Você está na página 1de 5

ARTES E LITERATURAS INDÍGENAS

É um grande equívoco pensar que por


não se apresentar na maioria das vezes de forma
escrita as populações indígenas de nosso país não
tenham manifestações artísticas e literárias próprias.
Como se pode observar facilmente nos próprios
corpos desses povos, a expressão artística e o gosto
estético sempre estiveram presentes em sua cultura,
seja nos grafismos, em esculturas, na arte plumar Exemplo de cocar indígena - ornamento
(cocares e outros) na música na dança, enfim de decorativo para ser usado na cabeça.
diversas formas.
As plumas são utilizadas nos rituais e coladas
diretamente no próprio corpo. Elas servem também
para ornamentar máscaras, colares, braçadeiras,
brincos, pulseiras e cocares, os quais são feitos de
penas e de caudas de aves.Tal como a pintura
corporal, a arte plumária serve também para indicar
os grupos sociais.Na maior parte são os homens que
desenvolvem a arte plumária. Essa arte passa por
um ritual: primeiro a caça, passando pelo
tingimento (a chamada tapiragem), pelo corte nas
formas desejadas, e por fim, a amarração. Há etnias
“Nós, Kaingáng, usamos os grafismos que que destinam as pinturas ao uso cotidiano, deixando
dividem o povo em duas grandes famílias ou as plumas para as comemorações e rituais
metades, estas marcas são chamadas de Rá, e indígenas, inclusive funerais
existem apenas dois tipos, que são o Rá Téj que
pertence à noite e à lua; e o Rá Ror que pertence ao A literatura indígena
sol ou dia; o nosso grafismo define a metade tribal
à que o indígena, animais, plantas e objetos No que se refere a história das Literaturas
pertencem.”” Indígenas, esta é, sobretudo, marcada pela
expressão oral e também pelos grafismos, pinturas,
como já vimos, carregadas de significados e
simbolismos. Os grafismos constituem narrativas e
devem ser valorizados por sua especificidade,
podendo inclusive indicar a autoria do texto
indígena, se coletiva/ancestral ou individual
Exemplos de grafismos dos povos Tukano
representados por Lux Vidal:

Máscara indígena que faz parte do acervo do Museu de


Arte Indígena (MAI), inaugurado em 2016 em São Paulo.

As máscaras indígenas apresentam um


simbolismo sobrenatural. Elas são feitas de cascas
de árvores ou outros materiais como palha e
cabaças e podem ser enfeitadas com plumagem.
Normalmente, são utilizadas em ritos cerimoniais.
Um exemplo é a etnia dos Karajá, que se serve das
máscaras durante a dança do Aruanã com o objetivo
de representar heróis que conservam a ordem A fim de registrar e divulgar a cultura e a
mundial. literatura desses povos o etnólogo alemão,
naturalizado brasileiro Curt Nimuendaju, dentre
outras ações, transcreveu narrativas da tradição oral
de diversas etnias indígenas brasileiras, trazendo ao escrita de pessoas brancas em nosso país, conforme
conhecimento de muitos o grande potencial cultural reflete o grande escritor Daniel Munduruku no texto
e artístico dos povos indígenas de nosso país. abaixo.
Destacam-se nessas transcrições,
narrativas que envolvem a religiosidade/mitologia Literatura indígena e o tênue fio entre
desses povos, a relação destes com os elementos da escrita e oralidade
natureza, muitas vezes personificados ou tidos Por Daniel Munduruku
como sagrados, bem como a valorização da
manutenção das tradições e do ato de contar A escrita é uma conquista recente para a maioria
histórias, uma forma de comunhão entre as dos 230 povos indígenas que habitam nosso país
gerações. desde tempos imemoriais. Detentores que são de
um conhecimento ancestral aprendido pelos sons
Vejamos uma narrativa mitológica da das palavras dos avôs e avós antigos estes povos
oralidade indígena kayapó transcrita por sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade
Nimuendaju: como instrumento de transmissão da tradição
obrigando as novas gerações a exercitarem a
A origem da tribo Kayapó memória, guardiã das histórias vividas e criadas.
“No começo só existia o Kayapó A memória é, pois, ao mesmo tempo passado e
Katembári com sua mulher, oito filhos e outras presente que se encontram para atualizar os
tantas filhas. Irmãos e irmãs casavam entre si, mas repertórios e encontrar novos sentidos que se
não tinham filhos, e por isso seu número nunca perpetuarão em novos rituais que abrigarão
aumentava. Vagavam pelo mundo fazendo guerra a elementos novos num circular movimento repetido
todas as tribos que descobriam, tomando-lhes os à exaustão ao longo de sua história.
enfeites e adotando, com estes, as festas e as Assim estes povos traziam consigo a memória
cerimónias dos vencidos. ancestral. Essa harmônica tranqüilidade foi, no
Aborrecia-os, porém, serem tão poucos, e entanto, alcançada pelo braço forte dos invasores:
por isso pediram ao velho Katembárí que criasse caçadores de riquezas e de almas. Passaram por
mais Kayapó. ''Sim'', respondeu este, ''vou fazê-lo, cima da memória e foram escrevendo no corpo dos
pois também eu estou enfadado de estar só!'' Saiu vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos
só para o campo alto, onde procurou uma sucupira dos atingidos pela gana destruidora tiveram que
(Bowdichia sp.), da qual cortou os galhos. Num ocultar-se sob outras identidades para serem
vaso feito de uma folha, trouxe água e com ela fez confundidos com os dasvalidos da sorte e assim
sua magia. Depois meteu um aspersório de penas de poderem sobreviver. Estes se tornaram sem-terras,
urubu-rei na água mágica, trepou com ele no topo sem-teto, sem-história, sem-humanidade. Estes
da árvore e, gritando alto, aspergiu para todos os tiveram que aceitar a dura realidade dos sem-
lados. memória, gente das cidades que precisa guardar nos
Depois desceu e deitou ao redor da livros seu medo do esquecimento.
árvore, no chão, num círculo largo, folhas de caeté, Por outro lado – e graças ao sacrifício dos
sempre uma em cada lugar onde havia de ter uma primeiros – outro grupo pode manter sua memória
choça. Feito isto, tornou a casa e disse aos filhos: tradicional e continuar sua vida com mais segurança
''Amanhã já teremos muitos companheiros!'' Esta e garantia. Estes povos foram contatados um pouco
notícia alegrou-os muito, e quando na manhã mais tarde quando os invasores chegaram à
seguinte foram ao lugar onde Katembári tinha feito Amazônia e tentaram conquista-la como já haviam
a sua magia, já ouviam de longe as vozes das feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas
crianças e das mulheres. Ao redor do pé de sucupira também ali fizeram relativo estrago nas culturas
tinha surgido durante a noite uma grande aldeia de locais e as tornaram dependentes dos vícios trazidos
Kayapó.” de outras terras. Foram enfraquecidos pela bebida,
Na atualidade, além da tradição oral se entorpecidos pela divindade cristã e envergonhados
manter forte nas aldeias indígenas, temos diversos em sua dignidade e humanidade.
autores indígenas que se apropriaram da escrita Estes povos – uns e outros – estão vivos. Suas
como uma forma de registrar sua arte e, memórias ancestrais ainda estão fortes, mas ainda
consequentemente, de desconstruir discursos têm de enfrentar uma realidade mais dura que de
preconceituosos e discriminatórios propagados pela seus antepassados. Uma realidade que precisa ser
entendida e enfrentada. Isso não se faz mais com que nega os povos que a afirmam. A escrita
um enfrentamento bélico, mas através do domínio indígena é a afirmação da oralidade. Por isso
da tecnologia que a cidade possui. Ela é tão atrevo-me a dizer como a poeta indígena Potiguara
fundamental para a sobrevivência física quanto para Graça Graúna:
a manutenção da memória ancestral.
Claro está que se estes povos fizeram apenas a Ao escrever,
“tradução” da sociedade ocidental para seu dou conta da minha
repertório mítico, correrão o risco de ceder “ao
ancestralidade;
canto da sereia” e abandonar a vida que tão
gloriosamente lutaram para manter. É preciso do caminho de volta,
interpretar. É preciso conhecer. É preciso se tornar do meu lugar no mundo.
conhecido. É preciso escrever – mesmo com tintas
do sangue – a história que foi tantas vezes negada. Diversidade e riqueza cultura
A escrita é uma técnica. É preciso dominar esta O Brasil é detentor de uma riqueza cultural muito
técnica com perfeição para poder utiliza-la a favor expressiva quando falamos das populações
da gente indígena. Técnica não é negação do que se indígenas. São reconhecidos atualmente 230 povos
é. Ao contrário, é afirmação de competência. É diferentes habitando todos os estados brasileiros
demonstração de capacidade de transformar a com exceção do Piauí. São faladas 180 línguas e
memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na dialetos divididos em troncos, famílias e línguas
medida em que precisa adentrar no universo mítico isoladas.
para dar-se a conhecer ao outro. Segundo o IBGE existem cerca de 750 mil
O papel da literatura indígena é, portanto, ser indígenas por todo o Brasil e a situação de cada
portadora da boa noticia do (re)encontro. Ela não povo é peculiar com relação ao tempo de contato,
destrói a memória na medida em que a reforça e situação fundiária, atendimento às necessidades
acrescenta ao repertorio tradicional outros básicas.
acontecimentos e fatos que atualizam o pensar A Funai acredita que ainda haja entre 30 e 50
ancestral. grupos indígenas considerados isolados do contato
Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, com a sociedade brasileira.
disso não se duvida. Alguns querem transformar As principais dificuldades que enfrentam estão
este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa ligadas à terra, mas hoje há uma crescente demanda
complementação. Não se pode achar que a memória por cursos superiores e projetos de economia
não se atualiza. É preciso notar que ela – a memória autosustentável.
– está buscando dominar novas tecnologias para se A literatura indígena é um fenômeno relativamente
manter viva. A escrita é uma dessas técnicas, mas recente, mas já é possível identificar vários autores
há também o vídeo, o museu, os festivais, as com projeção nacional e internacional. Alguns
apresentações culturais, a internet com suas livros já fazem parte de acervos de bibliotecas
variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada internacionais.
uma delas é importante, mas poucos são capazes de
perceber que é também uma forma contemporânea
de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental
para os dias atuais.
Pensar a Literatura Indígena é pensar no
movimento que a memória faz para apreender as
possibilidades de mover-se num tempo que a nega e

Alguns autores com destaque nacional e internacional:

AILTON KRENAK
Lider do povo Krenak, o escritor Ailton é um dos
iniciadores do chamado Movimento Indigena
Brasileiro.
DANIEL MUNDURUKU
Natural de Belém, Daniel é um dos principais
representante do seguimento literário indigena
brasileiro. Autor de dezenas de livros, é escritor
premiado nacional e internacionalmente. Vive na
cidade de Lorena, SP.

ELIANE POTIGUAR
Escritora de origem paraibana, vive a muito tempo no
Rio de Janeiro, uma das mais atuantes mulheres no
movimento iníigena. Autora do livro Metade cara,
metade máscara.

GRAÇA GRAUNA
Escritora e doutora em educação, Graça Grauna é
indigena do povo Potiguar do estado da Paraiba. Mora
em Pernambuco e atua como importante vinculo a luta
das mulheres indígenas no Brasil.

Márcia Wayna Kambeba: poeta e


geógrafa brasileira da etnia kambebas

Poemas de Márcia Waina Kambeba no sangue derramado que ainda colore


essa terra que é nossa.
SER INDÍGENA – SER OMÁGUA Nossa dança guerreira tem começo,
mas não tem fim!
Sou filha da selva, minha fala é Tupi. Foi a partir de uma gota d’água
Trago em meu peito, que o sopro da vida
as dores e as alegrias do povo Kambeba gerou o povo Omágua.
e na alma, a força de reafirmar a E na dança dos tempos
nossa identidade pajés e curacas
que há tempo fico esquecida, mantêm a palavra
diluída na história dos espíritos da mata,
Mas hoje, revivo e resgato a chama refúgio e morada
ancestral de nossa memória. do povo cabeça-chata.

Sou Kambeba e existo sim: Que o nosso canto ecoe pelos ares
No toque de todos os tambores, como um grito de clamor a Tupã,
na força de todos os arcos, em ritos sagrados,
em templos erguidos, Silenciar é preciso,
em todas as manhãs! Para ouvir com o coração,
A voz da natureza,
O choro do nosso chão,
SILÊNCIO GUERREIRO
O canto da mãe d’água
No território indígena, Que na dança com o vento,
O silêncio é sabedoria milenar, Pede que a respeite,
Aprendemos com os mais velhos Pois é fonte de sustento.
A ouvir, mais que falar.
É preciso silenciar,
No silêncio da minha flecha, Para pensar na solução,
Resisti, não fui vencido, De frear o homem branco,
Fiz do silêncio a minha arma Defendendo nosso lar,
Pra lutar contra o inimigo. Fonte de vida e beleza,
Para nós, para a nação!

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Conto de Daniel MunduruKu


Hoje acordei beija-flor

Hoje vi um beija flor assentado no batente de minha janela.


Ele riu para mim com suas asas a mil.
Pensei nas palavras de minha avó:
“Beija-flor é bicho que liga o mundo de cá com o mundo de lá.
É mensageiro das notícias dos céus. Aquele-que-tudo-pode fez deles seres ligeiros para que
pudessem levar
notícias para seus escolhidos. Quando a gente dorme pra sempre, acorda beija-flor.”
Achava vovó estranha quando assim falava. Parecia que não pensava direito! Mamãe diz que é por
causa da idade. Vovó já está doente faz tempo. Mas eu sempre achei bonito o jeito dela contar histórias.
Diz coisas bonitas, de tempos antigos.
Eu gostava de ficar ouvindo. Ela sempre começava assim: “Tininha, há um mundo dentro da gente.
Esse mundo sai quando a gente abre o coração”…e contava coisas que ela tinha vivido…e contava coisas
de papai e mamãe…e contava coisas de hoje e de ontem. Ela só não gostava de falar do futuro…dizia que
não valia a pena. Futuro é tempo que não veio, ela dizia.
Pensei nisso tudo por causa do beija-flor. Até esqueci de visitar vovó em seu quarto. Fazia isso
sempre que acordava. Vou fazer isso agora…
Nesse exato momento mamãe entrou no meu quarto. Estava triste. Trazia um papel na mão. Sentou-
se na borda da cama e esticou para mim o papel. Abri-o devagar. Dentro tinha uma mensagem escrita
com a caligrafia de vovó. Lá estava escrito:
“Tininha, hoje acordei beija-flor”.
Sorri para mamãe que nada entendeu. Eu entendi.

Você também pode gostar