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Dançar: Livros Abertos

(entrevista com Georges Didi-Huberman)

MURIEL PIC – Nos teus trabalhos, DESEJO é uma palavra que aparece
seguidamente...

Michel de Certeau é sem dúvida um dos historiadores que melhor pensou


as relações entre história e psicanálise. Do teu lado, tu propuseste pensar
o inconsciente da história. Na esteira das experiências iconológicas(de
significados) de Aby Warburg. Carlo Ginsburg parece refutar esta
abordagem freudiana de Warburg numa nota a teu respeito. O tempo
freudiano e’ particularmente adequado para pensar o tempo das imagens
segundo você? Eu penso aqui também nos teus trabalhos mais antigos sob
a noção de “figurabilidade”(Darstellbarkeit) noção pela qual Freud designa
o trabalho do sonho que transforma uma palavra numa imagem (o
engodo- tromperie- numa tromba de elefante)isto que coloca problemas
em relação ao arbitrário do signo. Então, minha questão será finalmente a
seguinte: como, segundo você, o desejo que nos engaja quotidianamente
nas imagens, as fabrica, age em nós ou nos faz agir apesar de tudo, se
inscreve na história?

G.D.Huberman- Que a história seja uma história de desejos- inclusive


inconscientes- me parece a evidencia, e as imagens do mesmo modo que
as palavras e os gestos humanos estão aí (existem)para veiculá-lo. Que as
imagens sejam uma questão da psique – também do inconsciente- me
parece também evidente. Uma antropologia e uma história das imagens,
mesmo materiais como se diz, não poderiam prescindir aos meus olhos de
um questionamento sobre sua eficácia e seu teor psíquico.

Isto não quer dizer, de modo abrupto, em suma, que necessitaria postular
um “inconsciente da história”. O fato de que a tua pergunta se formula a
partir da crítica de Ginzburg- sobre a qual eu voltarei brevemente- induz
uma certa confusão, me parece. Eu nunca postulei um grande
“inconsciente da história” que agiria como uma eminencia parda acima ou
abaixo do devenir histórico ele mesmo. Eu não sou junguiano. Eu observo
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simplesmente momentos de symtômes que interrompem o curso,


digamos, da história cronológica, manifesta ou intencional e que devem, a
seu título, estar referidos aos desejos que não podem ainda ou não
podem mais dizer seu nome. Eu dediquei muito tempo a precisar, tanto
quanto possível, o sentido deste conceito: sobretudo guiou toda minha
leitura de Warburg. Mas é verdade que ele deve sua formulação primeira
à teoria freudiana, porque a meu ver, ela fez do sintoma uma coisa muito
diferente do que fazia dele antes dela a semiologia clássica medica. Dizer
symptome neste contexto não quer dizer absolutamente que se queira
identificar uma doença. Ainda menos encontrar meios de curá-la. A noção
de symptome me parece bem mais fecunda qdo ela introduz novas
relações semióticas (irredutíveis ao signo standard)e novas abordagens do
tempo (irredutíveis à cronologia standard).

Tu formulas tua questão a partir de quatro nomes próprios que vão,


assim, me ajudar a orientar minha resposta. Freud foi- na idade da
adolescência, antes mesmo de ter empreendido um caminho de leituras
filosóficas stritu sensu – minha primeira revolução teórica. Tinha havido
Bataille, certo, mas era uma revolução mais visual e sensorial que
propriamente teórica, descobrindo “As lágrimas de EROS”. Eu tinha então
lido “Uma lembrança da infância de Leonardo da Vinci” pela idade dos 15
anos com o sentimento extraordinário de descobrir em que a atividade de
conhecer, a paixão de ver e aquela de saber provinham estritamente de
um movimento de desejo. Minha admiração nativa por Leonardo, que era
ao mesmo tempo orientada para o esplendor de seus quadros e para a
imensidão de sua curiosidade científica, tudo isso se via posto em
movimento por um desejo, um Eros que Freud desdobrava justamente a
partir dos trabalhos artísticos ou científicos do grande pintor. Eu
descobria, assim, por esta leitura, o caráter sexual, pulsional ou
fantasmático de minha própria curiosidade diante do mundo. Eu descobria
que estas coisas sublimes que são as obras de arte são também, de certa
forma, a obra de um desejo eventualmente- ou até mesmo, na maioria
das vezes, inconfesso.

É o desejo que nos leva a fazer imagens. É o desejo que nos leva a ver e a
rever imagens. Isso enerva toda atividade no campo do sensível- corporal
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e visual especialmente- e isso enerva muito os cientistas que querem


manter absolutamente a cabeça fria em qualquer circunstancia e ignorar,
por isso, sua própria implicação desejante. Isso justificou minha relação
constante com a psicanálise , jamais desmentida, autocrítica eu espero,
mesmo que eu não tivesse como meta seguir uma análise, menos ainda de
me tornar psicanalista. Freud como Benjamin além disso não decepciona
jamais seu leitor, não porque ele tenha sempre razão, mas porque ele é de
uma honestidade absoluta: ele não trapaceia jamais nem sob o plano do
saber, nem sob o plano do desejo. Quando ele não sabe, ele não tenta
uma maneira de trapacear com seu não saber – tipicamente acadêmico ou
mandarinal . (aula do dia 18 de maio/2020)

A teoria freudiana me guiou evidentemente na minha pesquisa sobre a


iconografia fotográfica da histeria, mesmo que isto tenha desagradado um
pouco, apesar de sua enorme boa vontade, a Michel Foucault. Era
evidentemente um laço de desejo e de fantasma que levava as histéricas a
demonstrar seus sintomas e que levava, reciprocamente, os médicos a
demonstrar seu poder, a colocar em cena os corpos destas mulheres em
sofrimento. Todo conhecimento deve ser crítico mas, de Kant a Freud,
toda crítica deve colocar a questão do desejo em ação naquele que a
empreende. Minha questão foi desde o início qual é o gênero do desejo
que orientava a produção de tais imagens que eram no entanto imagens
da dor? Em que aspectos o desejo fazia sintoma no próprio saber, na
própria substancia das imagens como nas práticas terapêuticas ou
institucionais? E o que teria isso como consequência sobre meu próprio
desejo, meu próprio saber das imagens - ou diante delas?

Um dos primeiros leitores deste trabalho sobre a histeria foi justamente


Michel de Certeau. Este foi um encontro muito importante, acima de tudo
porque não havia nele nada deste sectarismo teórico que sufoca tão
frequentemente na França. E isso não era senão um aspecto de sua
generosidade fundamental. Convocar Freud com Deleuze e fazer história
(ou história da arte) com isso é algo que não me parecia lhe trazer algum
problema particular e era prazeroso. Nós falamos muito em Urbino em
1982, por ocasião de um seminário sobre o Discurso Místico. Nós
visitamos as igrejas dos arredores com uma atenção particular voltada
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para as estátuas que sangram, e nós concebemos um projeto de trabalho


comum sobre os fenômenos convulsionários. Sua morte criou um vazio
terrível- sentido por muitos e especialmente, tu sabes, por nosso amigo
comum Pierre Antoine Fabre, também porque depois dele, no mundo dos
historiadores dos Anais , ninguém foi capaz, me parece, de levar adiante
sua interrogação histórica e historiadora do desejo inconsciente em ação,
num determinado enunciado místico ou em determinada arte de fazer
contemporânea. Houve mesmo, eu penso, alguma coisa como um grande
movimento de regressão teórica depois de sua morte, como depois
daquela de Michel Foucault.

Estou me dando conta que só com tua pergunta eu poderia te contar uma
grande parte de minhas escolhas intelectuais , com os debates que isso
pode suscitar. A pesquisa esboçada com Michel Certeau tomou formas
sucessivas sem deixar o domínio italiano: foi no início um projeto para a
Academia de França à Roma que tratava da eficácia das imagens
miraculosas, mas que se bifurcou de repente a partir de um só objeto
pictural descoberto no corredor do convento de São Marco em Florença:
quatro partes ( retalhos) de manchas coloridas onde eu tentei então
alguma coisa como uma iconologia, teologicamente e liturgicamente- isto
é gestualmente e corporalmente – orientada. Porque um pintor do
Renascimento tinha lançado a tinta em chuva informe, à distancia, sobre a
parede deste convento? Se eu tivesse seguido a lição de Jean François
Lyotard, por exemplo, eu teria provavelmente falado da economia
libidinal, o que naturalmente eu evitei. O desejo em ação nestes pedaços
de pintura não deviam ser lidos sob um ângulo desta natureza, mas mais
diretamente e mais sutilmente através de Tomás de Aquino, Giovanni di
Genova ou Antonin de Florence. Isto dito para nos desembaraçar de todo
psicologismo e de todo psicanalitismo ingênuo diante dos objetos
históricos. Se houvesse um inconsciente nesta história, ou seja um
recalcado, seria por parte da própria disciplina ela mesma, a história da
arte, que era necessário buscar para compreender o grande silencio
mantido em torno da dissemelhança na Renascença.

E se há uma lição de Freud a reter no domínio da história da arte ou até


mesmo da história em geral não é certamente no conteúdo sexual, por
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exemplo, dos resultados interpretativos. Esta lição reside acima de tudo


na epistemologia mesma da interpretação dos fatos de cultura, de
linguagens, de imagens, de gestos. Ou até mesmo de ações políticas. É em
todo caso no curso de minha estada italiana que eu comecei a ler
seriamente Aby Warburg que, ao criar a iconologia como disciplina
moderna, logo me pareceu – na diferença de seu grande sucessor Erwin
Panofsky- ir ao encontro da lição teórica de Freud em muitos aspectos e
primeiramente sobre a questão dos diferentes tipos de memória que
podem coexistir, manifestos ou latentes, num mesmo objeto da história. É
aí exatamente que se situa o problema ao qual tal questão faz alusão. Eu
não demorei, com efeito, de ver na obra de Warburg – ao mesmo tempo
genial e experimental, inspirante e lacunária- uma herança epistêmica que
a história da arte anglo-saxonica, vinda do exílio dos judeus alemães e
austríacos, acabara por não querer mais assumir. Ora esta herança
epistêmica concerne, se eu ouso dizer, o saber do inconsciente nos
objetos da história. Este momento epistêmico é aquele que faria dizer a
Walter Benjamin: “ é a este instante que o historiador assume, por esta
imagem, a tarefa da interpretação dos sonhos”.

Aí então onde Ernst Gombrich por exemplo fazia de Warburg um bom


filólogo, um grande bibliotecário mas um pensador obsoleto e de Freud o
teórico de conceitos nebulosos, não positivos (positivismo) e a rejeitar- o
inconsciente, o desejo, o sintoma, o recalque, o retorno do recalcado...eu
tentei uma espécie de retorno a Warburg ou de reavaliação filosófica de
sua obra, sem dúvida sobre o modelo do retorno à Freud que eu havia
estudado outrora, através da obra de Jacques Lacan. Eu fui precedido, no
que concerne a Warburg, por Edgar Wind (1931) e mais recentemente por
Giorgio Agamben (1984) mas com um ponto de vista especificamente
articulado sobre as noções freudianas de sintoma, de desejo e de
figurabilidade. Daí o fato que biograficamente meu retorno a Paris em
1988 foi marcado por diálogos cada vez mais tensos com psicanalistas
como Pontalis, Patrick Lacoste, Marie Moscovici e sobretudo Pierre
Fedida, com quem eu trabalhava regularmente no contexto de comités
científicos de revistas tais como A Nova Revista de Psicanálise, O Escrito
do Tempo ou O Inatual...Estes dois últimos títulos indicam a que ponto a
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questão das relações entre o inconsciente e a história estavam na ordem


do dia.

É bem verdade que depois da morte de Michel de Certeau, a psicanálise


voltou a ser por assim dizer o inatual da história. Uma interlocutora
fundamental foi neste momento para mim, Nicole Loraux. Nós nos
reencontravamos regularmente nas reuniões da redação do “Inactuel”. Ela
sustentava muito meu trabalho no contexto institucional na Escola de
Altos Estudos em Ciencias Sociais. Eu me lembro, por exemplo, de um
seminário organizado por ela em 1992 sobre a questão do “tempos das
disciplinas” no qual participaram especialmente Jacques Le Goff, André
Burguière e Jacques Derrida. Situando a questão do anacronismo ao
centro de meu propósito sobre a história das imagens, eu me encontrei
neste dia em pleno acordo com Nicole Loraux que iria, em breve, publicar
seu artigo provocador “ Elogio do anacronismo em história”...Por que este
acordo? Simplesmente porque nós não havíamos abandonado Freud nas
margens do século XIX e que nós continuaríamos a discutir com os
psicanalistas inventivos capazes de ler Biswanger ou Lacan sem nenhum
sectarismo.

O resultado destas reflexões e destes diálogos – dos quais eu não devo


esquecer a contribuição de Jacques Rancière, no “Nomes da História”,
sobre a questão do anacronismo – foi a publicação de alguns artigos sobre
Walter Benjamin, Carl Einstein, etc...reunidos – paralelamente à “Imagem
Sobrevivente” inteiramente consagrada à Warburg- no “Diante do
tempo”...Teria sido mais rigoroso, aliás, dizer “A frente dos tempos”, se é
verdade que nós estamos diante de cada imagem situados diante de um
nó de tempos múltiplos, heterogêneos, que coexistem, debatem entre
eles e então, se “anacronizam” reciprocamente. No prefácio desta
coletânea, eu tentei defender estas idéias sob forma de um diálogo com a
história praticada por alguns de meus colegas historiadores na Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais mas, sobre estas questões
metodológicas, eu recebi apenas silencio como única resposta, pelo
menos que eu saiba.

Uma voz entretanto se levantou que tu citaste no inicio da tua questão: é


aquela de Carlo Ginsburg. Ginsburg é um grande historiador, ele abriu
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territórios inteiros, ele requestionou inúmeras problemáticas. Eu tenho


geralmente a impressão de estar “do seu lado”, especialmente nas
famosas polêmicas com Hayden White ou sobre as questões de
morfologia. A nota de Medo, Reverencia e Terror a que tu fazes referência,
leva, no entanto, a marca de uma certa má fé neste sentido que Ginzburg
nela se mostra no fundo mais juiz do que historiador. Ora, a história sobre
a qual é necessário aqui retornar é justamente aquela da relação que a
disciplina histórica ela mesma mantêm com a psicanálise, daí o
questionamento da relação entre Warburg e Freud. Me parece que
Ginzburg através deste lado tão “curto e grosso” da sua nota, não quer
rever a crítica que eu lhe endereço a partir de 1990, em algumas
passagens de “Diante da Imagem” e sobretudo numa conferencia
pronunciada no museu d’Orsay no mesmo ano. Esta crítica era de modo
geral dirigida contra o pensamento dominante da maneira como se queria
compreender na época, as relações entre história da arte e psicanálise
(especialmente pelos historiadores da arte próximos de mim tais como
Daniel Arasse ou Hubert Damisch). Nesta constelação, o texto marcante
sobre as “raízes do paradigma indiciário” tinha sido com efeito- e porque
era marcante- o objeto de uma crítica da minha parte, que se pode ler em
particular no artigo publicado em 1996 pela revista de ciências sociais e de
história Gèneses.

Quando ele escreve , na nota em questão, que eu “não atribuo nenhum


lugar” a Warburg historiador,- isto diz a propósito de um livro de
seiscentas páginas sobre uma única palavra Nachleben ou pós-viver, isto é,
a noção central que ele fazia da temporalidade das imagens-, Carlo
Ginsburg se vê forçado a voltar a uma oposição definitiva (curta e grossa)
entre história e teoria. Mas é justamente a oposição da qual o grupo
dirigido na EHESS pelo Hubert Danisch e Louis Marin mostrou em várias
décadas de trabalho toda uma inutilidade. Eu havia eu mesmo integrado
este centro de pesquisas como estudante em 1977, antes de aí participar
até hoje como professor-pesquisador. Tu vê já o fosso...Mas Ginzburg
mais uma vez julga no lugar de argumentar quando conclui sua nota
dizendo que minha aproximação entre Warburg e Freud não é muito
esclarecedora. Isto é apenas uma não-resposta à crítica que eu lhe
enderecei há mais de 20 anos sobre sua própria concepção do paradigma
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indiciário e sobre seu modo prévio de incluir Warburg numa tradição


iconográfica e positivista destinada a ocultar justamente o modo pelo qual
Warburg se escapava disso, embora fosse de uma maneira improvisada,
arriscada, até mesmo um pouco louca.

Antes mesmo que Benjamin tivesse de compreender que era necessário


interrogar os “documentos da cultura”, pela medida dos documentos da
barbárie, Warburg tinha falado de astra e de monstra como de uma
“grande batalha psíquica”cuja história não para de tremer. O que é
absolutamente singular para ele, em relação à comunidade erudita donde
ele fazia parte- mas da qual ele ocupava como pesquisador privado
apenas as margens- é que ele tinha uma consciência extremamente
lúcida, até mesmo extra-lúcida ou mesmo psicótica, do fato que esta
psicomaquia era nele e não somente em face dele ou em volta dele. Ele
sabia que uma dialética do desejo colocava as imagens em movimento,
especialmente através da história das “ fórmulas de pathos”, mas que ela
(dialética) colocava seu próprio saber histórico em movimento. Ele sabia a
dor inerente a uma tal dialética, como haviam também experimentado
Friedrich Nietzsche ou Georges Bataille. Ele sabia que o desejo é o
monstro do discurso, como tu o desenvolveste tu mesmo na tua obra
sobre Pierre Jean Jouve, “O Desejo monstro”. E que as imagens, aquelas
por exemplo que encontramos coletadas no atlas Mnémosyne, são
inervadas por uma tal dialética. O intelectual - o historiador e mais ainda o
historiador das imagens – não teria razão de se acreditar inteiramente do
lado do astra como se ele pudesse escapar, do alto da sua cátedra, à
potência do monstra que povoa esta noite em nós que não cessa de se
agitar. (ruminar)

II

- Antes de explicar o arquivo reproduzido a seguir, eu gostaria de te


perguntar: como tu entendes as questões de morfologia que tu acabas de
evocar, rapidamente a respeito de Ginzburg? Ou mais exatamente qual é
para ti a legitimidade da semelhança morfológica pra pensar a história? O
atlas Mnémosyne é composto de pranchas apresentando analogias
inéditas. Elas mostram uma vida de imagens que é uma “vida
subterrânea” (a expressão está aliás em francês nos papéis de Warburg), e
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sobre a qual é preciso explicar ainda que esta não é uma vida tranquila: é
acima de tudo uma vida em crise. O que Warburg retém das imagens são
as crises morfológicas, os momentos em que o gesto e a forma
desobedecem à semântica que não quer “simultaneidade contraditória”,
que não quer dois em um, a não ser para abrir a categoria dos monstros,
os bastardos da natureza, seres sem formas que atravessam a revista
Documentos de Bataille e que povoam em centenas a coleção de imagens
de Warburg.

Acontece que refletindo sobre as questões para esta entrevista, eu


arrumei papéis para uma mudança e eu me deparei com um documento
que tu distribuístes provavelmente durante o teu seminário, o qual eu
assisti de 1999 a 2003, durante o DEA, depois a tese (tu fizeste referencia
a este trabalho sobre o escritor Pierre Jean Jouve: O Desejo monstro) com
Pierre Antoine Fabre e Yves Hersant na Escola de Altos Estudos de Ciencias
Sociais. O arquivo que eu reproduzi aqui dá uma montagem de citações
que se encontra nos desenvolvimentos de “A imagem sobrevivente”,
justamente na parte sobre Warburg e Freud. Além de ela levantar a
questão da montagem, já discutida em conjunto numa primeira
entrevista, ela mostra a dialética-monstro própria da formação do
sintoma, a tensão entre histeria e melancolia. Me parece que esta
dialética está presente por toda parte no seu trabalho: não há desejo de
imagem sem melancolia, não há história da arte sem sintoma, não há vida
de formas sem formas inacabadas? Enfim, se o sintoma é feito imagens, a
imagem também é feita sintoma na abordagem política que tu propões,
sobretudo desde o texto “Imagens apesar de tudo”. Para dizer em outras
palavras, se há no teu trabalho uma política do desejo, há também, como
em W.G. Sebald, uma política da melancolia. Porque a casca é também a
arvore que se arranca e eu penso muito, é claro, nestas bonitas
testemunhas poéticas que tu publicaste em 2011.

- As questões de morfologia são, é claro, fundamentais para todo


pesquisador que se interroga sobre as imagens, portanto sobre as formas.
Poderia-se dizer brevemente que a morfologia no sentido moderno surgiu
num momento de crise do classicismo, quando a hierarquia acadenica das
formas – por exemplo nos debates da “paragonagem”(equiparação)sobre
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as dignidades respectivas da pintura e da escultura- mostra sua


insuficiência teórica, ou ao menos seu caráter unilateralmente ideal ou
idealista. Contra isso emerge uma tradição nova que vai de Goethe até o
estruturalismo, passando pelos Romanticos alemães e Walter Benjamin
(eu penso por exemplo no seu uso recorrente do Urphänomen goethiano).
No arquivo de meu seminário que tu convocas- e que faz parte de uma
série de textos propostos à leitura dos estudantes, depois comentados uns
após os outros – não é surpreendente de encontrar este texto magnífico
de Freud sobre o modo de olhar o corpo paroxístico (espasmos) de uma
histérica em crise: é tipicamente um texto de morfologia, pois ele dá conta
de um caos movimentado através das noções tais como a polaridade, a
simetria, a “simultaneidade contraditória”.

Há, então, em relação aos temas evocados no começo desta entrevista,


alguma coisa como a afirmação mais clara de um plano ético da ação e do
pensamento: o desejo procede do inconsciente, certo, mas a alegria iria
acompanhada – ou mesmo se construiria com – uma decisão ética que
consiste em reconhecer este desejo e a fazer dele alguma coisa suscetível
de ser ofertada aos outros. Eu nunca tive a impressão de que a alegria
seria natural ou dada. Ela seria acima de tudo como o levante obstinado
das chapas de chumbo que nos dominam por todos os lados e nos deixam
sós , nos desolam desde o começo e que não param de triunfar. A alegria
seria então política nela-mesma: um levante a partir de tudo o que
deveria dar lugar a um aniquilamento. Alguém expressou isso com uma
clareza sem igual: é Pier Paolo Pasolini, quando ele caracteriza toda sua
vez- ao mesmo tempo poética e política- sob o emblema da palavra
abgioia, que se pode traduzir por “falta de alegria”. É um vocabulário
vindo da língua dos trovadores medievais. É uma alegria que sai do seu
contrário, a saber, de uma dor fundamental, o préfixo ab, nesta palavra,
indicando ao mesmo tempo a proveniência ( esta alegria vem de um luto)
e o projeto (esta alegria nos tira de um luto). É então, por excelência, a
alegria enquanto ela existe, apesar de tudo.

Com esta observação pasolínea, eu posso tentar responder- mas não é


muito fácil em poucas palavras- à última parte da tua questão. A posição
da poesia ou da “imagens poéticas” numa “política da escritura”? Para nós
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que escrevemos publicamente cabe uma responsabilidade- política,


então- quanto à língua ela-mesma; esta engaja nossas escolhas de
vocabulário, de sintaxe, de fraseados, de gêneros literários. A energia
poética inerva toda língua que tenta sair de seus próprios conformismos.
Não se deve temer, então, de se arriscar em imagens líricas tais como as
“phasmes, phalènes ou lucioles”(insetos). Não se deve temer a mistura
dos gêneros e a convocação, a citação ou, melhor, a incitação poética para
reconfigurar isto que o historiador propõe no plano documental e isto que
o filósofo propõe no plano conceptual. É isso que no meu trabalho
recente- e em curso- sobre os levantes políticos, me pareceu que era
possível trabalhar a potência lírica de Vitor Hugo (evidente quando
descreve nos “Miseráveis” as insurreições parisienses de 1832) ou de
Henri Michaux (quando descreve seus próprios estados de levantes
psíquicos) como “abridores” de pensamento, inclusive, de pensamento
filosófico e político.

Georges DIDI-HUBERMAN

Entrevista realizada por Muriel Pic

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