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ENTREVISTA
A PRÁTICA ETNOGRÁFICA COMO
COMPARTILHAMENTO DO TEMPO E
COMO OBJETIVAÇÃO
Johannes Fabian
o primeiro ano, são feitos os exames preli- güística, especialmente na forma como
minares e você se torna um doutorando. Dell Hymes a concebeu. Meu objetivo
O próximo passo é o trabalho de campo; concreto era o de fazer um estudo dos
você volta então do trabalho de campo, modos segundo os quais o suaíli fun-
obtém o título e vai para o seu primeiro cionava como língua de trabalho em um
emprego. Meu primeiro emprego foi contexto moderno, industrial. Trabalhei
na Northwestern University, na qual muito nisso, e tenho uma documentação
cheguei alguns anos após a morte de extensa baseada em minha observação
Melville Herskovits. Mas ainda havia numa fábrica de zinco da área minerado-
um programa de estudos africanos bas- ra e em alguns outros contextos. Havia,
tante forte, e um forte departamento. por exemplo, uma pequena fábrica de
Meu primeiro trabalho de campo, entre móveis de estilo neo-africano que visitei.
1966 e 1967, foi sobre um movimento Era um trabalho de tipo mais artesanal.
religioso em Katanga, região sudeste E foi nesse período que comecei a des-
da República Democrática do Congo, cobrir coisas que me levaram ao trabalho
como então era chamada (voltando a com o teatro e com a pintura populares,
sê-lo mais recentemente). A maior parte dos quais me ocupei posteriormente.
de meu trabalho coincidiu com o tempo Quando voltei aos E.U.A., fui para
em que o país se chamava Zaire. Isso é outro emprego — na Wesleyan Univer-
importante, pois Zaire não era apenas sity, numa pequena localidade na Nova
outro nome — era também uma outra Inglaterra — em um departamento de
realidade. Foi nesse tempo que, assim graduação em antropologia que, embora
penso, algo se passou, a saber: essa pequeno, era muito bom e influente. Foi
antiga colônia tornou-se uma nação e também nesse tempo que a universidade
desenvolveu uma consciência nacional. descobriu a world music. Até quanto sei, foi
Mobutu era um ditador e um tirano, na Wesleyan que se empregou o termo pela
como muitos outros, mas era um arguto primeira vez. Havia um departamento de
manipulador de símbolos culturais de música étnica que incluía alguns músicos
identidade. Ele tinha uma política de modernos — John Cage, por exemplo, esta-
“autenticidade”, que impôs acelerada- va por lá, assim como Albin Lucier e alguns
mente e que o povo assimilou com algo outros nomes — mas no qual também da-
a mais do que um grão de sal, com muita vam aulas músicos indianos, africanos,
ironia e paródia. No entanto, o ditador japoneses etc. Era bastante animado.
conseguiu criar certo tipo de sentimen- Era o que ainda poderíamos chamar de
to nacional, utilizando-se inclusive de “etnomusicologia”, mas agora num outro
Lumumba como herói nacional. Digo plano. Não era um estudo que se debru-
“utilizando-se”, porque é sabido com çava sobre tipos étnicos de música, mas
certeza (historicamente) que Mobutu um confrontamento “olhos-nos-olhos”
estava entre aqueles envolvidos — ou das outras músicas com a ocidental.
que prepararam (não diretamente, até Era um cenário animado. Tínhamos um
quanto se sabe) — naquilo que culminou gamelão1 indonésio “de nível”, segundo
no assassinato de Lumumba, o mesmo os próprios padrões indonésios. Havia
homem posteriormente declarado herói toda uma sub-cultura entre os estudan-
nacional pelo referido ditador. tes: pertencer a essa orquestra e nela
Minha segunda pesquisa foi sobre tocar não era pouca coisa. Duas vezes
trabalho e linguagem. Na época, eu es- por ano, tínhamos apresentações do que
tava bastante influenciado pela sociolin- se chama wayang, ou teatro de sombras
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javanês e balinês. Isso foi entre 1975 e Bem, quando comecei em Chicago, es-
o final de 1980. távamos provavelmente no período mais
Em 1980, fui para Amsterdã, onde fui intenso do que hoje chamaríamos antro-
designado para a cadeira do que então se pologia moderna. Havia uma antropologia
chamava “antropologia cultural e sociolo- pós-guerra na América do Norte que
gia não-ocidental”, sendo que a segunda surgira do esforço de guerra. Boa parte do
das atribuições era algo profundamente tipo de teoria que deu naquilo que mais
desconcertante para mim e também para tarde viríamos a chamar de “culturalismo”
outros, pois jamais pudemos explicar o não foi, na realidade, inventada, mas
que isso realmente queria dizer. Mas, de desenvolvida como parte da contribuição
fato, o que realmente espelhava era o fato de antropólogos para a vitória na Segun-
de a etnologia holandesa acreditar que a da Guerra Mundial — de pessoas como
antropologia tinha de viajar no vagão dos Margaret Mead e Gregory Bateson. Daí
estudos do desenvolvimento. Ensinei na surgiram coisas como o famoso projeto
Universidade de Amsterdã até me apo- Harvard, do qual Clifford Geertz partici-
sentar — o que se deu em várias etapas. pou. A guerra estava chegando ao fim e a
No mês passado, obtive finalmente o antropologia vinha se consolidando. Havia
status de professor emérito. Essa, enfim, uma explosão demográfica de estudantes.
é a minha trajetória pública. Até então, a antropologia tinha um círculo
restrito de praticantes na Costa Oeste e em
TB: E sua trajetória particular? Columbia, com Berkeley e a Universidade
da Califórnia em Los Angeles, e Michigan
Antes da etnologia, estudei filosofia e e Chicago, talvez.
teologia. Minha entrada profissional na Mas agora a disciplina tinha âmbito
antropologia deu-se através do Instituto nacional e, de certo modo, tornara-se
Anthropos. Eu pertencia a uma ordem uma profissão. Sempre interpretei o que
religiosa que ainda mantém tal instituto aconteceu a partir de então — a profis-
e sua revista. Ele foi fundado por Wilhelm sionalização da antropologia — como
Schmidt e, na ocasião, estava se mo- resposta àquela explosão demográfica.
dernizando. Enviou muitos de nós para Parte da profissionalização dava ênfase,
estudarmos nas melhores instituições do crescentemente, à unificação de para-
mundo; assim, alguns de meus colegas e digmas, às teorias. Nesse mesmo período e
amigos estudaram em Paris, na Sorbonne, pouco tempo depois, a atividade de escre-
outros foram para Oxford, e eu fui manda- ver livros-texto de antropologia viveu seu
do para Chicago. E houve também uma auge. Muitas coisas desse tipo foram pu-
espécie de vínculo pessoal com a etnolo- blicadas em 1968 que, como sabemos, foi
gia. Eu a conheci ainda menino, porque um ano de grande significado político.
Paul Schebesta era irmão de meu avô: ele Ao mesmo tempo, também assistí-
é meu tio-avô. A etnologia sempre esteve amos ao nascer da profissão de histo-
na família. Mas eu não diria que fui para riador da antropologia. Quando eu era
a antropologia por causa dele. É difícil estudante, ainda em Chicago, George
dizer o que me levou a fazê-lo, embora Stocking começou como jovem professor.
certamente Schebesta tenha sido um fator Ele foi algo como o primeiro historiador
para isso. E aqui estou! profissional da antropologia em um
grande departamento universitário. O
JPO: Quais foram as suas principais in- paradigma reinante em Chicago era o
fluências intelectuais? estrutural-funcionalismo e sua figura
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central, Talcott Parsons. Tudo era pen- ele veio junto com Terrence Turner. Era
sado em termos de sistemas. De fato, no um pacote: Vic Turner, Terry Turner e
meu tempo de estudante, o programa em Nancy Munn vieram juntos. E eu o co-
Chicago contemplava os quatro campos nheci no famoso seminário permanente
usuais, mas estava dividido em dois ramos. que se realizava na casa dele: uma vez
Um deles era chamado “sistemas” e o ou- por semana eles se reuniam, debatiam e
tro, “percursos humanos” [human career]. bebiam muito vinho. Mas não posso dizer
O primeiro incluía antropologia cultural, que ele tenha me influenciado diretamen-
lingüística e antropologia social, ao passo te. Ele não foi, em nenhum sentido, meu
que o segundo, evolução humana, homi- professor. De Balandier, tomei conheci-
nização, genética básica, pré-história e mento quando me preparava para estudar
arqueologia pré-clássica. os movimentos religiosos na África. Ele
Por acaso, na época em que eu estava foi um dos primeiros a produzir um traba-
em Chicago, coisas importantes aconte- lho importante sobre o assunto. Quando
ceram. A nova arqueologia foi inventada o conheci, ele estava na Sorbonne.
por Lewis Binford. Havia Clark Howell,
no campo da hominização; havia Brai- FN: O senhor poderia falar um pouco
dwood e Bob Adams, que posteriormente mais sobre seu interesse pela África?
chefiou a Smithsonian Institution. Eles As tradições americana e alemã são
trabalhavam com arqueologia do Oriente diferentes nesse ponto. Há alguma sin-
Próximo, com o surgimento da cultura, gularidade nas questões que o senhor
e assim por diante. De outro lado, havia levantou?
Geertz, Schneider, Fred Eggan, repre-
sentando algo assim como uma visão Não creio que tenha havido uma traje-
mais antiga das coisas. E havia também tória reta, um percurso direto. Comecei
o grupo dos estudiosos de assuntos da Ín- na velha escola histórico-cultural, sem
dia2: McKim Merriot e Milton Singer. Meu estar convencido de que fosse uma teo-
orientador de doutorado era Lloyd Fallers, ria viável. Fui então para Chicago, mas
mas ele morreu muito jovem. A pessoa com quase imediatamente me preveni contra
quem mantive contato e por quem tenho o estrutural-funcionalismo.
grande admiração é Paul Friedrich, que É preciso estar consciente de que
não é dos mais conhecidos antropólogos aquele fervor, aquele élan profissiona-
norte-americanos, mas um gigante, na lizante, teve um alto preço, pois tornou
minha opinião. Ele cobriu um espectro extremamente estreita a nossa visão.
vastíssimo de estudos. É um renomado Por exemplo, a história foi riscada fora,
lingüista (tem, por exemplo, um artigo quase completamente. Quando já não
clássico sobre pronomes russos), poeta era possível ignorar esse fato, quando
e intérprete de poesia; é também um tiveram de reconhecê-lo, trouxeram Ge-
historiador social reconhecido por seu orge Stocking e Bernard Cohn. Na oca-
trabalho sobre o México. sião, Bernard Cohn veio como professor
temporário, contratado como etno-histo-
JPO: Alguma relação com os africanis- riador. Isto é, quase inofensivo, mantido
tas, como Victor Turner ou Balandier, por numa posição marginal. Não era um dos
exemplo? “pesos-pesados” no departamento de
então, embora hoje reconheçamos que
Vic Turner veio quando eu já estava quase é um gigante. É uma das pessoas mais
terminando a pós-graduação. A propósito, influentes na elaboração de questões
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desde o primeiro momento. Isso, aliás, vem Fui parar, por acaso, num movimento bas-
junto com outra coisa sobre a qual venho tante incomum. Era um movimento cató-
sempre insistindo: não há separação entre lico, fundado por um missionário católico.
os dados e a teoria. Não existe uma fase em Todos os seus membros eram africanos,
que você apenas colhe os dados, apenas exceto o fundador e alguns outros padres
anota as coisas, e daí uma outra, na qual e freiras. Ele se disseminou entre trabalha-
você faz teoria sobre aquilo. A questão dores. O movimento era completamente
seguinte — ao se indagar o que é que nós urbano, moderno. Eram trabalhadores
fazemos e obter como resposta que nós nas minas ou nas estradas de ferro, ou
escrevemos — seria: “O que é a escrita? O tinham ocupações semelhantes. Não era
que é literatura?” É o momento da tomada um movimento visível exteriormente. De
de consciência da importância do fato de modo distinto a muitos outros movimentos
que, como cientistas, o que fazemos não culturais africanos, ao candomblé etc.,
é simplesmente escrever: nós escrevemos não havia um vestuário especial, não
em gêneros (isso em todos os níveis, desde havia um ritual especial. Eram pessoas
os mais básicos, como o do uso dos tempos que iam à igreja e que depois se reuniam
verbais, por exemplo). Temos um público em encontros do movimento nos quais se
de leitores. Esses dispositivos literários ensinava a doutrina.
não são acidentais, são condicionamentos Lembro-me de passar por uma espécie
da produção literária que precisamos re- de pânico na primeira ida ao campo. Acho
conhecer — e, para tal reconhecimento, a que há uma fase em que, de repente, você
teoria literária muito nos pode ajudar. se pergunta: “O que estou fazendo aqui?
O passo seguinte é a percepção de O que levarei comigo de volta?” Também
que a escrita não nos distingue dos ou- passei por isso porque eles não somente
tros. O mundo, agora, é de tal ordem que não se vestiam de nenhum modo especial,
dificilmente se encontra um lugar onde como também pareciam não ter uma orga-
não exista algum tipo de letramento e de nização que pudesse ser esquematizada.
uso da escrita no próprio povo estudado. Não havia funções e papéis associados à
Pode ser letramento ou pós-letramento. afiliação. Não havia registro de quem era
Tome-se a Amazônia, por exemplo: ou não era membro. Encontrei-me com
grupos amazônicos podem ter saltado o fundador do movimento, Placide Tem-
a escrita e passado direto para outros pels, o famoso autor de Bantu philosophy.
meios, como vídeo etc. Você pode ob- Ele fôra o fundador desse movimento,
servar isso no trabalho de Terry Turner chamado Jamaa e, na ocasião, já estava
na Amazônia, no qual fica evidente que relegado ao seu convento franciscano na
havia uma real produção de conheci- Bélgica. A primeira coisa que ele me disse
mento que dependia do uso de um meio foi: “Olha, eu não fundei o movimento. O
de comunicação compartilhado entre Jamaa não é um movimento. O Jamaa não
antropólogos e o povo estudado. tem doutrina. Nós somos a Igreja. Somos
apenas pessoas que tentam viver a Igreja.
FN: O senhor poderia falar um pouco mais Se você quiser saber mais sobre nós, vá
a respeito das ligações entre sua experi- para a África falar com as pessoas.” Ele
ência de trabalho de campo no Congo, publicara algumas coisas, mas negava a
seu trabalho com movimentos religiosos, existência do movimento que eu ia come-
e esse tipo de crítica fenomenológica do çar a estudar. Não foi um começo muito
conhecimento antropológico, na qual o bom... Encontrei a mesma atitude no povo
senhor posteriormente se envolveu? Gemah, que comecei a estudar.
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Daí o pânico que mencionei. A certa discurso muito estruturado. Havia, sim, uma
altura, disse a mim mesmo: “Quais serão doutrina, meticulosa e pedagogicamente
os dados que trarei?” Então, em meu de- organizada que visava o ensino.
sespero, preparei um questionário. Eu Foi aí que descobri também algo a que
queria obter alguma informação sobre depois dei sentido nos termos formulados
a composição desses grupos, o que era por Dell Hymes: que a comunicação se
a afiliação ao movimento, as histórias dá em eventos comunicativos, e que estes
pessoais. O questionário era bem en- eventos são definidos no interior de uma
genhoso. Tirei cópias mimeografadas e comunidade de fala — esta define o que
um dos líderes missionários chegou a é falado e para quem, define quem fala,
ajudar-me a aplicá-lo. Acho que umas dez quando, sobre o quê, e assim por diante.
cópias foram preenchidas, zelosamente, Hymes chamou-os “componentes dos
por algumas pessoas que queriam me eventos de fala”, no seu ensaio clássico
agradar. Até que veio uma delegação de 19673. São insights com que agora não
do movimento e me disse: “Você está deixamos de anuir sem muito entusiasmo,
fazendo isso do modo errado. O Jamaa mas no início essas coisas não estavam
não é algo que possa ser registrado por claras para nós. Isto é, tínhamos um
escrito.” Havia outras coisas que eu fôra modelo de comunicação do tipo clássico,
tolo o bastante para não perceber, a saber, que diz “há um falante, há um ouvinte;
que eu apresentava todos os hábitos do há um emissor e um receptor e sinais que
burocrata colonial. Eu estava distribuindo são transmitidos através de um canal e
questionários para pessoas cujas vidas ti- é assim que isso se dá”. Vem daí aquela
nham sido preencher formulários, mostrar que é, talvez, minha segunda descoberta
documentos de identidade a cada passo. mais importante nesse tipo de trabalho de
Mas eles poderiam ter deixado passar as- campo com o movimento Jamaa: que ali
sim. Eles cooperavam bastante. O único a comunicação/ensino/discurso se dava
problema — e essa, provavelmente, foi em gêneros. Havia gêneros que definiam
a minha sorte, para toda a minha vida o modo como se trocavam pensamentos
profissional — é que eles deixaram cla- pessoais. “Pensar” era o conceito central
ro: “Se você for nos estudar, vai ser nos do movimento Jamaa. Seus membros
nossos termos. Não nos seus. Nós é que não raro referiam-se a si mesmos como
vamos dizer o que é importante. Você “guardiões dos pensamentos”. Havia o
não vai ficar perguntando aquilo que ensinamento, havia o testemunho, a inter-
você pensa que é importante.” E isso pretação de sonhos etc. Escrevi um ensaio
não é uma questão que se resume ao estratégico sobre esses gêneros, intitulado
registro escrito. É uma questão que tem “Genres in an emerging tradition” [Gêne-
a ver com falar, com conversar. ros numa tradição emergente]. Um dos
Essa foi, de certo modo, minha virada gêneros que não era reconhecido em tal
para a linguagem. Ela se originou de um movimento era o da “entrevista”. Nunca
modo muito prático. Eu não tinha nada em fiz uma entrevista com o pessoal do Jamaa.
que me apoiar. Era um movimento que dizia Quando sentávamos para conversar, era
não ser um movimento. Não havia organi- quase sempre uma troca: um testemunho
zação visível. Mas havia a fala, a conversa. de algum tipo, ou um ensinamento.
Uma fala sem fim. Ensino e discussão. Na Isso teve muitas conseqüências. Uma
medida em que, desde o início, trabalhei das questões feitas na época, a pergunta
na língua local, me aprimorei na conversa óbvia, era a seguinte: “Bem, quando co-
e comecei a entender que se tratava de um meçou o movimento?”. E a resposta típica
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consistia, em primeiro lugar, no cumpri- publicado e foi recusado por quatro edi-
mento costumeiro que trocávamos, que toras — entre elas, as da Universidade de
podia ser usado no ensino. Então, aquele Chicago, de Cornell e Routledge. Com a
que falava diria: “O que você precisa saber ajuda de Edward Said, ele saiu, afinal, pela
é que Jamaa sempre existiu nos pensa- Columbia University Press. Agora, está na
mentos de Deus”. Eles não estavam nem segunda edição. Isso responde, em parte,
um pouco interessados em me dizer que, à sua pergunta. Na segunda edição, não
em 1953, o primeiro grupo de seguidores modifiquei uma letra sequer. Não revisei
de Tempels se reuniu, e que foi a partir de nada, exceto um trecho onde havia um
então que o movimento se desenvolveu. erro da primeira edição, uma citação de
Isso não fazia parte do ensinamento. Bossuet em que se havia omitido uma
Isso ocorreu bem no início da minha linha, ou algo assim. Foi a única corre-
carreira como etnógrafo. Fiquei, no en- ção que fiz. Escrevi um prefácio muito
tanto, profundamente impressionado com breve, no qual apresentei um esboço de
o fato de a comunicação etnográfica ser como prossegui a partir daquele ponto.
regulada pelas estruturas comunicativas Mas a segunda edição conta com uma
ou pelas regras de comunicação dentro alentada nova introdução, escrita por um
da comunidade de fala em que se traba- aluno de Stocking, um jovem historiador
lha. Esse é justamente o lado prático do da antropologia, Matti Bunzl. É a melhor
insight teórico que exploramos antes, a introdução a ser indicada, pois oferece
respeito da intersubjetividade e do com- um belo resumo do argumento do livro e,
partilhamento do tempo. Foi um lance de depois, acompanha os traços do impacto
sorte eu não ter começado com, digamos, que ele teve na antropologia.
a observação de um ritual de iniciação em Seria lisonjeiro, caso se pudesse dizer
algum grupo tribal, e ter tido pela frente que meu livro ajudou a mudar a forma
esse grupo tão consciente de si, reflexivo; como se faz etnografia, mas não creio
pessoas que me ensinaram que nosso que se deva exagerar. Pois boa etnogra-
trabalho é algo que só pode dar certo se o fia sempre se fez, e com base naqueles
fizermos com eles, e não sobre eles. princípios que vim a formular em Time
and the other. Eu não inventei a boa et-
JPO: Time and the other é um trabalho, nografia. O livro também teve um efeito
em certo sentido, revolucionário, um pon- perturbador. Vocês também devem saber
to de inflexão na produção da teoria e da que ele provavelmente é mais lido fora
história da antropologia. De lá para cá, da antropologia — por historiadores e
mais de vinte anos já se passaram. Como filósofos, assim como pelo pessoal dos
o senhor avalia a repercussão desse livro estudos culturais. Nesses outros campos,
para a antropologia que se faz hoje em ele assume outra função, porque essas
muitas partes do mundo? pessoas não o lêem com a intenção de
fazerem etnografias melhores: lêem-no
Sim, pode ser que tenha sido revolucionário, para terem uma imagem da antropologia.
mas foi planejado para sê-lo? É, acho que E esse é o lado angustiante de tudo isso:
sim! Eu era bastante jovem e, principal- ele está provavelmente entre os livros de
mente, bastante livre — pois essa é outra antropologia mais freqüentemente cita-
condição necessária. De certo modo, eu dos, mas isso não significa que seja um
estava suficientemente livre para enfren- dos mais bem lidos, ou que seja lido com
tar toda uma disciplina. O livro foi escrito atenção. Virou quase obrigatório. A idéia
há 25 anos. Levou cinco anos para ser de tempo vem à baila, e logo aparece al-
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guém citando Time and the other. Passa a coetaneidade é indagar-se sobre o que
ser uma espécie de reflexo condicionado. é que torna possível estar em presença
Bem, as coisas são assim, isso não é algo de outras pessoas. O que é a presença?
que esteja sob meu controle. Mas não Presença não é um dado, a não ser quan-
estou me lamentando. Eu queria afirmar do entendida como sincronia, como um
certas coisas, afirmei-as, e elas foram ouvi- termo físico. Podemos estar no mesmo
das — ainda que nem sempre nos termos tempo e lugar, todas essas coisas; mas
em que eu esperava ou imaginava... quando falamos de sincronia, não é a
presença social que estamos visando.
FN: O senhor falou sobre linguagem “Presença” depende do tempo vivido e
e sobre corpo. Poderia desenvolver um da presença de corpos, por assim dizer.
pouco a relação entre eles? Por depender da presença de corpos,
também depende de movimentos, da
Isso é algo a que temos de retornar. A lingua- movimentação, da interação.
gem foi crucial para mim mas, felizmente, Desse ponto, basta um pequeno pas-
minha visão sobre a linguagem não veio so para perceber que não se pode falar
da semiótica, da lingüística estrutural. O de tempo, sem falar de algum senso de
que me fez pensar em linguagem, e que tempo [timing], de coordenação entre os
formou minha imagem a esse respeito, diversos tempos. E aí já é possível inferir
veio de Herder e, especialmente, de quais são os passos seguintes. Quem é
Wilhelm von Humboldt, que seria algo que precisa recorrer a esse sentido de
como o meu “santo padroeiro”. Foi, por- tempo? Aqueles que têm algum tipo de
tanto — se vocês assim desejarem — uma performance, de atuação. Então começa-
tradição romântica que me orientou, mas se a perceber esse aspecto de atuação ou
que não se pode assimilar, que não pode performance na interação, nas conversas
ser apropriada por alguém — especial- e em todo tipo de comunicação verbal.
mente quando se pensa em Humboldt ou E o que viria a seguir — “a seguir” é um
em Herder — sem voltar até Kant e sem modo de dizer, pois tudo isso é concomitan-
passar tampouco por Hegel ou Marx. te, embora nem sempre as coisas tenham
Tanto Humboldt quanto Herder ti- sido compreendidas ao mesmo tempo — é
nham uma concepção bem materialista um outro aspecto da materialidade, ou da
de linguagem. Um dos modos de expres- corporalidade: é a presença de objetos.
sá-la é dizer que linguagem é trabalho, Nós transitamos em um mundo ma-
e trabalho num sentido quase marxiano: terial. Não por entre papéis e status e
transformação da matéria. O que era cen- sistemas parsonianos. Circulamos num
tral nas idéias de Herder sobre comunica- mundo material, e o que podemos saber
ção não era a visão, mas o som. E o som uns dos outros, e sobre nós mesmos,
é realidade material. Não são, portanto, é sempre mediado por realidades ma-
sinais viajando deste para aquele, mas teriais. Encaro, portanto, num sentido
um objeto comum que se forma entre o bastante literal a questão da objetividade
falante e o ouvinte. Esse objeto comum etnográfica: é graças a objetivações que
se torna objetificação do significado. Daí, somos, nós mesmos, possíveis; e são as
é um pequeno passo para nossa própria objetivações que fazem a objetividade
materialidade que é nosso corpo. possível para nós. Objetivações podem
Somemos a isso um pensamento ser objetos, mas são também textos,
seguinte, do qual me ocupei. Vejamos: documentos etc. Dependemos dessas
um outro modo de falar dessa questão de objetivações para a objetividade.
ENTREVISTA 515
assim dizer, de convencê-los (essa tem sido e outros assim. O que me mobilizava era
minha sensação, recorrentemente) de que saber, por exemplo, que a maioria das fon-
devo ser levado a sério como etnógrafo. tes com as quais eu estava lidando eram
Essa, portanto, é a conexão. alemãs. Fontes bastante obscuras, numa
Mas, além dos livros teóricos e etno- língua que não era acessível a muitos. Usei
gráficos, também escrevi um ou dois sobre muitos textos. Descrevi, na introdução ao
o que se poderia tecnicamente classificar livro, meus esforços para encontrar um
como história. Um deles foi um livro de formato. Foi um trabalho enorme. Nesse
história social — se quiserem assim deno- livro, despendi tanto tempo quanto levaria
minar — do suaíli: Language and colonial para realizar todo um projeto de pesquisa
power [Linguagem e poder colonial]. Ele e produzir um livro sobre ele. O que me
surgiu da percepção de que eu precisava fez escrevê-lo, afinal, foi imaginar que ele
conhecer mais sobre história e política poderia ser uma outra crítica da antropo-
dessa língua. Como foi que uma língua da logia. Mais sábia, mais informada do que
costa leste da África consolidou-se como aquela que eu produzira antes. E mais
uma das mais difundidas línguas de traba- divertida, também.
lho da África central e o principal meio de
difusão da cultura popular? Era isso que JPO: Vou caminhar para um ponto mais
me interessava. Quando eu preparava o polêmico. Existe, hoje, na antropologia
livro, encontrei parte das informações que norte-americana uma forte e explícita
procurava em antigos relatos de viagem, atitude de crítica frente à situação co-
nos livros dos primeiros exploradores. lonial em que vivem os povos estudados
Fiquei realmente interessado por estes pela antropologia. Como o senhor pensa a
relatos. Language and colonial power foi questão da neutralidade e da objetividade
publicado originalmente em 1986, e en- na antropologia? E as conseqüências polí-
tão, em 1990, passei um ano num desses ticas do trabalho do antropólogo? Quais
institutos interdisciplinares — o Getty são suas reflexões a esse respeito?
Center — e comecei a ler os escritos dos
viajantes. Levei, no entanto, mais dez anos Não penso que exista essa coisa chama-
para publicar o livro, por conta de outras da neutralidade, por uma simples razão:
circunstâncias imprevistas. ela exigiria um lugar que estivesse acima
Ainda em 1986, eu voltei duas vezes ao das outras coisas. Posso, no entanto, ima-
Zaire. Na primeira, queria fazer algumas ginar esse lugar, e posso escrever como
verificações finais para um livro que cha- se eu o ocupasse, mas ele não existe.
mei History from below. Encontrei velhos Há sempre uma constelação política
amigos de um grupo de teatro, e eles ence- e histórica na qual nos encontramos.
naram uma peça que levou ao livro Power Estamos sempre numa situação política.
and performance. Para mim, foi então a Mas, para mim, ela não significa política
descoberta do significado da performance. partidária. Eu não gostaria de estar na
Continuei a ler, e foi só em 2000, creio, que direita; e penso que estou à esquerda.
o livro sobre os viajantes, Out of our minds, Mas essas são, de certo modo, questões
foi publicado. Uma das razões para tanta secundárias que têm a ver com a política
demora foi que tive de formar uma idéia cotidiana. Qualquer posição crítica tem
sobre o tipo de livro que ele deveria ser. Há valor, e é preciso admitir que algumas
uma infinidade de livros sobre viajantes. vezes encontramos a crítica na direita.
Há bibliotecas inteiras só sobre aqueles Percebo que sua pergunta é sobre
mais famosos, como Stanley e Livingstone algo diferente. Quer dizer: “podemos
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hoje, isto é, teria Estados, indústria etc., mas nós. O objetivo desse livro é fazer com que
nos seus próprios termos. Havia processos tudo isso pareça exótico, estranho, novo.
se desenrolando, e uma grande parte da Algo que faça a pessoa dizer: “Ei, eu não
colonização — seria o caso da colonização tinha pensado nisso”.
belga, certamente — foi simplesmente Pensamos numa “expedição” como
para se antecipar aos árabes e também à algo que se desloca constantemente. E aí
formação política africana que se proces- você se dá conta de que, na maior parte
sava, e se apoderar dos recursos. do tempo, as expedições não saíam do
É claro que o outro lado disso foi lugar. Elas ficavam paradas porque não
procurar oportunidades de investimento. podiam avançar: ou estava chovendo, ou
Isso estava claro, desde o início. O rei Le- elas eram detidas pelas forças políticas,
opoldo II organizou a famosa Conferência ou alguma outra coisa. A maior parte do
Geográfica de Bruxelas, em 1876. Foi uma tempo era consumida em algum tipo de
espécie de criação de um fundo comum espera, e isso é absolutamente contrário
daquilo que se sabia sobre a África. Os à imagem das incursões pela África. As
exploradores foram chamados à confe- expedições são representadas como se
rência mas, desde o início, havia também fossem guiadas por um objetivo mas, na
banqueiros participando, pois tratava-se realidade, era como se elas vagassem aos
da “abertura da África”, como eles a cha- tropeções através do continente. De um
mavam. Outra expressão empregada, na erro aqui, ao próximo tropeço, ali. Elas
época, foi “a valorização da África”, que nunca teriam chegado a lugar algum se
significava torná-la algo que desse lucro. não fossem aqueles que as conduziram
Então, para voltar à sua pergunta. Em pela África — por vezes literalmente
primeiro lugar, a situação em que traba- carregando os exploradores e, invariavel-
lhamos hoje não é tão diferente. O início mente, carregando seus pertences e equi-
do período colonial e o chamado período pamentos. Essa, portanto, é a démarche
pós-colonial têm muitas semelhanças. Se do livro, e é um modo de renovar a visão
havia algo que se afigurava, de algum que temos de nossas próprias práticas.
modo, como crucial para a antropologia, Claro que há também um ponto
girando em torno do trabalho de campo, mais restrito, que é parte de meu velho
era a noção de que ele é a substituição empreendimento: uma crítica da mente
do laboratório. Mas isso não existia na- humana. Como afirmei antes, a subjetivi-
quele período anterior e, se em algum dade é condição da objetividade, e agora
momento houve tal ilusão, ela já não sou tentado a dizer: a irracionalidade é
existe agora: a ilusão de trabalhar numa condição da racionalidade na produção
situação em que se podem controlar as de conhecimento. São tantas coisas que
variáveis. devem acontecer para que se produza o
O que um livro como Out of our minds conhecimento e que não é possível subsu-
faz é tornar estranho algo que nos é extre- mir aos cânones da racionalidade... E, por
mamente familiar. Talvez nossa geração outro lado, pode-se operar com cânones
ainda leia essas narrações dos explorado- de racionalidade e não produzir nenhum
res, mesmo que apenas de forma indireta. conhecimento: apenas respostas para as
Há quem possa não tomar conhecimento próprias perguntas. Era isso que um de
de Stanley e Livingstone e todo esse pesso- meus professores, David Schneider, cos-
al? Seria muito difícil ignorá-los. E temos, tumava dizer dos questionários...
além disso, as imagens das ilustrações, dos
filmes etc. — algo muitíssimo familiar para
520 ENTREVISTA
Notas
1
[N. T.] Orquestra de xilofones, metalofones e tambores.
2
[N. T.]: Fabian utiliza a expressão “these India wallahs” emprestada do hindi,
que se usa no inglês informal para referir alguém a alguma ocupação.
3
Hymes, Dell. 1967. “Models of the interaction of language and social setting”.
Journal of Social Issues, 23(2):8-28.