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Victor de Sá: um espólio para a História

Por Manuela Barreto Nunes


(Bibliotecária no Município de Vila Verde e docente convidada da Universidade de Coimbra)

Estou ainda a vê-lo, assim o guardo na memória, assim o acarinho, depois da morte como em vida:
uma figura elegante, com o seu bigode aparado, o chapéu com uma peninha, a gravata impecável sob o
colete, o sorriso generoso, anunciando alegrias espantosas em quem teve uma vida tão sofrida. Era o último
dos cavalheiros, homem dos sete instrumentos, livreiro, publicista, político, investigador e professor que
ensinava com uma espécie única de rigor, aproximando os alunos do conhecimento com a permanente
dúvida científica, atento, em diálogo subindo o nível, nunca desprezando ou censurando.
Releio o parágrafo acima e vejo os gerúndios, o excesso de gerúndios, e decido que os vou manter,
sinais que são da recusa da morte, de que o exemplo de quem fez parte da nossa educação é vivo enquanto
nós o formos e a sua impressão se mantiver na nossa mente - assim Victor de Sá (VS) para mim e, estou
certa, para muitos dos meus contemporâneos em Braga e no país, figura de dimensão nacional que foi e é.
Não há maneira de saber quando o conheci, porque sempre o conheci: personalidade marcante da
identidade da Braga do século XX, a sua livraria era uma referência e, quando se transferiu da Rua dos
Capelistas para a actual 25 de Abril, ao pé de minha casa, um lugar de visita semanal, primeiro da criança
que, acompanhada pela mãe, ali ia comprar histórias e contos de fadas (tostões guardados e contados para os
livros, e uma ajuda materna para completar, quando não chegavam) e, mais tarde, da adolescente que, na
livraria moderna e arejada, inovadora pelo espaço e as actividades, ali assistia a encontros e debates com
escritores, alguns memoráveis, como quando veio a Braga o poeta José Gomes Ferreira, um ídolo das jovens
românticas e idealistas dos finais dos anos 70.
Mas Victor de Sá era mais do que a livraria: era um heróico resistente anti-fascista, um homem que
fora perseguido, preso, violentamente torturado pela PIDE, um exilado político que se vira obrigado a fazer
pela vida em França, onde pôde doutorar-se e ensinar, e de onde trouxe novos temas (o movimento operário
e o nascimento das ideias socialistas em Portugal, um outro olhar sobre o Liberalismo e sobre as revoltas
populares da transição de regime, como a da Maria da Fonte…) e métodos de ensino, mais participados, de
que usufruí quando, aluna da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o tive como professor de
História Contemporânea, no último ano do curso.
Passados poucos anos, por volta de 1989, Victor de Sá começa a projectar a criação de um Prémio de
História Contemporânea na Universidade do Minho, enquadrado na doação do seu espólio à Biblioteca
Pública de Braga, onde estariam disponíveis, entre outros documentos, os dados do trabalho de investigador,
que ele designava por “dados do conhecimento”, eventuais fontes para novas investigações no âmbito da
História recente de Portugal. À época frequentava eu o Curso de Ciências Documentais e, sendo necessária a
intervenção de um técnico para dar início ao tratamento dos documentos,
o professor propôs-me essa tarefa, que aceitei com entusiasmo e à qual,
durante cerca de dois anos, dediquei todo o tempo livre e mesmo algum
do de trabalho, cedido pela Câmara Municipal de Famalicão, sempre
acompanhada pelos seus conselhos e orientações, de que são
testemunho as cartas me escrevia de Rio de Mouro onde, à época,
residia.

Excerto de carta de Victor de Sá à


autora, 16 Jan. 1991
O objectivo desta primeira intervenção no tratamento do espólio era muito claro para VS:

«Eu sei que tenho aí - e aqui mais uns caixotes que ainda utilizo - dados de conhecimento
acumulados, às vezes tratados em parte, outras vezes utilizados em trabalhos que não
prossegui. É a consciência que tenho desse curso de trabalhos, que de certeza já não poderei
mais levar para a frente individualmente, que tem atiçado o meu engenho em busca de um
processo que possa projectar toda essa imensidade de trabalho acumulado mas não
aproveitado ainda» (Sá, V. (1990.01.16). [Carta a Manuela Barreto Nunes]. 3 fls ms.,
autógrafo assinado).

Posteriormente, na “Memória Sobre o Projectado Prémio [de] História Contemporânea” que


escreveu em Novembro do mesmo ano, 1990, reforçaria a ideia de «dinamizar o espólio, do qual, com
diversificadas colaborações se poderiam arrancar vários outros trabalhos publicáveis (…)», no caso, por si
coordenados, acrescentando:

«E, sendo certo que no próximo ano atingirei a jubilatura, também ficarei provavelmente
disponível para assistir a todos quantos se interessem por aprofundar os dados do
conhecimento e outras pistas constantes do meu espólio» (Sá, V. (1990.11.30). Memória
Sobre o Projectado Prémio [de] História Contemporânea. 2 p. dact., ass. ms.).

Para VS, o espólio doado com específicas indicações à Biblioteca Pública de Braga - que, neste ano
de celebrações do centenário, por razões que aos princípios e à técnica biblioteconómica não assistem, o
depositou no Arquivo Distrital - estava pois estreitamente ligado à instituição do Pr émio de História
Contemporânea, o qual, para além de ter como objectivo apoiar os jovens investigadores, também respondia
à ânsia do pensador numa época em que, ao contrário do que acontece actualmente, a produção no âmbito da
História recente do país era escassa: “a luta pela estruturação da área investigativa da História
Contemporânea” (idem, ib.).
Foi com essa missão que me atirei à descoberta da extraordinária parte do espólio que revela o ofício
do investigador, os seus interesses, os seus métodos, as suas divagações, os seus pontos altos e os becos sem
saída ou labirintos na espera de um fio de Ariadne que lhes revele o sentido. Era este um espólio raro, no
sentido em que, para além das habituais tipologias documentais, integrava essa generosa oferta dos dados do
conhecimento: fichas de trabalho com perguntas de investigação, comentários e análises críticas, recortes de
imprensa e transcrições, relações de documentos originais e pesquisas bibliográficas, cronologias, notas bio-
bibliográficas, etc. Não abundam os espólios depositados em bibliotecas nacionais com estas características,
nomeadamente no que se refere às componentes relacionadas com o arquivo pessoal dos doadores, na sua
maior parte constituídas por correspondência, fotografias, diários ou originais manuscritos de obras
publicadas mas, no caso específico de investigadores, com poucos registos de investigações projectadas ou
inacabadas.
As características próprias deste espólio tornaram-no fascinante para a bibliotecária que, respeitando
a organização dada pelo produtor/autor na origem, tinha como missão torná-lo legível e pesquisável: o
desempenho dessa tarefa técnica muito rapidamente se transformou numa espécie de mergulho no processo
criativo do investigador, numa descoberta sobre um modo de produção, um tempo, um meio e as condições
específicas da vida individual e intelectual que levaram à escolha e desenvolvimento de uns temas em
detrimento de outros, à opção por uns caminhos e ao abandono de outros, à atracção por umas figuras ou à
desilusão com outras.
Vemos, assim, duas grandes épocas de interesse, os séculos XVIII e XIX, que congregam
informação sobre os seus temas de eleição: as origens do pensamento liberal em Portugal, as origens do
pensamento socialista, do movimento operário e do cooperativismo. Há pastas que apresentam o
levantamento de manuscritos setecentistas do que designa como “Arquivo da Biblioteca Pública de Braga”,
revelando a riqueza patrimonial da instituição, que alberga documentos manuscritos do Marquês de Pombal,
Alexandre de Gusmão, D. Luís da Cunha, Ribeiro Sanches e Bocage, entre outros. Este levantamento
específico foi feito no âmbito de uma comunicação ao Congresso Internacional de Estudos em Homenagem a
André Soares, que a Câmara Municipal de Braga promoveu em 1973 e, atentando nas notas que o
acompanham, mesmo sem ler o artigo que delas resultou, torna-se clara a visão de Victor de Sá, que
enquadra o criador individual no contexto político e económico e nos movimentos sociais e culturais do seu
tempo.
Outros maços de documentos debruçam-se sobre figuras novecentistas de que tratou, com maior ou
menor extensão nos seus trabalhos publicados, mas cujo estudo considerava importante aprofundar.
Destaquem-se, pela diversidade: A. Ribeiro da Costa (1828-1903), professor de Filosofia no Liceu do Porto e
um dos fundadores da História da Filosofia em Portugal; Alves da Veiga (1850-1924), líder civil da
malograda revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891 na sequência da qual, tal como Victor de Sá no
século seguinte, foi obrigado a um longo exílio em Paris; D. João de Azevedo de Sá Coutinho (1811-1854),
Miguelista que, após a derrota de 1834, se retirou para Braga, onde fundou “O Cidadão Philantropo”, o
primeiro jornal publicado na cidade; ou o mais estudado Frederico Laranjo (1864-1910), professor da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, deputado do Partido Progressista e Par do Reino,
socialista defensor do cooperativismo e do associativismo e interessado nos problemas da emigração, autor
de obras fundamentais sobre Economia Política e Direito Constitucional.
Definido pelo seu acervo de investigador, Victor de Sá não o é menos pela extensíssima bibliografia,
em grande parte coligida em pastas constantes do espólio. Colaborador de jornais desde muito jovem (a
primeira crónica, publicada no jornal bracarense “Correio do Minho”, data de 1937, tinha VS 16 anos), é
nesta faceta que revela todo o ecletismo dos seus interesses e da curiosidade pela vida social, pela economia,
pela política, pela cultura. Os títulos das colaborações dos primeiros anos mostram já um escritor com estilo
próprio e uma opinião que se vai formando em defesa dos oprimidos e empenhada no combate e na acção.
Vejamos alguns, uma pequena amostra: “Ceuta!”, o primeiro; “Glória Académica”, a que se seguem outras
crónicas sobre os estudantes do Liceu de Braga; “As vespas: o que são e o que valem para o Homem”, mas
também “A actividade cultural em Braga”, “O inventor da imprensa” ou “O Livro anteriormente à
Tipografia” - todos estes entre 1937 e 1940. Os temas são imensos e muitos aproximam-se da crónica social,
retratando a vida quotidiana em Braga ou na Póvoa de Varzim, mas vê-se uma crescente aproximação às
questões da Educação, da Cultura, do livro e da leitura.
Desde cedo preocupado com a comunicação da Ciência, apenas sobre História Contemporânea
publica, tanto em jornais regionais e nacionais como em revistas científicas portuguesas e francesas, mais de
150 artigos entre 1952 e 1999. Sobre bibliotecas, área que, desde muito novo, o toca, escreve, entre 1953 e
1974, 14 artigos e duas monografias, sendo um dos pioneiros em Portugal da ideia de biblioteca social e o
criador da Biblioteca Móvel, nome que utilizou também como chancela editorial.
Victor de Sá publicou em vida mais de 500 trabalhos, muitas vezes em condições de extremo
sofrimento físico, vítima que foi das sequelas da tortura, e sempre com a preocupação da democratização do
conhecimento e da cultura, da proximidade com o cidadão, na actividade política como na académica, no
ofício de historiador como no de livreiro, na juventude e ao longo de toda a vida, enquanto pôde.
Lembro-o na elegância antiga de gentil-homem, no trato cordial e espanto-me, ainda hoje, com a
imensidão da sua coragem e do seu trabalho. E, se é com alegria que assinalo o centenário do seu
nascimento, alguma tristeza desponta quando penso que já não será possível voltar a encontrá-lo na nossa,
dos habitantes da cidade e da região, Biblioteca Pública de Braga.

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