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MANA 12(2): 503-520, 2006

ENTREVISTA
A PRÁTICA ETNOGRÁFICA COMO
COMPARTILHAMENTO DO TEMPO E
COMO OBJETIVAÇÃO
Johannes Fabian

Johannes Fabian é um dos antropólogos Em junho de 2004, fez uma visita ao


mais conhecidos na atualidade e bastante Brasil a convite da Associação Brasileira
identificado com o pensamento crítico. de Antropologia (ABA) e proferiu uma
Valorizando fortemente a dimensão das conferências centrais na XXIV RBA,
etnográfica, escreveu numerosos trabalhos ocorrida em Recife. Em sua passagem pelo
sobre diferentes aspectos da vida e da Rio de Janeiro, visitou o Museu Nacional
cultura de populações da África. Não onde ministrou uma palestra no PPGAS e
se considera contudo estritamente um foi convidado a dar uma entrevista para
africanista. O seu livro mais conhecido, a revista Mana. No dia seguinte, no Hotel
Time and the other: how anthropology makes Glória, durante quase três horas, respondeu
its object (Columbia University Press, New de forma sempre muito clara e direta às
York, 1983), foi (e continua a ser) uma questões formuladas por João Pacheco
referência importante para os debates de Oliveira, Federico Neiburg e Thaddeus
teóricos e epistemológicos sobre os limites Blanchette. A transcrição da entrevista
e as possibilidades da interpretação gravada foi realizada por este último e a
antropológica. Na última década, JF veio a tradução ao português foi feita por Amir
explorar novos domínios da antropologia Geiger, cabendo aos dois primeiros suas
(como a iconografia, a performance, a edição e revisão final.
ética e as condições de objetividade e
subjetividade), produzindo trabalhos
inovadores. Esse foi o caso de Remenbering
the present: painting and popular history
in Zaire (University of Califórnia Press,
Berkeley & Los Angeles, 1996), Out of our
minds, explorations and madness in Central
Africa (University of California Press, 2000),
Anthropology with an attitude. Critical essays
(Stanford University Press, Stanford, 2001).
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FN: O que gostaríamos de saber em em nós — e, mais uma vez, trata-se de


primeiro lugar é como o senhor chegou algo a que somente agora dou o devido
à antropologia. valor — foi a absoluta contemporanei-
dade daquilo que classificaríamos como
Bem cedo recebi ensino etnológico — pri- religião e de coisas que classificaríamos
meiro na Áustria, mais tarde em Muni- como magia. Ele não aceitou a distinção
que, onde estudei por um breve período. entre elas, uma distinção baseada na
Depois, fui para Chicago, onde tive meu época em princípios evolucionistas ou
treinamento. Portanto, meu primeiro con- difusionistas — sendo o difusionismo,
tato foi com a etnologia de tipo européia em muitos aspectos, exatamente uma
clássica — cultural-histórica e difusionis- imagem especular do evolucionismo.
ta, pode-se dizer. Tive dois professores, Schebesta era alguém que se manteve
provavelmente conhecidos por vocês, e livre dos preconceitos teóricos e que
certamente pelos africanistas. Um deles transmitiu isso a seus alunos.
foi Paul Schebesta, meu primeiro pro- Ser capaz de ler não somente em
fessor, conhecido por seu trabalho sobre alemão, mas também em francês e em
os pigmeus. Foi um daqueles heróis- inglês, era algo que Schebesta exigia,
exploradores que andaram milhares de sem discussões. Ele dizia: “Vocês têm
quilômetros pela floresta Ituri. Mas ele que saber. Não me interessa como.” E
era também um etnógrafo excelente, e eu nós obedecíamos. Então, discutíamos a
muito lhe devo. Quanto mais velho fico, literatura em três línguas. Infelizmente,
mais percebo o quanto lhe devo — não espanhol e português estavam provavel-
tanto em termos de conhecimento, mas mente acima de nossas possibilidades,
de atitude em relação à etnografia. Sche- para não mencionar o russo e outras
besta foi discípulo de Wilhelm Schmidt, línguas.
e daí se poderia supor que fosse uma es- Em Munique, meu professor foi
pécie de difusionista dogmático — coisa Hermann Baumann, autor de um livro
que ele absolutamente não era. Era um sobre cultura africana que foi por muito
etnógrafo, e tinha um tipo de abordagem tempo uma referência. Ele havia feito
muito pessoal, nada convencional; de trabalho de campo em Angola, mas era
seu ensinamento se apreendia que, nos um exemplo daquilo que consideraría-
grupos em meio aos quais trabalhava, mos um teórico difusionista.
ele sempre via as pessoas. Elas não eram
meramente suas fontes de informação; FN: Quando o senhor chegou à Univer-
ele vivia com elas. E era capaz de evocar sidade de Chicago?
em nós impressões muito vívidas de como
era sentar-se junto a um pigmeu e con- Em 1963. A previsão era ficar por lá por um
versar sobre suas concepções a respeito período de um ano ou algo assim e — como
de Deus. Esse era o tema que estava na aconteceu com muitos outros — a estadia
ordem do dia e Schebesta, que trabalhou acabou se estendendo, no meu caso, por
entre os pigmeus — assim como Wilhelm dezessete anos. Eu não conhecia o sis-
Koppers, na Índia, e Martin Gusinde, na tema americano. Quando você entra em
Terra do Fogo — fora enviado por Wilhelm um curso de pós-graduação, não é como
Schmidt para encontrar o “verdadeiro mo- ouvinte ou visitante: você é colocado dire-
noteísmo”. Schebesta não retornou com tamente no meio de tudo aquilo, e se você
os dados que Schmidt queria. Encontrou sobrevive ao primeiro ano — poucos de nós
uma divindade, mas o que ele imprimiu conseguiram — você permanece. Passado
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o primeiro ano, são feitos os exames preli- güística, especialmente na forma como
minares e você se torna um doutorando. Dell Hymes a concebeu. Meu objetivo
O próximo passo é o trabalho de campo; concreto era o de fazer um estudo dos
você volta então do trabalho de campo, modos segundo os quais o suaíli fun-
obtém o título e vai para o seu primeiro cionava como língua de trabalho em um
emprego. Meu primeiro emprego foi contexto moderno, industrial. Trabalhei
na Northwestern University, na qual muito nisso, e tenho uma documentação
cheguei alguns anos após a morte de extensa baseada em minha observação
Melville Herskovits. Mas ainda havia numa fábrica de zinco da área minerado-
um programa de estudos africanos bas- ra e em alguns outros contextos. Havia,
tante forte, e um forte departamento. por exemplo, uma pequena fábrica de
Meu primeiro trabalho de campo, entre móveis de estilo neo-africano que visitei.
1966 e 1967, foi sobre um movimento Era um trabalho de tipo mais artesanal.
religioso em Katanga, região sudeste E foi nesse período que comecei a des-
da República Democrática do Congo, cobrir coisas que me levaram ao trabalho
como então era chamada (voltando a com o teatro e com a pintura populares,
sê-lo mais recentemente). A maior parte dos quais me ocupei posteriormente.
de meu trabalho coincidiu com o tempo Quando voltei aos E.U.A., fui para
em que o país se chamava Zaire. Isso é outro emprego — na Wesleyan Univer-
importante, pois Zaire não era apenas sity, numa pequena localidade na Nova
outro nome — era também uma outra Inglaterra — em um departamento de
realidade. Foi nesse tempo que, assim graduação em antropologia que, embora
penso, algo se passou, a saber: essa pequeno, era muito bom e influente. Foi
antiga colônia tornou-se uma nação e também nesse tempo que a universidade
desenvolveu uma consciência nacional. descobriu a world music. Até quanto sei, foi
Mobutu era um ditador e um tirano, na Wesleyan que se empregou o termo pela
como muitos outros, mas era um arguto primeira vez. Havia um departamento de
manipulador de símbolos culturais de música étnica que incluía alguns músicos
identidade. Ele tinha uma política de modernos — John Cage, por exemplo, esta-
“autenticidade”, que impôs acelerada- va por lá, assim como Albin Lucier e alguns
mente e que o povo assimilou com algo outros nomes — mas no qual também da-
a mais do que um grão de sal, com muita vam aulas músicos indianos, africanos,
ironia e paródia. No entanto, o ditador japoneses etc. Era bastante animado.
conseguiu criar certo tipo de sentimen- Era o que ainda poderíamos chamar de
to nacional, utilizando-se inclusive de “etnomusicologia”, mas agora num outro
Lumumba como herói nacional. Digo plano. Não era um estudo que se debru-
“utilizando-se”, porque é sabido com çava sobre tipos étnicos de música, mas
certeza (historicamente) que Mobutu um confrontamento “olhos-nos-olhos”
estava entre aqueles envolvidos — ou das outras músicas com a ocidental.
que prepararam (não diretamente, até Era um cenário animado. Tínhamos um
quanto se sabe) — naquilo que culminou gamelão1 indonésio “de nível”, segundo
no assassinato de Lumumba, o mesmo os próprios padrões indonésios. Havia
homem posteriormente declarado herói toda uma sub-cultura entre os estudan-
nacional pelo referido ditador. tes: pertencer a essa orquestra e nela
Minha segunda pesquisa foi sobre tocar não era pouca coisa. Duas vezes
trabalho e linguagem. Na época, eu es- por ano, tínhamos apresentações do que
tava bastante influenciado pela sociolin- se chama wayang, ou teatro de sombras
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javanês e balinês. Isso foi entre 1975 e Bem, quando comecei em Chicago, es-
o final de 1980. távamos provavelmente no período mais
Em 1980, fui para Amsterdã, onde fui intenso do que hoje chamaríamos antro-
designado para a cadeira do que então se pologia moderna. Havia uma antropologia
chamava “antropologia cultural e sociolo- pós-guerra na América do Norte que
gia não-ocidental”, sendo que a segunda surgira do esforço de guerra. Boa parte do
das atribuições era algo profundamente tipo de teoria que deu naquilo que mais
desconcertante para mim e também para tarde viríamos a chamar de “culturalismo”
outros, pois jamais pudemos explicar o não foi, na realidade, inventada, mas
que isso realmente queria dizer. Mas, de desenvolvida como parte da contribuição
fato, o que realmente espelhava era o fato de antropólogos para a vitória na Segun-
de a etnologia holandesa acreditar que a da Guerra Mundial — de pessoas como
antropologia tinha de viajar no vagão dos Margaret Mead e Gregory Bateson. Daí
estudos do desenvolvimento. Ensinei na surgiram coisas como o famoso projeto
Universidade de Amsterdã até me apo- Harvard, do qual Clifford Geertz partici-
sentar — o que se deu em várias etapas. pou. A guerra estava chegando ao fim e a
No mês passado, obtive finalmente o antropologia vinha se consolidando. Havia
status de professor emérito. Essa, enfim, uma explosão demográfica de estudantes.
é a minha trajetória pública. Até então, a antropologia tinha um círculo
restrito de praticantes na Costa Oeste e em
TB: E sua trajetória particular? Columbia, com Berkeley e a Universidade
da Califórnia em Los Angeles, e Michigan
Antes da etnologia, estudei filosofia e e Chicago, talvez.
teologia. Minha entrada profissional na Mas agora a disciplina tinha âmbito
antropologia deu-se através do Instituto nacional e, de certo modo, tornara-se
Anthropos. Eu pertencia a uma ordem uma profissão. Sempre interpretei o que
religiosa que ainda mantém tal instituto aconteceu a partir de então — a profis-
e sua revista. Ele foi fundado por Wilhelm sionalização da antropologia — como
Schmidt e, na ocasião, estava se mo- resposta àquela explosão demográfica.
dernizando. Enviou muitos de nós para Parte da profissionalização dava ênfase,
estudarmos nas melhores instituições do crescentemente, à unificação de para-
mundo; assim, alguns de meus colegas e digmas, às teorias. Nesse mesmo período e
amigos estudaram em Paris, na Sorbonne, pouco tempo depois, a atividade de escre-
outros foram para Oxford, e eu fui manda- ver livros-texto de antropologia viveu seu
do para Chicago. E houve também uma auge. Muitas coisas desse tipo foram pu-
espécie de vínculo pessoal com a etnolo- blicadas em 1968 que, como sabemos, foi
gia. Eu a conheci ainda menino, porque um ano de grande significado político.
Paul Schebesta era irmão de meu avô: ele Ao mesmo tempo, também assistí-
é meu tio-avô. A etnologia sempre esteve amos ao nascer da profissão de histo-
na família. Mas eu não diria que fui para riador da antropologia. Quando eu era
a antropologia por causa dele. É difícil estudante, ainda em Chicago, George
dizer o que me levou a fazê-lo, embora Stocking começou como jovem professor.
certamente Schebesta tenha sido um fator Ele foi algo como o primeiro historiador
para isso. E aqui estou! profissional da antropologia em um
grande departamento universitário. O
JPO: Quais foram as suas principais in- paradigma reinante em Chicago era o
fluências intelectuais? estrutural-funcionalismo e sua figura
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central, Talcott Parsons. Tudo era pen- ele veio junto com Terrence Turner. Era
sado em termos de sistemas. De fato, no um pacote: Vic Turner, Terry Turner e
meu tempo de estudante, o programa em Nancy Munn vieram juntos. E eu o co-
Chicago contemplava os quatro campos nheci no famoso seminário permanente
usuais, mas estava dividido em dois ramos. que se realizava na casa dele: uma vez
Um deles era chamado “sistemas” e o ou- por semana eles se reuniam, debatiam e
tro, “percursos humanos” [human career]. bebiam muito vinho. Mas não posso dizer
O primeiro incluía antropologia cultural, que ele tenha me influenciado diretamen-
lingüística e antropologia social, ao passo te. Ele não foi, em nenhum sentido, meu
que o segundo, evolução humana, homi- professor. De Balandier, tomei conheci-
nização, genética básica, pré-história e mento quando me preparava para estudar
arqueologia pré-clássica. os movimentos religiosos na África. Ele
Por acaso, na época em que eu estava foi um dos primeiros a produzir um traba-
em Chicago, coisas importantes aconte- lho importante sobre o assunto. Quando
ceram. A nova arqueologia foi inventada o conheci, ele estava na Sorbonne.
por Lewis Binford. Havia Clark Howell,
no campo da hominização; havia Brai- FN: O senhor poderia falar um pouco
dwood e Bob Adams, que posteriormente mais sobre seu interesse pela África?
chefiou a Smithsonian Institution. Eles As tradições americana e alemã são
trabalhavam com arqueologia do Oriente diferentes nesse ponto. Há alguma sin-
Próximo, com o surgimento da cultura, gularidade nas questões que o senhor
e assim por diante. De outro lado, havia levantou?
Geertz, Schneider, Fred Eggan, repre-
sentando algo assim como uma visão Não creio que tenha havido uma traje-
mais antiga das coisas. E havia também tória reta, um percurso direto. Comecei
o grupo dos estudiosos de assuntos da Ín- na velha escola histórico-cultural, sem
dia2: McKim Merriot e Milton Singer. Meu estar convencido de que fosse uma teo-
orientador de doutorado era Lloyd Fallers, ria viável. Fui então para Chicago, mas
mas ele morreu muito jovem. A pessoa com quase imediatamente me preveni contra
quem mantive contato e por quem tenho o estrutural-funcionalismo.
grande admiração é Paul Friedrich, que É preciso estar consciente de que
não é dos mais conhecidos antropólogos aquele fervor, aquele élan profissiona-
norte-americanos, mas um gigante, na lizante, teve um alto preço, pois tornou
minha opinião. Ele cobriu um espectro extremamente estreita a nossa visão.
vastíssimo de estudos. É um renomado Por exemplo, a história foi riscada fora,
lingüista (tem, por exemplo, um artigo quase completamente. Quando já não
clássico sobre pronomes russos), poeta era possível ignorar esse fato, quando
e intérprete de poesia; é também um tiveram de reconhecê-lo, trouxeram Ge-
historiador social reconhecido por seu orge Stocking e Bernard Cohn. Na oca-
trabalho sobre o México. sião, Bernard Cohn veio como professor
temporário, contratado como etno-histo-
JPO: Alguma relação com os africanis- riador. Isto é, quase inofensivo, mantido
tas, como Victor Turner ou Balandier, por numa posição marginal. Não era um dos
exemplo? “pesos-pesados” no departamento de
então, embora hoje reconheçamos que
Vic Turner veio quando eu já estava quase é um gigante. É uma das pessoas mais
terminando a pós-graduação. A propósito, influentes na elaboração de questões
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inteligentes, de longo alcance, sobre empreguei parecia desafiar outras con-


história colonial. Isto não foi reconheci- ceitualizações da coesão social, ou — nos
do na época e não tive contato com tais termos de Max Weber — outras formas de
questões em suas aulas. autoridade. O que me atraiu nessa noção
Também tive outras influências, é foi precisamente o fato de ela ser algo
claro. Ao contrário da maioria de meus como uma categoria residual. Não dava
colegas estudantes, eu lia em alemão e para dizer realmente o que era o carisma.
francês. No momento em que eu começa- Não era a autoridade burocrática, não era
va a tentar encontrar meu próprio lugar, a autoridade tradicional, e era também
duas coisas eram consideradas realmente algo que se tinha de supor existir antes
importantes. Uma era a distinção feita na do estabelecimento da autoridade tradi-
época entre, de um lado, a antropologia cional e da autoridade burocrática.
britânica e algumas modalidades da an- Isso também se encaixava em outro
tropologia americana e, de outro, entre pensamento crítico. Um dos grandes pro-
esta última e a antropologia francesa. blemas com que lidava o estrutural-fun-
Segundo esta distinção, a britânica seria cionalismo era, segundo Talcott Parsons,
supostamente obcecada pelo ritual e a a “manutenção do equilíbrio”. Havia uma
francesa, pelo mito ou pelo pensamento. fraqueza nos estudos de “sistemas”: eles
Trata-se de uma antiga dicotomia mani- tinham grandes problemas em lidar com
queísta. Remonta à teoria da religião na o que chamavam de “mudança social”.
antropologia, ao debate entre intelectu- Até quanto eu podia ver, não havia uma
alistas, como Tylor, e os funcionalistas teoria dos processos. Quando era neces-
e evolucionistas. Convidado a tomar sário lidar com processos, geralmente se
partido, eu obviamente fiquei do lado retornava à evolução, como o fez Parsons.
dos franceses. Eu achava bem mais in- Mas os estudiosos dos “sistemas” não
teressante estudar mito e pensamento eram realmente capazes de conceber
do que observar rituais. Era muito mais algo que eu chamei na ocasião de “cria-
interessante estudar visões intelectuais tividade”: fontes de inovação que não
do mundo do que mecanismos que ser- podem ser explicadas como respostas a
vem à coesão social. carências ou a necessidades adaptativas
Eu era bastante crítico em relação a (na época postuladas). Mudança social
Malinowski, especialmente nesse pon- era o assunto do momento. Então, todos
to. Bem mais tarde, descobri um outro nós, de um modo ou de outro, na época,
lado seu: o pragmatismo lingüístico e saímos para fazer nossas pesquisas sobre
filosófico. Muito antes, ele contribuíra mudança social.
para uma coletânea sobre o significado Uma outra influência importante
do significado, e isso [uma teoria prag- teve lugar, ao mesmo tempo, quando co-
mática da linguagem] também fez parte mecei a ler Jürgen Habermas — que em
de seu livro Coral Gardens. Comecei a 1967 publicou, em um número especial
valorizá-lo mais tarde, quando tive con- de uma revista, um longo ensaio intitu-
tato com a sociolingüística. lado “A lógica e as ciências sociais”. Foi
Pois bem, o tema de minha tese uma revelação, me possibilitou assumir
era um movimento religioso, mas ha- uma posição filosófica básica — que eu
via muito mais que isso. Dado o meu descreveria como marxista — sem ter de
background religioso, poderia parecer adotar um marxismo militante. Era um
natural ir nessa direção, mas não foi marxismo “intelectual”. Meu primeiro
esse o caso. A noção de carisma que encontro com Marx deu-se quando eu
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ainda estudava no seminário e li seus por haver intersubjetividade onde quer


escritos de juventude. Encontrei os livros que seres humanos estejam juntos. Porém,
na biblioteca. Fiquei atordoado ao lê-los. não é uma intersubjetividade do tipo que
Eu sempre fôra bom aluno em filosofia qualquer cientista ou positivista está pron-
tomística e assim por diante, mas aque- to a admitir, a saber, que temos circuitos
les livros me fizeram pensar. similares em nossos cérebros — o tipo
Através de Habermas e do debate de intersubjetividade que Lévi-Strauss
antipositivista, também me envolvi nesse desenvolveu referindo-se às estruturas
embate perpétuo contra três inimigos universais da mente humana. Refiro-me
que eu tinha na ocasião: o positivismo, a uma intersubjetividade que deve ser
o cientificismo e o pragmatismo. O que criada na interação.
aconteceu, no entanto, foi que, quanto E ao me questionar sobre o modo
mais eu trabalhava e pensava, mais valori- como ela pode ser criada, cheguei à se-
zava o pragmatismo americano. Comecei a gunda tese: “a etnografia está baseada,
pensar que seria incorreto identificá-lo ao em termos cruciais, em nossa capacidade
positivismo, como freqüentemente ocorria de nos comunicarmos pela linguagem”.
nos escritos alemães. Havia um ensaio Para mim, a linguagem passou a ser
muito influente de Carl Hempel, que todos central. Cheguei a posteriori à conclusão
tivemos de ler — uma espécie de mapa de que essa era uma abordagem muito
da concepção da ciência segundo o po- estreita da comunicação, pois nos comu-
sitivismo clássico. Mais tarde, instruí-me nicamos através de muitos outros modos.
um pouco mais, e o livro de Kolakowski A maior parte do meu esforço teórico
sobre o positivismo me ajudou bastante. subseqüente concentrou-se em formular
Ainda penso que é uma das mais claras esta idéia claramente, ver novos aspec-
proposições sobre esse conceito. Mas eu tos, novas formas de chegar ao que cha-
estava absorvido num pensamento bem mei “intersubjetividade”. Isso me levou
simples: a percepção de que nossa ciên- ao passo seguinte: o que torna possível a
cia não poderia ser uma ciência natural. intersubjetividade na comunicação? Daí
A história natural havia sido o paradigma a noção de tempo compartilhado.
dominante para a etnologia, o que valia Trata-se de uma noção fenomeno-
tanto para os difusionistas quanto para os lógica que circulava na época. Uma de
evolucionistas; e assim foi, certamente, suas fontes foi Alfred Schutz. Ele havia
com os paradigmas que se seguiram. escrito um ensaio clássico sobre tocar
Em 1971, portanto, escrevi um ensaio música em conjunto. Como muitas coi-
intitulado Linguagem, história e antropo- sas que eu usava na ocasião, esse texto
logia, baseado em minhas experiências ainda não havia sido traduzido. Devo
no trabalho de campo com um movi- ter sido o primeiro a citar Habermas em
mento carismático, e que seria na minha língua inglesa!
opinião, provavelmente, o que escrevi de Meu segundo livro foi Time and the
mais importante. Nesse ensaio, pergun- other. É considerado um livro muito difícil,
tei-me quais seriam os fundamentos da mas ele tem um argumento bastante sim-
objetividade etnográfica, e formulei duas ples. Tem também a reputação de ser uma
teses a esse respeito. Uma delas consistia condenação da antropologia — algumas
no seguinte: “nossa objetividade deve pessoas disseram que se o argumento
basear-se na intersubjetividade”. Em está correto, então a antropologia está
outras palavras, precisamos assumir que acabada, ou coisas de teor similar. Claro
o estudo de outras culturas é possível que não era essa a minha intenção. Ao
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contrário! Eu queria salvar a antropolo- contradição. Se não fizermos, a antropo-


gia! O livro tem um argumento muito logia não poderá sobreviver — porque
simples: é a observação de uma contra- um dos fatores que tornaram possível a
dição. Dizemos que, como ciência (aliás, sobrevivência da antropologia no passado
eu nunca abandonei a noção de ciência foi uma constelação política basicamente
como produção disciplinada de conhe- colonial, uma feição imperial do mundo.
cimento; só que os positivistas não têm Uma pessoa podia estar muito engajada
o monopólio sobre ela), a antropologia como antropólogo, poderia advogar pela
está baseada na etnografia, na investi- causa dos povos primitivos, e assim por
gação empírica. A investigação empírica diante, mas a constelação epistemológica
fundamenta-se, de modo crucial, não era tal que o discurso resultante acabava
somente em observação e coleta de permanecendo imperial.
dados, mas em interação comunicativa,
e esta última só é possível com base no TB: No fim do dia, o etnógrafo se virava e
compartilhamento do tempo. Pois bem, voltava para a máquina de escrever. É neste
essa é uma condição que, na ocasião, espaço da escrita que essa estrutura da qual
eu já não designei de intersubjetivida- o senhor fala e outras estruturas políticas
de, criando para ela uma nova palavra: enquadravam os nativos em um espaço
coetaneidade [coevalness]. Na época, a completamente apolítico, atemporal...
palavra não constava do dicionário, mas
o adjetivo coetâneo [coeval], sim, e eu o Sim. É isso. Talvez se possa dizer, então,
escolhi para evitar palavras como “con- que um dos passos seguintes seria a
temporâneo”, que não era bastante forte, descoberta da própria escrita. Isso, para
e “sincrônico” — por demais restrito. mim, não foi algo que veio da exposição
A pesquisa empírica em etnografia à teoria, embora eu tenha me exposto a
não é apenas uma questão de sincronia, ela de outros modos... Eu estava razoavel-
é uma questão de coetaneidade. Nós mente atualizado com a hermenêutica. A
reconhecemos isto, nós temos de reco- partir de 1968, comecei a dar cursos sobre
nhecê-lo na prática, mesmo que não o hermenêutica das ciências sociais. E isso,
façamos teoricamente. Não haveria uma quando a maioria dos meus colegas nem
prática etnográfica se não houvesse tal sabia soletrar a palavra hermenêutica.
compartilhamento do tempo. Nós vemos Mas isso não era nada especial: eu ti-
e escrevemos. Representamos. Construí- nha acabado de sair desse outro mundo
mos um discurso. O objetivo de Time and e conhecia os conceitos que havia por
the other era mostrar que, ao registrar por trás dele, as idéias de interpretação, e a
escrito os grupos que estudamos, nós siste- centralidade do texto — que mais tarde
maticamente negamos sua coetaneidade. se tornaram metáforas centrais por inter-
Então, falamos sobre eles usando catego- médio de Ricoeur, que foi lido por Geertz,
rias que envolvem distanciamento tem- e assim por diante. A descoberta da escrita
poral, colocando o autor do discurso num foi preciosa para mim, de um modo espe-
tempo diferente daqueles sobre os quais cial, e é a parte mais válida desse esforço,
escreve. Isso é evidente em termos como de enorme influência, publicado no livro
“primitivo”, mas também está presente Writing Culture. Antes de mais nada, deve
em termos como “camponês”, “tribos”, ficar claro que não há uma separação ní-
“subdesenvolvido” e assim por diante. tida entre a realização da investigação e
Tudo o que digo em Time and the other o registro escrito porque, quando se olha
é que devemos fazer algo a respeito dessa para o que fazemos, vê-se que escrevemos
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desde o primeiro momento. Isso, aliás, vem Fui parar, por acaso, num movimento bas-
junto com outra coisa sobre a qual venho tante incomum. Era um movimento cató-
sempre insistindo: não há separação entre lico, fundado por um missionário católico.
os dados e a teoria. Não existe uma fase em Todos os seus membros eram africanos,
que você apenas colhe os dados, apenas exceto o fundador e alguns outros padres
anota as coisas, e daí uma outra, na qual e freiras. Ele se disseminou entre trabalha-
você faz teoria sobre aquilo. A questão dores. O movimento era completamente
seguinte — ao se indagar o que é que nós urbano, moderno. Eram trabalhadores
fazemos e obter como resposta que nós nas minas ou nas estradas de ferro, ou
escrevemos — seria: “O que é a escrita? O tinham ocupações semelhantes. Não era
que é literatura?” É o momento da tomada um movimento visível exteriormente. De
de consciência da importância do fato de modo distinto a muitos outros movimentos
que, como cientistas, o que fazemos não culturais africanos, ao candomblé etc.,
é simplesmente escrever: nós escrevemos não havia um vestuário especial, não
em gêneros (isso em todos os níveis, desde havia um ritual especial. Eram pessoas
os mais básicos, como o do uso dos tempos que iam à igreja e que depois se reuniam
verbais, por exemplo). Temos um público em encontros do movimento nos quais se
de leitores. Esses dispositivos literários ensinava a doutrina.
não são acidentais, são condicionamentos Lembro-me de passar por uma espécie
da produção literária que precisamos re- de pânico na primeira ida ao campo. Acho
conhecer — e, para tal reconhecimento, a que há uma fase em que, de repente, você
teoria literária muito nos pode ajudar. se pergunta: “O que estou fazendo aqui?
O passo seguinte é a percepção de O que levarei comigo de volta?” Também
que a escrita não nos distingue dos ou- passei por isso porque eles não somente
tros. O mundo, agora, é de tal ordem que não se vestiam de nenhum modo especial,
dificilmente se encontra um lugar onde como também pareciam não ter uma orga-
não exista algum tipo de letramento e de nização que pudesse ser esquematizada.
uso da escrita no próprio povo estudado. Não havia funções e papéis associados à
Pode ser letramento ou pós-letramento. afiliação. Não havia registro de quem era
Tome-se a Amazônia, por exemplo: ou não era membro. Encontrei-me com
grupos amazônicos podem ter saltado o fundador do movimento, Placide Tem-
a escrita e passado direto para outros pels, o famoso autor de Bantu philosophy.
meios, como vídeo etc. Você pode ob- Ele fôra o fundador desse movimento,
servar isso no trabalho de Terry Turner chamado Jamaa e, na ocasião, já estava
na Amazônia, no qual fica evidente que relegado ao seu convento franciscano na
havia uma real produção de conheci- Bélgica. A primeira coisa que ele me disse
mento que dependia do uso de um meio foi: “Olha, eu não fundei o movimento. O
de comunicação compartilhado entre Jamaa não é um movimento. O Jamaa não
antropólogos e o povo estudado. tem doutrina. Nós somos a Igreja. Somos
apenas pessoas que tentam viver a Igreja.
FN: O senhor poderia falar um pouco mais Se você quiser saber mais sobre nós, vá
a respeito das ligações entre sua experi- para a África falar com as pessoas.” Ele
ência de trabalho de campo no Congo, publicara algumas coisas, mas negava a
seu trabalho com movimentos religiosos, existência do movimento que eu ia come-
e esse tipo de crítica fenomenológica do çar a estudar. Não foi um começo muito
conhecimento antropológico, na qual o bom... Encontrei a mesma atitude no povo
senhor posteriormente se envolveu? Gemah, que comecei a estudar.
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Daí o pânico que mencionei. A certa discurso muito estruturado. Havia, sim, uma
altura, disse a mim mesmo: “Quais serão doutrina, meticulosa e pedagogicamente
os dados que trarei?” Então, em meu de- organizada que visava o ensino.
sespero, preparei um questionário. Eu Foi aí que descobri também algo a que
queria obter alguma informação sobre depois dei sentido nos termos formulados
a composição desses grupos, o que era por Dell Hymes: que a comunicação se
a afiliação ao movimento, as histórias dá em eventos comunicativos, e que estes
pessoais. O questionário era bem en- eventos são definidos no interior de uma
genhoso. Tirei cópias mimeografadas e comunidade de fala — esta define o que
um dos líderes missionários chegou a é falado e para quem, define quem fala,
ajudar-me a aplicá-lo. Acho que umas dez quando, sobre o quê, e assim por diante.
cópias foram preenchidas, zelosamente, Hymes chamou-os “componentes dos
por algumas pessoas que queriam me eventos de fala”, no seu ensaio clássico
agradar. Até que veio uma delegação de 19673. São insights com que agora não
do movimento e me disse: “Você está deixamos de anuir sem muito entusiasmo,
fazendo isso do modo errado. O Jamaa mas no início essas coisas não estavam
não é algo que possa ser registrado por claras para nós. Isto é, tínhamos um
escrito.” Havia outras coisas que eu fôra modelo de comunicação do tipo clássico,
tolo o bastante para não perceber, a saber, que diz “há um falante, há um ouvinte;
que eu apresentava todos os hábitos do há um emissor e um receptor e sinais que
burocrata colonial. Eu estava distribuindo são transmitidos através de um canal e
questionários para pessoas cujas vidas ti- é assim que isso se dá”. Vem daí aquela
nham sido preencher formulários, mostrar que é, talvez, minha segunda descoberta
documentos de identidade a cada passo. mais importante nesse tipo de trabalho de
Mas eles poderiam ter deixado passar as- campo com o movimento Jamaa: que ali
sim. Eles cooperavam bastante. O único a comunicação/ensino/discurso se dava
problema — e essa, provavelmente, foi em gêneros. Havia gêneros que definiam
a minha sorte, para toda a minha vida o modo como se trocavam pensamentos
profissional — é que eles deixaram cla- pessoais. “Pensar” era o conceito central
ro: “Se você for nos estudar, vai ser nos do movimento Jamaa. Seus membros
nossos termos. Não nos seus. Nós é que não raro referiam-se a si mesmos como
vamos dizer o que é importante. Você “guardiões dos pensamentos”. Havia o
não vai ficar perguntando aquilo que ensinamento, havia o testemunho, a inter-
você pensa que é importante.” E isso pretação de sonhos etc. Escrevi um ensaio
não é uma questão que se resume ao estratégico sobre esses gêneros, intitulado
registro escrito. É uma questão que tem “Genres in an emerging tradition” [Gêne-
a ver com falar, com conversar. ros numa tradição emergente]. Um dos
Essa foi, de certo modo, minha virada gêneros que não era reconhecido em tal
para a linguagem. Ela se originou de um movimento era o da “entrevista”. Nunca
modo muito prático. Eu não tinha nada em fiz uma entrevista com o pessoal do Jamaa.
que me apoiar. Era um movimento que dizia Quando sentávamos para conversar, era
não ser um movimento. Não havia organi- quase sempre uma troca: um testemunho
zação visível. Mas havia a fala, a conversa. de algum tipo, ou um ensinamento.
Uma fala sem fim. Ensino e discussão. Na Isso teve muitas conseqüências. Uma
medida em que, desde o início, trabalhei das questões feitas na época, a pergunta
na língua local, me aprimorei na conversa óbvia, era a seguinte: “Bem, quando co-
e comecei a entender que se tratava de um meçou o movimento?”. E a resposta típica
ENTREVISTA 513

consistia, em primeiro lugar, no cumpri- publicado e foi recusado por quatro edi-
mento costumeiro que trocávamos, que toras — entre elas, as da Universidade de
podia ser usado no ensino. Então, aquele Chicago, de Cornell e Routledge. Com a
que falava diria: “O que você precisa saber ajuda de Edward Said, ele saiu, afinal, pela
é que Jamaa sempre existiu nos pensa- Columbia University Press. Agora, está na
mentos de Deus”. Eles não estavam nem segunda edição. Isso responde, em parte,
um pouco interessados em me dizer que, à sua pergunta. Na segunda edição, não
em 1953, o primeiro grupo de seguidores modifiquei uma letra sequer. Não revisei
de Tempels se reuniu, e que foi a partir de nada, exceto um trecho onde havia um
então que o movimento se desenvolveu. erro da primeira edição, uma citação de
Isso não fazia parte do ensinamento. Bossuet em que se havia omitido uma
Isso ocorreu bem no início da minha linha, ou algo assim. Foi a única corre-
carreira como etnógrafo. Fiquei, no en- ção que fiz. Escrevi um prefácio muito
tanto, profundamente impressionado com breve, no qual apresentei um esboço de
o fato de a comunicação etnográfica ser como prossegui a partir daquele ponto.
regulada pelas estruturas comunicativas Mas a segunda edição conta com uma
ou pelas regras de comunicação dentro alentada nova introdução, escrita por um
da comunidade de fala em que se traba- aluno de Stocking, um jovem historiador
lha. Esse é justamente o lado prático do da antropologia, Matti Bunzl. É a melhor
insight teórico que exploramos antes, a introdução a ser indicada, pois oferece
respeito da intersubjetividade e do com- um belo resumo do argumento do livro e,
partilhamento do tempo. Foi um lance de depois, acompanha os traços do impacto
sorte eu não ter começado com, digamos, que ele teve na antropologia.
a observação de um ritual de iniciação em Seria lisonjeiro, caso se pudesse dizer
algum grupo tribal, e ter tido pela frente que meu livro ajudou a mudar a forma
esse grupo tão consciente de si, reflexivo; como se faz etnografia, mas não creio
pessoas que me ensinaram que nosso que se deva exagerar. Pois boa etnogra-
trabalho é algo que só pode dar certo se o fia sempre se fez, e com base naqueles
fizermos com eles, e não sobre eles. princípios que vim a formular em Time
and the other. Eu não inventei a boa et-
JPO: Time and the other é um trabalho, nografia. O livro também teve um efeito
em certo sentido, revolucionário, um pon- perturbador. Vocês também devem saber
to de inflexão na produção da teoria e da que ele provavelmente é mais lido fora
história da antropologia. De lá para cá, da antropologia — por historiadores e
mais de vinte anos já se passaram. Como filósofos, assim como pelo pessoal dos
o senhor avalia a repercussão desse livro estudos culturais. Nesses outros campos,
para a antropologia que se faz hoje em ele assume outra função, porque essas
muitas partes do mundo? pessoas não o lêem com a intenção de
fazerem etnografias melhores: lêem-no
Sim, pode ser que tenha sido revolucionário, para terem uma imagem da antropologia.
mas foi planejado para sê-lo? É, acho que E esse é o lado angustiante de tudo isso:
sim! Eu era bastante jovem e, principal- ele está provavelmente entre os livros de
mente, bastante livre — pois essa é outra antropologia mais freqüentemente cita-
condição necessária. De certo modo, eu dos, mas isso não significa que seja um
estava suficientemente livre para enfren- dos mais bem lidos, ou que seja lido com
tar toda uma disciplina. O livro foi escrito atenção. Virou quase obrigatório. A idéia
há 25 anos. Levou cinco anos para ser de tempo vem à baila, e logo aparece al-
514 ENTREVISTA

guém citando Time and the other. Passa a coetaneidade é indagar-se sobre o que
ser uma espécie de reflexo condicionado. é que torna possível estar em presença
Bem, as coisas são assim, isso não é algo de outras pessoas. O que é a presença?
que esteja sob meu controle. Mas não Presença não é um dado, a não ser quan-
estou me lamentando. Eu queria afirmar do entendida como sincronia, como um
certas coisas, afirmei-as, e elas foram ouvi- termo físico. Podemos estar no mesmo
das — ainda que nem sempre nos termos tempo e lugar, todas essas coisas; mas
em que eu esperava ou imaginava... quando falamos de sincronia, não é a
presença social que estamos visando.
FN: O senhor falou sobre linguagem “Presença” depende do tempo vivido e
e sobre corpo. Poderia desenvolver um da presença de corpos, por assim dizer.
pouco a relação entre eles? Por depender da presença de corpos,
também depende de movimentos, da
Isso é algo a que temos de retornar. A lingua- movimentação, da interação.
gem foi crucial para mim mas, felizmente, Desse ponto, basta um pequeno pas-
minha visão sobre a linguagem não veio so para perceber que não se pode falar
da semiótica, da lingüística estrutural. O de tempo, sem falar de algum senso de
que me fez pensar em linguagem, e que tempo [timing], de coordenação entre os
formou minha imagem a esse respeito, diversos tempos. E aí já é possível inferir
veio de Herder e, especialmente, de quais são os passos seguintes. Quem é
Wilhelm von Humboldt, que seria algo que precisa recorrer a esse sentido de
como o meu “santo padroeiro”. Foi, por- tempo? Aqueles que têm algum tipo de
tanto — se vocês assim desejarem — uma performance, de atuação. Então começa-
tradição romântica que me orientou, mas se a perceber esse aspecto de atuação ou
que não se pode assimilar, que não pode performance na interação, nas conversas
ser apropriada por alguém — especial- e em todo tipo de comunicação verbal.
mente quando se pensa em Humboldt ou E o que viria a seguir — “a seguir” é um
em Herder — sem voltar até Kant e sem modo de dizer, pois tudo isso é concomitan-
passar tampouco por Hegel ou Marx. te, embora nem sempre as coisas tenham
Tanto Humboldt quanto Herder ti- sido compreendidas ao mesmo tempo — é
nham uma concepção bem materialista um outro aspecto da materialidade, ou da
de linguagem. Um dos modos de expres- corporalidade: é a presença de objetos.
sá-la é dizer que linguagem é trabalho, Nós transitamos em um mundo ma-
e trabalho num sentido quase marxiano: terial. Não por entre papéis e status e
transformação da matéria. O que era cen- sistemas parsonianos. Circulamos num
tral nas idéias de Herder sobre comunica- mundo material, e o que podemos saber
ção não era a visão, mas o som. E o som uns dos outros, e sobre nós mesmos,
é realidade material. Não são, portanto, é sempre mediado por realidades ma-
sinais viajando deste para aquele, mas teriais. Encaro, portanto, num sentido
um objeto comum que se forma entre o bastante literal a questão da objetividade
falante e o ouvinte. Esse objeto comum etnográfica: é graças a objetivações que
se torna objetificação do significado. Daí, somos, nós mesmos, possíveis; e são as
é um pequeno passo para nossa própria objetivações que fazem a objetividade
materialidade que é nosso corpo. possível para nós. Objetivações podem
Somemos a isso um pensamento ser objetos, mas são também textos,
seguinte, do qual me ocupei. Vejamos: documentos etc. Dependemos dessas
um outro modo de falar dessa questão de objetivações para a objetividade.
ENTREVISTA 515

Quando é concebida desse modo, a ocidental, nem tradicional, tampouco


objetividade não se opõe à subjetividade. não-ocidental ou não-tradicional, e que
Quando as opomos, ficamos com um con- poderia ser chamado, simplesmente, de
ceito trivial de subjetividade. Sim, somos cultura africana contemporânea. Contu-
todos subjetivos, todos temos nossas pró- do, naquela época, era mais estratégico
prias opiniões, e tudo mais... mas isso, em chamá-la “cultura popular” porque era o
certo sentido, é trivial. A subjetividade é modo de contrabandeá-la para o campo
a condição da objetividade, assim como dos estudos africanistas.
a objetividade o é em relação à subjeti- Às vezes, atribui-se a mim — seja a
vidade (objetividade, aqui, no sentido de meu favor ou como acusação — ter sido
objetivação e de presença de objetos). o primeiro a falar de cultura popular
Esse é um ponto importante para mim, africana, num ensaio de 1978. Não estou
cujo argumento desenvolvi num ensaio certo de que, de fato, tenha sido assim.
que escrevi alguns anos atrás, intitulado Talvez em inglês. Mas era uma situação
“A objetividade revisitada”. difícil de se imaginar agora; difícil ima-
ginar que tenha havido um tempo em
FN: Gostaria de ouvir um pouco mais que não era possível propor uma tese
sobre outro aspecto de seu trabalho, em estudos africanos sobre temas como
relacionado à cultura popular e à histo- música popular, pintura popular e coisas
riografia popular. do gênero. Enfim, todas essas outras coi-
sas que estudamos hoje em dia: roupas,
Cultura popular foi um termo que empre- esportes, meios de comunicação etc. Tudo
guei e que, de bom grado, me disponho a isso estava fora do escopo dos problemas
abandonar para que se verifique aquilo que com os quais lidávamos. Talvez sociólogos
postulei: o reconhecimento da contempora- pudessem estudá-los, ou cientistas políti-
neidade. Toda a configuração dos estudos cos, mas não antropólogos.
sobre a África, no que concerne à antropolo- Sendo assim, a introdução do con-
gia, era baseada na suposição de que havia, ceito de cultura popular, como vocês
de fato, essa coisa chamada cultura tradi- podem ver, representou a realização de
cional africana, oposta à cultura ocidental. um programa realmente teórico vindo
E, de certo modo, ambas eram concebidas da etnografia, tentando retraduzi-lo no-
como alta cultura. Como sabemos, o que é vamente para a etnografia. Examinando
próprio da tradição é que ela está sempre a minhas publicações, se pode ver que há
ponto de desaparecer (este é um dos mais sempre alternância: há a etnografia, há
antigos tropos da antropologia). Ou seja, é então o momento teórico ou histórico,
basicamente uma coisa do passado. Às ve- e novamente a etnografia. Estou bem
zes, podemos até mesmo dizer: “Ela ainda consciente disso. É também, em parte,
está muito forte” mas, nesse caso, o que por esse mesmo motivo que a etnografia
conta é a palavra “ainda”. A expectativa é é tão importante. Primeiro, penso que a
que venha a desaparecer. etnografia é o que posso fazer, é o que
No paradigma que mencionei há pou- devemos fazer; mas é também o modo de
co, relativo à idéia de mudança social, a manter certa autoridade do argumento
questão acaba virando uma coisa do tipo teórico. Vejam, não quero pregar aos
“Corra para alcançar a tradição, antes que convertidos. Meu público não são os
ela desapareça”. Como eu disse, isso nos filósofos críticos ou os teóricos críticos da
fechou os olhos para todo um universo colonização, ou o que for: meu público é
de produção cultural que não era nem composto por meus colegas. E tenho, por
516 ENTREVISTA

assim dizer, de convencê-los (essa tem sido e outros assim. O que me mobilizava era
minha sensação, recorrentemente) de que saber, por exemplo, que a maioria das fon-
devo ser levado a sério como etnógrafo. tes com as quais eu estava lidando eram
Essa, portanto, é a conexão. alemãs. Fontes bastante obscuras, numa
Mas, além dos livros teóricos e etno- língua que não era acessível a muitos. Usei
gráficos, também escrevi um ou dois sobre muitos textos. Descrevi, na introdução ao
o que se poderia tecnicamente classificar livro, meus esforços para encontrar um
como história. Um deles foi um livro de formato. Foi um trabalho enorme. Nesse
história social — se quiserem assim deno- livro, despendi tanto tempo quanto levaria
minar — do suaíli: Language and colonial para realizar todo um projeto de pesquisa
power [Linguagem e poder colonial]. Ele e produzir um livro sobre ele. O que me
surgiu da percepção de que eu precisava fez escrevê-lo, afinal, foi imaginar que ele
conhecer mais sobre história e política poderia ser uma outra crítica da antropo-
dessa língua. Como foi que uma língua da logia. Mais sábia, mais informada do que
costa leste da África consolidou-se como aquela que eu produzira antes. E mais
uma das mais difundidas línguas de traba- divertida, também.
lho da África central e o principal meio de
difusão da cultura popular? Era isso que JPO: Vou caminhar para um ponto mais
me interessava. Quando eu preparava o polêmico. Existe, hoje, na antropologia
livro, encontrei parte das informações que norte-americana uma forte e explícita
procurava em antigos relatos de viagem, atitude de crítica frente à situação co-
nos livros dos primeiros exploradores. lonial em que vivem os povos estudados
Fiquei realmente interessado por estes pela antropologia. Como o senhor pensa a
relatos. Language and colonial power foi questão da neutralidade e da objetividade
publicado originalmente em 1986, e en- na antropologia? E as conseqüências polí-
tão, em 1990, passei um ano num desses ticas do trabalho do antropólogo? Quais
institutos interdisciplinares — o Getty são suas reflexões a esse respeito?
Center — e comecei a ler os escritos dos
viajantes. Levei, no entanto, mais dez anos Não penso que exista essa coisa chama-
para publicar o livro, por conta de outras da neutralidade, por uma simples razão:
circunstâncias imprevistas. ela exigiria um lugar que estivesse acima
Ainda em 1986, eu voltei duas vezes ao das outras coisas. Posso, no entanto, ima-
Zaire. Na primeira, queria fazer algumas ginar esse lugar, e posso escrever como
verificações finais para um livro que cha- se eu o ocupasse, mas ele não existe.
mei History from below. Encontrei velhos Há sempre uma constelação política
amigos de um grupo de teatro, e eles ence- e histórica na qual nos encontramos.
naram uma peça que levou ao livro Power Estamos sempre numa situação política.
and performance. Para mim, foi então a Mas, para mim, ela não significa política
descoberta do significado da performance. partidária. Eu não gostaria de estar na
Continuei a ler, e foi só em 2000, creio, que direita; e penso que estou à esquerda.
o livro sobre os viajantes, Out of our minds, Mas essas são, de certo modo, questões
foi publicado. Uma das razões para tanta secundárias que têm a ver com a política
demora foi que tive de formar uma idéia cotidiana. Qualquer posição crítica tem
sobre o tipo de livro que ele deveria ser. Há valor, e é preciso admitir que algumas
uma infinidade de livros sobre viajantes. vezes encontramos a crítica na direita.
Há bibliotecas inteiras só sobre aqueles Percebo que sua pergunta é sobre
mais famosos, como Stanley e Livingstone algo diferente. Quer dizer: “podemos
ENTREVISTA 517

orientar nossa pesquisa e nossa escrita malmente, como especialista. O convite


de tal modo que ela tenha impacto políti- formal, eu simplesmente declinei. Disse:
co?” Em certo sentido, tudo que fazemos, “Aquilo que eu sei sobre o Jamaa está
estando politicamente envolvidos, tem publicado, ou o que está publicado é o
impacto político. Mas não é esse o ponto. que sei. Vocês podem ler e informar-se,
Um impacto político pressupõe um projeto chegar às suas próprias conclusões mas,
político. Caso se queira impacto político, eu mesmo, não tomarei parte em um pro-
o que ele visaria? Pode ser bem amplo, cesso manipulado, desde o início, e cuja
algo do tipo “libertação, emancipação, finalidade é extinguir o movimento.”
razão universal”, qualquer coisa assim. Ou Não fui tão bem-sucedido na tentati-
então, “igualdade para os oprimidos” — o va de evitar meu envolvimento informal.
que ainda é bem geral. Pode também ser Tive esta única experiência na qual
finalmente, “direitos civis para uma tribo se pode dizer que algum livro, algum
na Amazônia”, por exemplo. E aí já temos trabalho meu, produziu impacto — e
algo bem concreto. não foi uma experiência agradável. Mas
Confesso que, provavelmente, me isso — assim como várias outros aspec-
cabe a acusação de sempre ter persegui- tos — não está inteiramente em nossas
do um projeto muito geral, que significou mãos. Nos anos 1970, já havia um ramo
uma melhor compreensão deles — por- heterodoxo do Jamaa, um movimento
que eles, somos nós. Não saberia dizê-lo que se separara para constituir uma
de forma mais resumida. Perceber que igreja independente, segundo a cons-
eles somos nós é trabalho árduo. Para tituição do Zaire. Estavam nele alguns
mim, essa não é apenas uma postura de meus antigos amigos, do primeiro
hegeliana; há uma dialética aí envolvida, grupo que estudei. E aí se deu essa ou-
mas ela é um trabalho árduo. A dialética tra experiência: fui convidado para um
não é algo que funciona como mágica, serviço religioso, e eles celebraram o
pois é preciso sempre se mover entre a que é traduzido como “missa seca” (uma
totalidade e o particular, como se diz, missa sem a comunhão — por terem sido
entre a generalização e as coisas muito excomungados — mas com todo o resto
específicas. Eu diria, então, que se trata da liturgia). Chegamos à igreja, que es-
de emancipação, mas uma emancipação tava em construção — sem teto, mas com
que tem como sujeito a humanidade. fileiras de bancos e, à frente, uma mesa
Houve ocasiões em que me defrontei que servia de altar. Fui conduzido ao al-
com coisas mais específicas; por exemplo, tar, sob o qual havia uma cópia da minha
meu trabalho sobre o movimento Jamaa dissertação: Jamaa, um movimento ca-
acabou sendo usado pela hierarquia católi- rismático em Katanga. Provavelmente,
ca em tentativas de suprimir o movimento. aquilo tinha muito pouco significado.
Nos anos 1970, eles fizeram uma grande A mim, parecia dramático, mas com cer-
conferência de bispos, na qual queriam teza significava muito pouco. O jovem
chegar a algum tipo de solução final - banir secretário dessa igreja queria conhecer
a doutrina e fazer com que se retratassem meu trabalho inicial sobre Jamaa. Ele
ou se arrependessem. Por acaso, na oca- chegou a perguntar se poderiam tradu-
sião da conferência, eu estava no mesmo zir algumas partes. Dei-lhe, então, uma
local em que ela se realizou. Eu dava cópia do livro que ele trazia consigo — e
aulas em Lubumbashi, na Universidade o lugar mais seguro para guardá-lo era
Nacional do Zaire, e antes da conferência sob o altar. A razão, portanto, com toda
dos bispos, fui convidado, formal e infor- a probabilidade, era completamente
518 ENTREVISTA

prosaica. No entanto, ainda assim, isso mercado mundial, certamente através


simboliza exemplarmente o que pode do comércio de escravos e de outros
acontecer com os seus livros quando se tipos anteriores de comércio. Isso havia
afastam de você e são publicados. resultado em mudanças políticas profun-
das nessas “tribos”. As “tribos” são uma
TB: Tenho uma pergunta, dando conti- invenção colonial, certo? Só posso falar
nuidade à ultima questão de João Pache- aqui da África Central, mas a situação
co de Oliveira. Há o africanismo e há o não era inteiramente diferente do que
brasilianismo. Como isso se enquadra na aconteceu mais ao sul, e do que aconte-
sua concepção de estudos de área? ceu mais ao norte e a oeste.
Um dos processos ligados ao comér-
Nunca me defini como africanista. Sou cio de longa distância e a outros tipos de
classificado assim, mas eu não me defini- colonização — a colonização árabe, por
ria como tal. A condição de possibilidade exemplo — foi o início da formação de
de ser brasilianista é precisamente esse Estados. Isto é, constituíam-se entidades
tipo de seleção, de estabelecimento de políticas que cobriam vastos territórios.
expertise e de reputação, a escolha de Havia também Estados bem mais antigos na
uma “tribo” ou população, de uma ou África central e ocidental, conforme descre-
algumas línguas. O preço que se paga ve Vansina, em Kingdoms of the savannah
por isso é justamente uma cegueira (típi- [Reinos da savana]. Bem, nos séculos XIV,
ca) em relação à sociedade mais ampla. XV, XVI e assim por diante havia Luba, Lun-
Isso significa que com toda a expertise da, os assim chamados “impérios”.
a respeito do objeto local, que afinal é Assim, ao entrar nesse mundo desco-
parte de uma sociedade maior, há pontos nhecido, aquilo que nos é apresentado
cegos, mesmo para aquilo que se estuda aparece ora congelado na tradição, ora
especificamente. É uma questão política, num estado caótico. A segunda dessas
mas também epistemológica. descrições é a mais freqüente: todos os
africanos estavam empenhados apenas
JPO: Ontem, em sua conferência, ouvimos em matar-se uns aos outros e parte da
o relato sobre os exploradores da África. missão civilizatória seria, então, a de
A questão ali abordada seria: quanto po- pacificá-los. Dizia-se: “Eles assim fazem
demos aprender da leitura daqueles livros porque não têm governo”. Contudo, na
sobre as vidas e situações dos nativos com realidade, tratavam-se de conflitos ex-
quem tais exploradores se encontraram? tremamente complexos que tinham a ver
A minha pergunta agora seria: Para os com controle de território. Não um territó-
etnógrafos atuais, que trabalham em con- rio com fronteiras definidas, mas sim pen-
textos radicalmente diferentes daqueles, o sado com base em esferas de influência.
que a experiência dos exploradores pode- Havia esses Estados africanos, estados
ria nos ensinar sobre a situação etnográfi- imensos que nunca tiveram fronteira de-
ca e as condições de observação? finível, mas que exerciam controle sobre o
fluxo de mercadorias e, na época em que
Demorou-se a perceber que, por volta os exploradores chegaram, controle sobre
dos anos 1860 ou 1870, a África estava o fluxo de armamentos modernos.
completamente tomada por processos De tudo quanto sabemos, pode-se dizer
que, cinqüenta ou cem anos mais tar- que — e, com isso, corro o risco de ser ridi-
de, chamaríamos de modernização. Já cularizado — sem o período colonial, a Áfri-
havia algum tempo que faziam parte do ca seria bastante parecida com o que ela é
ENTREVISTA 519

hoje, isto é, teria Estados, indústria etc., mas nós. O objetivo desse livro é fazer com que
nos seus próprios termos. Havia processos tudo isso pareça exótico, estranho, novo.
se desenrolando, e uma grande parte da Algo que faça a pessoa dizer: “Ei, eu não
colonização — seria o caso da colonização tinha pensado nisso”.
belga, certamente — foi simplesmente Pensamos numa “expedição” como
para se antecipar aos árabes e também à algo que se desloca constantemente. E aí
formação política africana que se proces- você se dá conta de que, na maior parte
sava, e se apoderar dos recursos. do tempo, as expedições não saíam do
É claro que o outro lado disso foi lugar. Elas ficavam paradas porque não
procurar oportunidades de investimento. podiam avançar: ou estava chovendo, ou
Isso estava claro, desde o início. O rei Le- elas eram detidas pelas forças políticas,
opoldo II organizou a famosa Conferência ou alguma outra coisa. A maior parte do
Geográfica de Bruxelas, em 1876. Foi uma tempo era consumida em algum tipo de
espécie de criação de um fundo comum espera, e isso é absolutamente contrário
daquilo que se sabia sobre a África. Os à imagem das incursões pela África. As
exploradores foram chamados à confe- expedições são representadas como se
rência mas, desde o início, havia também fossem guiadas por um objetivo mas, na
banqueiros participando, pois tratava-se realidade, era como se elas vagassem aos
da “abertura da África”, como eles a cha- tropeções através do continente. De um
mavam. Outra expressão empregada, na erro aqui, ao próximo tropeço, ali. Elas
época, foi “a valorização da África”, que nunca teriam chegado a lugar algum se
significava torná-la algo que desse lucro. não fossem aqueles que as conduziram
Então, para voltar à sua pergunta. Em pela África — por vezes literalmente
primeiro lugar, a situação em que traba- carregando os exploradores e, invariavel-
lhamos hoje não é tão diferente. O início mente, carregando seus pertences e equi-
do período colonial e o chamado período pamentos. Essa, portanto, é a démarche
pós-colonial têm muitas semelhanças. Se do livro, e é um modo de renovar a visão
havia algo que se afigurava, de algum que temos de nossas próprias práticas.
modo, como crucial para a antropologia, Claro que há também um ponto
girando em torno do trabalho de campo, mais restrito, que é parte de meu velho
era a noção de que ele é a substituição empreendimento: uma crítica da mente
do laboratório. Mas isso não existia na- humana. Como afirmei antes, a subjetivi-
quele período anterior e, se em algum dade é condição da objetividade, e agora
momento houve tal ilusão, ela já não sou tentado a dizer: a irracionalidade é
existe agora: a ilusão de trabalhar numa condição da racionalidade na produção
situação em que se podem controlar as de conhecimento. São tantas coisas que
variáveis. devem acontecer para que se produza o
O que um livro como Out of our minds conhecimento e que não é possível subsu-
faz é tornar estranho algo que nos é extre- mir aos cânones da racionalidade... E, por
mamente familiar. Talvez nossa geração outro lado, pode-se operar com cânones
ainda leia essas narrações dos explorado- de racionalidade e não produzir nenhum
res, mesmo que apenas de forma indireta. conhecimento: apenas respostas para as
Há quem possa não tomar conhecimento próprias perguntas. Era isso que um de
de Stanley e Livingstone e todo esse pesso- meus professores, David Schneider, cos-
al? Seria muito difícil ignorá-los. E temos, tumava dizer dos questionários...
além disso, as imagens das ilustrações, dos
filmes etc. — algo muitíssimo familiar para
520 ENTREVISTA

Notas

1
[N. T.] Orquestra de xilofones, metalofones e tambores.

2
[N. T.]: Fabian utiliza a expressão “these India wallahs” emprestada do hindi,
que se usa no inglês informal para referir alguém a alguma ocupação.

3
Hymes, Dell. 1967. “Models of the interaction of language and social setting”.
Journal of Social Issues, 23(2):8-28.

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