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SI-MESMO E NARRATIVIDADE
Ainda que separadas por quase duas décadas das pesquisas sobre
Freud, as noções de símbolo e de cogito ferido aparecem, num terceiro
momento, refundidas no âmbito da temática da identidade narrativa (reflexão
que já contém as temáticas da linguagem e da história). Reforçando as críticas
existencialistas segundo as quais as filosofias do sujeito se ocupariam demais
de aspectos ontognoseológicos do sujeito e, por isso mesmo, mantendo-se à
margem da experiência viva da consciência e do seu si-mesmo, Ricoeur se
propõe a pensar a consciência e os processos de constituição da sua
singularidade. Para tanto, o filósofo novamente evidencia que qualquer
consciência se dá em um mundo, isso significa que sempre nos vemos
lançados em determinadas situações e ocorrências do mundo da vida. Nessas
circunstâncias, o elaborar do si-mesmo que somos estaria condicionado à
apreciação dos atos, fatos e histórias que nos pertencem e nos expressam.
Para Ricoeur, seria apreciando criticamente os sinais da existência
cotidiana que nos chegam através dos comentários dos outros a nosso respeito
que construiríamos nossa identidade pessoal, ou, em suas próprias palavras:
“a narrativa é um convite para ver nossa práxis como ordenada por tal ou qual
enredo” (Ricoeur, 1985, p. 104). Concordando com isso, Dartigues tem razão
em dizer que: “A narrativa tem, pois, a despeito das dificuldades de se achar
um substrato identificativo, a virtude de manifestar a identidade pessoal”
(Dartigues, 1998, p.11). Diante dessas assertivas, contudo, é preciso não
subestimar o peso da interpretação nos enredos desta identidade, afinal, para
Ricoeur, tal identidade seria resultado do conhecimento interpretado, de modo
que, qualquer caminho para uma tomada de consciência já é deliberação de
uma compreensão de um sentido e de uma interpretação das significações do
universo simbólico que nos expressa (Ricoeur, 1985).
Mas, por meio de sua ideia de narrativa, Ricoeur não estaria propondo
uma concepção de passado similar àquela nietzschiana, segundo a qual o que
se deu, por não possuir qualquer facticidade, poderia ser moldado à
perspectiva e relato do narrador? Não padeceria a identidade narrativa de
Ricoeur do relativismo típico de qualquer discurso confessional? Ora, o filósofo
sabe desses riscos, conhecia também o caráter mimético dessa linguagem por
meio de seus exaustivos estudos da Poética de Aristóteles e das Confissões de
Agostinho. Acautelando-se das possíveis críticas, Ricoeur faz questão de
distinguir duas funções da narração: a histórica e a ficcional.
Apresentadas em seus complexos pormenores no terceiro volume de
seu Tempo e Narrativa, poderíamos dizer simplificadamente que, com a função
histórica, estaríamos diante da evidência categorial dos fenômenos, ou seja, da
descrição de como estes conteúdos teriam objetivamente se manifestado; com
a função ficcional, teríamos a unidade narrativa mínima que dá conta da
imaginação criadora no discurso. Em contínua dialética, é possível identificar a
interpenetração das duas funções nos atos de narrar, o que significa dizer que
a historiografia pode trazer o ficcional, bem como a ficção trazer o histórico.
Se verdade, assim, que a consciência só se compreende ao narrar-se, é
preciso lembrar que tal enredo compreensivo não se faz sem a interpretação
de elementos históricos e ficcionais. Deste modo, fazer-se si-mesmo, por meio
de uma narrativa, reúne a história e a ficção (esta que conjuga o simbólico e o
metafórico) de nossa própria existência.
REFERÊNCIAS