Você está na página 1de 6

A HERMENÊUTICA DO SÍMBOLO

Uma introdução às ideias do filósofo francês Paul Ricoeur, mestre


da fenomenologia e autor da trilogia Tempo e Narrativa

Este artigo foi concebido como uma concisa introdução à filosofia de


Paul Ricoeur. Para tanto, tomou uma questão que perpassa sua obra em
diferentes momentos, trazendo a lume muito dos elementos desta figura
filosófica. Ainda que não se possa esperar completude de um texto tão
resumido, estivemos ocupados em esboçar algumas das intuições e teses
responsáveis pelo movimento da filosofia recoeuriana, e a maneira com que
estas tangem temas fundamentais. Limitando-nos a notas biobibliográficas
sobre o filósofo, mas focando da maneira tão exata quanto possível os
conceitos e as suas derivações temáticas, tentamos apresentar aqui o que faz
de Ricoeur um dos mais distintos representantes da fenomenologia francesa. 
Nascido na cidade de Valence, em 27 de fevereiro de 1913, Paul Ricoeur
desde cedo recebeu forte formação literária e humanística. Sendo sua família
completamente marcada pelo protestantismo, também o repertório dogmático
do luteranismo passou-lhe às primeiras letras, colaborando na formação do
filósofo previsto para mais tarde.
Embora iniciando pela filosofia neotomista, Ricoeur não se fechou ao
pensamento de sua época e, logo após terminar sua graduação em filosofia na
Universidade de Rennes, transferiu-se para a Universidade de Paris
(Sorbonne) onde, durante seu mestrado, tomou pela primeira vez contato com
a fenomenologia de   Edmund Husserl por intermédio dos seminários de
Gabriel Marcel. Nestes cursos, Ricoeur aprendeu com seu mestre os rigores do
método husserliano, bem como o necessário engajamento existencial na
problematização dos dados e informações auferidos pelo método. Tais
exercícios fenomenológico-existencias, somados às entusiasmadas leituras do
filósofo   Jean Nabert, forneceriam os primeiros esteios para que Ricoeur
pudesse, futuramente, propor suas ideias filosóficas autorais. 
Após um curto período de exercício docente na Alsácia, Ricoeur se viu
convocado a servir ao exército francês na Segunda Guerra Mundial. Embora a
Grande Guerra tenha interrompido sua experiência com o magistério, ela não
impingiu lacuna à sua atividade filosófica. Capturado com seu destacamento
pelo inimigo, Paul Ricoeur (à época oficial militar) ficou detido até o fim do
conflito, aproveitando este período para traduzir o livro Ideias para uma
Fenomenologia Pura, de Husserl. O resultado deste empreendimento, gestado
ao longo de anos, foi tanto a clássica tradução francesa da obra, quanto uma
interpretação filosófica original da existência, apenas facultada pelas   
experiências-limite da prisão, e pela maior clareza acerca do método
fenomenológico adquiridas ali.

O “ENXERTO HERMENÊUTICO” NA FENOMENOLOGIA

Passada a guerra, Ricoeur retomou a vida docente, investindo no


aprofundamento das intuições filosóficas que tivera no cárcere. Em 1948 (já
professor na Universidade de Estrasburgo) publicou Karl Jaspers e Gabriel
Marcel, a obra, dedicada aos dois principais representantes do existencialismo
cristão em Alemanha e em França, abordava temas de interesse à filosofia
existencial da época (como a indigência e o paradoxo típicos do existir
humano). O ano em que se tornou doutor (1950) foi também a data na qual
apareceu na França sua tradução das Ideen de Husserl, evento que tanto
reforça a vinculação de seu pensamento com a escola fenomenológica
francesa, quanto a influência desta em sua obra, é o que se pode confirmar
com seu trabalho de doutoramento, editado nesta mesma época.
Em A Filosofia da Vontade (assim chamou-se sua tese de doutorado) temos
uma investigação sobre o voluntário e o involuntário no comportamento
humano. Entretanto, o que seria o tema principal acabou por ficar em segundo
plano depois que os rumos de suas pesquisas o colocaram diante da temática
do mal. Tal achado obrigou o filósofo a desenvolver uma problematização
acerca daquilo que ficou conhecido como a “simbólica do mal”. Neste primeiro
momento, o filósofo descobre que a consciência apenas tem acesso ao mal por
meio das formas que o expressam, ou seja, através dos seus símbolos. Indício
que pode ser estendido a outros fenômenos humanos, pois, para Ricoeur, as
muitas significações do mundo da vida nos chegam por meio de uma rede de
símbolos na qual já sempre nos movemos, seja em atitude natural frente à
cultura, ou desde a visada estrita que as teorias nos fornecem. A partir daí, as
formas simbólicas dariam o que fazer ao pensamento do autor, já que, como
vimos, seria o símbolo que nos forneceria a significação dos fenômenos. Deste
modo, passa a ser uma tarefa filosófica saber o que é um símbolo e como este
funciona.

O ano em que se tornou doutor (1950) foi também a data


na qual apareceu na França sua tradução das Ideen de
Husserl, evento que tanto reforça a vinculação de seu
pensamento com a escola fenomenológica francesa,
quanto a influência desta em sua obra, é o que se pode
confirmar com seu trabalho de doutoramento, editado
nesta mesma época.

Ricoeur se vê, assim, diante da necessidade de um recurso que


permitiria esclarecer como um dado (o símbolo) nos reporta a um outro próprio
a si (a significação), ou seja, busca “desvendar os textos a partir de outra coisa
que não se apresenta neles mesmos” (Figal, 2007, p. 107) A hermenêutica
será o instrumento que permitirá (mais adequadamente do que a
fenomenologia husserliana e a filosofia de matriz racionalista cartesiana
presentes na obra de Ricoeur) a interpretação dos símbolos e o libertar da
significação do fenômeno que a entidade simbólica expressa. Esta inserção do
elemento hermenêutico em sua filosofia é o que o filósofo chama de “enxerto
hermenêutico”.
A interpretação em Ricoeur não fica mais restrita ao método, como nas
hermenêuticas tradicionais, trata-se de uma abordagem na qual a linguagem
tem papel primordial, justamente por subministrar o lugar desde o qual o
símbolo se expressa em sua íntima conexão com o existir humano. Aqui se
evidencia que, para o filósofo francês, uma investigação sobre o simbolismo do
mal e a existência humana depende de uma elucidação da linguagem
enquanto discurso vivo. Compreender estes contextos semânticos e
existenciais no horizonte da linguagem será, doravante, tarefa de uma
hermenêutica do símbolo presente nas obras seguintes do autor (Ricoeur,
2008).
 
A DIMENSÃO HERMENÊUTICA IMPENSADA

As obras que Ricoeur publicou na segunda metade da década de 1950


favoreceram seu ingresso na Sorbonne, desta vez na condição de professor de
filosofia geral. É também nesse período que o autor se propõe a estudar o
pensamento de   Sigmund Freud. A hipótese de sua leitura filosófica da
teoria psicanalítica freudiana é que haveria na obra do psicanalista uma
dimensão hermenêutica ainda a ser pensada. Muito mais do que uma
hermenêutica daquela metapsicologia, Ricoeur procurou estabelecer uma
interpretação sistemática dos textos de Freud para, por meio desta, questionar
como o austríaco contribui para se pensar sobre uma antropologia, uma teoria
do conhecimento e uma filosofia da subjetividade próprias à psicanálise
(Ricoeur, 1977).
Segundo momento de suas pesquisas sobre a hermenêutica do
símbolo, Da interpretação: Ensaios sobre Freud (1965) situa a obra do
fundador da psicanálise no pano de fundo da história da filosofia e qualifica
suas questões como dignas de serem seriamente debatidas no cenário do
pensamento contemporâneo. Sem que houvesse enfaticamente o interesse
clínico que Freud nutria em sua doutrina, os estudos de Ricoeur sobre a
psicanálise agregam a seu próprio favor a dimensão cultural trazidas pelas
análises do sentido do mito e do símbolo que, até então, suas leituras não
possuíam. Deste modo, não seria forçoso afirmar que, com Freud, Ricoeur tem
sua concepção de símbolo expandida, além de conquistar uma compreensão
mais geral da realidade humana (Silva, 1992).
Parte desta compreensão abrangente do humano se dá na crítica que
Ricoeur, partindo da fenomenologia de Husserl (aditivada pela hermenêutica) e
ainda impressionado pelos saldos da psicanálise de Freud, volve à ideia de
sujeito. Para o filósofo francês, Freud, com sua teoria do inconsciente, se
apresentaria como um dos que levantaram suspeita contra a noção de
subjetividade sustentada pelas muitas edições do racionalismo e do idealismo
na tradição filosófica. A psicanálise de Freud representaria, assim, ao lado do
materialismo dialético de Marx e da filosofia da vontade de poder de Nietzsche
(e bem poderíamos acrescentar: do existencialismo de Kierkegaard) uma das
tentativas de pensar a filosofia para além da falácia que a subjetividade
constituiria. 

A psicanálise de Freud representaria, assim, ao lado


do materialismo dialético de Marx e da filosofia da vontade
de poder de Nietzsche (e bem poderíamos acrescentar: do
existencialismo de Kierkegaard) uma das tentativas de
pensar a filosofia para além da falácia que a subjetividade
constituiria.
 
“Cogito Ferido”
Tal temática, e muito da fundamentação de suas
premissas, é o que encontramos tanto em O Conflito das
Interpretações (1969), quanto em ensaios tardios do
filósofo, por exemplo: Percursos do
Reconhecimento (2004).

Partindo da evidência fenomenológica de que a consciência não seria


um objeto dado de antemão, Ricoeur coopera para superar a concepção
hipostasiada de sujeito destacando, uma vez mais, seu caráter intencional. Isso
significa que, certo de que toda consciência é sempre consciência de algo, o
filósofo enfatiza o papel que o objeto simbólico possuiria na constituição
do cogito. Ao repensar o conceito de consciência confrontando-a com o
simbólico, Ricoeur reforça a premissa de que a consciência não tem
consistência em si mesma. Deste modo, qualquer ideia de si-mesmo a partir
deste momento estaria condicionada à mediação do outro que o símbolo
constituiria (Ricoeur, 1990). A consciência, portanto, é aberta ao mundo da
vida; dependente de uma determinação apenas conquistada na mediação do
outro, trata-se de uma consciência transpassada por objetividade e alteridade
ou, nas palavras do filósofo, de um a   “cogito ferido”.

Partindo da evidência fenomenológica de que a


consciência não seria um objeto dado de antemão,
Ricoeur coopera para superar a concepção hipostasiada
de sujeito destacando, uma vez mais, seu caráter
intencional. Isso significa que, certo de que toda
consciência é sempre consciência de algo, o filósofo
enfatiza o papel que o objeto simbólico possuiria na
constituição do cogito.
Experiência americana 
Mesmo depois de seu retorno a Nanterre em 1973, a
retomada de sua cátedra não o impediu de cultivar os
laços que travara com a filosofia belga, norte-americana e
canadense. Passou mesmo a ser, a partir dali, uma
exigência de seu projeto filosófico o diálogo com as
filosofias desses centros de estudos.
 
Mesmo depois de seu retorno a Nanterre em 1973, a
retomada de sua cátedra não o impediu de cultivar os
laços que travara com a filosofia belga, norte-americana e
canadense. Passou mesmo a ser, a partir dali, uma
exigência de seu projeto filosófico o diálogo com as
filosofias desses centros de estudos.

DO INTERMEZZO POLÍTICO ÀS INTERLOCUÇÕES PLURAIS

Após a publicação de seu Da Interpretação: Ensaios sobre Freud (1965),


Ricoeur foi nomeado professor na faculdade de letras de Nanterre. Envolvido
com a administração universitária desde 1967, Ricoeur sofreu duros ataques
políticos durante a refrega do maio de 1968. Esquivando-se dos efeitos
daquele levante estudantil, o filósofo preferiu afastar-se da cena intelectual
francesa. Passou, assim, a professor visitante na Universidade de Louvain
(Bélgica), em seguida foi para os Estados Unidos, onde lecionou em Yale e na
Universidade de Chicago. Da   experiência americana Ricoeur tomou o
elemento analítico que sua filosofia, doravante, passaria a contar. O saldo
deste intercâmbio pode ser apreciado em suas obras: O Conflito das
Interpretações (1970) e Do texto à Ação (1972). 
O contato de Ricoeur com o pensamento anglo-saxão emulou aquilo que
ficou conhecido como sua grande filosofia da linguagem. Período que se
expressa primeiramente com A metáfora viva e, depois, com sua Teoria da
interpretação(ambos de 1975). Tal ciclo de reflexões durará até a década de
1980, quando o autor, mesmo depois de aposentado, nos oferece os três
alentados volumes de Tempo e Narrativa (1983-85).

SI-MESMO E NARRATIVIDADE

Ainda que separadas por quase duas décadas das pesquisas sobre
Freud, as noções de símbolo e de cogito ferido aparecem, num terceiro
momento, refundidas no âmbito da temática da identidade narrativa (reflexão
que já contém as temáticas da linguagem e da história). Reforçando as críticas
existencialistas segundo as quais as filosofias do sujeito se ocupariam demais
de aspectos ontognoseológicos do sujeito e, por isso mesmo, mantendo-se à
margem da experiência viva da consciência e do seu si-mesmo, Ricoeur se
propõe a pensar a consciência e os processos de constituição da sua
singularidade. Para tanto, o filósofo novamente evidencia que qualquer
consciência se dá em um mundo, isso significa que sempre nos vemos
lançados em determinadas situações e ocorrências do mundo da vida. Nessas
circunstâncias, o elaborar do si-mesmo que somos estaria condicionado à
apreciação dos atos, fatos e histórias que nos pertencem e nos expressam. 
Para Ricoeur, seria apreciando criticamente os sinais da existência
cotidiana que nos chegam através dos comentários dos outros a nosso respeito
que construiríamos nossa identidade pessoal, ou, em suas próprias palavras:
“a narrativa é um convite para ver nossa práxis como ordenada por tal ou qual
enredo” (Ricoeur, 1985, p. 104). Concordando com isso, Dartigues tem razão
em dizer que: “A narrativa tem, pois, a despeito das dificuldades de se achar
um substrato identificativo, a virtude de manifestar a identidade pessoal”
(Dartigues, 1998, p.11). Diante dessas assertivas, contudo, é preciso não
subestimar o peso da interpretação nos enredos desta identidade, afinal, para
Ricoeur, tal identidade seria resultado do conhecimento interpretado, de modo
que, qualquer caminho para uma tomada de consciência já é deliberação de
uma compreensão de um sentido e de uma interpretação das significações do
universo simbólico que nos expressa (Ricoeur, 1985).
Mas, por meio de sua ideia de narrativa, Ricoeur não estaria propondo
uma concepção de passado similar àquela nietzschiana, segundo a qual o que
se deu, por não possuir qualquer facticidade, poderia ser moldado à
perspectiva e relato do narrador? Não padeceria a identidade narrativa de
Ricoeur do relativismo típico de qualquer discurso confessional? Ora, o filósofo
sabe desses riscos, conhecia também o caráter mimético dessa linguagem por
meio de seus exaustivos estudos da Poética de Aristóteles e das Confissões de
Agostinho. Acautelando-se das possíveis críticas, Ricoeur faz questão de
distinguir duas funções da narração: a histórica e a ficcional. 
Apresentadas em seus complexos pormenores no terceiro volume de
seu Tempo e Narrativa, poderíamos dizer simplificadamente que, com a função
histórica, estaríamos diante da evidência categorial dos fenômenos, ou seja, da
descrição de como estes conteúdos teriam objetivamente se manifestado; com
a função ficcional, teríamos a unidade narrativa mínima que dá conta da
imaginação criadora no discurso. Em contínua dialética, é possível identificar a
interpenetração das duas funções nos atos de narrar, o que significa dizer que
a historiografia pode trazer o ficcional, bem como a ficção trazer o histórico. 
Se verdade, assim, que a consciência só se compreende ao narrar-se, é
preciso lembrar que tal enredo compreensivo não se faz sem a interpretação
de elementos históricos e ficcionais. Deste modo, fazer-se si-mesmo, por meio
de uma narrativa, reúne a história e a ficção (esta que conjuga o simbólico e o
metafórico) de nossa própria existência. 

Mesmo tendo Paul Ricoeur morrido em 20 de março de 2005 (em Châtenay-


Malabry, França), seu pensar filosófico vigora como importante contributo à
contemporaneidade. Obras de maturidade como Si-mesmo Como um
Outro (1990), Leituras I-III (1991-93), A Memória, a História e o
Esquecimento (2000) e O Percurso do reconhecimento (2004) fomentam
questões que nos colocam em posições privilegiadas para interpretar a história
do pensamento; ver e narrar o presente, em seus múltiplos elementos
simbólicos, e projetar-nos às demandas que o pensamento do futuro evoca.

REFERÊNCIAS

RICOEUR, Paul. Da Interpretação – Ensaio sobre Freud. Trad. Hilton Japiassu.


Rio de Janeiro: Imago, 1977. 
_____________. Hermenêutica e ideologias. Trad. Hilton Japiassu. Petrópolis:
Vozes, 2008. 
_____________. Soi-même comme un autre. Paris: Éditions du Seuil, 1990
_____________. Temps et récit. Vol. III. Paris: Éditions du Seuil, 1985. 
DARTIGUES, André. Paul Ricoeur e a questão da identidade narrativa. In: Paul
Ricoeur – Ensaios. Constança Marcondes Cesar (Org.). São Paulo: Paulus,
1998. p. 7-25.
FIGAL. Günter. Oposicionalidade – O elemento hermenêutico e a filosofia.
Trad, Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2008.
NUNES, Benedito. A tematização do tempo. In: O tempo da Narrativa. São
Paulo: Ática, 2003. 
SILVA, Maria Luisa Portocarrero Ferreira. A hermenêutica do conflito em Paul
Ricoeur. Coimbra: Minerva, 1992.
* Roberto S. Kahlmeyer-Mertens é doutor em filosofia pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), membro da Sociedade Brasileira de
Fenomenologia e autor do livro Heidegger e a Educação (Autêntica Editora,
2008).
Postado por Non

Você também pode gostar