seu própri o
Sinclair das Ilhas não tem nada a ver
imaginário, em cima daquilo quecom é o folhetim francês. É de uma cate-
seu próprio objeto de investigação. goria do século XVIII, mas não
desenvolvi isto a fundo. Talvez um
(...) "pouquinho" no mQuCaminhos do Ima-
ginário. Resolvi, então, estudar mais
P.: Poderíamos, agora, para encer- aprofundadamente o folhetim. Ele é um
rarmos a entrevista, falar um pouco dtipo e de literatura que só nasce em 1836,
seu novo livro. A senhora disse ante- que sai em jornal, aos pedaços, e é a
riormente que ele tem a ver com sugrande as precursora da telenovela. Dei
reflexões antigas, quando a senhora vários cursos sobre folhetim, sobre o
voltou ao Brasil e começou a trabalhAl arexandre Dumas, O Conde de Monte
com Maria Isaura e outros. A respeitCristo,
o a estrutura do folhetim, e foram
do que exatamente trata o livro? anos de trabalho que estavam dispersos.
Com o passar dos anos, eu fui ficando
M. M.: Está outra vez ligado aos memai us s conhecida. Aí, quando tinha
cursos acerca da "literatura de segundoqualquer coisa sobre televisão, me cha-
time": as tais literaturas sem fronteirasmavam. E fazia falta uma soma de
26 Entrevista

informações sobre esse tal de folhetimFrança, e aí eu retomo, como prólogo,


francês e a sua chegada no Brasil. Então,
o meu artigo a respeito do Sinclair das
por exemplo, eu tinha um texto enormIlhas,
e de 73. Falo um pouco do
sobre o Rocambole, que é um fol Alehxandre
etim Dumas, e falo muito áo Ro-
muito conhecido, e que estava ali desdcambole.
e Então, o livro está um pouco
1980, eu falo um pouco dele no desigual por isso. Tem quatro, cinco
Almanaque. O número 14 reúnecapítul os tex-os sobre o Rocambole. Depois
tos do tal Congresso de Fortaleza, deu e falo de uma outra fase do folhetim
onde saiu a etiqueta Caminhos do francês,
Ima-da terceira fase, onde "desgraça
ginário no Brasil. É um número poucadeé bobagem", das mulheres sedu-
Almanaque intitulado Formas ziMeno- das e abandonadas, eu estudo isso a
res de Ficção. Tem artigos sobre fundo. Na segunda parte, eu trato do
telenovela e um artigo meu em que fal folohetim no Brasil. É uma pesquisa que
do Rocambole. O pessoal comfiz eçon uosajornais, e vou citando a entrada
me cobrar muito e, quando eu medo folhetim, "devagarinho", até o sécu-
aposentei, eu comecei a pensar. Aílo XX. Depois, falo de uma outra coisa
comecei a juntar tudo que tinha escritq oue não é o folhetim francês, mas o
sobre isso. Ganhei a bolsa Vitae, emfolhetim
90 ó^/ canto. Aí entro com muito
e 93(?), e pude pagar a digitadora, Gramsci , e os emigrados italianos. Como
o Gramsci diz: a literatura popular na
secretária e juntei tudo e deu um livro,
que está me dando muito trabalho. A Europa que os pobres e iletrados liam
Companhia das Letras pegou um calha- era o folhetim. Então, comecei a ima-
maço de 500 páginas que nunca tinha ginarçnxQ esses italianos, chegando aqui,
sido lido por ninguém. Isso me deu um teando já o imaginário deles, marcado
insegurança quanto ao texto... O livro por essas leituras ou audições, também
se chama Folhetim: Uma História. quandoEu aqui entraram e, provavelmente,
brinco com a ambigüidade da palavra aumentaram esse público. Tudo é inter-
história. Porque ao mesmo tempo rogação:
é quem lia? Aí eu trabalho com
uma história do folhetim e, ao mesmo s pessoas. Ecléa Bosi, memórias
vári a
tempo, eu é que estou contando um dea italianos que leram o folhetim. Eu
história. É uma ambigüidade que esco- faço umas "misturinhas" no imaginário
lhi. Faço, numa primeira parte, o construído, em cima de memórias anti-
Folhetim na Matriz, que é o folhetimgnaas italianas e aquisições culturais novas
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 27

obtidas no Brasil através do romanceas pesquisas, ele faria o livro dele e


folhetim. Isso me parece um achado!forneceria o solo, porque ele tem pre-
guiça de fazer pesquisa, e eu não sei
pensar como ele! Ia ser divertido! É um
P.: Isso sem pensar em termos de idéipouco
as isso o que me interessa. Como o
fora do lugar. Boaventura^^ me definiu, trato das mi-
grações culturais. Quanto a mim, o único
M. M.: Nem penso nisso. É claro qconcei ue to que construí é o ir-e-vir na
Roberto Schwarz tem razão da maneira tura brasileira, pois a coisa "vai e
cul
como ele coloca a questão. Mas, a mivolta".
m, Os alunos "rolavam" de rir.
o que me interessa é um certo resultado, Diziam é o ''ire'' e ''bire'\,. Mas, eu
e não a reflexão teórica. Eu acho qauceho que é isso! Já falei tanta coisa!
daria para o Roberto pensar perfei-
tamente em cima de certas coisas. Eu
hoje estou preparando um outro livro,P.: A senhora gostaria de complementar
em que um dos artigos é intituladocom mais alguma coisa?
Machado de Assis lê Sinclair das Ilhas,
onde tento compreender por que o M. M.: Acho que consegui pensar mais
Machado (outra vez é imaginar),organi porzadamente numa coisa a respeito
que o Machado, de tantos "livrecos" de como Qncaro o imaginário que, para
guardou justamente o nome desse, que, mim, é importante. O imaginário em
inclusive, é a leitura de muitos de sesi,us para mim, não é um alvo. Mas eu
personagens. Aí nós temos a ficção dacho a que o imaginários um instrumen-
ficção, o que daria para "brincar" muito - para compreender alguma coisa que,
to. Quer dizer, o livro de ficção lido isso sim, é o meu objeto de interesse
pelos personagens ficcionais de Ma-total, que é essa construção cultural
chado de Assis é o Sinclair dasbrasi Ilhas.
leira que, evidentemente, atravessa
Eu estou tentando saber por quê. Então,o imaginário, É o imaginário que está
na verdade, seria uma "idéia fora dnoa raiz dessa construção. Portanto é o
lugar", que acaba "entrando no lugar".imaginário como instrumento que, pa-
Tanto que a gente tinha combinado, eu ra mim, é importante. Por isso, definir o
e o Roberto, se a gente não tivesse imaginário, para mim, nunca foi
voltado para o Brasil, que eu continuariim
a portante.
28 Entrevista

P.: Pelo menos, nunca foi a sua


preocupação. Notas

M. M.:Nuncafoiaminha preocupação. n1.oABrasitese encontra-se traduzida e publicada


l sob o título de As Surpresas do
A palavra surgiu, como que chegando Amor, São Paulo, Edusp, 1992, do original
mais perto disso que a gente está La Convention dans le Théâtre d Amou
tentando alcançar, que é o que se paMarivaux.
ssa
na cabeça e no coração das pessoas, n2.ãoÂngelo Beolco detto il Ruzante foi um
é verdade? São coisas de coraçõesdoes mais importantes dramaturgos do teatro
mentes. É o inatingível para quem est á ar vêneto, na Itália, notadamente no
popul
de fora. É aí que é o "laboratório" ineíci
mo do século XVI. Autor, entre outras
que se "cozinha" toda essa coisa. A obras, de Betia, do Dialogo Facentissimo
gente chama de imaginário porque etéRidiculosissimo,
a que são poemas a res-
pei
palavra mais conveniente. Pronto! Acho t
o da carest
ia de 1528 , esta bastante
que consegui definir um pouco o g rav e e q ue assolou o V êne t
o da época. Es-
imagináriol creveu ainda II Pane Sovventivo Sponte-
nascente, igualmente tratando da fome.
3. O artigo intitula-se ''A 'Moschetta' de
Ângelo Beolco, o * Ruzante"' e foi publi
cado posteriormente em Pireneus, Cai-
çaras. Da Commedia deli Arte ao Bum
meu Boi. Campinas, Ed. Unicamp, 1991,2-
edição. Primeira edição feita em 1967.
4. Coméda i de autoria de Ruzante.
5. Monteiro, Duglas Teixeira. Os Errantes
doNovoSéculo. S.P., Duas Cidades, 1974.
6. Publicado com o título de De Carlos
Magno a Outras Histórias. Cristãos
Mouros «o5ra^//.Natal,Ed.UFRN, 1995.
7. Profa. Dra. MiriamLifchitz Moreira Lei-
te, presidente do NIME-USP.
8. Profa. Dra. Maria Lúcia Montes, do
Depto. de Antropologia da FFLCH-USP.
Imaginário - USP, n. 3, p. 7-29, 1996. 29

9. O referido artigo intitula-se "A Dançfazer,


a conta como fez, registra dúvidas,
dos Modelos: o 'Ir e Vir' na Construçã o essa hesitações, mistura redação
conf
Cultural brasileira". In: Cultura &elaborada com palpites, de maneira que o
Economia. Actas do Colóquio leitorRealizado
parece fraternalmente admitido ao
em Lisboa, 9-11 de Novembro. movimenLitosboa,
vivo da elaboração".
Edições do Instituto de Ciências Sociais d12.
a "Voláteis e Versáteis. De Variedades e
Universidade de Lisboa. O tema "MariFol a hetins se Fez a Chronica". In: A Crôni-
Padilha" também foi publicado na Françaca. e O Gênero, sua Fixação e suas Tra
na Itália. Neste último país, no seminário a
respeito do Pensamento Brasileiro, cole-Janeiro, Ed. Unicno
formações Brasil. Campn i as e Rio de
tânea publicada e organizada pelo CentrRui o Barbosa, 1992. O texto completosasedráe
am p e F undação Ca
de Estudos Brasileiros da Embaixada dpubl o icado em As Mil Faces do Herói
Brasil em Roma, a partir do semináriCanalha.o
realizado em Roma, entre maio e junhoprel deo, com lançRi a
o de Janeiro, Ed. UFRJ, no
m ento previsto para abril
1994. O título do artigo é "Um Imagind árieo1996.
Andarilho: Histórias de Maria Padilha".
Na França, há um artigo intitulado "La 13. Prof. José Antonio Saraiva, historiador
Perplexité Culturelle: permanences euro-da literatura e da cultura portuguesa, a
péennes dans Ia culture populaire bré-quem a Profa. Marlyse Meyer considera
silienne", que se encontra na coletânea como mestre e amigo.
organizada por Jacqueline Roumeguère-14. Aqui se trata de uma referência aos
Eberhart, em ho-menagem a Georgesmestres de congo e de outros folguedos.
Gurvitch, La Relati-vité Culturelle. Paris,
Publisud, 1995. 15. Referência ao prof. José Arthur
Giannotti, que coordenava os seminários.
10. O livro se chama Folhetim: Uma His-
tória. São Paulo, Companha 16. Prof. catedrático da cadeira de Francês,
i das Letras,
1996. d a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências
IL Esta maneira peculiar de escrevere q u
Letras, da Universidade de São Paulo, a
em a Profa. Marlyse tem em grande
encontra-se comentada no prefácio de Anto-
nio Cândido ao referido livro de Marlyse a e consideração.
est i
m
Meyer, Folhetim: Uma História. 17.EUni
screvversi
e tà La Sapienza, de Roma.
Antonio Cândido: "... o tom adotado d18. e Sociólogo português, autor, dentre
familiaridade, e mesmo de certa intimidade,
outras obras, de Pela Mão de Alice: O
que a leva, por exemplo, a mostrar,Social na e o Político na Pós-Modernidade
redaçãofinal,muitas peripécias da feitura.São Paulo, Cortez, 1995.
Assim enuncia freqüentemente o que vai
Imaginário - USP, n. 3, p. 31-57, 1996.

Natureza e Naturalistas
Miriam Lifchitz Moreira Leite*

Resumo: Através de documentação primária, secundária, ensaios b


referência, procura-se traçar o percurso da profissionalização do
pelo naturalista-peregrino, no século XVIII, passando pelo natura
XIX, até chegar ao naturalista-ajudante, na última década desse
Palavras-chave: natureza - naturalistas - viajantes - ciências naturais

Para Selden Rodman, antologista


Há um contar de si no escolher
no buscar-se como o que dos outro
entre o que outros disseram
mas que o diz mais que todos
(como, em loja de luvas,
catar no estoque todo
a luva sósia, essa luva única
que a calça só, melhor que as outra
João Cabral de Melo Neto
Em 26 de março de 1774, João Francisco Xavier prescreve de Lisboa a
Conduta e a utilid e. de um Naturalista peregrino no BraziL
Desanimados com os habitadores do Brasil que ignorão as ventag
Commercio pode tirar das preciozas e raras producções dos seu
cionário da Coroa Portuguesa sugere que de tempos em tempos se mandas
parte d'América pessoa instruida nas couzas naturaes que das
familiares que tivesse com estes povos, tirase hum conhecime
necessde os obriga afazer das producções que achão próximas a

* Coordenadora científica do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória da Universidade de São


Paulo. Autora de Retratos de família: leitura da fotografia e Outra face do feminism
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p. 31-57, 1996.

seriUy me paresse, hum meio bem abbreviado de chegar ao fim qu


naturalista, quando se dispõem a viajar,
O que se propõe é que hum naturalista (...) uniria a detecção da
naturaes, que por oficio haveria de buscar, o conhecimento das
muitas outras couzas, que a cada passo se lhe ha de commun
Naturalista peregrino no BraziL sera tom utile a este Reino, pel
propriedd-das couzas que virá a noticiar, como pelo progresso da
q sendo o objeto da sua missão será no seu regreso reputado com
suas viages.
E mais adiante prescreve que À virtude he recommendavel, não sera
que hum naturalista probo e desinteressado, que observa tudo com
refere no seu diário hum facto, huma acção digna de louvores
inversa participe a quem compete, o abuzo, o vicio, a exacção e a p
conhecer nelles conseqüências contrarias ao sussego e bem da r
Este minucioso manuscrito^ surpreende pela extensão das preocupações da
Coroa Portuguesa de bem instruir o seu naturalista peregrino a respeito de suas
funções primeiras e segundas, embora deixe bem patente que o naturalista deveria
acumular as funções de fiscal ou mesmo de espião d'El Rei.
A proibição de entrada de Humboldt pela região amazônica, encontrada na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, define ainda melhor a política científica da
Coroa: Havendo noticias que um tal Barão de Humboldt tenta seg
excursões pelos sertões d'este Estado, se faz preciso que V. M. fiq
no caso de verificarem-se as referidas noticias, ou succedendo
algum estrangeiro viajando por esse districto o faça conduzir a esta
da a sua comitiva, sem com tudo se lhe faltar à decencia, nem ao
e commodidades, mas só acompanhando-o e interceptando-lhe
porte fazer indagações politicas e philosophicas. Deus Guarde a V
Luiz do Maranhão, 12 de outubro de 1800. - D. Diogo de Souza
Domingos Lopes Ferreira. (Foi outro igual para José de Mornes Reg
das Aldeas Altas.)
O mercantilismo português confere às instruções um sentido pragmático.
Procurar-se-á sempre o que parece útil ao Reino e os conhecimentos de mtas. c
athé agora dispresadas deveriam ser aplicados ao comércio e a
agudo e siente, terá bellas occasiões de admirar a natureza no
livremente e sem estimulo appresenta à cauza das infermides -
certisimo conhecimento destas, pelas suas livres graduações pro
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.33-57,1996.

Aparece ainda uma diferenciação de tarefas e interesses do naturalista peregri-


no - caso seja médico, químico ou geógrafo - e a sugestão de uma bibliografia de
apoio constante das obras de Linné, de Furnefort, de Bomar, de Valerius, de Bri^son,
de Reaumir, de Margrave, de Pinzon, de Feuilé, de Jaquin, de Sloanes, de Pluriüer
de Rajo, de Dilenio e Gesnero e outros autores que tratão das Sciencias r
a esta ocupação^ instrumentos^ escravos de diferentes ofícios, b
equipagem e pessoal orçados em mil reis, para uma viagem de
exemplo, do Rio de Janeiro ao Mato Grosso,
Outro documento sem data, dirigido provavelmente a Alexandre Rodrigues
Ferreira^ (médico baiano formado em Coimbra e indicado por Domingos Vandelli
para essa missão), determina o modo como deve executar a viagem - as horas, os
caminhos e as pousadas, deixando ao seu cuidado pôr em ordem os Diários formando
de dois em dois Mezes as relaçoens e tãobem sim ordenar ao Donati
os riscos necesariosy examinando se são exactos,-
Todas as Semanas examinarão os Diários pa, aperfeiçoallos
dos Instrumentos, do que recolherão, da equipagem, e dos manti
e proverem-se, (,,,) Todas as noites deverão aperfeiçoar os Diário
se recolheu e o qhé de fácil reducção, e principalmete as frutificaço
desconhecidas, ou duvidozas, se farão riscar, e a Anatomia dellas
Herbário, o qual se fará todas as noites das plantas recolhidas naqu
Ihe no correspondente do Diário, esse mudará as plantas do Herbá
bem secos,,.
Nessa Memória sobre a Viagem do Pará pa o Rio das Amazonas, da
athé Matto Grosso, voltando pelo Rio dos Tocantins pa - o Pará, j
preocupação que havia de continuar pelo Século XIX a dentro: nestes Paizes quente
e de agoas enxarcadas, há que temer são as Sezoens, Obstruçoe
além do veneno das cobras a que os Naturalistas mais estão suje
Para precaver-se ou curar-se das -Infermidades devem escolher para be
as agoas mais puras, e no cazo de não achallas, as corrigirão com
ou com algumas pingas de Espirito de Vitriolo dulsificado, A recom
Quina para as Sezões declaradas, alterna com vomitórios e purgantes, sem deixar de
recomendar os remédios que os índios usam.
Apesar de a Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira e de todo o seu
material de Botânica, Zoologia e Antropologia ter chegado a ser objeto de litígio entre
Portugal e França, saqueado por Geoffrey Saint-Hilaire por ocasião da invasão de
Lisboa, ela esperou longamente por uma publicação adequada.
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.34-57,1996.

O naturalista peregrino era um alto funcionário da Coroa Portuguesa, receben-


do instruções precisas para as suas explorações político-científicas. Já o naturalista
viajante (estrangeiro ou brasileiro) do século XIX, dependente dos financiadores deu
suas explorações, goza de uma relativa autonomia e, no Brasil, será prestigiado pelas
autoridades.
A mudança da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e a abertura dos portos
brasileiros alteraram sensivelmente a receptividade oficial a naturalistas estrangei-
ros, mesmo quando representavam ostensivamente o pólo científico dos tentáculos
imperialistas das nações européias. Com as exceções de praxe, foram facilitados os
meios para que se movimentassem pelos sertões, sem o risco de emboscadas e sem
ser perseguidos pelos desconfiados habitantes daquelas plagas. Cartas de apresenta-
ção para os governadores das províncias facilitaram as relações indispensáveis para
a realização dos trabalhos. Mas, agora, pedia-se em retribuição que deixassem, de
cada espécie colhida, uma duplicata de exemplar para o Museu Nacional ou o Jardim
Botânico, nascendo assim a base para o conhecimento da flora e da fauna brasileiras,
até o fim do século XIX.
A partir da segunda metade do século XVIII, a História Natural fora incluída
nos programas de viagens, científicas ou não, e uma epidemia de colecionismo
alastrou-se pelas populações européias e americanas. A observação e a catalogação,
reduzindo a distância entre as coisas e a linguagem, "aproximou a linguagem do olhar
observador e as coisas observadas das palavras" (Foucault, 1966: 144) e se consti-
tuíram em tarefas incorporadas antes pela nobreza, mas aos poucos pelas demais
camadas sociais.
Foram numerosos os naturalistas amadores, que não usavam o latim das obras
científicas, e, em diversos casos, contribuíram para os acervos dos Museus e das
Sociedades Científicas. Os colecionadores de pedras, insetos, flores e pássaros
acabaram dando origem a diversos tipos de artesanatos, como o do desenhista de
plantas e animais, do jardineiro, do taxidermista, e de classificadores dos diferentes
produtos naturais. Braverman (Braverman, 1974: 120-1) menciona tecelões como
quase os únicos botânicos ingleses que cultivavam pequenos jardins nas proximida-
des de Londres. E cita E. P. Thompson, que se referiu a poetas, biólogos, matemá-
ticos, músicos, geólogos e botânicos entre os tecelões, sendo que os museus e as so-
ciedades de História Natural do Norte da Inglaterra ainda pos^^m seis de seus
arquivos ou coleções de lepidópteros.
No Brasil, os naturalistas contaram não só com a colaboração de coleciona-
dores, como com escravos dedicados às artes de empalhar animais e reunir e secar
plantas.
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.35-57,1996.

Um livro de divulgação, de 1961, sobre naturalistas famosos (ingleses e nor-


te-americanos) de Lorus e Margery (Lorus e Margery, 1964), ao descrever as ativi-
dades habituais desses naturalistas, chama-os de microscopista amador, escritor de
cartas, artista, sonhador, observador, escritor, defensor das riquezas naturais, estu-
dioso de pássaros, entusiasta. A palavra profissãò^ ainda não assumira o seu papel
atual. \
Quando o Prof. Dr. Ignatius Urban conseguiu finalizar a publicação da Flo-
rae Brasiliensis, muito depois da morte de Martius, fez uma apresentação dos co-
laboradores, entre os quais se encontram naturalistas e colecionadores brasileiros.
Do século XVIII, constam os conhecidos naturalistas frei José Mariano da
Conceição Velloso (1742-1811), frei Leandro do Sacramento (1779-1829) e o
Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815). Do século XIX, Francisco Freire
Allemão (1797-1874), Ladislau de Souza Mello Netto (1837- ?), José de Saldanha
da Gama (1859-1905), que trabalharam no Jardim Botânico e no Museu Nacional da
Quinta da Boa Vista, do Rio de Janeiro, e foram associados do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro.
Mas, afora esses colaboradores da Florae Brasiliensis, constam das notas
biográficas do Dr. Urban os colecionadores Manuel Damazio, Antonio e Ildefonso
Gomes, Francisco de Paula, Carlos Thomas e Alberto de Magalhães Gomes,
Francisco Ribeiro de Mendonça, Júlio de Moura, Amaro Ferreira das Neves Ar-
mond, Joaquim Cândido da Costa Sena, Antonio Luiz da Silva Manso e Álvaro
Astolpho de Miranda.
Essa relação comprova a atuação paralela de naturalistas brasileiros e estran-
geiros no século XIX, bem como a atuação de naturalistas amadores no Brasil. Se
esses dados não bastassem, foram encontrados ainda ofícios de Roque Schüch\
Bibliotecário e Diretor do Gabinete de História Natural de Sua Alteza, a Sereníssi-
ma Sra. Princeza Real, dirigidos a diversas autoridades, sobre riquezas minerais do
Brasil e meios para explorá-las, sendo o último de 1841.
Alguns aspectos do trabalho dos naturalistas viajantes no Brasil podem ser
inferidos de uma série de Instruções encontradas na Seção de Obras Raras da Bi-
blioteca Nacional.
Instrucções para o transporte por mar.
VELOSO, José Mariano da Conceição, sac., 1742-811
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.36-57,1996.

Instrucções para o transporte por mar de árvores, plantas vivas, sementes e de


outras diversas curiosidades naturaes, dadas à luz por... Lisboa, na Impressão Regia,
1805 102 p.
SACRAMENTO, frei Leandro
Instrucções / para os viajantes e empregadlos nas colônias / sobre/ a maneira
de colher, conservar e remetter os objectos de Historia Natural / arranjada / pela
administração do R. Museu de / Historia Natural de Paris / Traduzido por ordem de
/ Sua Magestade Fideli//ima / expedida pelo excellentissimo / Ministro e Secretario
de Estado / dos Negócios do Reino / do original francez impresso em 1818. Augmen-
tada, em notas, de muitas das instrucções / aos correspondentes da Academia R. das
Scien / cias de Lisboa, impressas em 1781; e precedida de algumas reflexões sobre
a Historia Natural / do Brazil, e estabelecimento do Museu e Jardim / Botânico em
a Côrte do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, na Impressão Regia, 1819 por ordem de
sua Magestade.
As reflexões sobre a Historia Natural Brasileira são igualmente significativas
do pragmatismo que continuava a imperar nesse estágio da ciência.
Escriptos Portuguezes sobre Historia Natural XIX, XXVI
Historia Natural, fó os naturalistas que viveram toda vida no Brazil
dar boa idéia XXV Quina. Noticia de Providencias sobre as Regras
XXXVI
Noticia de differentes cascas amargosas que do Brazil se tem
Portugal
História da Quina do Brazil já começada a ensaiar em Portugal ch
mente XXXI
Instrucções para a Commissão Scientífica.
FERRAZ, Luís Pedreira do Couto, visconde de Bom Retiro (1818-1886). Instrucções
para a Commissão scientifica encarregada de explorar o interio
provincias do Brasil. Rio de Janeiro, Typ. Universal de Laem\nert
E a última, já em novos termos:
GOELDI, E. A. (1859-1917). Instrucções práticas sobre o modo de colligir p
da natureza para o Museu Paraense de Historia Natural e Ethnog
Impresso na Typ. do Diário Official, 1895, 30 p.
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.37-57,1996.

No penetrante trabalho de Mary Louise Pratt (Pratt, 1992: 15 e 85) sobre os


livros de viagem ela menciona o problema sanitário da expansão européia e a desco-
berta do quinino no combate às febres mortais. Não só aponta os choques da me-
dicina ocidental com as formas locais de cura, como as barrWras à exploração dos
continentes fomentadas pela malária, pela febre amarela e pela disenteria.
A eficácia do quinino no combate às febres já era conhecida no século XVIII,
quando a Coroa Portuguesa recomendava a Quina para as Sezões declaradas,
alternada com vomitórios e purgantes"^.
Em 1817, o Primeiro Boticário do Hospital Real Militar da Corte realizou um
Ensaio Analítico e Comparativo sobre a Quina chamada Rubra Peruviana^
Em suas Instruções aos Viajantes, frei Leandro do Sacramento, em sua gestão
do Jardim Botânico, em 1819, ao falar sobre a Historia Natural Brasileira, reserva três
itens referentes às regras sobre a Quina do Brasil, uma notícia sobre as cascas amargosas
remetidas a Portugal e ensaios químicos e clínicos que já começavam a ser feitos.
Spix e Martius, por sua vez, revelaram ter descoberto cinco qualidades da
"verdadeira" quina, em 1820, confirmando o interesse em controlar uma das condi-
ções letais para a exploração do interior dos continentes^ (Prancha 6). E em 1857, de
Munique, Martius escreveu ao Marquês de Olinda aconselhando a cultura da quina
no BrasiF. A preocupação não se limitava às possíveis vítimas das febres, como os
naturalistas viajantes, mas estendia-se às autoridades brasileiras, como é possível
verificar pelas cartas de Miguel Maria Lisboa ao Dr. Martius sobre o cultivo da
"chinchona" no Brasil, escritas de Bruxelas, em 1866 e 1867^
Uma carta do Dr. Orville A. Derby, ao Diretor do Museu Nacional do Rio de
Janeiro em 1885^, solicitava o exame de cascas que chamam quinae, nome e uso na
Medicina e correspondia ao que os leigos denominam de pau pereira.
Alguns naturalistas tinham fortuna pessoal, como Humboldt, o príncipe de
Wied Neuwied, Maximiliano ou a princesa Tereza da Baviera e, até certo ponto.
Charles Darwin. Outros representantes da nobreza européia financiaram expedições
científicas, como é possível constatar a partir das dedicatórias dos Livros de Viagem.
Durante o trabalho de exploração da natureza, os cientistas aprenderam que toda
mistura direta de interesses imediatos e de necessidades de grupos, bem como na de-
terminação dos resultados da pesquisa, compromete o valor epistemológico do
trabalho. O grau de autonomia quanto às questões de ordem social ou pessoal prote-
ge por meio de normas profissionais, como o distanciamento, contra a interferência
de julgamentos de valor (Elias, 1993: 14-27).
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.38-57,1996.

As Ciências da Natureza adaptam-se melhor a métodos científicos que as


Ciências Humanas. Ainda assim, a situação, a atitude e o relacionamento entre os
pesquisadores refletem seus compromissos com os conflitos de sua época. Como
Norbert Elias (1993) esclareceu, os cientistas, como membros de grupos sociais (dos
que lutam para subir, dos que desejam conservar o que têm e dos que estão perdendo
o que tiveram), encontram-se implicados nesses conflitos e estão comprometidos
ideologicamente. Ora, o saber não funciona num vazio humano, sem referência aos
homens, a suas condições de vida e a sua personalidade. O desenvolvimento das
Ciências Naturais pôs nas mãos dos homens um saber sobre os fenômenos naturais
relativamente objetivo e próximo da realidade, em relação a vastos domínios do
acontecer natural. Acreditava-se que se revelava a "verdade" acerca da natureza,
acabando tanto com o terror diante de suas ameaças, como com sua idealização de ser
uma generosa Mãe (Pranchas 1 e 2).
Um pequeno episódio ocorrido com Karl von Martius, quando já era conser-
vador do Jardim Botânico, em 1854, concretiza, em certa medida, as reflexões aci-
ma. Numa carta a D. Pedro II, escrita de Munique (25 de abril de 1848), Carlos de
Martius (como ele assina na carta, escrita em português) comenta a catastrofe actual
d'Allemanha, acto immenso e que por ora torna os espíritos em
Sciencia, difficultando se o credito de qualquer edição por sua na
Em seus passeios vespertinos com Maximilian II, este ordenou a construção de um
palácio de cristal no Jardim Botânico, para abrigar a Exposição da Indústria. Sur-
preso e indignado Martius exclama: - No meu jardim?! ao que Maximiliano respon-
de taxativo: - Não. No meu (Lisboa, K. 1995).
Em outros casos, quando o mecenas era também um cientista, como no caso de
Alexandre von Humboldt, as condições de trabalho eram diferentes. Humboldt
esgotou sua fortuna pessoal em expedições e no planejamento e organização das
ciências físicas e naturais e de sua distribuição geográfica. Mas não totalmente
isentas de interferências políticas, econômicas, sociais e pessoais. Após o zelo do
criador das regras de classificação dos reinos vegetal, animal e mineral, o doutor em
Medicina Carolus Linnaeus, foi Humboldt quem deu o maior impulso à Ciência do
século XIX, por sua obra, pela organização de encontros dos cientistas contempo-
râneos, em Paris, e pelo apoio pessoal e financeiro que proporcionou a jovens
cientistas.
Sobre ele, Goethe comentou: "Encontrei sempre na sua companhia motivo
para novo assombro. Pode dizer-se que ninguém se lhe compara no que diz respeito
à vasta erudição e ao conhecimento das ciências atuais. Possui, além disso, uma ver-
satilidade de imaginação como nunca vi até agora" (Moulton & Schifferes, 1962:
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.39-57,1996.

445). Em seu diário, Darwin relata a influência da leitura da Narrativa Pessoal, d


Humboldt e Bonpland, em sua decisão de se tornar um naturalista.
No transcorrer do século XIX, as Sociedades Científicas européias, os Museus
e as Academias de Ciências passaram a desempenhar o papel de financiadoras e
divulgadoras dos resultados das expedições dos naturalistas viajantes.
Os diversos sentidos em que se fala então de Natureza têm relações de filia-
ção e uma identidade fundamental - é a idéia de uma existência que se produz, ^u
pelo menos determina-se no todo ou em parte, sem necessidade de outra causa. Uma
coisa é natural quando se opõe à reflexão, à obrigação, ao artifício, ao humano, ao
divino e ao espiritual. A História Natural seria então a ciência da descrição e da
classificação, por oposição à procura de leis. O sentido da expressão História Natu-
ral concentra-se no estudo da Natureza, em todas as suas manifestações. O natura-
lista é quem vive no meio da Natureza, por oposição ao físico, que se fecha no la-
boratório. À medida que os estudos dessa ordem chegaram a generalizações e leis,
o termo História tornou-se inadequado, sendo substituído pelo de Ciências Naturais.
A Encyclopaedia Britannica de 1771 atribui oito diferentes significações
Natureza, sendo a primeira a de Autor da Natureza, a quem os letrados chamam dè
Natura Naturans, que é o mesmo que Deus. Já na Encyclopédie ou Dic
Raisonné des Sciences^ des Arts et des Métiers, de 1778, a Natureza
vezes, o sistema do mundo, a máquina do universo ou o conjunto de todas as coisas
criadas. Nesse sentido é que dizemos autor da natureza, que chamamos o sol o olho
da natureza, porque torna a terra fértil pelo aquecimento. Opõe-se à idéia de natureza
a de todas as coisas que ocorrem no mundo por forças que não existem originalmente.
A História Natural, em 1771, é apresentada como a ciência das descrições
completas de produtos naturais em geral, mas que também ensina o método de
organizá-los em Classes, Ordens, Gêneros e Espécies. Esta definição inclui Zoolo-
gia, Botânica, Mineralogia etc. O método de investigação dos gêneros e espécies
baseia-se na ordenação natural ou artificial.
O pavor diante da força sobre-humana dos elementos da natureza parecia estar
sendo controlado pelo espírito científico. As viagens de circunavegação e, agora, a
exploração do interior dos continentes foram acompanhadas por uma grande espe-
rança nos recursos da ciência, que revestiu a Natureza de um sentido de fonte de
segredos, que foi cantada na poesia de Hõlderlin, considerando a natureza o meio
seguro de se chegar a uma experiência verdadeira da poesia. Entre os hinos à
Natureza encontramos o poema The Seasons - Autumn, de James Thompson:
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.40-57,1996.

O Nature! alUsujficient! over ali


Enrich me with the knowledge of thy works:
Snatch me to heaven; they rolling wonders there
World beyond world, in infinite extenty
Profuselly scattered o'er the blue universe
Show me; their motionSy periods and their laws
Give me to scan; through the disclosing deep
Light me blind way.
E o de Henry W. Longfellow, escrito em 1857 para o naturalista Louis Agassiz:
And Nature, The Old Nurse, took
The Child upon her knee
Saying: '*Here is a story book
They Father has writtenfor thee
Come, wander wi^h me, she said
Into regions yet antrod
And read what is still unread
In the manuscript ofGod'\
O distanciamento do poder criador (o manuscrito de Deus, no poema de
Longfellow) constituiu uma questão que dividiu os naturalistas do século XIX.
Muitos deles desempenharam suas atividades como uma forma mística de aproxima-
ção do sobrenatural. As hostilidades à teoria da evolução, para a qual vinham todos
colaborando de uma forma ou de outra, provinham principalmente do distancia-
mento que a Ciência provocou diante da Religião.
As narrativas de viagem feitas pelos naturalistas viajantes, ainda que nem
sempre tenham esse tom de deslumbramento diante da Natureza, sob uma grande
heterogeneidade de formas, constituíram um gênero muito apreciado, publicadas
como livros, relatórios, artigos de jornal e de revista, como correspondência, como
livro infantil, didático e de aventuras, ou como Diários de Campo. O jornalismo e as
narrativas foram mediadores essenciais entre a rede científica e um público mais
amplo. A História Natural exigia a intervenção do homem para ordenar o caos da
Natureza (Prancha 3).
Ao examinar mais detidamente os naturalistas viajantes que vieram para o
Brasil durante o século XIX^®, foi-se verificando que não exerceram as suas funções
individualmente. Apesar de contar com naturalistas da Prússia, de Hessen, da Bavá-
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.41-57,1996.

ria, da Áustria, da França, da Inglaterra, de Lübeck, da Suíça, do Canadá, da Itália,


e dos Estados Unidos, afora aqueles que permanecem ocultos em Arquivos e
Bibliotecas, constituíam uma rede de colaboradores, ligados mais ou menos estrei-
tamente por correspondência a Sociedades Científicas. Obedeciam a um planeja-
mento que foi se desdobrando, através do tempo, em especializações científicas e em
reelaborações teóricas, tendo desenvolvido esforços paralelos, com resultados coin-
cidentes ou detidos por orientações ultrapassadas.
Dois textos, um de Humboldt e outro de Darwin, exemplificam o parágrafo
anterior. Humboldt escreve no Cosmos (1847-1858): "(•••) Ao examiná-los pela
primeira vez, todos os fenômenos parecem isolados, e apenas devido à observação
múltipla, combinada com a razão, conseguimos descobrir a relação mútua que existe
entre eles. (...) Requer-se igual consideração por todos os ramos das Ciências
Matemáticas, Físicas e Naturais, especialmente na época presente, em que as
riquezas materiais e a crescente prosperidade das nações se baseiam principalmente
num emprego mais eficiente dos produtos e forças da Natureza" (Moulton &
Schifferes, 1962: 450). E Darwin (1859): "Agora a minha obra está quase termina-
da, mas como levarei muitos anos a completá-la e a minha saúde não é robusta, nem
nada que se pareça, vi-me obrigado a publicar este sumário. De maneira especial me
levou a fazê-lo assim o facto do Sr. Wallace que actualmente estuda a história natural
do arquipélago Malaio, ter chegado quase exactamente às mesmas conclusões gerais
do que eu, a respeito da origem das espécies. Em 1858 enviou-me uma monografia
acerca do tema, pedindo-me que imediatamente a entregasse ao Sr. Charles Lyell e
o doutor Hooker, que conheciam a minha obra - o doutor tinha lido o meu esboço em
1844 - deram-me a honra de considerar oportuna a publicação, junto com a excelente
monografia do Sr. Wallace, de alguns extractos dos meus manuscritos" (id., ibid. .14).
O estudo intertextual dos viajantes permite revelar um capítulo mal conhecido
da História da Ciência - a colaboração de cientistas estrangeiros e brasileiros nas
primeiras sociedades científicas e aspectos da profissionalização do cientista.
Os livros de viagem, apesar de observar e classificar sistematicamente as
criaturas em sua variedade, vão descobrindo uma semelhança profunda que liga to-
das as espécies, umas às outras. Conjuntos de semelhanças ligam camada por ca-
mada "a partir da primeira aurora da vida", nas palavras de Darwin.
Em A Lógica da Vida (Uma História da Hereditariedade), Fran
(Jacob, 1983: 170 e 8) afirma que contemporaneamente "nenhum sistema explicará
o mundo em todos os seus aspectos e detalhes. Ter ajudado na destruição da idéia de
uma verdade intangível e eterna talvez seja uma das mais valiosas contribuições da
metodologia científica" ... "a variabilidade é uma qualidade inerente à própria natu-
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.42-57,1996.

reza do ser vivo, à estrutura do programa, à maneira como é recopiado em cada gera-
ção. As modificações do programa acontecem às cegas".
Os naturalistas viajantes que escreveram Livros de Viagem tornaram-se não só
mais conhecidos do grande público, como deram também sua contribuição às
Ciências Humanas, com as minuciosas descrições do encontro de populações, lín-
guas e diferentes culturas, bem como das relações entre imigrantes europeus e as
populações locais (Pranchas 4 e 5).
Mas houve outros viajantes naturalistas, menos conhecidos, que trabalharam e
contribuíram para a Ciência, junto às primeiras associações científicas e museus, já
com maiores restrições econômicas e margem de manobra mais reduzida em sua ati-
vidade. Não tinham nem a autonomia, nem o prestígio de que gozaram alguns dos
naturalistas consultados. Estavam sujeitos a restrições e cortes de verbas e à ideolo-
gia dos diretores dos museus, sempre às voltas com a utilidade imediata de seus
trabalhos, que precisava ser demonstrada em atividades didáticas e em sua partici-
pação na resolução dos problemas do país em que estavam. Começava a se delinear
o perfil do funcionário (Figueirôa, 1987 e 1992; Lopes, 1993) sobre o do cientista.
Alguns deixavam de se enquadrar propriamente como viajantes estrangeiros, pois
inúmeros não voltaram ao país de origem, constituindo família no Brasil ou morren-
do afogados na travessia de rios ou sob o peso de montanhas de papel.
No Arquivo do Museu Nacional, encontrou-se correspondência relativa a tra-
balhos estáveis ou temporários, como os de Frederico Sellow, Emilio Germon, Fre-
derico Wagner, Luiz Riedel, Eng. Henrique Guilherme Fernando Halfeld, Arsene
Boraguin, Julião Brassus, Conde de Ia Hure, Dr. Herman Blumenau, Dr. Couto
Magalhães, Carlos Schreiner, Dr. Wilkelen, Dr. Fritz Muller, Carlos Schwake, Louis
Couty, Dr. Orville Albert Derby, Herbert Huntington Smith, Dr. Hermann von
Ihering, Dr. A. Glaziou, Dr. Emilio Augusto Goeldi, Gustavo Rubels e Ernest
Heinrich Georg Ulle.
Observou-se nesse mesmo Arquivo uma alteração na atitude das normas
estatais diante de seus cientistas. São dois os aspectos revelados: de um lado mostra-
se a conveniência de preencher, por concurso, os lugares de naturalistas, o que tanto
pode significar a busca de melhor preparo de seus funcionários, como a existência de
maior número de candidatos aos limitados lugares. O outro aspecto é a alteração do
título do cientista. A partir de 1894, a correspondência está registrada como referente
a naturalista ajudante. É possível pensar num erro do escrivão, já que erros é que não
faltam nesses registros. Mas a repetição, daí por diante, da designação de naturalista-
ajudante, e da abertura de inscrição para o concurso para esse cargo, acaba certifican-
do que houve uma desqualificação da função, em todas as seções do Museu. Essa
32
Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.44-57,1996.

Anexo I
Naturalistas Estrangeiros Consultados^^
Nome Origem Estada no Brasil Idade Profissão Obras
Consultadas
Langsdorff
1774* - 1852-^ Wollstein 1813-1830 48 Diplomata Diário
Sellow, F. Cartas e
1789* - 1831'u' Potsdam 11814-1831 25 Naturalista Testamento
Maximiliano
1782* - 1831'u' Prússia 1815-1817 33 Naturalista Relatório
Martius
1794* - 1868'fr Ba viera 1817-1821 23 Botânico Diário
Spix
1781* - 1826'í^ Ba viera 1817-1820 36 Zoólogo Diário
Pohl, J. E.
1782* - 1834'u' Áustria 1817-1821 35 Mineralogista Diário
St.-Hilaire
1779* - 1853-^ França 1820-1821 39 Botânico Diário
D'Orbigny
1802* - 1857'u' França 1825 28 Naturalista Relatório
Darwin, C. R.
1809* - 1882Í' Inglaterra 1832 23 Naturalista Diário
Lund, P. W. Cartas e
1801* - 1880í= Dinamarca 1825-1880 24 Paleontólogo Biografia
Gardner
1812* - 1849D' Escócia 1836-1841 24 Médico Diário
Castelnau
1812* - 18801h França 1843 31 Diplomata Relatório

L
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.45-57,1996.

Pfeiffer, I.
1795* - 18581r' Áustria 1846 51 Geógrafa Diário
Bates, H.
1825* - 18921^ Inglaterra 1848 23 Entomólogo Diário
Burmeister, H.
1807* - 18761^ Prússia 1850 43 Naturalista Relatório
Clark, H.
s./d. Inglaterra 1856 s./d. Entomólogo Cartas
Avé-Lallement
1807* - 187611' Lübeck 1857-1858 45 Médico Relatório
Tschudi,
1818* - 188711' Suíça 1857 39 Diplomata Relatório
Hart, C. F.
1840* - 18781}' Canadá 1865 25 Geólogo Relatório
Agassiz, L. Suíça
1807* - 187311" EUA 1865 58 Naturalista Diário
Giglioli, E. H.
1845* - 19091}" Itália 1865 20 Anatomista Diário
Müller, F.
1822 - 18971}" Erfurt 1852-1897 30 Naturalista Diário
Derby, 0. Relatório e
1851* - 19151}" EUA 1875-1915 19 Geólogo Teses
Smith, H. H.
1851* - 19191}" EUA 1873-1878 27 Naturalista Relatório
Tereza
1850* - 19251}" Ba viera 1888 38 Naturalista Diário
Goeldi, E.
1859* -19171}" Suíça 1886 - 1917 27 Naturalista Relatório
* Nascimento lí" Morte
32
Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.46-57,1996.

Notas

1. Instituto de Estudos Brasileiros (USP). Coleção Lamego Códice 86.4. A 8.


2. Instituto de Estudos Brasileiros (USP). Coleção Lamego Códice 101 - A 8.
3. Arquivo Nacional (RJ). Códice 807, publ. N. 26.
4. Manuscrito citado da Coleção Lamego, lEB-USP. Códice 101 - A 8.
5. Arquivo Nacional (RJ). Códice 807 V.7 174-180.
6. (...) temos descoberto cinco qualidades de verdadeira Quina, qu
otimo remedio contra as terriveis maleitas destepaiz... Carta de Spix e M
Senhor Manoel Ferreira da Camara Bitencourt e Sá. Arquivo Nacional (RJ) Códice 807
V. 7.
7. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Arquivo Lata 208, doe. 47.
8. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Arquivo DL 843.17.
9. Ofício dirigido ao Snr. Dr. Ladislau Netto, em 17 de março de 1885, Museu Nacional
P. 24, D. 49.
10. Cf Anexo I Naturalistas Viajantes Estrangeiros consultados.
11. Anais do Museu Histórico Nacional (RJ). V. 8, 1947, p. 229-234.
12. Ainda não foi possível esgotar as potencialidades dos dados desta Tabela. Eles referem-
se exclusivamente aos trabalhos desenvolvidos em território brasileiro. Lembre-se que, no
século XIX, nem o território brasileiro estava demarcado, nem alguns países europeus
tinham se unificado. Há dados incompletos e permanece a necessidade de nuançar a
questão profissional, de atividades ainda não profissionalizadas. O estudo da idade em
que os cientistas chegaram ou passaram pelo Brasil ainda pode ser uma questão importan-
te na psicologia do cientista e resta verificar se o período em que ficaram trabalhando no
país não deve ser completado pelos contatos científicos e pessoais que continuaram (ou
não) a manter com as autoridades e as associações científicas brasileiras.
32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.47-57,1996.

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Eduardo de Lima Castro. São Paulo: Martins, 1953.
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32 Moreira Leite, M. L., Imaginário - USP, n. 3, p.57-57,1996.

índice das Pranchas

Prancha 1: DEBRET, J. B. (1827) Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil - Va


ra do Mar, São Paulo: Martins, 2® ed., Tomo II, Vol. 3, Prancha 1, p. 296.
Prancha 2: . (1827) Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil - Vege
Caráter das Florestas nas Margens do Paraíba. São Paulo: M
ed., Vol. II, Prancha 1, p. 288.
Acreditava-se que se revelava a **verdade'' acerca da natureza^
terror diante de suas ameaças, como com sua idealização de ser

Prancha 3: DEBRET, J. B. (1827) Grande Cachoeira do Sumidouro na Flo


Picinguaba, In: ALMEIDA PRADO, J. F. Debret. São Paulo: Com-
panhia Editora Nacional, 1973, Reprodução das Paisagens.
A História Natural exigia a intervenção do homem para ordenar o ca

Prancha 4: FLORENCE, H. (1825-1829) Viagem Fluvial do Tietê ao Amazon


São Paulo: Melhoramentos, 1948, p. 263. Encontro do Sr, Langsdorj
com os Apiacás,
Prancha 5: RUGENDAS, J. M. (1830) Viagem Pitoresca através do Brasil, Sã
lo: Martins, 4^ ed. 33.3/1. Encontros de índios com Viajantes Eur
Os naturalistas viajantes ... deram também sua contribuição às C
com as detidas observações sobre o encontro de populações, lí
culturas.

Prancha 6: FLORENCE, H. (1825-1829) Viagem Fluvial do Tietê ao Amazona


Paulo: Melhoramentos, 1948, p. 286. Transporte de um Maleitoso em R
Barreiras à exploração dos continentes fomentadas pela malária,
rela e pela disenteria preocupavam os naturalistas.
Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

Viajando pelo mundo dos museus:


diferentes olhares no processo de
institucionalização das Ciências Naturais
nos museus brasileiros
Maria Margaret Lopes*

Resumo: Ao longo do século XIX, primeiro o Museu Nacional do Rio d


o conjunto dos museus brasileiros estabeleceram sua contribuiçã
cionalização das Ciências Naturais no país. Esses loci instituciona
ficamente com ofimde armazenar coleções e permitir o desenvolvim
nômicos e sistemáticos, testemunharam que não só existiu ativida
século XIX, no âmbito das Ciências Naturais, como também a qua
continuidade de suas manifestações, superaram muitas expecta
artigo comenta brevemente alguns aspectos das diferentes visões
institucionais que conviveram nos museus brasileiros, a partir da
estrangeiros que os visitaram ou neles trabalharam.
Palavras-chave: ciências naturais - museus - taxonomia - modelos insti

"As visões sobre o avanço da ciência construídas pelos sábios


norte-atlânticos os tornaram incapazes de perceber e muito
menos valorizar as produções de seus colegas latino-ameri-
canos. Essas visões foram ainda reforçadas pelos viajantes,
cientistas do mundo norte-atlântico, que, desde Humboldt
até Einstein, chegaram, sorriram com perplexidade e retor-
naram às suas casas, freqüentemente assombrados com o fato
de que aqui pudessem existir instituições científicas e par-
ticularmente que estas tenham podido levar a cabo programas
de investigação" (Pyenson, 1988: 229-49).

* Instituto de Geociências-UNICAMP.
60 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

O que os naturalistas estrangeiros viram


no Museu Nacional do Rio de Janeiro

A origem do atual Museu Nacional do Rio de Janeiro, criado em 1818, remonta


à Casa de História Natural - a Casa dos Pássaros, criada em 1784. Embora herdasse
suas coleções, o museu brasileiro foi criado em uma concepção oposta à da Casa dos
Pássaros, que se tratava de um entreposto colonial, para remeter produtos naturais de
todo o Ultramar para os museus portugueses de Ajuda e Coimbra.
O que se criou no Rio de Janeiro, já então sede do Império português, foi um
Museu Metropolitano de caráter enciclopédico e universal. Criado como um símbolo
do urbano, da civilização e do progresso, seguiu o modelo dos grandes museus euro-
peus, particularmente do Museu de História Natural de Paris, onde estudariam muitos
de seus diretores. Essa concepção globalizadora, com as devidas alterações conjun-
turais, decorrentes do desenvolvimento das Ciências Naturais, se manteria até hoje.
Assim, dado seu caráter metropolitano, o Museu Real, Imperial e posteriormente
Nacional, reuniu em seu acervo não só coleções nacionais, como também européias,
egípcias, greco-romanas e das antigas possessões portuguesas na África e Ásia.
Esta concepção é explicitada claramente nas "Instruções para os viajantes e
empregados nas colônias sobre a maneira de colher, conservar e remeter os objetos
de História Natural...", traduzidas da publicação do Museu de História Natural de
Paris pela Academia de Ciências de Lisboa e acrescidas de "reflexões sobre a Histó-
ria Natural do Brasil e o estabelecimento do Museu e Jardim Botânico na Corte do
Rio de Janeiro em 1819" ^ que serviram de base para a organização do Museu em suas
primeiras décadas de funcionamento.
Repetidas vezes lembradas pelos primeiros diretores do Museu do Rio de
Janeiro, as "Instruções" divulgaram as concepções de História Natural de Vandelli,
Buffon, Saint-Hilaire, para propor a organização ideal do "Museu Geral Brasílico".
Este deveria ser baseado em uma rede de Gabinetes de História Natural locais, em
cada província do Brasil, bem como em cada uma das Ilhas e Possesões portuguesas
na África e Ásia. E, dada a inversão total da situação geopolítica, que trouxe a Corte
portuguesa para o Rio, para Lisboa e Coimbra deveriam ser mandadas as duplicatas
de que se pudesse dispor no Museu brasileiro.
Durante todo o século, viajantes, residentes, funcionários, seekers, amadores,
naturalistas de todo o mundo visitaram o Museu Nacional do Rio de Janeiro a serviço
dos museus de História Natural de seus países de origem, para os quais investigaram,
coletaram e enviaram coleções de produtos naturais.
60 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p.59-78,1996.

Acompanhemos então, a princípio em suas visitas ao Museu, a Johann Emanuel


Pohl, um dos integrantes da expedição austríaca, entre 1818 e 1821; Maria Graham,
viajante inglesa, em 14 de agosto de 1823; o Barão de Bougainvile, por diversas
vezes entre 1824 e 1826; Thévenot, membro da Real Academia de Paris e cirurgião
da Marinha francesa, em 1833; George Gardner, botânico inglês, em fins de 1836
e o pastor americano Kidder, no segundo semestre de 1838 (ver respectivamente:
Pohl, 1976; Graham, 1990; Gardner, 1975; Kidder, 1980).
Segundo seus relatos, no salão principal do primeiro andar estavam as coleções
mineralógicas. A coleção de minerais da Saxônia - Pabst von Ohain - era a parte
mais rica e bem organizada de todo o Museu, estando durante estes anos classificada
segundo sua composição química e os princípios cristalográficos de Haüyl Entre os
minerais nacionais, os diamantes se destacavam em meio às não muito numerosas
amostras de ferro, cobre e carvão das minas de São Paulo; e ametistas, quartzos, ouro
e topázios de Minas Gerais.
Quanto às coleções zoológicas, desde seu início o Museu já era rico em
crustáceos e zoófitos, especialmente das possessões portuguesas nas índias Orien-
tais; entre os pássaros, embora houvesse poucos notáveis e em geral mal preparados
e mal classificados, destacava-se a princípio a considerada esplêndida coleção de
tucanos, que José Bonifácio de Andrada e Silva, então Ministro dos Negócios do
Império, requisitou para o ornamento do manto da coroação de D. Pedro P.
Entre as coleções botânicas merecia destaque apenas a coleção de madeiras do
Brasil, com grande variedade de espécies. As coleções africanas, embora não muito
numerosas, eram bem conservadas. As salas das moedas eram pouco amplas e os
quadros expostos, em geral, desgostavam os visitantes, embora Maria Graham ti-
vesse lá depositado algumas de suas pinturas.
Para o final da década de 1830, o Museu já apresentava suas coleções consi-
deravelmente ampliadas, distribuindo-se por sete ou oito salas. Era opinião corrente
entre os estrangeiros que, mesmo apesar de muito melhorado, o Museu ainda dava
uma idéia muito acanhada da grande quantidade de produtos naturais do país, se
comparássemos suas coleções àquelas dos museus de Munique, Viena, Paris, São
Petersburgo, Londres e Edinburgo, que ostentavam magníficas coleções de material
brasileiro.
Custódio Alves Serrão, professor de Mineralogia da Academia Militar, diretor
do Museu desde o iníco da década de 30 e idealizador da reforma de 1842 do Museu
em suas quatro seções - Anatomia Comparada e Zoologia; Botânica, Agricultura e
Artes Mecânicas: Mineralogia, Geologia e Ciências Físicas; Numismática, Artes
Liberais, Arqueologia e Usos e Costumes da Nações Antigas e Modernas -, também
60
Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

se ressentia da ausência de produtos do país no museu. Preocupado com as classifi-


cações, iniciou a organização de uma biblioteca no Museu, comissionou o italiano
Ricardo Zani para formar coleções na Amazônia e incentivou os presidentes das •
províncias a enviarem doações ao Museu^.
A divisão do Museu em seções com seus respectivos diretores^ parece não ter
tido conseqüências imediatas, no sentido de alterar a opinião que alguns dos via-
jantes estrangeiros continuavam fazendo do Museu, salientando unanimemente a
falta de coleções nacionais.
O Conde de Castelnau e o botânico inglês Gardner (Castelnau, 1847; Gardner,
1975) visitaram o Museu entre 1844 e 1846. Ambos sentiram a falta de maior quan-
tidade de produtos naturais do país. Os pássaros continuavam mal-empalhados e eles
se interessaram pela sala dos ornamentos e armas indígenas, pela coleção de múmias
egípcias, destacaram a coleção Fabst von Ohain como a parte mais completa do
Museu, agora já acrescida de interessantes séries de minerais do Brasil, em que os
diamantes continuavam a sobressair.
Thomas Ewbank, que visitou o Museu no dia 27 de fevereiro de 1847 (Ewbank,
1976), considerou que a Zoologia e a Ornitologia constituíam os principais ramos do
Museu. Os grupos felinos nativos, desde o jaguar até os menores tigres, estavam
amplamente representados, assim como os "quadrúmanos". Uma preguiça de mais
de 1 metro de comprimento e a "brilhante reunião de pássaros", que incluía os
colibris, também chamaram sua atenção.
Embora as coleções do Museu se ampliassem, entre os anos de 1840 e 1850,
quando Hermann Burmeister (Burmeister, 1980) - o naturalista alemão que a partir
de 1862 seria o diretor do Museu de História Natural de Buenos Aires - o visitou pela
primeira vez em 1850, parece que as exposições não haviam sofrido ainda conside-
ráveis alterações. As salas abertas ao público continuavam sendo em número de oito,
e Burmeister, de modo contraditório, vai considerar, por um lado, que o Museu é um
"instituto científico de valor" e, por outro, que lá não havia "método científico", nem
"coleções completas de obras indígenas ou do país". Os pássaros em sua maioria
europeus, continuavam mal preparados, embora alguns fossem de grande valor por
sua raridade. A coleção de minerais continuava, sem dúvida, também, na sua
opinião, a parte mais importante e preciosa de todas. Burmeister ainda menciona a
sala dos sarcófagos das múmias e a sala dos mamíferos, onde os macacos predomi-
navam. Mas seu principal interesse - a Zoologia Comparada dos grandes mamíferos
quaternários, que ele encontraria na Argentina e que, no Brasil, apenas Lund
pesquisava em Lagoa Santa - apenas começava a se instituir, não existindo ainda,
de fato, exemplares montados no Museu.
60 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

Mas, a partir da década de 1850, serão na sua maioria exatamente os natura-


listas estrangeiros que, empregados em comissões pelo museu, se encarregarão de
fornecer grande parte das coleções que se formavam^.
Foram os seguintes os naturalistas, em sua maioria franceses, vinculados ao
Museu: João Theodoro Descourtilz, naturalista viajante da seção de Zoologia,
especialista em ornitologia, que trabalhou principalmente no Espírito Santo, estan-
do a serviço do Museu de julho de 1854 a fevereiro de 1855; Alfredo Sohier de Gand,
naturalista e comerciante de produtos de História NaturaF, que foi encarregado de
coletar produtos de História Natural no Pará e Amazonas, em 1855; Louis Jacques
Brunet, professor do Ginásio de Pernambuco, coletou para o Museu em uma viagem
que fez à Amazônia, entre junho de 1860 e final de 1861, tendo remetido inúmeras
vezes produtos naturais do Pará^. Arsène Onessim Baraquin, embora não tenha sido
contratado por falta de verbas, se propôs a coletar produtos de Geologia, Zoologia e
Botânica, na Província do Pará e Amazonas, desde que lhe fosse concedido o título
honorário de Adjunto Naturalista Viajante do Museu, o que de fato ocorreu^. Julião
Audemars de Brassus foi nomeado naturalista viajante em 1863; Carlos Schreiner,
contratado como naturalista ajudante em 1872, tornou-se em 1893 vice-diretor da
seção de Zoologia; Domingos Soares Ferreira Penna, brasileiro e primeiro diretor do
atual Museu Paraense Emílio Goeldi, que foi admitido como naturalista viajante em
1872 e esteve entre aqueles que mais mandariam produtos da Amazônia para o
Museu, tendo sido exonerado a seu pedido em 1884; Guilherme Schwacke foi
contratado como naturalista viajante em 1874 e também exonerado a seu pedido em
1891.
Mesmo o auxílio desses naturalistas, em sua maioria estrangeiros, parece não
ter contribuído muito para uma unanimidade de visões de parte de outros estrangei-
ros. O jornalista francês não especializado em Ciências Naturais, Charles Ribeyrolles
(Ribeyrolles, 1980), que chegou ao Rio de Janeiro de 1858 e lá morreu em 1860,
afirmava que, embora em suas visitas ao "Gabinete de História Natural" só encon-
trasse estrangeiros, havia no Museu "assunto para variados e numerosos estudos,
uma opulenta coleção de minerais, arquivos etnográficos, armas, utensílios, vesti-
mentas, múmias".
Já para Agassiz, suíço radicado nos Estados Unidos e diretor do Museu de Zoo-
logia Comparada de Cambridge, especialista em ictiologia, que esteve no Brasil
chefiando a "Thayer Expedition" (1865-1866), o Museu era antiquado. O naturalista
afirmava que as suas coleções se destinavam a "permanecer por longos anos em seu
atual estado, sem aumento nem melhoria. Os animais empalhados, mamíferos e pás-
saros estavam mal conservados e os peixes, excetuando-se algumas belas amostras
60
59 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

de espécies do Amazonas, não davam idéia da variedade existente nas águas do


Brasil. Coleção melhor se conseguiria em poucas horas no mercado do peixe (fish-
market)Havia no Museu excelentes fósseis extraídos do Vale do S. Francisco e do
Ceará, mas, segundo ele, nem se havia tentado coordená-los^®.
Se os peixes eram tão ruins, parece que os pássaros, particularmente devido à
contribuição de Descourtilz, de fato haviam melhorado. Quem o confirma é outro
naturalista norte-americano, tão conceituado quanto Agassiz. Joseph Henry, Secre-
tário Geral da Smithsonian Institution, em carta ao diretor do Museu Nacional, no
mesmo ano de 1865 em que Agassiz esteve no Museu, agradece o último envio da
obra de Descourtilz, Ornithologie Brésilienne, e de uma coleção de pássaros, "em
sua maioria novos" para o principal museu norte-americano, ressaltando precisa-
mente "seu excelente estado de preservação e identificação"^^
Mais interessante é o parecer de Ladislau Netto, então já diretor interino do Mu-
seu Nacional, ao Governo Imperial, quando a obra de Agassiz foi divulgada em 1868.
Em sua linguagem de naturalista, Netto reconhece que o Museu não podia competir
com as coleções de História Natural que mais se distinguiam no Velho Mundo, com
os estabelecimentos "tipo" do mundo - ou seja, os principais e em número limitadís-
simo museus da Europa nos quais, "mesmo nos mais perfeitos, sempre existem
lacunas tão sensíveis quanto inevitáveis". E ainda afirma que "o nosso museu é im-
perfeito e incompleto, confesso. Mas se, quando o ilustre professor o visitou, lhe ti-
véssemos indiscretamente declinado o algarismo de nossa verba, estou certo de que
tais asserções nunca lhe teriam vindo aos lábios e ainda menos à pena"^^.
Ladislau Netto vai ser sem dúvida o grande organizador do Museu Nacional
segundo os padrões científicos vigentes nas décadas de 60 e 70 do século passado,
e se utilizou da crítica de Agassiz para devolver ao governo sua responsabilidade na
falta de verbas para o Museu. Crítico em relação a Agassiz, mas considerando a
utilidade de seu conselho, Ladislau Netto passou a "mandar comprar diariamente no
mercado desta capital quantos animais raros ou menos conhecidos ali se encontra-
rem à venda; deste modo alcançarão as nossas coleções ictiológicas e em geral as dos
animais inferiores um valor que até hoje lhes faltava"^^
O Museu reformado em 1876, sob orientação de Ladislau Netto, vai passar a
contar com sua publicação científica, Os Arquivos do Museu Nacional com cursos
e conferências públicas e com o trabalho de vários naturalistas europeus, além dos
nacionais. Entre outros estrangeiros, Theodoro Peckolt era o encarregado pelo
Laboratório Químico, Charles Federic Hartt (discípulo de Agassiz) dirigirá a seção
de Geologia do Museu, seguido por Orville Derby; Frederic Müller e Herman von
60 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

Ihering serão naturalistas viajantes do Museu e Emílio Goeldi dirigirá a Seção de


Zoologia.
Mas estes últimos naturalistas, diferentemente da maioria dos anteriores, não
são mais viajantes. Profissionalizaram-se no museu. Em geral vieram para cá para
construir suas carreiras, continuaram a enviar coleções e publicações para o exterior,
mas, uma vez fixados no país, chegaram inclusive a criar suas próprias instituições
e mesmo museus.
E, uma vez em suas instituições, buscaram implantar suas próprias concepções
científicas, as quais mais do que priviligiarem uma continuidade da tradição natu-
ralista do Museu Nacional, foram fortemente marcadas pela ruptura entre o modelo
de Museu Geral, Metropolitano, enciclopédico, que encarnava o Museu Nacional do
Rio de Janeiro e o modelo dos museus cada vez mais especializados das províncias,
que se afirmaram nas últimas décadas do século, justamente em contra-posição ao
antigo museu do Império.

O que os naturalistas estrangeiros imaginaram


para seus museus no Brasil

Emílio Goeldi, o zoólogo suíço que vai ser o diretor do atual Museu Paraense
Emílio Goeldi em Belém, de 1894 a 1907, seria implacável com seus antecessores,
delimitando uma "espécie de marco separativo entre o passado e futuro do Museu"
(Goeldi, 1894: 375), que fora fundado por Domingos Soares Ferreira Penna, nos
anos de 1870.
De fato, transformando a instituição em um Museu científico característico do
final do século passado, Goeldi propunha que o Museu Paraense se dedicasse "ao
estudo, ao desenvolvimento e à vulgarização da História Natural e Etnologia do
Estado do Pará e da Amazônia em particular e do Brasil, da América do Sul e do con-
tinente americano em geral'"^.
Se, para isso, o diretor do Museu Paraense tinha sua instituição bem equipada
com os já então imprescindíveis Jardins Botânico e Zoológico e sua revista científi-
ca - o Boletim do Museu Paraense - no entanto, as mesmas imagens dos palácios
das ciências vitorianos, que dançavam nas cabeças dos homens de museus nas
colônias inglesas, como dizia Sheets-Pyenson (1988), também povoavam a mente de
Goeldi.
66 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

Para introduzir melhoramentos em seus jardins, Goeldi escolheu formas como


a do Lago Maggiore da Itália para o lago das aves aquáticas, do Mar Negro para os
vegetais aquáticos e encomendou em Paris, para o ornamento dos viveiros, cobertu--
ras de arames iguais às do Parque de Saint-Germain (Goeldi, 1896).
Sua concepção de museu era claramente explicitada através de discussões
sobre os problemas de espaços para o armazenamento de coleções. Goeldi, que por
vezes se dizia tentado a construir um grande edifício para o seu Museu, cedia à tenta-
ção e optava pelo "sistema de pavilhões" constituídos por edifícios mais simples. Em
nosso entendimento, seus argumentos tinham um maior alcance. Estes se relacio-
navam com a visão de Goeldi em favor de uma futura especialização do Museu. Não
mais se tratava de subdividi-lo em outros museus específicos, mas sim de criar novos
"institutos de pesquisa":
"Obtendo com o tempo cada uma das seções que atualmente compõem o Museu seu
pavilhão próprio surgindo aqui um 'Instituto Botânico' acolá um 'Instituto Mine-
ralógico-Geológico' e mais um 'Instituto Etnográfico' de bom grado sacrificaria eu
a idéia de um único edifício monumental novo" (Goeldi, 1902: 108).
Mas ele não disporia de tempo para construir esses institutos. Goeldi voltou
para a Suíça, em 1907, e o Museu, que já existia antes de sua chegada, sobreviveria
também a sua saída, apesar da série de dificuldades relacionadas à situação econô-
mica do estado, diretamente dependente da exportação da borracha, então já em crise
irreversível.
Outros naturalistas estrangeiros radicados no Brasil sucederam Goeldi na
direção do Museu,, mas também não implementaram seus planos: Jakob Hüber,
botânico, de 1907 a 1914; e Emilia Snethlage, zoóloga, de 1914 a 1922. A alemã
Maria Emilia Snethlage, doutora em Filosofia Natural, assistente de Zoologia no
Museu de Berlim, especializada em ornitologia, foi a primeira mulher cientista a
dirigir um Museu no Brasil e a trabalhar na Amazônia (Lopes, 1992: 90-107).
Outro estrangeiro a dirigir um museu no Brasil foi Hermann von Ihering. As
origens do seu Museu Paulista nos remetem a uma antiga coleção particular, bastan-
te conhecida na cidade de São Paulo do fim do século pelo nome de "Museu Ser-
tório". A partir desse núcleo inicial, o Museu foi organizado a princípio anexo à
Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo por iniciativa do geólogo norte-
americano Orville Derby (Figueirôa, 1992).
Derby oferecera a direção da seção de Zoologia da Comissão e a curadoria
destas coleções a Ihering, mas, como, ao que parece, Ihering insistiu na direção de
um Museu de pronto, o própio Derby esclarece explicitamente, em sua correspon-
67 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

dência particular ao seu antigo colega do Museu Nacional, os motivos da fundação


desse Museu.
Sua iniciativa obedecia acima de tudo ao desejo de "ajudar um colega que se
supunha estar necessitando de um tal serviço", e não exatamente a nenhuma outra
demanda de caráter mais institucional. Aliás, alegava que o governo paulista
considerava o museu um "elefante branco", com o que ele concordava, e que apenas
uns poucos naturalistas da Comissão Geográfica e Geológica tinham interesse na
vinda de Ihering, para assumir a organização de tais coleções
Ihering terminou por aceitar as condições de Derby, pelo menos a princípio,
mas, uma vez constituída a seção zoológica da Comissão Geográfica e Geológica de
São Paulo, logo no ano seguinte o Museu Paulista se tornaria uma instituição autô-
noma e Ihering o dirigiria por 22 anos, de 1894 até 1915.
Esse ajfair sobre a criação do Museu Paulista tem um significado fundamen-
tal para uma compreensão mais ampla dos processos de institucionalização das
ciências no país. A esses processos somaram-se as iniciativas de parte do Estado
brasileiro em criar espaços institucionais, iniciativas claramente pessoais e indivi-
duais de seekers, que buscavam a segurança de espaços institucionais que lhes
garantissem salário e suporte (financeiro e de infra-estrutura) para a realização de
suas pesquisas e a construção de suas carreiras.
Ihering, que não ambicionara só um Museu provincial, começou a construir seu
sonho, que era o de um Museu Sul-Americano, em função de seus próprios trabalhos
de dimensões continentais. O Regulamento do Museu Paulista não deixava margens
para dúvidas:
"O caráter do Museu em geral será o de um Museu Sul-Americano, destinado ao
estudo do reino animal, de sua história Zoológica e da História Natural e cultural do
homem. Serve o Museu de meio de instrução pública e também de instrumento
científico para o estudo da natureza do Brasil e do Estado de São Paulo, em
particular"
Inteiramente a par das discussões internacionais da época sobre os diferentes
esquemas de classificação de coleções de História Natural, Ihering era um adepto da
separação das coleções de estudo daquelas de exposição, princípio que adotou des-
de o início da organização do museu (Ihering, 1895: Vol. I, 9-31, 20).
Estas coleções de estudo seriam de fato seu principal interesse, particularmen-
te aquelas de moluscos sul-americanos, e, embora o Museu não fosse regularmente
dividido por seções, as coleções zoológicas seriam aquelas que mais se destacariam,
seguidas das coleções etnográficas e dos inventários botânicos. Além das coleções
1 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.
68

de estudo, outra das preocupações centrais de Ihering foi manter o caráter científico
da Revista do Museu Paulista.
Como F. A. Barthe, curador do British Museum, que, em sua viagem de
levantamento dos Museus vinculados ao Império Britânico, dividiu os museus em
metropolitanos e coloniais, ou L. V. Coleman, que agrupou os museus latino-ameri-
canos, em nacionais, provinciais, universitários, escolares e particulares (Bather,
1895: 193-239; Coleman, 1939), Ihering também propôs sua tipologia de Museus,
após uma viagem à Europa exatamente para estudar os "progressos e a organização"
dos diferentes tipos de museus. Ele distinguiu três grupos de Museus, baseados em
suas coleções científicas: museus centrais, provinciais e especializados (Ihering,
1907: 431-49).
"Museus Centrais" seriam apenas os das grandes capitais dos principais países
da Europa, que como tais só se manteriam se conseguissem sair da sua então situação
crítica, por meio de uma reorganização completa. Os Museus das Províncias, dos
Municípios e das Universidades caracterizavam-se em geral por não terem planos
muito definidos de pesquisa e, quanto aos museus especializados, apesar de serem em
número limitadíssimo, eram os que em sua opinião melhor correspondiam às exi-
gências da ciência. Ihering, criando uma polêmica com o Museu Nacional do Rio de
Janeiro, dizia existirem na América do Sul apenas dois Museus Especializados e de
excelência científica: o seu em São Paulo e o de Goeldi na Amazônia. E propunha que
seus exemplos fossem seguidos.
Duvidando que os grandes Museus fossem capazes de acompanhar as modifi-
cações que o desenvolvimento da ciência exigia, declarava que o futuro seria dos
Museus Especializados.
E aí partia para o que hoje nos soa um pouco estranho: a defesa de um "Museu
de Moluscos". A bem da verdade, defendia mesmo e valorizava a sua especialidade,
que considerava, até então, bastante injustiçada pela ciência dos museus:
"Um dos grandes grupos do Reino Animal, que é o mais descuidado em todos os
Museus, é o dos moluscos, que em geral entregam-se todas as classes a um único
especialista que às vezes ainda tem de se ocupar das conchas fósseis (seu caso)
enquanto para os insetos por exemplo já existem especialistas distintos para Lepi-
dópteros, Coleópteros etc. É excusado dizer que é absolutamente impossível a um
naturalista estudar ao mesmo tempo os moluscos terrestres, de água doce e do mar,
as lesmas tão bem como os Nudibranchios, os Cephalopdes e ainda os Pteropodes, não
falando dos moluscos fósseis... É só um Museu dedicado aos Moluscos que será capaz
de executar trabalhos dessa ordem" (Ihering, 1907: 445-6).
69 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

O que de fato Ihering advogava era a necessidade da extrema especialização


dos Museus, acompanhando a especialização cada vez maior das ciências de seus
dias.
O Museu Paulista nunca se tornou exatamente um Museu de Moluscos Sul-
Americano, como queria Ihering, embora tenha mais do que nenhum outro Museu se
especializado no ramo. A especialização das ciências não gerou tais tipos de museus
e ao contrário terminou por acentuar-lhes as crises. Os Museus que se mantiveram
de modo geral por todo o mundo foram exatamente aqueles grandes e complexos
Museus, muito talvez em função do reconhecimento de suas tradições de pesquisa.
Em função de uma série de questões de cunho político, inclusive a Primeira
Guerra Mundial, Ihering deixaria o Museu Paulista em final de 1915. Na década de
1930, as coleções zoológicas reunidas fundamentalmente à época de Ihering, que
eram talvez as maiores da América do Sul, quanto à fauna neotrópica - cerca de
16.000 aves, 4.000 mamíferos, 3.000 peixes, 2.000 ofídios e outros répteis, 120.000
insetos e 17.000 moluscos passaram a constituir, se não o Museu que queria
Ihering, pelo menos um Museu Especializado: o Museu de Zoologia, hoje incorpo-
rado à Universidade de São Paulo. Assim como o Museu Nacional e o Museu Goeldi,
o Museu Paulista também sobreviveu até hoje, tornando-se atualmente um Museu
exclusivamente dedicado à História, especialmente à de São Paulo, comemorando
este ano o centenário de sua inauguração pública.

Considerações finais

o traço marcante, presente em todos os depoimentos dos estrangeiros que


estiveram no país no século passado sobre o Museu Nacional, pareceu apontar no
sentido de uma decepção.
O Museu Nacional definitivamente nunca foi o que esperavam dele.
O que sintetiza muito bem essa posição dos naturalistas estrangeiros em rela-
ção ao Museu, também muitas vezes presente na historiografia brasileira, é, em nos-
sa opinião, um dos sentidos que Flora Süssekind atribui à frase "O Brasil não é longe
daqui", retirada de uma canção alemã sobre a imigração, que serve de título para sua
obra. Para Flora Süssekind, essa frase pode ser entendida como "uma observação
feita por alguém já no país em questão e que não reconhece nele a paisagem anun-
ciada" (Süssekind, 1990: 21).
70 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

Os naturalistas estrangeiros conviviam nos museus europeus e tinham suas


concepções acerca das funções que cabiam aos museus dos novos mundos. Os
naturalistas tinham "modos de ver, sabidos de cor diz Flora Süssekind. Esperavam
encontrar aqui um museu completo, que reunisse fundamentalmente os produtos
locais e que em certa medida lhes facilitasse o trabalho, como, por exemplo, pôde
fazer o pintor Debret ou fora um motivo de alegria para os naturalistas britânicos,
quando souberam da criação de um Museu na porta da Floresta Amazônica.
Debret, que esteve no Brasil entre 1816el831, nem sempre precisou enfrentar
as agruras das selvas brasileiras para fazer seu trabalho, pois pôde desenhar a partir
das peças depositadas no Museu Nacional, máscaras, vestimentas, instrumentos,
armas e mesmo cenas de combates entre indígenas, que ele nunca pôde ver. Este pro-
cedimento, regular à época, não só é mencionado pelo próprio Debret, como também
Gonçalves de Magalhães, em uma notícia sobre o livro de Debret, que estava sendo
publicado em 1836, diz na revista Nitheroy que "todas as armas de guerra e ins-
trumentos bélicos foram fielmente copiados dos naturais, que se acham no Museu do
Rio de Janeiro, assim como mantos de penas, cocares, capacetes e mais adornos
selvagens... E a vista destas litografias pode o Zoologista fazer uma perfeita idéia do
que é um selvagem dos bosques do Brasil". "Para nossa sorte" assim pudemos ter
uma idéia de algumas peças do acervo inicial do museu, tais como Debret as viu à
época (Magalhães, 1836: 187).
Quando da criação do Museu Paraense, o Diário do Gram-Pará, de 12/7/1872,
publicou a seguinte notícia: "A Província do Pará é o paraíso dos zoólogos e princi-
palmente dos ornitólogos; e isto basta para se compreender a satisfação que tiveram
os sábios do Museu Britânico e o sr. Layard (Cônsul Britânico no Pará) ao saberem
que aqui se inaugurava um Museu onde dentro de poucos anos se poderão encontrar
reunidos os mais completos e variados espécimes do reino animal, poupando assim
aos naturalistas as fadigas, os perigos e grandes dispêndios nas diligências de irem
procurá-los nas florestas e desertos do interior".
Diferentemente do que esperavam os estrangeiros, o que se intencionou criar
na capital do Império foi sempre um Museu nos moldes europeus, completo sim, mas
de amostras que representassem o mundo todo, um símbolo do urbano, da civilização.
Mesmo nossa historiografia nunca entendeu o que fazem até hoje múmias egípcias
no Museu Nacional.
Agassiz afirma que o Rio de Janeiro foi durante todo o século XIX o alvo
principal das expedições científicas de franceses, ingleses, alemães, russos, ame-
ricanos, o que poderia ter causado uma diminuição no interesse científico sobre esta
71 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

província, mas dava-se justamente o contrário na sua opinião. "Precisamente porque


os espécimes descritos ou figurados na maioria dos relatos de viagens provinham do
Rio de Janeiro e de suas cercanias, tornava-se indispensável que todo museu desejoso
de ser completo e exato possuísse exemplares originais dessas localidades e pudesse
verificar as descrições das espécies indicadas" (Agassiz & Agassiz, 1975: 33).
Os naturalistas brasileiros conheciam as espécies do Rio de Janeiro, viajavam
em seus arredores e mesmo Ladislau Netto passou a buscar espécies novas no mer-
cado, depois dos conselhos de Agassiz. Mas seus interesses científicos, tanto quanto
os dos estrangeiros, estavam voltados para a busca de exemplares originais, para a
descoberta de novas espécies, de novos lugares.
Ferdinand Denis, que esteve no Brasil nas primeiras décadas do século
passado, no que nos parece uma exceção, colocou em termos bastante "simples" a
questão de como diferentes olhares enxergavam diferentes "invisíveis". Disse Denis:
"Certo viajante observou que entre as curiosidades do Museu Nacional do Rio de
Janeiro foi colocado um cisne e um pintarroxo. A coisa é muito simples e os brasi-
leiros teriam muito o que falar se notassem os pássaros vulgares de suas campinas que
conservamos em nossos museus" (Denis, 1980: 409). Se retomamos o sentido que
Pomian (1984: 51-86) atribuiu às coleções de qualquer tipo de museu, de unir "o
mundo visível e o invisível", é possível entender que o invisível não poderia estar no
mercado de peixes, como queria Agassiz. Não era a todo lugar que se podia chamar
de Brasil, de país de natureza exuberante e de civilizações indígenas de costumes
peculiares. Para os moradores da Corte, da sede do Império, este Brasil não era longe
dali, mas seguramente não era ali...
Nesse estudo sobre a institucionalização das Ciências Naturais no Brasil no
século XIX, nesses espaços institucionais que especialmente abrigaram esse pro-
cesso - os Museus de História Natural deparamos constantemente com esse olhar
dos naturalistas estrangeiros, que, de passagem pelo Brasil, nos legaram uma visão
de nós mesmos, nem sempre coincidente com aquela que cada vez mais vimos re-
cuperando nos densos volumes de metros cúbicos das estantes esquecidas de nossas
bibliotecas, museus e arquivos.
Praticamente por todo o século XIX, fomos obrigadas pelo rigor histórico a nos
deter sobre tais visões, contestando-as, corroborando-as ou, na maioria dos casos,
contextualizando-as, como o recomendam as tendências historiográficas atuais. Para
o final do século passado, o mesmo rigor nos levou a procurar identificar quais foram
os ideais de museus que alguns desses naturalistas, que desenvolveram suas carreiras
científicas no país, imaginaram criar.
72 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

Buscando sua inserção no mundo civilizado, no movimento internacional dos


museus, na comunidade científica européia e americana, os diretores dos Museus
brasileiros buscaram seus referenciais, quer para seus trabalhos em seus campos
específicos de conhecimentos científicos, quer para suas idéias museológicas, nos
seus países de origem, onde estudaram ou naqueles que se constituíram nos Museus
e centros de investigações mais afamados do século passado.
Aos Museus de Ihering, Netto e mesmo de Goeldi não se ajustava a categoria
de "coloniais", com que Bather caracterizou os museus do Império Britânico e que
Sheets-Pyenson tomou de empréstimo em sua análise dos museus canadenses,
argentinos e australianos. Nem, tampouco, às sugestões usuais à época, de que
museus menores se concentrassem na exposição de materiais locais, fazendo com
que os habitantes conhecessem seu próprio país e permitindo aos especialistas estran-
geiros estudar com facilidade o país em questão.
Buscando a especialização científica na Amazônia e em São Paulo e a globa-
lização das ciências no Rio de Janeiro, nossos diretores de museus, que concebiam
a ciência como universal e analisavam as diferenças entre os países como uma me-
ra questão de fases, estágios a serem ultrapassados, normatizavam suas práticas
para mais rápido superar esses processos. E se, para tanto, tiveram referências, quer
no Muséum de Paris, no British Museum ou no Smithsonian, no anseio de exata-
mente buscarem acompanhar o desenvolvimento das suas ciências, mesmo em nível
dos espaços institucionais, para onde as mudanças das idéias e dos momentos sociais
transferiram o prestígio internacional, também se firmaram cada vez mais no próprio
país, construindo seu próprios projetos de dimensões regionais, continentais e
mundiais.
Da análise do que foram os ideais expressos pelos diferentes diretores dos
museus brasileiros em suas mediações práticas, é possível perceber que esses se
materializavam em um incansável reunir e classificar coleções, realizar excursões,
atender solicitações dos órgãos públicos, solicitar verbas, ampliar edifícios inade-
quados, ministrar cursos e palestras, estabelecer intercâmbios em nível nacional e
internacional, publicar periódicos, estabelecer prioridades de investigação, disputar
espaços de profissionalização, travar embates políticos no bojo do processo de
consolidação da comunidade científica no país.
Assim, do ponto de vista dos papéis desempenhados pelas instituições museo-
lógicas em nível internacional, como outros museus que se disseminaram por todos
os continentes, esses museus brasileiros, a despeito de suas dificuldades, desempe-
nharam especificamente suas funções de centros de pesquisa, não se restringindo
apenas a atuar como repositários de objetos, mas buscando firmar-se pela relevância
73 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

de sua produção científica e de sua pesquisa experimental, ao lado das funções de ca-
talogação e classificação das coleções. Especializaram-se na tentativa de não ser
superados e exerceram um papel pioneiro na institucionalização de áreas de conhe-
cimento no país, como a Paleontologia, Antropologia e mesmo Fisiologia Experi-
mental, rompendo a mesma tradição naturalista que inauguraram enquanto institui-
ções no país.

Abstract: During the 19th century the National Museum ofRio de Janeiro and other
Brazilian museums established their contribution to the process of institucionalization
of Natural Sciences in the country. These institutional loci, constituted especifically to
gather collections and to allow the advancement oftaxonomic and systematic studies,
have witnessed not only the existence ofscientific activities in Natural History in the last
century in Brazil but also demonstrated that the quantity, the quality and the continuity
of their scientific manifestations have surpassed many expectations, Thispaper comments
upon some aspects ofthe different world vision, conceptions and institutional models
that coexisted in Brazilian museums, from the point ofview offoreign naturalists who
have visited them or have worked there,
Key-words: natural sciences - museum - taxonomy - institutional models
74 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

Notas

1. Instrucção para os viajantes e empregados nas colônias sobre a maneira de colher,


conservar e remetter os objectos de História Natural. (Arranjada pela administração do
Real Museu de História Natural de Paris. Traduzida por ordem de Sua Majestade Fidelis-
sima, expedida pelo excellentissimo Ministro e Secretario d'Estado dos Negócios do Rei-
no do original Francez impresso em 1818. Augmentada, em notas, de muitas das ins-
trucções aos correspondentes da Academia Real das Sciencias de Lisboa, impressas em
1781; e precedidas de algumas reflexões sobre a História Natural do Brazil, e estabeleci-
mento do Museu e Jardim Botânico em a Côrte do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, na
Impressão Régia, 1819. Ivi + 77p.
2. Livro dos Ofícios do Museu Nacional e Imperial do Rio de Janeiro, desde o ano de 1819
até 4 de fevereiro de 1842. L. O. Mus. Nac. 1/05/1825: 12.
3. Documentos Museu Nacional 17, de 25/11/1822, Pasta 1.
4. Relatórios do Museu Nacional dos anos de 1830 e 1831.
5. Foram os primeiros diretores dessas seções, respectivamente: Dr. Emilio Joaquim
da Silva Maia; Luis Riedel, naturalista alemão que havia participado da Expedição
Langsdorff; o próprio Custódio Alves Serrão e Antonio Araújo Porto Alegre.
6. Documentos Museu Nacional, 17/1/1851, Pasta 4.
7. O Almanaque Laemmert para o ano de 1855 o menciona como estabelecido na rua
Fresca, 13,1° andar com o negócio de História Natural. Descourtilz, antes de ser con-
tratado pelo Museu, era seu fornecedor dos produtos de História Natural que também
comerciava. Os dealers do mercado de produtos de História Natural tiveram uma grande
contribuição na constituição das coleções dos museus de todo o mundo. No caso do Bra-
sil, os negócios de exportação de História Natural parecem inclusive ter tido uma impor-
tância econômica relevante em meados do século, a julgarmos pelas informações de
¥AááQx(op. cit), que assinala em um quadro sobre os artigos exportados do Rio de Janei-
ro em 1841/42 os valores da exportação de espécimes de História Natural à frente de ou-
tros produtos como feijão, algodão e cacau.
8. Documentos Museu Nacional, 102, 111, 128, 138, 146, 148, Pastas 6 e 8; e 55,
Pasta 7.
75 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

9. Documentos Museu Nacional, 19, 54, 56, Pasta 7.


10. Documentos Museu Nacional, 134, Pasta 8. Baseamo-nos aqui na cópia da página
501 do livro de Agassiz, A Journey in Brazil, traduzida no Aviso de 18 de junho de 1868,
que o Ministro da Agricultura encaminhou a Ladislau Netto pedindo seu parecer.
11. Documentos Museu Nacional, carta de 27/5/1865, Pasta 7. Ver também: carta de
Burlamaque, 4/01/1865. Annual Report of the Board of Regents of the Smithsonian
Institution, 1865.
12. Documentos Museu Nacional, 138, Pasta 8.
13. Arquivo Nacional. Documentação do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas. Museu Nacional. Pacotes: IE^-64 a IE^-77 (1871 a 1889). IE^-64, 30/11/1872.
14. Regulamento do Museu Paraense, 1894: 22.
15. (Corresp. Derby a Ihering, SP, 12/10/1892,23/1/1893). Agradeço a Silvia Figueirôa
a cessão dessa valiosíssima correspondência enviada de Derby para Ihering de 29/1/1886
a 17/1/1915, em um total de 109 cartas, parcialmente inéditas, hoje arquivadas no Hand-
schriftabteilung (Darmm Smlg) da Staatsbibliotek Preussischer Kulturbesitz, em Berlim.
16. Regulamento do Museu Paulista do Estado de São Paulo. São Paulo. Typ. do Diário
Oficial (artigo 2% 1894:4).

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77 Lopes, M. M., Imaginário - USP, n. 3, p. 59-78, 1996.

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Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Introdução à
Herpetologia do Brasil
*

O contexto científico e político da


expedição bávara ao Brasil de
Johann Baptist von Spix
& Johann Georg Wagler
R E. Vanzolini**

Resumo: Acompanhamento crítico de uma das expedições científicas mais famosas do


século XIX, a de Spix e Martius (1817-1820), detendo-se principalmente em seus resultados
zoológicos, referentes a répteis e anfíbios. Inicia por uma discussão dos naturalistas
envolvidos no trabalho, sua formação, patrocínio, atuação no campo e, posteriormente, na
redação dos resultados. Refaz, em seguida, o itinerário dos naturalistas do Rio de Janei-
ro a Belém do Pará, discutindo o tempo transcorrido, as condições de transporte, saúde e
de trabalho, o material colhido, as dúvidas sobre o resultados.
Palavras-chave: herpetologia - naturalistas - Viagem pelo Brasil - Spix & Martius

O Systema Naturae de Lineu, que chegou à maturidade por volta de 1758, foi
o clímax da primeira fase da zoologia moderna, isto é, um catálogo profissional dos
animais conhecidos. Sua importância é comprovada por ter sido escolhido como o
fundamento da nomenclatura zoológica, mas também pelo grande número de tradu-
ções e adaptações áosystema e de obras gerais semelhantes (por exemplo, Lecépède,

* Fac-símile Reprints in Herpetology. Society for the Study of Amphibians and Reptiles, 1981 (com
autorização da Sociedade Patrocinadora). Tradução de Miriam L. Moreira Leite.
** Museu de Zoologia-USP.
80 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Cuvier) feitas no fim do século XVIII e início do XIX. O conhecimento de animais


despertou o apetite por outros, e a comunidade científica despertava para as oportu-
nidades apresentadas pelas viagens oceânicas extensas de exploração geográfica e
pela abertura dos continentes colonizados. Naturalmente, entre estes, a América do
Sul despertava muita curiosidade, aumentada por estar fechada a outras nações por
seus donos, Portugal e Espanha.
Inicialmente, Portugal tinha conservado o Brasil fechado apenas por razões
comerciais. Nos séculos XVI e XVII houvera grandes conflitos entre os países
europeus, principalmente França e Holanda, a respeito do domínio das costas da
América do Sul e do direito de aí comerciar. Depois, a descoberta de ouro e diaman-
tes no interior trouxe novas restrições. No Brasil, somente pessoas devidamente
autorizadas podiam residir nos distritos mineiros e mesmo essas poderiam ser
"exterminadas" (ou expulsas do território) sem aviso prévio. A situação piorou com
a Revolução Francesa. O vento de liberdade que fez soprar pelo mundo, coinciden-
temente com o despertar de sentimentos nativistas nas colônias, provocou revolu-
ções republicanas bem-sucedidas na América do Sul. A Coroa portuguesa, monar-
quia por direito divino, odiava e temia as idéias "modernas" sobre o que quer que
fosse; tanto que o ilustre Humboldt foi não só proibido de pôr os pés no Brasil -
estaria com a cabeça a preço, se tentasse.
Foi precipitada uma mudança nesse estado de coisas com a invasão de Portugal
pelos exércitos napoleônicos comandados por Junot. A corte, sob a proteção inglesa,
refugiou-se no Brasil, que foi elevado da condição de colônia para a de Reino Unido.
Do ponto de vista científico, isso teve duas conseqüências imediatas. Primeira,
a presença da corte no Rio de Janeiro implicou a presença de um corpo diplomático,
e muitos diplomatas ou eram interessados em ciência ou tinham interesse em
promover a visita de cientistas, tornando difícil a recusa de uma licença. Por exemplo,
o Conde Langsdorff, cônsul russo de 1813 a 1820, era um naturalista conhecido que
vivia há muitos anos no país e ajudou muitos colegas. Da mesma maneira, Saint-
Hilaire chegou em 1815 com o embaixador francês^
Uma segunda conseqüência da fuga da Corte Portuguesa para o Brasil foi que
Metternich nela enxergou uma possível arma a usar em sua cruzada contra o libe-
ralismo^. Conseqüentemente, arranjou um casamento de interesse de Estado entre D.
Pedro, o herdeiro aparente do trono de Portugal, Brasil e Algarves, e a Arquiduque-
za Leopoldina, filha do Imperador Francisco I da Áustria. A arquiduqueza era uma
pessoa culta, inteligente e sensível, que, apesar do persistente sotaque alemão,
tornou-se uma imperatriz amada e patriótica do Brasil.
81 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

No séquito da nova rainha havia um grupo importante de naturalistas de di-


versas partes do Império Austríaco: Natterer, Pohl, Mikan, Schott, Raddi. Por uma
especial combinação, havia também dois naturalistas bávaros, Johann Baptist von
Spix e Karl Friedrich Philipp von Martius. As fontes publicadas não esclareceram as
razões de sua inclusão; acho que foi porque o seu rei, Maximiliano da Baviera, era
sogro de Francisco da Áustria.

Os naturalistas
Johann Baptist von Spix^ (fig. 1) nasceu em Hõchastad-an-der-Aisch, Baviera,
em 9 de fevereiro de 1781, e morreu em Munique, em 15 de maio de 1826. Preten-
dia fazer uma carreira religiosa, mas, após dois anos num seminário teológico de
Würzburg, mudou para medicina e se formou em 1806. Foi para Paris, em 1809, pa-
ra se especializar em anatomia comparada, provavelmente no laboratório de Cuvier.
De volta a Munique, publicou uma longa crítica a todas as classificações zoológicas,
de Aristóteles a seus dias. Por causa desse trabalho foi indicado para curador do
museu da Academia Bávara de Ciências. Em 1813, publicou nos Denkschriften da
Academia um artigo sobre primatas, principalmente sobre algumas espécies do Novo
Mundo. Este artigo parece ter tido pouca repercussão; pelo menos, não consegui
encontrar dele nenhuma citação substantiva. Então, em 1815, Spix publicou sua
Cephalogenesis, pequena monografia sobre anatomia e embriologia comparada do
crânio dos vertebrados, que é citada de maneira neutra em algumas fontes do início
do século XIX (como a Erpétologie Générale de Duméril, Bibron e Duméril).
Em 1817, Spix estava nesse ponto quando foi escolhido para juntar-se à
expedição para o Brasil: 36 anos, boa formação, posição profissional respeitável e
algumas publicações sólidas, se não brilhantes. Era, sem dúvida, uma escolha natural
para a metade zoológica da tarefa.
Não se dava o mesmo com Karl Friedrich Philipp von Martius (fig. 1), o
companheiro que lhe designaram. Nascido em Erlangen, em 17 de abril de 1794,
faleceu em Munique, em 13 de dezembro de 1868. Martius, o filho de um farma-
cêutico, estudara medicina em sua cidade natal, e se formara em 1814. Sua disserta-
tio inauguralis era sobre as plantas dos jardins botânicos de Erlangen; pouco depois
(1817) publicou (sem dúvida, como decorrência) a flora criptogâmica da região.
Entrou na Academia Bávara como aluno em 1814, e foi nomeado assistente em 1816. A
expedição para o Brasil foi seu primeiro emprego profissional.
83 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

gráfica, embora eminentemente dogmática (depois de um ou mais dias entre deter-


minado grupo de índios, Martius escrevia: "estes índios são"...), é uma fonte insubs-
tituível sobre uma série de tribos. As referências a animais, contudo, têm geralmente
uma veia romântica, lírica, no caso dos pássaros e das borboletas, ou temerosa e
trêmula sobre jacarés monstruosos. São poucas as notas específicas de história
natural e muito raramente é possível ligar espécimes a lugares ou situações - um
aspecto em que Wied, por exemplo, é excelente.
A Reise foi publicada em três volumes de texto, um atlas e um apêndice.
Supostamente Spix colaborou no volume, o único publicado em vida, mas o esti-
lo é evidentemente de Martius. Isso é compreensível: Spix estava consciente da
proximidade da morte e esforçava-se ao máximo para terminar os textos zoológicos.
Uma palavra final sobre di Reise refere-se à competência de Martius como
botânico. Não esqueçamos que ele tinha 23 anos quando se decidiu por esse campo
e que sua experiência botânica prévia limitava-se à flora da Europa Central. Duran-
te suas viagens no Brasil desenvolveu-se em muitas direções. Não é preciso comentar
sua coordenação e participação direta na Flora Brasiliensis. Menos conhecido é o
fato de que foi o primeiro naturalista a compreender a natureza fundamental dos
domínios morfoclimáticos intertropicais do Brasil. Algumas de suas definições
(como silva horrida, aestu aphylla, das caatingas semi-áridas) são clássicas, mas,
mais do que isso, percebeu que os habitantes tinham uma apreciação aguda dãs fades
das principais formações vegetais. Assim, embora nosso assunto seja Spix, Martius
nem sempre pode ser deixado de lado. A amizade entre eles foi desse tipo, durante
a viagem (como somente uma leitura dãReise pode fazer justiça) e ainda mais depois
da morte de Spix, quando Martius cuidou com todo o zelo da herança intelectual do
amigo.

O itinerário
É evidentemente necessário compreender os caminhos seguidos por Spix e
Martius em suas viagens, do ponto de vista prático da identificação de localidades-
tipo. Contudo, é uma necessidade menor, se comparada à de seguir a percepção que
tiveram dos principais tipos de vegetação. O texto da Reise é detalhado, e o mapa
que a acompanha, grosseiro como não pode deixar de ser, tão repleto de localidades
que torna uma tarefa imediata passar a limpo o itinerário. É notável que, com a única
exceção da estrada entre Rio de Janeiro e São Paulo, por razões políticas que virão
84 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

explicadas abaixo, os velhos caminhos são usados até hoje; a maioria agora está
debaixo de asfalto ou concreto.
Apesar de trabalho prévio de outros autores sobre este fácil itinerário, preferi
listar todas as localidades^ e identificar especificamente aquelas necessárias para a
preparação do mapa (fig. 2), ou outras merecedoras de menção. No que segue, utilizo
nomes correntes, omitindo comentários sobre ortografia imprópria ou obsoleta e
mudanças de nomes; estas serão discutidas somente quando tiverem uma importância
específica.

Rio de Janeiro e vizinhança


Spix e Martius chegaram em 15 de julho de 1817 ao Rio e lá ficaram até 8 de
dezembro. Naturalmente, perderam muito tempo em contatos administrativos e
sociais, mas também, como qualquer outro viajante contemporâneo, fizeram coletas
significativas nas florestas dos arredores da cidade.

Fazenda Mandioca
Durante sua estada no Rio, Spix e Martius, como todos os naturalistas euro-
peus contemporâneos, visitaram a Fazenda "Mandioca", propriedade do Barão
Langsdorff, o cônsul russo e por sua vez um bom naturalista, nas fraldas da Serra dos
Órgãos, ao norte do Rio. Foram um pouco além da fazenda, chegando perto de Três
Rios, próximo ao Rio Paraíba. Não é possível avaliar exatamente a extensão da
viagem, mas, aparentemente, levou entre uma e duas semanas; foi o primeiro contato
real com a Floresta Atlântica.

Rio de Janeiro a São Paulo


A política colonial portuguesa ligava as principais cidades brasileiras direta-
mente a Lisboa, não entre elas. Assim, nessa época, o caminho entre o Rio e São Pau-
lo era complicado: do Rio seguia-se pela costa e em Itaguaí subia-se a Serra do Mar,
86 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

entrando em São Paulo perto de Bananal e alcançando o Vale do Paraíba (a rota


natural) somente em Lorena. A viagem levou de 8 a 31 de dezembro de 1817, e apa-
rentemente não houve muita coleta. Foi o último contato dos naturalistas com a faixa
atlântica do Sudeste brasileiro.

São Paulo a Ipanema


Os produtos minerais do Brasil, como foi dito, eram as principais preocupações
dos naturalistas, e principalmente de Martius. Por isso, sua primeira excursão ao
interior foi à fábrica de ferro de Ipanema, perto de Sorocaba, em São Paulo. É uma
área de vegetação mista, com subtipos mais úmidos e mais secos de florestas e al-
guns enclaves de formações abertas. De Sorocaba, Spix e Martius visitaram Porto
Feliz, o início do caminho fluvial para o Mato Grosso. Voltaram a Sorocaba a fim de
empreender a próxima fase da viagem para Villa Rica (atual Ouro Preto), centro da
região de mineração do ouro em Minas Gerais. É impossível dizer exatamente quanto
tempo os naturalistas ficaram na área de Sorocaba, pois as datas no diário são in-
compatíveis: teriam deixado São Paulo em 9 de janeiro e Sorocaba no dia 10. A
próxima data explícita, 14 de fevereiro, refere-se a Campanha, no estado de Minas;
provavelmente saíram de Sorocaba em 30 de janeiro.

Sorocaba a Ouro Preto


Spix e Martius tomaram o caminho mais direto, passando ao norte da cidade de
São Paulo, entrando em Minas Gerais, em Camanducaia, e prosseguindo para Ouro
Preto. Chegaram em 28 de fevereiro, atravessando a Serra da Mantiqueira, quase to-
da coberta de florestas e de formações abertas da Serra do Espinhaço. De Ouro Pre-
to, fizeram uma outra viagem (31 de março a 21 de abril de 1818) para visitar um
grupo de aldeias indígenas (coroados, em sua maioria) em volta do que são hoje as
cidades de Visconde do Rio Branco e Guidoval. Nessa época, essa área estava co-
berta de floresta. Também fizeram duas pequenas excursões (de extensão não decla-
rada) durante a estada em Ouro Preto: uma às vizinhanças de Congonhas, a fim de
visitar uma mina de bromato de chumbo, e outra para o norte, na Serra do Caraça.
87 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Viagem aos terrenos diamantinos


A próxima parada planejada foi o famoso Tejuco (atual Diamantina), centro da
mineração diamantífera do alto Jequitinhonha. Desta vez, os viajantes fizeram um
leve desvio, evitando a área que já fora visitada ao norte de Ouro Preto e seguindo
através de Sabará e Caeté, e depois, pelo flanco oriental da Serra do Espinhaço, para
o Serro. Chegaram a Diamantina presumivelmente a 14 de maio de 1818, tendo
deixado Ouro Preto no primeiro dia do mesmo mês. Ficaram na área durante três
semanas, partindo a 10 de junho para Minas Novas. Então a região era parcialmente
coberta de florestas, mas com enclaves de formações abertas e fundas cicatrizes de
exploração humana.

Minas Novas
Atingiram esta área depois de algumas semanas de viagem direta, descendo o
vale do Rio Araçuaí para Minas Novas, Araçuaí e Virgem da Lapa (então São Do-
mingos). Essa é uma área extremamente complicada no que se refere à vegetação, e
Martius apresentou um valioso relatório sobre ela. Não ficaram lá por muito tempo,
mas continuaram logo (aparentemente na primeira semana de julho) para o São
Francisco.

Viagem para o São Francisco


Spix e Martius, depois de deixar Virgem da Lapa, cortaram em primeiro lugar
para o sudoeste, para alcançar a estrada Diamantina-Montes Claros, perto de Ita-
cambira. Na parada de quatro dias em Montes Claros, coletaram alguns fósseis em
cavernas. A próxima parada foi em Brasília de Minas (então Contendas), onde
ficaram umas três semanas, fazendo coletas gerais. Atingiram o São Francisco numa
fazenda do outro lado da foz do Rio dos Pandeiros. Essa também é uma área com-
plicada, com uma mistura de cerrados do tipo savana e caatingas semi-áridas, e outras
/ac/^í-especiais nas várzeas. Spix ficou coletando enquanto Martius prosseguiu para
Januária, para atender uma pessoa doente. Logo Spix se reuniu a Martius, e ficaram
coletando intensivamente até o fim de agosto de 1818.
87 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Viagem ao Vão do Paraná


e de volta ao São Francisco
Por mais que Spix e Martius desejassem visitar Goiás e descer o Tocantins até
o Pará, não podiam naquele ponto mudar seu itinerário; tinham de pegar na Bahia
cartas de recomendação indispensáveis para as províncias nortistas. Cruzaram os
cerrados de Januária até a fronteira goiana, mas não entraram na província, voltando
ao São Francisco rio abaixo, em Carinhanha. Deixando Januária, seguiram o caminho
de Goiás pelos cerrados para o famoso Vão do Paraná, um vale profundo pelo qual
flui o principal tributário do Tocantins. Não tenho certeza da localização da alfân-
dega ("registro") em que pararam, mas parece terem estado no lugar que aparece nos
mapas modernos como Serra das Águas (Vale de Santa Maria). Ficaram um dia na
vizinhança, retornaram ao São Francisco, viajando paralelamente ao Rio Carinha-
nha. A viagem levou cerca de 18 dias, através de belos cerrados. A primeira fase era
na província de Minas Gerais, a volta por Pernambuco (atualmente parte da Bahia).
Atravessaram o São Francisco de Carinhanha a Malhada, onde iniciaram a viagem
através das caatingas para Salvador.

Do São Francisco a Salvador


Spix e Martius antes foram a Caetité, onde chegaram em cinco dias. Encontra-
ram sinais de um ano de seca, mas nenhuma dificuldade real nessa primeira parte da
viagem. A próxima também foi através de áreas secas, mas o vale do Rio Brumado
estava verde quando lá chegaram depois de três dias. De Livramento do Brumado e
Rio de Contas (depois de uma excursão ao Pico das Almas) continuaram até Mara-
cás, sofrendo muito com a falta de água para os homens e os muares; depois, para o
vale do Paraguaçu, que atingiram em Santa Teresinha, esgotados pela rudeza da
travessia das caatingas. Ainda tiveram tempo de visitar alguns índios nas vizinhan-
ças e continuaram finalmente para São Félix e, então, por barco, para Salvador, lá
chegando em 10 de novembro.
89 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Estada em Salvador e viagem a Ilhéus


Os naturalistas ficaram na área de Salvador por um mês, mas, não encontran-
do remanescentes satisfatórios da Mata Atlântica, decidiram visitar a região de
Ilhéus, na costa sul da província. Embarcaram em 11 de dezembro de 1818 e
chegaram a Ilhéus no dia 13. Sua primeira excursão foi em canoa para a fazenda
Weyll, no Rio Itaípe, em Almada, uma localidade que Wied tornou famosa. Daí,
foram e voltaram por terra para Itabuna e voltaram a Ilhéus em canoa. A parte
seguinte da viagem foi novamente feita a pé, para o norte, pela praia até Itacaré na
boca do Rio de Contas, e além para Maraú e Barcelos. Daí, tomaram uma canoa até
Camamu, onde conseguiram lugar numa embarcação maior e voltar a Salvador. Toda
a viagem levou 31 dias.

De Salvador a Juazeiro
A primeira parte desta viagem, que começou em 18 de fevereiro de 1819, foi
realizada em embarcações até Cachoeira, onde Spix e Martius reuniram sua tropa de
muares e partiram, primeiro para o norte e depois para o noroeste, pelas caatingas,
para Queimadas e Senhor do Bonfim. A seca era intensa, os rios e poços estavam
secos.
Apesar da estação desfavorável, os viajantes não abandonaram seu propósito
de visitar o meteorito de Bendegó, perto de Monte Santo, uns 100 quilômetros a les-
te de Senhor do Bonfim. A viagem durou de 16 a 25 de maio e foi bem-sucedida:
não só viram a pedra, mas também coletaram diversos fósseis de mamíferos. Trinta
e nove dias depois de deixar Salvador, chegaram a Juazeiro, no São Francisco, a 29
de março.

De Juazeiro a Oeiras
Spix e Martius ficaram na margem direita, ao sul do Rio São Francisco, por
pouco mais de três semanas; em 21 de abril, atravessaram o rio para Pernambuco e
foram para Oeiras, que era então a capital do Piauí, pela via mais curta: através da
Serra dos Dois Irmãos, um pouco ao sul da atual estrada de ferro e ao longo do vale
90 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

do Rio Canindé. Voltaram, então, das caatingas para os cerrados. Chovia nas
caatingas do oeste de Pernambuco, e a viagem, que durou 13 dias, não foi difícil;
contudo, a malária estava maltratando os dois viajantes, que resolveram partir ime-
diatamente para São Luís do Maranhão.

De Oeiras para São Luís


Depois de oito dias de descanso e recuperação em Oeiras, em 11 de maio
partiram, tomando a estrada habitual para o Maranhão: seguindo primeiro de Oeiras
para o norte e, então, continuando nas terras altas, até Regeneração, uns 30 quilôme-
tros da confluência do Canindé com o Parnaíba. Aqui viraram de novo para o norte
e cortaram o terreno para chegar ao Parnaíba, no local da atual Teresina, onde
atravessaram o rio e continuaram através dos cocais diretamente para Caxias.
Tanto Spix quanto Martius estavam novamente doentes e tiveram de parar em
Caxias para se tratar. A parte seguinte da viagem foi mais fácil, por batelão fluvial
descendo o Itapicuru até a Baía do Arraial, onde se costumava atravessar a cavalo
para um dos braços de mar (Bacanga, neste caso) que separa São Luís do continente.
A viagem de Oeiras para São Luís levou um mês. Os viajantes continuaram em São
Luís até 20 de julho de 1819, tendo feito uma viagem intermediária à velha cidade de
Alcântara. Partiram por mar para Belém, onde chegaram no dia 25.

Belém e vizinhança
Spix e Martius ficaram em Belém até 21 de agosto. Evidentemente fizeram
muita coleta de material em volta da cidade e fizeram uma excursão subindo o Rio
Guamá, no leste do Pará.

De Belém a Manaus
Os naturalistas aparelharam um barco de 15 toneladas tripulado por oito índios
e uma escolta militar e subiram o Amazonas. Belém não fica no Amazonas: fica na
91 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Baía de Marajó, que é a continuação do Rio Pará. Este não é propriamente um rio, mas
uma série de baías drenando o Rio Tocantins e as terras a oeste dele. Para atingir o
Amazonas, de Belém, viaja-se para oeste baía acima, e da-se a volta para o norte ao
longo de um dos furos que constituem o limite ocidental impreciso da Ilha de Mara-
jó e que fluem para o Amazonas, próximo ao estuário. Para chegar à Baía de Marajó
a partir de Belém, pode-se tomar o caminho direto, que é perigoso para uma pequena
embarcação, dada a força das ondas, ou utilizar uma série de braços protegidos que
ligam o Guamá inferior ao estuário do Tocantins. Spix e Martius tomaram esta úl-
tima opção e viajaram através da mata da várzea, que sofre enchentes sazonais dos
rios e diárias das marés. Pararam em Breves, no estreito do mesmo nome, passaram
o estreito de Tajapuru e atingiram o Amazonas, abaixo de Gurupá. Subiram o
Amazonas da forma usual para embarcações pequenas, evitando os segmentos
diretos e desimpedidos, que permitem que o vento levante águas turbulentas,
preferindo os canais laterais estreitos e protegidos ("paranás" e "furos"). Entraram
assim na boca do Xingu, atrás da grande ilha de Urucuricaia, desembarcaram no
Porto de Moz, e depois continuaram paralelamente ao Amazonas, atravessando o
Furo de Aquiqui. Prosseguiram para Santarém, na embocadura do Tapajós, onde
pararam para descansar. A parada seguinte foi Parintins, onde fizeram boas coletas.
A região de Silves e de Itacoatiara também foi visitada. Atingiram Manaus três meses
e meio depois de deixar Belém.

O Solimões e Ega
A estada em Manaus foi curta ("alguns dias"), e incluiu uma rápida excursão
a Manacapuru, no Solimões, que Martius insistiu em chamar "Manacaru". Aqui
foram coletados dois grandes jacarés e foram preparados seus esqueletos; foi um dos
poucos casos em que as notas de viagem permitem que se associe espécime a loca-
lidade. Ao subir o rio, viram pela primeira vez a postura de ovos da Podocnemis
expansa na praia de Ajaratuba, perto da embocadura do Purus; teriam mais duas
oportunidades de ver a extração da gordura dos ovos. Pararam em Coari para um
rápido descanso, e fizeram algumas coletas na vizinhança. Contam que viram aí uma
família de jacarés brincando com a cabeça de um índio, morto dois dias antes pelo
maior dos animais. A próxima parada foi Tefé, provavelmente em 19 ou 20 de
novembro, pois a viagem de Manaus levou cerca de 17 dias. Na área geral do Lago
Tefé, os viajantes ficaram umas três semanas, e então, pela segunda vez desde sua
92 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

chegada ao Rio, separaram seus caminhos por algum tempo: Spix seguiu pelo
Solimões (e depois pelo Negro) e Martius percorreu o Japurá até onde é hoje ter-
ritório colombiano.

Viagem de Spix à fronteira peruana


Spix saiu de Tefé no dia 9 de dezembro de 1819 e subiu o rio, na época próxi-
ma ao máximo da enchente anual: as águas corriam rápidas, as margens desmo-
ronavam e eram abundantes as "pragas" (artrópodes sugadores de sangues). Ele se
deteve para coletas em Fonteboa, Tonantins, Santo Antônio do Içá e São Paulo de
Olivença. As provações do clima e a má saúde de Spix na ocasião combinaram-se
para tornar a viagem muito penosa. Chegou em Tabatinga em 9 de janeiro de 1820
e ficou no lugar por alguns dias. Em todo o Solimões a coleta foi muito boa. Na
baixada do rio, Spix esperou em São Paulo de Olivença durante oito dias por algu-
mas canoas mandadas previamente para as aldeias indígenas para coletar material
etnográfico. De São Paulo para o Içá, tomou o longo Paraná do Jacurapá, que corta
as várzeas ao norte do Solimões. Voltou ao rio principal em plena enchente e
continuou até Manaus, lá chegando em 3 de fevereiro.

Martius sobe o Japurá


Na subida do rio nada ocorreu até La Pedrera, a primeira aldeia colombiana
(a não ser alguns incidentes com os índios); ele encontrou aqui as primeiras cor-
redeiras, que tiveram de ser contornadas na sirga. Alguns dias depois, Martius parou
por três dias para descansar numa aldeia acima da embocadura do Miriti-Paraná. A
parada seguinte foi de novo numa aldeia, dos índios miranha, abaixo da embocadu-
ra do Irá. (Apesar de conhecer bem o Japurá, não consegui identificar um certo
número de localidades citadas por Martius.) Depois de 48 dias de viagem, Martius
chegou às corredeiras de Araracuara, um pouco acima da embocadura do Yari
(chamado então, em português, Rio dos Enganos). Não passava bem de saúde e
resolveu voltar. Teve de parar de novo na aldeia miranha para construir uma
embarcação e tratar da tripulação, muito atingida por malária e helmintíase. Esta
última estada entre os índios, que estavam voltando de uma guerra, causou um forte
93 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

e duradouro sentimento de repulsa em Martius, que partiu finalmente em 12 de


fevereiro. As corredeiras em La Pedrera foram passadas sem maiores problemas
(Martius aproveitou a oportunidade para visitar a colina próxima) e em 11 de março
chegou a Manaus.

Subida de Spix no Rio Negro


Martius queria muito visitar uma aldeia Mundurucu no Rio Canumã; subiu o
Madeira numa pequena canoa e entrou no canal natural que, sob diversos nomes
locais (Furo do Canumã, Rio Abacaxis, Paraná do Urariá, Paraná de Ramos),
converge para o Amazonas mais de 300 km para o leste. O Canumã entra nesse canal
pelo sul. Spix, tendo em vista a má saúde do companheiro, resolveu continuar ime-
diatamente. Pararam somente na missão de Maués (atualmente uma cidade) e to-
maram o Furo do Limão para retornar ao Amazonas um pouco acima do Parintins.
Aí encontraram coleções feitas para eles enquanto tinham subido o rio. De Parintins
continuaram para Óbidos, Santarém e Almeirim, onde pararam para visitar as colinas
atrás da cidade. Era a última parada; pelo Furo dos Arraiolos entraram nas águas de
Marajó e chegaram a Belém em 16 de abril de 1820, tendo ficado oito meses na
planície amazônica. Em 13 de junho embarcaram para a Europa.

A volta para a Europa


Spix e Martius chegaram à Europa com o seguinte material: mamíferos, 85
espécies; pássaros, 350; répteis e anfíbios, 130; peixes, 116; insetos, 2.700; aracní-
deos, 80; crustáceos, 80; plantas, 6.500. Tinham também muitos animais vivos e
plantas e, aparentemente, até alguns índios. Chegaram a Lisboa e foram a Munique
por terra, onde se puseram a trabalhar, tendo contratado Johann Georg Wagler como
assistente. Os dois foram condecorados no mesmo ano.
A saúde de Spix estava piorando rapidamente, mas antes de morrer, em 1826,
conseguiu produzir oito livros, escritos pessoalmente ou por outros, a partir de suas
notas: sobre os macacos e os morcegos (1823), as cobras (1824), as tartarugas e os
sapos (1824), as aves (1824-25), os lagartos (1825), as conchas de água doce (1827),
os peixes (1829-1831) e os artrópodes (1836).
94 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Martius publicou sobre as plantas da viagem, mais uma monografia sobre as


palmeiras, e empreendeu a publicação da monumental Flora Brasiliensis. Escreveu
também sobre a etnografia e a lingüística do Brasil. Nunca retornou, mas manteve um
vivo interesse pelo país, como mostra sua memória de 1844 sobre a maneira de
escrever uma história do BrasiP, dedicada ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Ele e Agassiz partilham a reputação de serem os maiores cientistas que
tocaram terras brasileiras.

Os livros herpetológicos
A ordem pretendida dos três livros herpetológicos era: I, Lacertae; II, Serpen-
tes; III, Testudines, Ranae. Contudo, os volumes II e III foram publicados em 1824,
e o volume I, em 1825. Vamos discuti-los na ordem cronológica. Não comento a
situação atual das espécies quando a informação encontra-se nas listas remissivas de
Peters & Orejas Miranda (1970), Peters & Donoso-Barros (1970), Wermuth &
Merten (1961), Gorham (1966) ou Duellman (1977). As mudanças posteriores estão
discutidas nas notas de rodapé.

Serpentes, anfisbenídeos e gimnofiônios


o primeiro livro, Serpentum Brasiliensium, foi escrito a partir das notas de
Johann Georg Wagler (fig. 1). Wagler^ nasceu em 28 de março de 1800, em Nurem-
berg. Estudou em Erlangen, a partir de 1818, e defendeu o doutorado em 1820, em
Leipzig. No mesmo ano foi indicado para assistente de Spix e Martius na Academia
de Munique. Era extremamente capaz e estimado, e tornou-se Professor Extraordi-
nário em Munique, em 1827. Em 1832, no mês de agosto, sofreu um acidente de caça
e morreu no dia 23 desse mês. Neste, que era seu primeiro trabalho herpetológico,
Wagler incluiu 43 espécies nominais, um gimnofiônio, três anfisbenídeos e 39
serpentes. Entre as serpentes, 36 foram descritas como novas, das quais 18, na
realidade, não tinham sido anteriormente descritas. Quatro serpentes e um anfisbe-
nídeo não são brasileiros, mas formas européias que se misturaram na coleção. O
livro tem dois textos paralelos, mas não equivalentes, em latim e em francês. O tex-
to latino contém sempre a descrição formal; o francês foi escrito de maneira mais
n
95 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

coloquial e às vezes contém informações adicionais. Quatro espécies (Elaps


venustissimusy Natrix chiametla, N. bicarinata e Bothrops surucucu) são atribuídas
explicitamente a outros autores. A Elaps melanocephalus é a Coluber melanoce-
phalus de Lineu. ACaecilia annulataé certamente a espécie de Mikan, embora o fato
não seja mencionado.
Na lista seguinte estão citados: a página em que a espécie está descrita; o nome
de Wagler; o nome do autor, quando não é Wagler, e data (entre parênteses); a loca-
lidade-tipo (não como vem citada originalmente, mas como foi interpretada por
mim); e o estado atual.

Pág. Nome de Wagler; localidade Estado atual


1 Elaps Schrankii, Rio Japurá Hydrodynastes
bicinctus (Hermann, 1804)
3 Elaps Martiiy Rio Itapicuru Hydrops martii (Wagler, 1824)
5 Elaps triangularis, Tefé Hydrops triangularis (Wagler, 1824)
6 Elaps venustissimus Erytholamprus aesculapii
(Wied, 1821), Rio de Janeiro venustissimus (Wied, 1821)
8 Elaps melanocephalus Tantilla melanocephala
(Lineu, 1758), Rio Solimões (Lineu, 1758)
10 Elaps Langsdorffi, Rio Japurá Micrurus langsdorjfi (Wagler, 1824)
12 Dryinus aeneus, Tefé Oxybelis aeneus (Wagler, 1824)
14 Natrix Chiametla (Shaw, 1802), Liophis miliaris (Lineu, 1758)
in errore, província da Bahia
16 Natrix G. Forsteri, Salvador Dromicus typhys (Lineu, 1758)"^
17 Natrix melanostigma, Dromicus melanostigma
província da Bahia (Wagler, 1824)^
18 Natrix lacertina, Salvador Malpolon monspessulanum
(Hermann, 1804), Espécie européia
20 Natrix cinnamomea, Chironius cinnamomeus
Rio Amazonas (Wagler, 1824)
21 Natrix occipitalis, Rio Solimões Oxyrhopus formosus (Wied, 1820)
23 Natrix bicarinata (Wied, 1820), Chironius bicarinatus (Wied, 1820)
Rio Solimões
24 Natrix Scurrula, Rio Japurá Chironius scurrulus (Wagler, 1824)
96 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

26 Natrix sulphura, Rio Japurá Pseustes sulphureus (Wagler, 1824)


27 Natrix Bahiensis, província da Bahia Coluber hippocrepis (Lineu, 1758),
Espécie européia
29 Natrix cherseoides, Rio de Janeiro Natrix maura (Lineu, 1758),
Espécie européia
30 Natrix Almada, Almada Dromicus almndensis (Wagler, 1824)^'^
32 Natrix ocellata. Rio de Janeiro Natrix maura (Lineu, 1758),
Espécie européia
33 Natrix semilineata, Rio Solimões Dromicus reginae (Lineu, 1758)'^
35 Natrix sexcarinata, Rio Amazonas Pseustes sexcarinatus (Wagler, 1824)
37 Natrix aspera, província da Bahia Helicops angulatus (Lineu, 1758)
39 Natrix punctatisima, Salvador Thamnodynastes pallidus (Lineu, 1758)
40 Xiphosoma ornatum, Rio Solimões Corallus enydris (Lineu, 1758)
43 Xiphosoma dorsuale, Rio Amazonas Corallus enyydris (Lineu, 1758)
45 Xiphosoma Araramboya, Rio Negro Corallus caninus (Lineu, 1758)
47 Ophis Merremii, Salvador Waglerophis merremii (W^iglQY, 1824)^
48 Micrurus Spixii, Rio Solimões Micrurus spixii (Wagler, 1824)
50 Bothrops megaera, Salvador Bothrops leucurus (Wagler, 1824)^®
52 Bothrops Fúria, Rio Amazonas Bothrops atrox (Lineu, 1758)
53 Bothrops leucostingma, Bothrops jararaca (Wied, 1824)
província da Bahia
54 Bothrops tessellatus, Bothrops jararaca (Wied, 1824)
Rio São Francisco
55 Bothrops taeniatuSy Rio Amazonas Bothrops jararaca (Wied, 1824)
56 Bothrops Neuwiedi, Bothrops neuwiedi (Wagler, 1824)
província da Bahia
57 Bothrops leucuruSy Bothrops leucurus (Wagler, 1824)
província da Bahia
59 Bothrops Surucucu, Lachesis muta (Lineu, 1766)
novo nome para Crotalus mutus
60 Crotalus Cascavella, Crotalus durissus cascavella
província da Bahia (Wagler, 1824)
68 Stenostoma albifrons, Belém Leptotyphlops albifrons (Wagler, 1824)
97 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

70 Leposternon Microcephalus, Leposternon microcephalus


Rio de Janeiro (Wagler, 1824)
72 Amphisbaena oxyura. Blanus cinereus (Vandelli, 1797),
Rio de Janeiro Espécie mediterrânea
73 Amphisbaena vermicularis. Amphisbaena vermicularis
província da Bahia (Wagler, 1824)
74 Caecilia annulata, Siphonops annulatus (Mikan, 1820)
província da Bahia

Tartarugas e cágados
Spix descreveu como novas 16 espécies de quelônios, das quais somente três
eram válidas. Como no caso das cobras, uma espécie européia, Mauremys caspica
leprosa, se insinuou na coleção.

Pág. Nome de Spix; localidade Estado atual


1 Emys Amazônica, Rio Solimões, Podocnemis expansa
Rio Javari e Rio Branco (Schweigger, 1812)
3 Emys viridis, Rio Carinhanha Phrynops geoffroanus
(Schweigger, 1812)
4 Emys depressa, Phrynops geoffroanus
província do Rio de Janeiro (Schweigger, 1812)
e Rio São Francisco
5 Emys macrocephala, Peltocephalus dumerilianus
Airão e Rio de Jau (Schweigger, 1812)^^
6 Emys Tracaxa, Rio Solimões Peltocephalus dumerilianus
e tributários (Schweigger, 1812)
7 Emys rufipes, Rio Solimões Phrynops rufipes (Spix, 1824)
9 Emys erythrocephala. Podocnemis erythrocephala
Rio Solimões (Spix, 1824)
10 Emys canaliculata. Platemys platycephala
Rio Solimões (Schneider, 1792)
98 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

11 Emys dorsualisy Rhinoclemmys p. punctularia


Rio Solimões (Daudin, 1802)^2
12 Emys stenops, Rio Solimões Phrynops rufipes (Spix, 1824)
13 Emys marmórea, Mauremys caspica leprosa
nenhuma localidade dada (Schweigger, 1812),
Subespécie mediterrânea
15 Chelys matamata, Belém Chelus fimbriatus (Schneider, 1783)
17 Kinosternon longicaudatum, Kinosternon s, scorpioides
nenhuma localidade dada (Lineu, 1766)
18 Kinosternon brevicaudatum, Kinosternon s. scorpioides
Rio Solimões (Lineu, 1766)
20 Testado Hercules, Geochelone denticulata
Rio Solimões (Lineu, 1766)
21 Testudo sculpta. Geochelone denticulata
Rio Amazonas (Lineu, 1766)
22 Testudo carbonaria. Geochelone carbonaria
Rio Amazonas (Spix, 1824)
23 Testudo Cagado, Geochelone denticulata
província da Bahia (Lineu, 1766)

Rãs e sapos
Spix descreveu 53 espécies de sapos. Em três casos (Hyla bicolor, Bufo agua,
Bufo nasutus), usou nomes específicos dos autores anteriores nas espécies corretas,
mas sem referência explícita. Por analogia com as serpentes, assumo a posição de que
essas formas não foram descritas como novas, mas só citadas, seja na forma original,
seja em novas combinações. Dezessete espécies efetivamente descritas são aceitas
correntemente como válidas.

Pág. Nome de Spix; localidade Estado atual


25 Rana Gigas, Rio Amazonas Leptodactylus pentadactylus
(Laurenti, 1768)
99 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

26 Rana Pachypus, Leptodactylus ocellatus


Salvador e Bahia (Lineu, 1758)
27 Rana mystacea, Salvador Leptodactylus mystaceus
(Spix, 1824)
27 Rana Megastoma, Rio Solimões Ceratophys comuta (Lineu, 1758)
28 Rana scutata, Rio Solimões Hemiphractus scutatus (Spix, 1824)
29 Rana palmipes, Rio Amazonas Rana palmipes (Spix, 1824)
29 Rana coriacea, Rio Amazonas Leptodactylus pentadactylus
(Laurenti, 1768)
30 Rana miliaris, Rio Amazonas Thoropa miliaris (Spix, 1824)
30 Rana pygmaea, província da Bahia Leptodactylus ocellatus
(Lineu, 1758)
31 Rana labyrinthica, Leptodactylus labyrinthicus
província do Rio de Janeiro (Spix, 1824)
31 Rana binotata, Eleutherodactylus binotatus
nenhuma localidade dada (Spix, 1824)
32 Hyla ranoides, província da Bahia HyIodes nasus (Lichtenstein, 1823)
32 Hyla lateristriga, Ololygon rubra (Laurenti, 1768)
nenhuma localidade dada
33 Hyla albopunctata, Hyla albopunctata (Spix, 1824)
nenhuma localidade dada
33 Hyla ajfinis, Rio Amazonas Ololygon rubra (Laurenti, 1768)
33 Hyla albomarginata, Hyla albomarginata (Spix, 1824)
província da Bahia
34 Hyla papillaris, Tefé Hyla punctata (Schneider, 1799)
34 Hyla pardalis, Hyla pardalis (Spix, 1824)
província do Rio de Janeiro
35 Hyla cinerascens, Tefé Hyla albomarginata (Spix, 1824)
35 Hyla trivittata, Rio Tefé Phyllobates trivittatus (Spix, 1824)
36 Hyla nigerrima, Tefé ?Phyllobates trivittatus (Spix, 1824)
36 Hyla bipunctata, província da Bahia Hyla bipunctata (Spix 1824)
37 Hyla variolosa, Rio Amazonas Hyla punctata (Schneider, 1799)
37 Hyla coerulea, Tefé Ololygon rubra (Laurenti, 1768)
100 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

38 Hyla stercoracea, Rio Tefé HyIodes nasus (Lichtenstein, 1823)


38 Hyla strigilata, província da Bahia Hyla strigilata (Spix, 1824)
39 Hyla nebulosa, Rio Tefé Hyla albopunctata (Spix, 1824)
39 Hyla geographica, Rio Tefé Hyla geographica (Spix, 1824)
40 Hyla geographica Hyla geographica (Spix, 1824)
var. sive semilineata
(H geographica var. ou H. semilineata
não H\ geographica semilineata),
província do Rio de Janeiro
40 Hyla X-signata, província da Bahia Ololygon x-signata (Spix, 1824)
41 Hyla abbreviata, Rio Amazonas Thoropa miliaris (Spix, 1824)
41 Hyla zonata, Rio Tefé Phrynohyas venulosa (Laurenti, 1768)
42 Hyla bufonia, Tefé Phrynohyas venulosa (Laurenti, 1768)
42 Hyla bicolor, Tonantins Phyllomedusa bicolor,
(Boddaert, 1772)
43 Bufo maculiventris, Rio Solimões Bufo marinus (Lineu, 1758)
44 Bufo Agua (Daudin, 1802),
Marabitanas Bufo marinus (Lineu, 1758)
44 Bufo ictericus,
província do Rio de Janeiro Bufo ictericus (Spix, 1824)
45 Bufo ornatus,
província do Rio de Janeiro Bufo crucifer (Wied, 1821)
45 Bufo Lazarus, Rio Amazonas Bufo marinus (Lineu, 1758)
46 Bufo dorsalis, Bufo crucifer {W\tá, 1821)
província do Rio de Janeiro
46 Bufo stellatus, província da Bahia Bufo crucifer {Witá, 1821)
47 Bufo albicans, Rio Negro Bufo marinus (Lineu, 1758)
47 Bufo scaber, Bufo crucifer (Wied, 1821)
província do Rio de Janeiro
48 Bufo Ephippium, província da Bahia Brachycephalus ephippium
(Spix, 1824)
49 Bufo globusus, Rio Itapicuru Bufo granulosus (Spix, 1824)
49 Bufo naricus, Rio Amazonas Bufo typhonius (Lineu, 1758)
101 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

50 Bufo nasutus (Schneider, 1799), Bufo typhonius (Lineu, 1758)


Rio Amazonas
51 Bufo semilineatusy Rio Itapicuru Bufo crucifer (Wied, 1824)
51 Bufo granulosusy província da Bahia Bufo granulosus (Spix, 1824)
52 Bufo acutirostrisy Rio Amazonas Bufo typhonius (Lineu, 1758)
52 Bufo proboscideusy Rio Solimões Bufo typhonius (Lineu, 1758)
53 Pipa Cururuy Pipa pipa (Lineu, 1758)
Salvador e Rio Amazonas

Lagartos e crocodilos
No último livro, Species Novae Lacertarum, Spix descreveu quatro jacarés e
37 lagartos. Apenas um dos jacarés é correntemente considerado válido. Como no
caso dos sapos, três espécies (Polychrus marmoratus, Tupinambis monitor e Tejus
ameiva) não poderiam ser consideradas novas: são nomes previamente existentes,
utilizados adequadamente por Spix. Dos 34 lagartos, 14 são aceitos correntemente
como válidos e 20 são considerados sinônimos.

Pág. Nome de Spix; localidade Estado atual

1 Jacaretinga moschifer, Salvador Paleosuchus palpebrosus


(Cuvier, 1807)
2 Jacaretinga punctulatus, Tefé Caiman crocodilus
(Lineu, 1758)
3 Caiman niger, Melanosuchus niger (Spix, 1825)
Rio Amazonas e Rio Solimões
4 Caiman fissipesy Rio São Francisco Caiman l. latirostris
(Daudin, 1802)
5 Iguana saquamosa,
Salvador e Belém Iguana i, iguana (Lineu, 1758)
6 Iguana viridis,
Rio São Francisco e Rio Itapicuru Iguana i. iguana (Lineu, 1758)
103 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

16 Gecko cruciger, província da Bahia Hemidactylus mabouia


(Moreau de Jonnès, 1818)
17 Thecadactylus pollicaris, Phyllopezus pollicaris (Spix, 1825)
interior da Bahia
17 Gymnodactylus geckoides, Gymnodactylus geckoides
Salvador (Spix, 1825)
18 Tupinambis nigropunctatus, Tupinambis nigropunctatus
Belém (Spix, 1825)^^
19 Tupinambis Monitor s, nigropunctatus, Tupinambis teguixin
província do Rio de Janeiro (Lineu, 1758)^^
19 Crocodilurus amazonicus, Crocodilurus lacertinus
São Paulo de Olivença (Daudin, 1802)
20 Crocodilurus acellatus, Tefé Crocodilurus lacertinus
(Daudin, 1802)
21 Kentropys calcaratus, Rio Itapicuru Kentropyx calcaratus (Spix, 1825)
21 Tejus Ameiva (Lineu, 1758), Ameiva ameiva
Salvador e Rio de Janeiro (Lineu, 1758)
22 Tejus Lateristriga, Ameiva ameiva (Lineu, 1758)
nenhuma localidade dada
22 Tejus tritaeniatus, Ameiva ameiva (Lineu, 1758)
província da Bahia
23 Tejus ocellifer, Salvador Cnemidophorus ocellifer
(Spix, 1825)
23 Scincus bistriatus, Belém Mabuya bistriata (Spix, 1825)^^
24 Scincus nigropunctatus, Tefé Species inquirenda^^
24 Leposoma scincoides. Leposoma scincoides (Spix, 1825)
Rio Amazonas
25 Heterodactylus imbricatus, Heterodactylus imbricatus
interior da província do (Spix, 1825)
Rio de Janeiro
25 Pygopus striatusy Rio de Janeiro Ophiodes striatus (Spix, 1825)
26 Pygopus Cariococca, Ophiodes striatus (Spix, 1825)
Corcovado, Rio de Janeiro
104 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Qualidade das coleções


É evidente que naturalistas como esses trabalhavam com graves limitações de
espaço: coletavam todo tipo de material botânico, zoológico, mineralógico, paleon-
tológico, arqueológico e etnográfico e utilizavam os meios mais primitivos de
transporte. Tinham de escolher e coletar só um ou, no máximo, alguns espécimes de
cada espécie. A identificação no campo, sem comparação (os espécimes anteriores
sendo postos fora), não é confiável até hoje, e isso deve ter resultado em que muitos
novos registros tenham sido esquecidos. A cobertura da fauna era necessariamente
imperfeita. Com essa reserva, examinaremos agora as listas de animais coletados,
para ver a qualidade de cobertura conseguida por Spix e Martius.
Pelos padrões modernos, a coleção de anfíbios é muito pobre; isso pode ter sido
causado, em grande parte, pela falta de iluminação adequada para o trabalho notur-
no, mas a mistura de muitas formas sob um único conceito sem dúvida provocou a
negligência de muito material interessante.
A coleção de serpentes também é fraca, mas a coleta de serpentes no Brasil é,
quando muito, uma questão de sorte. A coleção de tartarugas é excelente, como se
poderia esperar, principalmente aquela feita no Amazonas, onde quase todas as
espécies foram coletadas. O número de sinônimos foi grande, mas a cobertura irre-
preensível: os índios de fato conheciam a sistemática e os hábitos de seus animais
comestíveis.
Os lagartos permitem um curioso vislumbre sobre a coleta de répteis no Brasil.
Ao comparar, para contraste, a Floresta Amazônica e as formações abertas do
Nordeste, tracei listas de espécies que poderiam ter sido coletadas no caminho de
Salvador ao Maranhão e ao longo do Amazonas, Solimões, Negro inferior e Japurá,
e aqueles que foram obtidos por Spix e Martius. No Nordeste foram coletados 8 em
19 espécies (42%) e no Amazonas apenas 9 dos 46 (20%). Esses números, resultado
de uma expedição através de um país intacto, concordam precisamente com a expe-
riência habitual: apesar dos mitos predominantes, a Floresta Amazônica é ciosa de
seus animais.
105 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

As localidades
o conceito atual de "localidade-tipo" - o lugar geográfico em que o holótipo
de uma espécie foi coletado - não existia e, na verdade, não era necessário no início
do século XIX. O dado importante era a "pátria", a área geral em que a espécie se
encontra. Portanto, a maneira habitual de fornecer a informação era falar do habitai
("Habita" - alternativamente, "é raro no" ou é "abundante em" - um determinado
lugar). Este lugar era registrado em variável detalhe, dependendo das circunstân-
cias: às vezes, o nome do país era considerado suficiente, mesmo quando havia
informação mais precisa; em outras ocasiões, vinha citada uma localidade bem
definida. Nos livros de Spix encontram-se todos os tipos possíveis de citação e cada
uma deve ser discutida em seus próprios méritos.
Ao tratar de localidades antigas, mesmo as mais bem definidas, é necessário
levar em conta diversos problemas práticos ligados a mudanças sofridas pelos
aglomerados humanos depois de visitados pelos naturalistas. Muitas localidades
cresceram, algumas geometricamente; o que era "perto do Pará" (ou Rio de Janeiro),
no tempo de Spix, está hoje muito mais próximo do centro que da periferia da cidade.
Por essa razão, ignoro aqui os advérbios "ad", "prope", e "juxta", que indicam proxi-
midade, e cito unicamente o nome da respectiva localidade (por ex.. Rio de Janeiro,
Bahia, Ega). Outra conseqüência do crescimento das cidades e da expansão da agri-
cultura é obviamente a mudança ecológica. Uma localidade-tipo pode ter se altera-
do tanto, que se tenha tornado sem sentido.
Desse ponto de vista, é preciso dizer que, por conterem quase infalivelmente
notas ecológicas, as localidades de Spix são mais úteis do que se tivessem sido mais
bem definidas geograficamente.
É também freqüente para as localidades mudar de lugar e manter o nome, pelo
lugar ter sido considerado insalubre, ou o traçado de uma estrada mudar, ou um rio
cortar um meandro etc. Os livros de Spix não contêm esses problemas; nem apre-
sentam dificuldades provenientes de mudanças sucessivas dos nomes dos lugares ou
da escrita errada dos naturalistas. Levanta algumas dúvidas, mas é fácil a sua solução.
O único problema maior das localidades de Spix resulta de um hábito da antiga
América do Sul de dar o mesmo nome a uma província e à capital; isso acontece nos
casos do Rio de Janeiro, Bahia e Pará, que serão discutidos abaixo.
Ao discutir as localidades-tipo seguirei tão de perto quanto possível a seqüência
da Reise, Deve-se lembrar que a mesma espécie pode ter duas ou mais "localidades-tipo",
pelo fato de os viajantes as terem encontrado e reconhecido em partes diferentes do país.
106 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Espécies excluídas
A seguir, omito as espécies para as quais não foram citadas as localidades;
omito também as quatro espécies de serpentes e as três de lagartos para as quais não
houve intenção de descrever como novas, mas apenas como novas combinações:
Elaps melanocephalus, Natrix chiametla, N. bicarinata, Bothrops surucucu, Hyla
bicolor, Bufo agua, B. nasutus, Polychrus marmoratus, Tejus ameiva e Tupinambis
monitor.
Finalmente, antes de entrar na discussão de localidades específicas, é necessá-
rio considerar as seis espécies européias que penetraram na coleção brasiliana: Emys
marmórea (Mauremys caspica leprosa), Amphisbaena oxyura (= Blanus cinereus),
Natrix bahiensis (= Coluber hippocrepis), Natrix lacertina (=Malpolon
monspessulanum), N. cherseoides (= N. maura) e N, ocellata (= N. maura), Estas
espécies têm uma coisa em comum: ocorrem todas na Península Ibérica e no nordeste
da África. Isso torna tentador imaginar que foram acrescentadas involuntariamente
à coleção brasileira em Portugal, na ocasião em que o material trazido do Brasil nu-
ma embarcação portuguesa foi transladado para a austríaca. Contudo, não existe
coisa alguma na Reise que apóie essa hipótese.
Por outro lado, estas seis espécies européias introduzidas nos ensinam uma
lição valiosa: para cinco delas Spix cita localidades brasileiras tão bem definidas
quanto quaisquer outras da coleção. Não conhecemos o sistema de etiquetagem ou
rotulação utilizada na ocasião, mas, evidentemente, admitia erros graves.

Rio de Janeiro
A cidade do Rio de Janeiro apresenta até hoje florestas e parques que abrigam
uma rica fauna; naturalmente 160 anos atrás deve ter havido muito maior abundân-
cia e diversidade de animais. As espécies seguintes foram coletadas na cidade do Rio
ou suas vizinhanças: Elaps venustissimus, Leposternon microcephalus (também na
Mandioca), aculeatus ePygopus cariococca. Especificamente desta última se
diz que foi coletada no Corcovado, perto da fonte chamada "da Carioca", que os
naturalistas grafavam "Cariococca". Todas essas espécies existem hoje na cidade.
As seguintes formas foram atribuídas especificamente à Província do Rio de
Janeiro: Rana pachypus (com variedades na Bahia e Pará), R. labyrinthica, Hyla
107 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

pardaliSy H, geographica var. sive semilineata, Bufo ictericus, B. ornatus,


B, dorsalis, B. scaber, Emys depressa (também no Rio São Francisco) e Hetero-
dactylus imbricatus. Todas as espécies ocorrem hoje no Estado do Rio de Janeiro,
que coincide com a província como era delimitada no início de século XIX.
Spix e Martius não viajaram muito pela Província do Rio (na realidade, é sur-
preendente que citem mais espécies para a província que para a cidade). Uma
excursão foi para a fazenda de Langsdorff, "Mandioca", no alto da Serra dos Órgãos
(ca. 22''35'S, 43M6'W) e subindo depois a Serra do Mar e entrando na Província de
São Paulo aos 22''10'S, 44''10'W. Julgando pela Reise^ suponho que a maioria do
material foi coletado durante a excursão à Mandioca.
No caso das três espécies de lagartos, não fica claro no texto quando a
referência é à cidade ou à Província do Rio de Janeiro: Iguana lophyroides (também
Bahia), Lophyrus albomaxillaris (também Pará) ^Agama hispida (também Bahia).
Estou inclinado a acreditar que são referências às cidades e não às províncias, por
causa de algumas provas colaterais: Pará parece ter sido empregada consistente-
mente para indicar a cidade. Além disso, dado o itinerário, não haveria razão de falar
sobre a província, quando todas as referências eram feitas ao Rio Amazonas.
Observe-se também que Iguana lophyroides é um sinônimo de Iguana iguana, que
nunca houve no Rio e que Lophyrus albomaxillaris é habitualmente considerado
sinônimo de Enyalius c. catenatus, que não ocorre no Estado do Rio, mas existe na
área ao redor de Salvador, a cidade da Bahia^^ Finalmente, é preciso observar que
"Mandioca", que não existe mais com esse nome e só pode ser localizada aproxima-
damente, é uma das localidades-tipo de Leposternon microcephalus.

Entre o Rio e a Bahia


É extremamente interessante o fato de não haver espécies listadas nas provín-
cias de São Paulo e Minas Gerais, apesar da extensão da viagem e do tempo passado
aí. Parece que outras questões (talvez os minerais) tenham-nas superado nas preocu-
pações dos viajantes. A única espécie mencionada nesta parte da viagem é a Emys
viridiSy das lagoas marginais do Rio Carinhanha, um tributário do São Francisco,
que entra pelo Oeste em 14''18'S, 43M7'W. Spix e Martius haviam atravessado antes
o Carinhanha a caminho da fronteira goiana, mas nesse ponto não havia lagoas. Ao
voltar do Paraná para o São Francisco, seguiram o curso inferior do Carinhanha por
um dia (cerca de 40 km)^^.
108 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Bahia
Da cidade da Bahia (hoje Salvador, 13"00'S, 38°30'W) estão listadas sete
espécies: Pipa cururu (também do Amazonas), Jacaretinga moschifer, Natrix G.
Forsteri (também na província), N. punctatissima, Ophis merremii, Bothrops me-
gaera e Rana mystacea. Todas as atribuições são plausíveis, com exceção da Pipa
pipa, que não existe em Salvador. Contudo, a Pipa carvalhoi existe. Para duas
espécies, Gymnodactylus geckoides e Agama cyclurus, a localidade fornecida é
''corifinibus Bahiae'\ Consultei colegas versados em latim e sua opinão foi que a
expressão significa mais provavelmente os limites da província que os arredores da
cidade. Não concordo. A expressão "confinibus" é também usada por duas vezes por
Spix. Uma é para Xiphosoma ornatum, que ''habitai in aquis fluminis Solimõens
confinibus", com a versão francesa, "encontra-se nas águas do rio Solimões". O ou-
tro caso de emprego da palavra é no caso do Anolis violaceus: ''confinibus Parae
A aplicação da expressão a um rio parece excluir a idéia de territorialidade e propi-
ciar a de proximidade, indicando a cidade, e não a província. O caso do Pará será
discutido abaixo.
Explicitamente da província são citados: Natrix G. Forsteri (também na
cidade), Natrix melanostigma, Bothrops leucostigma, B. neuweidi, B. leucurus,
Crotalus cascavella, Amphisbaena vermicularis, Testudo cagado, Rana pygmaea,
Hyla ranoides, H. albomarginata, H. bipunctata, H. strigilata, H. x-signata, Büfo
stellatus, B. ephippium, B. albifrons, B. granulosus, Agama nigrocollaris, Gecko
cruciger, Thecadactylus pollicaris, Tejus tritaeniatus.
No caso do Bothrops taeniatus o texto latino (''ad flumen Amazonum'')
contradiz o francês ("na província da Bahia"). Como a espécie é um sinônimo de
Bothrops jararaca, a última localidade evidentemente deve ser preferida, pois
jararaca não existe na Amazônia. Restam também ser compreendidas como referen-
tes à província as localidades "no mato", de Iguana lophyroides (''in sylvis Rio de
Janeiro, Bahiae"), Lophyrus margaritaceus ("in sylvis Bahiae et Solimõens'') e
Polychrus acutirostris ("in sylvis Bahiae"). Da mesma forma, diz-se que a Iguana
squamosa ocorre "ad ripam lacus etfluminum Bahiae, Parae'' (nas margens dos la-
gos e dos rios). Da Bahia sem outra qualificação r e g i s t r a r a m p a c h y p u s var. 1,
Agama hispida (também Rio de Janeiro) e Té-jw^ ocellifer. As mesmas considerações
aplicam-se como no caso do Rio.
Spix e Martius viajaram extensivamente na Província da Bahia, que era menor
que o estado atual: as fronteiras do norte e do sul eram as mesmas, mas a oeste a
109 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

fronteira seguia o rio São Francisco, as terras além pertencendo a Pernambuco.


Entraram na província pelo oeste, atravessando o São Francisco em Carinhanha
( i n 8 ' S , 43M7'W) e continuando até Salvador (13"00'S. 38"30W), principalmen-
te pelas caatingas; trabalharam na Floresta Atlântica na região de Ilhéus (14M9'S,
39''02'W), na costa sul; e deixaram a província atravessando a metade norte diago-
nalmente de Salvador a Juazeiro (09''25'S, 40''30'N). Coletaram em todos os
ambientes possíveis.
Duas espécies têm localidade definida na Bahia. \]m^éNatrix almadensis, de
Almada (14''39'S, 39''10'W); a cidade chama-se hoje Castelo Novo, e sua situação
mudou mais de uma vez num raio de uns poucos quilômetros. A outra espécie é
Agana semitaeniata de "Sincura", isto é, Sincorá. Não é a aldeia atual, mas Sincorá
Velho (13''30'S, 41''12'W); na verdade, a rápida descrição de Martius do lugar (num
vale estreito entre duas fileiras de montanhas) não deixa margem para dúvidas^^.

Rio São Francisco


Seis espécies têm como localidade ''Flumen Sti. Franciscio Rio de São Fran-
cisco: Bothrops tessellatus, Caimanfissipes, Emys depressa (também Província do
Rio), Iguana caeruleuy L emarginata e /. viridis (também Rio Itapicuru).
Spix e Martius atravessaram o São Francisco três vezes^^. Na primeira, no
caminho de Minas Gerais para o Paraná, chegaram a um rancho, Capão, uns 30 km
rio acima de Pedras da Cruz (hoje Pedras de Maria da Cruz, 15''37'S, 44^23'W). A
estação era favorável, e a coleta foi boa. Em seguida atravessaram o rio para Januária
(então Porto do Salgado, 15''29'S, 44''23'W), onde fizeram nova coleta.
De Januária foram para o Paraná e, na volta, atravessaram o São Francisco do
Carinhanha para Malhada (14''2rS, 43M7'W). Como o local era insalubre, não
ficaram.
O último encontro com o rio foi na travessia Juazeiro-Petrolina, no caminho
para o Piauí e Maranhão. Ficaram em Juazeiro (09®24'S, 40''30'W) várias semanas,
fazendo pequenas excursões pela vizinhança; uma delas, para o Rio Salitre (embo-
cadura a 09''29'S, 40''39'W), está mencionada especificamente na Reise. Tendo
atravessado o rio para o Registro de Juazeiro (atual Petrolina), não se demoraram,
mas prosseguiram para o Piauí.
110 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Rio Itapicuru
A viagem pelo Piauí não deixou marcas nos livros herpetológicos de Spix.
Depois da Bahia, a primeira localidade citada é o Rio Itapicuru no Maranhão
(Jtapicuru na ortografia de Martius). Registraram: Elaps martii, Bufo semilineatus,
B. globulosus, Iguana viridis (também do São Francisco) e Kentropyx calcaratus.
Spix e Martius atingiram o rio em Caxias, que escrevem "Cachias"(04''50'S,
43"2rW), e desceram calmamente até o atual Arraial (02"37'S, 44°4rW)2o.

Pará
"Pará" no século XIX designava a província, mas também como abreviatura
de Santa Maria de Belém do Grão Pará, a atual cidade de Belém ( 0 r 2 6 ' S , 48"^
29'W). Duas espécies são explicitamente atribuídas à cidade, Stenostoma albifrons
e Chelys matamata.
Dizia-se que uma espécie, Anolis violaceus, existia em ''confinibus Parae'\
Acho que, como no caso da Bahia, é uma referência aos subúrbios da cidade, e não
às fronteiras da província. Spix e Martius atravessaram as fronteiras do Pará apenas
uma vez, rapidamente, ao subir o Amazonas; todo material da região é chamado
''flumen Amazonum'' ou alguma variação gramatical disso. Quanto ao mais, os na-
turalistas não viajaram na Província do Pará, a não ser por uma rápida excursão de
Martius sozinho^\ em 1820, para ver a "pororoca". Subiu o Rio Guamá (cuja em-
bocadura fica em Belém propriamente dita) até a embocadura do Capim (OlMrS,
47"7'W).
Três espécies referem-se ao Pará sem outra qualificação: Rana pachypus var.
1, Iguana squamosa (também na Bahia) e Scincus bistriatus. Acredito que a cidade
de Belém deveria ser considerada como sua localidade.

Rio Amazonas
o Amazonas quando entra no Brasil adquire o nome de Solimões, que mantém
até a boca do Negro, onde volta a ser Amazonas, ou, no uso local, o Baixo Amazonas.
Como se disse na discussão do itinerário, os canais a oeste de Marajó e do Rio Pará
111 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

não são considerados parte do Amazonas. Spix e Martius parecem ter estado
conscientes disto^^, embora exista uma citação perturbadora: dizem que Chelys
matamata existe "perto da cidade de Belém em águas estagnadas do Rio Amazo-
nas". Creio ser melhor considerar esta referência como um lapsus calami e tomar
**flumen Amazonum " neste caso como a faixa do rio entre a embocadura do Taj apuru
( 0 r 0 2 ' S , 5 r 0 2 ' W ) e a embocadura do Negro (03°08'S, 59"55'W) e os canais
paralelos ("paranás"e "furos") seguidos normalmente pelos viajantes em embarca-
ções pequenas.
As espécies rotuladas "Rio Amazonas" são Natrix sexcarinata, Xiphosoma
dorsuale, Bothrops fúria, B. taeniatus. Testado sculpta, T. carbonaria, Rana gigas,
R. palmipeSy R. coriacea, R. miliaris, Hyla affinis, H. variolosa, H. abbreviata, Bufo
lazaruSy B. naricus, B. nasutus, Pipa cururu (também na Bahia), Caiman niger,
Lophyrus ochrocollaris, L. aureonitens, Leposoma scincoides. Três dos nomes se
aplicam a espécies que não se sabe se existem na Amazônia: Bothrops taeniatus (=
B. jararaca), Hyla abbreviata (= thoropa miliaris) e Rana miliaris (= T. miliaris).

Rio Solimões
As espécies seguintes estão listadas no Solimões: Elaps melanocephalus,
Natrix cinnamomea, K occipitalis, N. semilineata, Xiphosoma ornatum, Micrurus
spixii, Emys amazônica (também Rio Javari e Rio Branco), E. rufipes, E.
erythrocephala, E. canaliculata, E. dorsualis, E. stenops, Kinosternon brevicau-
datum, Testudo hercules, Rana scutata, Bufo maculiventris, B. proboscideus, Caiman
niger (também Amazonas), Lophyrus rhombifer, L. margaritaceus (também da
Bahia) eL. xyphosurus. Três dessas espécies não são conhecidas como do Solimões:
Emys erythrocephala ( = Podocnemis erythrophala), Lophyrus rhombifer ( = Enyalius
c. catenatus) e Lophyrus margaritaceus (= E, c. catenatus).

Localidades específicas no Solimões


Ega, Ecgá ou Ecga, a atual Tefé, foi uma estação produtiva na subida do
Solimões. A localidade ( 03°12'S, 64°42'W) fica na embocadura interna do canal
("furo"), de uns poucos quilômetros de comprimento, que liga o Lago de Tefé ao So-
112 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

limões. As espécies encontradas em Tefé ou seus arredores são: Elaps triangularis,


Dryinus aeneus, Hyla papillaris, H. cinerascens, H. nigerrima, H. coeruleuy H.
bufoniãy Jacaretinga punctulatus, Lophyrus panthera, Crocodilurus ocellatus e
Scincus nigropunctatus. A não ser pela última, todas as epécies ocorrem na área.
O Rio Tefé é um rio estreito, mas razoavelmente longo - de uns 350 km - , que
corre para a extremidade sul do lago. Não fica claro o limite entre o lago e o rio e, em
vez de uma foz, existe um labirinto de canais estreitos que correm entre manchas de
floresta alagada. Martius não menciona trabalho feito no rio^^ mas cinco espécies de
sapos estão atribuídas a ele: Hyla trivittata, H. stercoracea, H. nebulosa, H. geo-
graphica e H. zonata. H. stercoracea (= Hylodes nasus) e H. albopunctata não se
conhecem da Amazônia. Rana megastoma foi coletada em Castro de Avelães, atual
Amaturá, na margem direita do Solimões a 03''29'S, Crocodilurus
amazonicus foi coletado em São Paulo de Olivença (03°30'S, 68M5'W).
Finalmente, o Javari, que penetra no Solimões a 04''2rS, 70°02'W, do lado
direito, e constitui a fronteira peruana, é, com o Solimões e o Branco, a localidade-
tipo da Emys amazônica. Spix não explorou pessoalmente o rio, mas ficou em
Tabatinga, do outro lado do Solimões.

Rio Japurá
Martius continuou pelo Japurá da foz (03°08'S, 64°66'W) até as quedas de
Araracuara (00°24'S, 72°17'WOX então em território disputado, hoje da Colômbia.
As espécies mencionadas são Elaps schrankii, E. langsdorffi, Natrix scurrula e N.
sulphurea.

Rio Negro
São citadas quatro espécies da rápida expedição de Spix, subindo o Negro até
Barcelos (00°58'S, 62°56'W), com uma viagem marginal ao baixo Branco. Xipho-
soma araranboya e Bufo albicans são citados no Negro, sem outros dados. Emys
amazônica é citada no Branco (foz a 01°24'S, 61°5rW), bem como no Solimões e
Javari. Emys macrocephala foi obtida em "Airon" (= Airão, Or58'S, 6 r i 9 ' W ) e
no Rio "Yau" (= Jaú, foz a 0 r 5 4 ' S , 67°26'W).
113 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Outras localidades
Entre as localidades das espécies não descritas como novas apenas três pre-
cisam ser comentadas. Hyla bicolor (Phyllomedusa bicolor) coletada em Tonantins
(02°47'S, 67°47'W); é o único registro da localidade. Bufo agua (= B, marinus) foi
obtido em Marabitanas, no alto Negro, em 00°58'N, 66®5rW. Nem Spix nem
Martius chegaram lá, nem existe nos livros qualquer indicação de como as duas
espécies foram conseguidas. Natrix bicarinata (= Chironius bicarinatus) foi regis-
trada do Solimões, onde não existe.
Todas as outras formas foram registradas nas localidades discutidas acima e
plausíveis a partir do ponto de vista da distribuição.

História subseqüente
A publicação do livro de Spix provocou naturalmente alguma discussão.
Concentrando-se na identidade de espécies individuais num tempo em que as
coleções eram pequenas e não eram representativas, as primeiras discussões duran-
te o período 1820-1828 feitas por Kaup, Wied, Wagler, Spix, Boie e Fitzinger têm
pouco interesse; Vanzolini (1977, 1978) tem um índice cruzado das referências a
répteis.
Durante algum tempo acreditou-se que praticamente todas as coleções de Spix,
em Munique, tinham sido destruídas pelo bombardeio durante a Segunda Guerra
Mundial. Conseqüentemente, deu-se grande importância às revisões de tipos do
século XIX (jan.,1859; W. Peters, 1872, 1877), bem como às notas incidentais de
Lorenz Müller, que por muitos anos foi curador de Munique.
Agora, todavia, enquando escrevo, soube que a maioria das espécies de Spix
tinha sido localizada na Staatssammlung em Munique e no Ryksmuseum de Leiden
e que está em preparo um relatório sobre elas. É claro que são notícias muito bem-
vindas.
114 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Conclusão
Três grandes expedições destacam-se na história da exploração zoológica do
Brasil, de fato, da América do Sul: a de Wied, a de Natterer e a de Spix e Martius. A
última foi a mais produtiva. Wied foi o melhor zoólogo entre eles e também o melhor
escritor, um admirável cronista da Floresta Atlântica em condição quase selvagem;
todavia nunca avançou além dela. Natterer viajou mais e acumulou as maiores
coleções de todos, mas os resultados de seu trabalho se diluíram, nunca foram pu-
blicados como um todo e sua influência na herpetologia foi muito menor do que
poderia ter sido.
Spix e Martius amostraram um continente quase virgem; eram abertos, católi-
cos, compreensivos e meticulosos. Os livros herpetológicos devem ser avaliados
como parte de um esquema preconcebido, incluindo a Reise, a Flora Brasiliensis,
os trabalhos zoológicos. O fato de um esquema enorme como esse ter sido desen-
volvido até o fim deve-se principalmente à tenacidade de Martius e a seu tempera-
mento muito especial, que lhe permitia levantar fundos sem se degradar. Mas não
menos à reconhecida qualidade dos materiais, que tornaram imperativo o seu estudo
e publicação.
Devo acrescentar que o valor desses livros não é exclusivamente histórico. A
taxonomia alpha dos anfíbios e répteis neotropicais está longe de ser exaustiva; todos
os dias encontram-se novas espécies. Ao mesmo tempo, estudos evolutivos provo-
cam continuamente a necessidade de uma definição melhor de formas reconhecidas.
As obras herpetológicas de Spix continuam a ser um instrumento importante na pes-
quisa sistemática, e ainda demorará para que se retirem para a estante das curio-
sidades exóticas.

Abstract: This article is the introduction to Herpetology of Brazil, Society for the Stu-
dy of Amphibians and Reptiles, 1981. It follows one ofthe mostfamous scientific expe-
ditions in XIX century, written in Reise in Brasilien by Spix and Martius. The main
interest here are Amphibians and Reptiles collected. It begins considering the Natura-
lists envolved, their education and career^ the indication to accompany Austrian
princess Leopoldina to Brazil, their work and afterward, the writing of results. Re-
writes, then, the itinerary of the Reise in Brasilien, from Rio de Janeiro to Belém do
Pará, describing the time elapsed, transport, health and scientific work conditions, ma-
terial collected and doubts about results obtained.
Key-words: herpetology - naturalists - Reise in Brasilien - Spix & Martius
115 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

Notas

1. Uma apresentação completa da exploração científica do Neotrópico, encontra-se em


Papavero(1971, 1973).
2. A história das relações diplomáticas entre a Áustria e o Brasil no século XIX é contada
competentemente por Ramirez (1968), que trabalhou nos arquivos oficiais vienenses. O
tradutor de seu livro (uma tese de doutorado inédita da Stanford University) acrescentou
notas e comentários do ponto de vista brasileiro.
3. As notas sobre Spix foram tiradas de Gistl (1835b) e de diversas enciclopédias do sécu-
lo XIX. As sobre Martius são principalmente da introdução à tradução brasileira da Reise,
por Merxmüller (1971).
4. Na descrição do itinerário, utilizei principalmente a tradução brasileira, com recurso
freqüente ao original para verificar a ortografia e os erros e esclarecer pontos duvidosos.
5. Ver a introdução da tradução dãReise, de Merxmüller, 1971.
6. Os dados biográficos de Wagler foram tirados de Scleter, 1884, e do obituário de Gistl,
1835a.
7. AdotQi Dromicus, em vez ÁQ Leimadophis, de acordo com Maglio (1970).
8. Wagler empregou almada no texto e almadensis na prancha. Preferiu-se este último
(cfi Peters & Orejas-Miranda, 1970: 142).
9 . 0 gênero Waglerophis, monobásico (monotípico na ocasião da descrição), foi criado por
Romano & Hoge, 1973, para a espécie Ophis merremiU porque Ophis era pré-ocupado.
10. Bothrops megaera foi enterrado na sinonímia de B. atrox desde Boulenger
(Boulenger, 1896: 538) até Hoge (Hoge, 1966:110) ter ressuscitado o nome como tipo
do gênero, sem discussão. Enqa^xúo Bothrops leucurus foi colocado por Boulenger
(Boulenger, 1896: 542) na sinonímia d e n e u w i e d i , onde ficou esquecida até Hoge
& Romano (Hoge & Romano, 1971: 133, 136) terem descoberto que megaera já
estava ocupada e que leucurus, um sinônimo, deveria ter precedência; também neste
caso não houve discussão. Estes nomes são, portanto, usados em confiança.
11. Frair, Mitterneier & Rhodin (1978) restabeleceram o gênero Peltocephalus
xdi Emys dumeriliana, Schweigger, 1812.
116 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

12. Nomenclatura de acordo com Smith (1978).


13. Sinonímias e distribuições de Enyalius de acordo com Jackson (1978).
14. Esta espécie habitualmente é situada QmTropidurus. Concordo com Schmidt & Inger
(1951) que suas adaptações extremas á vida nas gretas das rochas justifica aclassificação
genérica.
15. Presch (1973) reviu o gênero Tupinambis. Suas conclusões taxonômicas são revolu-
cionárias e palpavelmente erradas; ainda adoto o esquema proposto por Boulenger (1885).
Todavia, numa coisa Presch tem razão: o nome correto para Tupinambis, que ocorre na
Amazônia e que tem sido chamado tradicionalmente de nigropunctatus Spix, deveria ser
de fato teguixin o de Lineu. É preciso determinar o nome certo para o teguixin no sen-
tido de Boulenger, pois é insustentável a conclusão de Presch de que é igual ao rufescens
Günther. Até que se faça isso, prefiro manter o status quo predominante na ocasião da
publicação de Peters & Donoso-Barros (1970).
16. Mabuya bistriata é uma espécie válida pertencente ao complexo correntemente
aglomerado sob o nome de "Mabuya mabouya Scincus nigropunctatus não pode ser
identificado com qualquer lagarto coletado no Brasil até agora.
17. Rio Carinhanha: ver Reise, vol. 2, livro 6, cap. 1, p. 570, 580 (trad. p. 224, 234).
18. Sincorá Velho: wQxReise, vol. 2, livro 6, cap. 2, p. 608 (trad. p. 262).
19. Para a primeira travessia, vtvReise, vol. 2, livro 4, p. 529 seg. (trad. p. 190); para a
segunda, ver 2, 6, 1, p. 582 (p. 237); para a terceira, ver 2, 8, 2, p. 752 (p. 399).
20. Não existe ambigüidade quanto ao ponto de embarque, Caxias. O ponto em que os
viajantes trocaram a tropa não é tão fácil de localizar; era um rancho naquela época e
atualmente é uma vila, mas manteve o nome original.
21. Martius sobre o Guamá: vQvReise, vol. 2, livro 8, cap. 3, p. 957 (trad. p. 80).
22. Para a compreensão de Martius da geografia do Pará oriental, vQvReise, vol. 3, livro
8, caps. 1-2.
23. A estada em Tefé está coberta no vol. 3, livro 9, cap. 2, dãReise.
24. A aldeia (chamada Avalães na Ranae, mas corretamente na Reise) estava reduzida
a três famílias quando Spix a visitou. Não pude encontrar o nome do local nas fontes
habituais, mas Loureiro (1978) a menciona.
117 Vanzolini, P. E., Imaginário - USP, n. 3, p. 79-119, 1996.

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r Imaginário - USP, n. 3, p. 121-149, 1996.

Ecologia Polissêmica
Marilia Coutinho*

Resumo: Uma das principais características exibidas pelo discurso ecológico é a disponi-
bilidade de perspectivas alternativas^ disputando a preferência dos ecólogos. Tem sido
assim desde o nascimento da ecologia. Essa característica foi, em geral, identificada
através de disputas notórias entre certos referenciais teóricos: entre a ecologia de
comunidades do início do século e a ecologia de ecossistemas. Estas oposições, ao con-
trário de um eterno debate filosófico, expressam a constituição de sistemas discursivos
descontínuos e muito diferentes, sob contextos sociais específicos.
Palavras-chave: discurso ecológico - ecossistema - meio ambiente - holístico

O que é ecologia?
Apenas uma reflexão rápida e superficial, em que se procure buscar um
conteúdo associado a esta palavra, já é capaz de indicar que a pergunta acima não é
trivial: qualquer pessoa minimamente familiarizada com o termo pode lembrar mais
de um significado para ela, sem grande esforço intelectual.
Essa experiência em si não tem nada de extraordinário, pois parece pouco
contestada a idéia de que um termo não possui um sentido na língua, e sim muitos
sentidos. Assim, diante da pergunta, podemos nos recordar de várias definições
independentes. Podemos associar ecologia a "preservação", a uma "disciplina
científica", a um "movimento político" ou mesmo a uma "filosofia" ou "religião".
Por que pudemos fazer estas associações, que, dentro de uma certa racionalidade
admitida, são até mesmo incompatíveis e contraditórias? Por que pudemos construir
tantos significados diferentes? O fato é que, diante do desafio cognitivo de definir
ecologia, recuperamos significações já interiorizadas que integram nosso aparato

* Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da Universidade de São Paulo.


122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 121-149, 1996.

cognitivo naquele momento. Esses sistemas integrados de significações são a base da


nossa existência cultural, o que remete à questão de como pudemos nos apropriar de
tantas significações diferentes associadas ^.ecologia. De fato, a idéia de que a língua
não é um acervo estático de signos, significantes e seus usos e que não somos
simplesmente usuários, mas construtores, e que a mobilização de recursos lingüísticos
na produção dos discursos constitui uma ação propriamente social (cf. Possenti,
1988), nos remete à idéia de que, para prosseguir nossa reflexão, devemos voltar
nosso olhar para as comunidades que partilham tais recursos. Aqueles significados
que estávamos investigando são construídos, atualizados e modificados socialmente.
Além disso, ecologia, pelo menos quanto à maioria de seus significados, remete a
discursos institucionalizados, o que implica que existem agentes legítimos quanto à
competência de produzir e fazer circular tais discursos .Isso significa, além disso, que
a análise daquelas significações conduz à análise destes discursos institucionais e
portanto a uma documentalK Tentemos, portanto, seguir os percursos daque-
las significações. Vejamos como se expressa essa polissemia em alguns tipos de
registro disponíveis. Estes segmentos de textos em que a palavra ecologia é definida
ou utilizada foram retirados dos mais variados tipos de publicação: livros e periódi-
cos científicos, obras de divulgação e de comentário político, a grande imprensa
diária, e outros gêneros intermediários^.
Pude listar pelo menos 30 significados diferentes de ecologia, alguns com
diferenças sutis, mas importantes. Tome-se, por exemplo, a própria definição de
ecologia como ciência: Ecologia é uma ciência. Mas que tipo de ciência? Vejamos
alguns exemplos:
1. In part as a result ofthis realization, ecology has evolvedfrom a sub-discipline in
biology to a branch of science on its own that includes due involvement ofmany
aspects ofthe functioning ofhuman society (Geerling et al., 1986: 211).
2. The problem of disappearing species has hitherto been tackled mainly from the
standpoints of biology and ecology, with less attention to the economic and institu-
tional factors that bring species under threat (Myers, 1976: 193).
3. L'écologie est Ia science qui étudie les conditions d'existence des êtres vivants et
les interactions de toutes sortes qui existent entre ces êtres vivants d'une part, entre
ces êtres vivants et le milieu d'autre part. Ainsi définie Técologie est une science
biologique três vast dont il estparfois difftcile de cerner les limites. Ceei est d'autant
plus marqué que, à Vheure actuelle, le mot écologie sert à qualifier un três grand
nombre d 'idées etd'activités qui n 'ont rien à voiravec cette science et que l 'on nomme
parfois écologisme pour bien marquer Ia différence. D'autres chercheurs ont de
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 123-149, 1996.

récologie une conception plus étroite. Pour eux le domaine de Vécologie se limite à
ce que nous appelerons Vécologie des écosystèmes. Ils considèrent Vétude des
populations comme une discipline distincte, que Von peut appeler dynamique des
populations et ils excluent Vécologie des individus, ou autoécologie que s'apparente
alors à Ia physiologie (écophysiologie) et à Ia biogeographie. Si Von adopte ce
dernier point de vue Vécologie peut être défmie comme Vétude de Ia structure et du
fonctionnement des écosystèmes (Dajoz, 1985).
No segmento 2, a ecologia^ra uma subdisciplina da biologia e se desenvolveu
no sentido de tornar-se uma ciência autônoma. Então a ecologia:
a. era uma disciplina biológica,
b. não é mais.
Se não é mais biológica, então o que é agora? Neste mesmo segmento, vemos
que esta nova ciência autônoma inclui aspectos do funcionamento da sociedade
humana. De modo que a ecologia não é mais biológica não por ter deixado de ser
biológica, mas porque é mais do que biológica: é também social.
No segmento 2, aparentemente ela também não é biológica, pois os pontos de
vista da biologia e da ecologia são mencionados aditivamente. Mas também não
inclui os aspectos econômicos e institucionais que obviamente estão implicados na
definição do segmento 32.
Finalmente, no segmento 3 a ecologia é uma disciplina plenamente biológica,
mesmo que vasta. O segmento 3 também mostra o conflito de definições e a defesa
deste autor quanto à competência da ecologia. De fato, o ponto de vista de
que a ecologia é uma disciplina biológica, ainda que com competência para
compreender objetos sociais (e os abrange a partir de sua perspectiva biológica), é
hegemônico entre os cientistas. Além disso, o segmento 3 deixa entrever um outro
conflito que se expressa na própria definição do objeto natural da ecologia, ao qual
voltarei a seguir.
Então, aqui temos exemplos de definições que associam ecologia a uma
disciplina biológica, a uma ciência natural e a uma ciência mais do que natural -
também social. Mas há mais diversidade no que diz respeito ao entendimento da
ecologia como ciência. Vejamos a seguinte passagem:
Meanwhile in psychology, Gibson has proposed an "ecological theory of
perceptwn'' which makes information central (...) In the cases above, ecological
^alue and amounts of information matched nicely and this might suggest that
ecological epistemology could be pursued entirely in terms of information
^aximization (Grandy, 1987: 197).
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 124-149, 1996.

O que pode tornar uma teoria da percepção particularmente ecológica? Vemos


que a ecologia aqui diz respeito ao instrumento para descrever fenômenos relativos
a informação. Aqui a ecologia está muito próxima à cibernética e à teoria da
informação, fontes de tantos modelos, analogias e metáforas nas teorias "biológi-
cas" da ecologia^ Algo mais ou menos semelhante pode ser observado num texto de
Bateson em que ele justifica sua ecologia das idéias em função da natureza
"ecológica" das questões abordadas:
How do ideas interact? (...) What are the necessary conditions for stability (or
survival) ofsuch a system or subsystem? (Bateson, 1972: 494).

É possível inferir que a concepção subjacente de ecologia aqui é a de uma


ciência dos sistemas. A ecologia, despida de seu estofo biológico, natural ou mesmo
social adquire aqui o status de uma referência teórica geral, um sistema filosófico
- é a universalidade sem limite.
Há também concepções da ecologia como ciência das interações de qualquer
objeto com seu ambiente, o que permite construir diversos novos domínios"^.

2. A diversidade no tempo
Até agora fizemos explodir a unidade ecologia mediante um corte sincrônico
nos discursos científicos produzidos. Vejamos o que nos aguarda um corte diacrônico:
1. By ecology we mean the body ofknowledge concerning the economy ofnature -
the investigation of the total relations of the animal both to its inorganic and to its
organic environment; including, above ali, its friendly and inimical relations with
those animais and plants with which it comes directly or indirectly into contact - in
a word, ecology is the study ofall those complex interrelations referred to by Darwin
as the conditions ofthe struggle for existence (Haeckel, 1870, in Mcintosh, 1985: 7).
2. The increasing sanity of physiological problems is due in large measure to the
wholesome influence of ecology. In the old days when physiology was a mere
laboratory science, and therefore artificial, no experimental test could be too bizarre
to be applied to plants (Cowles, 1909, in Mcintosh, 1985: 40).
3. Usually ecology is defined as the study ofthe relation of organisms or groups of
organisms to their environment, or the science ofthe interrelations between living
organisms and their environment. Because ecology is concerned especially with the
biology of groups of organisms and with functional processes on the lands, in the
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 125-149, 1996.

oceans, and infresh waters, it is more in keeping with the modem emphasis to define
ecology as the study ofthe structure andfunction ofnature, it being understood that
mankind is a part ofnature (Odum, 1971: 3).

E. Haeckel merece uma menção especial nesta perseguição às significações de


ecologia, pois foi o responsável pela cunhagem do termo em 1866 e, portanto, pela
atribuição de seu primeiro significado. No segmento 1, Haeckel propõe em 1870 que
o objeto de estudo da ecologia - um "corpo de conhecimento", uma disciplina
científica - possa ser descrito pela expressão "economia da natureza"^, que seria o
conjunto de relações do organismo com seu ambiente. No entanto, Haeckel especi-
fica que este seria um estudo das "condições da luta pela existência". Esta luta pela
vida, centrada nas relações competitivas, é o núcleo da explicação sobre a especiação
na teoria evolutiva de Darv^in. Assim, ecologia é o estudo das condições do proces-
so evolutivo e, portanto, subordina-se conceitualmente a este outro estudo. Como
veremos em outro capítulo, alguns autores identificam justamente nesta subordina-
ção o motivo pelo qual a cunhagem do termo ecologia neste momento está dissocia-
da de sua constituição como disciplina científica, aproximadamente 30 anos depois.
A ecologia é definida em função da Evolução - um discurso baseado em explicações
de natureza histórica - , é centrada no animal (plantas não mencionadas) e diz
respeito à sua expressão na espécie e na população.
Trinta e nove anos mais tarde, em 1909, encontramos Cov^les, no segmento 50,
empregando o mesmo.termo ao referir-se a uma disciplina científica. No entanto,
aqui vemos uma ecologia centrada nãplanta e tendo como problemática as questões
fisiológicas. Poderíamos até mesmo assumir que o enunciado de Cov^les nos autoriza
a considerar a ecologia uma espécie de "superfisiologia", já que a antiga fisiologia
era uma "mera ciência de laboratório"; agora, na condição de ecologia, seria também
de campo. Se suas feições são fisiológicas, então constitui um discurso caracterizado
por explicações funcionais, favorecendo-as sobre as de natureza histórica.
Dando mais um salto de 62 anos, podemos observar Odum definindo a ecologia
como o estudo da estrutura e função da natureza, não enfatizando especialmente nem
animais, nem plantas; nem o ambiente, nem o organismo. Esta natureza, da qual se
deseja compreender a estrutura e função, é um todo inseparável. Um todo cujas
características são possuir estrutura e função - um sistema estruturado.
Se fossem introduzidos mais segmentos no conjunto, preencheríamos os saltos
cronológicos com mais diversidade: teríamos V. E. Shelford definindo ecologia
como a ciência das comunidades em 1913 (Mcintosh, 1985: 263), C. Elton defi-
nindo-a como uma história natural científica em 1927 (Elton, 1927) e muito mais.
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 126-149, 1996.

A ecologia não apenas não é o mesmo objeto para os diferentes grupos de


agentes que a definem hoje, como não foi o mesmo objeto ao longo dos últimos 127
anos, mesmo considerando apenas os cientistas.

3. Muito além da ciência


Mas ciência é apenas uma pequena parte do conjunto das significações
disponíveis para ecologia. Considerando uma parcela mais ampla de consumidores
de discursos institucionais, talvez nem mesmo a mais comum. As mais comuns
parecem ser aquelas que associam a ecologia a programas, movimentos ou discursos
políticos em geral ou, alternativamente, aquelas que associam ecologia a preserva-
ção ou a meio ambiente. Pode-se afirmar isto porque são os conteúdos mais
comumente atribuídos a ela pela mídia (Coutinho, 1994). Há uma causa ecológica
e uma consciência ecológica. Ecologia aqui é um conjunto de representações sobre
a sociedade, um discurso prescritivo de como administrar as relações sociais, uma
plataforma de transformação política (segmentos 18 a 29). Esse parece ser o sentido
de ecologia implícito no seu emprego neste segmento:
"Tudo isso implica que devemos aprofundar a reflexão a respeito da idéia de
sociedade natural, tão comum entre aqueles que se envolvem com a ecologia"
(Gonçalves, 1989: 95).
Tratando-se de discursos políticos e, portanto, prescritivos, sobre o quê e em
que sentido eles normatizam? Num texto de J. A. Pádua (1987: 13), vemos a ecolo-
gia qualificada como "política" identificada à reflexão política sobre as relações
entre natureza e sociedade. É exatamente aqui que se imbricam todas as modali-
dades de discurso que mobilizam a palavra ecologia. Há um grande projeto (Leis,
1991: 11) ou causa ecológica^, cumprível por agentes do campo político (am-
bientalistas), em que a natureza parece promovida à qualidade de ator social, capaz
de ecologizar a sociedade (Lago, 1991: 217) ou de engendrar uma consciência
ecológica. Mas consciência do quê é esta consciência ecológica? Esta ecologia ca-
paz de qualificar consciência é um produto cultural, ou é a própria natureza?

"A 'consciência ecológica' seria, pois, o resultado de esforços combinados, des-


de os efetuados por lideranças científicas nos diversos campos de investigação aos
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 127-149, 1996.

setores técnicos de aplicação de conhecimentos, aos quadros de decisão política e ao


contexto social, indiscriminadamente" (Lago, 1991: 25-6).
Vemos aqui que esta consciência é resultado dos esforços de políticos, técnicos
e cientistas e presume-se que tais esforços se referem à divulgação de seus discursos
específicos. Desta forma, os conteúdos desta ecologia que se faz consciência estão
configurados por estes discursos. Assim, a consciência ecológica ou da ecologia é
a consciência dos conteúdos do discurso da ecologia. Mas podemos também admitir
que os esforços persuasivos dos setores indicados objetivam promover a consciência
de uma condição, analogamente à consciência de classe ou consciência política em
geral - respectivamente, consciência da condição de classe e da condição política,
ou de pertencer a uma classe e a uma categoria política. Qual seria a condição de
pertencimento correspondente a ecologial Certamente, a própria natureza. Ao
contrário de outras formas de "consciência" buscadas por segmentos variados do
campo político em que se objetiva proporcionar à pessoa a interiorização de uma
representação de si mesma como ser da sociedade, esta busca inculcar uma represen-
tação dos homens como seres da natureza. Volto a indagar: ecologia, aqui, é produto
cultural ou objeto da natureza? Ambigüidades do mesmo gênero estão presentes em
expressões como ecologização da sociedade (Lago, 1991: 217) ou desafio ecoló-
gico (Leis, 1991: 8).
Por um lado pela importância social dos significados políticos associados a
ecologia e por outro pela busca de distinção entre os conteúdos político e científico,
e, portanto, dos domínios de competência correspondentes^, foi engendrado o
popular neologismo ecologismo. Uma definição representativa é aquela oferecida
por E. J. Viola e H. R. Leis (1991: 24). Nesse segmento, o autor se esforça por
caracterizar um imenso coletivo, cujas regras de coesão permanecem obscuras, que
se identifica por ser de uma forma ou de outra recoberto pela temática ambiental.

4. Natureza e preservação
O objeto da natureza com o qual a palavra ecologia é mais identificada é meio
ambiente. No texto "Rio Ciência 1992" (elaborado por cientistas reunidos por
ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimen-
to), onde se afirma que as populações se iorndimguardiãs da ecologia (em condições
socialmente justas), estão se tornando protetoras do meio ambiente, ou da natureza.
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 128-149, 1996.

O sentido é o mesmo em expressões como reserva ecológica ou reduto ecológico^,


em que o sentido é "área da natureza sob proteção" ou, no caso do reduto, "área
particularmente intocada pelo homem". Este uso é muito comum na mídia, onde, no '
entanto, abundam usos ambíguos, ou, dependendo do ponto de vista, sintéticos e
abrangentes da palavra ecologia:
Ecologia (grande) á Cidade (pequeno) - Caderno do Jornal do Brasil, no período
que antecede a Eco-92, dedicado à cobertura de assuntos relacionados ao evento.
Esta "ecologia" do Jornal do Brasil vale para tudo: desde noticiar aconteci-
mentos políticos relativos às negociações da Eco-92^, passando por divulgar concei-
tos científicos, até atividades místicas. A mídia, na verdade, reconhece e legitima
todos os conteúdos que foram sendo construídos sob o termo ecologia,
No discurso científico também ocorrem identificações de ecologia com
objetos ou propriedades da natureza. Veja por exemplo os seguintes segmentos:
1. Man has been interested in ecology in a practical sort ofway since early in his
history (Odum, 1971: 3).
2. (...) The ecology and population dynamics of the species has been disrupted
(Bateson, 1972: 145).
3. The Ecology of Mangroves (segue artigo descrevendo aspectos energéticos do
ecossistema do mangue) (Lugo e Snedaker, 1974: 51).
No segmento 1, o homem pode ter estado interessado nas questões relativas à
sua relação com a natureza ou pode ter estado interessado nas propriedades da
natureza que, para o autor em questão (Odum), são as propriedades funcionais e
integrativas da ecologia. No segmento 2, a espécie tem uma ecologia, ou seja, uma
propriedade (que se refere à sua relação com outros organismos e com o meio), e no
segmento 3, o mangue, ou seja, um ambiente, também tem sua ecologia (uma
propriedade do ambiente que se refere aos fluxos de matéria e energia e às cadeias
tróficas que suporta).
De um ponto de vista bem diferente, ecologia pode ser associada a uma técnica
ou prática, como a preservação do meio ambiente:
"Existe uma complexa tensão entre a justiça social (que pode implicar valorizar
a distribuição sobre a ecologia) e o ecologismo (que pode implicar, valorizar a
ecologia sobre a distribuição) (...) A tensão entre democracia e ecologia reflete-se no
movimento ecológico através da clivagem existente no seu interior entre os fun-
damentalistas e os reahstas" (Viola, 1987: 73 e 77).
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 129-149, 1996.

A ecologia que se contrapõe à distribuição é a preservação do meio ambiente,


que se definem como práticas de conservação que restringem a intervenção econô-
mica. O "Oscar da ecologia", mencionado numa manchete do Jornal do BrasiV^,
tem conteúdo semelhante: refere-se às atividades de proteção ao meio ambiente.
Note-se que um outro significado foi contrabandeado nesta expressão, o qual pode
ser considerado ligeiramente desqualificativo: "Oscar" é um prêmio atribuído àqueles
que realizam espetáculos artísticos de entretenimento... Para quem acompanhou e
analisou a cobertura dos grandes órgãos de imprensa nacional, não é difícil remetê-
la ao contexto de crítica ao pensamento ambientalista instaurado no discurso jor-
nalístico destes veículos.
A ecologia é, ainda nesta categoria de significados, a profissão dos ecologistas.

5. Representar e prescrever
Há algo que chama atenção em muitas definições de ecologia - tanto naquelas
em que a palavra é associada a um conteúdo político como a um conteúdo científico.
E a proposição da ecologia como perspectiva normativa em relação ao próprio
conhecimento. Veja por exemplo este segmento, onde há um pouco de cada uma
destas significações:
"São reações que postulam pelo que hoje se rotula como 'desenvolvimento
sustentável' ou 'ecodesenvolvimento', conceitos que iremos aprofundar,
oportunamente.
Estas reações são oriundas de muitas fontes de conhecimentos, inicialmente es-
pecíficos, mas que se inter-relacionam, amarrados pela força holística contida nos
propósitos da Ecologia, um campo científico que nasceu na Biologia, não tão novo
como aparenta ser à opinião leiga" (Lago, 1991: 13).
Em primeiro lugar, aqui a ecologia é um campo científico, Este campo:
a. nasceu na Biologia,
b. tem propósitos.
Este discurso é portanto normativo, pois exibe uma intencionalidade explícita
(propósitos). Para garantir a implementação destes propósitos, os mesmos são
dotados de uma força. Observamos em seguida que a natureza desta força é
epistemológica, pois é uma força holística, capaz de inter-relacionar fontes de
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 130-149, 1996.

conhecimento. Portanto, a ecologia constitui muito mais do que uma ciência empí-
rica: trata-se de um verdadeiro sistema filosófico aqui. É assim que a ecologia parece
ser entendida freqüentemente como uma nova "visão de mundo", um verdadeiro
sistema de valores, como fica evidenciado pela associação entre feminismo e
ecologia feita por F. Capra (1986: 38). É nesta categoria de enunciados que
encontramos a tendência que contraria a diferenciação entre conteúdos científico e
político identificada mais acima. Examinemos, por exemplo, o seguinte segmento:
1. Ecology is the study ofthe structure andfunction of Gaia, or of Gaia as a total
spatio-temporal system. 2. Ecology is the study ofGaian laws, 3. Ecology is a non-
disciplinary study. 4. Ecology is holistic. 5. Ecology is subjective. 1. The most
fundamental ecological knowledge is acquired by intuition. 8. Ecology is emotional
(Goldsmith, 1988(a): 161-3).
Goldsmith insiste que ecologia não deixa de ser ciência (é um estudo) por ser
holística e normativa. Todas estas proposições parecem estar num contexto dialógico
bem definido: a ecologia deve ser subjetiva em oposição à objetividade, deve ser
emocional em oposição à racionalidade, deve ser não disciplinar em oposição às
fronteiras da ciência institucional e seus conteúdos devem ser adquiridos por
intuição em oposição à experimentação e verificação, presumivelmente. Na verda-
de, esta definição de ecologia desafia as definições científicas, as fronteiras dese-
nhadas por definições políticas e propõe uma readequação de conteúdos. Ela não se
submete à partição de domínios de competência mencionada anteriormente e
reivindica em relação aos mesmos legitimidade universal. Qual seria o significado
disto? Antes de ensaiar uma resposta, prossigamos mais um pouco.
Nesta rota seguem também proposições ainda mais abrangentes quanto ao
alcance da ecologia como visão de mundo. Trata-se das perspectivas para as quais a
ecologia é uma referência religiosa^^ Assim, a re-sacralização da natureza, ou
reencantamento do mundo (Mangabeira Unger, 1991), redefiniria a ecologia como
um discurso sobre um objeto sagrado, e, portanto, como um discurso religioso.
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 131-149, 1996.

6. Definições e contradefinições
no campo científico
Dediquemos agora um pouco de atenção às definições científicas de ecologia,
especificamente aquelas encontradas em livros-texto e artigos de periódicos da área.
A primeira coisa que se destaca é o fato de tantas definições serem tão claramente
contradefinições (Latour, 1987). Um exemplo:
"The word ecology carne into use in the last halfofthe nineteenth century. Henry
Thoreau in 1815 used the word in his letters, but he did not define it. Ernst Haeckel
in 1869 defined ccology as the total relations ofthe animal to both its organic and its
inorganic environment. This very broad definition has provoked some authors to
point out that if this is ecology, there is very little that is not ecology. Since four
biological disciplines are closely related to ecology - genetics, evolution, physio-
logy, and behavior - the problem ofdefining ecology may be viewed schematically
in the following way: (...) Broadly interpreted, ecology overlaps each of these
subjects; hence we need a more restrictive definition.
Charles Elton (1927) in his pioneering book Animal Ecology define d ecology as
scientific natural history. Although this definition does point out the origin ofmany
ofour ecological problems, it is again uncomfortably vague. Eugene Odum (1963)
defined ecology as the study ofthe structure and function ofnature. This statement
has the merit of emphasizing the form-andfunction idea that permeates biology, but
it is not a completely clear definition.
A clear and restrictive definition í?/ecology is this: Ecology is the scientific stu-
dy ofthe distribution and abundance of organisms (Andrewartha, 1961). This defi-
nition is static and leaves out the important idea of relationships. Ecology is about
relationships, and we can modify Andrewartha 's definition as follows: Ecology is the
scientific study ofthe interactions that determine the distribution and abundance of
organisms. This definition of ecology restricts the scope ofour quest to a manageable
levei and forms the starting point for this book. We are interested, then, in where
organisms arefound, how many occur there, and why" (Krebs, 1985).

Neste segmento, Krebs considera todas as definições precedentes ou muito


abrangentes, ou muito vagas ou incompletas e propõe uma definição alternativa
bastante diferente. Deixando absolutamente claras suas intenções persuasivas, este
texto constitui uma denúncia evidente de uma controvérsia quanto à representação
que fazem da ecologia os próprios ecólogos e quanto à natureza de seu objeto. Pois

I
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 132-149, 1996.

a definição criticada de Odum não é simplesmente "vaga", e sim contraditória com


a sua: "O estudo da estrutura e função da natureza" é uma proposição que localiza o
centro de atenção sobre o sistema (estrutura) que organiza os processos. A definição
alternativa proposta por Krebs opera uma completa transferência do foco de atenção
para os organismos, os quais se distribuem e abundam. No texto de Dajoz anterior-
mente analisado (Dajoz, 1985: 2), em que a definição de ecologia também é
construída contra a definição ecossistêmica (e além disso contra a apropriação de
seus significados por discursos políticos), vemos que, numa proposição diferente da-
quela adotada por Krebs, Dajoz faz gravitarem os problemas da disciplina em torno
dos organismos. Dajoz se diferencia de definições como a de Krebs ou a de An-
drewartha (mencionada por Krebs) porque, ao contrário destes últimos, não constitui
como objeto central de sua disciplina as populações, pois prioriza a ênfase no
organismo. E. R. Pianka deixa ainda mais claro o ponto central das restrições feitas
por Dajoz e Krebs às definições ecossistêmicas ou mesmo definições de "escolas"
passadas (scientific natural history, definição de Elton em 1927):
ecologists begin with the organism and seek to understand how the organism ajfects
its surroundings and how these surroundings in turn affect the organism,

Não começam na estrutura, nem no fluxo de energia, nem na descrição das


comunidades: o organismo prevalece.
Bruno Latour afirmou em seu muito difundido e controvertido Science in
Action que "todos os laboratórios são contralaboratórios, da mesma forma que to-
dos os artigos técnicos são contra-artigos"" (Latour, 1987: 79). Esta afirmação se
conforma à proposição de Latour quanto ao papel central das controvérsias na cons-
trução da ciência. Para este autor, a "tecnociência" é constitutivamente social no
sentido de que o destino de seus produtos é função da manipulação que sofrem pelos
participantes do processo. Esta manipulação leva ou ao fortalecimento do produto,
no sentido de maior legitimidade e menor contestação, ou a seu enfraquecimento, em
sentido oposto. Em função disso formam-se complexas redes de relações, ligando
participantes diversos, que envolvem, basicamente, o que Latour chama de "tradu-
ção de interesses": trata-se de relações em que interesses diferentes de diferentes
participantes são reciprocamente reforçados num certo contexto de construção e cir-
culação de um produto "tecnocientífico". Um importante motor da mobilização de
tais recursos é a existência de "contraprodutos" e "contralaboratórios", em função
dos quais o participante procura se fortalecer, recrutando maior número de "aliados"
(por exemplo, na forma de citação de trabalhos anteriores já estabelecidos, ou
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 133-149, 1996.

"caixas-pretas" anteriores). Neste processo, os produtos já em circulação são exten-


sivamente manipulados e, portanto, modificados nessa manipulação.
Ilustrações disso podem ser facilmente identificadas nos segmentos acima: em
seu texto, Krebs recapitula em 1985 as mais importantes definições implicadas na
construção das definições correntes de ecologia: a de Haeckel, de Elton, de Odum
e de Andrewartha. Estes enunciados são manipulados no novo texto segundo as in-
tenções específicas de seu autor. O mesmo se pode dizer do texto de Dajoz (1985: 2),
em que a definição de Odum figura - embora seu autor não sej a nomeado - como uma
definição estreita e limitada. Em outros segmentos estudados (Coutinho, 1994:
ref. 8), as demais definições aparecem desqualificadas, confrontadas a uma que é
"a melhor".
Neste processo, algumas proposições são fortalecidas pela incorporação operada
pelo novo texto em detrimento de outras, que são, em contrapartida, enfraquecidas.

7. A condicionalidade contextual da significação


e o contexto social
Observemos a listagem abaixo que resume os significados encontrados no
material estudado (Coutinho, 1994). De onde teria se originado tamanha diversidade?

1. Relação sociedade-natureza
2. Propriedade da natureza / relações entre organismos e com ambiente
3. Natureza
4. Meio ambiente
5. Uma ciência
6. Uma ciência que nasceu na Biologia
7. Uma ciência que transcendeu a biologia / que transcendeu as ciências naturais
8. Uma ciência diferente da biologia
9. Uma ciência biológica
10. Um domínio inter ou transdisciplinar
11. Um estudo não-disciplinar
12. Núcleo das ciências ambientais
13. Uma ciência com prescrições sobre a sociedade
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 134-149, 1996.

14. Um programa político para administrar a sociedade / um discurso prescritivo


sobre a sociedade
15. Um programa político para transformar a sociedade
16. Um movimento político
17. Um sistema filosófico que se dedica à questão da relação do homem com a
natureza / uma outra racionalidade
18. Uma macroteoria
19. Qualquer perspectiva teórica onde a informação (cibernética) desempenha papel
central
20. Toda perspectiva teórica que trata da relação de algum objeto com a natureza
21. Toda perspectiva teórica que permite interpretar sistemas de relações
22. Toda reflexão sobre a relação entre sociedade e natureza
23. Sistema ou perspectiva religiosa
24. Visão de mundo
25. Uma nova cultura
26. Conjunto de diretrizes para manipular a natureza
27. Uma técnica de manejo da natureza
28. Uma profissão
29. Todas as atividades ligadas ao meio ambiente
30. Preservação da natureza
31. O estudo da estrutura e função da natureza
32. Disciplina científica que se aproxima da genética, evolução, fisiologia e
comportamento
33. História natural científica
34. O corpo de conhecimentos referente à economia da natureza
35. O estudo científico da distribuição e abundância dos organismos
36. O estudo científico das interações que determinam a distribuição e abundância
dos organismos
37. A ciência que cuida de estabelecer as ações recíprocas que fatores ambientais e
seres vivos desenvolvem uns sobre os outros
38. Uma fisiologia de campo
39. Uma fisiologia mais grosseira
40. A ciência que estuda as condições de existência dos seres vivos e as interações
que existem entre eles e entre estes e o meio
41. Estudo do ambiente natural, particularmente as inter-relações entre organismos
e seus arredores, medidas pelo comportamento
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 135-149, 1996.

42. É o estudo das plantas e animais como indivíduos e juntos, em populações ou


comunidades, em relação aos seus ambientes
43. É a construção tridimensional de camadas horizontais representando a hierarquia
da organização biológica de indivíduo até ecossistema e secções verticais (atraves-
sando as camadas horizontais) representando forma, função, desenvolvimento,
regulação e adaptação
44. É o estudo das propriedades de Gaia
45. Uma atividade subjetiva, intuitiva e emocional

O que fiz até agora foi simplesmente evidenciar a diversidade de conteúdos


semânticos possíveis para a palavra ecologia. Sempre que foi necessário decompor
a estrutura do texto, tive de introduzir, mesmo que implicitamente, informações
ausentes no mesmo. Para prosseguir nossa investigação é necessário, agora, pôr em
evidência o que esteve em operação desde o início: o contexto.
Identifiquei uma palavra, selecionei segmentos de textos em que figura, referi
seu conteúdo semântico a este emprego e fiz circularem outros tantos textos
invisíveis capazes de, vez por outra, parafrasear um enunciado, introduzir um novo
conteúdo ou uma referência material. Todas estas operações se remetem a perspec-
tivas estabelecidas no controverso domínio da lingüística, no que tange à produção
e consumo dos discursos. Também se remetem à sociologia, no que diz respeito às
relações sociais que constituem as condições desta produção e consumo, e à
antropologia, na medida em que correspondem a atos simbólicos configurados numa
determinada cultura.
O discurso é objeto de interesse e estudo por parte de disciplinas bem
diferentes. Ao contrário de outros objetos que se caracterizam como centro de
cruzamento temático de várias disciplinas sem que necessariamente haja qualquer
sobreposição, implicações recíprocas ou disputas conceituais, as diversas configu-
rações do objeto "discurso" são relevantes para as disciplinas envolvidas. Para
começar, vale a pena inspecionar com cuidado estes instrumentos que a lingüística
oferece para os que desejam empreender análises dos discursos. Possenti, defensor
da pragmática "lingüística do discurso", em oposição à "lingüística das formas",
concebe a atividade lingüística como uma atividade constitutiva, e não apropriativa
da língua, e define o discurso como a língua em uso, ou a mobilização de seus recursos
expressivos com uma determinada finalidade. Tal atividade sempre ocorreria no
âmbito configurado pela relação entre um certo locutor e um alocutário. A questão
fundamental para Possenti é a resolução da indeterminação semântica: como se pode
produzir um discurso com uma forma e interpretação precisas em um sistema
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 136-149, 1996.

lingüístico indeterminado e, considerando a possibilidade de mais de uma interpre-


tação, como a interpretação desejada (ou interpretações possíveis) é determinada.
Assim, todos os processos de construção da significação levam automaticamente ao
contexto. A relação entre o sentido discursivo e o contexto opera uma segunda
oposição de abordagens na lingüística, que não necessariamente recobre a primeira
(lingüística das formas x lingüística do discurso; pragmática x estruturalismo): o
contextualismo x o literalismo. Para H. Parret (1988), existem estratégias da produ-
ção e compreensão das seqüências discursivas subjacentes à construção de contextos,
em relação aos quais o autor apresenta uma tipologia detalhada. Estas estratégias se
assentariam numa racionalidade específica ligada ao discurso. Sendo as estratégias
"regularidades exteriorizadas", na visão de Parret, o discurso é, para o pragmaticista,
a totalidade das regularidades. Para Parret, compreender implica inferir um "correlato
de sentido" que consta de três componentes: um operador universal de racionalida-
de, uma estrutura modal e um conteúdo proposicional. Estes três componentes da
construção de significação orientam três tipos específicos de contexto, os quais
contemplam respectivamente as suposições prévias socialmente disponíveis a uma
comunidade discursiva, as perspectivas ou "opiniões" dos parceiros numa situação
comunicativa e as crenças do sujeito falante/intérprete. Para Parret, essa perspectiva
proporciona uma reavaliação da subjetividade na língua sem cair no psicologismo ou
no subjetivismo.
Assim, no domínio da lingüística, o discurso diz respeito fundamentalmente à
pragmática, pelas razões já mencionadas por Possenti e Parret. A análise do discurso
de uma perspectiva pragmática oferece a possibilidade da investigação dos aspectos
sociais e cognitivos da produção e compreensão dos discursos. Para o cientista social
interessado em compreender a dinâmica da produção simbólica de um determinado
segmento social, sob o ponto de vista das relações hierárquicas do campo, das
disputas entre instâncias com interesses diversos e revelar as estruturas e relações que
é função desse discurso ocultar, trata-se de uma ferramenta poderosa. Tais relações
e trocas que se dão no plano dos produtos simbólicos da sociedade expressam-se nos
discursos através de marcas lingüísticas (estruturas sintáticas, escolhas lexicais etc.)
características, chaves da dependência contextual da semanticidade do discurso. A
análise destas marcas no texto nos levaria a inferir certas imagens, certas significa-
ções, ou mesmo certos discursos, dependendo da interpretação de cada autor. H.
Osakabe (1979), seguindo M. Pêcheux, investiga as imagens que se fazem mutua-
mente destinador e destinatário de um discurso. Ao algoritmo de Pêcheux - que se
restringe à investigação das formações imaginárias - , Osakabe acrescenta a questão
pragmática quanto à intenção do destinador com relação ao efeito do discurso sobre
T
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 137-149, 1996.

o destinatário. O autor, então, se inscreve plenamente na concepção da linguagem


como ação.
O tratamento que tem sido dado à dependência contextual da determinação
semântica das seqüências discursivas é diversificado. M. Dascal (1990), por exem-
plo, identifica duas categorias básicas de material contextual: os textos adicionais
- ou co-textos - e os dados situacionais - ou contexto. Assim, potencialmente,
qualquer texto relacionado com o texto primário ou qualquer elemento de informa-
ção histórica seria candidato ao papel de co-texto ou contexto, respectivamente.
Como ambos são potencialmente enormes, Dascal propõe que o critério para a
seleção de informação contextual relevante seja o que identifique o material
indispensável para a compreensão do texto, e não a revelação do seu status num
quadro histórico-sociológico mais amplo. Parret (1988), por outro lado, identifica
cinco tipos de contexto relevantes para a explicação do discurso. O contexto co-
textual, o contexto existencial, o contexto situacional, o contexto acionai e o
contexto psicológico. O contexto co-textual diz respeito ao papel determinante de
seqüências discursivas mais ou menos contíguas textualmente; o contexto existen-
cial diz respeito à identidade do locutor e dos alocutários, bem como sua localização
espaço-temporal - são "os objetos, estados de coisas ou acontecimentos do mundo
real e/ou dos mundos possíveis" (p. 18). O contexto situacional proporciona de-
terminantes de caráter sociológico na construção da significação das seqüências
discursivas, de modo que não se materializa propriamente em seqüências lingüísti-
cas. O contexto acionai diz respeito à situação comunicativa onde se insere todo e
qualquer discurso: o contexto acionai de um determinado discurso é constituído das
ações lingüísticas dos outros falantes da situação comunicativa, alocutários daquele
primeiro. Finalmente, o contexto psicológico é o conjunto de intenções, crenças e
desejos que determinem ações comunicativas. Esta abordagem parece adequar-se
especialmente à nossa situação.
Com estas ferramentas, voltemos novamente à pergunta que fiz a respeito das
intenções do editor da revista The Ecologist: por que E. Goldsmith insiste que a
ecologia seja uma ciência, porém definida em termos totalmente incompatíveis com
os padrões científicos atualmente admitidos? A resposta a esta pergunta está no
contexto acionai, na situação dialógica específica que determina os papéis que po-
dem ser desempenhados respectivamente pelo enunciador e pelo enunciatário. O
primeiro passo, portanto, é saber çw^m é Goldsmith, visto que estamos lidando com
discursos institucionais. E. Goldsmith é o editor de um periódico chamado The
Ecologist, que surgiu nos anos 70, comprometido com a luta política em torno da
questão ambiental. À frente da editoria deste periódico, Goldsmith estabeleceu uma
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 138-149, 1996.

tradição na organização de eventos envolvendo acadêmicos e militantes para a


discussão de questões acadêmicas e militantes. The Ecologist é consiáQXdiáo o centro
intelectual do movimento político em torno da questão ambiental na Grã-Bretanha
dos anos 60 e 70 e continuou a ocupar um lugar de destaque na década seguinte.
Edward Goldsmith, que edita e financia o periódico, é irmão de um empresário in-
glês multimilionário (Bramwell, 1989: 218-9). Mas o que chama atenção e é
relevante para os propósitos desta reflexão é que neste periódico é possível encontrar
desde artigos sobre um acontecimento político-ambiental como sobre uma discussão
conceituai no âmbito teórico da ecologia. Assim, Goldsmith não tem legitimidade
entre a comunidade científica, não publica em seus periódicos, mas tem trânsito o
suficiente para ter seus interlocutores nela, entre os quais E. Odum (Coutinho, 1994:
ref. 8). E a quem fala Goldsmith? Evidentemente, fala a seus leitores - seus pares
ambientalistas e o público culto^^ prescreve para eles, estabelecendo as bases para
se pensar a ciência e a sociedade. Mas, num outro nível, o grande alvo das
proposições de Goldsmith sobre a ciência são os próprios cientistas, a quem tais
proposições realmente dizem respeito. É a eles que Goldsmith diz que não se
subordina aos valores partilhados da comunidade científica, que os contesta e os
substitui; é a eles que Goldsmith afirma a intenção de disputar a prioridade quanto à
legitimidade do discurso sobre a natureza. O verdadeiro enunciatário deste segmento
é a comunidade científica. Seguindo o algoritmo de Pêcheux (Pêcheux, 1969),
pergunto:
1. Quem Goldsmith (A) se considera ser para falar ao cientista (B) assim?
Alguém excluído do campo científico reivindicando legitimidade para falar sobre
seu objeto para os cientistas.
2. Quem o cientista considera ser Goldsmith para que lhe fale assim? Alguém
excluído do campo científico e sem legitimidade para falar sobre os objetos de
competência dos cientistas.
3. Quem Goldsmith considera ser o cientista para falar-lhe assim? Alguém que
tem uma posição privilegiada em relação à legitimidade dos discursos sobre a
natureza, posição esta que Goldsmith disputa - alguém a ser deslocado.
4. Quem o cientista se considera ser para que Goldsmith lhe fale assim? O
detentor do direito de proferir discursos legítimos sobre a natureza.
5. Do que Goldsmith pensa estar falando para falar assim ao cientista? De um
novo objeto, que só pode ser configurado uma vez redefinidas as fronteiras da
cientificidade.
6. Do que o cientista pensa que Goldsmith está falando? Do seu (cientista)
objeto de competência.
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 139-149, 1996.

Para compreender os atos representados pelas proposições de Goldsmith e,


portanto, o significado de mais esta definição de ecologia, tivemos que reconduzi-las
ao seu contexto e dar materialidade a seu enunciador. A análise deste segmento de
texto, em contrapartida, forneceu uma nova série de indicações sobre este mesmo
contexto: nos mostrou que, considerando a natureza dialógica e a estrutura
argumentativa deste discurso, deve haver uma disputa quanto às fronteiras do
domínio de competência intelectual definido pelo objeto em questão - a natureza,
o ambiente. Obtivemos esta resposta indagando a respeito da relação entre o texto
e as identidades dos agentes envolvidos - suas representações sobre si mesmos e
sobre seu interlocutor.
Pudemos, então, remeter o significado atribuído a ^co/og/a neste segmento de
texto a uma situação contextual em que a mesma se associa à estratégia de um certo
agente e às relações sociais que este agente estabelece com outros. A esta altura é
possível perceber que, no universo de enunciados possíveis que associam significa-
ções à palavra ecologia é possível constituir subpopulações que partilham certas
regularidades. Assim, podemos perceber que a associação de ecologia a biologia é
predominante entre os segmentos obtidos de textos acadêmicos de ecologia bem
como entre aqueles em que ecologia aparece como propriedade da natureza.
Também podemos perceber que a idéia de uma "causa" ou "programa" ambiental é
comum aos segmentos que identificam ecologia como uma técnica ou prática, que
a identificam a um movimento político e os que a identificam a uma perspectiva
filosófica.
As incongruências observadas entre os diversos significados dcecologia agora
podem ser reportadas então a diferentes contextos, diferentes discursos - discursos
incomensuráveis. A incomensurabilidade é uma característica importante dos discur-
sos institucionais que estamos analisando. T. Kuhn (1970) foi um dos primeiros a
insistir que esta é uma característica dos discursos científicos. Para Kuhn, a ciência
tem como característica o fato de ser produzida por um grupo de especialistas que
partilham um paradigma. Um paradigma é, por sua vez, o conjunto de representa-
ções - não apenas teóricas, mas também os valores e os exemplos de aplicação das
generalizações - partilhadas num certo momento por cstã comunidade, Quando The
Structure of Scientific Revolutions foi publicado pela primeira vez, em 1962, Kuhn
chocou os filósofos da ciência, contestando seus apriorismos normativos ao afirmar
que tais paradigmas constituíam praticamente visões de mundo incomensuráveis.
Visto que todos os termos eram termos teóricos^^ e dependiam em última instância
da rede de significados estabelecida pelo paradigma, os paradigmas constituíam
discursos alternativos e irredutíveis.
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 140-149, 1996.

A noção da incomensurabilidade entre diferentes sistemas simbólicos já era


bastante familiar à antropologia quando passou a ser incorporada ao estudo destes
coletivos como o dos cientistas. A idéia de que estes constituem subculturas que
podem e devem ser interpretadas "etnograficamente" é apresentada por C. Geertz
(1983) justamente em função desta concepção de que os diferentes grupos de
intelectuais, da mesma forma que as diferentes sociedades tribais, habitam o mundo
de seu imaginário. As diversas disciplinas científicas são, assim, mais do que
simples pontos de vista intelectuais, mas constituem verdadeiras maneiras de estar
no mundo ou formas de vida^"^.
A despeito de reconhecer a importância específica de cada uma destas contri-
buições no sentido de mostrar no que consiste a condicionalidade social da produção
do conhecimento, desmistificando a idéia externalista de que ela é uma seta que parte
da infra-estrutura econômica e vai diretamente desenhar os contornos dos corpos
teóricos, considero fundamental não perder de vista que a incomensurabilidade não
implica que estes discursos não se relacionam. Como se pode facilmente perceber
pelos exemplos discutidos até agora e por uma observação dos outros segmentos do
apêndice I, os discursos denunciam a presença uns dos outros por meio de marcas de
diferenciação ou de apropriação: Dajoz afirma que ecologia atualmente serve para
qualificar idéias e atividades que não têm nada a ver com a ciência ecologia e suge-
re que as chamemos ecologismo para marcar bem a diferença (Dajoz, 1985: 2) .
Embora já tenhamos visto que os outros segmentos tomados de textos científicos
também aderem implicitamente a esta tese ao enfatizar o caráter de ciência biológica
da ecologia, nenhum é tão claro a ponto de evidenciar as estratégias lingüísticas
associadas à demarcação de domínios de competência. Quanto aos discursos cientí-
ficos alternativos que são discretos e relativamente auto-suficientes (constituindo o
que kuhnianamente poderia ser chamado de um conjunto de paradigmas alternati-
vos), as referências cruzadas abundam. Basta observar as listas de definições às quais
o autor opõe uma "melhor": as demais denotam a presença do contradiscurso.
As apropriações são ainda mais abundantes: o texto de R. E. Grandy (1987),
analisado anteriormente, que utiliza ecologia para qualificar objetos já totalmente
destituídos de seu conteúdo biológico, evidencia a presença da ecologia de ecossistemas
(representada por Odum, por exemplo, também já analisado) ao mencionar a ma-
ximização de informação. O mesmo poderíamos dizer do texto de Bateson (1972:
494). Quando Odum afirma que hoje (o texto é de 1971) todos estão agudamente
conscientes da importância das ciências ambientais, está evidentemente se referindo
às atividades de outros agentes - agentes ligados aos movimentos de denúncia e
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 141-149, 1996.

contestação cultural - que tornaram os problemas ambientais "agudos" para o grande


público naquele momento. Afirma também que esta transformação nas representa-
ções sociais sobre o ambiente e seus problemas é responsável por uma transformação
paralela na ecologia que está rapidamente se tornando o mais relevante ramo da
ciência para a vida cotidiana de todo homem, mulher e criança. Aqui se podem
vislumbrar as marcas das apropriações de idéias que o discurso científico fez em
relação aos discursos políticos sobre o ambiente. No texto de Goldsmith, a frase
Ecology is the study of the structure and function of Gaia é uma modificação de
the study ofthe structure and function ofnature, do texto de Odum. Um é tomado de
um periódico ambientalista e o outro de um livro-texto de ecologia.

8. História - a polissemia e sua origem


No entanto, a apropriação mais significativa é aquela denunciada pela própria
diversificação de significados da palavra ecologia. Palavras não são formas naturais
exibindo evolução convergente, aparecendo independentemente em várias circuns-
tâncias. Seu uso polissêmico indica um percurso de apropriações. Para poder com-
preender o significado desta polissemia, que se expressa em tantos níveis, é preciso
seguir a trajetória de apropriações de idéias associadas à palavra.
A figura 1 representa uma tentativa de organizar alguns dos segmentos
apresentados aqui seqüencialmente, em termos da sucessão de definições, suas
influências, afinidades e contradições. Alguns aspectos desta figura são curiosos: o
primeiro bloco - Haeckel/1869 - não está ligado a nada. A impossibilidade de ligá-
lo a outros só pode ser mais bem compreendida através de um estudo histórico-
sociológico (Coutinho, 1994: ref. 8), mas já mencionei anteriormente que a cunha-
gem do termo nessa ocasião está dissociada do movimento de agentes que de fato
formou o campo científico da ecologia por volta dos anos 90 do século passado e
início deste. É certo que o que surgiu nesse momento seguinte foi uma disciplina
científica totalmente diferente da que imaginaria Haeckel para se abrigar sob o
termo por ele inventado. No entanto, também é certo que não se produziu um novo
termo para designar a disciplina. Além disso, os aspectos gerais do domínio, os
objetos que ele abrange, continuaram coerentes com a definição original: a relação
entre organismos e seu ambiente, embora relação, organismos e ambiente tenham
sido totalmente redefinidos. Como veremos mais tarde, o significado desta apro-
priação em termos da estratégia dos agentes envolvidos na formação do novo campo.
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 143-149, 1996.

quanto à demarcação que impuseram num antigo domínio de competência, é absolu-


tamente fundamental para se compreender a história da ecologia.
A partir de Cowles, em minha figura, vemos que sempre é possível estabelecer
relações entre os discursos, relações estas que representam a presença subjacente de
uns nos outros. Mas, examinando os conteúdos destes segmentos de texto, vemos
que a cada manipulação das definições anteriores a palavra sofre novas
transformações.
Também gostaria de chamar atenção para um aspecto significativo dos discur-
sos científicos: de todos os segmentos estudados, apenas um representa um discurso
que parece ter-se prestado a "trocas" com discursos não científicos, o de Odum
(1971). Enquanto os outros se limitam a reafirmar a competência biológica sobre o
objeto ambiental, simplesmente ignorando a existência de outros discursos, ou mais
enfaticamente rejeitando os discursos políticos sobre o ambiente, o discurso de
Odum parece tender a incorporar outros significados. A apropriação de elementos
deste discurso científico por outros reforça esta suposição. Ao mesmo tempo que o
discurso de Odum se presta a estas relações "extracientíficas", é rejeitado por uma
boa parte dos outros segmentos científicos, como já vimos. O texto de Odum é
tomado de um livro-texto que se filia a uma das tradições da ecologia - a ecologia
de ecossistemas. A maior parte dos outros segmentos foi retirada de textos de
ecologia de populações ou ecologia evolutiva - que, aliás, apresentam profunda
afinidade. A estrutura conceituai destas duas grandes vertentes e, conseqüentemen-
te, suas representações sobre a disciplina a que pertencem são muito diferentes:
enquanto uma se fundamenta no estudo de tais unidades naturais a que chama
ecossistemas, a outra se baseia nãpopulação, num caso, ou no organismo, no outro;
enquanto uma produz explicações funcionais e estruturais, a outra produz explica-
ções históricas. Isto sugere que alguns conteúdos, uma vez apropriados, se prestam
à construção de novos discursos não submetidos aos compromissos de cientificidade,
enquanto outros não.
Vários autores sugerem que a explosão de significados com a produção de
novos conteúdos políticos e valorativos aderidos ao termo ecologia é produto das
transformações na temática ambiental ocorridas nos anos 60. Vejamos o que diz
Mcintosh (1984), um dos mais conhecidos historiadores da ecologia e também
reconhecido ecólogo:
''The science ofecology intruded upon public awareness in America for thefirst
time in the late 1960's as a result ofacute environmentalproblems. Because ofthe
context in which this awareness developed, the term ecology became synonymous
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 144-149, 1996.

with environment and pollution. This was a distortion of the modem historical
development of the science in two respects: it placed more emphasis upon the
inanimate surroundings than upon the organisms and more emphasis upon the
applied than upon the pure science'' (Mcintosh, in Egeiton, 1984).

Mcintosh constata e lamenta muito essas relações semânticas que chamei aqui
de apropriações e que ele considera uma "distorção" (apropriação num sentido
"errado" ou "ilegítimo"). A causa parece ser, para o autor, o uso do termo pelo grande
público (public awareness), insubordinado às regras de conduta e aos consensos da
comunidade científica. E a distorção se materializa em duas tendências: a ênfase no
ambiente inanimado e a ênfase na ciência aplicada. Ora, estas críticas podem muito
bem ser dirigidas por um ecólogo populacional (como também é Mcintosh) ou
evolutivo à ecologia de ecossistemas, pois, nos vários segmentos associados àquelas
vertentes, percebemos que os autores se ressentem da ausência do organismo na
ecologia de ecossistemas (veja o texto de Dajoz, por exemplo). O mesmo se pode
dizer do caráter aplicado da ecologia.
Voltando a Mcintosh, ficamos sabendo que as vozes do grande público
passaram a emitir idéias segundo as duas tendências de distorção apontadas pelo
autor, no final dos anos 60. E também sabemos que estas tendências já se encontra-
vam no interior da própria ecologia. Isso parece indicar que as relações de apropri-
ação que identifiquei acima devem ter começado ou se intensificado nesse momento,
produzindo, então, novos significados associados à palavra ecologia e novas repre-
sentações das práticas designadas por ela - científicas ou políticas.
Resumindo: a palavra ecologia surgiu no contexto da biologia evolutiva em
1869; foi tomada por agentes de fora deste campo para com ela constituir uma nova
disciplina com seus objetos e problemáticas próprias entre o final do século passado
e início deste; sofreu diversificação de significados no interior do campo científico
desde então e finalmente, sobrepondo-se a esta, teve novos significados não cientí-
ficos a ela adicionados por volta dos anos 60.
O que mostra este exercício de reflexão que fiz, tentando relacionar os
segmentos tomados casualmente de textos variados, é que este tipo de transformação
semântica e conceituai está associado à dinâmica de agentes específicos, à organi-
i I
zação de campos, às estratégias de legitimação. Também mostra que, para compre-
ender a diversificação de significados, seja sincronicamente ou diacronicamente, é
preciso interpretar a lógica das relações sociais que comandam estes fenômenos.
122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 145-149, 1996.

A história, os jogos polêmicos, a diversidade de mundos vividos por grupos tão


diferentes de agentes sociais foram aqui os cenários para que o leitor pudesse ser
apresentado à ecologia e à sua diversidade de significados. Ecologia: esta curiosa
palavra, tão fluida, tão flexível, tão própria desta nossa estranha condição
contemporânea.

Abstract: One of the main features display by discourse is the availability of the
alternative theorical viewpoints disputing the preference ofthe ecologists. It has been
so since the very birth ofecology. This discursive features has generally been noticed
through the disputes which became popular among certain theoretical perspectives:
early community ecology being opposed by individualistic population ecology and,
afterwards, population ecology opposing ecosystem ecology. It seems that this trait,
rather then representing the development of any everfasting philosophical debate,
expresses the constitution ofvery different and discontinuous discursive system under
specific social contexts.
Key-words: ecological discursive - ecosystem - environmental discussion - holistic
122
Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 146-149, 1996.

Notas

1. A análise destes discursos é sempre uma análise documental, pois é sempre possível
referir os textos aos contextos institucionais que os compreendem; ver M. Pêcheux,
Analyse Automatique du Discours (Paris, 1969).
2. Refiro-me aqui a livros como os de F. Capra (Capra, 1986), ou o de G. Bateson (Ba-
teson, 1972), que ficam entre o texto acadêmico e o texto de divulgação.
3. Refiro-me aqui à estrutura teórica da ecologia de ecossistemas. Esta vertente é
representada, por exemplo, por E. P. Odum, cujo segmento de texto é analisado aqui.
4. Por exemplo, a proposta de Steward de se utilizar do conceito de ecologia para enten-
der o efeito do ambiente sobre a cultura (Steward, 1955).
5. O uso da expressão "economia da natureza" remonta a C. Linnaeus, no século XVIII.
6. "Uma 'viagem' pela causa ecológica" (manchete do JB, Ecologia & Cidade,
5/6/92, p. 4).
7. Sobre a busca de distinção, ver Bourdieu, 1981.
8. Ver: Educação Ambiental em Unidades de Conservação e de 'Produção. São Paulo,
1991, p. 18.
9. Eco-92 foi o apelido utilizado pela imprensa paulista para a Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ocorreu no Rio de Janeiro em
1992. Esta é também a forma que escolhi para me referir ao evento.
10. JB, Ecologia & Cidade, 5/6/92, p. 10.
11. Mangabeira Unger, 1991: 53 e OESP, Ambiente, 14/06/92, p. 1.
12. Ver identidade dos leitores de TheEcologist em Coutinho, 1994: ref 8.
13. "Theory laden", termos teoricamente carregados, em oposição a termos
observacionais.
14. Onde Geertz invoca, respectivamente, Heidegger e Wittgenstein.
r 122 Coutinho, M., Imaginário - USP, n. 3, p. 149-149, 1996.

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Imaginário - USP, n. 3, p. 148-233, 1996. 219

Indígenas e Camponeses:
uma relação de conflitos
Regina de Toledo Sader*

Resumo: O texto trata da relação conflituosa entre índios e posseiros na ocupacão da


Amazônia Oriental O passado é tomado pelos grupos de posseiros como justificativa
legitimadora da violência.
Palavras-chave: camponês - violência - terra - Amazônia Oriental

Este artigo visa tecer algumas considerações sobre a imagem que ao longo do
tempo foi sendo construída dos indígenas por certos setores da população que hoje
ocupa porções do oeste do município de Imperatriz, às margens do Tocantins.
Nessa área encontrei historiadores locais, que procuraram, ao escrever seus
livros, perpetuar fatos que viveram ou escutaram dos habitantes mais antigos.
Considero-os uma excelente fonte de informações na medida em que perpetuam uma
história oral. Não se trata de uma história acadêmica, porquanto tais autores não têm
nenhuma formação nesse nível. Na busca dos fatos consigo o registro do que os
mesmos significaram e ainda hoje significam no imaginário dessas populações
camponesas ou não, no momento sob minha lente de pesquisadora. Não há possibi-
lidade de reconstituições sob uma ótica positivista. Se a realidade é construída so-
cialmente e se devo analisar o processo em que este fato ocorre (Berger e Luckmann,
1978), então, são esses a quem chamo de historiadores locais que, juntamente com
os camponeses entrevistados, possibilitam que eu alcance meus objetivos.
Os dois historiadores a que tive acesso são ambos moradores da cidade de
Imperatriz: Edelvira de Moraes Barros, que escreveu Eu, Imperatriz (Moraes Bar-
ros, 1970), professora primária cujo livro foi editado pela Prefeitura do Município,

Professora do Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo.


152 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

e Cícero Mendes, cujo exemplar ainda datilografado e inédito, intitulado Pesquisas


Sertanejas, tive oportunidade de ler e gravar.
Edelvira não dá destaque à presença indígena, assinalando apenas que, na
época da criação da Vila que daria origem à cidade de Imperatriz em 1852, a região
era habitada por índios, que viviam em quatro aldeias situadas ao sul do atual
município. É um silêncio eloqüente. Seu livro visa enfatizar o espírito trabalhador e
pacífico de seus habitantes, desfazer na medida do possível qualquer reputação
menos agradável que tenha existido.
Cícero Mendes dá mais importância aos índios em seus escritos. Figura
interessante, é um ex-lavrador, antigo membro da diretoria do Sindicato dos Traba-
lhadores Rurais de Imperatriz, possuía suas terras no Alto Pindaré. Na época da
grande grilagem dessa área, que abrangeu Imperatriz, João Lisboa, Açailândia e
Santa Inês, perdeu tudo. Descendente de uma das poucas famílias antigas que ainda
permanecem na área, escreveu seu livro numa linguagem simples, quase coloquial.
Este me interessou particularmente pela visão que se pode obter do que significam
e significaram os índios para boa parte dos habitantes da área.
Logo nas primeiras páginas, Cícero Mendes refere-se aos indígenas como uma
das pragas que os primeiros ocupantes tiveram de enfrentar:
"(quero falar) o nome dos heróis sertanejos do século passado, que sofreram muito
para nos fazer felizes, enfrentando a luta com índios que foi muito longa e as
onças, e também a febre e as cobras, o reumatismo crônico. (...) E aí para chegar
ao último tabuleiro, em rumo noroeste da margem esquerda do Rio Pindaré, a três
léguas mais ou menos, os fazendeiros chamavam de Centro da Aldeia, pois tinha
uma aldeia que eles calculavam trinta mil índios mais ou menos da tribo dos
Gaviões. Estes viviam dando prejuízo aos fazendeiros, pois comiam todos os
gados que por descuido dos donatários chegavam até lá (...)".
É evidente que o número de indígenas está exagerado, mas isso talvez seja
importante para ressaltar ainda mais a grandeza dos "heróis sertanejos", cujo gado
invadia a terra dos índios, causando prejuízo primeiro a estes, que revidavam
comendo as reses. Isso significa que os "donatários" começavam o avanço inexorá-
vel sobre as terras ocupadas pelos índios.
Para o autor, que assimila os indígenas às características do quadro natural, e
os considera fonte de prejuízo, são heróis que reverenciam aqueles que começam o
extermínio e a escravidão:
Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

"Teodorico sonhava com a fundação de uma cidade e de uma fazenda, e como há


pouco tinha se casado, resolveu ir atacar os silvícolas. Mas como? Foi então que
ele se lembrou de Passondas de Carvalho, que era muito destemido, tanto na caça
aos índios, como nos trabalhos de geografia, tinha uma copiosa inteligência,
dedicava-se bastante nas divisões das fazendas e suas documentações. A luta con-
tinuou pela conquista. O Brejeiro tinha sete cães afanados na caça de índios e a
luta se foi estendendo heroicamente, sendo que outros homens notáveis tomaram
parte (...)".
A luta pelo espaço aparece evidente nesse universo camponês do qual faz parte
Cícero. Teodorico havia se casado "há pouco" e atacou os índios porque necessitava
ter terras onde pudesse criar seu gado e fazer sua roça. E faz apelo a seus amigos.
Uma frase utilizada nessa passagem ilustra o problema da luta, se não a travada no
século passado, pelo menos a vivida pelo próprio autor: Passondas dedicava-se às
divisões de fazendas e à sua documentação. E Cícero Mendes perdeu suas terras, que
lhe haviam sido cedidas, conforme disse em entrevista, pela família Milhomem, que
até a abertura da Belém-Brasília fazia parte da elite dominante local. Mas, por não
ter documentação sobre as mesmas, perdeu-as quando começam as grandes grilagens.
Mas vejamos como nosso autor continua sua descrição sobre a luta contra os
índios:
"Em fevereiro de 1901 os índios foram convidados para ajudar no massacre do
Alto Alegre; mas foi estranha a cena, pois os selvagens desapareceram misterio-
samente sem deixar nenhum vestígio. No dia 13 de março de 1901 eles reapare-
ceram lá, onde mataram 4 padres, 7 freiras e todos os assistentes que havia na
missa. Terminada a horrorosa cena, eles não voltaram mais para o Canto da Aldeia
(...) e para mostrar suas artimanhas, cortaram todos os postes da linha telegráfi-
ca que ligava a fronteira do nosso sertão com o Engenho Central, hoje Pindaré-
Mirim, e que tinha sua última estação num lugar denominado Presídio. Este nome
foi dado porque, quando eles prendiam alguns índios, eram trazidos até ali para
certificar suas características C-.)'•
Não fica claro na versão de Cícero Mendes a que massacre os índios foram
convidados. Parece que vão se unir a outros, para o que, no povoado do Alto Alegre,
ficou conhecido regionalmente como "massacre do Alto Alegre", no município do
Grajaú. A precisão de datas, o número especificado de religiosos que morreram, dá
foros de verdade à sua versão, permitindo supor que mataram todos os assistentes à
missa. Não tece nenhuma consideração (pois não lhe causa espécie) à função do local
154 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205
r
"denominado Presídio". Os índios podem ser mortos. Podem ser escravizados.
Assimilados à natureza, devem ceder lugar à cultura. Não deixa de ser expressiva a
palavra portuguesa para designar floresta: perdemos a noção de sua origem, mas
"mata" vem de matar. E na nossa linguagem coloquial fazemos distinção entre
"mato", que designa uma vegetação rala, e "mata", cujo sentido remete a uma
vegetação de floresta. A denominação usual traz em si a ordem de extermínio.
Gustavo Dodt, em sua Descrição dos Rios Parnaíba e Gurupi (Dodt, 1981),
faz menção também a um massacre levado a cabo por índios da região, que antes
habitavam "as chapadas próximas à Vila Imperatriz", do qual toma conhecimento
quando percorre a área em 1872, vinte anos após a fundação da Vila. Contaram-lhe
(Dodt não diz quem) que, quando todos os homens da Aldeia Timbira estavam
ausentes, sertanejos fizeram um ataque para roubar as crianças índias. Quando os
guerreiros voltaram, para vingar-se, atacaram uma fazenda próxima às suas terras,
matando sete pessoas. E a tribo partiu para as matas das cabeceiras do Gurupi, ao
norte do atual município de Açailândia. Mas Dodt não olha com a mesma admiração
os "heróis" de Cícero Mendes, e alerta o governo sobre o perigo que pesa sobre as
terras Timbiras "ameaçadas de uma invasão pela gente baixa do sertão de Imperatriz".
Murilo Santos, antropólogo, autor de um vídeo sobre o Alto Alegre, tem outra
versão: Alto Alegre é do município de Barra do Corda, os índios são os Guajajaras.
Segundo um mural pintado na igreja, os índios mataram os religiosos e os assisten-
tes à missa em 1901. Nisso coincide com o relato de Cícero. O motivo do ataque é
também outro: missionários haviam levado crianças índias para um colégio por eles
mantido no município, e algumas delas vêm a falecer. Os Guajajaras, revoltados,
fazem o ataque, que resulta em mortes. Em outra entrevista, que apresento mais
adiante, os acusados serão os Gaviões, do grupo Timbira. E há motivos para essas
várias versões, como veremos, e a única documentada é a do antropólogo citado
anteriormente.
Mas, a julgar pelo relato de Cícero Mendes, os indígenas perdem definitiva-
mente, pois ele menciona que Teodorico finalmente consegue sua fazenda, fixando-
se junto com outros bem perto da "velha Canto da Aldeia". Ele expressa bem o caráter
que terá a luta contra os índios até nossos dias.
Em Viração e Frades, dois povoados maranhenses do município de Imperatriz,
recolhi alguns testemunhos sobre essa luta:
"E lá a gente achou a mata influente, tudo bonito e já pé de manga grande,
formando, produzindo, caindo fruta, a paca comendo, e essas coisas, então meu
pai perguntou ao moço (que os levara para uma caçada), como era a situação desse
Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

lugar, se a gente podia morá. Então o moço falou que podia, só que era um pouco
perigoso, porque em 1945 morou os últimos pessoal aqui, e saíram mandado dos
índios onde nesse grotão aqui que chama Machado, foi um senhor fulano de tal
Machado que assituou. Este Machado ele saiu daqui mandado dos índio assim:
eles mandaram o Machado saí, e o Machado preocupado com a criação, as
galinhas, essas coisas. Eles disseram que entregavam na frecha. Aí o Machado
falou que não, assim matava, eles disse que frechavam no pé, e assim fizeram.
Pegaram as galinha do Machado, tudinho criação e o mandiocal que tinha, eles
arrancaram também, só que as maió raiz eles ficavam, e a menor davam pro
Machado. (...) Mas eles colaboraram com nóis que durante esse tempo que nóis
termo nos Frades, eles ficaram, parece que se entedemo, eles dividiram a lista
deles, eles vinham pescá (...) nóis viamo rastro deles, mas lá nos Frades eles não
iam (...y.
"Uma veiz quando a gente foi caçá, chegou um do povoado com a frecha entre o
casco da cabeça e o cabelo, se tivesse pegado na testa tinha morrido. A gente nem
soube donde veio a frecha, então a gente deu um tiro com rifle pra cima e o caboclo
correu, nem vimo ele. Isso foi a mais de três léguas daqui, lá perto do Centro do
Abraão. E aí ficamo um tempão sem caça pra lá"^.
Os índios a que os entrevistados se referem são os Gaviões que foram sendo
empurrados para oeste pelos posseiros, com o mesmo ímpeto que estes eram expulsos
de suas terras e, também, caminhavam na direção oeste. Na primeira entrevista logo
acima, fica claro que os índios desocuparam Frades sem matanças, e até ajudaram a
reunir a criação e a colher a mandioca, mesmo que com certa artimanha, como diz o
lavrador. Mantiveram um certo acordo com os novos moradores de Frades quando,
vinte anos depois, vieram se estabelecer novas levas de camponeses: "Eles dividiram
a lista deles". Mas seis anos depois, em 1961, foi fundado o povoado de Bom Jesus,
e os Gaviões foram novamente para oeste. Há consenso nas entrevistas feitas em
locais distintos de que essa área era dos índios. Em outras entrevistas, há menção
explícita: "Eles vinham pra Frades, Viração e Bom Jesus, que era lugar deles". E não
poderia ser de outra forma, pois:
"Quando a gente ia cavá buraco, buraco assim pra fazê a parede da casa, achava
aqueles potes. Eu mesmo achei um pote deste tamanho assim (mostra os braços
curvados e bem afastados do corpo). Dentro desse potão tinha outros negocinhos
deste tamanhozinho, com pedacinho de osso. Tirei bem uns vinte, aqueles potão
um do lado do outro. Mas quebrava logo tudo, de ficá no sol, na chuva"^
156 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

Mas ninguém mais achou nenhum "potão" no antigo cemitério indígena, que
fica num promontório do Tocantins lá em Frades, coberto por mangueiras, diz-se que
seculares...
As entrevistas se contradizem. Enquanto um dos fundadores de Frades,
Viração e Bom Jesus diz que os índios "colaboraram com nóis (...) parece que se
entendemo", e que depois de fundada Bom Jesus, os índios foram para o ribeirão dos
Frades e "não ficaram permanente", em Frades há convicção de que os índios
atacaram:
"Aqui nunca mataram gente, mas na Viração e no Saranzal frecharam um bocado
de gente. Uma veiz disseram que vinham invadir Frades nesses treis dias. Aí
pegamo uma canoa pesada e fomo lá pra praia (nota: praia de uma ilha no meio
do Tocantins) de oito a deiz dias lá, esperando. Os porcos e galinhas ficaram tudo
aqui. Aí vinha um (dos posseiros) devagarinho, vê se tinha índio
"Essa violência dos caboclo acabou com um povoado. Alto Alegre foi acabado
pelos índios. Por isso quando falavam qualquer coisa nóis corria pra praia.
Mataram tudo. Tem gente que conheceu. Estavam assistindo a missa"^
Uma das características do preconceito é a imprecisão dos fatos relacionados
ao grupo discriminado, fatos que no fundo buscam a justificação de ações contra esse
grupo. É o rumor, tão bem analisado pelo sociólogo francês Edgar Morin no filme
intitulado La Rumeur d'Orléans. Pelas entrevistas nota-se que os índios nunca apa-
recem atacando na área onde está o interlocutor, mas sempre em outra: "Aqui nunca
mataram gente, mas na Viração e no Saranzal"... E mesmo distante no tempo:
novamente o massacre do Alto Alegre a centenas de quilômetros de distância e há
quase um século. O exagero é evidente na última entrevista: "... e lá acabaram com
tudo. Mataram tudo". Não são mais 4 padres, 7 freiras e todos os assistentes da mis-
sa. É toda a população.
Permito-me um ligeiro parêntese para uma breve discussão de um dos dilemas
como pesquisadora: como analisar o processo em que ocorre um determinado fato?
Certa vez quando fazia minha pesquisa no Bico do Papagaio, fui entrevistar um casal
em sua fazenda. Eram ambos do interior de São Paulo e eram considerados "grilei-
ros", em primeiro lugar, por terem comprado terras "griladas" e cujos ocupantes
haviam sido expulsos com violência; e, em segundo lugar, porque com o apoio do
GETAT (Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins) reivindicavam uma
faixa de terra ocupada por posseiros residentes no povoado vizinho, que eu já co-
nhecia. Finda a entrevista, a mulher do fazendeiro começou a queixar-se dos pos-
Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

seiros (ignorando minha relação com os mesmos, pois eu não havia dito nada a eles).
A certa altura conta-me com lágrimas nos olhos que talvez tivessem que partir, pois
sentiam-se terrivelmente ameaçados. E o casal me explica que, havia poucos dias,
chegara no povoado uma grande caixa contendo metralhadoras italianas (!) e que,
chegado o momento, haveria um levante dos posseiros do Bico do Papagaio. Sem
saber o que dizer diante do que considerei paranóia, pois o medo deles era real, fui
conversar com dois rapazes que com teodolitos e guias procediam à medição de uma
porção do terreno. Contaram-me terem vindo de Minas, eram agrimensores, ambos
muito jovens, e queixaram-se da violência, e do medo que tinham de trabalharem em
sua profissão. Terminado o trabalho ali, voltariam para Minas, disseram-me.
Naquele mesmo dia cheguei ao povoado onde passaria algum tempo. Como
meu compromisso era com os posseiros, perguntei-lhes como estava a relação com
o casal que eu entrevistara. Disseram-me que havia piorado, que estavam todos com
medo de irem sozinhos para as roças e que o faziam em grupos. É que os "grileiros"
haviam contratado dois pistoleiros, que acabaram de chegar, bem armados, para
atacá-los. Inutilmente tentei convencê-los de que eram só agrimensores, que não
tinham armas, mas aparelhos de "medição de terrenos". Não me acreditaram, e,
encerrando a conversa, me convidaram para ver alguns slides sobre o Bico do Pa-
pagaio, porque alguns dias antes havia chegado o projetor com gerador, numa
enorme caixa, conseguidos pelas religiosas da CPT...
Nem os agrimensores eram pistoleiros, nem a caixa de grandes proporções
eram metralhadoras. A única coisa verdadeira era o medo. Medo fundado dos
posseiros que vinham de múltiplas expulsões, que ou foram vítimas ou presencia-
ram violências sem número. Medo dos "grileiros", não somente porque houve deles
que pagaram com a vida suas barbaridades, mas porque, e sobretudo, a área do Bico
foi área de refúgio da chamada "guerrilha do Araguaia", onde as Forças Armadas
atuaram, justificando a enorme violência, veiculando histórias sobre "farto mate-
rial bélico de origem estrangeira" encontrado por elas.
E o medo está em toda parte nessa região da Pré-Amazônia, como já tive
oportunidade de apontar em artigo anterior (Sader, 1989). Seria talvez ele, o medo,
a verdade única a que se refere Adam Schaff (1987)?
O massacre do Alto Alegre faz parte do imaginário dos homens dessa área de
minha pesquisa. Se os fatos são fiéis ao sucedido é algo irrelevante. O que importa
também aqui é o medo. E os dividendos que pode render.
"Mas aí tem outro problema que a vista do índio muita gente aproveitou. Por
exemplo, a CID A, que é uma companhia (nota: madeireira) que fundou aí e depois
158 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

desapareceu. Ela quis tirá esse povo dessa região. A última vez que nóis ficamo
na praia foi a CIDA que provocou. (...) Aí veio um barco de Imperatriz pra levá
nóis pra praia. Chegamo lá era tudo mentira (...) eles queriam era que nóis corria
pra liberá terra e eles tomarem (...) Aqueles que não teve coragem, correu. E
perdeu a posse^.
E os Gaviões partiram para oeste, para o Pará, onde terminariam se fixando.
Roberto da Matta (Laraia e da Matta, 1978) relata o que considerou a tragédia dos
Gaviões, um grupo tribal que "diante de um sistema dominador e mais poderoso -
a sociedade nacional brasileira - buscava brechas por onde pudesse sobreviver
enquanto sociedade. Baseando-se e completando Curt Nimuendaju, mostra da Matta
que o povoamento do vale médio do Tocantins incorporou ou destruiu os grupos
indígenas da área. No Tocantins se deu o entrecruzamento de quatro vias de
penetração dos pioneiros do século XVIII, que vinham de São Luís do Maranhão,
através do Mearim e do Itapicuru; do Pará, pelo Tocantins; de Goiás, descendo o
Tocantins; da Bahia, através do sertão nordestino; e pela franja pioneira que desce
pelo Norte.
A história do Maranhão, de 1759 a 1850, é a própria história do desaloja-
mento, escravidão ou destruição dos grupos Timbiras do interior.
Ao recolher essas entrevistas que se referem a fatos ocorridos em meados da
década de 1950 nesses povoados que percorri, percebi duas coisas: primeiro, é que,
após todos esses anos, a imagem que os habitantes guardam dos indígenas, em sua
grande maioria, é ambígua. Histórias coletadas em toda a área falam de índios que
viram bichos quando velhos se não foram batizados, mas ao mesmo tempo a mãe-
d'água é linda. Em segundo lugar é que a mesma postura em relação aos Gaviões -
mantendo relações pacíficas para uns e cruéis para outros - foi encontrada por da
Matta (op. cit.) na região de Marabá, há mais de vinte anos.
Essa ambigüidade encontra-se no próprio nome dado ao grupo tribal pelos
brancos, pois, como diz o antropólogo, se gavião é uma ave de rapina, uma espécie
infra-humana, é também uma ave nobre, evoca coragem, união. Na realidade,
enquanto não houve a valorização das terras nas margens do médio Tocantins os
grupos indígenas aí não eram encarados com terror. Quando a castanha se torna
produto de exportação, quando a terra passa a ter valor e começa a se tornar rara, os
Gaviões surgem como "obstáculos ao progresso e à civilização". Assim, as palavras
pacificação, catequização, ou simplesmente extermínio, passaram a constituir proje-
tos de ações que moviam as pessoas mais interessadas em estabelecer relações com
os índios.
Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

Um antigo posseiro, hoje pequeno sitiante, que me havia sido apontado como
"matador de índio" por um dos habitantes de um povoado, ao se sentir diante de seus
pares incomodado por minhas perguntas sobre o início da ocupação, foi incisivo:
"O que se fez com os índios é o que tinha que sê feito. Eles andavam sem roupa
até dentro do povoado. E depois, nem batizados num eram..."^
O fato de não serem "nem batizados" vem reforçar uma diferença marcante
entre posseiros e índios. Mostra que não participam do mesmo universo cultural, do
mesmo espaço de relações e representações. Afinal, se essa população é fortemente
mesclada de índio, o batismo cristão funciona como um rito de iniciação à cultura
nacional. E é necessário que marquem bem a distinção.
Isso explica por que D. Maria, de um povoado do município de Marabá,
entrevistada por mim quando eu fazia minha tese, disse indignada:
"Nóis trabalhava liberto. Fazia roça onde queria. Aí veio o governo do Pará
chamado Barata - já ouviu falá? - pois ele veio e falou que nóis era índio, e
mandou nóis vim pra cá
Podem-se detectar no discurso de D. Maria dois aspectos que explicam a in-
dignação: um é o fato de serem considerados índios; o outro é que o governo, ao fazê-
lo, justifica a expulsão do grupo, já que índio é para ser expulso.
Mesmo nas lendas que recolhi, o preconceito se manifesta de forma cruel:
"Aí achamo na mata os sinais do Capelobo, sabe o que é? É um bichão feio,
medonho, todo coberto de pêlo, e come gente"
Mas que não se pense por esses exemplos que o preconceito seja apanágio des-
se campesinato sofrido. Um advogado de uma das unidades do GETAT, oriundo e
educado no Sul do país, faz apelo a sua cultura adquirida nos filmes de cow-boy
para afirmar diante de mim e de um pesquisador do Museu Goeldi do Pará: "Falta
aqui, para nós, um General Custer"...
Agnes Heller (Heller, 1972), fazendo uma série de reflexões sobre o precon-
ceito, mostra sua origem na fixidez do pensamento cotidiano (que implica compor-
tamento), a partir do que assumimos estereótipos, esquemas já elaborados, ou estes
nos são impingidos.
Não é por acaso que nos povoados mais politizados encontramos camponeses
que lideram, de certa forma, o processo de luta, favoráveis aos índios, olhando-os
com admiração e respeito e vendo neles um exemplo a ser seguido:
Imaginário - USP, n. 3, p. 163-233, 1996. 219

As Felizes Culpas
do Ocidente*
Dario Sabbatucci**

As penas do pavão
Por volta do fim do século passado circulava entre os Cherokees o seguinte
conto^:
"Há muito tempo um guerreiro que gostava de vagar foi em direção ao oriente às
estâncias dos brancos, onde viu pela primeira vez um pavão.
As suas belíssimas longas penas o impressionaram... conseguiu comprar algumas
delas e as trouxe consigo para as montanhas, escondendo-as - na espera de usá-las
- na toca de um velho castor perto da beira do rio... Depois pôs-se a trabalhar es-
condido e fez para si um cocar, com as penas longas e retas na frente e caindo pelas
costas, e as mais curtas dos lados. Por ocasião da primeira dança colocou o novo co-
car, declarando ter estado no céu, e dizendo que as suas penas eram de estrelas. Depois
fez um longo discurso, asseverando que aquilo era uma mensagem que ele tinha
recebido dos espíritos das estrelas para comunicá-la aos homens... Todos admiraram
as magníficas penas... e ninguém pôs em dúvida que ele tivesse estado no céu e ti-
vesse falado com os espíritos. Assim se fez passar por um grande profeta...".
Os novos atualíssimos "profetas" ou expoentes das ideologias indigenistas
que circulam entre os índios da América Setentrional^, eles também, atingiram às es-
tâncias dos brancos.

* Artigo publicado em L'Emblema e Ia Storia, organização de Adriano Santiemma, ed. La Goliardica,


Roma, 1983. Tradução de Adone Agnolin.
** Catedrático de História das Religiões na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Roma "La
Sapienza".
164 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

Não discuto as qualidades ou as verdades das suas mensagens, como não se


discute isso no conto Cherokee, onde se estigmatiza o "falso profeta" sem, por outro
lado, fazer a mínima referência ao conteúdo do "longo discurso" ou à "mensagem"
que ele dizia ter recebido dos espíritos das estrelas. Ao contrário, discuto a autenticida-
de indígena ou não-ocidental de quanto essas pessoas estão predicando, assim como
no conto cherokee - que termina com o desmascaramento do falso profeta - vem
demistificada a autenticidade celeste ou estelar das penas das quais tirava autoridade.
Não queria ser mal interpretado por uma referência inconsciente à fábula do
corvo que se faz bonito com as penas do pavão, que bem poderia ter atingido o
narrador Cherokee. De fato, não digo: estes novos "profetas" se fazem bonitos com
as penas de Marcuse (ou alguém em seu lugar). Mas digo: estes novos "profetas" não
estão fora da cultura ocidental; fazem parte dela como dela faz parte Marcuse ou
Adorno ou a contestação de 68 etc...; e não é por casualidade que uma franja desta
contestação tenha assumido a denominação de índios Metropolitanos, atestando,
através da reciprocidade, a equiparação de que estamos falando.
Em substância, a eventual inautenticidade (ou mistificação) da mensagem dos
profetas neo-índios está toda contida no fato de que ela aparentemente propõe a
restauração de um sistema indígena (anocidental se não antiocidental), mas que na
realidade se insere perfeitamente naquele sistema de valores que chamamos cultura
ocidental. Este é um juízo de ordem histórica. Tem, com certeza, aqueles limites que
as pessoas que pontificam em nível ético-filosófico (ou ideológico, igualmente to-
talizante) não deixam de salientar em cada tentativa de historicização. Mas abre
também perspectivas inalcançáveis por outra via; perspectivas tais que permitem a
superação própria das estreitezas ideológicas ou ético-filosóficas.
E pelo que diz respeito à dúvida da autenticidade e o incômodo da mistifica-
ção, que nos é dado entender no breve conto do falso profeta, dizemos logo que não
os reduzimos à "moral da fábula" de presumível valor universal, mas os assumimos
como testemunhas de uma específica experiência histórica dos Cherokees, que por
um longo arco de tempo tentaram existir ornando-se de mais de uma pena do
vestuário cultural dos brancos, visto que a luta armada contra o invasor não ofere-
cia mais a eles uma garantia de existência. Os Cherokees confinados nas montanhas
nos confins entre Geórgia, Tennessee e Carolina, por volta do fim do século XVIII,
começaram a se organizar de forma européia: elaboraram uma escritura própria,
deram-se leis escritas, tiveram um parlamento e até um jornal (o Cherokee Phoenix),
além de, naturalmente, escolas, casas, fazendas, pequenas indústrias etc. (Cerulli,
1977: 88 e ss.; cf. também Bleeker, 1952); a ilusão de um estado nacional Cherokee
permaneceu até o início do nosso século.
r 165 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

As ilusões de hoje são formalmente diferentes, como diferentes são as novas


"penas dos brancos" adotadas pelos novos expoentes da cultura indigenista: marxis-
mo (ou paramarxismo: o marxismo reinterpretado pela Escola de Frankfurt e pro-
pagado pelos EUA), contestação global, ecologia etc.; todos made in USA, como os
mesmos índios.
Porque é este o ponto: a América, nesta fase de seu indiscutível domínio
cultural, tem presenteado à Europa (e ao mundo) duas coisas: o modelo a ser con-
testado e o modelo da contestação.
Este duplo presente corresponde à dupla imagem da América que circula
atualmente entre nós: a América ruim (imperialista, consumista, poluidora etc.) e a
outra América. Da "outra América" fazem parte, justamente, os bons índios, bons
como Marcuse, como os ecologistas, como os estudantes de 68 etc. Assim, acontece
que os europeus, incomodados com o predomínio cultural americano, contestam a
América adotando um estilo americano de contestação; contestam em blue-jeans;
americanizam-se para contestar o americanismo.
Afinal, a gente se americaniza mesmo "indianizando-se", mesmo adotando as
teses antiamericanas dos índios da América Setentrional. São, sempre, teses made
in USA. Não me refiro, naturalmente, ao lugar geográfico Estados Unidos, mas ao
lugar cultural Estados Unidos, como última e dominante expressão da civilização
ocidental.
Explico-me melhor com o testemunho dos fatos. É um fato que, em nível
universal (que é pois aquele ético-filosófico), o caso dos movimentos indígenas
norte-americanos venha des-historificado a ponto de a ONU incluí-lo no próprio
programa decenal (1973-1982) de "Ação pelo Combate ao Racismo e à Discrimi-
nação Racial". É um fato que, no âmbito desta "Ação", teve lugar em setembro do
ano passado, no Palácio das Nações Unidas em Genebra, a Assembléia Interna-
cional das Organizações Não-Governamentais, com a participação de 70 delega-
ções que discutiram os seguintes temas: direitos territoriais dos povos indígenas; a
filosofia indígena e a terra; as multinacionais e seu efeito sobre os recursos e o terri-
tório dos povos indígenas; efeitos da fabricação de armas nucleares sobre o territó-
rio e a vida dos povos indígenas. Tudo, então, parece mover-se em nível planetário,
ou hu-manitário, sem a marca de fábrica dos Estados Unidos. Mas não. Porque é
também um fato que a primeira Assembléia Internacional das Organizações Não-
Governamentais, que aconteceu em 1977, foi efetuada por movimentos indigenistas
americanos e concluída com a decisão de declarar o 12 de outubro (o aniversário da
descoberta da América) como "dia internacional de solidariedade aos povos indí-
genas da América".
166 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

A salvação da natureza
Para não nos deixar envolver desde o início por conteúdos político-ideoló-
gicos que, se assumidos em função de nosso encaminhamento, desviariam a nossa
atenção do problema real, tentaremos reduzir a mensagem indigenista dos índios à
ecologia. No fundo, o tema ecológico é nela recorrente e vemo-lo formulado em to-
da a sua extensão na assembléia de Genebra do ano passado: "A Filosofia Indígena
e a Terra". Quase a dizer: quem mais que nós, "povos da natureza" (Naturvõlker,
como os definia tempo atrás a etnologia alemã), pode erigir-se em defensor da mes-
ma natureza?
A ecologia foi antes um ramo da biologia que estudava a relação entre os
organismos vivos e o ambiente. O nome desta disciplina biológica foi dado por
E. Haeckel em 1866. No começo do nosso século, encontrou aplicação prática na
agronomia, especialmente nos EUA. Nos anos 1950, começando pelos EUA, tor-
nou-se uma ciência autônoma, analítica e experimental. Paralelamente, sempre nos
anos 50, e devido à iniciativa dos Estados Unidos, esta "ciência moderna" trans-
formou-se em uma "ciência em moda". Graças à ação da mídia, divulgaram-na como
valor, e não como uma problemática científica, mantida evidentemente inacessível
aos profanos. Dela distorceram objetivos e finalidades. Transformaram-na em uma
espécie de cruzada em defesa da natureza. Assim, na linguagem comum, o termo
ecologia tornou-se sinônimo de "defesa da natureza".
A substituição dos problemas ecológicos pelos valores ecológicos criou um
movimento ético-filosófico (quase religioso) ao qual poderíamos dar o nome de
"ecologismo". É um movimento que encontrou dois canais de difusão que, con-
vencionalmente, chamaremos "marxista" e "tradicionalista".
O ecologismo marxista tem a ver com Marx de forma totalmente indireta.
Serve-se da análise de Marx sobre as sociedades humanas abstraindo-a do contexto
sociológico e projetando-a na consideração da relação homem-natureza (ou entre
cultura e natureza). Neste caminho, acaba por individualizar substancialmente a
"exploração" da natureza pelo homem, que vem equiparada eticamente à explo-
ração do homem pelo homem. Naturalmente, nesta equiparação existe alguma coisa
que não funciona: lá onde na análise de Marx o sujeito e o objeto da exploração são
humanos, na proposição ecológica o sujeito é humano e o objeto é extra-humano
(sobre-humano? divino?). Remedia-se, então, contaminando dois sistemas inte-
lectivos, aquele que se refere à contraposição homem/natureza, do qual partiram os
ecologistas, e aquele que nasce da contraposição cultura/natureza. Dessa maneira.
167 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

inventa-se ou reinventa-se o "homem natural" (o Naturmensch dos etnólogos


alemães), e ele é tomado como objeto de exploração por parte do "homem cultural"
(o Kulturmensch, o "civilizado", que os etnólogos alemães contrapunham ao "inci-
vil" Naturmensch). Com esta operação recupera-se "a exploração do homem pelo
homem" e ele é ainda enquadrado no esquema político do anticolonialismo e do
antiimperialismo: o Kulturmensch é o europeu colonialista e o Naturmensch é o
indígena explorado pelo europeu colonialista; tal identificação do Kulturmensch,
afinal, vinha da etnologia alemã, que de fato não contrapunha uma cultura, a euro-
péia, a outras culturas, mas como a cultura, que se contrapunha à natureza^
Essas teses do ecologismo marxista aparecem pontualmente nos discursos dos
expoentes do neo-independentismo indígena; não só as assimilaram, mas tomaram
também consciência de que, com elas, poderiam insinuar-se na intelligencija mun-
dial e adquirir uma credibilidade política dificilmente alcançável por outro caminho.
Não foi por isso, porém, que renunciaram a um outro caminho, sempre ficando na
brecha aberta pelo ecologismo: trata-se do canal de difusão que chamamos
"tradicionalista".
O canal tradicionalista é aquele que reduz o ecologismo nos termos de um
objetivo político-filosófico-religioso, que é comumente conhecido com o nome de
"tradicionalismo". É um objetivo não facilmente alcançável como o marxista. Ge-
nericamente, em nível da prática política, vem caracterizado como reacionário de
direita, em contraposição a uma esquerda revolucionária, mas suas teses circulam de
várias formas também nos ambientes e partidos da esquerda progressista. Mais
indicativo, pelo menos do ponto de vista histórico, é o vínculo deste com o ro-
mantismo. Podemos até dizer que se trata de um romantismo atualizado. A atuali-
zação é dada por uma espécie de mimetização que pela postura torna dificilmente
localizável o objetivo tradicionalista, nos termos do atual alinhamento político,
além das suas raízes românticas. Apenas a título de orientação, e sempre com uma
finalidade de redução de cada coisa à mensagem neo-indianista, apontaremos dois
esquemas fundamentais de análise.
O problema da relação entre o homem e o seu ambiente, isto é, o problema
ecológico, que se tornou primário no ecologismo, foi singularmente colocado e
resolvido pelo romantismo nos termos de uma "alma nacional", que junta, espiri-
tualmente, um território e os seus habitantes. Daí derivara tanto o nacionalismo
como movimento político, quanto o estudo do folclore como movimento seja cien-
tífico seja literário. Hoje temos também um folclorismo político que, nos partidos
de esquerda, ocupa o lugar do nacionalismo, este relegado aos partidos de direita.
Ainda que isto não apareça de forma explícita na teoria e prática do Ocidente, tendo

à
168 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

sido reservado, eventualmente, aos povos emergentes do terceiro mundo. Isto, a


passagem do Ocidente para o Terceiro Mundo, pode de fato ser visto nos termos de
uma passagem do folclorismo ao nacionalismo: no Ocidente, distingue-se, com o
instrumento das tradições populares, a cultura dos oprimidos (cultura subalterna),
daquela dos opressores (cultura hegemônica); o nacionalismo assimilado pelos
países do Terceiro Mundo, contemporaneamente, é assumido nos termos de uma
justa revolta das culturas indígenas (= dos povos oprimidos) contra a cultura dos
opressores ocidentais. Trata-se, em suma, do resgate das "almas nacionais" que
"espiritualmente" ligam determinados povos aos territórios dos próprios "pais".
Para traduzir esta proposição romântica na linguagem indigenista que nos propu-
seram os profetas neo-indígenas: os "espíritos" (da terra e dos antepassados) guiam
e inspiram as atividades antiocidentais dos indígenas autóctones.
O segundo esquema de análise parte da consideração do romantismo como
expressão alemã de uma recusa da Revolução Francesa. Tal linha reacionária ex-
plicitou-se tipicamente na própria França, na época da restauração, com pensadores,
como J. de Maistre, L. G. A. Bonald e R. Chateaubriand, aos quais faz-se remontar
a formulação do tradicionalismo histórico. Hoje, a partir destes pressupostos, o
tradicionalismo se apresenta como um movimento de procura do modelo cultural a
ser contraposto ao mundo moderno; e trata-se, naturalmente, de um modelo cultu-
ral baseado na revivescência de ideologias, costumes, visões do mundo variada-
mente transmitidas através de um passado "paradisíaco" (o "paraíso perdido").
Dentro desta linha de idéias insere-se perfeitamente a cruzada ecologista pela
restauração de um "paraíso perdido", e inserem-se perfeitamente as nostalgias do
"paraíso perdido" que levam ao resgate os profetas do neo-indianismo.
Retomamos o nosso discurso: das duas vertentes ecologistas (a marxista e a
tradicionalista) os nossos profetas tomam a mancheias. Mas atenção: afirmando isto
não diminuo nem a personalidade deles, nem a qualidade das suas mensagens, nem
a dignidade de sua luta; pelo contrário, reduzo-os, a produtos daquela mesma cul-
tura ocidental que eles contestam.
Essa operação deveria servir: para conhecer melhor a mesma cultura ociden-
tal objeto da contestação; para fornecer novos elementos de juízo a todos quantos
se interessam, a qualquer título, pelos novíssimos movimentos indigenistas dos
próprios índios; para impedir a distorção paracientífica - quaisquer que sejam as
finalidades disso - das elaborações das ciências ocidentais, como parece que acon-
teceu com a ecologia transformada em ecologismo salvador. Inventar, em nome da
ecologia, uma condição natural qualquer, para ser contraposta à condição determi-
169 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

nada pela cultura ocidental é, pelo visto, uma "mistificação literária", típica da
mesma cultura ocidental. Digo "mistificação literária", porque evoca os Poemas de
Ossiariy aquela mistificação que conseguiu tanto sucesso entre os românticos de to-
da a Europa, respondendo plenamente ao gosto da época. Agora a questão é: que
parte têm os índios nesta mistificação? E como ela responde aos gostos de nossa
época?
Os índios sonham com uma volta ao tempo no qual a pradaria era cheia de
bisões, cuja caça bastava para suprir as suas necessidades. Os ecologistas ajudam-nos
a sonhar, asseverando que aquela era a "condição natural" do continente norte-
americano; convidam-nos a reestabelecê-la promovendo a volta dos bisões, e esta
promoção torna-se um elemento recorrente nos programas neo-independentistas.
Descuida-se, por outro lado, de qualquer aprofundamento científico contrastante
com o juízo de valor expresso acerca da pressuposta condição natural; por exemplo,
o fato de que o equilíbrio ecológico da América Setentrional tenha sido perturbado
pelos próprios bisões antes que pelo homem, pois que se deve a eles a formação da
pradaria, um ecossistema diferente daquele que antecedeu o aparecimento e a difu-
são do bisão. Definir como "natural" uma condição, somente porque retida como
ótima pelos índios e pelos ecologistas, é com certeza arbitrário; mas pouco impor-
taria o arbítrio se ele não reduzisse os índios a "caçadores de bisões" e não
gratificasse os ecologistas com uma paisagem romântica (pradaria + bisões + índios)
a ser consumida nos week-ends. Quero dizer que, nesta direção, a relação entre o
homem e o seu ambiente viria a ser resolvida com a transformação do homem-índio
em elemento da paisagem.
Trata-se, enfim, da mesma orientação que a ONU-UNESCO tomou depois da
contestação global e da revolução cultural da memória de 1968, quando proclamou
1970 o "ano ecológico". É a orientação que tem levado hoje a discutir no Palácio das
Nações o tema "Os povos indígenas e a Terra". Esta associação entre os índios e a
Terra constitui uma maneira totalmente nova de repropor os "povos da natureza", os
Naturvõlker, que há um tempo vinham contrapostos aos Kulturvõlker, como o sel-
vagem ao civilizado e, amiúde, como o animal ao homem. Agora, vista a estrita
associação deles com a Terra, estes "homens da natureza" (Naturmenschen) arris-
cam-se a passar do reino animal para o reino vegetal, se não, de todo, ao reino
mineral. Pelo visto, como se dizia acima, arriscam-se a se tornar parte integrante da
paisagem.
170 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

A salvação da humanidade
Gostaria de dar um relevo especial à soteriologia implícita nos discursos dos
ecologistas e explícita nos projetos indianistas. Isto enquanto teorias da salvação que
interessam particularmente ao escrevente (o autor), que é um historiador das reli-
giões, e de qualquer maneira podem oferecer elementos de juízo que não são, com
certeza, de uso corrente.
Nos projetos indianistas encontra-se, em substância, a passagem - lógica ou
ilógica - de um independentismo contingente, ligado à vicissitude histórica dos in-
dígenas norte-americanos, a uma teoria da salvação absoluta, perceptível, pelo visto,
por parte de um historiador das religiões. A reconquista dos próprios territórios
como finalidade do protesto indígena - um projeto já temerário na situação atual -
torna-se irrisória diante da conquista do mundo a que leva a soteriologia elaborada
pelos atuais movimentos independentistas indígenas. Tentamos seguir esta gran-
diosa passagem do particular ao universal.
O ponto de partida é a reconquista dos territórios. Mas não podemos entendê-
la como uma simples volta ao "antes dos brancos", porque o projeto indianista, assim
como é apresentado nos organismos institucionais (entre as quais, a ONU), inclui
pelo menos dois conceitos ocidentais, o de propriedade e o de Estado, genetica-
mente coligados a um terceiro conceito fundamental, o do direito. Somente com
estes instrumentos conceituais foi possível aos índios organizar as duas Assem-
bléias das Nações Não-Governamentais realizadas em Genebra no Palácio das
Nações; tanto é que um dos pontos na ordem do dia da segunda Assembléia era
textualmente este: "direitos territoriais dos povos indígenas, tratados internacio-
nais, sistemas de propriedade da terra".
A retomada dos conceitos de propriedade e de Estado é significativa mesmo
se usados com sentido negativo. A mesma cultura ocidental elaborou, além dos
conceitos de propriedade e de Estado, também a contestação tanto da propriedade
quanto do Estado, baseando-a contudo no irrenunciável conceito de direito. Por ou-
I í
tro lado, sem tais conceitos, sejam eles positivos ou negativos, o protesto indígena
torna-se "injustificado" (pelo visto, destituído de ius, de "direito") e não encon-
traria audiência nas sedes "jurisdicionais" (onde são formulados e são garantidos
os direitos). Quero dizer, sem conceito de direito, os direitos dos índios não seriam
tais. Uma vez eliminado o direito, qualquer direito e a qualquer título, podemos
perguntar aos indianistas por que em determinados territórios somente os índios
poderiam viver a seu modo e os brancos não.
171 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

Mas neste ponto realiza-se a passagem do irredentismo territorial à redenção


do mundo, a passagem do jurídico ao religioso. Por isso, os profetas índios podem
responder, como responderam, à nossa pergunta-objeção: "Por que o modo de viver
dos índios é melhor que aquele dos brancos; por que o modo de viver dos brancos
leva à destruição do mundo e da humanidade, enquanto o modo de viver dos índios
leva à salvação do mundo e da humanidade"?
Portanto, não se trata tanto da substituição do poder branco pelo poder
indígena numa específica região da Terra, quanto da substituição do "modo dos
brancos" pelo "modo dos indígenas", que, nas mensagens indigenistas, identifica-
se com o "modo dos índios". Utilizando os canais do ecologismo, a mudança pro-
jetada é especialmente apresentada como substituição da "cultura" pela '*natura";
e isto com um espantoso reconhecimento do valor cultural absoluto que os brancos
atribuíram por tanto tempo à própria civilização, acompanhado por uma aparência
de recuperação no sentido positivo do processo de de-culturação dos indígenas,
projetado exatamente pelos brancos. De fato, a mudança é formulada nos termos de
uma substituição da cultura ocidental pela cultura indígena, como um novo con-
ceito absoluto de "civilização".
A passagem da salvação nacional a uma soteriologia universal pareceria
conduzir finalmente a uma concepção sem correspondência na cultura ocidental,
tanto mais que é formulada na base de uma negação absoluta da ocidentalidade. Mas
não é verdade: também este universalismo indígena é uma "pena de pavão" subtraí-
da ao depósito cultural dos brancos. No fundo, é exatamente esta "pena" que deu
origem ao colonialismo e o justificou enquanto pôde. Refiro-me à evangelização
do mundo, que se seguiu à civilização do mundo; e o projeto de civilização ainda
continua no período pós-colonial, quando passamos a chamar "países em via de
desenvolvimento" às antigas colônias, com a evidente perspectiva de um desenvol-
vimento no sentido da civilização industrial, e portanto no sentido tipicamente
ocidental.
Falei de soteriologia. Falei de "profetas" de uma mensagem de salvação
universal. Poderia falar da escatologia implícita nesta mensagem e às vezes explici-
tada pelos vários "profetas": a ameaça de um fim do mundo e a esperança de uma
palingenesia. Parece que certas coisas não possam ser percebidas a não ser sub spe-
cie religionis. Dar-se conta disso significa não se maravilhar, se na mensagem in-
dianista emergem também os "espíritos" (da natureza) e entidades semelhantes. E
sobretudo significa que para uma leitura correta desta mensagem não devemos
censurar algumas partes dela, precisamente aquelas em que se fala de "espíritos", de
"deuses", de salvação. De fato, talvez inconscientemente mas, às vezes, mesmo
172 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

dolorosamente, tem-se o hábito de operar uma remoção da mensagem indígena,


transferindo-a da categoria do cívico à categoria do religioso. E de outro lado - eis
o engano daqueles que agem assim e dos índios que permitem esta operação exa-
tamente esta remoção constitui o salvo-conduto do protesto indígena. Explico-me.
Em nível do "cívico", o Ocidente, para assegurar auscultação e difusão do
protesto indígena, deve censurar a sua mensagem, deve eliminar a subjacente
escatologia-soteriologia, o caráter profético de determinados enunciados, os espíri-
tos, as divindades, enfim todo o sobre-humano ou extra-humano; deve, em substân-
cia, reduzir cada coisa a uma genérica "defesa das minorias étnicas". No âmbito
desta defesa, pois, pode-se também recuperar tudo o que foi removido do cívico e
outorgado ao religioso, nos termos de uma "defesa das religiões das minorias
étnicas". A recuperação do "religioso", contudo, é realizada sem entrar no mérito,
diferentemente da colocação de um problema cívico (aquele das "nações não-
governamentais") ao qual se atribuem soluções ex indicio, isto é, derivadas de uma
laboriosa avaliação dos fatos produzidos. A recuperação do "religioso" emana
exclusivamente da solução do problema cívico: o "cívico" assegura de fato a plu-
ralidade dos cultos.

A invenção do índio
Poderíamos também nos perguntar qual a objetividade da distinção entre
"cívico" e "religioso", a que atribuímos tanta importância no parágrafo precedente.
Respondemos: a mesma objetividade que tem na cultura ocidental; a distinção é
válida enquanto colocada nos termos da cultura ocidental, porque é própria da cul-
tura ocidental que a produziu e a usa (também correntemente: como, por exemplo,
na distinção entre festas cívicas e festas religiosas).
A eventual questão da validade da dicotomia cívico/religioso portanto não
pode e não deve ser formulada em nível ético-filosófico, mas mantida completa-
mente na ordem histórica, ou seja, deve referir-se: à genese e à função da dicotomia;
à importância que ela tem na qualificação exclusiva da cultura ocidental.
Esses problemas gerais, reduzidos nesta ocasião, podem resumir-se à questão
particular: se, e até que ponto, a dicotomia cívico/religioso consegue impedir um
diálogo real entre o neo-indianismo, que não distingue (não quer distinguir) um
"cívico" de um "religioso", e o Ocidente que não pode deixar de fazer esta distinção.
173 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

Se a impossibilidade do diálogo se exprimisse efetivamente nestes termos,


diríamos que o neo-indianismo se move verdadeiramente em posições externas ao
Ocidente. O que estaria em contradição com o nosso assunto acerca da ocidenta-
lidade da mensagem neo-indígena. Mas não se afirma que também entre ocidentais
não subsiste um impossível diálogo entre os que distinguem o cívico do religioso e
aqueles que não admitem essa distinção. Motivo pelo qual pode-se dizer que o
diálogo "impossível" torna-se um diálogo "possível", quando se toma consciência de
que a polêmica é toda interna à cultura ocidental e diz substancialmente respeito à
necessidade, ao menos, de separar o religioso do cívico, quaisquer que sejam as
questões ocasionalmente colocadas em jogo (por ex., o divórcio, o aborto, a euta-
násia etc.). Em conclusão, diríamos: mais uma vez os neo-indígenas não falam de
posições externas ao Ocidente; aliás, é melhor o Ocidente que fala consigo mesmo,
ou com aquela parte de si momentaneamente representada pelo movimento neo-
indígena.
Advertir-nos, para depois encaminhar-nos nesta direção, é um fato inegável:
o neo-independentismo indígena apela à ONU, e não ao Grande Espírito ou a algum
rito como o da famosa "Dança dos Espíritos". E, uma vez encaminhados nesta
direção, vemos ao longe com facilidade que a provável recusa, por parte dos neo-
indianistas, da dicotomia cívico/religioso é somente um episódio entre as muitas
recorrências da própria recusa em toda a história da civilização ocidental. Quere-
mos olhar para os Estados Unidos, por causa desta específica referência aos índios
norte-americanos? Não é difícil ver ao longe em toda a história "civil" daquele país,
a começar pelos Pilgrim Fathers, a presença contínua e produtiva de iniciativas
ético-políticas cuja intenção é a de igualar o cívico ao religioso; é recente a pre-
tensão de Reagan de restabelecer a oração nas escolas com o risco de obter a minoria
no Parlamento. Queremos olhar para as coisas de nossa casa? Falemos então da-
quele movimento de idéias que, sob o nome de integralismo católico, persegue, em
cada campo da vida pública, a aplicação dos princípios do catolicismo e a subor-
dinação ao magistério da Igreja; ou falemos de um partido político, como a Demo-
cracia Cristã, que em sua própria denominação associa indissoluvelmente o cívico
e o religioso.
Uma vez tendo que dialogar com os "profetas", índios ou ocidentais que sejam,
que repreendem o Ocidente exatamente na dicotomia cívico/religioso"^, nós nos
encontramos na necessidade de formular juízos sobre o bem e sobre o mal; de outra
forma, não nos resta senão rejeitar qualquer diálogo. Perguntamo-nos também,
portanto, o que seria "bem". Talvez a equiparação entre cívico e religioso por parte
da cultura ocidental? Mas, se fizesse isso, estaria renegando a si mesma e à sua
174 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

capacidade de se distinguir de outras culturas, exatamente pela diferenciação entre


o cívico e o religioso. Então, a equiparação seria um "mal" se nós nos referíssemos
à edificação da cultura ocidental. Restaria um "bem" com referência à sua destrui-
ção. O que quer dizer: os "profetas", que lançam anátemas contra a "secularidade"
do Ocidente, têm como finalidade a destruição da cultura ocidental. Mas então nós
nos perguntaremos: devem ser considerados ocidentais - independentemente da cor
da pele, isto é, do nascimento - mesmo aqueles que parecem mover-se em direção
à destruição da cultura ocidental, e não em direção da sua edificação? E a que título
o seriam, visto que a este respeito a raça não constitui um título, e nós temos
denominado como ocidentais também os índios contestadores do Ocidente?
Não existe senão uma resposta a estas perguntas: são ocidentais porque
também por meio deles fala o Ocidente. É o Ocidente que, como dizíamos acima, fala
consigo mesmo. As que parecem contradições internas à cultura ocidental, e
portanto indícios da sua fragilidade, são na realidade resistências internas e, como
veremos, os melhores indícios da sua força. É como se a cultura ocidental resistis-
se a si mesma ao realizar-se, e se realiza propriamente através destas resistências
internas. O que significa um discurso deste gênero, se não quisermos banalmente
enquadrá-lo nos termos de uma dialética histórica incapaz de individualizar uma
cultura ocidental na história cultural da humanidade?
Significa que um caráter distintivo - e talvez o mais distintivo - da cultura
ocidental é que ela não pretende realizar-se como um projeto meta-histórico, mas
assume, como signos reais de reconhecimento, todas as escolhas históricas que ela
tem feito no curso da sua existência. Daqui deriva a importância que o Ocidente dá
à história, que é uma história de "provas", de "tentativas", e por isso também de
"erros" e de "fracassos", que vêm devidamente registrados ao lado dos "sucessos".
Porque é somente por meio de provas e de tentativas que se pode proceder à esco-
lha. A tentativa errada ou o erro revela-se como tal, enquanto expressão de um modo
não-ocidental de fazer cultura. O modo correto, contudo, não será melhor no senti-
do absoluto da tentativa errada, mas será correto somente enquanto resultado de uma
escolha (boa ou má que seja, não tem a menor importância), e nunca o corolário de
uma verdade meta-histórica.
É deste ponto de vista que me foi fácil considerar "ocidental" a própria
contestação trazida da ideologia neo-indígena à cultura ocidental. Tanto que não me
escandalizaria uma proposição deste tipo: os atuais índios norte-americanos são
exatamente como o Ocidente quis que eles fossem. Seria de fato justificável a di-
ferentes níveis: a ideologia neo-indígena responde à exigência ocidental de experi-
mentar no estilo americano uma evasão do cívico ao religioso, ou do racional ao
175 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

irracional; de experimentar, sempre no mesmo estilo, uma nova figuração do "pa-


raíso perdido". Para uma compreensão imediata daquilo que entendo dizer, não me
parece provocatório, mas eventualmente estimulante, afirmar que os índios de hoje
- como eles se figuram por meio dos expoentes da ideologia neo-indígena - são
finalmente parecidos aos índios que um James Fenimore Cooper "inventou" no sé-
culo passado; são finalmente tais e quais o romantismo de James Fenimore Cooper
(e por meio dele o Ocidente romântico) queria que fossem.
Passar de James Fenimore Cooper ao romantismo, e deste à reação germâni-
ca contra a romanidade republicana redescoberta pela Revolução Francesa, e
finalmente a um germanismo que sempre se contrapôs à romano-latinidade (cf.
Sabbatucci, 1977: 61 e ss.), não é um empreendimento difícil. É, contudo, um em-
preendimento longo que não cabe no espaço deste trabalho.
Para dar uma idéia de como o empreendimento poderia ser conduzido,
fornecerei um esquema delineado por três nomes importantes (provavelmente mais
que James Fenimore Cooper): Lutero, Erasmo e Tácito. Poderia chamá-lo de "es-
quema do livre-arbítrio".

Gratuito, fortuito e responsável


Assumimos Lutero como representante (contingente) de um germanismo que
contesta a romanidade, a qual, naquele momento específico, deveria ser represen-
tada pela Santa Igreja Romana. Assumimos Erasmo como descobridor (contingen-
te) de uma romanidade que, para realizar o mesmo Erasmo (para transformá-lo de
"germânico" em "romano"), coloca a necessidade de fazer aquelas escolhas histó-
ricas das quais se falava acima. Dizemos: Erasmo inventa Lutero. Isto para dizer:
sem as aberturas humanísticas à romanidade, não teria existido a crítica histórico-
teológica levada pelo protestantismo à Santa Romana Igreja.
Entre parênteses: a fórmula "Erasmo inventa Lutero" tem uma objetividade
própria indiscutível. Pode ser encontrada numa carta escrita pelo próprio Erasmo
a Willibald Pirckheimer em 1521, em que é dito textualmente: "O imperador está
convencido de que eu sou a origem e o guia de toda a revolução luterana" (Lortz-E.
Iserloh, 1974: 99).
Prosseguimos: a invenção de Lutero permite a Erasmo (e à re-romanizada
cultura ocidental) escolher entre o papa e Lutero. Não é questão de qualificar a
cultura ocidental qualificando a sua escolha; mas é questão de qualificar a cultura
176 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

ocidental pela sua capacidade de escolha. De onde a cultura ocidental permaneceu


unitária, exatamente por esta capacidade que ela se atribuiu, mesmo se o seu corpo
foi irremediavelmente dividido entre católicos e protestantes. Em suma: a escolha
sobre o papa ou Lutero não faz diferença; importante é que os ocidentais tenham ti-
do a faculdade de escolher. É esta faculdade o que os torna "ocidentais", e não o
conteúdo específico e contingente das suas escolhas. E exatamente sobre a facul-
dade de escolher realiza-se a ruptura entre Erasmo e Lutero.
Erasmo sofre a própria escolha, mas por fim a realiza. Lutero teme a escolha
de Erasmo e chega até a rogar-lhe que não faça escolhas, que permaneça neutro
(Luther, 1930-68: vol. 3, 271). Erasmo, que "inventou" Lutero exatamente para
poder escolher, encontra-se agora no dever de rejeitar a sua própria "invenção",
porque esta queria induzi-lo a não escolher. Erasmo pontualiza a controvérsia
exatamente sobre a questão da livre escolha: escreve a Diatriba de Libero Arbítrio
(1524). Lutero aceita a ruptura exatamente sobre este ponto: responde escrevendo o
De Servo Arbitrio (1525), onde à cultura do homem que escolhe é contraposta a
cultura do homem que é escolhido.
Nos termos do nosso esquema: a ocidentalidade (Erasmo) produziu o dife-
rente de si (Lutero) mas sempre interno a si, e para afirmar a si mesma por meio do
exercício de escolhas históricas. Nesta ocasião, serviu-se de um "germanismo" que
podia ser contraposto à Santa Igreja Romana, como hoje se serve, por operações
análogas, também do "indianismo" que pode ser contraposto à América. E não
estamos com certeza falando de nacionalidade: Erasmo e Lutero, os dois pólos da
diatriba de arbitrio, são ambos de nacionalidade germânica; assim como de nacio-
nalidade americana são os defensores (brancos e índios) do "indianismo" que, con-
testando a América, contesta toda a cultura ocidental.
Para introduzir Tácito no esquema até aqui composto através dos nomes de
Erasmo e de Lutero, diremos: o Ocidente inventou o "germanismo" assim como
Tácito inventou os seus Germânicos.
A fabulosa imagem de uma sociedade de natureza isenta dos males da cultu-
ra - aquela fabulosa imagem que hoje nos repropõe a ideologia indianista - nos foi
entregue (no seu tempo) por Tácito, quando propunha os seus Germânicos como
modelo antitético à reprovável atualidade romana. Mas, eis que, também no epi-
sódio tacitiano, aparece a questão do livre-arbítrio a estragar cada coisa. Ou - de um
outro ponto de vista - a restabelecer, através de um confronto com o seu "belíssimo"
contrário, uma romanidade responsabilizante, uma cultura que se diferencia pela
sua pretensão de tornar o homem sujeito e não objeto de escolhas.
177 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

Tácito não é um teólogo e, portanto, não podemos esperar que discuta de libero
arbítrio à maneira de Erasmo. Ele é um historiador, e como historiador o vemos
descrever admirado e contrariado a prática germânica do jogo de azar. Contrariado,
como Erasmo estava pelo comportamento de Lutero. A equiparação das duas con-
trariedades nasce da possibilidade de igualar o ser escolhidos pela sorte ao ser
escolhidos por Deus, enquanto em ambos os casos não é o homem o sujeito do ato
de escolher. Isto é o que diz Tácito fG^rm. 24): "O jogo de azar, estranho a dizer-se,
praticam-no como uma coisa séria e não em estado de embriaguez; com tanta des-
consideração no ganhar e no perder que, quando têm perdido qualquer coisa,
num último golpe decisivo jogam também a própria liberdade pessoal. O vencido
encaminha-se à escravidão voluntariamente; mesmo se for bastante jovem e robus-
to, deixa-se prender e ser posto à venda sem reagir. Tanta é a obstinação no vício;
mas eles o chamam de honra".
A descrição que Tácito faz dos jogadores germânicos, como escrevi uma vez
num estudo sobre o jogo de azar praticado pelos índios da América Setentrional
(Sabbatucci, 1964: 26), "adapta-se perfeitamente ao jogo de azar indígena, até nos
pormenores significativos da seriedade, da não embriaguez, da desconsideração, da
liberdade pessoal colocada em jogo, da obstinação e da honra".
Não queria que a introdução de Tácito em nosso esquema fosse considerada
um mero expediente para voltar ao discurso sobre os índios da América Setentrional.
A equiparação destes índios aos Germânicos de Tácito coloca, na realidade, um pro-
blema histórico-cultural que supera com certeza o momento presente. A questão é
que relação existe entre as duas culturas, a indígena e a germânica, tão afastadas
entre si no tempo e no espaço?
Em outros tempos a resposta teria sido: existe a relação que une todos os
"primitivos", todos os "povos da natureza". Hoje a resposta deve ser: Germânicos
e índios aparecem unidos na visão que deles tem a cultura romano-ocidental nos
momentos em que interrogou a si mesma acerca da sua própria conformação.
Mas o fato, concreto e absurdo, de ambos se dedicarem com seriedade (e até
ritual) aos jogos de azar não constituiria uma ligação objetiva, independente da con-
sideração subjetiva por parte da cultura ocidental?
Iremos responder a esta objeção: também neste caso o fator de união não é um
fato objetivo que parece ser o "jogo de azar absurdamente praticado com serie-
dade", mas é próprio da cultura ocidental objetivar, com esta fórmula, determinados
fatos de outras culturas que resultariam, de outra forma, para ela incompreensíveis.
É a nossa cultura ocidental que decifra arbitrariamente, do seu próprio modo e para
178 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

decifrar-se a si mesma, signos variadamente operantes nas culturas com as quais se


põe em confronto.
Por que deveria ser absurdo "jogar seriamente"? É absurdo somente se re-
lativizado à nossa cultura, que contrapõe o "sério" ao "lúdico". E, contudo, somos
nós que consideramos jogo o que não é exatamente tal, porque é praticado seria-
mente. Trata-se de alguma coisa que poderíamos chamar "recurso ao azar", mas não
"jogo de azar".
Quanto pois ao "azar", temos de tomar em consideração que somos nós a dar
uma conotação de tipo negativo à "casualidade", para depois reduzir à "casuali-
dade" tudo o que, do nosso ponto de vista, pode parecer carência (eis a negativida-
de) de responsabilidade pessoal.
Gostaria de concluir com duas observações que deveriam nos ajudar a en-
frentar corretamente um discurso acerca do neo-indianismo, mas também, em geral,
qualquer discurso acerca de movimentos, ideologias, correntes de pensamento etc.
que, enquanto parecem contestar "responsavelmente" a cultura ocidental, na reali-
dade se colocam, ou como hipótese de evasão da responsabilidade pessoal ou, em
nível de quem consome drogas ou bebidas inebriantes, simplesmente como instru-
mentos de evasão. Primeiro: tanto mais a "responsabilização" caracteriza a cultura
ocidental, tanto menos ela estará presente nas outras culturas como signo distintivo;
e faltará totalmente no "de-culturado" ou "de-historificado", isto é, naquele "natu-
ral" que a mesma cultura ocidental finge para si mesma, dando a ele várias formas
ocasionais, entre as quais a "indígena" de hoje e a "germânica" de Tácito. Segundo:
a "responsabilização", se for um erro contra a natureza, se for uma culpa, é com
certeza uma culpa ocidental; uma das muitas, entre as quais, a invenção do Estado
(a res pubbli-ca) e dos "direitos civis"^.
T
Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996. 179

Notas

1. Mooney, 1900: 399. A tradução é a de R. Pettazzoni, 1953: 492, onde o conto é


referido com o título "As Penas de Pavão e o Falso Profeta".
2. Tais ideologias são aqui tomadas em consideração no seu todo como um modo de
contestação da cultura ocidental. Aludirei a elas em termos convencionais como neo-
indianismo, ideologias neo-indígenas etc., para distingui-las das expressões ante-
riores da história do independentismo indígena. Para um conhecimento dos conteúdos
significativos de tais ideologias reenvio o leitor aos seguintes trabalhos de Santiemma
(1979: 74; idem, 1981: 189-258; idem^ 1982).
3. De tudo isso nós nos podemos servir mesmo para passar da teoria à práxis polí-
tica: a cultura que "explora" a natureza é a ocidental; o termo "ocidental", na
linguagem corrente, indica politicamente as democracias liberais em contraposição
às democracias socialistas; com isso torna-se funcional também a limitação do
"ocidental" realizada na terminologia política: uma argumentação a mais contra a
América na polêmica EUA-URSS.
4. É de se observar que uma tal repreensão pode vir também por parte dos etnólogos
(ou seja, de sujeitos e não objetos da etnologia), dos quais se esperaria uma espécie
de neutralidade científica, para não dizer aquela objetividade que, por outro lado,
parece inalcançável. Cf. Servier, 1967.
5. Acerca dessas "invenções", cf. Sabbatucci, 1975.

i
180 Sabbatucci, D., Imaginário - USP, n. 3, p. 163-180, 1996.

Referências Bibliográficas

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Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

O Sonho Indiano:
uma metáfora iniciática na literatura
de viagem dos séculos XV e XVI
Adone Agnolin*

Resumo: Este trabalho é uma tentativa de analisar a relação particular que os relatos de
viagem estabelecem na construção de uma realidade específica: o Novo Mundo. O universo
conceituai em que os viajantes dos séculos XV e XVI estão mergulhados sugere-nos, para
sua análise, a adoção de uma ''metáfora iniciática Trata-se de peculiaridades dos rela-
tos de viagem (com os próprios instrumentos ''rituais" de controle, além de conhecimento
e de representação privilegiados) e dos ritos iniciáticos. A narração da viagem parece en-
tão se configurar, de um lado, como momento de reintegração no espaço cultural de origem
e, de outro, como momento de reinterpretação de sua cultura.
Palavras-chave: memória - história - imaginário - representação - alteridade - relatos
de viagens - ritos de passagem

A descoberta do Novo Mundo constitui curiosamente um dos fatos históricos


mais importantes e, ao mesmo tempo, menos reconhecidos da história do Ocidente
saindo da Idade Média. Um espaço e um tempo novos invadiam a cultura européia,
desestruturando, simultânea e imperceptivelmente, todo o sistema gnosiológico e
cosmológico medieval. Desestruturava-se aquela visão do cosmo que tinha tido o
próprio "centro" ideal em Roma ou, alternativamente, em Jerusalém, e que tinha
encontrado no Oceano Índico (sinus barbaricus ou mare indicum) o próprio hori-
zonte onírico privilegiado. Tratava-se da mesma visão que, afastando-se idealmen-

* Laurea em Filosofia e pesquisador em História das Religiões na Universidade de Pádua, Itália.


Doutorando em Sociologia da Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar do
Imaginário e Memória - NIME-USP. Quero agradecer pela revisão da minha tradução à Profa. M. de
Lourdes Beldi de Alcântara, à Profa. Sheila Maria Doula e ao Prof. Mário Yasuo Kikuchi.

i
182 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

te da Europa mediterrânea, encontrava inquietantes e ameaçadores monstra (Le


Goff, 1977: 243-63).
Mas, entre a segunda parte do século XV e o início do século XVI, esta
desestruturação é ainda imperceptível e convive com muitos aspectos próprios da
cultura medieval. Mesmo assim, o início do desequilíbrio do sistema cosmológico
começa a encaminhar um processo de adaptação essencial que vai constituindo um
novo ordenamento do espaço.
Do ponto de vista histórico-religioso, trata-se de um processo cultural em que
se concretiza a consciência da desagregação da visão do mundo dada, constituindo
assim as premissas para se experimentarem novas dimensões de operabilidade no
mundo humano, ou seja, novas hipóteses de valorização do mundo.
A incursão nos desconhecidos, às vezes hostis, espaços do Oceano Índico antes
e do Atlântico depois, começa a revelar-se uma verdadeira vertigem da cultura
européia, em parte administrada e em parte exaltada por um gênero literário que
assume um destaque particular próprio entre os séculos XV e XVI: os relatos de
viagem. Reiterando amiúde a "velha" percepção do cosmo medieval, essas relações
começam a constituir a reelaboração de um conhecimento, e de toda uma relação, com
a nova visão do mundo que começava a se destacar. Refundava-se pouco a pouco toda
a sensibilidade perceptiva, depois que se começava a verificar a inadequação de
algumas estruturas significativas e funcionais do passado.
Le Goff demonstra como o homem da Idade Média, contrariamente aos ho-
mens da Renascença, não sabia olhar. Nutrido de lendas que julgava verdades, trazia
consigo as próprias miragens, persuadido de ter visto o que ele tinha apreendido
(Le Goff, 1977: 257-68). Numa época na qual o escutar, o sentir, constituía ainda a
atitude predominante com respeito ao ver, os olhos viam, antes de tudo, aquilo que
se ouvia, aquilo que tinha sido referido. Pouco a pouco, a evidência das realidades
geográficas descobertas entre os séculos XV e XVI ia constituindo uma nova rea-
lidade cultural, destinada a desmitificar os sonhos e as fantasias de um imaginário
europeu, já milenário, para abrir-se à nova época histórica da Renascença. Contudo,
este percurso não se apresenta sempre linear ou destituído de importantes interco-
nexões com a atitude cultural precedente.
Se, como é sabido, Colombo, impregnado da leitura do Livro das Maravilhas
de Marco Polo e pela Imago Mundi do Cardeal d'Ailly, via a índia na América, ele
via para escrever narrações que, por sua vez, teriam sido ouvidas. Assim, nele, o
pensamento medieval aliava-se às características do aventureiro intrépido de uma
nova era, aquela das navegações e das descobertas, da mesma forma que o costume
de ouvir aliava-se àquele de ver.
183 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

Na definição de Aristóteles, "devemos preferir um impossível que seja


verossímil a um possível que seja incrível" (Aristóteles, Poética, 1460a25-7). Se
juntarmos a isso o maravilhoso e o irracional, com o movimento que conduz um
homem longe da sua terra (id,, ibid., 1460al2-3; 1455bl7) obtemos, o esquema
da viagem: trata-se, no fundo, do emblema mais significativo da dialética cultural
entre memória e história, no caso específico, da relação entre o pensamento medie-
val e a descoberta do Novo Mundo.
Mesmo representando-se como produto de uma herança cultural, a projeção
de um imaginário maravilhoso representa de fato uma mediação cultural do homem
diante de uma realidade desconhecida^ Esta mediação do maravilhoso, contudo, não
se dá fora de uma experiência concreta e de uma racionalização do real: diríamos
que quanto mais um mundo torna-se "outro", tanto mais ele se manifesta numa
mediação suspensa entre o imaginário e o real. Uma realidade, por mais nova que
seja, não pode nunca se configurar como "alteridade" absoluta, mas sempre se nos
oferece como processo de interpretação do outro através de si mesmo.
Além das coordenadas geográficas, da topografia e da toponímia, no esforço
de adequar um universo em perfeita sintonia com uma realidade caracterizada pelo
imperativo econômico, existem em cada viagem também outras coordenadas que
respondem a uma relação bem diferente com a realidade e que exprimem um uni-
verso conceituai do qual os relatos de viagem nos dão conta.
Esse universo conceituai no qual os viajantes dos séculos XVI e XVII se
adentram nos sugere, para a sua análise, a adoção de uma "metáfora iniciática". Tra-
ta-se de individualizar as características comuns e as diferentes peculiaridades en-
tre os relatos de viagem (com os próprios instrumentos "rituais" de controle, além
de conhecimento e de representação, privilegiados) e os ritos iniciáticos.
Do ponto de vista antropológico, de fato, as narrativas de viagem nos apare-
cem como um verdadeiro e próprio "rito de passagem" do próprio relator não tanto,
ou não exclusivamente, na direção de uma realidade diferente, mas na direção da
comunidade que ele tinha deixado, ao partirá Com relação a isto, diríamos que o
maravilhoso, ligado indissoluvelmente às narrativas, "revela mais sobre a ideologia
que o engendra e consome do que sobre a realidade que declara reproduzir" (Giucci,
1992: 16).
A narração da viagem parece então se configurar, de um lado, como momento
de reintegração no próprio espaço cultural e, de outro, como momento de rein-
terpretação da própria cultura. Depois da saída, da separação e sobretudo depois da
conexão com a margem, o "rito" transformou não só o sujeito, mas principalmente
184 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

O seu espaço cultural originário. Neste aspecto vemos o afastamento mais significa-
tivo do esquema iniciático.
De fato, ressaltamos que, enquanto na perspectiva tradicional é fundamental-
mente o drama mítico que estrutura a ordem do mundo, neste caso o ordenamento
é constituído por um pré-ordenamento fortemente condicionado (i. é., interpretado)
por uma nova ordem que constitui a alternativa ao presente histórico. O mito perde
o seu poder exclusivamente paradigmático em relação ao presente, para assumir, de
forma complementar e interpretativa, também a característica de uma perspectiva
escatológica.
Assim, em contraposição ao rito que tem uma dinâmica própria dentro da qual
acontecem as mudanças, parece "se concretizar a tomada de consciência da não
atualidade, da desagregação da visão do mundo dada e (...) criam-se as premissas para
experimentar novas dimensões da operabilidade no mundo humano, novas hipó-
teses de valorização do mundo" (Massenzio, 1980: 151). O afastamento do esquema
iniciático das relações de viagem está, portanto, na reviravolta da dialética mito/
história colocada numa nova relação com as categorias culturais de caos/ordem.
Se, de fato, o rito iniciático se caracteriza pela exigência de transformar o jo-
vem num membro efetivo da comunidade - para fazê-lo conforme a "norma"
comunitária através de uma segregação, realizada num contexto diferente daquele
normal o objetivo não é somente providenciar "a perpetuação da própria exis-
tência", mas sobretudo defender "a própria civilização, isto é, as próprias tradições,
a própria linha de conduta: através das iniciações, a sociedade perpetua-se, regenera-
se, tal e qual ela quer ser'' (Brelich, 1969: 24). Nos relatos de viagem, ao contrário,
encontramos muitas vezes uma crítica à sociedade (ocidental) que os viajantes dei-
xaram, ao partir (sociedade que constitui amiúde a motivação principal da viagem).
Essa crítica permite, às vezes, uma supervalorização do mundo "selvagem"
que, pouco a pouco, se descobre em todo o seu fascinante exotismo, além de algumas
depravações características. Por fim, este percurso fecha-se com a reintegração no
espaço cultural originário, mas somente em favor da "vitalidade crônica" de "um
antimodelo que - oposto ao Ocidente - identifica suas peculiaridades" (Mazzoleni,
1986: 219; idem, 1992). Tratar-se-ia enfim do constituir-se de uma verdadeira e
própria visão profética, qual antecipação de uma futura dimensão da nova ordem, seja
como resgate à crise presente na sociedade ocidental, seja na tentativa de orientar
normativamente a necessidade de transcender à mesma crise.
O interesse para com o Novo Mundo, com as miragens de riquezas secretas,
difundia-se nos reinos da Europa Ocidental e trazia, nos novos e ilimitados terri-
tórios, grupos de pouco prováveis civilizadores. Quando ainda as "Colunas de
185 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

Hércules" representavam um confim intransponível, o único caminho percorrível


pelo homem conduzia às índias, que tinham sido o objetivo da viagem de Colombo.
Mas estes territórios, também depois de Le Divisament dou Monde de Marco Polo,
permanecem por longo tempo interditados ao homem ocidental. Este universo
continua alimentando as fantasias oníricas da Idade Média. A sua configuração,
mesmo cartográfica, se desenvolverá, aliás, paralelamente à descoberta e descrição
do Novo Mundo. O espaço concedido ao homem ao longo de toda a Idade Média
limita-se a um espaço além do qual encontra-se o Anticristo; os povos que "vivem aos
quatro cantos da terra", Gog e Magog; e "ferocissimae gentes", que "alimentam-se
de carne humana ou de animais crus"^ Paradoxalmente entretanto, neste mesmo
espaço, deposita-se (e este espaço alimenta) a esperança de encontrar o acesso ao pa-
raíso terreno. Característica importante esta, que já se vinha delineando nessas
narrativas de viagem, lá onde entrevemos o estabelecimento de relações necessárias
entre a função dos relatos e o consolidar-se do mito do Paraíso Terrestre nos sécu-
los XV e XVI.
Um dos elementos fundamentais do sonho indiano tinha sido de fato a rique-
za, sonho que vinha ao encontro das exigências da nascente burguesia européia. A
expansão comercial teria assim constituído o substrato infra-estrutural destas
projeções oníricas. A história específica da cultura européia continua entregando à
memória uma importante função cultural, desencadeando contudo uma nova dinâ-
mica cultural que vai constituindo um processo de produção das visões paradisíacas
e infernais de um Novo Mundo que assumia uma função purgadora (Mello e Souza,
1987), por meio da viagem através desta 'geografia moral', que procurava garantir
a salvação quase como uma ressurreição iniciática.
Por outro lado, o sonho indiano era caracterizado pela exuberância fantástica
e monstruosa da natureza, dos homens, dos animais. Para o homem europeu, este
aspecto teria constituído num primeiro momento a compensação do próprio mundo
pobre e limitado, e sucessivamente o fascínio da diferença: canibalismo, nudez, li-
berdade sexual, ócio, poligamia, incesto. Estes prodígios "só se preservaram na
índia e particularmente na Etiópia, que continuaram a ser os dois viveiros de todas
as maravilhas, sobretudo enquanto não se descobriu o novo continente" (Holanda,
1969: 198). Todas essas imagens se encontram de forma evidente também nos
primeiros relatos de viagem pela América, em que só se reconhecem pequenas e
graduais modificações.
Com certeza na Idade Média não se reconhecem rígidas barreiras "entre a
literatura científica ou didática e a literatura de fantasia" (Le Goff, 1970: 256). Con-
tra a constituição de uma mensuração concreta do espaço conhecido, deve ter tido
186 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

uma função decisiva também uma geografia interessada mais em repartir o cosmo
segundo uma organização qualitativa do espaço, orientando-o entre alto e baixo, céu
e terra, paraíso e inferno.
Na Idade Média ocidental, portanto, afirmou-se uma "geografia do Além'"^' e
não desse mundo. Afinal, este mundo, em cima do qual adejava a espera do
caelum novum e da terra nova, desenhados pela geografia escatológica agostinia-
na (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 20.16), era destinado a desaparecer com o
fim dos tempos. Este horizonte conceituai permitia conceber o mundo só de duas
formas, "aliter in peccatoribus, aliter in sanctis"^. Portanto, para a definição do
espaço terrestre, reservado ao exercitium hominis, podia ainda ser suficiente uma
geografia herdada pela latinidade tardia, quando a articulação vertical do universo
não tinha então assumido uma forma definitiva.
Para o homem da Idade Média, portanto, cada lugar e espaço do mundo
conhecido (e desconhecido) superava assim a própria dimensão física para tornar-se
parte de um complexo sistema simbólico e evocar realidades e dimensões de ordem
metafísica: a Terra e até as próprias ilhas tornavam-se imagem da Igreja e das
Escrituras, como dos inimigos delas e da depravação humana. A história não podia
ser separada da alegoria. Cada geografia era então reconduzida à autoridade cos-
mológica das Escrituras, na ausência de uma clara delimitação entre literatura cien-
tífica e produtos do imaginário.
Levado a se reconsiderar, por causa das progressivas deslocações dos confins,
o mundo antigo tinha assistido a uma rápida dilatação dos espaços e a uma verifi-
cação da própria identidade diante das novas culturas com as quais se encontrava.
Numa obsessiva procura de certezas, ele via proliferar as mais diferentes viagens. A
ordem cósmica sancionada pelas divindades tradicionais ia se desagregando para se
recompor num caótico cosmo povoado por fantasmas e démoni entre a terra e o céu,
por monstros ameaçadores nos limites extremos das terras conhecidas. A crise que
o mundo antigo atravessa investe também a visão do universo. Ultrapassar os con-
fins eqüivale a superar a "medida" que a cultura grega clássica tinha estabelecido
como limite próprio do homem.
Da mesma forma, a sociedade européia dos séculos XV e XVI, entre a
reiteração de modelos geográfico-cosmológicos da Idade Média e a reestruturação
da nova realidade geográfica e cultural, começa a delinear, não sem contradições e
arquétipos tradicionais, a nova visão do universo.
Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996. 187

A índia Ocidental
a conexão com a ''margem"
A época das descobertas é caracterizada por uma forte integração religiosa:
o descobridor da América pensava de fato na possibilidade de utilizar o ouro ame-
ricano numa eventual "Cruzada" contra o "Infiel". Esta religiosidade mostra-se de
forma evidente lá onde Colombo assume as características daquele que realizava a
profecia, subtraindo-se à atitude empirista de quem procura conhecer, e subordi-
nando-se, pelo contrário, ao argumento de autoridade que repousa sobre verdades
preestabelecidas. A mesma descoberta representa, então, a realização da vontade
divina preanunciada pelas profecias. É assim que, trazendo consigo a bagagem
conceituai própria do Ocidente, e aplicando-a ao novo âmbito cultural, ele determi-
na, exemplarmente, o comportamento próprio de navegantes, conquistadores, mis-
sionários e colonizadores que o seguirão. Sendo assim, os diários nos propõem de
fato relatos de viagem que, se por um lado prestam atenção à narração exemplar de
Marco Polo, por outro parecem apresentar a empresa inaudita da mesma maneira
que aquela de Odisseu. Da mesma forma, então, Colombo determinava a fundação
de um universo cultural que condicionou por muito tempo o Ocidente. Via os
habitantes das Grandes Antilhas como "necessitados de tudo". Mas com o fato de
reconhecer aos índios uma humanidade suscetível de civilização, tanto mais ur-
gente quanto mais eram carentes de bens culturais por um lado, ou submissos a uma
civilização distorcida por outro, o europeu era chamado a uma obra de "recuperação
cultural" do selvagem. "Ao contrário, os bens de que necessitam os europeus, e que
Colombo irá pedir de modo insistente no momento em que tenta estabelecer uma
relação com os índios, são bens igualmente preciosos, mas são bens naturais:
pérolas, ouro, prata etc." (Mazzoleni, 1986: 73). Além da conotação defectiva,
emerge, porém, a possibilidade daquela relação de troca, fundamental à economia
mercantil européia. A exaltação da natureza americana na obra de Colombo se
contrapõe ao não reconhecimento dos bens culturais indígenas. Esta relação, "que
irá agir com recíproca vantagem das partes, concretiza-se, portanto, em uma troca
de bens culturais contra bens naturais. Os ameríndios, cedendo os bens de que a
Europa tem tanta necessidade, obterão em troca uma progressiva promoção cultural
e a integração política" (id., ibid.).
Mas outra atitude exemplar, que contaminará a sucessiva literatura de via-
gem, é representada pelo mito do "bom selvagem" (os tainos) em contraposição ao
selvagem mau (os bárbaros e não humanos Caribi). Esta contraposição reclama pa-

i
188 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

ra Colombo e para a própria Europa a função de proteger o primeiro, mesmo vi-


vendo antes ou fora da cultura. É este "bom selvagem" que trará para a cena o mito
do Paraíso Terrestre perdido (pelos europeus), em contraposição aos Caribi (de-
pois Caniba), que através de uma cultura falsa renovam os esquemas de uma hu-
manidade pré-cósmica. Seja os "bons" tainos, como os "não humanos" Caribi,
ambos são colocados, pela cultura européia da época, fora das próprias condições
his-tóricas concretas. Evidencia-se uma ruptura entre a cultura européia e a cultura,
com signo negativo, das novas povoações encontradas. Segundo o historicismo de
Lanternari, não existe possibilidade de separação entre o mundo dos assim cha-
mados povos "primitivos" e o mundo convencionalmente conhecido como "histó-
rico", seja este "antigo" ou "moderno". Assume um significado, para nós particular,
o fato de que estes povos "primitivos" constituem-se como "...um espelho, no qual
o homem contemporâneo reconhece os limites particulares dentro dos quais é
estruturada a nossa civilização (...) isto denuncia as insuficiências e as contradições
próprias da nossa cultura, à luz de mundos culturais novos" (Lanternari, 1977: 10).
Portanto, a análise das imagens que esses povos foram assumindo no Ocidente
nos revela as exigências próprias da cultura ocidental que as sustentam e que contri-
buem para a construção da "alteridade indígena".
Partindo desses pressupostos, podemos, então, constatar como a história das
descobertas marítimas portuguesas coliga-se às manifestações próprias da cultura
dos séculos XIII e XIV, abrindo-se às tendências culturais próprias do Humanismo
europeu que se estrutura a partir da segunda metade do século XV. Elementos
tipicamente econômicos e políticos aliavam-se ao espírito religioso da época na
tentativa de rodear o problema colocado pela presença dos Infiéis, das expedições
cruzadas contra eles, e na fremente necessidade da propagação da fé católica.
Assim Caminha, depois de ter verificado que a gente encontrada nesta "ter-
ceira margem" do Oceano era muito semelhante a ele^, e portanto não era infiel,
demonstra como o velho espírito das Cruzadas pode ser definitivamente substituí-
do pelo novo Humanismo. A instância da propagação da fé católica, a "verdadeira
fé", torna-se prioritária^.
Pero Vaz de Caminha é o grande exemplo da continuidade da cultura religio-
sa, um típico representante do Humanismo cultural do século XV. A Carta do
primeiro cronista do Brasil é testemunha de um verdadeiro espírito religioso cristão,
aberto ao conhecimento do outro, dentro dos limites próprios da época. O limite pró-
prio deste conhecimento-abertura em favor do outro resulta bem evidente lá onde o
autor ressalta que ''pareceme jemte de tal jnocencia que se os home emtendese a eles
a nos, que seriam logo cristaãos porque eles nõ teem nem emtendem em nhuua
189 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

creemça segundo parece. E por tamto se os degredados que aqui am de ficar,


aprenderem bem a sua fala e os emtenderem, nom dovjdo segundo a santa tençam
de vossa alteza fazerem-se cristaãos e creerem na nossa samtafe, aa qual praza a
nosso S.or que os traga, porque certo esta jemte he boa e de boa sijnprezidade (...)
e por tanto vossa alteza pois tamto deseja acrecentar na santa fe católica, deve
emtender em sua salvaçam e prazera a Deus que com pouco trabalho sera asy"^.
Caminha propõe, portanto, uma política ecumênica de expansão do ideal
religioso quando, no fim da sua carta, declara que ''pero o mjlhor fruito que neela
(carta) se pode fazer me parece que sera salvar esta jemte e esta deve seera principal
semente que vossa alteza em ela deve lançar. E que hy nõ ouvese majs ca teer aquy
esta pousada pera esta navegaçom de Calecut, abaastaria quanto majs desposiçã,
pera se neela conprir e fazer o -q vossa alteza tamto deseja, s, acrecentam. to da nosa
santa fe''^.
Com essas palavras, o nosso autor quer mais uma vez tornar manifesto o fa-
to de que a catequese desta "nova gente" permaneça a verdadeira riqueza da desco-
berta, que, deixando às iniciais finalidades estratégicas das navegações, se propõe
agora por uma valorização própria.
Mas a felicidade (terrena) desta "gente nova" provoca o imaginário europeu,
criando o espaço da evocação do Paraíso Terrestre. Depois de a Idade Média ter
afastado por longo tempo o homem deste paraíso, este vê, agora, nos novos espaços,
a possibilidade de voltar a viver numa mítica aurea aetas como aquela da An-
tigüidade. Não podemos todavia esquecer a reviravolta causada pela nova cultura
ocidental que, subtraindo a ordem mundana ao drama mítico, o coloca, como alter-
nativa ao presente, numa dimensão projetada no futuro. Eventualmente se realiza no
presente histórico como dimensão profética da nova ordem escatológica, reconhe-
cendo à ação humana "o poder de condicionar aquilo que é além do presente mesmo,
assim como as gestas míticas condicionavam o asseio posterior do mundo (...). A
intervenção humana na determinação da atualidade se põe como causa eficiente da
possibilidade de realizar um sistema 'outro' de existência" (Massenzio, 1980: 117).
O "mito" do Paraíso Terrestre surge já com Amerigo Vespucci: "// paese é
molto temperato, fertile e sommamente dilettevole; e benché abbia molte colline, é
nondimeno irrigato da infiniti fonti efiumi (...).... é volto al mezzo giorno, colcielo
talmente temperato che di verno non hanfreddo, né di state sono molestati dal caldo
(...). Quivi il cielo e l'aere é rare volte adombrato dalle nuvole; quasi sempre i giorni
sono sereni. Talvolta cade Ia rugiada ma leggiermente: quasi non vi é vapore alcu-
no e Ia rugiada non cade piú che per ispazio di tre o quattro ore e a guisa di nebbia
si dilegua'"'^.
190 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

E depois de Vespucci esta visão paradisíaca acompanhará todos os cronistas


e os viajantes na América entre os séculos XVI e XVII.
Discípulo de Calvino, chegado em terra brasileira para a realização da "França
Antártica", Jean de Léry nos descreve os índios tupinambás com a mesma exaltação
do ambiente americano. Como Caminha, ele sonha reconduzir aquela gente "pura e
ingênua" ao seio da verdadeira e única Fé.
A primeira experiência antropológica de Jean de Léry nasce também do
contato com uma das típicas manifestações do "mau selvagem"^^ Aqui aparece
("além do fato de eles não acreditarem num Deus bom e justo como o nosso") a mais
inquietante e negativa caraterística do índio, o maior pecado dele: a prática antro-
pofágica. Porém, o Humanismo cultural deste autor o conduz a reler de forma nova
(em polêmica constante com Thèvet, por exemplo) esta prática ritual indígena, com
a atenção constantemente voltada à própria velha Europa, envolvida nas "guerras
de religião". "Não abominemos portanto demasiado a crueldade dos selvagens an-
tropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais detestáveis do
que aquelas que só investem contra nações inimigas de que tem vingança a tomar.
Não é preciso ir à América, nem mesmo sair de nosso país (a França), para ver coisas
tão monstruosas" (Léry, 1980: 204).
Assim Léry tenta uma leitura mais ampla dessa prática, ressaltando o seu
constituir-se, não por um gosto aberrante, com um fim em si mesmo, mas com a fi-
nalidade de "causar temor aos vivos (inimigos)": este fato representaria o seu
objetivo principal. O autor discerne nesta prática os germes daquilo que Alfred
Métraux definirá como "um drama ritual de profunda importância religiosa e so-
cial" (Métraux, 1971: 52), e a semiliberdade do prisioneiro se tornará o centro da
atenção de Léry^^. De qualquer forma, a prática ritual da antropofagia se impunha
aos mesmos índios, pois eram os "espíritos" que exigiam o sacrifício das vítimas
para vingar a morte de alguém. A única verdadeira motivação das expedições
guerreiras é, como ressalta o mesmo Léry, a vingança do sangue que não pode ser
completa sem que o inimigo seja devorado.
Assistimos com a obra de Léry, depois continuada por Montaigne, a uma
primeira relativização da cultura européia. Deste modo a cultura ocidental pode
objetivar fatos que pertencem a outras culturas, fatos que de outra maneira resulta-
riam a ela incompreensíveis. A cultura ocidental interpreta, então, arbitrariamente,
signos que operam diversamente nas culturas com as quais ela se confronta. Mas a
decifração é realizada em forma própria e resulta por isso útil, sobretudo para decifrar
a si mesma. Assim, através desta operação, o Humanismo abria caminho a uma
possível corrosão e, sem dúvida, a uma relativização do etnocentrismo europeu.
191 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

Não se trata, ainda, de um antiestatismo no sentido moderno, mas do brotar da


crítica daquela concepção do Estado, que sintetiza os norteamentos culturais do
Ocidente, que se constitui como um "Estado de direito". Esta consciência, de um
percurso específico da cultura ocidental, se desenvolve de forma exemplar para-
lelamente ao conhecimento dos povos americanos, tanto que, se o Estado "é aqui-
lo que qualifica globalmente a cultura ocidental (...), a ocidentalização das outras
culturas comportará cada vez mais a constituição de outros tantos Estados"
(Sabbatucci, 1984: 8).
O problema torna-se evidente no embate entre o Ocidente, que "inventou" o
Estado, e o Novo Mundo, onde, às vezes, ele se encontra de forma fortemente
estruturada, por exemplo, aquele teocrático-militar asteca, ou às vezes dele não se
consegue ver uma forma mínima de organização. No primeiro caso, se instaura uma
dialética entre "cultura" (européia) e "cultura distorcida" (americana), no segundo
entre mundo "cultural" e mundo "natural" (Gasbarro, 1988: 125-70). A propósito
dessa problemática assume particular significado o relevo da crítica de Léry, que
ressalta a oposição religiosa e de classe, interna ao Estado francês, contra a realida-
de cultural indígena brasileira "natural", onde os selvagens "só se dirigem contra
tribos inimigas".
Enfim, no confronto entre o civil (europeu) e o selvagem (americano), Léry
também não subtrai o primeiro à sua crítica, melhor dizendo, o selvagem revela-se
a ele um instrumento precioso para criticar a própria sociedade européia e, se o
comportamento do selvagem encontra pouco a pouco algumas justificações, não se
pode dizer a mesma coisa a propósito do homem europeu. Delineia-se, assim, a crítica
daquela sociedade que confia nos próprios valores e na superioridade da própria
cultura, denunciando os atos "barbáricos" dos franceses contra os prosélitos da igre-
ja reformada. Trata-se da descoberta de uma "dimensão barbárica" dentro dos
mesmos confins da sociedade civil. Com Léry e com Montaigne, assume novo vigor
aquela atitude já evidente em Tácito, que via nos seus germanos a fabulosa ima-
gem de uma "sociedade de natura isenta dos males da cultura, presentes na sua
Roma Imperial. A preciosa função de crítica da sociedade européia vai então se
tornando uma das funções específicas que os povos "primitivos" irão ganhar na
sucessiva ciência antropológica.
Torna-se significativo, nesse ponto, o discurso que Giambattista Vico propõe
acerca das origini ferine da civilização, discurso que se fundava na observação dos
selvagens americanos, que têm capacidade de viver em sociedade senza alcuna
cognizione di Dio. Portanto, uma barbárie e uma ferocidade que nunca se configu-
192 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

ravam como simples bestialidade, mas que conservavam sepultada em si mesmas


uma centelha da perfeição originária.
A passagem da barbárie à civilização, na obra de Vico, corresponde ao
caminho da mesma mente humana: do senso à fantasia, em direção à razão. E
evidencia sobretudo como a razão constitui somente um ponto de chegada de um
complicado processo, mas também como o assim chamado mundo "pré-lógico"
substitui com uma imagem só, a função que será exercitada pela conceitualização na
idade da razão. Desta forma, aspectos específicos da realidade histórica dos selva-
gens americanos vêm absorvidos no interior de um processo, também histórico, que
funda a diversidade das categorias de pensamento de um "mundo mágico" primitivo,
do qual, de qualquer forma, apronta-se um itinerário que deve chegar à razão e à
abstração.
Por outro lado, a situação cultural européia permitia, por sua vez, a projeção de
aspectos específicos da própria cultura na realidade americana. Assim, se o pulular das
heresias e das diversas orientações religiosas européias era reconduzido à obra do
Demônio, a presença do qual era aliás demonstrada pelo multiplicar-se, na "civil"
Europa, de bruxas e possuídos, da mesma forma não era difícil atribuir ao mesmo
Demônio a responsabilidade de ter confundido e enganado os "pobres e ingênuos"
índios da América. Assim, os relatos de viagem, até o século XIX, continuarão a
descrever de forma diferente as "bruxarias" e as "superstições" dos selvagens ameri-
canos, atribuindo a responsabilidade dessas ao Demônio. Desta maneira, os índios
aparecem, aos olhos do nosso Léry, atormentados pelos "espíritos malignos" por falta
de uma idéia de um Deus benigno e misericordioso. Então, aos "falsos profetas"
indígenas (pajés oncaraibas) cabe a responsabilidade de ter ensinado a eles um monte
de "superstições" vazias e inúteis.
Por outro lado, isso já era observável na individuação da descendência indí-
gena do mesmo Cam (filho maldito de Noé), atitude que aproximava Léry dos
escritores da sua época, os quais insistiam no fato de que, mais que um vazio
verdadeiro e próprio, encontrava-se nas crenças indígenas uma obnubilação da
Verdade revelada e, mais geralmente, da mesma cultura, por causa do isolamento
geográfico no qual tinham sidos confinados os habitantes do Novo Mundo. Também
Durán tinha, por exemplo, descoberto nos antigos ritos "pagãos" astecas, assim
como eram praticados antes da conquista, elementos cristãos tão numerosos, que se
tornavam desconcertantes. Se esses ritos lembravam de perto aqueles cristãos, é
porque também os astecas tinham já recebido no passado um ensino que Durán
atribui, como muitos outros autores, a São Tomé (Todorov, 1992: 253-5). A obnu-
bilação da Verdade revelada resultará depois, mais uma vez, ousadamente ressalta-
r 193 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

da, entre os séculos XIX e XX, pela "escola histórico-cultural", particularmente pelo
Urmonotheismus de Padre Schmidt, que relevava o fato de que, quanto mais
primitiva era uma civilização, tanto mais relevante a figura de um "Ser Supremo",
indicação esta da existência de uma verdadeira e própria religião monoteísta na fa-
se mais antiga da história humana.
Da mesma forma, continuando o confronto com Vico, ''truoverassi che le
razze, prima di Cam, poi di Giafet e finalmente di Sem, elleno, senza Ia religione dei
loropadre Noè, ch*avevano rinniegata (...) essendosi sperdute, con un errore o sia
divagament o ferino y dentro Ia gran selva di questa terra, (...) destate da un terribile
spavento d*una da essi stessi finta e creduta divinitá dei Cielo e di Giove (...) si
ritrovarono aver ivifondati e divisi iprimi domini delia terra, i cui signori nefuron
detti 'giganti'''^^.
A "descoberta" da América manifesta-se primeiramente como a aproximação
a uma realidade, a uma dimensão da cultura humana que, se por alguns aspectos é
anterior à Verdade revelada, por outro lado, se configura em oposição, mas também
como fundamento, à cultura humana no sentido ocidental. No momento da difícil
passagem iniciática, devendo interpretar fatos próprios de outras culturas, de outra
forma incompreensíveis, o Ocidente opera uma decifração que se torna útil so-
bretudo para decifrar a si mesmo na sua nova condição histórica. É assim que se,
desde o passado, o Terceiro Mundo "tinha estimulado numerosos e multiformes
interesses pelos mais diversos níveis de cultura no Ocidente (...), a barreira tradici-
onal do Humanismo ocidental, fechado também nas expressões mais liberais ao
reconhecimento de um papel ativo às sociedades diferentes, começa a quebrar-se"
(Lanternari, 1974: 41).
A América torna-se a concretização dos mitos de um Paraíso Terrestre, que é
tal enquanto antecede a concepção do bem e do mal (revelação), mas isto verifica-se
só naquilo que diz respeito aos loci amoeni. Os emblemas vegetais e a fauna voltam
a desenhar no imaginário europeu um fragmento do Éden perdido, o sonho de es-
paços incorruptos, enquanto a atmosfera espiritual da Contra-Reforma, nos pri-
meiros decênios do século XVII, elaborava uma prolongada reflexão acerca da
interpretação religiosa do novo exotismo botânico e da mensagem hermética
outorgada à nova flora. "Fé e botânica contraíram mais íntimos vínculos enlaçando
uma cerrada rede de símbolos onde os enigmas e os arcanos vegetais tornaram-se
motivo de reflexão e de reformulação dos destinos e das vicissitudes humanas"
(Camporesi, 1991: 41).
Em comparação com essa "edenização" do novo espaço geográfico, resulta
ainda mais evidente o contraste com o aspecto "infernal" que caracteriza, pelo
194 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

contrário, o mundo dos homens, de uma forma até então desconhecida a toda a
teratologia européia. Afinal, foi o mesmo Colombo, como já ressaltamos, a inaugurar
a "edenização" da natureza e a "desqualificação" dos homens do Novo Mundo.
Se o Novo Mundo representava o Inferno, sobretudo pela sua humanidade
diferente, animalesca e demoníaca, por outro lado representava o Purgatório (dan-
tesco) pela sua condição colonial. Constituía-se assim em oposição estrutural à
Europa "civil", lugar da cultura verdadeiramente humana. Se à Europa metropo-
litana cabia resgatar os "americanos" da perdição e do pecado nos quais viviam,
corrigindo-os, a imagem do Purgatório vem, paralelamente, representar o ponto de
convergência pela sua função de resgate da dimensão barbárica interna à própria
Europa "civil".
Nesse quadro a hierarquia dos espaços cósmicos põe-se em relação com os
relatos de viagem, que denominamos "rito de passagem" interno à cultura européia.
Se, no fim do século XV, as formulações das imagens do Purgatório entravam em
relação com a função purificadora conferida à travessia marítima, os primeiros
navegantes parecem caracterizar-se quase como "operadores sagrados", se não dire-
tamente como "heróis culturais", que "criam" a nova realidade. É neste ato cultural-
mente criativo que podemos encontrar o significado mais profundo da literatura de
viagem.
Temos visto de fato que os diários de Colombo pretendiam elaborar contos
inauditos que teriam tido a função de percorrer de novo a empresa fundadora de
Odisseu. Neste propósito, torna-se iluminante a sua febril necessidade de rebatizar
os lugares da descoberta: quer nomeá-los, operando assim uma criação, além de uma
tomada de posse. É nesta função que as cerimônias de nomeação, em presença do
notário régio munido de tinteiro, assumem a importância e a característica de um
verdadeiro e próprio ritual de fundação ocidental: uma atribuição do nome, opera-
da por meio da escritura. E se o amplo ato de nomeação revela a função fundante da
ação de Colombo, por outro lado os nomes mesmos revelam, em realidade, um ato
de re-fundação através de uma tensão própria e de interpretação "finalística", apon-
tando sobretudo o texto bíblico. Não se trata portanto, para o navegador genovês,
propriamente de uma descoberta, mas de uma re-descoberta da verdade bíblica já
conhecida com antecedência (Todorov, 1992: 17-40).
Nas pequenas embarcações que penetravam os novos espaços atlânticos, o
"escrivão" de bordo era uma figura sempre presente; evidentemente ele tinha uma
função prevista pela sociedade à qual pertencia e, então, necessária à mesma cultu-
ra européia. Não por acaso a escrita constitui, nessa época, um saber dominado por
um número ainda muito reduzido de pessoas, e o "escrivão" desses séculos possui
195 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

propriamente um onomastikon mais que um lexibon^"^. Dentro destes limites e di-


ficuldades, a sociedade européia exige as relações de viagens quase como um "rito
de margem", como meio de purificação e de regresso do navegante ao seu seio: o ato
de contar a viagem vem se configurando como um modo de socializar o saber escri-
to, e interpretado individualmente, mas vivenciado por várias pessoas que vão, pela
história oral, relatar o fantástico reificando o universo simbólico.
Os relatos de viagem constituem-se como um "rito" dotado de uma duplici-
dade própria: a viagem em si mesma e a sua transcrição, a sua narração. Mas esta
duplicidade é tal só para um observador externo. Assim como para os ritos de
nascimento, de iniciação etc., para a consciência de quem o celebra, mesmo o "rito
de narração da viagem" se configura como destinado a realizar a mudança de
condição: sem ele as mudanças não podem ser consideradas como realmente
ocorridas. "O rito de passagem não é, portanto, uma réplica inútil da passagem
natural, mas é o procedimento apto a subtrair os fenômenos de importância existen-
cial do domínio da natureza e da contingência, e a transformá-los em fenômenos
humanos (culturais), para inseri-los na existência ordenada do grupo humano"
(Brelich, 1966: 35-6).
Se a viagem em si mesma é dominada pela contingência (pela natureza), é
sobretudo à sua transcrição e narração que cabe a responsabilidade de transformar o
fato contingente em fenômeno cultural e determinar as finalidades que assumem a
ordem e o controle culturalmente estabelecidos. Tratar-se-ia então de selecionar e
organizar a produção e a distribuição do discurso com a função de dominar a
materialidade do evento aleatório (natural) (Foucault, 1970). Entre a "aleatorieda-
de" da história e a tradição cultural ("seleção da memória"), a "criação da realidade"
(em função da cultura européia) torna-se controlada, selecionada e organizada (is-
to é, administrada) através do "instrumento literário".
Se no século XIII a escritura, com o significado de "razão gráfica" que Jack
Goody lhe atribui (Goody, 1977), se põe como instrumento potente de reorgani-
zação da cultura e da sociedade ocidental, a teologia, apesar do seu grande esforço,
não conseguirá impor a sua "lógica da não contradição".
A tradição oral e a cultura popular, através das formas expressivas das fabu-
laCy as sedutoras produções dos mirabilia ou aquelas escrupulosas das supersti-
tiones, continuarão a denegar a nítida separação entre homens, animais e démones.
É esta tradição cultural, que condiciona ainda os relatos de viagem, dos séculos XV
e XVI, com a ambivalência daquela condição metade humana e metade demonía-
ca, que constituirá o ponto de partida daquele "rito de passagem" que irá conduzir
à fundação da nova, não contraditória, singularidade do destino humano. Por outro
196 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

lado, se a peculiaridade do ritual iniciático consiste na aprendizagem mnemônica


de gestos, ações, contos, esta realidade não contraditória do destino do homem é o
resultado de uma reflexão sobre a narração, que só pode constituir-se no momento
da própria transferência na página escrita. O relato transforma-se portanto numa
tomada de consciência crítica do processo de integração. O homem se constitui
assim de forma unívoca como "a criatura privilegiada por Deus; só ele recebe a gra-
ça divina (em contraposição aos animais) e pode efetuar, de forma livre, a própria
escolha entre Bem e Mal (coisa que um demônio não pode fazer) para aproximar-
se da salvação" (Schmitt, 1988: 46).
Aquele "rito" se constituirá tanto mais numa "iniciação" em direção da "res-
ponsabilidade" que caracterizará a cultura ocidental, quanto menos "...essa estará
presente nas outras culturas como signo distintivo; e irá faltar totalmente no "de-
culturado" ou "de-historificado"; isto é, naquele "natural" que a mesma cultura
ocidental finge para si mesma dando-lhe várias formas ocasionais" (Sabbatucci,
1983: 68).
A marginalidade dos navegantes configura-se então como uma aventura de
transição no interior da cultura indígena, onde a queda das hierarquias coloca em
evidência um mundo ao avesso: esta operação configura-se como a peculiaridade,
tanto do ritual iniciático quanto da "responsabilidade" (como identidade), no apren-
dizado mnemônico de gestos, contos e estruturas de ações para criar uma realidade
não contraditória frente à constante presença de uma realidade ameaçadoramente
ambivalente.
Exemplar nessa perspectiva é a descrição feita por Alvar Núnez Cabeza de
Vaca da sua desventurada expedição na Flórida, iniciada no ano 1527 (Cabeza de Va-
ca, 1989). No naufrágio, os homens da frota aparecem como a própria imagem da
morte, inconsciente emblematização da "passagem", da "transição". E é a nudez dos
náufragos, à qual Cabeza de Vaca volta amiúde, que os torna como recém-nascidos
na nova realidade: através do sofrimento e da morte, a nudez torna-se o signo
distintivo de uma nova vida.
É interessante depois observar como os índios também interpretaram a vicis-
situde desses homens. Viram ser trazidos pelo mar seres diferentes e tomados pela
doença e, colocando estes fatos dentro de um acontecimento "iniciático" de sofri-
mento, morte e ressurreição, permitiram a eles o acesso, na cultura indígena, à
condição de xamãs.
Mas a metafórica vicissitude iniciática de Cabeza de Vaca se repropõe, e fala,
através da reaproximação à cultura européia. É aqui que, em oposição à nudez que
o tinha caracterizado durante sete anos, a Roupa torna-se o signo distintivo da pró-
197 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

pria cultura; assim: "Chegados a Compostela, o governador nos reservou um


caloroso acolhimento e nos ofereceu quanto possuía para nos vestir. Mas eu, por
muitos dias, não pude vestir aqueles vestidos, nem dormir a não ser no chão" (Ca-
beza de Vaca, 1989: 122).
Uma vez tendo perdido, junto com a Roupa, a própria identidade cultural
ocidental, Cabeza de Vaca tinha sido iniciado em uma nova cultura, modelo opo-
sitivo àquele do Ocidente. Esta segregação, dirigida por um contexto diferente
daquele "normal", restituiu-o à própria realidade de pertinência através de outro
importante signo, distintivo da sua cultura ocidental: a escrita. Esta técnica, porém,
modificava radicalmente o poder e os limites espaço-temporais próprios do ritual
iniciático. O respeito aos tabus é quebrado e a incursão no novo espaço geográfico
não nos oferece mais um espaço revelado, mas profanado. Desta forma, "perdida
cada relação direta ou indireta com o rito, o conto se faz ele mesmo rito no momen-
to em que permuta o descobrimento dos sacra e do segredo com o desmascaramento
das lógicas coercitivas e impessoais que dominam a vida social e subtraem a iden-
tidade ao homem; ou torna-se narração consolatória, que porém não funda de jeito
nenhum a realidade..." (Scarpi, 1992: 183). Nesta nova dimensão cultural, só a
técnica da escrita parece de qualquer forma poder garantir um reconhecimento dos
produtos culturais daqueles povos que, encaminhados na direção de uma violenta
crise de desintegração, serão destinados a tornar-se um objeto de consumo ociden-
tal e, só como tais, reconhecidos (Lanternari, 1974: 27-55). O serviço de Cabeza
de Vaca à cultura ocidental torna-se assim maior do que ele mesmo pensara ao diri-
gir a Carlos V a súplica de acolher a narração "... como meu serviço, porque é
o único bem que pôde trazer consigo um homem escapado nu a uma triste sorte"
(Cabeza de Vaca, 1989: 4).

Abstract: This article tries to analyse a specific relation between Travei Narratives and
the construction ofthe New World reality. By XV and XVI centuries, travellers entered
a conceptual universe that suggests an ''iniciatic metaphor" to its analysis, or to
explicit common and dijferent characteristics among Travei Narratives and iniciation
rites by means of privileged rites control instruments, knowledge and representations.
By this way, travei narrative configure a moment of reintegration in the cultural space
ofthe traveller and, in another, as a reinterpretations of his culture.
Key-words: memory - history - imaginary ~ representation - alterity - travei narratives
~ passage rites
198 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.
f
Notas

1. Entende-se aqui o maravilhoso no sentido ressaltado por Guillermo Giucci. Nesta


caracterização, "o maravilhoso se movimenta, fluidamente, entre a realidade e o mito,
apropriando-se de ambos. Mais que se alinhar com uma ou com o outro, funde ambas
as categorias: é uma forma de narrar e de absorver imagens" (Giucci, 1992: 14).
2. Com o termo "ritos de passagem" costuma-se designar aqueles ritos que são
celebrados em conexão com importantes mudanças na condição de uma pessoa ou de
um grupo. Van Gennep ressaltou como cada rito de passagem se articula em três fases
principais: a "saída" ou a "separação" da condição precedente, a conexão com a
"margem", na qual é relegado o sujeito do rito uma vez separado da sua preceden-
te condição, e enfim os ritos de "agregação" do sujeito à sua nova condição (Gennep,
1909).
3. Honorii Augustodunensis, De Imagine Mundi 1.9. Patrologia Latina 172, cl.l23.
4. Interessada mais em uma topografia do imaginário que numa topografia concreta.
5. Tradução: "Em parte nos pecados, em parte na santidade". Rabani Mauri, De
Universo 9 Prologus. Patrologia Latina 111, cl. 259.
6. A Carta de Pero Vaz de Caminha: o Descobrimento do Brasil, ed. por Sílvio Cas-
tro, Porto Alegre, 1987, p. 45: "Nenhum deles era circunciso, mas, ao contrário,
todos eram assim como nós".
7. Id., ibid., p. 57: "... segundo o que a my e todos pareceo, esta jemte nõ lhes falece
outra cousa pera seer toda cristãa ca entenderenos. Porque asy tomavam aquilo que
nos viam fazer coma nos meesmos".
8. M , ibid., p. 55: "Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a
sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença
alguma, segundo as aparências. E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa
tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual pra-
za a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela sim-
plicidade (...). E portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar à santa fé
católica, deve cuidar da salvação deles. E aprazerá a Deus que com pouco trabalho
seja assim!"
199 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

9. Id., ibíd., p. 58: "Porém, o melhor fruto que dela (carta) se pode tirar me parece
que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela
deve lançar. E que não houvesse mais que ter aqui Vossa Alteza esta pousada para
a navegação de Calicute, isso bastava. Mais ainda, disposição para nela cumprir-se
- e fazer - o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber: acrescentamento da nossa Santa
Fé!"
10. "O país é muito temperado, fértil e sumamente deleitoso; e, embora haja muitas
colinas, é contudo irrigado por infinitas nascentes e rios (...). ... é dirigido ao meio-
dia, com o céu de tal maneira temperado que no inverno não têm frio, nem no verão
são molestados pelo calor (...). Aqui o céu e o ar é (são) raras vezes assombrado(s)
pelas nuvens; quase sempre os dias são serenos. Às vezes cai o orvalho mas le-
vemente: quase não existe vapor nenhum e o orvalho não cai mais que por espaço de
três ou quatro horas e a guisa de névoa desaparece" (Vespucci, 1984: 107-9).
1 1 . 0 primeiro encontro dele com o "outro" indígena tinha sido de fato com os
Margaiás, tribo aliada dos portugueses (católicos) e portanto inimiga dos franceses
(neste caso reformadores).
12. Esta semiliberdade "se explicava com a sua nova condição: temporariamente pelo
menos, ele tinha deixado de ser um inimigo para tornar-se um membro da comunidade
da aldeia" (Léry, 1980: 56).
13. "Se descobrirá que as raças, antes de Cam, depois de Jafé e finalmente de Sem,
sem a religião do próprio pai Noé, que eles tinham renegado (...), tendo-se disper-
sado, com um erro ou seja devaneio ferino, dentro da grande selva desta terra, (...)
despertadas por um terrível susto de uma, por eles mesmos simulada e acreditada,
divindade do Céu e de Júpiter (...) encontraram-se ter aí fundados e divididos os pri-
meiros domínios da terra, cujos senhores foram chamados 'gigantes'" (Vico, 1988:
95).
14. Trad. "onomástica" e "léxico" (Febvre, 1974: 335).
200 Agnolin, A., Imaginário - USP, n. 3, p. 181-201, 1996.

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Imaginário - USP, n. 3, p.1 9 8 - 2 3 3 ,1996. 219

Matraga,
seu pai, seu filho
Renato da Silva Queiroz*

Resumo: O artigo analisa um conto de João Guimarães Rosa, "A Hora e a Vez de Au-
gusto Matraga*\ acompanhando a trajetória de seu principal personagem por meio de
um enfoque antropológico, com destaque para os processos conhecidos como ''ritos de
passagem
Palavras-chave: antropologia da literatura - ritos de passagem - liminaridade - ritos
de transição

O conto "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" é o último de Sagarana, livro


de João Guimarães Rosa que integra o rol dos clássicos da literatura brasileira^
Sobre "A Hora e a Vez...", há pelo menos três ensaios produzidos por cientistas
sociais que se viram seduzidos pela riqueza do conto.
Roberto Da Matta, por exemplo, apanhou-o pela ótica do antropólogo, desta-
cando na análise certas dimensões básicas da cultura brasileira que fazem do herói
um "renunciador", ao passo que célebres personagens da literatura universal (e o
confronto estabelecido é com o Conde de Monte Cristo), ao contrário, preferiram
caminhar pelas sendas da vingança. Já em "Matraga: Sua Marca", Walnice Noguei-
ra Galvão persegue os significados dos brasões, das marcas dos predestinados. Por
outro lado, é a salvação, mas aquela que se faz por meio da vontade, da obstinação,
o tema eleito por Maria Sylvia de Carvalho Franco em "A Vontade Santa"^.
Como já são três os ensaios referidos acima, também não resisto e faço minhas
a vez e a hora para escrever mais um destes trabalhos, retomando aqui o tema dos
ritos de passagem, isto é, as cerimônias que costumam nos acompanhar na passa-
gem de uma condição a outra, de um mundo cósmico ou social a outro. Para ser mais

Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.


204 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996.

preciso, "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" relata e ilustra, admiravelmente,


todas as seqüências daqueles processos de transição que, desde Van Gennep, são
conhecidos pelas três etapas em que se desenvolvem - rito de separação, período
de margem, rito de reagregação (Van Gennep, 1969: 13-8).
No conto em apreço, Guimarães Rosa arquiteta uma dupla passagem: a re-
integração do personagem central do conto ao próprio mundo dos vivos e, logo a
seguir, a sua transição para o domínio dos mortos. Como se verá mais adiante, a tra-
jetória de Augusto Matraga é bastante complexa. Dado por morto sem ter de fato
morrido, foi preciso "renascer" para que o rito de separação, que aparta para sem-
pre os falecidos dos seres viventes, pudesse ser convenientemente executado^ As-
sim, o que conta nessas passagens não é propriamente o corpo, mas a identidade da
pessoa, esta sim a verdadeira matéria de que se compõe o jogo das interações sociais.
Não é certo que, abrindo a narrativa, Guimarães Rosa fez de Nhô Augusto
Esteves um homem abastado, dono de terras e senhor de jagunços? Não estava
ele também formalmente casado^, muito embora não fosse indiferente às prostitutas
do "Beco do Sem-Ceroula"? E seu poder de homem inserido por cima na estrutu-
ra de sua comunidade não se manifesta até mesmo no impulsivo ato da compra de
uma "mulher à-toa", arrematada ''num leilão de atrás de igreja''!
Caberia aqui observar que tal transgressão não se restringe ao comportamen-
to de Nhô Augusto, já que foram alguns outros homens presentes no sagrado leilão
que colocaram a mulher à venda. Salta também aos olhos o apelido dado à mulher
- "Sariema", nome de animal, de ave, traduzindo a reificação do gênero feminino,
a mulher-prenda^ E a transgressão cometida já prenuncia a tragédia, prefigurando
o destino...
Chega a desgraça: a perda das terras, a fuga de Dionóra - a esposa, que carre-
ga consigo a filha - , a traição dos jagunços, enfim, a miséria. Aproxima-se o
momento dramático do primeiro rito de separação: sozinho, mas ainda senhor da
intemp-rança, Nhô Augusto dirige-se a cavalo, como convém, aliás, àqueles de
elevada posição, ''tesopara trás, rei na sela", aos domínios do Major Consilva, seu
principal desafeto. Pancadas e ofensas o aguardam em terras do novo senhor dos seus
jagunços. E é assim mesmo que se desenrola o rito. Ferido e depois marcado como
se ferra um animal, Nhô Augusto, levado para ser morto no rancho do Barranco,
pula para um abismo. Já perdera as posses, a família, os bate-paus e o próprio nome
- " Nao tem mais nenhum Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas, minha gente?!,,.
indagou o Major Consilva. E os cacundeiros, em coro: 'Não tem não! Tem mais
não!,,, \ " Morto estava para o mundo em que desfrutara de identidade e posição
social bem definidas.
r
Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p. 203-208, 1996. 205

Neste contexto, o abismo sugere a morte, mas também o útero. A topografia,


metáfora da estrutura social, era uma ''boca de brejo'\ e foi lá, recolhido e ampara-
do por um mísero casal de pretos que residia num casebre "ma/ erguido e mal
avistado, no meio das árvores, como um ninho de maranhões'', que Nhô Augusto
principiou sua vida de Matraga. A propósito, são notáveis as imagens empregadas
por Guimarães Rosa: preto e morador de fundo-do-barranco, o casal sinaliza as in-
serções mais subalternas, o impreciso contorno das fímbrias do sistema social.
Imerso em profunda e prolongada liminaridade, dado como morto. Augusto
Esteves troca de nome, muda o comportamento, subordina-se ao casal de pretos,
humilha-se e se retempera por meio de trabalho árduo e extenuante. Já não bebe
mais, não fuma, não se importa mais com a posse de bens e riquezas.
O Major Consilva declarara aberto o rito de separação - '''Tempo do bem-
bom se acabou, cachorro de Esteves!...'" mas é o padre quem o completa.
Chamado pelo casal de pretos para ouvir a confissão de Nhô Augusto, o sacerdote
acaba por conduzi-lo não ao "outro mundo", mas ao limbo, universo da liminari-
dade, em que não se está verdadeiramente vivo nem morto. Nas palavras de Gui-
marães Rosa, "(...) era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mun-
do distante".
Esse período de "margem" é vivido, portanto, longe do lugar de origem. Co-
mo se viu, as inversões aqui são múltiplas, e todas elas bem típicas daqueles
momentos mais ou menos prolongados em que o transitante, tendo deixado a posi-
ção anteriormente ocupada na estrutura de seu grupo, não foi ainda reintegrado, não
lhe sendo permitido, pois, assumir novo status na mesma estrutura.
Prolongado período de margem o de Matraga: seis ou seis anos e meio^, enfia-
do num "sitiozinho perdido no sertão mais longínquo", para onde se dirigiu, com
o casal de "pretos tutelares", viajando sempre à noite, dormindo durante o dia. "E
assim se deu que, lá no povoado do Tombador, (...) apareceu, um dia, um homem
esquisito, que ninguém não podia entender. Mas todos gostaram logo dele, porque
era meio doido e meio santo; e compreender deixaram para depois. "
Esse tempo de penitência é marcado sobretudo pelo trabalho, desprendimen-
to, abstinência sexual, rezas, generosidade, cordialidade, enfim, por tudo aquilo que
caracteriza uma absoluta inversão com respeito à vida de Nhô Augusto^. "O casal de
pretos, que morava junto com ele, era quem mandava e desmandava na casa, não
trabalhando um nada e vivendo no estadão."
O encontro com o bando do famigerado "seu" Joãozinho Bem-Bem - "o
arranca-toco, o treme-treme, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-
prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa" - concede a Matraga a
204 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p.2 0 1 - 2 0 8 ,1996.

oportunidade da vingança, o retorno ao mundo de origem. Mas, se assim fosse, a


passagem não se completaria, pois a reintegração o situaria em idêntica posição, no
mesmo status de onde fora apartado por força do rito de separação. É preciso pas-
sar para permanecer: um transitante que retorna à condição de origem não cumpre
a passagem, correndo o risco, portanto, de se ver eternamente mergulhado no limbo
da marginalização. Como se disso tivesse plena consciência, é o próprio Matraga
quem considera: "'Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande,
ninguém não me faz virar e nem andar de fasto!'",
E Matraga, determinado que estava a ir para o céu nem que fosse a porrete,
abdicou da sedutora idéia da vingança. Mas nem por isso deixou de desfrutar do
convívio efêmero, porém gratificante, de "seu" Joãozinho Bem-Bem. O chefe do
bando identificou em Matraga as marcas da vida antiga." * Ferrugem em bom ferro!'"
- sentenciou, admirando as habilidades do nosso herói no manejo da arma de fogo.
Eram, a rigor, dois iguais - Nossos anjos da guarda combinaram'\ disse o líder do
bando transitantes, errantes, perdidos nas trilhas do sertão. Sempre ciganeando,
"seu" Joãozinho Bem-Bem não se lembrava sequer do seu lugar de nascimento:
'''Isso sim, que sou,,, Sou da beira do rio,,. Sei lá de onde é que sou?''\
Um belo dia Matraga achou por bem partir. Tal decisão lhe ocorre ao final da
estação das chuvas - e a imagem de purificação assim criada é claríssima - , posto
que já "estava madurinho de não ficar mais'\ Solitário, vagou pelos caminhos do
sertão e chegou, finalmente, ao local concebido por Guimarães Rosa para servir de
cenário ao rito de reagregação. O nome do lugar: arraial do Rala-Coco. O reencon-
tro com "seu" Joãozinho Bem-Bem, a agitação do lugarejo, a execução iminente de
um dos filhos de um velho (e a anunciada violação das suas filhas) a título de vin-
gança pela morte de um jagunço do famigerado bando. O velho implora que o ma-
tem, mas que deixem em paz o restante da família. A recusa do chefe dos jagunços:
" 'É a regra,,. Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que
não vinga gente sua, morta de traição?,,, É a regra'", Matraga se compadece e
defende o velho. Por fim, a luta.
Feridos mortalmente Matraga e "seu" Joãzinho Bem-Bem. Este último mor-
re primeiro, e Matraga revela-se aos presentes ("'Perguntem quem é aí que algum
dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas!'entre os
quais, por sinal, estava um "meio parente" - para bem marcar a restauração dos
vínculos passados, reclamando assim o reconhecimento da antiga identidade. Mas
Matraga não é mais simplesmente Matraga, e também não é mais Nhô Augusto: é
homem novo, é Augusto Matraga, aquele que retorna ao mundo de onde havia sido
apartado^, exibindo, contudo, novas feições, revelando insuspeitado caráter.
204 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p.2 0 2 - 2 0 8 ,1996.

A luta é o apropriado rito que, a um só tempo, reagrega e separa. Tem lugar


*'bem no centro do arraial, numa casa de fazendeiro''. E a passagem, portanto, é
dupla: a da fase de margem para a nova identidade, para o novo status na estrutu-
ra social dos seres viventes (num breve e derradeiro convívio com estes últimos)
e, dessa nova condição, para o mundo dos mortos. Mas não um morto como outro
qualquer. Um santo: " T r a z meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os
pés dele!,., Não deixem este santo morrer assim,,,'falou o velho.
gostosura de fim-de-mundo!,,, \ "

Abstract: The article analyses a short story by João Guimarães Rosa, Hora e a Vez
de Augusto Matraga approaching his main character's course oflife from an anthro-
pological viewpoint, with special emphasis on processes known as "rites de passage "
Key-words: "rites de passage ''-Augusto Matraga - Guimarães Rosa - antropological
approach - liminarity

Notas

1. o exemplar de Sagarana utilizado é edição do Círculo do Livro, São Paulo, s./d.


O conto se estende da página 279 à 319.
2. Cf. Da Matta, "Augusto Matraga e a Hora da Verdade". In: Carnavais, Malandros
e Heróis. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979; Walnice Nogueira Galvão, "Matraga:
Sua Marca". In: Mitológica Rosiana. São Paulo, Editora Ática, 1978; Maria Sylvia de
Carvalho Franco, "A Vontade Santa". In: Trans/form/ação: Revista da FFCL de Assis,
1977, tí' 2.
204 Queiroz, R., Imaginário - USP, n. 3, p.2 0 3 - 2 0 8 ,1996.

3. Para Van Gennep, os ritos de passagem acompanham as mudanças de lugar, de po-


sição social, de estado, de idade.
4. Dionóra, a esposa, cujo nome, contrastando com o caráter de Nhô Augusto, apro-
xima-se muito de honoris.
5. Até mesmo a própria esposa tem para Nhô Augusto a dimensão de mero objeto:
"Dela, Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só".
6. Intervalo de tempo, por sinal, que se aproxima dos sete anos bíblicos.
7. "O que existe de interessante com relação aos fenômenos liminares (...) é que eles
oferecem uma mistura de submissão e santidade, de homogeneidade e camarada-
gem. (...) A liminaridade implica que o alto não poderia ser alto sem que o baixo
existisse, e quem está no alto deve experimentar o que significa estar embaixo" (cf.
Turner, 1974: 118-9).
8. Segundo Mary Douglas, a santidade é a condição daqueles que são "postos à par-
te" (cf. Douglas, 1976).

Referências Bibliográficas

CARVALHO FRANCO, M. S. "A Vontade Santa". In: Trans/form/ação: revista


da FFCL de Assis. Assis, n^ 2, 1977.
DA MATTA, R. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979.
DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
GUIMARÃES ROSA, J. Sagarana. São Paulo: Círculo do Livro, s./d.
NOGUEIRA GALVÃO, W. Mitológica Rosiana. São Paulo: Editora Ática, 1978.
TURNER, V. O Processo Ritual. Petrópolis: Editora Vozes, 1974.
VAN GENNEP, A. Les Rites de Passage. Paris: Mouton and Maison des Sciences
de L'Homme, 1969.
Imaginário - USP, n. 3, p. 204-233, 1996. 219

Meditações sobre
a desordem
Goffredo Telles Jr.*

Resumo: A ordem total do Cosmos. Um equívoco. A desordem é sempre ordem: a


desordem no comportamento humano. O pecado. A ausência de uma certa ordem é
presença de outra ordem. Tudo está sempre em ordem. A ordem na convicção dos
governantes. A desordem: flatus voeis.
Palavras-chave: ordem ~ desordem - natureza - comportamento humano - pecado -
ordem dos governantes

Um dia, o Presidente do Tribunal de São Paulo solicitou-me duas palestras de


''preparação para a Páscoa da família forense'\ a serem proferidas em sessão pú-
blica, no Palácio da Justiça, na Sala do Conselho Superior da Magistratura.
Inspirando-me na ebulição política então reinante, sugeri que meus pronun-
ciamentos, nas vésperas da Páscoa, fossem a expressão oral de uma meditação so-
bre "A Ordem e a Desordem".
E, de fato, nos dias marcados, dissertei sobre o tema proposto.
Lembro-me de que o primeiro pronunciamento foi dedicado ao conceito da
ordem, nos mesmos termos com que tal noção se acha consagrada na Filosofia clás-
sica. Recordo, porém, que o segundo, dedicado ao conceito da desordem, exigiu de
mim uma abordagem nova, na linha do pensamento bergsoniano. A matéria, a meu
ver, merecia meditação séria, por parte de todos quantos quisessem tratar, com pro-
fundidade, dos problemas da vida, inclusive da vida política de nosso País.

* Professor Emérito da USP, Prof. Titular do Departamento de Filosofia do Direito, da Faculdade de


Direito da USP, autor de O Direito Quântico e Ética: Do Mundo da Célula ao Mundo da Cultura, entre
outros livros. Autor da Carta aos Brasileiros.
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 209-215, 1996.

Depois de haver relembrado a definição da ordem ~ "disposição conveniente


dos seres para a consecução de um fim comum" demonstrei que toda existência
dos vivos e dos não-vivos, do vegetal, do animal, do homem, e também das sen-
sações, das imagens, das idéias; enfim, todo ser existente resulta de uma disposi-
ção certa de seres, isto é, de um arranjo conveniente dos elementos de que ele é
constituído.
Logo - disse eu todo ser existente resulta da ordem em que se acham os seres
de que ele se compõe, e estes seres também resultam da ordem em que se acham os
seres de que eles se compõem. E estes, por sua vez ...
O próprio Universo, tido como conjunto de todas as coisas existentes, só pode
ser considerado como um todo ordenado.
A Filosofia ensina - lembrei - que o Universo é a diversidade das coisas
harmonicamente ordenadas, dentro da unidade do todo.
Os gregos chamavam o Universo de ''cosmos'\ palavra que significa ordem;
não o chamavam de caos, palavra que significa ausência de ordem.
Mas observei que, na infinita paisagem do Universo, quaisquer olhos despre-
venidos vão divisar áreas de sombra. Nem tudo, ao que parece, é ordem no mundo.
A desordem também existe. O comportamento desregrado, a prática do mal, a
injustiça, o sofrimento, a dor, todas essas coisas são fatos ocorrentes, e fatos
contrários ao que se considera ordem. Mesmo no Mundo Físico, flagrantes viola-
ções da ordem cósmica parecem acontecer às vezes, como, por exemplo, as que se
manifestam no indeterminismo cinemático dos quanta, verificado na intimidade
profunda da matéria; e as que se revelam na entropia crescente em sistemas isola-
dos, ou seja, na delegação qualitativa da energia, verificada em tais sistemas, con-
trariando o princípio universal da conservação da energia.
Então - disse eu uma inevitável pergunta se coloca diante da inteligência
humana. Se o conjunto de todos os seres está submetido à ordem universal, como
explicar a existência do qnté contrário à ordem, ou seja, SL existência da desordeml
Como explicar, por exemplo, o pecado?
O problema da existência da desordem só pode ser resolvido se for colocado
em seus devidos termos. De fato, ele não passa de um pseudoproblema. É um
problema fundado num equívoco.
A desordem - afirmei - não é o contrário da ordem, como se costuma pensar.
Ela é, isto sim, uma ordem contrária a outra ordem.
Desordem, em verdade, é apenas um nome: é o nome dado à ordem não
desejada, não querida, não procurada. Ou o nome dado à ordem que não deve ser
desejada, nem querida, nem procurada. É o nome da ordem que desagrada, desgos-
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 206-215, 1996.

ta, decepciona, prejudica, infelicita, desola. Às vezes, é o nome da ordem que causa
arrependimento. Mas a desordem é sempre uma ordem, eis o que precisa ficar bem
claro.
A desordem se pode verificar - expliquei - tanto no mundo da natureza física,
como no mundo do comportamento humano.
No mundo da natureza, a desordem dos elementos é sempre uma ordem
produzida por forças físicas ou químicas, ou físico-químicas, mas ordem que
contraria interesses humanos, não sendo, portanto, a ordem desejada pelo homem.
Por exemplo, as desordens orgânicas, as doenças de todas as espécies, são
ordens - ordens rigorosas de fenômenos, encadeamento de causas e efeitos, dispo-
sições impostas às coisas para os desígnios da natureza. Embora sejam ordens,
recebem o nome de desordens, porque não são ordens convenientes para fins hu-
manos: produzem sofrimento e tristeza.
A visão das ruínas deixadas por um incêndio ou por um furacão faz surgir, no
espectador humano, sentimentos de angústia, de aflição, de temor ou, ao menos,
sensações de tristeza ou de mal-estar. Ali está, de certo, na desolação dos escombros,
no caos dos destroços, na confusão das coisas destruídas, uma imagem flagrante da
desordem.
Sucede, porém - disse eu - , que, se o espectador se detiver na meditação sobre
qualquer dessas catástrofes, uma evolução espontânea de seu espírito irá transfor-
mando impressões, e acabará por fazer pensar que tudo, afinal, naquela cena de
tragédia, pode ser explicado pelos fatos que ali aconteceram. O espetáculo aberto
diante de seus olhos, responsável pela referida imagem da desordem é composto de
elementos que são os efeitos certos de causas certas. Estas causas é que espalharam
as coisas por toda parte, e as puseram nos lugares em que se encontram. Tendo havido
tais causas, os efeitos só poderiam mesmo ser aqueles. Cada coisa, portanto, na
localidade flagelada, estará ocupando, após o sinistro, seu lugar próprio, ou seja, o
lugar que ela não poderia deixar de ocupar, em virtude do que ali aconteceu. Cada
coisa estará em seu preciso lugar em razão dos antecedentes. As coisas foram
transportadas por forças naturais e inelutáveis, conduzidas para as situações em que
se acham. Elas foram dispostas pelas energias que movem a matéria para fins que
necessariamente existem, mas que escapam ao entendimento humano. Em razão
desses fins, todas aquelas coisas estão dispostas convenientemente. Estão, pois, em
ordem.
Por que, então - perguntei - , o homem confere a essa ordem o nome á^desordeml
A resposta é simples. A essa ordem, o homem confere o nome de desordem
porque ela não é a ordem que o homem deseja, a ordem que o satisfaz. Ela não
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 207-215, 1996.

constitui a ordem que lhe éconveniente. Pelo contrário: ela é a ordem que o desgosta
e infelicita.
Exprimindo inconformismo, o homem chama de desordem a ordem que ele
encontra, no lugar da ordem que ele quer. Mas o nome que ele confere à disposição
das coisas não altera, evidentemente, a realidade objetiva. O que ele chama de
desordem continua sendo uma ordem.
Em suma, a desordem é a ordem que não nos convém. É a ordem que não
queremos (ou que não deveríamos querer).
Não havendo o referido inconformismo - não havendo desgosto, contrarieda-
de, prejuízo para o homem - , nenhum fenômeno da natureza, nem mesmo um
cataclismo, receberá o nome de desordem. A explosão de uma estrela, uma super-
nova, é uma colossal catástrofe nas imensidões dos céus. Mas ninguém a chamará
de desordem. Por quê? Porque a destruição de uma estrela e o lançamento de seus
destroços pelo firmamento não afetam interesses humanos. Todos dirão, simples-
mente, que a supernova se situa dentro dos planos da natureza e pertence à ordem
do Universo. E, realmente, estarão certos.
No mundo do comportamento humano - continuei a desordem ou é volun-
tária ou é involuntária.
Pode alguém, voluntariamente, produzir a desordem? Pode, deliberadamen-
te, dispor as coisas de maneira inconveniente para outrem, como seria o caso, por
exemplo, de quem baralhasse, por malícia, os livros de uma biblioteca. Essa dis- A
posição é conveniente para a pessoa que a fez, pois alcança o fim ou objetivo al-
mejado. Que fim, que objetivo será este? É o de criar uma disposição inconvenien- I
te para outra pessoa. Para a outra pessoa, a disposição baralhada dos livros é uma
desordem - uma desordem produzida intencionalmente por alguém. Mas tal dis-
posição, chamada desordem, não é ausência de ordem, uma vez que ela é uma or-
dem deliberadamente dada às coisas.
A desordem é voluntária quando a disposição dada às coisas é disposição
conveniente para a consecução dos fins de quem a fez deliberadamente, mas incon-
veniente para a consecução dos fins de outrem. Enquanto disposição conveniente, a
disposição é ordem; enquanto disposição inconveniente, a disposição é desordem.
É evidente - disse eu - que a mesma ordem pode ser ordem e desordem, isto
é, pode ser ordem para alguém e desordem para outrem; pode ser disposição para os
fins de alguém, e disposição inconveniente para os fins de outrem.
No caso especial do pecado, a desordem voluntária é conveniente e inconve-
niente ao mesmo tempo, para a própria pessoa que o pratica - e não há necessidade
de fazer a demonstração de uma tal evidência.

J
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 208-215, 1996.

O certo é que a desordem voluntária nunca exclui a ordem. Pelo contrário, ela
é sempre uma ordem, como se acaba de verificar.
A desordem - continuei a desordem no mundo do comportamento humano,
pode ser involuntária. Ela é involuntária quando a disposição das coisas é dada com
a intenção de ser conveniente e, depois, é julgada inconveniente. Mas, neste caso,
também, a desordem não é ausência de ordem. Ela é uma ordem na intenção que a
inspirou. Ela é, como foi dito, a disposição conveniente segundo o julgamento de
alguém, embora essa disposição possa depois ser tida como inconveniente, segundo
outro julgamento.
Incluem-se entre as desordens involuntárias as desordens resultantes de
desmazelo, imprudência, imperícia. O exame de todos esses casos de desordem leva
sempre à conclusão de que são ordens, como as demais.
Quem joga as coisas descuidadosamente dentro de uma gaveta, com o intuito
de abrir espaço sobre a mesa, faz ordem: não ordem na gaveta, mas ordem sobre a
mesa. Na gaveta, note-se, as coisas atulhadas também estarão em ordem: não, evi-
dentemente, na ordem buscada pelo homem, mas na ordem em que as dispuseram as
forças da natureza, ao serem lançadas por mão desleixada.
Os livros despejados por um caminhão sobre um terreno não são uma biblio-
teca; são um montão de livros. Para quem os quisesse como biblioteca, acham-se tais
livros na mais completa desordem. Mas para quem quis livrar-se deles, talvez
queimá-los numa fogueira, os livros se acham convenientemente amontoados, isto é,
acham-se em ordem. A desordem para a biblioteca é ordem para a fogueira.
Uma observação ainda pode ser feita - disse eu - sobre este último exemplo.
Os livros despejados de qualquer maneira, amontoados em confusão sobre um
terreno, caíram e deslizaram uns sobre os outros, e se imobilizaram, afinal, em seus
respectivos lugares. Submetidos a forças físicas inelutáveis, os livros ficaram dis-
postos numa ordem semelhante à ordem das ruínas deixadas pelo furacão.
Bergson demonstrou que tudo quanto o homem chama de desordem é sempre
ordem. Diz o filósofo que a desordem tida como ausência de ordem é impossível,
por ser intrinsecamente contraditória. Ela há de ser, forçosamente, não a ausência,
mas a presença de uma ordem, embora esta ordem desagrade, prejudique, infelicite.
Na realidade, a ausência de uma certa ordem não é desordem, mas a presen-
ça de outra ordem.
Suprimir uma ordem é fazer outra, como sucede quando a ordem ditada pela
vontade é substituída pela ordem imposta pelo furacão. Logo, a desordem não existe.
A desordem não é a ausência da ordem, mas a ausência de uma certa ordem.
210 Telles Jr., G., Imaginário - USP, n. 3, p. 209-215, 1996.

De real, o que existe é a ordem. Nunca se viu a ausência da ordem, como nunca
se viu o nada. Se, na disposição das coisas, não há uma vontade humana criando a
ordem, é porque há determinismo físico; se não há determinismo físico, é porque há
uma vontade humana. Mas, dentro da realidade, a ordem existe sempre: eis o fato.
A desordem, pois, não pertence à realidade. Não passa de uma pseudo-idéia, de
uma ilusão.
O que a realidade ensina - observei - é que tudo quanto se chama "desordem"
compreende dois elementos, a saber: 1. fora do homem, uma ordem criada pela
vontade humana ou resultante do determinismo físico; 2. dentro do homem, uma
representação ou idéia de ordem - um imaginário da ordem - , diferente da primeira,
mas que é a que interessa ao próprio homem.
A desordem, portanto, é composta de duas ordens: uma, objetiva; outra,
subjetiva.
Eis por que a desordem não pode ser ausência de ordem. Não sendo ausência
de ordem, é presença de ordem. Logo, a desordem é ordem,
O que faz que, a essa ordem, se confira o nome de desordem é o desacordo en-
tre a ordem existente na realidade e a idéia que o homem faz da ordem. É o desacor-
do entre a realidade e o imaginário.
Por outro lado, jamais se dará à ordem o nome de desordem quando a ordem
real coincide com a idéia de ordem. Em cada homem, a realidade será tida como
ordenada na exata medida em que ela corresponde a seu pensamento.
A ordem, pois, para cada ser humano, é um certo acordo entre o sujeito e o
objeto. Neste sentido, ordem é o espírito se encontrando com as coisas.
Mas, neste sentido - como bem salienta Bergson - , as noções convencionais
de ordem e desordem, autolimitando-se, são exclusivamente práticas, a serviço da
linguagem e da ação, são mais nomes do que idéias, O homem dá o nome de
"desordem" à ordem que não lhe convém.
É assim que se diz que uma biblioteca está em desordem quando a ordem dos
livros nas estantes não é a ordem que agrada ou que serve a fins estabelecidos.
É assim, igualmente - afirmei - , que os governantes, em regimes de força,
chamam os adversários da ordem vigente de promotores da desordem, de subver-
sivos ou de demagogos, enquanto estes consideram demagogos, subversivos e
partidários da desordem precisamente aqueles que defendem a ordem vigente.
O nome desordem, cujo uso simplifica a linguagem, não tem, contudo, nenhum
emprego na especulação filosófica, porque não significa nada de verdadeiro, não
representa coisa alguma,/Zaíw^ voeis.
Imaginário - USP, n. 3, p. 211-233, 1996. 219

Resenhas
Título: A Cor dos meus Sonhos:
Entrevistas com Georges Raillard / Joan Miro.
Edição: Tradução de Neide Luzia Rezende. edição.
São Paulo: Estação Liberdade, 1992. 213p.

Resenhado por Maria Luisa Sandoval Schmidt*

A recente exposição de obras, pinturas e esculturas de Joan Miró, realizada no


Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo nos meses de janeiro e fevereiro,
trouxe às prateleiras das livrarias paulistanas várias publicações sobre o pintor. En-
tre elas, está A Cor dos meus Sonhos, contendo entrevistas concedidas por Joan
Miro a Georges Raillard.
Entre os dias 3 e 8 de novembro de 1975, Raillard percorreu o conjunto de
ateliês nos quais Miró trabalhava em Palma de Maiorca - Son Abrines, ateliê de
gravuras, ateliê de litografia, Son Boter - acolhendo e registrando o desejo do artis-
ta de falar e de ampliar sua comunicação com o público. No dia 5 de dezembro, após
o vernissage da exposição antológica das obras de Miró realizada na galeria Maeght
em Barcelona, uma última entrevista foi realizada.
Como adverte Raillard, no prefácio do livro, a série de entrevistas pode
decepcionar o leitor que busca a revelação de segredos biográficos ou que aprecia o
relato de historietas.
No cenário dos ateliês, Miró dispõe-se a revelar "sua obra em andamento" e,
neste rito de apresentação, as palavras procuram fazer ver, mais do que explicar ou
contar. Durante as conversações, Miró lança um apelo à nossa atenção em direção à
vitalidade das matérias e das idéias. Sua fala é modulada pela mesma energia e

* Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.


218 Resenhas

intensidade que caracterizam suas obras, pela mesma força que almeja arrancar da
estagnação e da "preguiça mental" o espírito dos homens. Esquivando-se dos exer-
cícios de teorização e escapando sempre da interpretação simbólica dos elementos
recorrentes de sua obra, Miró nos puxa para a arena de sua atividade criativa: luta
incansável contra o conformismo de toda "concepção senilizada de pintura" e
embate cotidiano com a resistência das matérias. Interessa-lhe fazer e provocar uma
revolução permanente no interior da qual as transformações plásticas implicam,
necessariamente, transformações de idéias.
O ato de poesia - e Miró não estabelece nenhuma diferença entre poesia e
pintura - constitui o centro de irradiação de suas idéias e opiniões. O movimento dos
temas que se encadeiam mimetiza o próprio movimento de criação, configurando
um corpo comunicável desconcertante e perturbador. O corpo das formas de suas
obras que quer tocar, impressionar, chocar o espírito se re-apresenta nas palavras
que quase querem dizer, em síntese: veja, é assim que eu faço!
A atividade criativa constitui-se como aprendizado de liberdade. Miró des-
creve uma espécie de ritual que começa com o seu caminhar pelo ateliê, olhando pa-
ra os materiais (sente-se atraído tanto por um papel especial japonês quanto por um
papel de embrulho), para as telas nas quais simultaneamente trabalha, para as
manchas de tinta no chão ou na mesa. Responde ao chamado das coisas, da matéria.
Prioriza o material em detrimento do instrumento e é da vida do material que rece-
be o estímulo para iniciar seu trabalho: "O papel de pacote já teve uma existência
antes, aproveito essa vida" (p. 155). O começo, análogo ao nascer, é sua razão de
viver e, no ponto de partida, nem reflexão intelectual, nem sentimentos. Sobre a
sua motivação, diz: "Preciso de algo que me provoque uma emoção. É a emoção que
me move. Não é algo do domínio do sentimento: é como se um alfinete me espe-
tasse" (p. 110).
A imagem do alfinete, ser de ínfima proporção, associada ao choque que
desencadeia a criação, nos aproxima do modo singular através do qual Miró
"hierarquiza" o poder estimulador das coisas. Para ele, "um talinho de capim tem
mais importância do que uma grande árvore; uma pedrinha, mais do que uma
montanha: uma libelulazinha, tanto quanto uma águia" (p. 54). Quando passeia, não
olha a paisagem, mas o sol e o céu e em Son Abrines, localizado diante de uma
magnífica paisagem mediterrânea, trabalha no andar inferior, com as janelas fecha-
das para a paisagem - "O que existe quando trabalho é isto aqui: esta manchi-
nha branca no chão" (p. 41). Ao mesmo tempo, os elementos que dão origem às
formas aparentemente simples e parcimoniosas com que Miró constrói sua obra são,
para ele, universos. Isto fica claro quando declara que "um único espinho é o resumo
Imaginário - USP, n. 3, p. 217-233, 1996. 219

de todas as outras plantas" (p. 54) ou quando diz, literalmente, que o que chama de
mulher não é a criatura "mulher", mas um universo.
O surgimento destes universos é fruto de uma aventura que se apoia no tempo
e no acaso: "Quando desço ao ateliê e pinto, não sei para onde vou" (p. 58). Miró
mantém muitas telas em andamento, por acabar, iniciadas em épocas diferentes.
Volta a elas numa sincronicidade com processos de amadurecimento cujos tempos
variam, às vezes quatro ou cinco anos, às vezes quarenta. Paralelamente, deixa-se levar
por acidentes como um escorrimento de tinta ou uma imperfeição numa chapa de cobre.
Não há gratuidade, porém, na invenção destes universos. O sentido do conjunto
de sua obra revela-se como direção, rumo e, por isso, reside adiante, na potência
transfomadora do gesto de criação e seu impacto sobre as pessoas. Este sentido não é
informado por uma noção de representação do mundo, nem pela de exteriorização do
"mundo interno" do artista. Por este motivo, talvez, Miró se mostre tão esquivo à
interpretação de símbolos, reiterando, sempre, que o lado plástico supera o simbóli-
co em sua produção. Trata-se, para ele, de buscar o "choque das formas no espírito".
A tradução interpretativa, bem como toda elaboração intelectual, ficam aquém do
poder que atribui a toda expressão plástica. Em várias passagens das entrevistas ma-
nifesta um desconforto com relação às tentativas de explicação, como quando afirma
que, se pudesse explicar suas telas, isso seria uma coisa intelectual, fria e morta: coisa
de teórico. Ou quando, veementemente, concorda com Raillard sobre uma observa-
ção deste sobre seu modo de encarar a interpretação: "Sim! Não traduzo nada" (p. 147).
Nos temas abordados em conexão com o processo de criação, Miró apresenta
a mesma disposição de combate e resistência a tudo que represente aprisionamento
e cerceamento da expressão: o horror ao franquismo; o ódio ao dogma; a descon-
fiança com relação ao virtuosismo que, acredita, leva à acomodação; as ligações com
o movimento surrealista e com o comunismo; a aversão à publicidade, à comercia-
lização das obras de arte e aos burgueses.
Em um único momento concede a Raillard sua concordância em relação a uma
interpretação de sua obra. Falando sobre dois elementos bastante presentes em suas
pinturas - pássaro e personagem - , atribui ao pássaro o significado de liberdade, pelo
seu movimento ascendente na tela, e à personagem o significado de prisão. Esta
oposição diz muito sobre aquilo que está no centro de sua prática, mas é, talvez, do
embate destes elementos que a obra de Miró retira seu sentido. Ninguém melhor do
que ele mesmo para dar este testemunho: "E minha pintura não é, em absoluto, um
diário secreto. E uma força de combate que se exterioriza" (p. 181).
218
Resenhas
1
Título: Por que Almocei meu Pai
Autor: Roy Lewis
Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Resenhado por Ana Raquel Fernandes*

O aspecto mais interessante de Por que Almocei meu Pai está na comicida-
de com que o autor, o jornalista e sociólogo Roy Lewis, apresenta a evolução do
homem das cavernas.
Para Roy Lewis, Adão e Eva não passam de eufemismos religiosos: nossa
evolução foi mesmo a partir dos símios. Com base nessa idéia Lewis escreveu esse
primeiro romance cult book nos anos 60.
Ernest é o narrador de Por que Almocei meu Pai. Sensato, ele conta as
aventuras de seu pai Edward, considerado o homem-macaco mais importante do
Pleistoceno.
Edward é um tipo peculiar cuja obsessão é transformar os membros de sua hor-
da nos primeiros representantes do Homo Sapiens na Terra. Inquieto, o homem-
macaco progressista acredita que só a evolução permitirá aos homens dominar o
mundo.
Contrariando seus princípios está tio Vanya, um sujeito esquisito que defen-
de a volta dos homens-macacos às árvores.
Assim, Ernest conta como seu pai dominou o fogo, ocasionou um incêndio,
instituiu a exogamia e como sua horda descobriu a dança, a pintura, a comida e no-
vas utilidades para a pedra lascada.
Com uma linguagem bem-humorada e anacrônica, cheia de jargões científicos
e pratos franceses, Lewis reescreve, por intermédio de Ernest, a pré-história do
homem.
Sem deixar de lado o aspecto geográfico e social da coisa, Lewis descreve com
uma riqueza de detalhes deliciosos a África de 2 milhões de anos atrás, transpor-
tando o leitor para um mundo já extinto, mas não menos real que o nosso. No aspec-
to social, especialmente o psicólogo, Ernest é quem dá a deixa. Em seus momentos

i
* Graduanda em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo.
219
Imaginário - USP, n. 3, p. 221-233, 1996.

de introspecção, o narrador aprende a filosofar e a ter idéias sobre dominação e


mesmo simbologias religiosas, que o levam a justificar o próprio crime.
Inusitado, Por que Almocei meu Pai é um livro acessível a leigos que dese-
jam conhecer um pouco sobre o campo de estudo da Antropologia e sobre a nossa
própria história. Para cientistas sociais, pode parecer um pouco superficial no que
se refere a um estudo mais detalhado da pré-história. E o mais interessante do livro
está justamente no seu caráter amplo, quase didático. Lewis consegue, de maneira
simples, objetiva e engraçada, caracterizar aquilo que supostamente nos antecedeu
e originou. O nosso antepassado mais remoto, que tantas indagações e surpresas nos
suscita, apresenta-se, em Por que Almocei meu Pai, como um ser viável e sobretu-
do intrigante.

* * *

Título: Possessões Maravilhosas


Autor: Stephen Greenblatt
Edição: São Paulo: EDUSP, 1996.

Resenhado por Maria de Lourdes Beldi de Alcântara*

Um dos grandes valores deste livro é eleger o maravilhoso como símbo-


lo-chave. Definido como uma certa expressão de emoção do homem com algum
objeto com o qual mantém contato ou se relaciona, "o maravilhamento é um reconhe-
cimento instintivo da diferença, o indício de uma atenção altamente concentrada.
Representa tudo o que não pode ser conhecido, em que mal se pode acreditar"
(Greenblatt, 1996: 48). Neste sentido, o maravilhoso se torna sinônimo de surpresa
diante da constatação da diversidade cultural. O que vai mudar o sentido da emoção

Doutoranda em Sociologia na Universidade de São Paulo.


218
Resenhas

deste ato de maravilhamento e, portanto, a sua ressemantização, é o momento his-


tórico em que o personagem está inserido, juntamente com a intenção de sua tarefa.
O autor vai nos mostrar o caminho que este verbete percorre desde o século
XIV até o XVII, elegendo neste percurso personagens paradigmáticos como Man-
deville, Cristóvão Colombo, John Milton, John Donne, Montaigne. O maravilhoso
será o símbolo-chave que permitirá a análise da circulação mimética.
Analisando os personagens que o autor elege, assinalamos que Mandeville é
paradigmático na medida em que representa um agente que simboliza o maravilho-
so medieval, que se caracteriza como aquele que não quer tomar posse, no sentido
de Colombo, das terras ou dos objetos com os quais se depara em suas viagens, pois
o ato de maravilhamento, tão apontado em sua obra, é uma mistura do maravilhoso
cristão com as leituras de cavalaria que faziam parte do imaginário europeu desta
época.
Esse paladino da despossessão, como diz o autor, parece não querer nada para
si, mas, no entanto, deseja a conquista de Jerusalém para toda a cristandade. O
sinônimo de posse para Mandeville seria o de pôr os pés na terra onde Jesus
caminhou. "Ele viaja a Jerusalém não como um conquistador a reclamar sua heran-
ça, mas como um peregrino dependente da proteção especial do sultão, a quem des-
creve como governante sábio e moderado de um povo obediente, devoto e honesto
pela maior parte" (Greenblatt, 1996: 48).
A peregrinação deste personagem representa a recusa de ocupar, no sentido do
direito romano, andar é perder lugar (cf. Greenblatt, 1996: 61). No entanto, a
possessão, ato desencadeado, ou não, pelo processo de maravilhamento, acontece-
rá em termos simbólicos. A alteridade relatada é resultado da construção do imagi-
nário europeu sobre a diferença, ou o outro.
A narrativa sobre a diversidade cultural que "vê" é construída ou como desvio
das próprias crenças cristãs ou como radicalmente diferente delas. A circulação mi-
mética que representa o outro é construída através das representações européias
cristãs, ou seja, da projeção européia de si mesma, como mostra bem Edward Said,
no seu livro O Orientalismo.
Claro está que os símbolos utilizados representam o momento histórico e o
imaginário da época em que foram descritos. A partir disto, o autor pode analisar to-
da a circulação e as inversões que aconteceram com a narrativa.
O fenômeno de Mandeville, como chama o autor, é o resultado da construção
do imaginário de uma classe emergente, a mercantil. Pois, As Viagens de Sir John
Mandeville teria sido escrita por viajantes. Mas a narrativa construída leva o leitor a
pensar na verdadeira existência de Mandeville, pelo forte traço de veracidade rea-
219
Imaginário - USP, n. 3, p. 223-233, 1996.

lizado pelas marcas de intensificação pessoal dos fatos relatados. O uso freqüente da
primeira pessoa do singular dá a impressão de o autor ter testemunhado os fatos por
ele relatado.
Neste sentido, Mandeville, por intermédio da narrativa do outro, dá a entender
que não quer possuir terras, ou qualquer riqueza material, mas sim, domesticar
através do maravilhoso bíblico\ juntamente com o maravilhoso narrado pelos ro-
mances de cavalaria - que marca uma visão mais laica da sociedade - , as diversas
formas de representação cultural, demonstrando que todos poderiam converter-se
ao cristianismo. O ato da possibilidade de conversão é claramente um ato de posse
imaginária^.
No segundo exemplo de posse do maravilhoso, o autor elege Colombo como
paradigmático. Mas por quê?
A novidade de Colombo está em haver rompido a fronteira oceânica e com is-
so todas as agruras da distância. Como Colombo narrou esse mundo tão distante e
portanto tão longe de qualquer outro que havia sido relatado?
Narrou o maravilhoso natural, ou seja, descreveu um lugar tão exuberante,
com paisagens e climas tão diferentes de qualquer descrição até então relatada, que
a narrativa não precisava utilizar-se das metáforas ou ironias, figuras de linguagem
que caracterizavam as narrativas de outros viajantes.
Colombo é o agente da colonização e da posse de terras estrangeiras, e um dos
atos que caracteriza a posse reside no processo de renomeação das ilhas descober-
tas. Assim como o processo de criação do mundo por Deus está intimamente ligado
ao ato de nomeação, Colombo como sinal de posse silenciará qualquer voz indígena.
O autor nos aponta que "em face do desconhecido os europeus usam estrutu-
ras intelectuais e organizacionais convencionais, moldadas durante séculos de
contatos indiretos com outras culturas, essas estruturas impediam em grande parte
uma percepção clara da radical alteridade das terras e dos povos americanos". A
representação construída sobre o índio era o resultado da mentalidade européia da
época das colonizações. Colombo estava possuído pela leitura dos relatos de via-
jantes que ultrapassaram as fronteiras européias, desde Marco Polo até Mandeville.
No entanto, o que o diferencia é a empreitada que realiza, ou seja, vai conquistar
terras, vai dominar e, para tal ato, como indica Greenblatt, utiliza-se dos símbolos de
dominação de sua própria cultura, ritualizados pelo ato de posse daqueles a quem
representava, a Coroa espanhola.
As práticas discursivas juntamente com os rituais europeus legitimaram a
posse dos colonizadores. A ausência de contestação por parte dos nativos tinha um
218
Resenhas
!
sentido de concessão para Colombo - tal fato seria importante para estabelecer uma
reivindicação legal da coroa espanhola sobre as terras recém-descobertas^
A necessidade de conquistar, ou seja, de tomar posse, incluía também o do-
mínio dos habitantes. Para tal tarefa, Colombo necessariamente teria que se comuni-
car. Num primeiro momento, a circulação mimética se resumia em atos mímicos e
permuta de objetos. O autor afirma que "praticamente inexistia reciprocidade no in-
tercâmbio de representações entre os europeus e os povos do Novo Mundo, nenhu-
ma igualdade do dar e receber" (Todorov, 1991: 160).
Não existe reciprocidade porque a priori não há igualdade entre os universos

li
simbólicos, logo, a reciprocidade, nos termos de Mauss, só acontece quando ocorre
um compartilhamento de representações. O sistema de prestações totais, definido
por Mauss, o potlach, que simboliza a circulação de riquezas, tanto matérias quan-
to simbólicas, necessariamente é feito dentro de um mesmo universo de representa-
ção para que haja a reciprocidade, ou seja, para que não ocorra insatisfação de ne-
nhuma das partes, o que pode provocar uma guerra.
A circulação mimética neste primeiro momento chega a ser quase nula. O
discurso colonizador e suas práticas de colonização foram construídos com a total
ausência do nativo, o qual, desqualificado para ser construído e representado como
objeto de investigação, nunca chegou a tomar posse do discurso através do prono-
me eu. Pois, segundo a antropologia, a diferença lida através do enfoque da desi-
gualdade gera a sobreposição de uma prática simbólica sobre a outra, desenca-
deando uma prática de dominação.
Sabemos que a disputa pela posse da América foi feita por vários agentes (a
coroa, os missionários etc.). Cada um criava sua narrativa, eliminando qualquer
vestígio de posse pelos nativos. Neste sentido, a representação do eu nativo dentro
da narrativa não existe. Ele é criado e representado dentro da narrativa européia"^.
Posto isto, a circulação mimética do discurso de Colombo, no primeiro mo-
mento, tende à monossemia, pois a função discursiva é de " domesticar o estrangei-
ro" atribuindo-lhe vozes abafadas ou desqualificando-o ou, na maioria das vezes, au-
sentando-o do discurso, anulando assim a sua identidade.
O símbolo-chave, "maravilhoso, funciona como agente de conversão: um
mediador fluído entre o exterior e o interior, o espiritual e o carnal, a esfera das coi-
sas e as impressões subjetivas por elas provocadas, a recalcitrante alteridade de um
mundo no voe o efeito emocional causado por essa alteridade" (Greenblatt, 1996:102).
Assim, Colombo codificou toda essa alteridade jamais vista, como algo que se
assemelhasse ao seu imaginário, ou seja, a descrição do Éden, o paraíso terrestre.
Neste sentido podemos fazer um paralelo, tal como os havaianos achavam que Cook
f 219
Imaginário - USP, n. 3, p. 225-233, 1996.

(Sahhlins, 1988) era o deus da colheita, Colombo achou que a América era o paraíso
terrestre.
Na medida em que novos sujeitos vão surgindo no processo de colonização e
de posse surge também a figura do intérprete. Ele, se assim pudermos dizer,
representa a posse das duas narrativas culturais. Por meio dele é que se efetuará a
circulação simbólica que antes tendia para a monossemia. Assim, D. Marina repre-
senta o elo entre Cortez e os Astecas.
Diferentemente é o uso do agente mediador para Montaigne, o criado que narra
as aventuras do Novo Mundo representando os índios repletos de símbolos que ca-
racterizam as proezas e vícios da cultura européia.
Não procura no Novo Mundo o Éden, e sim as explicações, através do espelho,
para o momento histórico tão peculiar que vivia. Neste sentido, em sua obra Os
Canibais, os nativos são representados como nossos ancestrais, apontando a per-
versidade produzida pela sociedade em que vivia.
Foi por meio dos relatos sobre o Novo Mundo que Montaigne pôde identifi-
car sua própria cultura. O maravilhoso está em horrorizar o outro como um reflexo
de sua sociedade.
Como bem assinala o autor, na introdução, o seu interesse não é o conhecimen-
to do outro, mas a ação sobre o outro. As estratégicas discursivas apresentadas levam-
nos a distinguir dois grupos: Mandeville, que representa através da narrativa a
construção áo outro, tendendo de uma alteridade radical, em termos de um estranha-
mento que o diferencia de si mesmo, para uma identidade, na qual o outro o leva para
o auto-reconhecimento. O eu é o outro e o outro é o eu (Greenblatt, 1996: 176).
Colombo e Bernal Díaz por outro lado, constroem a narrativa sobre os índios
com os símbolos da posse simbólica e material que os levam da identificação para o
estranhamento total, tornando-se, portanto, objeto estranho, uma coisa que pode
destruir ou incorporar à vontade (id., ibid.).
Com a reprodução e a circulação do capital mimético, o maravilhoso, símbo-
lo-chave, explica a forma de dominação da Europa sobre os outros "mundos". Assim,
podemos constatar que todos os personagens eleitos pelo autor possuem o objeto de
seu discurso, o que varia é a forma dessa possessão.
Sem dúvida, este livro representa um marco interdisciplinar que resulta numa
análise original de documentos extremamente trabalhados pela historiografia, levan-
do-nos à impressão de estarmos diante de algo inédito. O autor faz-nos entrar num
estado dõ maravilhamento nãturãl, que causa admiração; surpreendente, espantoso,
excelente, primoroso, magnífico, diante de tal originalidade textual.
218
Resenhas

ra, trazia em si, já, o desejo de ultrapassagem da própria fronteira americana então
alcançada, para se buscar passagens ao norte e ao sul, que abrissem as portas para o
Oriente.
Quase 400 anos separaram as descobertas dessas passagens: Fernão de Maga-
lhães encontrou o estreito ao sul em 1520, mas somente em 1905, após inúmeras ten-
tativas frustradas e fatais, Roald Amundsen, o grande herói polar, descobriria a Pas-
sagem Noroeste, cruzando o Estreito de Bering.
Apesar do tempo separando a descoberta e a conquista, os pólos geográficos
da Terra estiveram, no imaginário de diferentes épocas, entrelaçados por um prin-
cípio de simetria, no qual o Ártico seria, obrigatoriamente, equilibrado por um anti-
Ártico (a Antártida). Segundo Ulisses Capozoli, os dados científicos acumulados
até agora sobre essas regiões diametralmente opostas, de certa forma, confirmam
esse princípio de equilíbrio:
"Ficou claro que o pólo norte não passa de uma grande depressão coberta por uma
espessa capa de gelo na superfície, enquanto a Antártida é uma enorme protuberân-
cia continental. Já se comparou esta situação como parecida ao resultado da pressão
de um grande polegar cósmico no pólo norte, que resultou num afundamento da re-
gião, produzindo, em compensação, a protuberância do Sul. Medidas de áreas e alti-
tudes dão consistência a esta imagem, pois enquanto o Oceano Ártico tem uma área
em tomo de 14,35 milhões de quilômetros quadrados, a área da protuberância
antártica, coberta de gelo, é de 14 milhões de quilômetros quadrados. (...) Mesmo a
profundidade máxima no Ártico, de 5.335 metros, tem uma relação com a altitude
máxima da Antártida, de 4.897 metros do maciço Vinson" (p. 142).
Além dos aspectos geomorfológicos, o princípio de simetria parece ter per-
meado também ~ e principalmente ~ o processo de aproximação e conquista; muitos
navios e exploradores ligaram seus nomes a ambos os pólos, o que torna impossível
a construção de uma historiografia separada. O treinamento dos homens, o desenvol-
vimento dos equipamentos, o financiamento das expedições, bem como as tragédias
pessoais dos conquistadores foram fatores que, segundo Capozoli, deram um mes-
mo e único sentido para uma lenta aproximação em relação a esses territórios.
Na virada do século XIX para o XX, no entanto, conquistadas já as fronteiras
geográficas, foi o desejo de alcançar os pólos magnéticos que surgiu como um novo
desafio, desencadeando uma verdadeira corrida contra o tempo^. De forma mais
dramática e densa, homens e desejos, norte e sul se mesclaram, pondo à mostra signi-
ficados ambíguos para essa conquista de passagem de século: aventura ou ciência?
Esse conflito, expresso sem rodeios na frase do contemporâneo Freud, deixava
219
Imaginário - USP, n. 3, p. 229-233, 1996.

entre-ver como pano de fundo um jogo de intencionalidades, onde o nome individual


do conquistador, o país que cravaria a sua bandeira "no topo do mundo" e o progresso
da ciência assumissem pesos e conotações distintas. A consciência de que os pólos
seriam as "últimas fronteiras" da Terra e que seus descobridores seriam os últimos
de um ciclo de heróis-conquistadores, fez com que as motivações pessoais muitas
vezes imperassem sobre todo o resto. É nesse contexto que as trajetórias do
norueguês Roald Amundsen e do inglês Robert Falcon Scott, em particular, podem
ser interpretadas como a síntese e o fechamento daquilo que Capozoli chamou de
"período heróico da conquista antártica".
Scott e Amundsen tinham em comum o fascínio pelas explorações polares -
haviam participado de expedições anteriores - e, de certa forma, se prepararam a vi-
da inteira para a conquista dos pólos magnéticos: Amundsen dedicara-se ao norte e
Scott ao sul.
Em 1909, viajando em direção ao Ártico para realizar seu grande sonho,
Amundsen foi surpreendido pela notícia de que o pólo norte acabava de ser alcan-
çado pelo norte-americano Peary^ A conquista do pólo sul surgiu então, subitamen-
te, como um "consolo para a perda da conquista do norte". Amundsen mudou sua
rota após telegrafar para Scott - que já se dirigia para o sul - comunicando-lhe suas
novas intenções.
O impacto dessa notícia e o fato de Scott reconhecer e respeitar o adversário que
passava a lhe fazer sombra talvez tenham influído nas decisões precipitadas do ex-
plorador inglês. A partir da análise das diferentes estratégias utilizadas pelos dois
exploradores, nota-se hoje que o sucesso de Amundsen foi devido ao estudo das
minúcias, ao pensamento lógico e sua posição maleável diante da realidade: anali-
sando previamente a posição das geleiras, ele conseguiu desembarcar 96 quilômetros
mais próximo do pólo magnético que Scott; Amundsen levava apenas 9 homens,
enquanto Scott, acompanhado por uma expedição científica, levava 54 homens;
Amundsen fez uma trajetória rápida em busca do pólo magnético, enquanto Scott era
obrigado a fazer escalas para satisfazer a equipe de cientistas que o havia ajudado na
obtenção de recursos financeiros; Amundsen levava cães para a tração dos trenós e
Scott teimo-samente levava pôneis, que cedo se revelariam um transtorno; Amundsen
sinalizou melhor suas tendas com panos vermelhos, ao passo que as de Scott
permaneceram brancas e, finalmente, Amundsen readaptou todos os seus equipa-
mentos no local, tornando-os mais confortáveis e úteis, enquanto Scott padecia com
a parafernália presenteada pelos patrocinadores de sua expedição.
Amundsen e seus homens fincaram a bandeira norueguesa no pólo sul no dia
14 de dezembro de 1911, um mês antes de Scott. O peso da derrota, o cansaço, a falta
218 Resenhas

de previsão em relação aos alimentos e aos combustíveis, fizeram com que o grupo
de Scott encontrasse lentamente a morte, em fevereiro de 1912. Somente seis meses
mais tarde os corpos seriam encontrados.
Mesmo premiado pela inebriante sensação de poder dar "uma volta ao mundo"
em poucos passos, Amundsen, no entanto, não descartou o acaso em sua vitória. Re-
ferindo-se em seu diário ao sonho desfeito do pólo norte e à conquista inesperada do
pólo sul, ele registrou:
"não conheço nenhum homem colocado em posição mais distante" (p. 124).
Enquanto isso, o diário de Scott, por outro lado, aceitava os últimos registros
da derrota:
"Ó Deus, que lugar horrível. É muito desalentador ter sofrido tanto para chegar e não
ser recompensado pela glória da prioridade. (...) Talvez amanhã o vento nos seja
favorável" (p. 114).
O vento não seria mais favorável a Scott. Ele queria ser herói, mas para ser he-
rói nas novas - e últimas - fronteiras, é preciso chegar primeiro.

Os Aniversariantesy de Beryl Bainbridge, é um romance baseado nas cartas e


diários dos homens de Scott que, afinal, só tiveram os seus aniversários para come-
morar. Selecionando cinco -tripulantes, entre eles o próprio Scott, a autora constrói
um caleidoscópio onde cada um dos personagens, em função do cargo que ocupava
na expedição, expôs uma visão fragmentada, mas crítica, sobre o significado da
missão e em particular sobre a atuação do armador capitão Scott.
As críticas da tripulação começaram já na partida da Inglaterra: os fornecedo-
res que negociaram com Scott propaganda e lucros futuros; as inúmeras paradas pa-
ra arrecadar dinheiro; as paradas oficiais para receber as bandeiras doadas pelas
autoridades; os jornais proclamando a loucura da viagem suicida (prevista para três
anos) em face dos vazamentos e as falhas constatadas no madeiramento do Terra
Nova; a insegurança financeira pairando sobre as famílias dos tripulantes; novas
paradas para embarcar os já questionáveis pôneis da Mandchúria. Todos esses
problemas, no entanto, acabaram eclipsados pelos festejos da partida, pelas recep-
ções, pelo aconchego da nação e o merchandising dos restaurantes - o próprio
Scott veria seu nome emprestado a um suflê. Dos tripulantes, o sargento Taff Evans
219
Imaginário - USP, n. 3, p. 231-233, 1996.

é o que melhor resumiu esse momento onde o patriotismo anestesiava o questio-


namento das responsabilidades:
"Não me tenho como instruído, mas quando me levantei tinha cá comigo a sensação
(...) de que participava de uma coisa especial, uma coisa gloriosa (...) me senti
enaltecido (...) e então um orgulho acabou enchendo o meu peito, o orgulho de ser
galés até o último fio de cabelo" (p. 42-43).
Durante a viagem, outros tripulantes vão expondo os significados e motiva-
ções pessoais para a expedição: chance de um substancial reforço econômico, se
voltarem heróis; provação física visando o enriquecimento espiritual; patriotismo,
vendo na conquista do pólo magnético antártico a possibilidade de redimir a Ingla-
terra da perda de seu domínio marítimo na virada do século. Ciente desse declínio
inglês, o médico da expedição, tio Bill, via na viagem para a Antártida a fuga de um
mundo que desmoronava ao longe:
"(...) somos desajustados, vítimas de um mundo em mudança. É difícil para um
homem saber onde ele se ajusta hoje em dia. Todas as coisas em que nos ensinaram
a acreditar, amor ao país, ao império, a dedicação ao dever, estão sendo ridiculari-
zadas a olhos vistos. A validade do sistema de classes, os motivos dos homens res-
peitáveis e instruídos estão agora sob o escrutínio das lentes de aumento tanto quanto
os parasitas que desnutrem os gaios silvestres escoceses" (p. 65).
Mas não era só o mundo distante que desmoronava. O telegrama de Amundsen,
no qual ele se declarava abertamente um concorrente à conquista do pólo sul, con-
verteu a figura do norueguês em um fantasma que acompanhava todos os passos da
expedição inglesa. Para o capitão Scott, Amundsen passava a ser um traidor:
"(...) o comportamento de Amundsen era absolutamente apavorante. A má fé e a fal-
ta de lealdade dele me fazem tremer de revolta. Durante todo o tempo em que dizia
para o mundo que estava indo para o norte ele na verdade estava rumando para o sul,
embora pelas notícias dos jornais soubesse perfeitamente bem quais eram meus
planos" (p. 103).
"Droga (...) ele não está interessado na ciência. Ele só quer fazer disso uma com-
petição" (p. 104).
Scott perdeu a competição e só soube disso ao alcançar o pólo magnético e
encontrar a tenda montada por Amundsen ao lado da bandeira norueguesa hasteada.
No interior da tenda, Amundsen deixara, um mês antes, uma carta para Scott:
232 Resenhas
1
"Caro capitão Scott, como provavelmente é o primeiro a alcançar esta área depois de
nós, peço-lhe a gentileza de encaminhar esta carta ao rei Haakon VIL Se puder usar
algum dos artigos deixados na barraca, por favor não hesite em fazê-lo. Com sinceras
saudações. Desejo-lhe um retomo seguro. Cordialmente, Roald Amundsen" (p. 180).
A revolta de Scott foi imediata, evidenciando uma rachadura nos próprios
objetivos da expedição: Bill, o médico, reiterando ao capitão o caráter científico da
viagem e Scott, obcecado pela derrota, reavaliando "outros" meios que lhe teriam
dado a vitória:
"Devíamos tê-los derrotado. Não há lei neste lugar (...) Nós somos a lei. Devíamos ter i:
resolvido isso lutando, com armas se fosse necessário" (p. 105).
As interpretações formuladas pela tripulação para justificar a derrota foram di-
ferentes: equipamentos inadequados, nevascas fortes, frieza, inflexibilidade e irres-
ponsabilidade de Scott e, principalmente, o fato de ele ter convertido a expedição em
uma competição pessoal. Scott, por sua vez, jamais admitiu seus erros - atribuiu o
fracasso à má sorte, ao azar, a "uma nuvem" pairando sobre ele.
No caminho de volta, que nunca seria completado, Scott filosoficamente rela-
tivizou sua derrota com relação a Amundsen:
"Não há nada na Terra tão vasto, tão glorioso, quanto os céus do sul. No mundo
comum, um homem mede a si mesmo comparando-se com a altura dos edifícios,
ônibus e pórticos: aqui, a escala reduzida às paragens, ele seria um tolo em não re-
conhecer que não é mais significativo do que uma gota de chuva em um oceano.
Estando ali onde estávamos, parecia irrelevante saber onde Amundsen estava - am-
bos tínhamos sido reduzidos às devidas proporções" (p. 111).
Scott não tinha por que voltar a seu mundo. Lá, certamente, outras proporções
seriam estabelecidas entre ele e Amundsen. Confortado pela ilusão de seu relativis-
mo, Scott não tinha mais por que lutar. Por isso mesmo, nos últimos dias de vida,
preso em uma cabana com um reduzido número de homens que implorava ao médi-
co Bill morfina para aplacar a dor da fome e da gangrena dos corpos congelados,
Scott incentivou a liberação dos tabletes indiscriminadamente. Foi justamente ao
médico que Scott dirigiu sua última ordem como capitão:
"Ordeno que você dê a cada homem os meios para escolher a hora de morrer" (p. 187).
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Imaginário - USP, n. 3, p. 233-233, 1996.

Notas

1. Citado em Schwartz, Hillel. Fim de Século. São Paulo: Cultura Editores Asso-
ciados, 1992, p. 287.
2. Entende-se por pólo geográfico cada uma das extremidades do eixo imaginário so-
bre o qual a Terra executa o seu movimento de rotação. Os pólos geomagnéticos são
os dois pontos da superfície terrestre em que a inclinação magnética é igual a 90 graus.
Os pólos magnéticos não são diametralmente opostos e nem se mantêm fixos na su-
perfície da terra. Cf. Buarque de Holanda Ferreira, Aurélio. Novo Dicionário da
Língua Portuguesa.
3. Hoje a conquista de Peary é interpretada por muitos como uma grande fraude e
questiona-se se o capitão Cook não poderia ser considerado o primeiro explorador
europeu a atingir o pólo norte. Por outro lado, considera-se com unanimidade que o
russo Thaddeus Bellingshausen foi o primeiro a colocar os pés no continente antárti-
co em 1820.

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