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Razão de cantar feliz é poder nos reconhecer através das histórias que revelam a nossa essência.
REPRESENTATIVIDADE é fazer parte de uma bandeira de arte e de luta que é exemplo para o nosso
povo. É como gostamos de nos ver refletidos. Quem vê a fragilidade do voo de um beija-flor nem sequer
imagina quantas vezes o coração bate e qual o tamanho do esforço para chegar à flor. É assim que se dá a
ligação entre a bandeira nilopolitana e o nosso povo. É pela alegria e pelo prazer de brilhar na Avenida
que superamos as dificuldades vividas durante o ano para no Carnaval sermos a referência de um Brasil
mais africano.
A marca de vencer tantos carnavais já nos fez vestir muitas glórias. Porém, muito mais que isso,
acreditamos que nossa sina é a afronta, o debate e a provocação artística. É cumprir todo ano a romaria,
da Baixada à Avenida para fazer o povo protagonista e proporcionar o destaque que o Brasil sempre nos
negou. Olha em volta, é hora de mais um acerto com a história, nosso povo de novo acordou e só está
aguardando razão de cantar feliz o ressoar do som do teu tambor.
Este enredo é de autoria coletiva. Foi escrito pelas mãos, vozes e memórias de cada componente da nossa
comunidade.
A imagem do Pensador, a bela estatueta do povo tchowkwe, que habita a região Nordeste de Angola,
inspira-nos a levar para a Avenida um enredo sobre a contribuição intelectual negra para construção de
um Brasil mais africano. Nossa civilização conhece e respeita os pensamentos esculpidos em mármore
greco-romano. Mas por que não talhar os saberes em ébano? Empretecer o pensamento do mundo é dar a
toda a humanidade a oportunidade de uma visão diferente e original, com novos caminhos para o futuro,
estabelecendo outras rotas possíveis.
Ao longo do tempo, foram grafadas em pedras duras imagens estereotipadas da África como um
ajuntamento de sociedades tribais destituídas de pensamentos e tecnologias. Isto nos impede de ver o
legado e a diversidade dos povos e refletir sobre a possibilidade de empretecer o conhecimento humano.
Muitas vezes enquadrada no campo do primitivo e do exótico, nossa forma sofisticada de ver o mundo é
desvalorizada por estruturas coloniais racistas que desprezam a riqueza intelectual que produzimos.
Por isso, mais do que nunca, é hora de inspirar mentes, trabalhar pelo “reencantamento” de tudo, e talhar
em madeira forte nossos saberes, feito sementes espalhadas por soberanos pássaros de ébano.
“No caminho da luz, todo mundo é preto”
(Emicida)
A diáspora do pensamento negro é um jogo de espelhos que faz refletir por muitas e muitas terras, povos
e gerações o valor da nossa gente. Um negrume multicor que construiu monumentos em eras gloriosas, e
que também passou a sofrer constantes tentativas de apagamento e silenciamento. Mas o legado dos
nossos ancestrais persiste nas cores e nas formas que se afirmam pujantes, assim como a saga do nosso
povo. Em muitos tons de negro, erguemos totens, esculpimos imagens de adoração de muitas fés,
trançamos palha e fibra, entrelaçamos referências, bordamos a geometria das coisas e dobramos o tempo.
Como num colar multicor, colocamos nos fios das artes visuais as mais raras pérolas e as contas mais
sagradas dos nossos antepassados.
A costura de um tecido de pensamentos sofisticados se dá a partir dos ensinamentos dos antigos para
constituirmos a “afrosofia” de hoje. Em memórias transmitidas de geração a geração, somos sujeitos de
poder, guiados pelos ancestrais. Produzimos jeitos diversos de pensar o sentido de um mundo plural,
mesmo que máscaras brancas sejam colocadas sobre a pele negra. Falamos e escrevemos em bom
“pretuguês”, para o mundo inteiro ouvir, o valor das nossas reflexões que se desdobram em ações
afirmativas. A voz da intelectualidade altiva e forte se ergue contra as desigualdades, propondo novos
caminhos para transformar a realidade em que vivemos. É o levante quilombista em nome de uma
sociedade mais justa!
A escrita de nós sobre nós faz emergir uma literatura que não se limita à entronização de heróis coloniais.
Nossos personagens são escritos nas frestas, somos filhas e filhos do cotidiano e do épico, da dor e do
prazer, dos movimentos sociais e das reflexões coletivas. As fraturas do processo escravocrata se
manifestam na inquietação das palavras de azeviche. Imagens “poétnicas” de potência avassaladora,
original e amplificadora de sentimentos e revoltas. São faíscas literárias que encandeiam ideias retintas e
permitem reescrever mais e mais Brasis.
Sob as luzes – e às vezes sob as sombras – da ribalta, encenamos a liberdade como texto primordial. Nos
palcos do Teatro Experimental do Negro, invocamos a energia vital dos antepassados, espelhando a fúria
e a brandura das divindades. Alegria e manifestação! Articulações engajadas fazem com que se
multipliquem nomes e mais nomes entre a “grande constelação das estrelas negras”. São a essência do
vigor dos nossos passos, da expressão maior dos nossos sonhos e dos nossos corpos instruídos de energia
e técnica. Somos constante movimento, pois somos filhos de deuses que dançam!
Agora cessem tudo o que antiga musa canta, porque uma flor nasceu no asfalto… E será cortejada por um
pássaro de ébano, mestre-sala dos ventos a lufar sementes do samba, criação preta em essência. Filosofia
em tambor sincopado que se transformou no maior espetáculo do ayê. Que possamos celebrar a arte que
se afirma em cada Carnaval quando uma voz canta e um corpo responde “ao ressoar do som de um
tambor”.
Maravilhosa e soberana é a nação que anualmente ritualiza e espalha seus saberes ancestrais. Em
Apoteose, vamos elevar nosso cantar feliz a Cabana, o pensador de ébano que, com suas composições e
enredos, ajudou a esculpir o Beija-flor no terreiro sagrado do Carnaval.
A ele e todos os ancestrais do samba, dedicamos nosso desfile, exaltando a memória e o trabalho
intelectual do povo preto, e evocando o símbolo adinkra do pássaro que, com os pés fincados no chão,
olha para trás para poder agir no presente e seguir rumo ao futuro.
EPÍLOGO
A Beija-Flor de Nilópolis, como referência cultural formada essencialmente pelo povo negro da Baixada
Fluminense, ao voltar a propor um enredo tendo foco central a intelectualidade negra, reafirma as pautas
sociais cujas demandas passam pela defesa do sistema de cotas raciais e pelo cumprimento da Lei 10.639
(atualizada pela Lei 11.645), que trata da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira
e indígena nas escolas. Repudia ainda qualquer discriminação religiosa contra o nosso povo, reafirmando
a laicidade do Estado brasileiro. E, por fim, torna-se mais uma voz a se levantar contra a violência no
país, que tem atingido especialmente corpos negros, vítimas do racismo estrutural que vigora no país.
Basta! Seus filhos já não aguentam mais!
Compositores: J. Velloso, Léo do Piso, Beto Nega, Júlio Assis, Manolo e Diego Rosa
E O BRASIL ESCRAVIZAVA!!
SOU PRETO !!
SOU MUITO MAIS ORGULHO QUE LAMENTO.
A MINHA PELE É EMPODERAMENTO.
SOU CRIA DO QUILOMBO DA BAIXADA
SOMOS RAIZ !!
RAÇA QUE NÃO HÁ DE SE CURVAR
O FRUTO DO OXÊ, MEU PAI XANGÔ
KAÔ, KAÔ!
NA FORÇA DO MEU ANCESTRAL EU VOU !