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LEITURAS

OBRIGATÓRIAS
UFRGS 2023
ÍNDICE

TERRA DOS MIL POVOS............................................................................................................................5

ÁGUA FUNDA............................................................................................................................................ 9

CEM ANOS DE SOLIDÃO...........................................................................................................................12

leituras obrigatórias - UFRGS


UM ÚTERO DO TAMANHO DE UM PUNHO............................................................................................19

LISISTRATA.................................................................................................................................................28

VÁRIAS HISTÓRIAS...................................................................................................................................31

A FALÊNCIA.............................................................................................................................................. 35

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN...............................................................................................39

CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS........................................................................................................43

CONSTRUÇÃO ( CHICO BUARQUE)...........................................................................................................51

PONCIÁ VICÊNCIO................................................................................................................................... 59

DEIXE O QUARTO COMO ESTÁ................................................................................................................65

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História indígena do Brasil contada por um índio

“Eu tive um sonho.


O Criador do Mundo apareceu e me disse que os animais
estão desaparecendo, morrendo ou fugindo.
Nós precisamos arrumar um jeito de aumentar os animais,
proteger o lugar onde eles vivem. Porque, se o povo indígena
deixar de comer carne de caça, vai deixar de sonhar. E são os
sonhos de poder que mostram o caminho que devemos seguir.”

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O AUTOR:
Escritor, ambientalista e tradutor, Kaká Werá Jecupé foi um dos primeiros indígenas a difundir os saberes
dos povos originários pela literatura e em conferências nacionais e internacionais. É autor de diversos livros, entre
eles Todas as Vezes que Dissemos Adeus (1994), Terra do Mil Povos (1998) e Fabulosas Fábulas de Iauaretê (1999).
O autor, de origem Tapuia também escreveu duas peças teatrais premiadas, Morená e O Menino Trovão.
Suas obras têm a intenção de expor e discutir os saberes, as memórias dos povos originários, em especial,
os Tupi Guarani, sem deixar de contestar a visão eurocêntrica imposta pelos pesquisadores das ciências sociais.

Kaká Werá Jecupé em suas próprias palavras

“Kaká é um apelido, um escudo. De acordo com a nossa tradição, uma palavra pode proteger ou destruir
uma pessoa; o poder de uma palavra na boca é o mesmo de uma flecha no arco, de modo que às vezes usamos
apelidos como patuás.
Werá Jecupé é o meu tom, ou seja, meu espírito nomeado. De acordo com esse nome, meu espírito veio
do leste, fazendo um movimento para o sul, entonando assim um som, uma dança, um gesto do espírito para a
matéria, que nos apresenta ao mundo como uma assinatura. Essa assinatura registrada na alma me faz algo como
neto do Trovão, bisneto de Tupã. É dessa maneira que somos nomeados, para que não se perca a qualidade da
Natureza de que descendemos.
Para a cultura guarani, na qual fui iniciado, em São Paulo, onde nasci, o ato da nomeação é a manifestação
da parte céu de um ser na parte terra. o céu é o mundo espiritual, a raiz de todos nós. A terra é a contraparte
material do espírito. Essa cultura se fundamenta em uma tradição que vem desde quando a noite não existia,
chama “Arandu Arakuaa”, que se pode traduzir como ‘A Sabedoria dos Ciclos do Céu” ou “O Saber do Movimento
do Universo”.
[...]
Também passei por cerimônias de iniciação e reverência aos meus antepassados do Araguaia, banhando-
me e cantando em suas águas, com o acompanhamento de parentes xavantes, seguindo um impulso do meu
coração. Andei por cerrados, pela Mata Atlântica, pelas serras, de aldeia em aldeia, de norte a sul do país,
colhendo sabedoria deixada por seres de cabeças brancas, seres de cabelos por nascer, pelas plantas, animais,
pedras.

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Mas nem sempre fui assim. Na minha infância, me distanciei da tradição quando fui estudar na escola
pública, onde aprendi a arte de ler e escrever. Após quase quinze anos longe das minhas raízes, iniciei uma
peregrinação à procura do meu espírito, que foi reencontrado novamente entre os Guarani e foi consagrado,
depois de muitos atos de purificação de boa parte de minhas ignorâncias e mazelas, o belíssimo Tocantins pela
cultura krahô, onde passei a ser conhecido como Txutk, ‘semente de fruto maduro’.
Nessas andanças conheci mil povos, vivenciei suas riquezas: o pensamento, a sabedoria, os ritos, os mitos
e a medicina sagrada nativa. No mundo espiritual reencontrei os ancestrais, os antepassados, as divindades anciãs,
as entidades da natureza, meu clã antepassado, em que busco, sempre que posso, sabedoria. A peregrinação na
terra e o encontro espiritual me permitiram vivenciar a essência desses mil povos, a qual pretendo expor aqui,
como parte da tarefa que desenvolvo atualmente, que é difundir os ensinamentos ancestrais: a Tradição do Sol, a
Tradição da Lua e a Tradição do Sonho.”

A OBRA:
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Publicado no final dos anos 1990, A Terra dos Mil Povos é um livro no qual o autor aborda diversas
temáticas relativas às questões indígenas, fazendo parte do Projeto Arapoty, uma campanha que busca um
resgate da história e da cultura indígenas. Dentre as temáticas abordadas, estão: o que é índio; Tupã; a memória
cultural; guerras, guerreiros e escravos; e outros.
Trata-se de um texto que transita por gêneros – incluindo discursos históricos e antropológicos – e
compõe-se em um formato multimodal, trazendo um texto que é permeado de ilustrações e de imagens. Essa
forma de construção textual (que foge ao que se esperaria de uma narrativa literária tradicional) corresponde a
um sistema de escrita muito próprio dos povos indígenas, abrangendo a oralidade e a escrita-desenho.
Além desses recursos multimodais, também estão presentes nesta obra evocações da perspectiva de
existência em que vários mundos coexistem no mesmo mundo. Assim, a forma como Kaká Werá apresenta as
plantas, a alimentação, o entendimento do tempo, passa por essa outra cosmopercepção, que tira o humano da
centralidade do pensamento.
Por trazer a perspectiva de um sujeito de origem indígena, o livro recompõe a existência indígena a partir
do que o autor pôde ouvir da sabedoria de anciãos que transmitem o conhecimento aprendido com os
antepassados. Com isso, há a validação da verdade e da confiabilidade dos conhecimentos provenientes dos
sonhos e do que chamamos de mitos, não como elementos fantásticos, mas como constituição da forma de os
povos originários experimentarem o mundo real, em que tudo está ligado com tudo, sem que o humano seja o
topo da pirâmide.
Pela perspectiva de um autor indígena, Terra dos Mil Povos faz pensar sobre o silêncio em relação aos
povos indígenas e propõe a escuta dessas vozes em um formato habitual à cultura ocidentalizada – o livro.

ESTRUTURA DA OBRA
Fruto de um contexto de militância, em idas e vindas dentro do Brasil e outros países das Américas e do
velho continente, o livro A Terra dos Mil Povos cumpre o intuito de materializar e compartilhar esse conhecimento,
e o faz por meio de uma obra que mistura narrativa e exposição das tradições, dos mitos, das heranças dos vários
povos originários, a partir de uma estrutura em capítulos.

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O que é índio?

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Na primeira parte, o autor expõe a origem do termo índio, que surge com a chegada dos invasores
europeus, no final do século XV e início do século XVI, e que para os povos aqui existentes, no recorte de tempo
apontado, era uma denominação desconhecida. Os povos originários se autodenominavam através de suas
respectivas vivências, pois para eles viver é algo sagrado e o nome adotado por cada etnia materializa-se em um
escudo protetivo. Entre esses povos não há uma divisão entre o mundo espiritual e o mundo material. Tudo que
nos cerca tem um espírito, um sentido.

“O índio não chamava nem chama a si mesmo de índio. O nome ‘índio’ veio trazido pelos ventos dos
mares do século XVI, mas o espírito ‘índio’ habitava o Brasil antes mesmo de o tempo existir e se estendeu pelas
Américas para, mais tarde, exprimir muitos nomes, difusores da Tradição do Sol, da Lua e do Sonho.
Então, o que é índio, para o índio? Eu vou responder conforme me foi ensinado pelos meus avós, através
do Ayvu Rapyta, passado de boca a boca com a responsabilidade do fogo sobre a noite estrelada, e através das
cerimônias e encontros por que tenho passado com os ancestrais na terra e no Sonho.
Para aprender o conhecimento ancestral o índio passa por cerimônias, que são celerações e iniciações
para limpar a mente e para compreender o que nós chamamos de tradição, que é aprender a ler os ensinamentos
registrados no movimento da natureza interna do Ser. O ensinamento da tradição começa sempre pelo nome das
coisas e do modo pelo qual são nomeadas.”

A Terra dos Mil Povos

O autor apresenta os povos originários do nosso território: Tupi, Guarani, Tupinambá, Tapuias, Xavante,
Kamayurá, entre outros, foram os habitantes originais. Prossegue levantando o questionamento acerca do termo
apropriado para designar cada grupo, se são raças, tribos, nações ou clãs, mas independentemente do tempo
estes povos são provenientes de uma árvora comum: os Tupy, Jê, Karib e Aruak.
Também é explicado que a cultura desses povos é alicerçada na memória, nas práticas ritualísticas e nas
suas filosofias de vida, que remetem às suas respectivas origens, e são carregados de valores, ensinamentos,
fundamentais para a compreensão do surgimento de cada etnia.

A invenção do tempo

O autor relata a passagem de outros povos de terras além-mar para nossa região costeira com objetivos
bem diversificados como comercializar e efetuar estudos, os quais ainda são um mistério para os pesquisadores
atuais, não figurando nas páginas da história oficial. Povos como Egípcios, Cananeus, Tártaros, Babilônios,
Fenícios e Hebreus passaram por aqui há mais de cinco mil anos, deixando suas marcas por várias regiões do
litoral brasileiro. Além desses povos, existem registros de contatos entre os grandes impérios que surgiram no
continente americano, como os Astecas, Maias, e sobretudo os Incas, com os povos situados na Amazônia,
influenciando-os em vários aspectos. Kaká Werá declara que quando os portugueses aqui aportaram com a
finalidade de explorar essas terras, os Tupy e suas ramificações exerciam uma dominação no litoral, o que gerava
uma rivalidade que os colonizadores souberam explorar a seu favor.

Pequena síntese cronológica da história indígena brasileira

Nesta parte, Werá Jecupé destaca que o “tempo” é considerado uma “divindade sagrada” pelos povos
originários, “responsável pela conservação dos ciclos: as estações”. Os portugueses, quando aqui chegaram,
impuseram a sua forma de medição linear do tempo e, respectivamente, sua visão da história europeizante (a

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História dos vencedores), deixando de fora a história construída há milhares de anos, por milhões de habitantes
que aqui viviam. A partir dessa forma imposta de medir o tempo, o escritor data acontecimentos marcantes nos
mais de quinhentos anos de contato, partindo da chegada da esquadra de Cabral em 1500 até o ano de 1998,
quando foi denunciado na Universidade de Stanford, no estado norte-americano da California, a presença de
missões provenientes desse país, as quais praticavam o roubo dos conhecimentos medicinais milenares dos povos
indígenas, para serem entregues às multinacionais de medicamentos e cosméticos instaladas na Amazônia.

Contribuição dos filhos da terra à humanidade

Aqui, o autor pontua as diversas colaborações deixadas pelos povos indígenas para a sociedade brasileira.
A catalogação desse legado foi iniciada, nos primeiros anos da década de 1980, por historiadores e antropólogos,
a mando de laboratórios farmacêuticos internacionais, que objetivavam lucrar com tal conhecimento. Além do
saber medicinal da flora, a agricultura praticada pelas etnias aqui residentes foi fundamental para a sobrevivência
dos colonizadores e até hoje a relação entre estes povos com a fauna e a flora é exemplo de equilíbrio e
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sustentabilidade para a manutenção da espécie humana no planeta. Por fim, as línguas indígenas também
contribuíram para a formação cultural brasileira. Elas compõem o cotidiano do povo brasileiro, em especial a
língua tupi, que se faz presente na nomeação de espécies da fauna, da flora, e também de acidentes do relevo.

Os líderes indígenas do Brasil contemporâneo

Nesta parte final, Kaká Werá alega que a história oficial enaltece os “heróis do pioneirismo” português,
deixando de fora os guerreiros e guerreiras indígenas, numa tentativa de silenciar as vozes denunciantes das
atrocidades praticadas peos colonizadores. Contudo, os feitos e as vozes de Cunhambebe (“a mulher que voa”),
Aimberê (“o filho da liberdade”), Sepé Tiaraju (“o santo guerreiro”), ainda ecoam por estes montes e florestas, desde
os primórdios da colonização até nossos dias.
O ecoar dessas vozes do passado se entrelaçam com as do presente. Na contemporaneidade, o autor cita
alguns representantes dessa história não contada que foram e continuam sendo fundamentais para a existência
dos povos indígenas que sobreviveram aos mais de cinco séculos de genocídio:

Mário Juruna, primeiro deputado indígena

Álvaro Tukano, articulador da nova


confederação

Raoni Metuktire, idígena caiapó

Sônia Guajajara, atual Ministra dos Povos


Indígenas do Brasil

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A AUTORA

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A escritora Ruth Guimarães

Nascida na cidade de Cachoeira Paulista, interior paulista, Ruth Guimarães torna-se órfã aos 17 anos de
idade e ainda na juventude passa a morar em São Paulo. Volta para o interior e, alguns anos mais tarde, em 1938,
retorna para a capital. Forma-se em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e passa a colaborar em
periódicos com crítica literária, crônicas e contos. Foi também tradutora, professora de língua portuguesa por
cerca de trinta anos na rede pública, secretária de cultura de sua cidade natal e membro da Academia Paulista de
Letras (onde foi a primeira escritora negra eleita para uma cadeira). Pode-se dizer que Ruth Guimarães foi uma das
primeiras escritoras negras a ocupar espaço nacional no cenário da literatura brasileira. Estudiosa da cultura
popular, principalmente do folclore, e autora de diversas obras que valorizam essa vertente da nossa cultura, Ruth
teve como mestre ninguém menos que Mário de Andrade. Segundo a escritora e pesquisadora, Mário foi o grande
responsável por apresentá-la melhor ao folclore brasileiro. Entre suas dezenas de publicações, destacam-se, além
de Água Funda, Calidoscópio - A saga de Pedro Malazarte, Lendas e Fábulas do Brasil, Contos de Cidadezinha e o
ensaio Os filhos do medo.
Ruth Guimarães destacou-se por seus estudos folclóricos, e a composição da obra máxima, Água funda, foi
impulsionada por suas pesquisas de campo na região do vale do rio Paraíba, abrangendo áreas dos estados de São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Sobre o conteúdo de Água funda, assim disse Guimarães, em entrevista: “foi
como montar um gigantesco quebra-cabeça com pedaços que vieram, pouco a pouco, trazidos por contadores de
casos entre os anos de 1928-1929”. É relevante, portanto, notar a importância de seus estudos folclóricos e
etnográficos na composição literária em análise.

UMA OBSERVAÇÃO PANORÂMICA E BREVE RESUMO DE ÁGUA FUNDA


Publicado em 1946 Água Funda é a obra de estréia de Ruth Guimarães. O ano de lançamento é o mesmo de
Sagarana, livro de estreia – se desconsiderado Magma, obra renegada pelo autor – de Guimarães Rosa, o que
autoriza, por razões cronológicas, inserir essa obra de Ruth Guimarães como pertencente ao que se habituou
chamar de 3ª geração modernista. Ruth Guimarães registrou o mundo caipira de Minas Gerais/São Paulo, nas
proximidades do Vale do Paraíba, trabalhando com crenças, superstições e folclore da povo local, e o trabalho
com o material popular será visível no romance.
O texto se estrutura em dois planos temporais, com um corte de aproximadamente cinquenta anos entre
um e outro. Essa divisão não é marcada graficamente – não há indicações de “Parte” e “Parte II”, por exemplo –
ou cronologicamente – também não há indicação de datas –, mas possível de ser identificada, pois a história gira
em torno da exploração da terra em um momento de transição entre a economia escravocrata e aquela que se
formou no Brasil pós-abolição. A parte inicial do romance é protagonizada pela Sinhá Carolina, proprietária de
Olhos D’Água, no fim do período escravagista. Carolina é uma mulher austera, dura, que fica viúva e dedica-se aos
cuidados da fazenda e de sua única filha, Gertrudes. Gertrudes tem um gênio parecido com a mãe, dura e teimosa,
e se apaixona pelo filho do capataz da fazenda. Como a sua mãe não aceita a relação, acaba fugindo de casa com
ele, partindo para a cidade. Carolina fica só na fazenda, sem pessoas próximas, até a chegada do filho do
proprietário da Fazenda do Limoeiro, que fora expulso de casa pelo próprio pai. Seduzida pela boa conversa do
rapaz, ela contrata o moço para a função de capataz e acaba por se casar com ele posteriormente. Sinhá Carolina
vende a Fazenda Olhos D’Água e parte com o jovem, com o objetivo de ser feliz. Contudo, é abandonada pelo

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rapaz em uma estação de trem, ficando sozinha e sem dinheiro. Carolina enlouquece e, aparentemente sem
consciência de quem foi, retorna à região como Choquinha, a mendiga de Olhos D’Água.
Já na segunda parte, mais extensa e que ocupa a maior parte da obra, a comunidade caipira passa a ser
protagonista, com destaque para o casal Joca e Curiango. Curiango é apresentada como uma moça bonita, alegre
e simpática. Joca é um trabalhador braçal do lugar e se enamora por ela desde quando a vê. Na festa de
casamento de Cecília e Antônio, eles dançam juntos, mas no dia seguinte Joca é encontrado machucado e tendo
alucinações. Daí em diante, a história focaliza na relação dos dois e em como Joca será assolado de forma
misteriosa pela Mãe de Ouro, entidade do folclore brasileiro, bastante popular em algumas regiões do Brasil. Ela
aparece frequentemente sob a forma de uma bola de fogo ou de uma linda mulher. No romance, a Mãe de Ouro
toma a forma de uma bola de fogo que cruza o céu, como uma estrela cadente.

“Quase madrugada, em junho. Tudo escuro como breu [...]. Nessa hora uma coisa, feito uma estrela grande,
despencou e foi caindo, até sumir do outro lado da terra. O João Rosa falou baixinho, meio com medo: – A Mãe
de Ouro... – Louvado seja Deus! Sempre vi, na minha vida, essa Mãe de Ouro tão falada. Aí, o Joca entrou no meio
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da conversa: – Mãe de Ouro... Hum... – espichou o beiço com pouco caso. – Mãe de Ouro, Mãe de bosta, com
perdão da má palavra. Aquilo é uma estrela que mudou de lugar. – Ela escuta, Joca! – Que escute! – Se não
acredita, não abusa... Ele agravou a Mãe de Ouro, porque era abusante como ele só. Mas pegou. Ela escutou a
praga e veio. Porque, se não fosse praga, podia ser que ele escapasse.”

Apesar de saber das alucinações de Joca, Curiango se casa com ele. Após o nascimento da filha, Joca
começa a trabalhar como foguista na usina de açúcar Olhos D’Água, levando uma vida aparentemente normal
com a sua família. Com o decorrer do tempo, ele assume um comportamento ainda mais estranho, enfrentando
mais crises, em que se vê perseguido pela Mãe de Ouro. O que é tratado racionalmente como loucura pode ser
entendido como a maldição que se cumpre, pois, como castigo de ter zombado de Mãe de Ouro, Joca perde o
juízo e, atendendo ao chamado dessa entidade folclórica, torna-se um errante. O romance, assim, através do
mistério e do imaginário caipira, dialoga com a tradição latino-americana do século XX, antecipando o que se
chamaria Realismo Mágico.
É um romance sobre os embates do povo com os papeis a ele destinados naquele sistema cultural, social e
econômico, envolvendo vários temas como casamento, a fidelidade, a opressão de classe, raça e gênero, e a
inadaptação decorrente desse jogo com a terra e a sobrevivência, que os leva à morte, à doença ou à loucura.
Tanto Sinhá como Joca, dois dos protagonistas, sofrem um processo de perda da “razão”, justificados pela praga,
pela maldição.

O NARRADOR E A LINGUAGEM DO ROMANCE


O narrador da obra requer do estudante atenção. O romance é “escrito como se fosse prosa fiada, como se
fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos.”
(CANDIDO, 2003).
A obra é narrada em primeira pessoa, como uma testemunha do que está relatando. Não há indicações
claras de gênero, posição social ou idade desse narrador, sendo impossível ser taxativo quanto à sua identidade,
ainda que algumas leituras suponham que esse narrador seja um alter-ego da própria autora, que é originária da
região onde se passa a história. Em certos momentos a voz narrativa assume um comportamento onisciente,
reproduzindo de forma direta relatos e falas de outros habitantes da região, incorporando à narrativa a voz do
povo, que cola à sua interpretação dos eventos. Além disso, a narrativa se estabelece com um funcionamento de
contação de história: há um interlocutor presente, cuja fala jamais se ouve/lê, mas de presença visível na voz do
narrador.

“Se era boa? Tão boa como mel de jati. É que a Mãe de Ouro tinha enfeitiçado o homem. A Mãe de Ouro
mora do outro lado da serra. Pra lá fica Juruna, no Itaparica, e é um estirão de mais de cem vezes a distância de
Nossa Senhora dos Olhos D’água a Maria da Fé. Pois ele bateu a pé, moço, com o sapicuá de farinha nas costas.
(...) mas é melhor contar do começo.”

Além disso, o narrador: a) é membro da comunidade, que assistiu de perto alguns eventos narrados; b)
está presente na fazenda em torno do qual gira a história

a) “Eu vi, quando a morte chegou. Vi na cara do Santana. Tinha escutado os tiros, tinha visto facão luzindo,
tinha sentido a raiva, que agarrou aquela gente, feito uma tentação do demo. Mas nada disso era a morte. A
magra eu vi na cara do Santana. Quando ele se ajoelhou, ela estava chegando. Ele foi largando o ferro, a mo’que
alguém estivesse abrindo devagarinho os dedos dele.”

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b) “Sinhô tinha saído cedo, a cavalo:
– Carolina!
Apareceu montado e ficou por baixo da janela do quarto. Aquela. Olhe daqui. A paineira já existia e devia
estar florida. As andorinhas que vêm voltando não se sabe de onde para estes beirais encardidos (...)”

Quanto à linguagem, à obra remete ao universo oral do dialeto rural e caipira. Apresentando essa
estrutura de contação de causos, a voz narrativa recorre a termos que remetem ao cotidiano do trabalho rural, à
vida interiorana, a ditos populares, a elipses e onomatopeias, acompanhadas de performances que são eventos
próprios da oralidade.

“É ditado dos antigos: casamento que começa com foguete, acaba com porrete”
“[Gertrudes] mal chegava, pegava a cuia cheia de milho e chamava: quit, quit, quit, quit, quit, prrrrrrrrrrrrr”

É importante assinalar que, diferente do regionalismo menos elaborado, a autora não recorreu ao exotismo

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pitoresco para construção das personagens e do universo caipira, com figuras que não são estereotipadas ou
caricaturais. No dizer de Antonio Candido, em prefácio à obra, “em Água Funda, caracterizado pela elaboração
arte-ficial de uma linguagem que obedece à disciplina da gramática, e, ao mesmo tempo, parece sair da boca do
povo rústico.”

ESPAÇO E TEMPO NO ROMANCE


No que diz respeito ao espaço, é importante perceber duas possibilidades para a abordagem da prova. O
primeiro diz respeito ao espaço ficcional do romance, que é a Fazenda Nossa Senhora dos Olhos D’água,
chamada, na maior parte do tempo, apenas de Olhos D’água. É ali e nos arredores que se desenvolve a história.
Em um segundo momento do livro, a fazenda é vendida para a Companhia, que a transforma em uma usina de
açúcar. Entretanto, é interessante também lembrar que há um mundo real sendo representado, que é o já citado
universo caipira. A história transcorre no sul de MG – fala-se de Itajubá, mas há citações a cidades do Vale do
Paraíba, como Cruzeiro, por exemplo.
Por fim, como uma história que deseja mimetizar a tradição oral de contar histórias, o romance não
avança de maneira perfeitamente linear. O narrador começa reconstituindo o passado para depois avançar no
tempo presente, porém com um ir e vir constante, ora curtos, ora longos, chegando a embaralhar a precisão da
cronologia.

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I
O romance inicia com o Coronel Aureliano Buendia, diante de um pelotão de fuzilamento, lembrando o dia
em que seu pai o levara para conhecer o gelo. Aqui, o narrador retorna no tempo para explicar a cena: todos os
anos, uma família de ciganos passava pela cidade levando inúmeras novidades. Melquíades era quem as
apresentava a José Arcadio Buendia, entusiasta de toda sorte de objetos apresentados. A mais impactante
novidade oferecida – depois de duas barras de ímã e uma lupa – foi um laboratório rudimentar de alquimia. Em
sua primeira experiência, ele tenta duplicar uma quantia de ouro – herança paterna de sua esposa –, mas o
resultado foi um torresmo carbonizado que se grudou ao fundo do caldeirão. Logo em seguida, José Arcadio
Buendia perde o interesse pela alquimia e torna-se um homem desleixado com a aparência e com a higiene, mas
ainda curioso com as possibilidades que o mundo lhe ofertava. Tanto, que, certo dia, ele decide empreender uma
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longa aventura em busca de ligar Macondo ao mundo, mas depois de muitos dias de viagem e de privações sua
expedição volta para a cidade sem alcançar nenhum lugar especial. Em seguida, ele pensa em partir apenas com a
esposa, Úrsula, mas ela não aceita abandonar a cidade em que tivera um filho. Frente ao argumento de que não
havendo um morto na cidade, eles não pertenceriam a Macondo, ela afirma estar disposta até mesmo a se tornar
a primeira morta da cidade para que eles não abandonassem o lugar. Neste momento, o casal já tinha dois filhos,
José Arcadio – o mais velho, nascido durante a mudança até a cidade – e Aureliano – o primeiro nascido ali. É
neste momento que José Arcadio Buendia, com a chegada dos ciganos (sem Melquíades, que supostamente havia
morrido), leva seus filhos para verem as novidades trazidas pelo grupo: o gelo que surge na memória do Coronel
Aureliano Buendia quando este estava prestes a ser executado.

II
O narrador volta no tempo para explicar a relação de Úrsula e José Arcadio Buendia: eles são primos, o que
causava certo temor no casal com a possibilidade de terem filhos com alguma deficiência – eles sabiam de um
caso em que uma criança nascera com um rabo de porco. Visto que sua mãe lhe atormentara com as possíveis
consequências do casamento, Úrsula decide não se entregar sexualmente ao marido. O fato acaba tornando-se
público e alvo de comentários maldosos sobre uma possível impotência do marido. Certo dia, depois de ganhar
uma disputa de rinha de galo, José Arcadio Buendia é provocado por Prudêncio Aguilar e o mata com uma lança.
Naquela mesma noite, ele exige que sua esposa não vista a calça de castidade e que transem, mesmo que ela
parisse iguanas mais tarde. Em seguida, o espírito de Prudêncio Aguilar começa a aparecer para o casal. Depois de
inúmeras aparições, José Arcadio Buendia resolve partir do povoado em que viviam para tentar se livrar do
espírito do outro. Depois de muitos meses de viagem, acompanhados de outros jovens casais, José Arcadio
Buendia tem um sonho em que fundaria uma cidade no local em que eles se encontravam, Macondo – termo que
não tinha um significado especial e que ele nunca tinha ouvido.
De volta ao presente, ocorre o nascimento de Amaranta. Certo dia, Úrsula flagra o jovem adulto José
Arcadio nu e se surpreende com o tamanho do pênis do filho, que lhe parecia uma anomalia, devido ao seu
imenso tamanho. Com medo do que isso poderia causar no filho, ela decide chamar uma mulher, Pilar Ternera,
para jogar cartas e descobrir o futuro do filho. Curioso com o relato sobre o membro do rapaz, ela passa a
encontrá-lo na despensa da casa. Os dois iniciam um caso, e logo ela engravida. Contudo ele passa a evitar a
presença de Pilar e, depois de se envolver com uma jovem cigana, decide fugir com a caravana dos ciganos. Úrsula
não pensa duas vezes e parte atrás do seu filho, mas, depois de cinco meses de busca, ela retorna para a cidade
sem o filho.

III
Duas semanas após o nascimento, Pilar Ternera leva o filho que tivera para a casa dos avós, mesmo com a
contrariedade de Úrsula. A criança recebe o nome de José Arcadio, mas, para evitar confusão, é chamado apenas
de Arcadio. Ele e sua tia Amaranta praticamente são criados por uma mulher indígena, Visitación, porque a família
Buendia ocupava-se de tarefas prioritárias – Macondo crescia. José Arcadio Buendia torna-se pessoa influente na
cidade, enquanto Úrsula passa a vender doces em profusão. Já Aureliano mostra interesse pela ourivesaria e cada
vez mais apresenta a capacidade de prever acontecimentos, como a chegada de Rebeca. A menina de 11 anos era
prima distante de Úrsula, tinha o hábito de comer terra e reboco e é identificada por Visitación como portadora
da peste da insônia. José Arcadio Buendia argumenta que isso seria bom para todos, pois a vida renderia mais sem
dormir. Porém, a indígena expõe que o pior da doença era o esquecimento que acometeria toda população. Isso
realmente acontece e fez com que as pessoas colassem pequenos recados nas coisas, lembrando o nome e a
função de tudo. A peste passa quando um ancião chega à cidade e distribui frascos para a população – era
Melquíades. Os dois velhos amigos jogam-se de cabeça nos estudos de Nostradamus e da daguerreotipia.
Neste momento, chega à cidade a figura de Apolinar Moscote, delegado enviado pelo governo ao povoado.
Contudo, José Arcadio Buendia não aceita a figura na nova autoridade, que havia ordenado as pessoas a pintarem
suas casas de azul. Eles discutem, e José Arcadio Buendia praticamente o expulsa da cidade. Uma semana depois,
Apolinar retorna acompanhado de seis soldados e de sua família. José Arcadio Buendia resolve a questão com

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diplomacia: aceitaria a presença do outro pelo fato de ele estar acompanhado da esposa e das filhas, Amparo, de
16 anos, e Remédio, de 9. A condição: cada um pintar a casa com a cor que bem escolhesse e que os soldados
fossem embora. Aureliano, ao ver a filha mais nova de Apolinar sentiu uma sensação física estranha, como uma
pedrinha no sapato.

IV
A casa da família Buendia é ampliada em função do aumento da família e também devido ao crescimento
de Rebeca e Amaranta. Também é adquirida uma pianola, que seria montada por um técnico italiano, Pietro
Crespi. Ele torna-se próximo da família e apaixona-se por Rebeca, com quem troca várias cartas secretas. Porém
ela não é a sua única conquista, pois Amaranta também estava encantada pela figura do italiano. Também
apaixonado estava Aureliano pela menina Remédios, e a sua paixão ganha o apoio de Pilar Ternera na conquista
da menina. Ao saber de todas as paixões da família, José Arcadio Buendia aceita que o filho proponha casamento
a Remédios com a condição de que Pilar se casasse com a paixão correspondida, Rebeca. Amaranta finge aceitar a
decisão, mas promete a si que isso só aconteceria por cima de seu cadáver – ela chega a falar para Rebeca que até

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mesmo a mataria para impedir a união. José Arcadio Buendia, então, procura Apolinar Moscote, que não fica
satisfeito com o pedido da mão de sua filha que ainda fazia pipi na cama. Contudo o pai acaba aceitando a
proposta.
Neste momento da obra, Melquíades morre, o primeiro morto de Macondo. José Arcadio Buendia sofre
com a perda do amigo, ao mesmo tempo em que é encontrado mais uma vez pelo espírito de Prudêncio Aguilar, o
homem que matara muitos anos antes. Ele termina por enlouquecer, chamando os mortos, o espírito de
Prudêncio. Para acalmar sua fúria, ele é amarrado ao tronco de um castanheiro.

V
Aureliano casa-se com Remédios logo após chegar à puberdade – condição para o casamento – e mesmo
com a menina mantendo hábitos infantis. Também ocorreria o casamento de Pietro e Rebeca no mesmo dia, mas
o noivo havia recebido uma carta avisando que sua mãe estaria doente poucos dias antes – era falsa. Amaranta
jura inocência sobre o incidente, mas isso faz com que a união dele não ocorra. Padre Nicanor foi o responsável
pela celebração de casamento de Aureliano. Ele decide permanecer na cidade – tendo em vista que inúmeras
crianças não haviam sido batizadas – e construir um templo. O religioso ganha respeito da comunidade quando,
ao rezar, levita alguns centímetros. José Aureliano Buendia, contudo, ainda mostrava-se cético em relação à
existência de Deus, exigindo como prova um daguerreotipo Dele. Os dois tornam-se íntimos e todos os dias
conversavam em Latim – a estranha língua que José Aureliano Buendia passara a utilizar – sob o castanheiro. O
templo imaginado pelo padre seria inaugurado com o casamento de Rebeca com Pietro, que chega a fazer uma
grande contribuição para que a cerimônia se realizasse de uma vez. Amaranta, enciumada, resolve agir e sabota o
vestido de noiva de sua irmã, mas Amparo se compromete a costurar um novo a tempo. Ela chega a pensar até
mesmo em envenenar a irmã, mas outro incidente atrapalha o casamento de Pietro e Rebeca: a menina Remédios
engravida, aborta e morre. Amaranta sente-se culpada porque havia desejado que um obstáculo impedisse a união
da irmã, mas não algo assim. Aureliano mantém a amizade com seu ex-sogro, visitando-o frequentemente. Este
até oferece-lhe outra filha, mas o Buendia não aceita a oferta.
Em meio ao luto familiar, José Arcadio volta para a cidade. Ele estava ainda mais forte do que antes,
completamente tatuado e causou furor nas mulheres da cidade – até mesmo em Rebeca. A atração mútua foi
mais forte do que os laços familiares, e eles se entregam à paixão, apesar da contrariedade de Úrsula. Pietro,
então, aproxima-se de Amaranta, que, passivamente, aceita a corte.
Neste momento, eleições são realizadas na cidade. As cédulas azuis e vermelhas tinham quase o mesmo
número, mas Apolinar – o responsável legal pela votação – deixa apenas 10 cédulas vermelhas (liberais). Aureliano
parece simpatizar mais com a causa liberal do que com o conservadorismo do ex-sogro. A revolução não tardou a
chegar em Macondo: o doutor Alírio Nogueira – rebelde – é fuzilado em praça pública. Aureliano reage, reúne
alguns homens com quem compartilhava ideias liberais e toma a cidade, nomeando Arcadio como chefe civil e
militar da praça e se autointitulando Coronel Aureliano Buendia.
Neste momento da história, o filho de Pilar e Aureliano já havia nascido e sido batizado: Aureliano José.

VI
O capítulo inicia com o narrador expondo fatos da vida militar do Coronel Aureliano Buendia: ele tinha
promovido 32 revoluções armadas e tinha perdido todas. Também tivera 17 filhos varões – todos mortos um por
um – de 17 mulheres diferentes. Conseguiu escapar de 14 atentados, 73 emboscadas e de um pelotão de
fuzilamento. Antes de tudo isso, Aureliano parte da cidade acompanhado de 21 homens para juntar-se às forças
do Gal. Victorio Medina. Arcadio fica encarregado de cuidar da cidade, mas ele termina por se tornar uma espécie
de ditador de Macondo. Ele, inclusive, decide fuzilar Apolinar, mas é impedido por Úrsula, que o açoita na frente
de todos. Certo dia, Arcadio foi até a casa de José Arcadio e Rebeca porque havia recebido uma denúncia contra
ele, que estaria se apoderando de terras com o argumento que quando seu pai as dera ele já não tinha juízo.
Arcadio não chegou a fazer nada contra José Arcadio porque foi fuzilado antes quando os inimigos tomaram a
cidade. Ele deixa uma filha com a jovem Piedad e ainda mais um filho na barriga da mulher.

13
Enquanto isso, Pietro ainda mantinha sua relação com Amaranta, mas, depois de ela afirmar que nunca iria
casar-se com ele, o italiano comete suicídio em seguida, cortando seus pulsos.

VII
Neste momento da história, Cel. Aureliano Buendia, rebelde liberal, é preso e condenado à morte. O ato
seria executado na cidade de Macondo, mas os militares tinham medo da reação popular. Ainda assim, a execução
é marcada e teria como responsável o Capitão Roque Carnicero. Na hora em que ele seria morto, contudo, José
Arcadio aparece armado. O capitão responsável pela morte diz que ele fora enviado a mando da Divina
Providência: a execução é suspensa, e Roque Carnicero inicia uma nova revolução ao lado do Cel. Aureliano, que
se torna chefe das forças revolucionárias do Caribe. A partir daí, inúmeras informações desencontradas sobre o
destino do coronel são divulgadas pela Colômbia, mas o fato concreto é a sua presença na tomada da cidade de
Macondo. Um de seus homens de confiança é Gerineldo Márquez, militar que tenta se casar com Amaranta, mas
ela é categórica ao afirmar que não se casaria com ninguém. Paralelamente a isso, a família aumenta: Sofia de la
Piedad dá à luz os gêmeos que esperava de Arcadio (além da menina Remédios): Jose Arcadio Segundo e
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Aureliano Segundo.
Um dos acontecimentos marcantes do capítulo é a misteriosa – e nunca solucionada – morte de José
Arcadio: ele toma um tiro no ouvido. Rebeca, embora estivesse em casa, afirma que não sabia como isso tinha
acontecido. O rastro de sangue cruza toda a cidade indo diretamente até Úrsula, que o segue de volta até sua
casa. O cheiro de pólvora toma a cidade e não sai do corpo do morto.
Outra morte marcante do capítulo é a de José Arcadio Buendia, patriarca da família que praticamente só
mantinha contato com o espírito de Prudêncio Aguilar. Após sua morte – aparentemente de causa naturais – uma
chuva de flores amarelas cai sobre a cidade.

VIII
Amaranta é quem basicamente cria Aureliano José, que, inicialmente observava a nudez de sua tia de forma
inocente. Porém, mais tarde, ele passa a olhá-la com desejo, até mesmo procurando o seu leito.
Já sobre a revolução, mais informações desencontradas tomam o país, inclusive, surge a possibilidade de
um armistício, com o qual o Cel. Aureliano Buendia se mostra contrário. Quando a trégua é firmada entre liberais
e conservadores, ele organiza um novo levante e parte do país. Aureliano José segue-o para o exterior, mas volta
em seguida depois de ter ouvido um relato sobre uma relação entre um sobrinho e sua tia – ele retorna porque
nunca deixara de pensar em Amaranta. A relação não se materializa porque – além de ela evitá-lo – ele é morto
em seguida ao ir ao teatro e não aceitar ser revistado. O responsável por sua morte, Cap. Aquiles Ricardo, é morto
por um atirador desconhecido exatamente no momento em que ele atirava no Buendia: é baleado por mais de
400 homens.
Neste momento, Macondo se desenvolve e se torna um município governado pelo Gal. Moncada. Ele
mantinha uma relação amistosa com o Cel. Aureliano, apesar de pertencerem a partidos rivais. Porém, após
retornar ao país, o rebelde Buendia e seus homens capturam-no e o condenam à morte. No último encontro entre
eles, Moncada afirma que de tanto combater os militares, Cel. Aureliano Buendia estava se tornando igual a eles –
e nenhum ideal poderia merecer tanta baixeza.

IX
O capítulo inicia com a exposição da forma como Cel. Gerinaldo Marquez via a guerra: ele percebera o
vazio de tudo e passara a ter um comportamento mecânico em relação ao conflito. Em sua vida, apenas as
tentativas de se aproximar de Amaranta ainda pareciam fazer algum sentido, mesmo sem ela nunca ter dado
alguma esperança a ele.
Neste momento, Cel. Aureliano Buendia retorna a Macondo transformado: rodeado de amantes, tratando a
guerra com descaso, cercado de seguranças que não deixavam ninguém chegar a menos de 3 metros de sua
pessoa. Ele aceita flexibilizar algumas leis que fariam com que suas ações se aproximassem da postura dos
conservadores. Gerinaldo Marquez afirma que isso seria uma traição à revolução. Automaticamente, ele recebe
ordem para depor suas armas e para se apresentar às autoridades militares. Em seguida, é condenado à morte.
Sua mãe, Úrsula, fica indignada com a decisão contra Gerinaldo e afirma que depois de ver o cadáver do outro iria
matá-lo com suas próprias mãos. Cel. Aureliano Buendia fica horas remoendo as palavras ouvidas e muda
radicalmente sua postura: ele liberta o antigo amigo que condenara à morte e o convida para acabar com a guerra.
Eles levam anos para fazer com o conflito acabasse, e, logo depois de assinar o armistício, ele tenta o suicídio. Só
não dá certo porque o médico que fora consultado mentira sobre a localização do coração – ele indicara um
ângulo que não atingiria nenhum órgão vital, imaginando que o coronel poderia tentar se matar.

X
O capítulo inicia com a afirmação de que Aureliano Segundo lembraria no leito de morte do dia em que
conheceu seu primeiro filho com Fernanda del Carpio, José Arcadio. Mais uma vez os nomes se repetiam, para
desolação de Úrsula, que, em função dos anos de experiência, sabia o que os nomes acarretavam nos homens:
Aurelianos eram mais lúcidos e retraídos; José Arcadio, impulsivos e empreendedores. Para ela, contudo, os

14
gêmeos Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo eram inclassificáveis até mesmo pelo fato de eles terem
brincado de trocar suas identidades na infância, dificultando a precisão sobre quem cada um realmente era.
Aureliano Segundo mostra-se interessado pelos livros de Melquíades que ainda eram guardados na casa da
família Buendia – inclusive, o cigano costumava aparecer para ele. Ele inclusive revela que seus manuscritos
deveriam ser traduzidos apenas depois de 100 anos. Já José Arcadio Segundo demonstra ainda na juventude o
desejo de ver um homem ser fuzilado. Ele finalmente assiste a uma execução, mas a experiência mostra-se
traumática: ele nunca esqueceu a cena e o pavor de imaginar que a vítima poderia ter sido enterrada ainda vivo.
Os dois gêmeos partilhavam, contudo, a mesma mulher, Petra Cortes, que acaba se tornando amante de
Aureliano até o final de sua vida. A causa que faz com que sua esposa – Fernanda – permita o caso: os animais
que ele criava tinham uma fertilidade muito acima da média que era atribuída à amante.
Neste momento, Remédios havia se recebido a alcunha de a bela, claro, em função da sua beleza
indescritível. Vários homens, inclusive, desgraçam suas vidas tentando conquistar a menina, que apresenta um
comportamento que parecia revelar certo retardo mental.

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XI
O capítulo inicia com o narrador afirmando que o casamento de Aureliano Segundo e Fernanda não seguia
um rumo amistoso: ela sabia da relação do marido com Petra Cortes e tentou até mesmo fugir de Macondo – não
concretizara a fuga porque ele a alcança já saindo da cidade. A amante não se abala com o abandono do outro,
pois ela sabia que mais cedo ou mais tarde ele voltaria para seus braços.
Neste momento, o narrador conta a história de Fernanda: a família a criara de uma maneira pomposa,
fantasiosa, iludindo a menina com a ideia de que ela era de uma família rica e de que ela seria uma rainha. Assim, a
família dilapida seus poucos bens na construção dessa quimera, oportunizando à menina uma educação primorosa
– até mesmo na instituição ela era reconhecida como diferente. A educação casta e religiosa que teve terminou
por atrapalhar seu casamento com Aureliano Segundo: tirados dias santos e os impedimentos cíclicos, sobravam
apenas 42 dias para que ela pudesse atender aos desejos do marido. Isso fortaleceu o caso dele com Petra Cortes,
ainda mais porque a relação seria responsável pela fertilidade dos animais que ele criava e que lhe dava a
oportunidade de oferecer grandes festas.
A relação de Fernanda com a família Buendia mostra-se tensa, pois ela não aceita o comportamento um
tanto quanto informal que ela encontra na casa. Como Úrsula não tem mais idade para impor sua vontade,
Fernanda termina por mudar a rotina da casa: inclui formalidades nas refeições cotidianas, acaba com os negócios
de doces da família e até mesmo fecha as portas e janelas da casa – sempre reconhecida pela hospitalidade. Ela
também rompe com a repetição dos nomes na família (seu primeiro filho, Jose Arcadio, fora assim batizado
porque ela ainda não tinha o controle da situação) quando nasce sua segunda filha: ela impõe o nome de Renata.
Úrsula, contudo, insiste em Remédios. A solução: a menina é batizada de Renata Remédios – sendo chamada
basicamente de Meme.
Neste momento, em função do jubileu da revolução, o governo prepara uma homenagem ao Cel. Aureliano
Buendia, mas este se recusa a aceitar e/ou participar. Seus 17 filhos, todos Aurelianos alguma coisa, aparecem na
cidade e são batizados na igreja, ato que faz com que eles fiquem com uma marca da cruz cinza em suas testas.
Um deles permanece na cidade, Aureliano Triste, que funda uma fábrica de gelo na cidade e que também traz
para a cidade a estrada de ferro, que, de acordo com o narrador, traria tantas alegrias e tristezas à cidade.

XII
Com o trem chegando, Macondo começa a se desenvolver e até mesmo na área cultural, por exemplo, com
a inauguração de um cinema. A cidade passa a conviver com uma intensa movimentação de pessoas, e dentre elas
uma ganha destaque na obra, Mr. Herbert. Depois de se hospedar e de provar a exótica banana, o americano
passa a realizar pesquisas na região. Em seguida, ele traz uma grande equipe (engenheiros, agrônomos, hidrólogos,
topógrafos) e começa a construir uma vila americana na cidade. O objetivo: investir numa indústria bananeira. Os
americanos passam a intervir em tudo na cidade, até mesmo na segurança, agora feita por sicários armados de
facões. Certo dia, um menino derrama um pouco de suco na farda de um. Resultado: a criança é esquartejada
junto de seu avô, que tentou intervir. Cel. Aureliano Buendia, trancado em casa, indigna-se e comenta que um dia
ainda reuniria seus homens e acabaria com os ianques. Em seguida, seus filhos são mortos um a um – apenas
Aureliano Amador, o mais velho, sobrevive à perseguição. Revoltado com os acontecimentos, Cel. Aureliano
Buendia tenta reunir seus antigos companheiros de revolução, mas Gerineldo Marquez faz pouco caso da
tentativa e afirma que na verdade ele estava velho.
Paralelamente a isso Remédios, a bela, continua a encantar inúmeros homens, mas sem concretizar
nenhuma relação. O seu comportamento aponta um possível retardo mental, mas seu destino é inesperado: ela
ascende aos céus. O fato não ganha tanta repercussão pública devido às mortes dos Aurelianos.

XIII
Praticamente cega, Úrsula não fala sobre seu estado para os outros e, usando de muita sagacidade, decora a
posição das coisas e a rotina da casa. O tempo, na opinião dela, já não é o mesmo de antigamente, principalmente
no crescimento das crianças. Ela torna-se responsável por José Arcadio, jovem criado para que assumisse uma

15
carreira religiosa – podendo até ser Papa! Ela também demonstra lucidez ao analisar o comportamento amoroso
dos familiares: que Amaranta tinha medo de amar; que o Coronel Aureliano Buendia chorara no ventre, o que o
incapacitou para o amor; que Rebeca era a única que tivera coragem para amar – a única que não tinha se
alimentado do seu leite, mas, sim, da terra e da cal, que ela tanto comera na infância.
Neste momento, Fernanda torna-se a dona da casa dos Buendia, coordenando a rotina de todos. Ela só não
consegue lidar com o gênio do marido, que praticamente se transfere para a casa da amante Petra Corte – ainda
com o argumento da fertilidade dos animais que criava. Ela tenta humilhar o marido, mandando-lhe baús com suas
roupas, mas ele adora a iniciativa da esposa. Mesmo assim, ela exige que o marido finja ao seu lado viver em
franca harmonia nos momentos em que Meme lhes visitava nas folgas do colégio de freiras em que estudava – o
filho, José Arcadio, já tinha partido para o seminário. Numa das visitas, Meme leva dezenas de colegas para sua
casa, gerando um caos generalizado. Ela tinha o mesmo espírito festivo do seu pai, para desespero de Fernanda.
A presença das colegas na casa provoca em Cel. Aureliano Buendia um sentimento de desespero. Sua
atitude um tanto quanto raivosa só ameniza seu semblante quando ele vê o desfile de um circo chegando à
cidade. A experiência parece fazer com que ele tenha uma experiência inocente – longe da seriedade e urgência
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das dezenas de revoluções que liderara. Ele vai ao castanheiro da casa, inclina-se ali e morre.

XIV
No início do capítulo, o narrador anuncia que Fernanda e Aureliano Segundo – apesar da situação crítica
que sempre os marcara – tinham tido outra filha, Amaranta Úrsula, e que Meme havia concluído seus estudos de
clavicórdio no colégio religioso. A relação dela com o pai mostra-se bastante próxima neste momento da família, a
ponto de ela entender e concordar com a relação adúltera do pai com Petra Cortes. Ela também mantém amizade
com meninas americanas que viviam na vila da indústria bananeira e passa a adotar alguns hábitos americanizados.
Paralelamente a isso, Amaranta tece sua própria mortalha, a pedido da própria Morte, que aparecera para
ela em diversas oportunidades. Inclusive, ela morreria depois de finalizar a sua mortalha. Como o momento da sua
morte já estava definido, Amaranta afirma que poderia levar cartas dos vivos aos mortos e que morreria virgem
como viera ao mundo.
Já Úrsula, embora cega, é a primeira a perceber – muitos antes do flagra da mãe – que Meme estava
escondendo algo: um namorado. Fernanda a surpreendera no cinema com um homem, Maurício Babilônia,
aprendiz de mecânico da empresa bananeira. Um fato curioso é que sempre a sua presença é antecedida por uma
invasão de borboletas amarelas. Isso ocorre nos momentos em que Meme tomava banho, por exemplo. Fernanda,
completamente contrária à relação, consegue um guarda para vigiar a casa com a desculpa de que suas galinhas
estavam sendo roubadas. Numa noite, Maurício Babilônia é baleado no momento em que tentava furtar galinhas.
Ele morre em seguida.

XV
Depois de perder seu amado, Meme permanece em estado catatônico e assim é levada por sua mãe para o
antigo colégio em que Fernanda estudara. Alguns meses depois, uma freira aparece na casa da família com uma
criança: filho de Meme. A criança havia recebido o nome de Aureliano por parte do diretor do colégio em função
do nome do avô (Aureliano Segundo) e porque a mãe não se manifestava para nada. A primeira ideia de Fernanda
é afogar a criança indesejada, mas ela não tem coragem de realizar o ato e resolve esconder a origem da criança
de todos – ela teria sido encontrada flutuando numa cestinha no rio. Fernanda não discute com seu marido o
destino da filha e mente, afirmando que ela optara pela clausura.
Paralelamente a isso, Macondo recebe uma série de militares, que se dirigiam à cidade por causa de uma
greve geral que estava sendo organizada por José Arcadio Segundo, que abandona o cargo que exercia para se
tornar um líder do partido dos trabalhadores. Ele estava motivado ao ato em função das péssimas condições de
trabalho impostas aos funcionários da companhia bananeira. Com a greve, a produção da companhia é abalada, e
os militares são chamados para que a ordem fosse restabelecida. Eles, inclusive, protagonizam um gigantesco
massacre na praça da cidade. Os mortos – seriam algo em torno de 3 mil – são colocados num trem e levados
para fora de Macondo. Dentre eles, um sobrevivente, José Aureliano Segundo, que consegue descer do trem e
voltar para a cidade. Contudo, ninguém sabe/aceita que um massacre tido sido cometido, como se tudo tivesse
sido a imaginação de José Aureliano Segundo.
A greve é extinta, e um acordo é firmado entre os dirigentes e os funcionários, mas ele não é assinado
devido às intensas chuvas que caiam sobre a cidade de Macondo.

XVI
A chuva que começara a cair no capítulo anterior dura 4 anos, 11 meses e 2 dias. Aureliano Segundo, que
passava a maior parte do tempo na casa de Petra Cortes, fica na casa da família com sua esposa até a chuva estiar.
Ele organiza uma série de melhorias na casa e, certo dia, por um descuido de Fernanda, ele encontra seu neto,
Aureliano, filho de Meme. O avô cria um forte laço com o menino e apresenta-lhe uma velha enciclopédia
presente na casa, preenchendo com a imaginação tudo aquilo que ele não sabia explicar. A relação com Fernanda,
porém, se desgasta devido às cobranças por comida. Certo dia, ele quebra objetos da casa, sai e volta com
comida.

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Para as crianças Amaranta Úrsula e Aureliano, a época das chuvas seria lembrada com carinho pelas
brincadeiras que fizeram na casa, principalmente com Úrsula, a essa altura já sem as faculdades mentais plenas.
Já Aureliano Segundo sonha encontrar moedas de ouro que haviam sido encontradas dentro de uma
estátua de um santo. A imagem simplesmente apareceu na casa sem que ninguém soubesse a sua origem e/ou
propriedade. Úrsula tenta, durante anos, encontrar seu verdadeiro dono e resolve esconder as moedas até achá-
lo. Questionada por Aureliano Segundo, ela não revela o destino do tesouro. Nem mesmo as escavações na
propriedade permitem que ele encontre as moedas.
Quando as chuvas cessam, Macondo está destruída, a companhia bananeira havia partido. Petra Cortes
conseguira sobreviver e manter uma única cabra – que chegou a comer até mesmo os lençóis e tapetes de luxo
que ela ainda mantinha na casa. Seu objetivo: rifar o animal – algo que iria tornar-se um negócio dela e de
Aureliano Segundo.

XVII
Úrsula havia prometido que morreria quando estiasse, e os lampejos de lucidez fazem com que ela fique

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triste por ter servido de brinquedo para as crianças por tanto tempo. É neste capítulo que ela vive uma reflexão
marcante: a percepção de que o tempo parecia andar em círculos, com a repetição de uma série de elementos.
Seus momentos de razão cessam, e Úrsula passa a encontrar os mortos de sua família, desde a figura de seu
bisavô, Aureliano Arcadio Buendia. Em seguida, numa quinta-feira Santa, depois de passar vários dias
completamente muda, ela morre. Sua idade é estimada entre 115 e 122 anos.
Aureliano (filho de Meme) mantém sua rotina praticamente trancado em casa, enquanto Úrsula Amaranta
tem a permissão para estudar. Contudo o convívio no lar dos Buendia faz com que ele se torne próximo de seu
tio-avô, José Arcadio Segundo, que lhe ensina a escrever e lhe conta inúmeras histórias. Assim, mesmo vivendo
de forma isolada do mundo, Aureliano adquire um vasto conhecimento cultural.
Neste momento, Aureliano Segundo e Petra Cortes sobrevivem com vendendo números de rifas de
animais, que eram comprados mais por caridade do que por convicção. Com o dinheiro, eles conseguem dar um
sustento digno a Fernanda. Mais tarde, eles rifam as terras devastadas pelo dilúvio, o que permite Aureliano
Segundo mandar Amaranta Úrsula para estudar na Bélgica.
Neste capítulo, ocorrem as mortes de alguns personagens importantes, como Rebeca – ela é encontrada no
seu quarto, deitada, com o dedo na boca; e os gêmeos Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo – eles morrem
ao mesmo tempo: José Arcádio, enquanto conversava com Aureliano e reforçava a sua teoria das mortes durante
a greve geral; Aureliano Segundo morre na cama de Fernanda depois de ter sofrido com dores lancinantes na
garganta.

XVIII
O narrador inicia o capítulo reforçando a curiosidade de Aureliano, que aprende muito nos livros de
Melquíades sobre História e Cultura Antigas, mas nada do seu tempo. Neste momento, ele mantém conversas
com espírito do cigano, que lhe indica um livro para aprender sânscrito e traduzir os manuscritos de Melquíades.
Neste momento, Santa Sofia de la Piedad desiste de viver na casa e simplesmente parte de Macondo.
Fernanda, por sua vez, morre 4 meses antes da volta de seu filho, José Arcadio. Supostamente, ele tinha se
tornado padre, mas o narrador revela que na verdade tudo não passara de uma armação para agradar sua mãe e
herdar as supostas riquezas que a família possuía. Ela lhe deixara uma carta, na qual explica a origem de Aureliano.
José Arcadio passa a levar meninos para a casa, na qual apenas ele e o sobrinho ainda viviam. Certo dia, ele
encontra as moedas de ouro que Úrsula havia escondido e passa a oferecer a esses meninos festas regadas a
muita comida e bebida. Uma noite, contudo, ele os vê nus sobre a cama depois de destruírem móveis da casa.
José Arcadio expulsa os meninos com duros açoites.
Enquanto isso, Aureliano se contentava em permanecer no quarto, se dedicando à tradução dos
manuscritos de Melquíades. Contudo, uma noite aparece na porta da casa a figura de Aureliano Amador, filho do
Cel. Aureliano Buendia, o único sobrevivente dos 17 filhos. Ele pede ajuda aos familiares porque estaria sendo
perseguido, mas os outros dois não atendem a sua solicitação. Em seguida, Aureliano Amador é alvejado por
alguns policiais.
No final do capítulo, José Arcadio é afogado numa caixa d’água pelos meninos que haviam sido expulsos
por ele, que também levam o ouro que havia sido encontrado. Aureliano permanece sozinho na casa e, depois de
perder seu tio, percebe que passara a amá-lo.

XIX
Neste momento, enquanto Aureliano vivia sozinho na casa da família, Amaranta Úrsula retorna da Europa
com um comportamento moderno e ativo. Ela estava casada com um aviador, Gastón, que imaginara que a
aventura pela Colômbia duraria pouco tempo. Ele até tenta estabelecer correio aéreo na cidade, mas suas
tentativas de comunicação com os europeus não ganham continuidade.
Com a convivência, Aureliano começa a sentir atração por sua tia e, um dia confessa o que sentia a ela.
Horrorizada, Amaranta Úrsula decide partir para a Europa. Contudo, antes da partida, Aureliano a agarra à força.
Ela inicialmente resiste, mas termina por se entregar ao sexo incestuoso.

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XX
Gastón, sem saber do caso da esposa com seu próprio sobrinho, havia viajado para Bruxelas na tentativa de
organizar o correio aéreo que ele havia idealizado. Assim, na decadente e triste Macondo, Amaranta Úrsula e
Aureliano viviam felizes, com uma rotina sexual intensa. Porém Gastón envia uma carta anunciando sua volta.
Amaranta Úrsula lhe responde afirmando que pretendia ficar com Aureliano e recebe como resposta do marido os
votos de felicidade, mas não a sua volta.
A harmonia do casal incestuoso sofre um pequeno abalo porque Aureliano, sem saber de sua origem, tinha
medo de ser irmão de Amaranta Úrsula. Ele tentava aceitar a teoria de que havia sido encontrado boiando numa
cestinha.
Em seguida, ela engravida de Aureliano e dá à luz um menino com um rabo de porco – o grande medo de
Úrsula ao se unir ao seu primo. Amaranta Úrsula tem uma intensa hemorragia que termina por matá-la.
Desesperado, Aureliano vaga pela cidade sem destino e quando volta para casa ainda chega a tempo de ver a
criança sendo levada por formigas. A cena faz com que ele lembre da epígrafe dos manuscritos de Melquíades: o
primeiro seria amarrado a uma árvore (José Arcadio Buendia); o último seria levado por formigas. Ele passa a ler
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os textos do cigano: era a história da família, escrita com cem anos de antecipação. Aureliano pula trechos para
chegar até sua verdadeira origem: o momento em que ele fora concebido ali estava registrado, descobrindo que
Amaranta Úrsula não era sua irmã, mas, sim, sua tia. Neste momento, um vento ciclônico começa a abalar a
estrutura da casa. Aureliano pula outros trechos até o instante que estava vivendo. Ele dá mais um salto para
averiguar a data e as circunstâncias de sua morte e percebe que não mais sairia daquele quarto, pois estava
previsto que a cidade “seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que
Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível
desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma
segunda oportunidade sobre a terra.”

18
A AUTORA
Angélica Freitas nasceu em Pelotas, tradicional cidade do interior do Rio Grande do Sul, no ano de 1973.
Formou-se em Jornalismo pela UFRGS vindo a exercer mais tarde o cargo de repórter no jornal Estado de São
Paulo por dois anos. Segundo Angélica, a profissão de repórter foi responsável por impulsionar o início de suas
atividades na Literatura. Em 2005, ingressou em uma oficina de criação poética com o escritor Carlito Azevedo.
Foi a partir dessa oficina que o seu primeiro livro Rilke Shake (2007) foi lançado. Nesse livro, Angélica estreia
trazendo suas principais características poéticas: a iconoclastia em relação à tradição literária (vista no próprio
título do livro que faz referência ao poeta Rilke), a presença da cultura pop e a abordagem irônica e bem-
humorada dos privilégios, que, principalmente os homens, tiram proveito dentro da sociedade. Em 2012, um útero

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é do tamanho de um punho é lançado, sendo bem recebido pela crítica. A obra, que aprofunda o debate sobre as
questões de gênero, tornou-se uma das leituras obrigatórias da UFRGS no ano de 2023. Em 2020, em meio à
pandemia, Angélica Freitas lançou Canções de Atormentar, sua última obra publicada até o momento.

INTRODUÇÃO
Como comentado nos apontamentos biográficos sobre a escritora, o trabalho jornalístico influenciou o
ingresso de Angélica no meio literário e também a sua própria concepção poética. O ofício de observar, investigar
e analisar criticamente o mundo e a linguagem parece ser uma forma de enxergar a literatura para Angélica. Em
um útero é do tamanho de um punho, a figura da mulher torna-se o estímulo de criação principal para a construção
da obra. Se a tradição literária trouxe como representação intermitente personagens, narradoras e vozes poéticas
femininas marcadas pelo apagamento de seus desejos, invisibilidade e subalternidade, a literatura da metade do
século XX pra frente trouxe grandes nomes como Adélia Prado, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Carolina Maria de
Jesus, Pagu, Conceição Evaristo, entre tantas outras, tomando pra si os discursos como forma de reivindicar as
suas existências na sociedade, assim como nessa pequena parcela dela: a Literatura. No entanto, engana-se quem
pensa que, em um útero é do tamanho de um punho, a lírica de Angélica parte de uma voz que reivindica causas
feministas de forma panfletária. O que se vê é uma perspectiva externa, ou seja, de uma sociedade que engessa a
mulher com o fim de controlá-la: as projeções idealizantes e dominadoras, tanto físicas quanto subjetivas, a
respeito da mulher, criadas por uma sociedade machista são mobilizadas de forma provocativa com uma
linguagem denotativa e irônica expondo o ridículo desses discursos. Se a definição da mulher é o mote da obra, o
próprio título do livro já revela um lugar comum a respeito do útero: o seu tamanho sendo referido em chave
comparativa com um punho. Aqui a definição torna-se uma dicotomia poética de poder: o punho, símbolo da
força, do golpe; o útero, símbolo reprodutor feminino, da vida.
Vale salientar também que a obra inteira, desde o título até o último verso poético está inteiramente
registrada em letras minúsculas. Dessa forma, Angélica equipara as palavras, sem hierarquias, estabelecendo um
prosseguimento entre os enunciados. Essa libertação da linguagem de suas normas de importância gramaticais ou
sintáticas aproxima-se de um ritmo contínuo próximo da oralidade – sem métrica e rima. Parece, assim, dar vazão
às vozes do cotidiano que obstruem o protagonismo da mulher. Basta ver o eu-lírico de cada poema:
recorrentemente automatizado, mecânico, artificial, esvaziado de sua própria experiência de vida.
A obra apresenta uma estrutura sustentada 7 partes. A saber: uma mulher limpa, mulher de, a mulher é uma
construção, um útero é do tamanho de um punho, 3 poemas com o auxílio do google, argentina, o livro rosa do coração
dos trouxas.

O LIVRO

UMA MULHER LIMPA

A primeira parte do livro propõe, em tese, o processo de sujeição que a mulher tende a passar para ser
aceita socialmente. A relação direta entre características de limpeza, beleza, magreza, sobriedade, equilíbrio com a
figura da mulher civilizada reforça a padronização humana e constrói ideias a respeito do que é aceitável e do que
deve ser descartado socialmente. A cartilha de deveres impostos à mulher gera um repertório serial, como em
outros poemas do livro, ficando mais evidente em 3 poemas com o auxílio do google. Esse recurso de seriação de
obrigações comportamentais gera uma desumanização formatada para gerar seres consumíveis para
determinados fins. Na década de 50, a Pop Art escancarou essa realidade de pessoas objetificadas para serem
consumidas. Interessante pensar que uma das obras mais icônicas desse movimento figurava justamente a maior
sex symbol de sua época, Marilyn Monroe, reproduzida inúmeras vezes e distribuída simbolicamente como um
elemento de consumo nas criações serigráficas de Andy Warhol. A depressão de Marilyn, assim como o seu
suicídio nos indicam o quão agressivo pode ser esse processo de objetificação da mulher. A seriedade do assunto
é abordada por Angélica de forma interseccionada pelo riso sarcástico, lembrando a poética dos modernistas

19
brasileiros. No poema que abre o livro, a repetição (“mulher boa”, “mulher limpa”) evoca uma espécie de
doutrinação reiterada historicamente no processo de domesticação da mulher:

porque uma mulher boa


é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos


pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava
porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
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e uma mulher boa


é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos


pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpamulher de

A segunda parte do livro apresenta categoricamente rótulos: a mulher de vermelho, de valores, de respeito,
de malandro, de regime etc. Cada poema constrói uma parte do processo de alienação da mulher: desde sua
subjetividade até seu corpo. Dessa forma, Angélica informa o modo não-natural como a construção do
comportamento das mulheres é criado. Os automatismos sociais e a arbitrariedade com que são imbuídos
historicamente estimulam a reflexão sobre o controle masculino do corpo feminino. Assim como na primeira parte
do livro, a poética de Angélica está permeada pelo humor, muito embora também apresente um desconforto
diante dos papéis de dependência e submissão desempenhados pelas mulheres. O enlace entre humor e
desconforto se dá justamente pela reação às mecanizações estereotipadas da sexualidade. Toda essa segunda
parte gira em torno dessas discussões, apresentando poemas que lidam com a forma como os homens
psicologizam, de forma falocêntrica, a vestimenta da mulher; o âmbito doméstico de uma mãe de família presa a
uma vida mesquinha; uma carta aparentemente despretensiosa de uma mulher trans avisando os pais de sua
transição; a mulher que, ao querer se divertir, atrapalha o andamento do cotidiano de um condomínio; a mulher
ansiosa pela ação política; a mulher respeitada por ser apenas de um homem em sua vida; a que vive uma vida
distante do trabalho ao lado do marido malandro; a que se sente muito mal pela forma como seu corpo gordo é
visto na sociedade e por isso faz um sofrido regime:

MULHER DE REGIME

eu me sinto tão mal


eu vou lhe dizer eu me sinto tão mal
engordei vinte quilos depois que voltei do hospital
quebrei o pé
eu vou lhe contar eu quebrei o pé
e não pude mais correr eu corria 10 km / dia
aí um dia minha mãe falou: regina
regina você precisa fazer um regime você está enorme
você fica aí na cama comendo biscoito
e usando essa roupa horrível que parece um saco de batatas
um saco de batatas com um furo pra cabeça
também não precisava óbvio que fiquei magoada
primeiro fiquei muito magoada depois pensei: ela tem razão
daí eu comecei regime porque me sentia mal
eu me sinto mal eu me sinto tão mal
troquei os biscoitos por brócolis queijo cottage e aipo
coragem eu não tenho de fazer uma lipo
eu me sinto tão mal por tudo que comi esse tempo todo
tão mal e tem tanta gente passando fome no mundo

20
A MULHER É UMA CONSTRUÇÃO

A terceira parte do livro abrange poemas de temáticas mais diversas. Embora mantenha a preocupação com
questões feministas, aqui, Angélica apresenta outros tipos de poemas, como Ítaca, que aborda de forma farsesca
esse local importante em termos históricos e mitológicos para a Europa. O tom iconoclasta se dá pela forma como
o eu-poético constrói a ideia da Ítaca atual: não mais um local para onde o herói, Ulisses, retorna, mas um paraíso
turístico que demonstra a necessidade de que os viajantes levem Hipoglós. Outro poema que chama a atenção é
o divertido Querida Angélica. Nele uma série de desculpas mirabolantes são direcionadas a Angélica para justificar
a ausência em um evento marcado. Nota-se que Angélica gosta de fazer autorreferência em suas poesias, traço
característico que embaralha as separações teóricas entre autor, eu-lírico, narrador, personagem.
O poema homônimo à terceira parte, a mulher é uma construção, elabora um recurso recorrente no livro: a
mobilização de definições a respeito da mulher. A ideia repetida incessantemente de que “não se nasce mulher,
torna-se mulher”, retirada de Simone de Beauvoir, indicando que a mulher é um constructo social, carrega nesse
poema a ideia política positiva, mas também é vista de forma irônica devido à repetição, que esvazia o sentido da

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noção teórica da afirmação. A ironia aqui é raivosa e não se trata exatamente de uma forma de deslegitimar essas
assertivas políticas, mas criar um sentido ainda mais agudo, lidando com um sentido literal do termo construção. A
mulher seria uma edificação, uma construção arquitetônica de estética padronizada:

A MULHER É UMA CONSTRUÇÃO

a mulher é uma construção


deve ser

a mulher basicamente é pra ser


um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor

particularmente sou uma mulher


de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida

digo que sou jornalista

(a mulher é uma construção


com buracos demais

vaza

a revista nova é o ministério


dos assuntos cloacais
perdão
não se fala em merda na revista nova)
você é mulher
e se de repente acorda binária e azul
e passa o dia ligando e desligando a luz?

(você gosta de ser brasileira?


de se chamar virginia woolf?)

a mulher é uma construção


maquiagem é camuflagem

toda mulher tem um amigo gay


como é bom ter amigos

todos os amigos têm um amigo gay


que tem uma mulher
que o chama de fred astaire

21
neste ponto, já é tarde
as psicólogas do café freud
se olham e sorriem

nada vai mudar –

nada nunca vai mudar –

a mulher é uma construção

UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO

A quarta parte do livro apresenta um único poema, justamente o que dá o título ao livro. Nele, Angélica
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explora as formulações acerca do corpo da mulher, utilizando-se da potencialidade do órgão feminino que dá
origem à vida. Dá origem à vida, mas também serve como interrupção dela. Aliás, vale frisar que o gatilho de
criação desse poema ocorreu após Angélica acompanhar de perto um processo de aborto de uma amiga muito
próxima. Daí a relação do útero e do punho: símbolo de força e arma contra a inferiorização da mulher.
Como na pintura realista A origem do mundo, de Gustave Courbet, que frisa a ideia de que tudo que compõe
o mundo advém justamente do órgão reprodutor feminino, o poema reforça essa ideia: o médico coube no útero,
cadeiras cabem, pois foram criadas por alguém que ali esteve. Chama a atenção, em determinado momento, a
construção de versos baseados em uma brincadeira em cima da criação de uma língua do “i”: “piri qui”; “vici ni isti
grividi”. A formulação dessa língua soa como um deboche, que beira o infantil, diante afirmações e formulações
envolvendo homens, principalmente a figura do médico, aquele que tem o poder explorar o útero.
O controle invasivo do útero, das narrativas sobre o órgão e sobre o que uma mulher pode ou não fazer
com ele são discursos de controle do corpo feminino. Dessa forma, o poema central do livro encabeça uma
revolta contra essa dominação:

um útero é do tamanho de um punho


num útero cabem cadeiras
todos os médicos couberam num útero
o que não é pouco
uma pessoa já coube num útero
não cabe num punho
quero dizer, cabe
se a mão estiver aberta
o que não implica gênero
degeneração ou generosidade
ter alguém na palma da mão
conhecer como a palma da mão
conhecer os dois, um sobre a outra
quem pode dizer que conhece alguém
quem pode dizer que conhece a degeneração
quem pode dizer que conhece a generosidade
só alguém que sentiu tudo isso
no osso, o que é uma maneira de dizer
a não ser que esteja reumático
ou o osso esteja exposto

im itiri i di timinhi di im pinhi


quem pode dizer tenho um útero
(o médico) quem pode dizer que funciona (o médico)
i midici
o medo de que não funcione
para que serve um útero quando não se fazem filhos

para quê

piri qui

se tenho peito tenho dois


o mesmo vale pros rins

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tenho duas orelhas
minis i vincint vin gigh

piri qui

úteros famosos:
o útero de frida kahlo
o útero de golda meir
o útero de maria quitéria
o útero de alejandra pizarnik
o útero de hilary clinton
[o útero de diadorim]

(...)

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um útero expulsa os óvulos
óbvios
vermelho =
tudo bem!
isti tidi bim
vici ni isti grividi

um útero é do tamanho de um punho


num útero cabem capelas
cabem bancos hóstias crucifixos
cabem padres de pau murcho
cabem freiras de seios quietos
cabem as senhoras católicas
que não usam contraceptivos
cabem as senhoras católicas
militando diante das clínicas
às 6h na cidade do méxico
e cabem seus maridos
em casa dormindo
cabem cabem
sim cabem
e depois vão
comprar pão

repita comigo: eu tenho um útero


fica aqui
é do tamanho de um punho
nunca apanhou sol

(...)

voltemos ao útero:

manha manha
pata de aranha
quem manda nas entranhas
de mamãe
(...)
prezadas senhoras, prezados senhores,
excelentíssimo ministro, querida rainha da festa da uva,
amigos ouvintes, brasileiros e brasileiras:
apresento-lhes
o útero errante
o único
testado
aprovado
que não vai enganchar

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nas escadas rolantes
nem nas esteiras
dos aeroportos
o único
com passe livre nos estados Schengen

querida amiga, dicas para conservar


melhor o seu útero:
a gente nunca sabe quando vai precisar
do nosso útero –
em repouso
é tão pequeno e precioso
por isso é bom mantê-lo
num lugar seguro
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longe da luz
a uma temperatura
de 36 graus
se alguém insistir para vê-lo
diga: bem rapidinho
não faça barulho

caros alunos: hoje vamos dissecar


o útero daquela que foi
uma das maiores cantoras nacionais
como já devem saber
temos aqui, preservado em vinagre
num frasco de fruta em calda
o útero de carmem miranda
o útero de carmem Miranda
o útero de carmem miranda
peguem as colheres
e as cremeiras
se necessitarem
usem babeiros
mas em nome da ciência
não sujem
os vestidos
(...)

3 POEMAS COM O AUXÍLIO DO GOOGLE

A pesquisa sobre a mulher, nessa parte do livro, ganha uma dimensão mecanizada através do dispositivo de
preenchimento automático da maior plataforma de internet do mundo. Angélica Freitas utiliza-se de 3 verbos (ir,
pensar, querer) para formatar uma série de rótulos que invadem o conhecimento comum da internet. As
sugestões de complemento oferecidas pelo Google indicam uma inevitabilidade da maneira como a mulher se
porta no mundo em termos de ações, desejos e forma de pensar. Assim, Angélica traz à tona os discursos a lógica
que subordina as estruturas sociais e culturais acerca do signo mulher.
Vale ressaltar que a internet, a partir do seu sistema de inteligência baseado em algoritmos, tem uma
capacidade de aprender com os usuários. Cada pesquisa, texto publicado, informação divulgada é prontamente
interligada a determinados temas, sendo assim, as googlagens a respeito de variados assuntos são reflexos daquilo
que os próprios usuários construíram. As formulações como “a mulher quer ser amada/ a mulher quer um cara
rico/ a mulher quer conquistar um homem/ a mulher quer um homem” deixam transparecer as construções de um
imaginário masculino e heteronormativo que engessa a mulher socialmente.
A experimentação dos três poemas que compõem essa seção está fundamentada na fragmentação de uma
realidade partida, característica do estilo dadaísta de criação poética. 3 poemas com o auxílio do google utiliza-se da
linguagem virtual para questionar a dominação da figura da mulher através de papéis e identidades
simplificadoras, que não correspondem à complexidade de sua atuação no mundo.

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A MULHER VAI

a mulher vai ao cinema


a mulher vai aprontar
a mulher vai ovular
a mulher vai sentir prazer
a mulher vai implorar por mais
a mulher vai ficar louca por você
a mulher vai dormir
a mulher vai ao médico e se queixa
a mulher vai notando o crescimento do seu ventre
a mulher vai passar nove meses com uma criança na barriga
a mulher vai realizar o primeiro ultrassom
a mulher vai para a sala de cirurgia e recebe a anestesia

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a mulher vai se casar ter filhos cuidar do marido e das crianças
a mulher vai a um curandeiro com um grave problema de hemorroidas
a mulher vai se sentindo abandonada
a mulher vai gastando seus folículos primários
a mulher vai se arrepender até a última lágrima
a mulher vai ao canil disposta a comprar um cachorro
a mulher vai para o fundo da camioneta e senta-se choramingando
a mulher vai colocar ordem na casa
a mulher vai ao supermercado comprar o que é necessário
a mulher vai para dentro de casa para preparar a mesa
a mulher vai desistir de tentar mudar um homem
a mulher vai mais cedo para a agência
a mulher vai pro trabalho e deixa o homem na cozinha
a mulher vai embora e deixa uma penca de filhos
a mulher vai no fim sair com outro
a mulher vai ganhar um lugar ao sol
a mulher vai poder dirigir no afeganistão

ARGENTINA

A sexta e penúltima parte do livro intitula-se argentina e apresenta dez pequenas partes que se
complementam. O país que dá o título a essa parte da obra é muito importante na vida de Angélica: em 2006,
Angélica estreou na literatura com a publicação de seus poemas em uma revista de Buenos Aires chamada Cuatro
Poetas Recientes de Brasil. Além disso, Angélica afirma que foi na Argentina que ela percebeu a importância do
feminismo aos observar o ativismo das mulheres do país vizinho. Em argentina, o eu-lírico se desprende da amarra
nacional com o Brasil e se vê como uma poeta argentina. No entanto, ao mobilizar uma série de informações a
respeito da cultura na argentina, em especial a culinária, comparando com elementos da sua cidade natal, o eu-
lírico aborda uma série de dicotomias de gênero infundidas tanto no Brasil quanto na Argentina:

I
(...)
se fosse argentina saberia preparar asados
que são diferentes do churrasco
esse envolvido em sal grosso
perfurado por espetos no r.g.s.
r.g.s. bem podia ser a sigla
de complicações estomacais
ou o barulho de uma frase que não te sai
porque está entalada na garganta porque
no r.g.s.
las mujeres suelen ser así
e você tem que ser muito independente
ou estranha
para fazer um churrasco
e me parece que o churrasco sai mal
quando é muito pensado
e alguém pode dizer que eu voltei
feminista da argentina

25
ou será que eu tive muito tempo para pensar
nessas coisas que ninguém quer pensar
que é melhor que não se pense em nada
e que os churrascos sejam machos
como as saladas são fêmeas
a verdade é que não voltei da argentina

II.
os churrascos são de marte
e as saladas são de vênus
me dizia uma amiga que os churrascos
cabem aos homens porque são feitos
fora de casa
às mulheres as alfaces
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às alfaces as mulheres
que alguém se rebele e diga
pela imediata mudança de hábitos
assar uma carne no forno
seria um paliativo não seria uma solução
que suem as lindas na frente da churrasqueira
e que piquem eles as folhas verdes

III.
você comeria a joanna newsom?
sim mas não nestas condições:
um jornalista paulistano passa a noite pensando
que newsom é bem bonita mas se veste
excentricamente
é bem bonita
ou seja não é feia
é bonita mas não nestas condições
você comeria a joanna newsom?
você diria que ela parece uma menininha
que usa botinhas e que pelo rasgo do vestidinho
pode ver sua calcinha?

IV.
com base no texto publicado, pode-se dizer que joanna newsom:
a. ( ) é um bom pedaço de bife
b. ( ) é uma salada de agrião
(...)

O LIVRO ROSA DO CORAÇÃO DOS TROUXAS

um útero é do tamanho de um punho chega ao fim com 12 poemas agrupados sob o título o livro rosa do
coração dos trouxas. Aqui, a poesia de Angélica se volta para o tom confessional e dramático. O título bastante
sugestivo já indica a ideia de um indivíduo emocionalmente abalado. Interessa saber que a maioria dos poemas
dessa última parte envolvem relacionamentos afetivo-sexuais. As tensões, crises, términos são colocados aqui de
forma sensível através de um eu-lírico majoritariamente feminino. Aliás, eu-lírico e autora se confundem em
alguns versos quando Angélica novamente faz uso da autorreferência no último poema do livro, que trata de um
casamento inesperado de Angélica com ela mesma:

XII

não devias te casar


com ela,
ponto final.
susana thénon,
filha de neurologista,
morreu de tanto
cérebro.
se a história se

26
repetisse, toda
nanica e irônica,
as filhas das freiras
nunca se casariam,
fariam bem-casados
mas não fariam
sentido.
e a família de
angélica freitas
por fim convidaria
a sociedade
pelotense para
o enlace
de suas filhas

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angélica & angélica
na catedral
são francisco
de paula
às 17 horas do
dia 38-39 (brasil)
40 (europa).
para se acostumar
às noites de um
e mil dentifrícios,
sheherazade do
hálito das
bolsas de estudo.

27
A peça inicia com Lisístrata reclamando da postura das mulheres, que não se encontravam no local em que
deveriam estar: “se fosse uma festa de Baco isso daqui estaria intransitável de mulheres e de tamborins. (...) Só
pensam em bacanais.” Em seguida, ela encontra Cleonice, que comenta que o dia estava magnífico para um bacanal,
mas logo vê a expressão sombria da outra. Lisístrata afirma que as mulheres eram tratadas “como objetos, boas
apenas para os prazeres do leito”, mas não tinham atendido ao encontro que traria uma “decisão definitiva na vida
do país”. Cleonice pede uma maior compreensão das mulheres, pois elas tinham que dar conta das atividades
domésticas e também dos filhos. Lisístrata, por sua vez, pensa que a salvação da Grécia estava nas mãos das
mulheres: “reuniremos todas as mulheres da Grécia, incluindo as beócias e as peloponesas. E acabaremos de vez
com as lutas fratricidas, que nos deixam à mercê dos bárbaros que descem lá do norte.” Cleonice, então, questiona
como fariam aquilo; e a outra responde que elas utilizariam túnicas tentadoras e perfumes: “o corpo todo, assim
tratado e entremostrado, o corpo todo assim tornado irresistível.” Porém “nenhum homem mais levantará a sua
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lança...” Cleonice se decepciona, mas Lisístrata, para alegria da amiga, complementa: “Contra outro guerreiro”. Se
ela alcançasse o que estava planejando, os homens largarão os escudos e espadas. Em seguida, mulheres de Anagiro
chegam ao local, e Mirrina pergunta sobre o que se tratava o encontro, mas Cleonice afirma que elas deveriam
esperar mulheres da Beócia e do Peloponeso. Outras mulheres – dentre elas, a forte Lampito – chegam. Lisístrata,
então, pergunta se as outras não sentiam falta dos maridos. Elas concordam. Lisístrata comenta que elas não
recebiam a “paga natural do casamento” e nem mesmo tinham a bainha da adaga para o consolo. Ela pergunta às
outras se elas a ajudariam a pôr fim à guerra, e elas concordam. Para isso, entretanto, um sacrifício seria exigido:
“Vocês terão que se abster daquela pequena parte do homem que mais o classifica como tal.” As mulheres rejeitam.
Mirrina diz que não conseguiria aguentar: “Eu não resisto. Que a guerra continue. (...) Não nos prive da coisa que
faz a vida, da melhor coisa da vida, da coisa que é a própria vida.” Já Lampito reluta, mas termina por concordar em
nome da paz. Lisístrata orienta o que deveria ser feito: “Devemos apenas ficar em casa, vestidas e arrumadas o
melhor que soubermos, de preferência usando uma túnica transparente que nos deixe quase nuas, mostrando nosso
delta irresistivelmente depilado. Mas quando os maridos apontarem para nós a agressiva insolência dos seus
desejos, nós nos retiraremos deixando-os sozinhos no campo de batalha, de armas na mão, sem saber o que fazer
com elas.” Cleonice questiona a possibilidade de elas apanharem e/ou serem forçadas, mas Lisístrata diz que elas
deveriam ceder sem se mexer para que os homens não tivessem prazer. Também ela revela que outras mulheres já
teriam tomado a acrópole e que guardariam os tesouros para que os homens não comprassem estrangeiras. Um
juramento é feito sobre uma taça de vinho: “Eu não deixarei que nenhum homem do mundo, marido, amante ou
mesmo amigo... se aproxime de mim de membro em riste. Se for tentada, reagirei, me transformando na própria
tentação... me farei provocante, usando minha túnica mais leve... para que meu homem se queime no fogo do
desejo... mas jamais entregarei a ele voluntariamente... e, se abusando da minha fraqueza de mulher, quiser me
violentar... serei fria como o gelo, não moverei um músculo do corpo... nem mostrarei ao teto a sola das sandálias...
nem o ajudarei me botando de quatro como as leoas dos relevos assírios... e porque manterei meu juramento, me
seja permitido provar desta bebida... mas que se eu romper minha promessa, que este vinho se transforme em
água.” Cleonice demonstra dificuldade/falta de vontade de jurar, mas o faz. Já Lisístrata reforça suas convicções:
“Não cederemos, mesmo que ameacem pô fogo na cidadela. Só se aceitarem a paz sem restrições. Aí sim,
alegremente lhes abriremos as nossas... portas.” Os homens começam a aparece em cena representados pelos
componentes do corifeu. O Primeiro semicoro de velhos questiona quem imaginaria que as mulheres tomariam a
acrópole. Eles são seguidos por um coro de velhos que afirma que as conspiradoras deveriam ser capturadas. Um
segundo semicoro de velhos ressalta que era uma questão de honra retomar a Acrópole. O coro de velhos reforça
a ideia, lembrando as glórias passadas e que não aceitariam o controle das mulheres. Um incêndio é provocado no
lugar que as mulheres haviam se concentrado, mas logo as mulheres surgem com baldes e controlam o fogo. Neste
momento, ocorre uma grande confusão entre os homens e as mulheres. Lisístrata chega ao local, assume seu papel
de liderança, é ameaçada de prisão, mas os soldados não têm coragem de dominá-la.
Ela convoca as mulheres para uma reação contra os homens que ali estavam: vendedoras de hortaliças,
taverneiras, padeiras, costureiras se unem e expulsam os homens. O Comissário, estimulado pelo coro dos velhos,
questiona por que elas haviam invadido a Acrópole. Lisístrata, então, afirma que elas pretendiam dar um melhor uso
aos recursos do Estado, visto que os homens gastavam muito com a guerra. Administrar um lar seria como
administrar um Estado, e nisso elas tinham muita experiência. Ela expõe a revolta das mulheres contra a opressão
masculina: “E como obedecíamos ao jogo social, a canalha masculina, cuja superioridade se define toda num pau
endurecido, acreditávamos que éramos felizes. Ah, quanta insensatez, quanta cegueira!” Elas estavam cansadas da
repressão: “Volta pro teu bordado, cuida do teu lençol ou terá muito do que se arrepender. Guerra é para homem.”
Lisístrata ressalta que utilizariam dos desejos dos homens – não satisfeito – para a paz: “E se o doce amor, o
incomparável Eros, soprar também o fogo do desejo em nossas coxas, com ele atiçaremos o ardor dos homens até
que não consigam mais esconder a rigidez das próprias ânsias. Pois até nisso Afrodite nos fez mais delicadas; nosso
desejo é oculto e imperceptível. O deles é público e notório. Essa pequena diferença, que não chega a um palmo,
nós usaremos para a paz da Grécia.” Ela também reclama do comportamentos dos soldados: “Comem e bebem sem
pagar, levam consigo pratos e panelas, e andam pelas ruas cheios de arrogância, humilhando quem não ousa baixar

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a vista diante deles.” O Comissário considera uma afronta todas as posições defendidas, defende a postura dos
soldados – “Aos bravos, tudo!” – e pergunta como elas poderiam acabar com a guerra. Neste momento, Lisístrata
explica suas ideias por meio de uma metáfora associada a criação de uma tecelagem: “Quando estamos tecendo e
os fios se embaraçam, nós os cruzamos pra lá e pra cá, mil vezes, até que os fios fiquem soltos novamente. Faremos
o mesmo com a guerra. Mandaremos embaixadas cruzar o país em todas as direções, com mensagens de paz. (...)
Quando pegamos a lã bruta, o que fazemos primeiro é tirar dela todas as impurezas. Pois faremos o mesmo com os
cidadãos, separando os maus dos bons a bastonadas, eliminando qualquer refugo humano que há em qualquer
coletividade. Aí pegamos os que vivem correndo atrás de cargos e proventos, e os classificamos como parasitas do
tecido social – que deve ser trançado apenas com cidadãos úteis e prestantes. Usaremos, sim, mas apenas para
confecções inferiores, os relapsos, os devedores do tesouro, os bêbados contumazes e todos os outros cidadãos
não de todo estragados mas já em princípio de decomposição. Isso feito em todas as cidades, nos restaria considerar
cada núcleo social como um novelo à parte, puxar cada fio daqui e das colônias, o meio de tecer o gigantesco manto
da proteção regional.” O Comissário fica indignado com a comparação, pois elas não entendiam as responsabilidades
de uma guerra, ao que Lisístrata responde que elas conheciam a guerra pelos filhos enviados. Ela também ressalta

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que muitas vezes mulheres jovens definhavam à espera de um amor, enquanto os homens, mesmo velhos, voltavam
da guerra e sempre tinham alguma mulher à disposição. A fala do Comissário reafirma as palavras de Lisístrata:
“você tem que entender que um homem, quando ainda é capaz de uma ereção, não vai gastá-la numa muxiba velha.”
Neste momento, algumas mulheres, cheias de desejo, aparecem na cena e começam a inventar desculpas para
voltarem para casa, mas a líder expõe as palavras que ouvira do oráculo: “Se as pombinhas / ficarem todas juntas /
fugindo a pombos / e a empombados falos / os seus males ficarão logo / menores / e as coisas de amor, depois, /
serão maiores. / mas se a dissensão / dividir as pombas / e ela voarem sozinhas / do templo sagrado / serão
devoradas / pelas forças brutas. / congregadas, / serão respeitadas. / dissolvidas / serão dissolutas.” As mulheres
se acalmam e entram na cidadela. A chegada de um homem alvoraça as mulheres: era Cinésias, marido de Mirrina.
Lisístrata diz que ela deveria “inflamá-lo, tortura-lo, atormentá-lo. Seduções, carícias, provocações de toda espécie,
tudo e, no fim, a total negação.” O marido Cinésias reclama de “convulsões terríveis, espasmos estranhos e súbito
endurecimento de algumas partes do corpo.” Ele também mostra-lhe o filho e fala sobre o caos em que se
encontrava a casa, a tentativa de convencê-la a voltar, mas Mirrina reafirma que só voltaria para casa depois de um
tratado de paz. Cinésias promete que selaria um acordo e propõe que eles transassem ali mesmo. Para provocá-lo,
ela sai e busca uma série de objetos, um de cada vez, para improvisar uma cama para eles. Assim, Cinésias começa
a ficar impaciente: “Essa mulher vai me matar de tamanho tesão. Eu vou explodir de tesão.” Já Mirrina, antes de sair
correndo, diz-lhe: “Só te peço uma coisa: antes de dormir comigo trata de votar primeiro pela paz, está bem?” o
marido fica frustrado com a fuga: “Bem mais sábios são aqueles soldados que se entendem entre si, sem buscar a
perfídia dessas criaturas fugidias.” Neste momento, um arauto espartano entra em cena e procura o senado de
Atenas. Ele afirma trazer uma proposta de paz para a guerra entre Atenas e Esparta (Guerra do Peloponeso). Ele
afirma que Esparta estava um caos: “Reina a desordem total. Cada soldado apareceu com uma arma nova, que só
não assusta o inimigo porque o inimigo surgiu com uma arma igual. Uma ereção universal.” O Magistrado percebe
o perigo da situação: “Não há que negar: é uma conspiração abarcando a Grécia inteira. Volta a Esparta e diga-lhes
que enviem embaixadores com todos os poderes para tratar da paz com outros estados.” O Magistrado dirige-se
ao Senado. Aqui, os coros unem suas vozes: “Atenienses, dora em diante não falaremos mal de mais ninguém,
trataremos a todos como irmãos. Já chega de infortúnios, ódios e calamidades. Se alguém, homem ou mulher,
precisa de dinheiro, digamos de duas ou três minas, que venham sem temor, nossa bolsa está cheia. E se, por acaso,
a paz dor concluída, ninguém terá que pagar mais a ninguém. Tudo será de todos, e nada de ninguém. Tenho ainda
uma bela terrina de sopa quente e um porquinho tenro e saboroso que ofereço de pleno coração.” Outros
embaixadores entram em cena: “caminham com dificuldade, como se estivessem carregando um embrulho pesado
entre as pernas.” Um embaixador espartano afirma que se as coisas não mudassem, eles teriam que procurar um
Lisístrato, o Magistrado responde: “Perdão, mas acho que a paz deve ser feita em toda a Grécia. E nós, atenienses,
diferentes de vocês, bons espartanos, não temos inclinação para substituições como essa.” O outro não deixa barata
a provocação: “Na aparência, amigo. Mas o mundo sabe que vocês também, atenienses, não desdenham de todo
certas variações, desde que discretas.” Lisístrata volta à cena e dirige-se a atenienses e espartanos: “Primeiro quero
fazer uma censura que serve para ambos os lados em disputa. Em Olímpia, em Delfos, nas Termópilas e numa
porção de outros locais, vocês celebram cerimônias, fazem oferendas aos deuses. As oferendas e as cerimônias são
comuns a todos os helenos. A terra que pisamos também é posse comum de todos os helenos. E no entanto vocês
vivem se massacrando uns aos outros, cortando cabeças uns dos outros e saqueando as cidades que deveriam
proteger.” Ela expõe também momentos em que Esparta tinha se aliado a Atenas, mas que, no presente,
guerreavam: “Ligados assim por tantos serviços mutuamente prestados através dos anos, por que continuar em
guerra?” os embaixadores, então, passam a discutir a propriedade dos territórios em disputa. O Magistrado percebe
a força da revolta liderada por Lisístrata: “Você, Lisístrata, vai conseguir realizar a maior festa de amor jamais vista.
Este é o dia em que todos amarão todos, com ardor que o mundo jamais viu.” Ela assume a palavra e convoca os
homens a se purificarem para entrar na Acrópole: “À mesa entoaremos loas aos deuses e trocaremos votos e
promessas de paz e de carinho. E aí... aí cada um pegará sua mulher e irá embora.” Durante o banquete, o Magistrado
elogia os ex-inimigos: “Jamais na vida vi banquete igual. Os espartanos são encantadores. Então, depois que eles
bebem e depois que nós bebemos, nós ficamos mais encantados com eles e eles mais encantadores para nós. É

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apenas natural da natureza; sóbrios, somos todos tolos. Se os senadores aceitassem meus conselhos, Atenas só
enviaria às outras cidades embaixadores bêbados. Chegamos em Esparta. A ordem é não beber. E o que acontece?
Na primeira discussão entramos em conflito.” Um espartano invoca a Deusa da Memória e a da Caça: “Mnemósine,
deusa que guarda a memória do passado, inspira estes homens para que não se esqueçam. Para que ensinem. E
cantem ao povo e aos mais jovens os feitos espartanos, a glória ateniense. (...) Artemis, virgem Deusa da caça,
protege a paz que estamos combinando: faz com que nossos corações se unam para sempre. Que este tratado
transforme os inimigos em amigos e em irmãos os que já se estimavam. Não mais perfídias, emboscadas,
estratagemas de destruição.” O coro ateniense celebra: “Venham juntos, dançarinos, cantores, as graças com vocês,
invocando todos e cada um. Artemis e seu irmão gêmeo, o gracioso Apolo, e também Dionísio. Sem esquecer de
Baco, para que com eles desça até o próprio Zeus, dominador dos raios. Louvemos juntos todos os deuses juntos,
para que venham todos testemunhar a nobre paz que agora mora entre nós, trazida pela mão do amor.” Lisístrata
finaliza a comemoração: “A comemoração pública terminou. Que cada um, agora, aproveite bem o seu prazer
particular. Cada homem recolhe sua mulher e volta para casa. Mas, atenção: os espartanos, as suas, os atenienses,
as deles. Cada um deve se contentar com o que tem. Que ninguém se engane de propósito, trocando sua mulher
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por outra melhor, pois isso pode começar uma nova guerra.” Uma última rubrica apresenta a chegada do marido da
líder: “Vem entrando seu marido, um belo guerreiro. Ele fica estático, a certa distância dela, duas figuras lindas.
Quase imperceptivelmente ela faz um gesto. Ele entende, tira as armas, o escudo, toda a paramentação militar.
Estende as mãos. Ela avança, se ajoelha, beija-lhe as mãos em submissão. A sugestão sexual fica mais audaciosa
enquanto a luz desce. Blecaute.”

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“Há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é
serem curtos.”

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O AUTOR:
Nascido no Rio de Janeiro em 1839, Machado de Assis é o ponto alto da Literatura Brasileira no século XIX.
É a partir de sua obra (em especial na fase madura) que se pode dizer que há, de fato, a consolidação de um sistema
literário no país. Tendo produzido os mais varriados gêneros (teatro, poesia, crítica), foi nas narrativas que alcançou
sua genialidade. Ao contrário de seus contemporâneos, que viam no Cientificismo e no Realismo a verdade,
Machado sempre pôs em crise tais verdades.

“Num momento em que Flaubert sistematizara a teoria do ‘romance que narra a si próprio’, apagando o
narrador atrás da objetividade da narrativa; num momento em que Zola preconizava o inventário maciço da
realidade, observada nos menores detalhes, Machado de Assis cultivou livremente o elíptico, o incompleto, o
fragmentário, intervindo na narrativa com bisbilhotice saborosa, lembrando ao leitor que atrás dela estava a sua voz
convencional. Era uma forma de efetuar os seus saltos temporais e brincar com o leitor, e era sobretudo o seu modo
próprio de deixar as coisas meio no ar, inclusive criando certas perplexidades não resolvidas. (Antonio Candido)

OS CONTOS:

A Cartomante

Narrativa em terceira pessoa.


Personagens – Camilo, Rita, Vilela

A narrativa acompanha Camilo e Rita, que mantêm um caso adúltero, às escondidas de Vilela, marido desta
e amigo daquele. Os dois discutem, pois Rita foi consultar uma cartomante, na Rua da Guarda Velha; Camilo é um
cético, porém Rita acredita nas habilidades da cartomante e, como teme ser esquecida pelo amante, foi consultar-
se. Tempos antes, Camilo havia recebido uma carta anônima que expunha o caso dos dois, e, como consequência,
ele diminuíra as visitas à casa do casal, para evitar que Vilela suspeitasse de algo.
No dia seguinte, Camilo recebe um bilhete de Vilela, que o convocava para ir até sua casa, com urgência.
Camilo teme o pior e, ao passar casualmente em frente à casa da cartomante, é movido por uma crendice e decide
entrar. A cartomante o surpreende, indicando com precisão o motivo da consulta e declarando a ele que não
precisaria temer nada. Camilo vai aliviado até a casa de Vilela e Rita e, ao chegar lá, encontra Rita assassinada. Vilela,
então, pega-o pela gola e lhe dá dois tiros.

Entre Santos

Narrativa em primeira pessoa.

Um velho padre narra um milagre que viu anos atrás. Numa noite, As estátuas do altar se materializam e
passam a discutir casos dos fiéis daquela paróquia. A principal narrativa é de S. Francisco de Sales: é sobre Sales,
um avaro e usurário, cuja mulher está à beira da morte, e vai à igreja para pedir intercessão divina para ela. Por sua
disposição de avaro e usurário, prefere prometer mil padre-nossos e mil ave-marias ao invés de gastar dinheiro com
alguma outra promessa.

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Uns Braços

Narrativa em terceira pessoa.


Personagens – Inácio, D. Severina, Borges

Inácio, rapaz de 15 anos de idade, vai trabalhar como ajudante de Borges, um solicitador, hospedando-se
na casa dele. Borges é casado com D. Severina. Inácio acaba se encantando com os braços dessa senhora. Para
Inácio as poucas vezes que via D. Severina com os braços nus era como se fosse um relaxamento pelo dia
estressante que tinha no escritório de Borges. Certo dia D. Severina desconfia do interesse do rapaz por ela. Mesmo
assim, fica com aquele pensamento e várias sensações lhe ocorrem. Por isso oscila entre tratar mal o rapaz e mostrar
preocupação com o seu bem-estar. Num certo domingo, dia de descanso para Inácio, D. Severina vai até o quarto
dele e o encontra dormindo na rede. Fica algum tempo o admirando, mesmo sem entender porque está fazendo
aquilo, sentindo aquilo, e inesperadamente dá-lhe um leve beijo na boca. Nesse momento, Inácio estava num sono
pesado, sonhando com ela, sem saber que era beijado realmente. Até que D. Severina ouve um barulho num dos
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cômodos e temendo ser alguém que pudesse vê-la no quarto do rapaz, sai apressadamente. Pouco tempo depois,
Borges manda o garoto de volta a seu pai, e na despedida não vê D. Severina, levando consigo apenas as sensações
vividas.

Um Homem Célebre

Narrado em terceira pessoa.


Personagens – Pestana, Maria

Pestana é um compositor de polcas extremamente celebrado no Rio de Janeiro. No entanto, apesar de sua
popularidade, sente-se infeliz, já que não consegue compor obras clássicas nos modelos de seus ídolos – Beethoven,
Mozart, Chopin. O contraste entre sua incapacidade de compor clássicos e sua facilidade natural em compor polcas
populares o frustra profundamente, e assim ele vive até casar-se com Maria, uma jovem viúva, amante de música e
com a saúde fragilizada por conta da tuberculose.
Após o casamento, Pestana imagina que conseguirá finalmente compor uma obra à altura de seus adorados
clássicos, e decide fazer um noturno em homenagem a sua esposa. Ao apresentar a ela sua composição, sem revelar-
lhe a autoria, é surpreendido: ela identifica imediatamente a música “inédita” como um noturno de Chopin.
Decepcionado, Pestana pensa em abandonar tudo. Pouco tempo depois, em uma noite de Natal, Maria acaba
morrendo, vítima da tuberculose. Assim, o agora viúvo pensa em compor um réquiem em homenagem a ela. Passa
um ano trabalhando na obra, mas também não consegue realizá-la.
Dois anos depois da morte da mulher, o editor de Pestana propõe um novo contrato, visto que durante
esse tempo o compositor não havia criado nenhuma polca. Por conta da pausa nas composições, Pestana está em
dificuldades financeiras, e por isso ele aceita a proposta, retomando o mesmo sucesso e reconhecimento de antes.
Alguns anos depois, adoece gravemente. O editor, sem saber do seu quadro de saúde, pede a Pestana uma
polca de ocasião: os conservadores haviam subido ao poder. “Como é provável que eu morra por estes dias, faço-
lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais”, diz Pestana. Dita a única piada de sua vida,
ele morre no dia seguinte, “bem com os homens e mal consigo mesmo”.

A Desejada das Gentes

Conto estruturado em forma de diálogo.

Um conselheiro conta sua história de juventude com Quintília, a jovem mais bonita da cidade. Ela era muito
bonita, atraindo muitos pretendentes, mas recusa todos. O conselheiro e Quintília se tornam íntimos amigos. Ela
promete nunca se casar, mas acaba se casando com ele quando está à beira da morte.

A Causa Secreta

Narrado em terceira pessoa.


Personagens – Garcia, Maria Luíza, Fortunato

O conto nos apresenta o misterioso Fortunato, que, ao socorrer e posteriormente cuidar do vizinho do
médico Garcia, desperta a curiosidade deste pela dedicação dispensada ao desconhecido e pelo posterior desprezo
manifestado após a cura do indivíduo. O tempo passa e Garcia e Fortunato se tornam amigos; a intimidade aumenta
e por insistência de Fortunato abrem um hospital. A dedicação de Fortunato aos enfermos é total, especialmente
aos que se encontram em pior estado. Tudo isso impressiona e intriga sobremaneira Garcia, que não compreende
o paradoxo que é o amigo: se por um lado se entrega de corpo e alma aos que sofrem, por outro é grosso e
indiferente com os demais, inclusive com a esposa.

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A intrigante causa secreta logo é desvendada por Garcia, que ao flagar o amigo se deleitando ao torturar
um rato que lhe levara um documento importante, mata a charada: Fortunato tem enorme prazer em contemplar o
sofrimento alheio; ele sente, nas palavras de Garcia “Nem raiva, nem ódio, tão somente um vasto prazer, quieto e
profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida
com a pura sensação estética.”
Os dois nunca falarão sobre o assunto. Em pouco tempo, a mulher de Fortunato é visitada pela impiedosa
tísica; adoece, definha e morre, assistida pelo incansável marido que não derrama uma lágrima sequer.

Trio em Lá Menor

Narrado em terceira pessoa.

É a história de um trio: uma moça, Maria Regina, e seus dois pretendentes, Maciel e Miranda. Ela é
apaixonada pelos dois, e os dois por ela, mas ela não se decide por um apenas; ao contrário, se mantém fantasiando

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um homem perfeito. No fim, ela acaba sozinha.
O conto é dividido em quatro partes, semelhante a uma sonata. São elas:
I – Adagio cantabile
II – Allegro ma non troppo
III – Allegro appassionato
IV – Minuetto

Adão e Eva

Narrado em terceira pessoa.

O juiz-de-fora Veloso conta uma história alternativa do Jardim do Éden. Segundo Veloso, o mundo é criação
conjunta de Deus com o Tinhoso, tendo este começado a criar. O homem reúne instintos maus e a alma divina.
Odiando Adão e Eva, o Tinhoso os tenta, por meio da serpente, para comer da árvore da ciência do bem e do mal.
Adão e Eva rejeitam a tentação, e são levados para morar no céu.

O Enfermeiro

Narrado em primeira pessoa.


Personagens – Procópio, coronel Felisberto

Procópio conta sua história como enfermeiro do coronel Felisberto. O coronel era conhecido por sua
crueldade e maus-tratos aos empregados. O coronel trata Procópio muito mal. Procópio acaba matando o coronel
não propositalmente. Procópio sente remorso, mas ninguém descobre, e ele se torna herdeiro da fortuna de
Felisberto, uma vez que o coronel o nomeara em seu testamento.

O diplomático

Narrado em terceira pessoa.


Personagens – Rangel, Joaninha, Queirós

Rangel, chamado de “o diplomático”, é um quarentão solteiro que anseia por se casar. Numa comemoração
de S. João, ele tem interesse por Joaninha, filha do dono da casa. Mas chega inesperadamente um rapaz, Queirós,
que atrai a atenção de todos, inclusive de Joaninha. Isso frustra Rangel. Joaninha fica interessada por Queirós, e
Rangel a perde para ele.

Mariana

Narrado em terceira pessoa.


Personagens – Mariana, Evaristo, Xavier

Após 18 anos de ausência, Evaristo volta da França para o Brasil, após ficar sabendo do fim da monarquia
(ainda que não tivesse nem partido, nem opiniões, nem interesses no país natal). Ele decide rever Mariana, seu amor
de juventude, esperando que ela ainda o ame. Ao indagar um conhecido, descobre que ela seguia morando na rua
do Engenho Velho, mas que há alguns meses não aparecia, por conta do estado de saúde de Xavier, seu marido,
que estava à beira da morte.

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Ao visitá-la, ele descobre que Mariana o não ama mais. Evaristo testemunha a morte de Xavier e o
desespero genuíno de Mariana, que demonstra realmente amar o marido. Ele então, sem ter revivido o antigo amor,
retorna a Paris.

Conto de Escola

Narrado em primeira pessoa.


Personagens – Pilar, Raimundo, Curvelo, professor Policarpo

Pilar, o narrador do conto, relembra uma história de seu período escolar. Ela começa numa manhã em que
ele está pensando se matava aula de novo, para brincar (no morro ou no campo), ou se vai à aula, para evitar de ser
castigado novamente pelo pai. Acaba decidindo ir à aula. Ao entrar na sala, Raimundo, o filho do professor, diz que
precisa falar com ele: queria pedir que Pilar o ajudasse em uma lição de sintaxe em troca de uma moeda de prata.
Pilar aceita, mas os dois são denunciados ao professor por Curvelo, um colega mais velho. Os dois acabam
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sendo punidos pelo professor.


No dia seguinte, Pilar pensa em recuperar a moeda e vingar-se de Curvelo; porém, no caminho acaba
distraindo-se com a companhia do batalhão de fuzileiros e falta à aula. Ao final do dia, ele volta para casa, “sem
pratinha no bolso nem ressentimento na alma”.

Um Apólogo

Narrado em terceira pessoa.


Conto alegórico

Conto de um novelo de linha e de uma agulha da costureira de uma baronesa, que discutem sobre quem é
mais importante na costura. A agulha se vangloria por ir à frente enquanto a costureira trabalha. Mas, no fim, é a
linha que vai à festa na roupa da baronesa, enquanto a agulha serve só para abrir caminho para a linha.

D. Paula

Narrado em terceira pessoa.


Personagens – D. Paula, Venancinha, Conrado

Venancinha e Conrado, casados, brigam por conta do envolvimento de Venancinha com o filho de Vasco
Maria Portela. A tia do casal, D. Paula, intercede para conciliá-los. D. Paula descobre que o Vasco pai é o mesmo
com que se envolveu na juventude, e, enquanto aconselha a sobrinha, relembra o passado.

Viver!

Estrutura dialógica.

Ahasverus, o último homem, foi condenado a vagar eternamente pelo mundo por ter injuriado Jesus,
quando Ele passava por sua casa para ser crucificado. Ahasverus odeia a vida por ver tanto sofrimento, mas encontra
Prometeu, que o convence de que o mundo tem sua face boa e que haverá um novo mundo, em que Ahasverus
será o rei. Todavia, tudo não passa de delírios de Ahasverus

O Cônego ou Metafísica do Estilo

Em “O cônego ou Metafísica do estilo”, um cônego tenta escrever um sermão. Enquanto isso, o narrador
expõe a “metafísica do estilo”: segundo ele, todas as palavras têm sexo, sendo os substantivos masculinos, e os
adjetivos, femininos. Eles se amam, e sua união forma um dado estilo. A busca por inspiração, que o cônego faz
durante uma pausa, é vista como um mergulho na inconsciência, sendo seu conteúdo os obstáculos para a união
dos casais de palavras.

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PRINCIPAIS OBRAS DA AUTORA
Romances: Memórias de Marta (1889); A família Medeiros (1893); A viúva Simões (1897); A falência (1901); A
intrusa (1908); Cruel amor (1911); Correio da roça (1913); A casa verde (1932), em parceria com o marido, ambos
utilizando o pseudônimo de Julinto.
Contos Contos infantis (1886), em parceria com a irmã, Adelina Amélia Lopes; Traços e iluminuras (1887);
Ânsia eterna (1903); Histórias da nossa terra (1907); Era uma vez... (1917); A isca (1922).
Crônicas Livro das noivas (1896); Livro das donas e donzelas (1905); Eles e elas (1910).

A AUTORA
Júlia Lopes de Almeida é uma escritora que, tendo feito um gigantesco sucesso em sua época, equiparando-
se, e em certos pontos superando, autores contemporâneos como Coelho Neto e Lima Barreto, estranhamente

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acabou esquecida no decorrer do tempo. No entanto, nos últimos dez anos, aproximadamente, tem havido um
esforço, principalmente por parte de núcleos feministas, para que sua obra e seu valor como escritora sejam
resgatados. Desde então, algumas explicações têm sido levantadas para justificar o apagamento de que a escritora
fora vítima. O primeiro motivo para o ostracismo a que teria sido relegada Júlia Lopes de Almeida em todos esses
anos seria o machismo que marcou e ainda marca nossa cultura. Deve-se lembrar que seu nome foi vetado na
inauguração da Academia Brasileira de Letras, mesmo a autora tendo participado do processo de criação dessa
instituição. Deve-se lembrar também que ela foi novamente impedida em 1911. Somente em 1977, com a eleição
de Rachel de Queiroz, mulheres passaram a ser aceitas. Outra explicação plausível está no fato de que o
Modernismo, que se iniciou em 1922 com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, achava que inaugurava a
literatura brasileira de fato. Assim, tudo o que era imediatamente anterior a esse evento foi desconsiderado, a
autora. Também pode ter contribuído para esse desmerecimento a preocupação que a intelectualidade da nossa
literatura atual aprendeu com o Modernismo em dar atenção ao contexto nacional. Júlia Lopes de Almeida, que fez
inúmeras viagens ao exterior, chegando a morar por anos em Portugal e França, foi-se distanciando da realidade
brasileira e das discussões que estavam no calor daquele mo mento, tornando-se a autora cada vez mais um
elemento estranho. No entanto, não há como negar a qualidade literária de Júlia Lopes de Almeida. Dotada de
linguagem simples, direta e clara, afasta-se da tradição verborrágica que contaminou por muito tempo a literatura
brasileira. Além disso, a espontaneidade de seu estilo merece elogio por ser fruto de esforço artístico, uma
“simplicidade suada”. Além disso, não há como negar sua vinculação com a realidade brasileira e a sua preocupação
em transformar a produção escrita em ferramenta para a construção de uma sociedade melhor. Consegue, além
disso, fazer com que sua faceta intelectual, comprometida com o meio em que está inserida, não sufoque a artística.
Em outras palavras: constrói literatura de crítica social sem cair no erro de enveredar por um estilo panfletário.
É importante também ressaltar que seus textos mostram-se como feitos por mulher para falar para a mulher
a respeito da mulher. Engajam-se, assim, no feminismo. Entretanto, sua postura foi moderada, em comparação com
os padrões atuais, pois não assumiu uma posição de confronto contra o sistema opressor patriarcal. Prova disso é
que o ideal de mulher que defendia, apesar de não ser submissa, era o da dona de casa, casada e mãe. O
conservadorismo nas posturas feministas de Júlia Lopes de Almeida pode ser entendido, todavia, não como um
demérito da autora. A autora de A falência não buscava o confronto, conseguindo transmitir discretamente valores
feministas. Em seus romances ela camufla ideais avançados, não os colocando na voz narradora – que seria
confundida com a da autora –, mas nas ações e até nas falas das personagens. Dessa forma, conseguiu fazer circular
ideais em defesa da emancipação feminina. Sua tese era a de que a mulher não deveria ser educada toscamente
apenas para as prendas domésticas, mas para o desenvolvimento de capacidades intelectuais. A consequência seria
a formação de uma mulher autônoma, que estaria habilitada para um exercício profissional remunerado que não a
colocasse submissa ao marido.

RESUMO
Considerada por alguns estudiosos a obra máxima de Júlia Lopes de Almeida, A falência apresenta uma
narrativa que se passa no Rio de Janeiro, em 1891, à época do Encilhamento. É o momento, também, em que o café
atingiu um valor absurdamente alto no mercado internacional. Possui tramas paralelas, dentre as quais se destacam
duas. A primeira é sobre Francisco Teodoro, português que chegara em situação miserável ao Brasil e, graças ao
seu trabalho árduo, tornara-se um dos mais importantes negociantes de café em nosso país. Sua última ambição
passa a ser tornar-se o dono do maior entreposto dessa commodity. A história de Francisco Teodoro é
aparentemente a de um vitorioso. No entanto, no fundo ela revela um protagonista que falha ao concentrar todo
seu esforço existencial no trabalho e no acúmulo de riqueza. Preocupado com materialismo e ostentação, esqueceu-
se do fator humano. Prova disso está no fato de, estabelecido, já dono de um título de nobreza – comendador –,
estabelece como projeto a constituição de uma família. Não está preocupado com laços afetivos: o que coloca em
primeiro plano é perpetuar o seu nome e ter para quem deixar os seus bens. Graças à ajuda de um amigo, conhece
Camila, de uma família empobrecida. Moça, bonita e bem educada, era a esposa ideal. Note-se que não houve
preocupação com a criação de laços afetivos, apenas uma negociação, uma contratação materialista. Com o

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matrimônio, Francisco Teodoro elevaria seu status social, já que ganharia mais um título respeitável: chefe de
família. Camila também lucraria com a união, pois garantiria sua segurança financeira. E os pais e irmãs dela, de
mudança para Sergipe, seriam amplamente presenteados. Enfim, Francisco Teodoro constrói seu lar, com esposa e
quatro filhos: Mário, o mais velho; Ruth, a do meio; e as gêmeas Lia e Raquel. Instalam-se num luxuoso palacete no
Botafogo, bairro da classe alta do Rio de Janeiro do fim do século XIX. Vai morar com eles também, de favor, Nina,
sobrinha de Camila, assumindo a função de governanta. Encontra-se lá também Noca, mulata que trabalha como
empregada. No entanto, esse lar se mostra disfuncional. Mário assume o papel de jovem esbanjador, dedicando-se
a mulheres de reputação duvidosa para os padrões da época, principalmente prostitutas. Ignora a paixão enrustida
que a prima, Nina, sente por ele, o que a faz sofrer imensamente. Francisco Teodoro não assume responsabilidade
com seu lar, a não ser provê-lo materialmente. E muitas vezes de forma esbanjadora. As personagens que escapam
desse quadro negativo são as gêmeas, mergulhadas na inocência da infância, e Ruth, que, graças à sua dedicação
ao violino, mostra-se desconectada da realidade, vivendo o mundo encantado do Ideal e da Arte. Há outra narrativa
importante em A falência. Quando Ruth fica muito doente, aparece Dr. Gervásio, que a cura de maneira bastante
eficiente, a ponto de ganhar a gratidão de Francisco Teodoro. Por causa disso, ganha a confiança do empresário,
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passando a frequentar o palacete do negociante de café. Passa também a orientar os costumes daquela residência
de novos-ricos, tornando-a mais sofisticada. Por fim, melhora os hábitos de Camila, mudando sua aparência, sua
maneira de se vestir, de se perfumar. Com o tempo, o médico encanta-se tanto com o resultado de sua arte que
acaba se apaixonando por sua criatura. E é correspondido. Em um primeiro momento, Camila lutou contra esse
sentimento. Mas não conseguiu resistir por muito tempo. Utiliza como justificativa o fato de que seu marido também
tinha enlaces adulterinos. Entrega-se ao Dr. Gervásio, com quem estabelece um relacionamento que passa a se
tornar público e notório – sempre comentado, à boca pequena, mas nunca denunciado. Prova disso é que Francisco
Teodoro nunca chegou a desconfiar que estava sendo traído, por isso tem completa confiança no médico,
entregando a ele muitas das decisões a respeito do funcionamento de seu palacete. Outras histórias correm
paralelas, como a do Capitão Rino, que sofre uma paixão não correspondida por Camila; a de Catarina, irmã do
capitão e dotada de independência financeira e intelectual que a fazem uma protofeminista; a das tias velhas
Itelvina, avarenta, e Joana, carola, que funcionam como a voz da coletividade ao comentar o adultério de Camila e
Gervásio; a de Sancha, moça negra empregada dessas senhoras, que, sem saída ao se ver sempre maltratada pelas
patroas (vive apanhando de Itelvina) e nunca ter apoio, pensa em suicídio; a de Mota, empregado acidentado de
Francisco Teodoro que sofre por sua condição de pobreza econômica e por sentir que sobrecarrega a filha solteira,
que cuida dele. Em meio a todos esses desajustes, a situação paradoxalmente se vai mostrando equilibrada, com as
personagens seguindo sua rotina. Mas a estabilidade é rompida. Francisco Teodoro, cansado por ver seu filho
agindo de forma irresponsável, exige que Camila o corrija. A contragosto ela parte para essa missão, mas é
humilhantemente desnorteada por Mário, que deixa claro que a mãe não tem dignidade para repreendê-lo, já que
era infiel ao marido. Denunciada, desmoralizada e temerosa, faz tudo para que seu filho se case com Paquita, uma
moça fútil da nobreza fluminense. Assim, afasta o risco de ser delatada ao marido e mantém seguro seu
relacionamento. Mas o preço é alto: sente que perde o filho para a nora, que dedica à sogra um tratamento frio,
distante e esnobe. Simultaneamente a esses eventos, Francisco Teodoro vem sofrendo o assédio de Inocêncio
Braga, que quer convencer o empresário a investir em um negócio especulativo que promete lucros fabulosos. No
começo o comerciante se mostra extremamente temoroso, primeiro porque valoriza a segurança da riqueza vinda
do trabalho e não da especulação; segundo, porque entende que essas negociações pertencem a um terreno de
que ele não tem o mínimo conhecimento, apesar do tanto que o aliciador explicava em seu discurso sedutor e
perfeito. Por fim, a ambição fala mais alto. Querendo galgar degraus mais altos, querendo ser o português mais
importante do Brasil, Francisco Teodoro entra na sociedade oferecida por Braga, ainda que com extremo temor. E
seus medos se concretizam. Tempos depois, o preço do café tem uma queda abrupta no mercado internacional.
Vários comerciantes quebram, o que faz com que o protagonista fique apreensivo, pois os recursos que poderiam
fazer aguentar a crise estão depositados em negócios especulativos. Por fim, o que mais temia aconteceu: a
sociedade de que participava quebrou, o que levou o seu entreposto à falência. Francisco Teodoro, vendo-se sem
posses, vendo-se sem dinheiro, vendo-se em uma idade em que já não havia mais fôlego para refazer sua vida,
vendo-se sem outra forma de relacionamento familiar a não ser pelo provimento de bens materiais, sente-se em
uma situação tão vergonhosa que não se acha capaz de suportá-la. Suicida-se. A partir de então a narrativa toma
outro rumo. Os parentes de Francisco Teodoro veem-se na miséria – só havia escapado Mário, que se casara com
Paquita, unindo-se, pois, a uma família rica. Camila, Ruth, Lia, Raquel, Nina e Noca se mudam para uma casa humilde
que Nina havia ganhado do tio.
Um dia, Mário vai visitar a família na nova morada e acaba encontrando o Dr. Gervásio. Recrimina a mãe,
por, de luto recente, receber o amante. Entende que ela estava expondo as filhas à manutenção de uma situação
vexatória e indigna. Acusa-a de não ter moral para cuidar das gêmeas, por isso vai levá-las para a casa da cunhada,
um lugar que considera mais honesto. Humilhada, ainda mais pelo fato de esse rebaixamento vir por parte do filho,
Camila vai procurar Dr. Gervásio, enxergando nele sua salvação. Parte do princípio de que os dois já tinham uma
espécie de relacionamento conjugal baseado no amor, o que garantiria a ela finalmente um matrimônio feliz. Além
disso, a reputação dela estaria resguardada, pois voltaria ao amparo do título de mulher casada. Por fim, e não
menos importante, o médico era rico, o que garantiria também segurança financeira à aflita. No entanto, o
companheiro faz-lhe uma terrível revelação: não poderia unir-se legalmente a Camila porque já era casado. Estava

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separado de sua esposa oficial, de quem se desgostara por ela ter praticado a indignidade (na opinião dele) de um
adultério. Ainda assim, a esposa não permitiu o divórcio, o que mantinha Gervásio preso. Mais humilhada ainda,
Camila toma consciência de sua situação, o que a faz ter um ímpeto de dignidade. Resolve tornar-se independente
dos homens, aceitando que o seu lar vire uma comunidade feminina. Ruth ganha dinheiro com aulas particulares de
música; Nina costura para fora e Noca engoma (passa roupa). A protagonista toma de volta a guarda de suas gêmeas
e resolve cuidar da educação delas, assumindo o papel que a sociedade entendia que devia ser o seu: o de mãe.

ALGUNS ASPECTOS IMPORTANTES


O primeiro elemento que chama a atenção em A falência é a forma com que o adultério é tratado. Trata-se
de um tema muito comum na literatura do Realismo-Naturalismo, servindo para mostrar a decadência das relações
humanas. No entanto, Júlia Lopes de Almeida inova ao se mostrar neutra diante do tema, não tecendo comentários
morais sobre as atitudes de Camila. Ao contrário, vai buscar as causas desse ato, o que lhe permite vazar uma crítica
feroz – apesar de discreta – à forma como a sociedade brasileira era constituída no final do século XIX. Aliás, o tom
desse ataque já pode ser pressentido no próprio discurso da protagonista, que condena os romances que tematizam

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o adultério, pois ela acha que esses autores eram injustos. A condenação que se faz à abordagem social do adultério
em A falência é coerente, em primeiro lugar, com os traços naturalistas que esse romance apresenta, principalmente
aos que se referem à doutrina determinista, pois o narrador busca seus fatores condicionantes. Inicialmente, deve-
se recordar que o casamento de Camila não se deu por questões afetivas, mas eminentemente venais, materialistas.
Além disso, Francisco Teodoro não se preocupava em ser amoroso, carinhoso, apenas em prover seu lar e garantir
um bom padrão (econômico) de vida à sua esposa. Camila, portanto, tornara-se uma mulher carente, cheia da
vontade e da necessidade de amar. Além disso, seu marido possuía relacionamentos extraconjugais, dos quais ela
tomara conhecimento, sendo obrigada, em nome do decoro social, a aceitar a falha do cônjuge. Mas não o faz calada
– o que era um fator escandaloso para os padrões da época –, pois o simples fato de se queixar já revela sua posição
contestadora. Esses fatores impedem, portanto, que a protagonista seja vista como uma adúltera devassamente
corrompida. Outro aspecto a ser percebido em A falência surge no questionamento de Camila a respeito do adultério
praticado por seu marido ser relevado. Nota-se que Júlia Lopes de Almeida aproveita-se de seu narrador para entrar
na mente das personagens e, assim, revelar o comportamento moral da sociedade enfocada. Exibe também, por
meio do monólogo interior, as justificativas de Francisco Teodoro para o seu relacionamento extraconjugal: o
português não era culpado, pois Sidônia é que lhe “teria aparecido”; além disso, não deixava faltar nada –
materialmente – para a esposa. Assim, notamos a hipocrisia de uma sociedade que prega a igualdade, mas trata o
adultério de forma desigual: no homem, é uma falha que não compromete o seu caráter; na mulher, é um crime que
detona sua reputação, devendo ser severamente punido. Camila não sente o castigo diretamente, mas
indiretamente: no velório de seu marido, as condolências sinceras são para seus filhos – para ela, sobram os gestos
de praxe, que a etiqueta mandava; é humilhada pelo filho, perdendo autoridade sobre ele; quase perde a guarda
das gêmeas. Outros relacionamentos adúlteros permitem perceber a crítica que Júlia Lopes de Almeida faz à
hipocrisia da sociedade, que tem uma moral ambígua em relação ao tema. O pai de Rino e Catarina havia flagrado
a mãe deles em adultério, o que o fez sentir-se autorizado a assassinar a esposa, não sendo, por isso, condenado.
Prova desse perdão é o fato de ter-se casado novamente. Além desse exemplo, há o de Dr. Gervásio, que se separou
da esposa por descobrir que ela lhe era indigna, por ser adúltera, mas mantém um relacionamento de mesma
qualidade. Essas considerações são coerentes com as posturas feministas da autora, que visa à luta por mais
igualdade entre os gêneros. E é nesse sentido que A falência também pode ser analisado. Para tanto, deve-se
observar que as posturas patriarcais – mulher nasceu para o casamento e para o cuidado do lar – são veiculadas
por Francisco Teodoro, uma personagem que não percebe que ocorre um adultério embaixo de seu próprio teto.
Esse expediente narrativo serve para desmoralizar as posturas machistas. E Camila, subordinada à visão patriarcal
de mundo, mostra-se uma protagonista sem consistência, cumprindo – ainda que imperfeitamente – o papel que a
sociedade tradicional tinha escolhido para ela: a mulher anjo voltada para o lar. No entanto, não assume de forma
eficiente sua função de dona de casa, pois se mostra uma anti-heroína fútil e egoísta, muito mais preocupada com
a aparência, roupas e eventos sociais. É no final do romance, quando não pode mais contar com a ajuda dos três
homens de sua vida (marido, filho e amante), que toma consciência da mulher inábil que era. A questão da
competência feminina é um tema caro para Júlia Lopes de Almeida. A autora criticava muito a diferenciação que
havia no setor educacional, que desenvolvia habilidades intelectuais nos meninos e com relação às meninas se
preocupava apenas com a capacitação para prendas domésticas. Camila é exemplo cabal desse processo deplorável.
A autora defendia uma pedagogia que emancipasse a mulher. Prova disso é que a integridade de caráter de Camila
aflora no momento em que se integra à sua comunidade feminina autônoma, que se sustenta por meio do trabalho:
Ruth, Nina e Noca. Ainda assim, esse trabalho é feito dentro do que seria considerado natural para o universo
feminino, pois estaria circunscrito ao ambiente doméstico. Até as aulas que Ruth dá ocorrem dentro da casa de suas
alunas. Além disso, são atividades que não são valorizadas – pois que vistas como naturais – e relacionadas à
sobrevivência e não ao enriquecimento. Estas seriam ligadas ao universo masculino, cujo trabalho é valorizado. Por
isso os homens que trabalham – Francisco Teodoro, Dr. Gervásio e Capitão Rino – são ricos, ou pelo menos têm
uma situação bastante abonada. Configura-se então mais outra diferenciação entre homens e mulheres em que elas
acabam preconceituosamente prejudicadas. Entretanto, não se nota em A falência o estereótipo de discurso
feminista de tintas carregadas e inflamadas. Na verdade, o livro apresenta uma postura conservadora para os

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padrões de hoje, pois o resgate de Camila se dá em ambiente doméstico, quando ela assume o papel convencional
de mãe e se encarrega da educação das gêmeas. Contudo, se a postura feminista de Júlia Lopes de Almeida hoje
tem cores conservadoras, à época era um tanto avançada. A autora assumia o que a estudiosa Leonora de Luca
chamava de “o feminismo possível”. Outros temas também são dignos de nota, entre eles a solidariedade como
salvação para a sociedade. A falta dela, vertida na ganância e egoísmo típicos da classe alta, foi a causa da falência
de Francisco Teodoro, assim como da queda de Camila. Os ricos, como dizia Ruth, não têm noção (são ignorantes)
do que acontece de ruim na sociedade. Por isso o resgate em que a protagonista se sente quando vê que, no meio
da miséria, ainda há sobras do jantar, que as gêmeas levam para uma família mais necessitada. É a solidariedade
salvadora. Há também nas entrelinhas a crítica ao racismo como resíduo do escravismo. Basta lembrar que a
narrativa de A falência ocorre na sociedade imediatamente após a Abolição. A opressão está tão introjetada naquela
estrutura social que as queixas de Ruth quanto ao sofrimento da menina não são compreendidas pelas senhoras,
que acham natural o tratamento, afinal, a “negrinha” (palavra delas) vive de graça naquela residência. Por todas
essas considerações, Júlia Lopes de Almeida prova que não é uma autora que pertence à literatura denominada
pejorativamente como “sorriso da sociedade” ou “bibliothèque rose”. Sua visão bastante crítica dos mecanismos de
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funcionamento da sociedade brasileira revela uma escritora consciente e disposta a fazer de sua arte um
instrumento de transformação do seu meio.

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BIOGRAFIA

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu na cidade do Porto, noroeste de Portugal, no ano de 1919. O
avô da poeta era um conhecido proprietário de terras, dono da Quinta do Campo Alegre. Vindo de família abastada,
Sophia alternou sua vida entre a cidade Natal e Lisboa, onde cursou Filologia Clássica. Nessa época, entre 1936 e
1939, participou ativamente de movimentos políticos de oposição à ditadura de Salazar. Mais tarde, o interesse
pelas questões que atravessam a sociedade civil vai se materializar com sua candidatura para o legislativo em 1969.
Além disso, foi sócia fundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e, em 1974, tornou-se
deputada pelo Partido Socialista.

A vida política andou lado a lado com a vida poética de Sophia, que, em 1944, publicou Poesia, seu primeiro
livro que traz no título uma homenagem à expressão que a consagrou no cenário literário. A partir daí vieram Dia

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do Mar (1947), Coral (1950) e muitos outros, incluindo livros de contos, ensaios e trabalhos literários voltados para
o público infantil. Por sua contribuição literária, Sophia foi condecorada, homenageada de diversas formas e muito
premiada, incluindo com o reconhecido Prêmio Camões. Em 2005, a Câmara Municipal de São João da Madeira,
auxiliada pela Associação Portuguesa de Escritores, criou o Grande Prémio Sophia de Mello Breyner Andresen. Aos
84 anos, em 2004, Sophia faleceu deixando uma obra vasta e sensível sobre diversos temas que nos tocam e fazem
refletir. Maria Bethânia, cantora brasileira, gravou um disco chamado Mar de Sophia em 2006, cantando poemas da
poeta portuguesa.

CORAL E OUTROS POEMAS

O livro escolhido pela UFRGS como leitura obrigatória é uma antologia poética de Sophia. Nele, o traço
mais visível é a poética construída em cima de dualidades: a natureza etérea e o mundo desumanizado; a visão das
esperanças do passado em choque com um angustiante presente. Tudo isso permeado por uma linguagem que
transita entre o clássico e o moderno, resultando em uma poesia, ao mesmo tempo, simples e profunda. Os
elementos naturais, em especial o mar, tornam-se refúgio, um local imaculado em que o eu-lírico toma como
referência em chave de realização purificadora. Mais: a natureza é o ponto de encontro entre o mundo e o ponto
de vista humano, fundindo sentimentos, história e mito no objeto poema, que também pode ser visto como uma
paisagem. O mundo urbano, pelo contrário, é mobilizado através de imagens que indicam um espaço catalizador
dos flagelos da modernidade. Aliás, a cidade é vista como responsável por impedir a conexão com a natureza. Há
também as referências históricas, como a 2ª Guerra Mundial e o período Salazarista em Portugal, mas nunca de
forma direta: são as figurações de um mundo dilacerado que indicam os terríveis acontecimentos culturais e
políticos.

A edição organizada pela Cia das Letras contém uma seleção de poemas de mais de 16 livros. A saber:
Poesia, Dia do Mar, Coral, No Tempo Dividido, Mar Novo, Cristo Cigano, Livro Sexto, Geografia, Dual, O Nome das Coisas,
Navegações, Ilhas, Musa, O Búzio de Cós e Outros Poemas, Artes Poéticas, Poemas Dispersos e uma última sessão
apenas com poemas inéditos. O presente estudo tem como intuito abordar algumas de suas criações poéticas para
chegar próximo de uma síntese dos elementos trabalhados por Sophia de Mello Breyner Andresen em sua obra.

Apesar das ruínas e da morte,


Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Publicado no livro Poesia (1944), o poema acima carrega diretamente um dos recursos expressivos mais
utilizados por Sophia em sua poesia: a dualidade. Primeiramente, as ruínas e a morte aparecem como catalizadores
do fim da esperança de uma realidade histórica melhor. No entanto, o primeiro verso inicia com um advérbio de
oposição: “apesar”. É esse advérbio que indica, desde o princípio, que nada está perdido. O sonho, motriz da
mudança, impulsiona o renascimento dos propósitos da vida através de um dos principais símbolos da criação: as
mãos. Através de uma linguagem concisa, rígida metricamente (versos decassílabos) e com rimas alternadas, Sophia
exalta a pulsão vital contra a derrota pessoal e coletiva.

Coral
Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.

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Coral, poema homônimo ao livro de 1950, o poema se constrói, formal e tematicamente, como um jogo de partida
e retorno. São dois versos curtos intermediados por um verso um pouco mais longo, indicando esse movimento. A
observação curiosa do mundo coloca em evidência uma relação entre encontro e descoberta. A preocupação do
eu-lírico em saber o nome de cada elemento a sua volta abrange uma tentativa de organizar o próprio mundo, visto
que a linguagem é a principal ferramenta para esse fim. Cada “coisa” nomeada é interdependente a outras, assim
como os corais marítimos ou qualquer outro organismo. O conhecimento de uma mínima propriedade é o primeiro
passo para assimilação da totalidade. Coral é um poema curto, mas profundo: trata-se da arte de se aventurar em
rotas desconhecidas.

Pirata
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
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Gosto de uivar no vento com os mastros


E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,


A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

No poema estruturado em três estrofes de quatro versos e publicado no livro Coral, a figura do pirata é
utilizada como alegoria da liberdade clandestina. O pirata é indiferente aos seus “monstros” e ruma solitário e
intrépido em um local em que nada lhe é impeditivo. Os doces símbolos da natureza (“vento”, “os roseirais” e as
“aves”) são as únicas identificações desse navegante, definindo seu espírito de errância e liberdade. Conforme
comentário supracitado, a positividade da natureza, em especial do mar, neutraliza as agruras da vida na cidade.
Assim, o pirata, homem fora da lei, é, como o gênio, a figura apartada da sociedade, ainda que a mais sensível e
emancipada.

No Poema
Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso
Preservar de decadência morte e ruína
O instante real da aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa

Publicado no Livro Sexto (1962), No Poema é construído em cima de versos brancos e livres. O tema aborda
uma reflexão acerca do fazer poético. Mais precisamente, trata-se da forma de transplantar a realidade para a
poesia. Do âmbito físico e natural às sensações de uma “mão tocando a mesa”, o processo de captação poética
precisa, segundo o eu-lírico, guardar a claridade e a limpeza desses elementos. A ideia de luminosidade, brancura,
limpeza são essenciais na obra andreseniana. Presente em inúmeros poemas, a exaltação de um “mundo claro”
assinala a pureza capaz de captar, sem máculas, a realidade tristemente sombria.

Esta gente
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto


De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem


O rosto desenhado

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Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente


Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova


E recomeço a busca
De um país liberto

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De uma vida limpa
E de um tempo justo

Poema publicado no livro Geografia (1967), Esta Gente faz parte do rol de poemas mais expressamente
voltados à denúncia social na obra de Sophia. Em meio ao período ditatorial, o poema volta a atenção à faixa social
mais afetada com as políticas autoritárias de governo. Na primeira estrofe os rostos do povo são comparados aos
de escravos, devido ao grau de injustiça projetado na sociedade civil, e, ao mesmo tempo, de reis, como forma de
dignificação. Na segunda estrofe, as figurações de porco, abutre, milhafre e cobra são mobilizados como símbolos
a serem combatidos em uma referência indireta aos governantes, sendo Salazar o maior representante. Na quarta
e quinta estrofe, dá-se a denúncia acerca da forma como a história de um país é escrita: em cima das iniquidades
cometidas contra um povo desamparado, pisada como “a pedra do chão”. Todo o discurso de denúncia se converte
na sexta e última estrofe, quando o eu-lírico assume uma potência ativa: através do canto de denúncia, renasce a
força para uma busca pela justiça social.

Os Gregos
Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante
Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz
Neles o longo friso branco das espumas o tremular da vaga
A verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro erecto do trigo
O meandro do rio o fogo solene da montanha
E a grande abóbada do ar sonoro e leve e livre
Emergiam em consciência que se vê
Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia —
Esta existência desejávamos para nós próprios homens
Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem
O estar-ser-inteiro inicial das coisas —
Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conhece
E também à treva interior por que somos habitados
E dentro da qual navega indicível o brilho

Em Dual (1972), Sophia deixa transparecer seu apreço pela poesia de Fernando Pessoa, considerado um
dos maiores poetas portugueses. O diálogo com Pessoa já aparecia em O Livro Sexto (1962). Nele, Sophia compara
Fernando Pessoa a um Deus. A divinização é um recurso de exaltação muito presente na poética de Sophia devido
ao seu zelo pela cultura greco-romana. Em meio a homenagens ao heterônimo Ricardo Reis, evocações ao poeta
Fernando Pessoa e até mesmo em referência ao clássico Camões, Sophia, em Dual, referencia as histórias
mitológicas antigas como uma forma de pensar a natureza, seu tema mais caro. Em Os Gregos, os deuses estão
interligados simbolicamente “ao mar à nuvem ao arvoredo à luz”, ao “meandro do rio o fogo solene montanha/ e a
grande abóbada do ar sonoro”. Nesse sentido, a conexão com a mitologia clássica se dá pela necessidade dos
homens de se relacionar simbolicamente com a natureza, elemento considerado purificador na poética de Sophia.
Ou seja, nos voltarmos aos mitos clássicos é a forma mais genuína de nos aproximar dos nossos sentidos primordiais,
ou, como diz o verso: “Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem/ O estar-ser-inteiro inicial das coisas”.

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Brasil 77

(...)
Brasil de Manuel Bandeira
Que ao franquismo disse não
E cujo verso se inscreve
Neste poema invocado

Em vosso e meu coração


Brasil de Jorge de Lima
Bruma sonho e mutação
Brasil de Murilo Mendes
Novo mundo mas romano
E o Brasil açoriano
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De Cecília a tão secreta


Atlântida encoberta
Sob o véu dos olhos verdes
Brasil de Carlos Drummond
Brasil do pernambucano
João Cabral de Melo que
Deu à fala portuguesa
Novo corte e agudeza
Brasil da arquitectura
Com nitidez de coqueiro
Gente que fez da ternura
Nova forma de cultura
País da transformação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não
(...)

Localizado na sessão de Poemas Dispersos, ou seja, no conjunto de criações poéticas espalhados em revistas,
jornais e livros coletivos, o poema Brasil 77 é uma homenagem ao maior país da América do Sul. Sophia tinha um
grande apreço pela língua e pela cultura brasileira. Homenageou em alguns poemas a capital federal, Brasília,
Manuel Bandeira, a língua portuguesa em sua variante brasileira, mas, em Brasil 77, o elogio a grandes escritores e
a cultura brasileira em geral, vem com uma contestação: “ao Brasil que tortura/ Só podemos dizer não”. Após o fim
do regime salazarista em Portugal no ano de 1974, a preocupação política de Sophia não cessou. Em 1977, seus
olhos se voltaram ao Brasil para, nesse poema, repreender a ditadura brasileira, aliada à tortura.

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava


O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Localizado em O Nome das Coisas, nesse poema curto, o primeiro verso alude ao salmo bíblico que diz: “Este
é o dia que fez o Senhor; regozijemo-nos, e alegremo-nos nele”. Nessa perspectiva, trata-se de um poema que
informa o dia da expectativa da ressurreição. Encarando a questão bíblica com o título do poema, que indica a data
do início da Revolução dos Cravos, que pôs fim ao governo Salazarista, o leitor reconhece o aspecto de salvação do
povo lusitano. Portanto, emergir da noite significa elevar-se das sombras da escuridão do mal. A noite em que Jesus
retorna vitorioso do inferno é a mesma em que o povo português volve triunfante das trevas da história.

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“A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-
nos sempre.”

A AUTORA:
Isabela Figueiredo nasceu em Moçambique, em 1963. Filha de portugueses que
viviam como colonos na capital moçambicana, ela só conheceu Portugal em 1975, prestes
a completar 13 anos. Representante do grupo dos “retornados” à Europa com o fim do
domínio colonial na África, Figueiredo estreou na literatura com o livro Conto é como quem
diz (1988). Levaria 21 anos para publicar sua próxima obra, o Caderno de Memórias Coloniais,
que foi seguido por A Gorda (2016).

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A autora, “traindo” a narrativa oficial, que se negava a falar sobre a exploração dos moçambicanos pelos
portugueses colonos, propõe em sua obra uma revisão da memória acerca do período de domínio português na
África. Junto a isso, a autora também reflete sobre sua relação com o pai, com a mãe (tema que é mais bem
desenvolvido em A Gorda), e sobre a descoberta da sexualidade e do prazer, ainda em Moçambique.

“Em Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo, filha de um colono eletricista, trai o pedido de seus
conterrâneos de Moçambique para que conte essa história a partir do ponto de vista dos colonizadores. Seu livro
transita na ambiguidade de denunciar a exploração e a violência coloniais e de ser um instrumento de sedimentação
de memórias que foram silenciadas durante cerca de 42 anos, desde que se deu a reabilitação do sistema de governo
democrático, em Portugal.” (Flavia Arruda Rodrigues)

O CONTEXTO COLONIAL:
A obra se passa em Moçambique, nos anos finais do período em que o país era uma colônia portuguesa.
Como tal, muitos fatos históricos dessa época estão presentes no texto, seja como temática, seja como pano de
fundo.
Portanto, convém destacarmos alguns tópicos:

i) A geração dos retornados/regressados: É um termo comumente utilizado para referir-se à última geração
portuguesa a viver nas colônias africanas. Com os movimentos de independência dos países africanos, essa geração
começa a retornar a Portugal, normalmente perdendo tudo quanto haviam construído na ex-colônia, e ocupando
uma posição paradoxal ao chegarem ao país – passam a ser vistos como aqueles que viviam “às custas dos pretos”,
por serem “preguiçosos” e quererem tudo feito pelos africanos. Essa geração carrega também um ressentimento
muito grande, pois acreditava que deveria ter recebido o poder de Moçambique quando chega ao fim a ditadura de
Marcello Caetano (o que não ocorreu, pois a FRELIMO é que se torna o governo local, permanecendo até hoje
como o partido de situação). É dessa geração que vêm os relatos mais idílicos aos quais Isabela Figueiredo se
contrapõe com o seu Caderno. É importante destacar, também, que a autora não nasceu em Portugal, e sim seus
pais; isso certamente contribuiu para sua visão menos idealizada desse período.

ii) O Marcelismo: Esse termo aparece na obra para designar o período em que Portugal viveu sob o governo
do ditador Marcello Caetano, entre os anos de 1968 e 1974. Caetano sucedeu António de Oliveira Salazar, primeiro
líder do Estado Novo português.

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iii) Revolução dos Cravos: Ocorrida em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos foi uma ação liderada
por um movimento militar composto na sua maior parte por capitães que haviam lutado na Guerra Colonial. Essa
ação resultou no fim do regime ditatorial do Estado Novo. É a partir da revolta de 25 de abril que mudanças
começam a ser sinalizadas para os colonos portugueses em Moçambique, que inicialmente imaginam que se
tornariam os novos mandatários do país, sem depender da antiga metrópole, mas logo descobrem que o poder iria
para as mão dos movimentos de independêNCIA DE MOÇAMBIQUE.

iv) FRELIMO: A Frente de Libertação de Moçambique é um partido político fundado em 1962 com o
objetivo de lugar pela independência de Moçambique contra o domínio colonial português. É o partido que ascende
ao poder em 1974, dando início à partida dos colonos portugueses às pressas para Portugal. No relato de Isabela
Figueiredo, veem-se as violências praticadas pelo grupo no período imediatamente posterior à independência, como
forma de punir os colonos, mas também como um meio de consolidar o recém adquirido poder.

v) O 7 de setembro: Citado diversas vezes ao longo do relato, o dia 7 de setembro de 1974 foi a data de
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um levante da população branca colona em Lourenço Marques, que ocupou a emissora de rádio da capital e
começou a emitir mensagens para todo o país, incitando os brancos a revoltarem-se. O motivo era a revolta contra
o Acordo de Lusaca, assinado entre o novo Governo Português e a FRELIMO, e que garantia ao povo moçambicano
o direito à independência. O resultado foi uma imensa perda de vidas, com o exército português, de acordo com as
ordens recebidas de Lisboa, abrindo fogo e matando centenas de pessoas, indistintamente entre brancos colonos
e moçambicanos.

Lourenço Marques (atual Maputo) nos anos 1960.

Lourenço Marques (atual Maputo) nos anos 1960.

Samora Machel, líder revolucionário que liderou a Guerra da Independência de Moçambique e foi o
primeiro presidente do país.

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A ESTRUTURA NARRATIVA:
A obra é dividida em 43 capítulos curtos, que não obedecem a uma ordem cronológica, funcionando como
recordações do período em que a autora viveu em Moçambique (até os 13 anos) e, mais brevemente, do período
em que ela chega a Portugal.
Assim, a obra não apresenta uma linearidade clara, estruturando-se de maneira mais temática do que
cronológica, com as impressões da autora pautando o andamento dos capítulos.
Quanto à voz narrativa, a obra é narrada em primeira pessoa, e toma como ponto de partida as experiências
de vida da própria Isabela Figueiredo. No entanto, é importante ressaltar que se trata de uma obra literária, e não
apenas uma autobiografia literal, pois, como diz a autora,

“O Caderno tem uma vida própria, que quem lê reconhece, como se de repente se abrisse uma janela e o
vento trouxesse intacto o ambiente do passado, descongelado, inteiro e autêntico, com os seus ruídos, cores e
odores; mas o livro também ficciona para dizer a verdade, esse outro grande paradoxo da literatura. Pode esperar-
se que os factos relatados correspondem ao que foi testemunhado, vivido e sentido, não que sejam um relato literal

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isento de trabalho literário.”

Assim, a obra insere-se em uma tendência memorialista, que podemos definir também como autoficção
(embora Isabela Figueiredo negue rótulos específicos para sua obra), em que a autora parte das experiências que
teve ou que testemunhou e as transforma em matéria ficcional.
Essa estrutura relativamente autônoma de capítulo a capítulo (que podem praticamente ser lidos como
fragmentos isolados, sem que um siga o outro em uma sequência narrativa, compondo um mosaico de imagens)
certamente se deve à origem do texto: sua origem é o blog o mundo perfeito, que autora mantém até hoje, sob o
novo nov omundo perfeito.

ENREDO:
Como mencionado na estrutura, a obra não se define por uma clara narrativa linear, sendo composta mais
por cenas e lembranças soltas do período da narradora em Moçambique. A crítica Anita Martins Rodrigues de
Moraes assim definiu a composição da obra:

“1) a linguagem crua e por vezes elíptica; 2) a construção de metáforas e metonímias; 3) o recurso a
situações emblemáticas; 4) o destaque do corpo; 5) a metalinguagem.”

Assim, a melhor forma de abordar o enredo é fazermos um resumo da trajetória da narradora, e nos
focarmos nas situações emblemáticas da trama.

A TRAMA
A narradora, nascida em Lourenço Marques (capital de Moçambique, que após a independência passa a se
chamar Maputo), é criada pelos pais no contexto de domínio português. Nascida na colônia, a narradora não se
sente totalmente integrada ao discurso colonialista e patriarcal, mas também não pertence aos nativos, dando
origem a um sentimento de desterritorialização que vai acompanhá-la até o fim.
Seu pai é um eletricista português, que emprega moçambicanos, todos mal remunerados e tratados de
maneira agressiva por ele. A narradora sente-se próxima do pai, demonstra um carinho por sua figura, mas também
reconhece nele a representação de um discurso racista, colonialista, machista – as cenas em que ela intercala
momentos de descoberta sexual com o medo do que o pai poderia fazer com ela caso descobrisse deixa isso muito
claro.
Até os 12 anos, a situação social não se altera: sua família segue em uma posição de poder, e os negros
mantêm-se em uma posição submissa. No entanto, após o 25 de abril, as relações começam a se alterar, culminando
no episódio de 7 de setembro (brutalmente representado na cena do “futebol com cabeças”). Assim, já prestes a
completar 13 anos, a narradora é mandada para Portugal, onde vai viver com a avó, distante dos pais por 10 anos,
quando eles também retornam ao país.
Quando parte, ela leva uma missão: revelar aos que haviam ficado no país a verdade. No entanto, há um
problema – a verdade deles não é a mesma verdade dela; ou seja, ela não compactua com o discurso do pai, e por
isso vai “trair” a missão que lhe é incumbida.
Já em Portugal, ela passa a ser vista como a “retornada”, sofrendo preconceito por parte dos portugueses
que haviam permanecido no país.
O pai da narradora permanece em Moçambique, mas já não há construções para que ele trabalhasse como
chefe dos eletricistas – e, mesmo que as houvesse, não seria contratado, pois ele era o homem branco, o
colonizador, o inimigo. Em 1978, ele é preso por ofender publicamente Samora Machel, então presidente de
Moçambique. Passa alguns anos presos, e a experiência não é comentada por ele nunca, o que garante à narradora
que a experiência fora traumática: se ele não se gabou sobre os “feitos heroicos” de quando esteve preso, é porque
não houve nenhum.

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Nos anos 90, os pais já estavam de volta a Portugal, mas a “traição” da filha permanece entre os dois, e o
pai morre em 2001 sem que os dois fizessem as pazes por completo.

A DESCOBERTA DA SEXUALIDADE
Várias são as cenas que ilustram o despertar sexual da narradora, mas há quatro situações emblemáticas
fundamentais:
i) Aos sete ou oito anos, com um vizinho seu, também da mesma idade, resolve “jogar a foder”: os dois ficam
nus, e o rapazito deita por cima dela, e assim os dois ficam, um sobre o outro; o pai dela flagra os dois e a surra. Essa
situação marca a perda da inocência e a descoberta do sexo.
ii) Aos dez anos, ela se aproxima de um outro vizinho; mas, diferentemente do caso anterior, esse vizinho
era preto, o que fazia com que sua mãe não quisesse que ela andasse com ele. Nada acontece entre eles, mas a
narradora tem medo de engravidar, pois “já tinha percebido que quando um homem e uma mulher gostavam um do
outro, nascia uma criança”. O que predomina no relato, mais uma vez, é o medo da figura paterna e o que ele poderia
fazer com ela caso soubesse.
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iii) O primo, que voltara da guerra no Norte traumatizado, desperta nela sonhos eróticos, mesmo sem ela
saber o que era o sexo. Aos 10 anos, ela fechava os olhos e fantasiava que os amarravam um ao outro e os lançavam
em uma piscina incendiada, que os queimava de prazer. Esses sonhos eróticos são interrompidos não pelo medo do
pai, mas pelo trauma do primo, que o levaria alguns depois ao suicídio.
iv) Domingas, filha de Domingos, um fazendeiro que vivia no Vale do Infulene (rio que corta Maputo), é
mais velha que a narradora, e já tem o corpo mais desenvolvido. As duas tomavam banho juntas, e a narradora
revela que Domingas foi quem a masturbou pela primeira vez, enquanto se banhavam. O prazer das duas, assim,
como nas situações anteriores, é interrompido, dessa vez pela guerra: Domingas precisa fugir com o pai e a mãe
para não serem mortos pelos nativos; quando retorna, ela e a narradora alfabetizam as crianças do Vale do Infulene,
mas a guerra já havia matado o prazer.

O que é imprescindível notarmos é que, na narrativa, o despertar sexual é sempre interrompido, ou pela
figura do pai, ou pelo trauma da guerra. Em última instância, é o colonialismo (ou na figura do pai, ou na sua
consequência máxima, a guerra pela independência) que mata o prazer.
Também a primeira menstruação da narradora é apresentada rodeada de um constrangimento traumático,
pois suas roupas ensanguentadas estão estendidas, e todos os homens podem vê-las.

Entre os colonos e os pretos


Em diversos momentos do relato, a narradora põe-se em uma posição intermediária: filha de portugueses,
não compactua com a ideologia colonial e sente-se próxima dos negros; no entanto, sabe que também não pertence
aos nativos, pois é “cúmplice” das relações de poder. Essa posição é resumida por ela mesma no capítulo 7:

“Uma branca não vendia mangas a não ser por grosso, a outros brancos que as distribuíssem. Uma branca
não vendia mangas no chão, à porta. Mas eu era uma colonazinha preta, filha de brancos. Uma negrinha loira. E a
colonazinha negra que eu era vendia montezinhos de mangas do lado de fora do portão da machamba.”

OS SÁBADOS
Uma das situações emblemáticas da relação do pai com os empregados é a descrição do momento do
pagamento. Ao final da tarde de sábado, o pai pagava aos homens o salário da semana. Todos os “pretos do pai”
ficavam juntos, rindo, bebendo, mas a situação invariavelmente ia ganhando contornos tensos, terminando sempre
com briga entre o pai e algum funcionário que se sentia prejudicado e questionava, por não ter ainda entendido “as
regras, que eram só duas: receber e calar”. Segundo ela, o pai transformava “os finais dourados das tardes de sábado
num poço escuro de medo e raiva”.

O CINEMA DA MACHAVA E O ANEL DE OURO COM UM RUBI


Aos domingos, a família da narradora ia ao cinema. Essa situação cotidiana é uma ilustração das relações
sociais na Moçambique dominada pelos portugueses: a primeira plateia, com bancos de pau, era o lugar dos negros;
a segunda plateia, com bancos estofados, era ocupada pelos brancos de classe média; e a terceira plateia, com
camarotes luxuosos, era ocupada pela elite.
Numa dessas tarde no cinema, a narradora resolve livrar-se do incômodo anel que era forçada a usar,
lançando por baixo das poltronas até que ele chegasse à primeira plateia, onde nenhum deles iria procurar. De
repente, ao fim do intervalo, um dos negros sai de seu lugar e caminha em direção à segunda plateia. O instinto de
todos é imaginar que ele vinha pedir dinheiro; porém, quando ele se aproxima, carrega o anel “perdido”, e vinha
procurando quem era a dona. Dessa forma, a cena encerra-se subvertendo a expectativa de todos os colonos que
ali estavam.

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A BOFETADA AMARGA
Apesar de questionar muito da ideologia com que entrou em contato graças aos pais, a narradora não está
isenta de culpa, e a situação mais emblemática de como ela também por vezes incorporava o discurso e as práticas
coloniais é o caso da bofetada dada por ela em Marília, uma colega de colégio. O motivo, nem a própria narradora
consegue lembrar com precisão (“porque ela me irritou, porque não concordou comigo, poque eu é que sabia e
mandava e estava certa, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá agora
por que lhe dei a maldita bofetada!”); no entanto, a culpa a acompanha sempre.
Importante ressaltar que Marília, a colega, não revida, nem tenta algum tipo de retaliação; apenas aceita
sua posição submissa, algo com que a narradora já contava, pois sentia que “podia perfeita e impunemente bater-
lhe”.
Apesar do sentimento de culpa e do amargo da experiência, a narradora admite que provavelmente nunca
pediu desculpas à colega.

A LEITURA CRIA A INIMIGA DO PAI

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Um dos momentos fundamentais na narrativa é a cena em que a narradora rememora o momento em que
começou a desvendar as palavras, como num milagre: “uma tangerina madura abriu os gomos dentro do meu
cérebro”. Ela estava no carro com o pai, que se orgulha imensamente da filha (“és o meu tesouro, és tudo para
mim!”). A leitura torna-a mais livre, embora as barreiras físicas seguissem as mesmas, e os muros e grades
continuassem a existir, pois qualquer frase podia levá-la a outro lugar, dentro de mentes diversas.
Contudo, também a leitura é que inicia um processo de ruptura com o pai, que vai se intensificar cada vez
mais, pois a leitura torna-a questionadora, a “pior inimiga” do pai, “a toupeira que lhes havia de roer todas as raízes,
devagar, uma de cada vez, até restar pó”.
Importante também ressaltar as imagens construídas pela narrativa: o milagre repentino da leitura é
comparado à primeira menstruação, e ruptura entre ela e o pai é simbolizada pela camisa branca do pai que ela,
para sempre, sujara de terra.

A DISTANTE GUERRA PRÓXIMA


A Guerra pela Independência de Moçambique aparece como pano de fundo, porém a narradora confessa
que muito pouco do conflito chegava a Lourenço Marques, pois o conflito acontecia ao norte do país, o que permitia
aos colonos ignorar os horrores dela.
Um personagem, no entanto, vai simbolizar o trauma causado pela guerra: o primo da narradora, que vai
para a guerra e retorna traumatizado, silencioso, recluso – e acaba por matar-se anos depois.

O TEMPO DOS BRANCOS ACABOU


A Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, é o início da virada das relações sociais em Moçambique.
Num primeiro momento, os colonos imaginavam que o poder na ex-colônia ficaria para eles, pois criam que o novo
governo português lhes entregaria o domínio político. No entanto, o governo negocia com a FRELIMO a
independência do país, o que dá origem ao massacre do dia 7 de setembro de 1974, em que diversos colonos são
mortos durante um levante contra o acordo de Lusaca. A partir disso, os moçambicanos passam a vingar-se dos
colonos e a destruir tudo que os representasse. Há três cenas que ilustram essa inversão, e a violência praticada
também pelos nativos:
i) Enquanto espera pelo pai em uma das esquinas da 24 de julho, um jovem negro aproxima-se dela e abusa
dela, passando a mão em seu corpo. O mais marcante é o olhar dele: “olhou-me nos olhos, muito perto, sem temor,
sem culpa”. A violência, tanto física quanto simbólica, é usada como instrumento de dominação.
ii) Os negros jogam futebol no campo da bola; em vez de uma bola, porém, usam as cabeças dos brancos
que haviam matado, até a estrutura do crânio se desfazer. Não apenas a morte, mas a destruição total do corpo era
necessária para vingar-se dos brancos colonos.
iii) Domingos, um “machambeiro” (fazendeiro) vizinho, escapa com a família da perseguição, mas a casa e
os animais são destruídos. Cândido, outro fazendeiro, no entanto, é morto a golpes de catana, junto com os filhos.
Apenas a mulher, que ficara na cidade, sobrevive, e enterra marido e filhos em uma mesma cova, sem conseguir
distinguir os corpos de cada um.

A catana é a arma utilizada pelos moçambicanos para se vingarem, de maneira brutal, dos brancos colonos.

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A PARTIDA PARA PORTUGAL E A “METÁFORA PERFEITA”
Já prestes a completar treze anos, a narradora é mandada a Portugal, sob o pretexto de estudar, mas com
uma missão: relatar a todos as violências que estavam sendo praticadas pela FRELIMO contra os brancos colonos.
Para ela, no entanto, é o ponto máximo de sua desterritorialização: nascida em Moçambique, mas sem nunca ser
uma nativa, ela também não é uma portuguesa, e agora abandona o único lugar que conhecia, em busca de poder
ocupar um papel novo: “A vida na colónia era impossível. Ou se era colono, ou se era colonizado, não se podia ser
qualquer coisa de transição, no meio daquilo, sem um preço a loucura no horizonte”.
A narradora tenta recordar-se da roupa que usava no dia da viagem, e chega à “metáfora perfeita” do
vestido branco: uma branca de branco, agarrada à saia que não pode sujar, olhando os sapatos brancos que não
pode empoeirar. Mais interessante ainda é o fato de que ela tem certeza de que não estava vestindo branco, o que
talvez torne essa metáfora mais perfeita ainda:
“Era Novembro, fazia muito calor e eu usava um vestido branco em tecido crepe. Não me podia sujar. Tudo
isto parece certo, mas é mentira. Eu vestia de azul.”
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PERSONAGENS:
Pai – Personagem central no relato como um todo, o pai da narradora é um eletricista português que vive
em Moçambique. Emprega diversos negros moçambicanos, os quais ele trata com violência e intimidação. Para a
narradora, o pai é a representação do colonialismo, do autoritarismo, do patriarcalismo. No entanto, é fundamental
destacar que ela também nutre um carinho pela figura paterna, que ela considera estar “traindo” por conta do relato.
Há uma importante oposição entre a figura do pai (com um corpo “grande, redondo, convidativo”) e a da
mãe (mais fria, mais distante, mais disciplinadora): enquanto o pai desperta igualmente amor e medo, a figura
materna parece sempre representar um discurso disciplinador, regrador e distanciado.
Quando a narradora já está vivendo em Portugal, o pai é preso em Moçambique, experiência a respeito da
qual ele não conversa. Após o período da infância, ela e o pai se desentendem pelas distintas visões ideológicas de
ambos. O pai morre sem que eles façam completamente as pazes.
Narradora – Nascida em Moçambique, a narradora do Caderno (sem dúvida um alter-ego da autora) cresceu
em meio ao discurso fortemente colonialista do pai, mas não se sente totalmente parte desse grupo. A leitura marca
um ponto de virada, em que ela começa a questionar os valores que lhe são apresentados. Contudo, em alguns
momentos ela também assume uma posição opressora (por exemplo, no caso envolvendo a colega Marília), pois,
como ela mesma assume, não era totalmente inocente no jogo colonial.

Primo – Aos 19 anos, o primo da narradora é enviado para o norte de Moçambique, para lutar contra a
FRELIMO. Após a experiência da guerra, ele retorna traumatizado, e esse trauma é representado por meio do
silenciamento – ele não fala sobre a guerra, não compartilha suas experiências, fica isolado em silêncio fumando. A
narradora nos conta também que foi ele quem acordou seu “primeiro, estranho desejo”, pois era muito bonito, e
ela, sem saber o que era o sexo, sonhava aventuras eróticas com ele. Por conta de seu trauma, anos mais tarde ele
se suicida.

Domingas – Filha do “machambeiro” Domingos, ela é mais velha do que a narradora, e fisicamente mais
desenvolvida. A narradora relata que as duas tomavam banho juntas, e que Domingas foi quem a masturbou pela
primeira vez. No entanto, a guerra levou embora também esse prazer: sua família consegue fugir aos ataques da
FRELIMO e, depois, o pai dela negocia que ela alfabetize as crianças do Vale do Infulene em troca de manter a casa
da família. Durante 12 meses, a narradora a auxilia na alfabetização das crianças – “os filhos dos que mataram o
Cândido”.

Marília – Colega de escola da narradora, é por ela agredida, sem no entanto revidar. A cena é emblemática,
pois mostra como desde cedo as crianças negras aprendiam a ser submissas e a guardar a vontade de retaliações
(que certamente explodiria pós-independência), e também como as crianças brancas colonas aprendiam que podiam
impunemente abusar dos negros, fosse pela força, fosse pela humilhação.

Manjacaze – Criado do Prédio Lobato, Manjacaze era visto como um “bom preto”: educado servil, submisso.
A narradora diz que ele tinha um “ar de avô”.

PASSAGENS IMPORTANTES:
Sobre sexualização dos negros e relações inter-raciais:
“Para uma branca, assumir uma união com um negro implicava proscrição social. Um homem negro, por muito
civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado. Meu pai revoltava-se quando encontrava uma branca com
um negro, já depois do 25 de abril, em Portugal. Fitava os pares como se visse o diabo. Eu dizia-lhe, para de olhar, o
que é que te interessa? Respondia-me que eu não sabia, que um preto nunca poderia tratar tão bem uma branca,
como ela merecia. Era outra gente. Outra cultura. Uns cães. Ah, eu não entendia. Ah, eu não podia compreender. Ah,
eu era comunista. Como é que tinha sido possível eu dar em comunista?”

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“Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de
seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com
os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida, ou por medo. E algumas talvez gostassem, e
guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a
si próprias a guinchar, a abrir as pernas, a ser largas.”

SOBRE O DESPERTAR SEXUAL DA NARRADORA:


“Foder. Essa descoberta tornou-se algo que me envergonhava e desejava. Tinha os tais sete ou oito anos. [...]
Nesse dia longínquo de 1970 perdi a inocência, descobri o sexo, e comecei a sonhar que fodia com o Gianni Morandi
enquanto ele me canta Non son degno di te, / no ti mérito più.”

“Agradava-me o rapaz, e já tinha percebido que quando um homem e uma mulher gostavam um do outro,
nascia uma criança.”

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RETRATOS DO PAI:
“Foder. O meu pai gostava de foder. Eu nunca vi, mas via-se. Uma pessoa que observasse bem o meu pai, os
olhos a sorrir simultaneamente com a boca, a sensualidade viril das mãos, braços, pés, pernas... uma pessoa que
escutasse a maliciosa rapidez da sua resposta, o sentido de humor permanente e dúbio desse gigante percebia que
aquele homem gostava de foder. Eu não sabia, mas sabia.”
“Gostaria que tivesse sido possível o meu pai viver o suficiente para podermos repeti-lo na minha adultícia,
mas não sei se ele poderia regressar a África, apesar de ter sido a única terra que amou. Nos dias que antecederam a
sua morte ainda sonhava andar a fazer umas instalações nuns prédios da “Sommershield”. Também nos meus sonhos
os caminhos ainda são de terra vermelha batida.”

“O meu pai tinha o condão de transformar os finais dourados das tardes de sábado num poço escuro de medo
e raiva.”

“E o homem branco que me leva pela mão voando, atravessa o caniço veloz, procura a Bedford estacionada lá
fora, senta-se, põe o motor a trabalhar, arranca, olha para mim, então, estás cansada, querer ir beber uma Coca-Cola?
Queres que te deixe provar o meu pênalti? Olho-o, não respondo. Aquele homem branco não é o meu pai.”

“O meu pai acreditava num reviralho, numa África branca na qual os negros haviam de se assimilar, calçar, ir
à escola, e trabalhar. O meu pai acreditava num movimento de brancos, num outro movimento de brancos, após o de
7 de setembro. Um que havia de vencer mesmo, que seria financiado pela África do Sul ou pela Rodésia.”

SOBRE A POSIÇÃO SOCIAL DOS NEGROS:


“O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde.
Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para
mandar, já lá estava o meu pai.”

“Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme
campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência. Quem,
numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquanto furavam as paredes
cruas dos prédios dos brancos, não esquece esse silêncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e
submissão, sobrevivência e conspurcação. Não havia olhos inocentes.”

“Um branco e um preto não eram apenas de raças diferentes. A distância entre brancos e pretos era
equivalente à que existe entre diferentes espécies. Eles eram pretos, animais. Nós éramos brancos, éramos pessoas,
seres racionais. Eles trabalhavam para o presente, para a aguardente-de-cana do “dia-de-hoje”; nós, para poder
pagar a melhor urna, a melhor cerimónia no dia do nosso funeral.”

“Eu tinha de usar um anel de ouro com um rubi. Era feio e apertava-me o dedo. Os negros não usavam nada
que os apertasse, a não ser o trabalho do branco. Servir o branco apertava já o suficiente.”

“De forma geral, no cinema ou fora dele, o olhar dos negros nunca foi, para os colonos, isento de culpa:
olhar um branco, de frente, era provocação directa; baixar os olhos, admissão de culpa. Se um negro corria, tinha
acabado de roubar; se caminhava devagar, procurava o que roubar.”

“Era absolutamente necessário ensinar os pretos a trabalhar, para seu próprio bem. Para evoluírem através
do reconhecimento do valor do trabalho. Trabalhando, poderiam ganhar dinheiro, e com o dinheiro poderiam
prosperar, desde que prosperassem como negros.”

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“Maputo era nome de preto. Um preto, uma zona selvagem, um rio podiam chamar-se Maputo, Incomati,
Limpopo, Zambeze. Uma vila de pretos podia chamar-se Marracuene, Inhaca, Infulene, Xipamanine. Uma cidade de
brancos, não. Tinha de ser Lourenço Marques, Beira, Mocímboa da Praia.”

AS MEMÓRIAS DA NARRADORA X AS MEMÓRIAS “OFICIAIS”:


“Mas parece que isto era só na minha família, esses cabrões, porque segundo vim a constatar, muitos anos
mais tarde, os outros brancos que lá estiveram nunca praticaram o colun..., o colonis..., o coloniamismo, ou lá o que
era. Eram todos bonzinhos com os pretos, pagavam-lhes bem, tratavam-nos melhor; e deixaram muitas saudades.”

“Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior inimiga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vê,
e escuta e nem pediu autorização. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira. Só muitos anos mais tarde, muitos,
muitos, compreendi que saber ler, o acesso a essa chave para descodificação do segredo, me transformara, contra
todas as vontades, na toupeira que lhes havia de roer todas as raízes, devagar, uma de cada vez, até restar pó.”
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DEUS LHE PAGUE
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí”


Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui

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O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir


Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir


Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir


E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Deus lhe pague

Deus lhe pague, música de abertura do LP, funciona como uma espécie de música-síntese do momento
histórico, denunciando a imposição do regime ditatorial que assolava o país. O título, à primeira vista, remete a uma
manifestação de agradecimento – agradecimento por uma série de aspectos da vida do indivíduo que são
concedidos, permitidos ou tolerados. Esse agradecimento é voltado a um interlocutor não nomeado no texto, mas
marcado pelo pronome pessoal lhe. No entanto, é possível ler esse agradecimento por meio de uma chave irônica,
que mostra como essas permissões e concessões são na verdade imposições de uma força autoritária.
A estrutura da canção é bastante regular: seis estrofes, organizadas em três versos que citam elementos
cotidianos e, concluindo a estrofe, a sentença “Deus lhe pague”.
Na primeira estrofe, o sujeito lírico agradece por “favores” que tornam possível a sua existência: o pão e o chão
metonimicamente representando o alimento e a moradia; a certidão, permitindo que ele nasça e seja reconhecido;
e a permissão para respirar e existir. No meio desses “favores”, há também a concessão pra sorrir, o que já aponta
para um contexto de repressão: o sujeito só pode sorrir quando algum ente superior lhe concede esse direito.
As próximas duas estrofes apresentam situações cotidianas e prosaicas: o bar, o futebol, o samba, um “estamos
aí”, a praia, o domingo. Essas estrofes constituem uma espécie de “pão e circo” dentro da estrutura, em que
pequenos prazeres cotidianos também são permitidos por esse mesmo interlocutor que antes permitira a existência
do sujeito lírico.
Já nas próximas estrofes, começa a ficar mais claro um efeito de estranhamento (já anunciado anteriormente
na “concessão pra sorrir” e no “amor malfeito depressa” que sugeria um esvaziamento do prazer e da satisfação),
pois a cachaça de graça não é mais uma escolha, mas uma imposição: a gente tem que engolir. Da mesma forma, a
fumaça e a queda dos andaimes são impostas. Interessante notar também que há uma mudança de voz – o eu que
construiu as primeiras estrofes é substituído por um a gente, que depois vai virar o pronome nos, sugerindo uma
consciência de coletividade à medida que a “máscara” do agradecimento vai caindo.
A música se encerra com imagens da morte: a carpideira, mulher encarregada de chorar em velórios para
defuntos alheias, para nos louvar e cuspir; as moscas-bicheiras a nos cobrir; e a paz derradeira, que nos traz a
redenção apenas na morte.
No entanto, mesmo essas imagens de supostas redenções são corrompidas, pois a mulher carpideira, em vez
de chorar por nós, nos cuspirá – ou seja, mesmo na morte não há uma gratidão e uma redenção completa.

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COTIDIANO
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar


E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café

Todo dia eu só penso em poder parar


Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
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E me calo com a boca de feijão

Seis da tarde como era de se esperar


Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão

Toda noite ela diz pra eu não me afastar


Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor

Todo dia ela faz tudo sempre igual


Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Na letra de Cotidiano, o eu-lírico aponta para as situações corriqueiras do seu cotidiano amoroso. A exposição
da relação inicia com o acordar e o beijo de bom dia. O hálito de hortelã remete aos dentes já escovados, mostrando
que a companheira já havia acordado anteriormente. Ela também sempre dá o conselho diário para que ele se cuide
ao longo do seu dia.
Na terceira estrofe, ao meio-dia, provavelmente no horário de almoço, o eu-lírico aponta para o desejo de parar
e de dizer não, que podem estar relacionados à relação sem grandes emoções que leva com sua companheira. No
entanto, ele parece perceber que possivelmente precisaria de alguém para viver e se concentra com a sua comida.
No final do dia – como era de se esperar –, ela mantém sua rotina e o aguarda no portão, numa dedicada atitude
amorosa. Ela demonstra sentir-se feliz com o encontro cotidiano e, à noite, reforça suas juras de amor e seus pedidos
para que ele não se afaste.
Contudo, para o eu-lírico, toda as cenas parecem ser um tanto quando monótonas, pois ele não expõe emoção
ao viver tais momentos com a companheira.
A música termina com a repetição da primeira estrofe, dando a entender que tudo aconteceria novamente no
dia seguinte.

DESALENTO
Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou
Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim

52
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar

Sim, vai e diz


Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei

leituras obrigatórias - UFRGS


Que eu só sei

Em Desalento, o eu-lírico estabelece um interlocutor – que não é nomeado – a quem ele demonstra o seu
sofrimento e a quem ele pede para que avise o ser amado de todo desalento que vivia. Além disso, o eu-lírico
também pede ao seu interlocutor que peça para ela voltar. Apesar de não ficar claro os motivos para a separação,
é nítida a dor vivida pelo eu-lírico que assume ter se entregado aos excessos numa atitude desesperadora. Os dois
últimos versos apresentam versos antitéticos – que eu não sei x que eu só sei. Possivelmente o primeiro remete a
como ele sente-se, por não saber o porquê de ter se afastado dela; já o segundo, deve expor o sentimento presente:
ele sabe a falta que ela lhe faz.

CONSTRUÇÃO
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego


Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico

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Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
leituras obrigatórias - UFRGS

E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir


E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Principal canção do LP, Construção é ao mesmo tempo um documento social e uma construção poética
meticulosa. Em termos de temática e narrativa, a canção apresenta o último dia na vida de um operário, dedicando-
se a tratar do mundo do trabalho e das relações entre capital e trabalho. Diferentemente da maioria das canções
de Chico sobre o tema, Construção registra o operário em seu ambiente profissional, in loco.
Quanto à construção formal, a canção toda apresenta todas as rimas em proparoxítonas, e é construída com
versos alexandrinos, ou dodecassílabos:
A / mou / da / que / la / vez / co / mo / se / fos / se a / úl (tima)
Bei / jou / su / a / mu / lher / co / mo / se / fos / se a / úl (tima)
Além disso, faz um jogo com as palavras: a cada repetição da história do operário, as proparoxítonas finais de
cada verso vão mudando de posição, gerando um efeito gradativamente mais surreal na narrativa apresentada.

A narrativa é apresentada três vezes, sempre seguindo a mesma ordem:


i) O operário sai de casa, despedindo-se da mulher e dos filhos;
ii) Ele sobe na construção e começa a trabalhar (“ergueu no patamar quatro paredes”);
iii) Senta para descansar no intervalo do almoço (“comeu feijão com arroz”), quando ele bebe, soluça, dança e
gargalha – talvez sugerindo o movimento de pão e circo já apresentado na música de abertura, Deus lhe pague;
iv) Nesse momento, ele tropeça e cai da construção – novamente evocando Deus lhe pague (“pelos andaimes,
pingentes, que a gente tem que cair”) –, atingindo o chão e morrendo, “na contramão, atrapalhando”.

O que vai alterando as relações iniciais da narrativa é a mudança da palavra final dos versos. Por exemplo, na
primeira estrofe, ele “amou daquela vez como se fosse a última”; na segunda, “como se fosse o último”; e na terceira,
“como se fosse máquina” – essa evolução sugere uma reificação das relações, o amor que deixa de ser sentimental
e torna-se maquinal.
Na primeira estrofe, ele “atravessou a rua com seu passo tímido”; na segunda, “com seu passo bêbado”, o que
subverte completamente o valor inicialmente construído.
Também é importante observarmos que a terceira estrofe (ou seja, a terceira narração do último dia de vida do
operário) é mais curta, com alguns versos sendo omitidos, o que sugere que essa repetição cíclica (já presente, por
exemplo, em Cotidiano) tende a chegar cada vez mais rápido ao seu ápice.
Ainda, ecoando a abertura do disco, a música retoma alguns versos de Deus lhe pague, agora cantados em coro,
a fim de reafirmar a morte e o destino inescapável do operário, e também atuando como um canto funeral para ele,
como num rito de passagem.

Não à toa, essa é a música que encerra o lado A do LP.

CORDÃO
Ninguém
Ninguém vai me segurar
Ninguém há de me fechar
As portas do coração
Ninguém
Ninguém vai me sujeitar
A trancar no peito a minha paixão
Eu não, eu não vou desesperar
Eu não vou renunciar

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Fugir
Ninguém
Ninguém vai me acorrentar
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir
Ninguém
Ninguém vai me ver sofrer
Ninguém vai me surpreender
Na noite da solidão
Pois quem
Tiver nada pra perder
Vai formar comigo o imenso cordão
E então quero ver o vendaval
Quero ver o carnaval sair

leituras obrigatórias - UFRGS


Ninguém
Ninguém vai me acorrentar
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir
Enquanto eu puder cantar
Alguém vai ter que me ouvir
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder seguir
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder

Em Cordão, Chico Buarque mais uma vez aborda o tema amor como elemento central da canção. Nela, o eu-
lírico afirma que seus sentimentos não poderiam ser trancados dentro de seu peito. Ou seja, a paixão era maior do
que qualquer possibilidade de proibição. Vale salientar que o eu-lírico não aponta quem poderia estar tentando
abafar seus sentimentos, assim como não aponta por quem ele sentia-se apaixonado. A capacidade de cantar e de
sorrir parece que dá forças ao eu-lírico para que não se submeta à imposição do silêncio. No final da letra, ele aponta
para uma espécie de união para formar um cordão contra o sofrimento e contra o silêncio.

OLHA MARIA (Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes)


Olha, Maria
Eu bem te queria
Fazer uma presa
Da minha poesia
Mas hoje, Maria
Pra minha surpresa
Pra minha tristeza
Precisas partir

Parte, Maria
Que estás tão bonita
Que estás tão aflita
Pra me abandonar
Sinto, Maria
Que estás de visita
Teu corpo se agita
Querendo dançar

Parte, Maria
Que estás toda nua
Que a lua te chama
Que estás tão mulher
Arde, Maria
Na chama da lua
Maria cigana
Maria maré

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Parte cantando
Maria fugindo
Contra a ventania
Brincando, dormindo
Num colo de serra
Num campo vazio
Num leito de rio
Nos braços do mar

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender
Corre, Maria
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Que a vida não espera


É uma primavera
Não podes perder

Anda, Maria
Pois eu só teria
A minha agonia
Pra te oferecer

Nessa canção, parceria entre Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, o forte lirismo é o destaque. O
sujeito cancional – ainda que desejasse ser capaz de fazer Maria “presa de sua poesia” – percebe que é incapaz de
oferecer algo a sua companheira e afirma que, mesmo desejando a permanência da amada, ela deve partir, a fim de
viver uma existência mais plena. Maria é dotada de uma força vital, é bonita e arde como chama, enquanto o eu
lírico se sente inapto para acompanhar a mulher, e teria apenas sua agonia para oferecer. Perceba ainda a inversão
da expectativa: usualmente, o indivíduo apaixonado implora pela permanência de sua amada; aqui, entretanto, o eu
lírico implora pela partida de Maria.

SAMBA DE ORLY (Chico Buarque, Toquinho, Vinícius de Moraes)


Vai meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão
De correr assim
Desse frio
Mas beija
O meu Rio de Janeiro
Antes que um aventureiro
Lance mão

Pede perdão
Pela duração
Dessa temporada
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada
Diz que eu vou levando
Vê como é que anda
Aquela vida à toa
E se puder me manda
Uma notícia boa

O samba de Orly (ou Samba de Fiumicino) se baseia em uma história de despedida: o sujeito lírico diz a um
amigo que o entende, quando esse deixa o frio europeu e retorna ao RJ; ainda pede ao amigo que, em seu nome,
se desculpe pelo afastamento prolongado, além de solicitar que aquele que retorna ao Brasil não conte que o viu
chorando e, se possível, mande uma notícia boa da terra natal. A canção tem origem quando Toquinho, violinista
amigo de Chico, despede-se de Buarque na Itália (Chico estava em autoexílio, então); o autor de Construção, no
mesmo momento, escreve os versos finais da letra. Já de volta ao Brasil, Chico Buarque termina a composição, que
contaria ainda com versos de Vinícius de Moraes, não fossem censurados pela Ditadura. O nome do Poetinha,
contudo, segue entre os compositores.

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VALSINHA
Um dia ele chegou tão diferente
Do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente
Do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida
Tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto
Pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então, ela se fez bonita


Como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado
Cheirando a guardado de tanto esperar

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Depois o dois deram-se os braços
Como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça
Foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança


Que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade
Que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz

Mais uma canção de amor, Valsinha tem um eu-lírico que narra um encontro que muda a forma de o mundo se
comportar. No início, ele apresenta a chegada de um homem que apresenta um comportamento mais intenso, se
comparado à frieza com que ele parecia tratar a mulher. Até mesmo a mania de maldizer a vida tinha sido
abandonada. Então, ao invés de deixa-la num canto, ele a leva para dançar em plena praça. A alegria emanada pelo
casal com sua dança e com seus beijo loucos contamina a vizinhança a ponto de luminar toda a cidade. Assim, o dia
amanheceu em paz.

MINHA HISTÓRIA (GESÙ BAMBINO)


Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, laiá, laiá, laiá, laiá
Ele assim como veio partiu não se sabe prá onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto, laiá, laiá, laiá, laiá
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá, laiá, laiá

Esta canção é uma adaptação de Chico para a música Gesù Bambino, do italiano Lucio Dalla, canção que continha o
subtítulo “o filho da guerra”. O título inicial dado por Chico à música era a tradução literal: Menino Jesus. No entanto, a
censurou o proibiu, e ele trocou para Minha História.

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O sujeito lírico conta a história do envolvimento de sua mãe com um marinheiro, que a seduz e a abandona, deixando-
a grávida, à espera do nascimento do eu-lírico e de um improvável retorno do amante (“esperando, parada, pregada na
pedra do porto”). Ao nascer, ele recebe um nome que o coloca em um patamar distinto (“ali estava bem mais que uma
simples criança”): o nome do Nosso Senhor, Menino Jesus. Esse batismo, no entanto, é ambíguo para o próprio sujeito:
não sabe se recebeu o nome por ironia ou por amor.
É possível perceber, no entanto, que o nome marca sua trajetória de forma irônica: o nome de Nosso Senhor Jesus
o acompanha, mas sua história é a de um malandro, boêmio, que briga, vira a mesa e berra nos bares, e anda na companhia
dos ladrões e das amantes. Isso pode também remeter a uma desconstrução da imagem tradicional e canônica de Jesus
Cristo, aproximando-o de figuras populares.

ACALANTO
Dorme, minha pequena
Não vale a pena despertar
Eu vou sair
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Por aí afora
Atrás da aurora
Mais serena

Última faixa do álbum ,Acalanto é uma canção de ninar, como o nome já anuncia. Aparentemente despretensiosa, a
canção revela seu engenho já no primeiro verso, quando o cancionista aproveita a semelhança sonora entre a última
sílaba de uma palavra com a primeira sílaba da seguinte para, através da contração das duas, concatenar os dois
vocábulos. O eu lírico diz à criança que dorme que não vale a pena acordar, aludindo aos problemas da vida, e afirma que
sairá em busca de um mundo melhor.

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A AUTORA
Nascida em 1946, em Belo Horizonte, MG, Conceição Evaristo é uma das mais – se não a mais – importantes
figuras da literatura brasileira contemporânea. Oriunda de uma família humilde, cujas mulheres trabalhavam como
lavadeiras e empregadas domésticas, a autora superou as imensas dificuldades impostas a uma mulher negra e
pobre no Brasil e estudou Letras na UFRJ, tornando-se Mestre pela PUC-RJ e posteriormente Doutora pela UFF,
sempre trabalhando questões referentes à afro-brasilidade e a memória.
Sua carreira como escritora iniciou em 1990, com a publicação de contos e poemas na revista Cadernos Negros,
editada pelo grupo Quilombhoje. Apenas em 2003 que sai seu primeiro romance, hoje colocado na lista de leituras
obrigatórias da UFRGS: Ponciá Vicêncio. De lá para cá, seu prestígio e reconhecimento público e crítico vem
crescendo, abordando com poeticidade e visão crítica o passado e o presente da população afro-brasileira,

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especialmente a experiência da mulher negra.

A própria autora afirma que sua obra é marcada pela experiência cotidiana, pelas lembranças individuais e
coletivas do povo. A partir esse proceder literário, a autora estabeleceu o conceito da Escrevivência: a escrita a
partir das experiências vivenciadas. Em uma fala durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, disse Conceição:
“Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens se confundem, um eu agora a puxar um eu menina pelas
ruas de Belo Horizonte. E como a escrita e o viver se con(fundem), sigo eu nessa escrevivência a lembrar de algo
que escrevi recentemente.”

A NOSSA ESCREVIVÊNCIA NÃO PODE SER LIDA COMO HISTÓRIA DE NINAR OS DA CASA-GRANDE, E
SIM PARA INCOMODÁ-LOS EM SEUS SONOS INJUSTOS.”

Autora de romances, contos e poemas, suas principais obras são: Ponciá Vicêncio (romance, 2003), Becos da
Memória (romance, 2006), Poemas da recordação e outros movimentos (poesia, 2008), Insubmissas lágrimas de
mulheres (contos, 2011), Olhos d’água (contos, 2014), Histórias de leves enganos e parecenças (Contos e novela,
2016), Canção para ninar menino grande (romance, 2018).

PERSONAGENS
Ponciá Vicêncio – protagonista, parte da roça de Vila Vicência para a cidade, aos 19 anos. A crise existencial
que enfrenta à leva a repetir a loucura do avô. Acaba retornando, ao reencontrar a mãe e o irmão.

Vô Vicêncio – o avô de Ponciá é ex-escravo, mas tem seus filhos vendidos, mesmo nascidos sob o Ventre Livre.
Isso o leva à loucura. Assassina a esposa e decepa a própria mão, ficando cotoco.
Maria Vicêncio – mãe de Ponciá, trabalha com barro e ensina o ofício à filha. Vai à cidade para reencontrar os
filhos, retornando com eles no final.
Luandi José Vicêncio – irmão de Ponciá, trabalhava com o pai na roça; vai para a cidade e deseja ser soldado,
para ter “voz de mando”, mas percebe seu destino e retorna ao povoado.
Pai de Ponciá – pouco presente, pois passava a maio parte do tempo trabalhando na terra dos brancos. Morre
no trabalho.

Nêngua Kainda – figura que representa a memória africana; prevê o futuro

Soldado Nestor – soldado negro, amigo e mentor de Luandi na cidade.

Marido de Ponciá – não tem nome, conhece Ponciá enquanto trabalha na construção civil. Angustia-se por não
saber o que se passa com a mulher e bate nela.

Biliza – moça prostituída por quem se apaixona Luandi. É assassinada por Climério.

Negro Climério – cafetão de Biliza.

RESUMO DO ENREDO
Narrada em terceira pessoa, a obra principia apresentando a infância de Ponciá, mostrando as pequenas
distrações da menina: as brincadeiras no rio, no milharal... Ponciá se angustia, logo no início da obra, ao passar sob
um arco-íris: contavam que passar sob o angorô tornava meninas em meninos, mas, naquela época, ela ainda
gostava de ser menina.

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“Juntava, então, as saias entre as pernas tampando o sexo e, num pulo, com o coração aos saltos, passava por
debaixo do angorô. Depois se apalpava toda. Lá estavam os seinhos, que começavam a crescer. Lá estava o púbis
bem plano, sem nenhuma saliência, a não ser os pelos. Ponciá sentia um alívio imenso. Continuava menina. Passara
rápido, de um só pulo. Conseguira enganar o arco e não virara menino.”

Na sequência, somos apresentados à família da protagonista: Vô Vicêncio fora um homem encurvado, com o
rosto quase no chão, com um braço cotoco que ele procurava esconder, que ria e chorava muito. Morrera quando
Ponciá era ainda criança de colo, mas a moça jamais o esqueceu:

“Vô Vicêncio faltava uma das mãos e vivia escondendo o braço mutilado para trás. Ele chorava e ria muito.
Chorava feito criança. Falava sozinho também. O pouco tempo que conviveu com o avô, bastou para que ela
guardasse as marcas dele. Ela reteve na memória os choros misturados aos risos, o bracinho cotoco e as palavras
não inteligíveis de Vô Vicêncio.”
Ponciá jamais esquecera a morte do avô, nem o que seu pai dissera à mãe naquela noite, que Vô Vicêncio
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deixara uma herança para a menina. Ponciá, quando começa a caminhar, imita o andar do avô, causando pasmo na
mãe.
Sobre o pai, Ponciá sabia pouco, pois ele passava a maior parte do tempo trabalhando na terra dos brancos. O
pai conhecia as letras, mas não sabia ler. Aprendera o alfabeto graças a um “experimento” do sinhozinho branco,
que o ensinara para ver se o menino negro era capaz de aprender; quando percebera que o rapaz era capaz, o
sinhozinho abandonara o teste: afinal, o que o negro ia fazer com o saber de branco? Ponciá sabe também que seu
pai era obrigado a carregar o menino branco nas costas, como se fosse um cavalo, e que um dia a brincadeira que
o pequeno senhor foi exigir que seu pajem negro abrisse a boca para que ele urinasse dentro. Nesse dia, o pai de
Ponciá perguntou a Vô Vicêncio por que eles seguiam naquelas terras, já que eram livres, mas obteve como resposta
uma gargalhada. O filho, que temia as pancadas do braço cotoco do pai, o odiou ainda mais:

“Naquela noite teve mais ódio ainda do pai. Se eram livres por que continuavam ali? Por que, então, tantos e
tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos? Um dia
perguntou isso ao pai, com jeito, muito jeito. (...) Perguntou e a resposta do pai foi uma gargalhada rouca de meio
riso e de meio pranto. O homem não encarou o menino. Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente
e no futuro uma resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre.”

O romance alterna do passado da protagonista para o seu presente: é uma dona de casa que não se reconhece
no seu nome e inventa outros, sem que qualquer um pareça lhe servir. Observava-se no espelho e chamava pelo
próprio nome, até o dia em que pediu para o marido que deixasse de a chamar de Ponciá, que não a chamasse de
nada. Além disso, passa os dias a pensar não no futuro, mas no passado, na falta que sente de seus familiares.

“Ponciá Vicêncio gostava de ficar sentada perto da janela olhando o nada. Às vezes se distraía tanto, que até
esquecia da janta e quando via o seu homem estava chegando do trabalho. Ela gastava o tempo com o pensar, com
o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro.
O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento.”

O afastamento dos seus, o conflito identitário que sente e o sentimento de vazio que sente face a existência
levam Ponciá a se calar, inclusive diante do marido. Irritado pelo estado de ausência da mulher, que esquece de
arrumar a casa e preparar as refeições, e não responde às perguntas que ele faz, levam o homem a agredi-la com
um soco nas costas; Ponciá não reagiu: apenas devolveu um olhar de ódio e pensou que se pudesse passar por
baixo do arco-íris, se tornaria homem e aquilo estaria resolvido; levantou e foi preparar o jantar.
No plano das memórias, somos levados a conhecer mais sobre a mãe de Ponciá. A mulher criara a filha
praticamente sozinha, pelo fato do marido e do filho homem passarem a maior parte do tempo trabalhando nas
terras dos brancos. A mãe, além do cuidado com a casa, trabalhava também produzindo objetos de barro, desde
panelas até pequenas miniaturas de animais, para vender ou doar, e ensina a arte para a Ponciá. A menina faz um
homenzinho de barro, com um braço cotó para trás, como era seu avô, o que assusta a mãe, fazendo com que ela
guarde o boneco no fundo de um baú. O pai, por sua vez, não se assusta: o avô deixara uma herança para a menina.
As memórias de sua infância contrastam com o seu presente insosso. Com o marido, não havia mais
proximidade, e Ponciá questiona o porquê de ainda viver com ele. Depois de muitas dificuldades, conseguira
comprar uma casa-barraco, mas o vazio que sente a paralisa. Dá a janta ao marido e lembra da primeira vez que
tivera prazer: ao passar sob o angorô, levara as mãos ao sexo para confirmar se ainda era menina. A descoberta da
sexualidade na memória se choca com a tristeza do presente. A distância do irmão e da mãe, não saber onde eles
estão, o afastamento de suas origens são a causa do seu alienamento, de si e do mundo que a cerca.

“Lembrou-se, então, de quando viveu o prazer pela primeira vez. Tinha acabado de passar por debaixo do arco-
íris. Apavorada, deitou do outro lado no chão, e começou a apalpar o corpo para ver se tinha sofrido alguma
modificação. Quando tocou lá entre as pernas, sentiu um ligeiro arrepio. Tocou de novo; embora sentisse medo,

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estava bom. Tocou mais e mais lá dentro e o prazer chegou apesar do espanto e do receio. Lá em cima, a cobra
celeste, com o seu corpo, curva ameaçadora, pairava sobre ela.”

Ponciá aprendera a ler com padres missionários que montaram uma escola nas terras dos negros. O “saber de
branco” não era importante na roça, onde o conhecimento arcaico era mais relevante: saber reconhecer a lua, a
época adequada para o plantio, curar doenças com chás. Ainda assim, Ponciá se dedica e logo aprende a escrita e a
leitura. Quando os religiosos partem, ela segue seus estudos sozinha. Ao escrever o próprio nome, Ponciá o
estranha. Não gosta do acento agudo no A, e desgosta do sobrenome, marca do tempo da escravidão: Vicêncio era
o antigo senhor, dono daquelas terras – a Vila Vicêncio – e dos homens negros que a habitavam; o sobrenome da
protagonista é originado por hábito do escravismo.

“Ponciá sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado
de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na
assinatura dela a reminiscência do poderio do senhor, um tal Coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca

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daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens.”

Depois da morte do pai – uma morte que só se torna de conhecimento da família quando, quase um mês depois,
o irmão de Ponciá volta da terra dos brancos – a protagonista resolve deixar a roça e partir para a cidade, na
esperança de construir uma vida nova, e parte sem se despedir do irmão, que voltara para o trabalho na roça. Uma
promessa em forma de consolo é feita à mãe: voltaria para buscar a família.
Na chegada à cidade, após viagem de três dias e três noites, acaba dormindo na porta da igreja. Durante a noite,
lembra da vida na roça, de suas experiências até ali e sente vontade de voltar. No dia seguinte, oferece seus serviços
como empregada doméstica e consegue uma indicação de vaga, começando a trabalhar. Após anos na cidade, já
dona de seu barraco na periferia, Ponciá fica sabendo que a mãe e o irmão também haviam migrado para a cidade:
ele, para encontrar a irmã; ela, para resgatar os filhos. Ponciá retorna ao povoado, onde encontra sua casa vazia,
mas igual ao estado em que se lembrava do lar: os parcos pertences, a caneca de barro de cada integrante da família,
o baú onde ela deixara o boneco do avô. Ali, resgata a imagem e a leva consigo no retorno à cidade. Durante sua
estada no povoado de Vila Vicêncio, Ponciá rememora a história do avô. Mesmo nascidos livres após a Lei do Ventre
Livre, os filhos de Vô Vicêncio acabam vendidos como escravos, o que, somado aos desrespeitos e desumanidades
sofridos como escravo, faz com que o avô enlouqueça. Em um rompante, Vô Vicêncio assassina a esposa e depois
decepa a própria mão com uma foice, não atingindo o suicídio por ser impedido por pessoas do povoado, alertadas
pelo pai de Ponciá, que, ainda menino, conseguira escapar e pedir ajuda. Depois, o avô não pode ser vendido, pois
ninguém compraria um escravo aleijado e louco. A partir da história do avô, é feita uma avaliação da condição da
maior parte do povo negro no país, ainda fruto do sistema escravista que perdurou, oficialmente, até 1888:

“Tempos e tempos atrás, quando os negros ganharam aquelas terras, pensara que estivessem ganhando a
verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido
ofertas dos antigos donos que alegavam ser presente de libertação. E, como tal, podiam ficar por ali, levantar
moradias e plantar seus sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas
terras do Coronal Vicêncio. O coração de muitos regozijava, iam ser livres, ter moradia fora da fazenda, ter as suas
terras e seus plantios. Para alguns, Coronel Vicêncio parecia um pai, um senhor Deus. O tempo passava e ali estavam
os antigos escravos, agora libertos pela “Lei Áurea”, os seus filhos, nascidos do “Ventre Livre” e seus netos, que
nunca seriam escravos. Sonhando todos sob os efeitos de uma liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha,
que do antigo chicote fez uma varinha de condão. Todos, ainda, sob o jugo de um poder que, como Deus, se fazia
eterno.”
A tragédia dos filhos do avô, aliada a um choro de criança na manhã quase desperta, faz com que Ponciá
relembre da sua própria tragédia: tivera sete filhos, mas todos foram natimortos ou pouco resistiram após o parto.
Ela não sabe o motivo para tantas perdas: chegara a ouvir dos médicos que era uma “complicação no sangue”, mas
sem maiores detalhes. Após a sétima gravidez, não engravidara mais e se abandonara à desesperança de ter um
filho, assim como o marido, que após cada perda se entregava à bebida. Enquanto aguarda o trem para retornar à
cidade, Ponciá passa a cair “na ausência de si própria”, caindo como desfalecida, vivendo o mundo ao redor, mas
não o situando, não o sentindo. Sem querer ficar no vilarejo, sem querer voltar para sua atual casa, Ponciá sentia
que precisava encontrar os vivos e os mortos; sentia-se só, vazia. Ponciá e seu marido tinham se conhecido quando
ele trabalhava numa construção ao lado do emprego de Ponciá, mas os filhos perdidos, as frustrações diárias com
a vida, a distância que crescia entre ambos fez com que a relação esfriasse a ponto de ser incompreensível para
ambos, que se ressentiam do que cada um fora para o outro no passado. O homem era, como os homens que ela
conhecera, “mudo de suas sensibilidades”:

“Ponciá Vicêncio achava que os homens falavam pouco. O pai e o irmão tinham sido exemplos do estado da
quase mudez dos homens no espaço doméstico. Agora, aquele, o dela, ali calado, confirmava tudo. Ele também só
falava o necessário. Só que o necessário dele era bem pouco, bem menos do que a precisão dela. Quantas vezes
quis ouvir, por exemplo, se o dia dele tinha sido difícil, se o pequeno machucado que ele trazia na testa tinha sido

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causado por algum tijolo, ou mesmo saber quando começaria a nova obra. Muitas vezes quis dizer das tonturas e
do desejo de comer estrelas de que era acometida todas as vezes que ficava grávida. Quis confidenciar a respeito
de um medo antigo que sentia, às vezes. Quis saber se ele também sofria do mal do medo, se ele vivia também
agonias. Queria que o homem lhe falasse dos sonhos, dos planos, das esperanças que ele depositava na vida. Mas
ele era quase mudo. Não chorava, não ria. Desde os primeiros tempos, nos momentos em que ela se abria para ele,
o homem vinha emudecido, trancado de falas, sem gesto algum dizível de nada. Enquanto que nela havia a ânsia do
prazer, como havia! Porém o que mais havia, era o desesperado desejo de encontro. E então, um misto de raiva e
desaponto tomava conta dela, ao perceber que ela e ele nunca iam além do corpo, que não se tocavam para além
da pele.”

Quando Luandi, o irmão de Ponciá, chega à cidade, é abordado por um soldado negro chamado Nestor. Levado
à delegacia por portar consigo um canivete, Luandi conta sua história e é empregado lá mesmo. O irmão de Ponciá
passa a admirar Nestor como a um ídolo, pois o soldado sabia ler, escrever e tinha poder de prender e soltar pessoas,
e sonha com o dia em que ele próprio se tornaria soldado também. Nestor ensina Luandi a assinar o nome, para que
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pudesse concretizar o sonho um dia. Quando Luandi retorna ao vilarejo para rever a mãe – vestindo uma farda
velha de Nestor, para impressionar o povo de Vila Vicêncio – já não a encontra lá. Enquanto está no povoado, o
rapaz visita velhos conhecidos e dorme em locais diversos, já que não suporta ficar na casa da família, com todos
os fantasmas que lá o assombravam – ele sonha com os familiares na primeira noite, mas a ausência de todos o
tortura durante o dia. Ele ainda nota que Ponciá estivera na casa antes, já que o boneco do avô não está mais no
baú. Antes do retorno para a cidade, Luandi visita a velha Nêngua Kainda, espécie de oráculo do vilarejo, pedindo
sua bênção. A mulher diz ao rapaz que a sua mãe estava viva e que em breve se reencontrariam, e que Ponciá estava
de fato na cidade, cabendo a Luandi a encontrar antes que a herança do Vô Vicêncio se realizasse. Sobre as roupas
de Luandi, a velha diz que o rapaz se enganava, pois aquele não era o seu caminho: de que valeria ter poder e
mandar como soldado, se sua voz fosse solitária? O rapaz não entende as palavras da mulher e se despede, deixando
com a velha um dos papeizinhos com seu endereço que o soldado Nestor, por medo que o moço se perdesse,
deixava em seus bolsos cada vez que Luandi precisava andar pela cidade, e que ele guardava como relíquias.

“Depois Nêngua Kainda olhou os trajes de Luandi e deu de rir, mais com os olhos. Ria dizendo que o moço
estava num caminho que não era o dele. Que estava querendo ter voz de mando, mas de que valeria mandar tanto,
se sozinho? Se a voz de Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala dele nem no
deserto cairia. Poderia, sim, ser peia, areia nos olhos dele, chicote que ele levantaria contra os corpos dos seus.”

De volta à cidade, Luandi mais se empenha no sonho de ser soldado. Ele e Nestor se aproximam, e começam a
frequentar a zona de prostituição da cidade, onde o rapaz se apaixona por uma mulher-dama chamada Biliza. A
moça não cobra de Luandi, pois também gostava da companhia dele, e o rapaz faz planos para que eles vivam juntos,
quando for soldado. Nestor tenta dissuadir Luandi da relação, pois crê que o rapaz sairá magoado dela e que mulher-
dama não serve para esposa, mas o moço ignora os conselhos do amigo: Nestor sabia muito sobre a vida, mas nesse
assunto ele estava errado. Em meio à tristeza e às saudades que Luandi sente, a amante era sua salvação:
“(...) dentro da noite escura de seu peito brilhou a imagem de Biliza, trazendo, lembranças de paz e desejos de
vida. Levantou, um pouco mais apaziguado, e se encaminhou em direção à zona. Se uma noite escura havia dentro
de seu peito, nada melhor do que buscar a estrela que enfeitava a sua vida. Biliza era a estrela maior.”

Ponciá, por sua vez, afunda-se nas suas recordações. Rememorando o tempo em que lia jornais e revistas
insistentemente, chegando a decorar notícias, ela percebe que aquilo pouco valia, na vida que levava. O “saber de
branco” se revelava inútil, e a protagonista resolve queimar os papéis que guardava. Devido ao estado passivo em
que se encontra, acaba apanhando mais uma vez do marido, que a violenta fisicamente na expectativa de fazer a
mulher reagir.
Luandi é levado pelo soldado Nestor a uma mostra de obras de arte de barro, todas de origem popular. Lá, o
rapaz encontra peças feitas pela mãe e pela irmã, que ele reconhece pela lembrança; começa a tocar nas peças, a
gritar que eram de sua família. O soldado Nestor lê a placa e confirma que a autoria é de Maria Vicêncio e Ponciá
Vicêncio. As saudades que Luandi sente de casa o emocionam. O único momento em que o jovem consegue
esquecer esse sentimento é quando está com Biliza, que já está preparando o enxoval para o dia em que viverão
juntos. Contudo, a moça acaba assassinada a facadas pelo seu cafetão, o Negro Climério, que não aceita a relação
dela com Luandi. Climério é preso pelo soldado Nestor, mas isso não aplaca o sofrimento de Luandi, que perde o
gosto pela vida; nem mesmo a ideia de ser soldado o empolga.
A mãe de Ponciá e Luandi, Maria Vicêncio, vaga pelas terras do vilarejo. Após encontro com Nêngua Kainda,
recebe o papel com o endereço de seu filho, que o próprio deixara com a velha na sua estada em Vila Vicêncio. A
velha morre na presença de Maria, seu último ato é a bênção para a busca da mãe de Ponciá e Luandi. Maria ruma
à cidade, e, ao chegar à estação de trem, pede ajuda a um soldado negro: Nestor reconhece a própria letra e
compreende se tratar da mãe de seu pupilo. Leva, então, a mulher até a delegacia, imaginando a alegria que dará a
Luandi. De fato, o rapaz recupera a força vital, após um momento em que não consegue definir se está sonhando
ou realmente vivenciando aquele reencontro.

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“Luandi não conseguia distinguir se estava vivendo um sonho ou uma profunda realidade, em que tudo se
misturava. A mãe, Ponciá, Biliza-estrela, a mulher que até pouco tempo enfeitava a noite escura que ele trazia no
peito, Vô Vicência, pessoa que ele nem tinha conhecido, e que tinha encontrado a morte pelas mãos do Vô Vicêncio.
E ainda outras mulheres da família e do povoado, muitas que ele nunca vira e das quais apenas ouvira falar. Eram
sói mulheres que naquele momento se acercavam de Luandi. E dentre elas uma orientando os passos das demais.
Uma era a guia de todas, a velha Nêngua Kainda. E era ela que entregava Maria Vicêncio para ele. E acordando do
torpor causado pela força da realidade-sonho, Luandi percebeu então que a mãe tinha chegado.”

A presença de sua mãe dá ânimo a Luandi após a o assassinato de Biliza, até o dia em que a papelada necessária
para que ele se torne soldado fique pronta. O rapaz, então, poderá buscar uma casa para viver com a mãe e
finalmente encontrar a irmã.
Ponciá, por sua vez, estava inquieta. Sentia a necessidade de retornar às origens, voltar a trabalhar com o barro,
regressar ao vilarejo. O marido ia para o trabalho preocupado, temeroso do que Ponciá pudesse fazer. Chega o dia
em que a protagonista se decide: retornará à Vila Vicêncio, não importando o que o companheiro diga; ele apenas

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poderá a acompanhar até a estação. Lá, está o soldado Luandi Vicêncio, em seu primeiro dia de trabalho. Quando
vê a irmã, que chora e ri, como o avô, grita por ela, mas não tem certeza que ela o reconhece. Apenas quando Ponciá
mostra o boneco do Vô Vicêncio ele tem certeza que sim, a irmã o reconhece. Leva-a até a mãe, que estava
angustiada, naquele dia. No primeiro dia de trabalho, Luandi José entende Nêngua:

“E no seu primeiro dia de serviço, sem experimentar o gosto do mando, Soldado Luandi José Vicêncio antes da
hora terminada deixou o posto de trabalho. Pegou a mão da irmã e foi com ela ao encontro da mãe. Boa hora, Maria
Vicêncio andava muito aflita. O tempo pedia, era hora de encontrar a filha e leva-la novamente ao rio.(...) E ele que
queria tanto ser soldado, mandar, bater, prender, de repente descobria de que nada valia a realização de seus
desejos, se fossem aqueles os sentidos de sua ação, de sua vida. Soldado Nestor era tão fraco e tão sem mando
quanto ele. Apenas cumpria ordens, mesmo quando mandava, mesmo quando prendia. Foi preciso que a herança
de Vô Vicêncio se realizasse, se cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo”

Os três se reúnem, por fim. Maria percebe na filha a beleza de mulher, marcada pelas dores da vida, uma menina
que, no final se revela, nunca fora sua, fora do rio; Ponciá, por sua vez, de volta ao rio e ao barro, aprende a conviver
com a herança da memória:

“Ponciá Vicêncio, aquela que havia pranteado no ventre materno, e que gargalhara nenéns sorrisos ao nascer,
tinha riso nos lábios, enquanto todo o seu corpo estremecia num choro doloroso e convulso. (...) Ponciá Vicêncio,
elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não haveria de se perder jamais, se guardaria nas águas do
rio.”

ANÁLISE DA OBRA
a) Narração e linguagem: narrador em terceira pessoa, com acesso aos pensamentos e à subjetividade das
personagens, adotando em vários momentos o discurso indireto livre. É interessante ainda apontar que não há
divisão em capítulos, mas em pequenos blocos temáticos. Por fim, a linguagem é poética, carregando o texto de
sensibilidade, sem se descolar, contudo, de questões sociais.

b) O espaço e o tempo da narrativa: Ponciá Vicêncio não apresenta marcas precisas de tempo, que possam
balizar o tempo da obra. Não temos certeza sobre quantos anos se passam entre a partida da protagonista para a
cidade (aos 19 anos de idade) e o reencontro da família. Contudo, é fácil – e relevante – perceber que o texto faz
um balanço temporal, apresentando momentos que são o presente da narrativa e outros em que retornamos ao
passado das personagens, através de suas memórias, em movimentos de flashback. Temos como único fato datado
com precisão é a menção à Lei do Ventre Livre, de 1871, o que nos leva a colocar o tempo narrativo nos primeiros
anos do século XX. Quanto ao espaço, há uma vila fictícia, ambientada no mundo rural brasileiro – a Vila Vicêncio
–, onde vivem Ponciá e sua família, e migram para um centro urbano não nomeado.

c) A questão identitária: a personagem Ponciá passa por um processo de formação e construção de sua
identidade. O amadurecimento da personagem (portanto, sua identidade individual) dá-se em conjunto com a
melhor compreensão de Ponciá a respeito da necessidade da coletividade – essencialmente negra e exposta à
marginalização na cidade –, expressa no seu retorno ao vilarejo e ao barro, no final da obra. Também seu irmão
passa por esse processo, em seu desejo inicial de ser soldado e o final em que percebe que a “voz de mando” que
desejava de nada valeria se não servisse para defender os seus.

d) Questão de gênero, questão de raça: a condição imposta à mulher negra é amplamente debatida na obra
de Conceição Evaristo. No romance em questão, Ponciá parece desgostar de ser mulher, dada a situação de
fragilidade social: agredida pelo marido, pensa que se pudesse se transformar em homem, tudo estaria resolvido.
Além disso, as perdas de filhos que sofre fazem com que sinta incompleta, incapaz. A violência sofrida é psicológica

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e física, então. Além da figura da protagonista, também Biliza, outra mulher negra migrada do campo para a cidade,
sofre por sua condição e acaba assassinada por seu cafetão, apontando para a falta de poder – sobre o próprio
corpo e destino – a que está submetida.
e) A memória: ao longo da obra, insiste-se muito na herança que o avô deixara para Ponciá. Em uma primeira
observação, isso se refere à aspectos físicos, como o andar com o braço escondido às costas. Contudo, refere-se
também à uma herança cultural, as raízes africanas. Herda, também, a loucura. Ponciá, ao final, percebe que era
necessário retornar ao povoado, retornar ao barro, remetendo à tradição iorubá e seu mito da criação.
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AUTORRETRATO
O conto, narrado em terceira pessoa, inicia com uma descrição de uma casa, a partir de uma perspectiva
“vista sempre de cima”: “O centro (...) é esta casa grande e um tanto sinistra. (...) “Não dá pra dizer que é, ou foi, uma
casa rica. Uma casa grande, apenas.” O abandono da propriedade também é ressaltado pelo narrador, que, em
seguida, começa caracterizar uma mulher na mesma cena: “A gorda vem só depois, vem da casa, como uma parte
que se desgrudasse do resto. (...) A casa é o início, a gorda a sequência.” O narrador assume uma postura um tanto
quanto agressiva na sua fala: “É uma gorda imensa, de braços muito brancos e que parecem ter, na altura da axila,
o diâmetro de uma melancia. As coxas devem ser horrivelmente maiores e mais feias (repletas de varizes, daria até
para apostar), mas estão cobertas por um vestido que vai até o meio das canelas. Um vestido indecente. Ainda que

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desça quase até os pés, o vestido é indecente, talvez porque deixe à mostra aqueles braços asquerosos. Está
deitada.” Também compõe a cena a presença de um homem que “como quem vigia alguma coisa a distância.” O
narrador afirma categoricamente que ele “está a serviço da gorda.” A perspectiva ainda é a mesma: o olhar do
narrador é projetado a partir de quem tem uma “vista de cima”. Para completar o cenário, o muro “grosso e cinza,
fechando um terreno bastante extenso que se perde na zona escura do fundo.”
No lado de fora da propriedade, o narrador – sempre com a visão a partir de cima – descreve a presença
de dois meninos de “talvez dez anos, ou menos. Mulatinhos e
esmirrados, uns pivetinhos. É isso.” Agilmente, eles sobem o muro e descobrem um lugar adequado para
descerem para dentro da propriedade. Em seguida, eles procuram um ligar adequado para entrarem na casa.
Enquanto tudo isso acontece, a mulher e seu suposto empregado continuam paralisados: “E a gorda escarrapachada!
E seu dobermann de duas patas misturado à sombra da árvore! Os fedelhos já conseguiram abrir a janela!” Contudo,
a um simples olhar da mulher, o seu empregado reage e parte em busca dos meninos: “antes de o primeiro garoto
conseguir pular para o lado de dentro da casa, ele, o homem-dobermann, já está (que movimento impressionante)
com os dois delinquentezinhos presos pelo cogote, um em cada mão.” As crianças se debatem no ar e são levadas
à presença da mulher, ainda deitada. O homem, então, bate as cabeças das crianças uma contra a outra. Quando
elas voltam a si, o homem as leva mais uma vez para a mulher que mexe um braço e faz um pequeno contato no
queixo dos meninos. Em seguida, ela volta a sua letargia, e o homem leva os meninos para fora da casa e dá a eles
alguma coisa que o narrador não sabe precisar: “Tira alguma coisa do bolso, balas, chocolates, talvez umas moedas.
Os meninos sorriem e vão-se embora.” O homem volta para a casa e, sob a sombra de uma árvore, passa a socar
um saco de areia. A mulher não parece prestar atenção ao fato: “Às vezes ainda lança o olhar para a gorda. Mas ela
não toma conhecimento. Ela é outra coisa. Ela, já está há muito na sua velha posição de estátua.” Tudo parece
reassumir o ar de imobilidade, a não ser pelo homem: “Tudo estático, tudo impressionantemente impassível. A não
ser o homem, o homem-cão, ao pé da árvore. E aquele seu movimento de erguer e baixar o braço. Nenhum outro
movimento a não ser o do braço do homem que se ergue e baixa com feroz regularidade, o braço que sobe e desce
e torna a subir e descer num ritmo constante e que, mesmo não havendo som, nos obriga a ouvir essa coisa que
bate, e bate, e bate, bate, bate, bate.”

EXÍLIO
Narrado em primeira pessoa, o conto inicia com o protagonista expondo um pensamento que já lhe passara
diversas vezes pela cabeça: fechar a loja que mantinha e que não se sustentava e deixar a cidade. Em seguida, ele
passa a analisar a loja, concluindo que, embora compreendesse a possibilidade de as pessoas não virem ao seu
estabelecimento, uma loja precisa de fregueses: “Não só para adquirir seus produtos, mas também, e
principalmente, para arejá-la.” O calor da cidade também contribui para o mal-estar que ele sente, e a sensação de
isolamento só era rompida pelo barulho das pás do ventilador que não chega a mudar a temperatura da loja. Era,
pois o custo da energia faz com que ele tenha que deixa-lo desligado a maior parte do tempo; o mesmo acontece
com a luz. Ainda assim, com a precariedade e com a ausência de clientes, o narrador afirma que cumpre o expediente
até às 18 horas pontualmente, sem fechá-la ao meio-dia. Antes, ele fechava as portas durante o almoço para poder
comer em um hotel que ficava em frente da loja, mas este fecha e ele decide ficar com a loja aberta o tempo inteiro,
“portanto, mais adaptada ao estilo da vida moderna.” Só que nunca alguém entrou na loja durante o período do
meio-dia. Contudo, o pior momento era depois do almoço (frugal) que ele passara a fazer no local: “sentia-me
demasiado sonolento e era obrigado a descansar atrás do balcão. Dormia, ou semidormia, num estado de alerta
permanente.” Esse estado, às vezes, era quebrado pela chegada de crianças brincando de uma espécie de pega-
pega. Elas eram corridas da loja pelo narrador quando ele ouvia os seus gritos se aproximando. Ele argumenta que
precisa de cliente que comprem seus produtos e não de crianças gritando entre as prateleiras.
A sensação de isolamento e de solidão parece tomar a própria cidade: “Às vezes até chego a desconfiar de
que ela, a cidade, está desaparecendo. É como se uma grande borracha estivesse fazendo esse trabalho de apagar
a cidade, principalmente as pessoas, os clientes, deixando-a cada vez mais parecida com uma cidade-fantasma. Nos
momentos em que me canso de esperar os fregueses atrás do balcão, vou até a janela e fico horas ali, olhando o
vazio. Horas e horas sem que passe ninguém na rua ou mesmo na praça em frente. E o silêncio, de um peso que se

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reforça com o calor, aplasta-se sobre a cidade como uma grande massa sólida de nada — um silêncio sólido e branco,
da cor do nada. Somente algumas fachadas sombrias e caladas, que parecem me observar.”
Em dado momento, a loja começa a receber pessoas em seu interior – provavelmente, afirma o narrador,
influenciadas pela menina que lhe vendia as refeições e que deveria ter espalhado a notícia de que a loja fecharia.
As pessoas são assim descritas: “Algumas chegam silenciosas, com ar extremamente respeitoso, e olham muito para
as prateleiras. Disfarçadamente, também olham para mim, atrás do balcão. Parecem muito admiradas, mas quando
tento me aproximar elas vão embora, sabe-se lá pensando o quê. Outras têm certo ar de fastio, um ar até um pouco
blasé, e são rápidas na visita, deixando-me a impressão de que são clientes incapazes de surpreenderem-se.”
Certo dia, o narrador diz que observou a chegada de um casal na loja – “ele muito gordo e de aspecto
cansado, ela jovem e falante” – e que ficou observando-os escondido. A moça insiste em mostrar objetos ao homem,
que se mantém um tanto quando desligado e propenso a sair do lugar. Quando eles saem, o narrador vê que ela
coloca algo na bolsa, mas não reage: “Eu ainda poderia alcançá-los e cobrar o
que ela estava levando, mas achei que se fizesse isso ela me devolveria o produto e eu teria de trazê-lo de
volta para dentro da loja.”
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Ele mostra-se decidido a encerrar as atividades: “Nem que de uma hora para outra minha loja se enchesse
de clientes. Nem que a loja se transformasse na que mais vende em todo o mundo. No outro dia a menina já não
me traria o almoço.”
Quando ele abandona a cidade, à noite, diz que sente-se aliviado com isso, pois uma nova vida – e um novo
negócio – seria iniciada na nova cidade. No trem, ele adormece e acorda várias vezes, ainda vendo as luzes da cidade
que deixava. Porém, ao lembrar das crianças e dos próprios cães que passavam pelo seu estabelecimento, ele passa
a sentir uma sensação estranha: “Não foi uma desistência. Tampouco resignação. Apenas compreendi que a melhor
coisa que tinha a fazer era descer na estação seguinte. Foi o que fiz. E atravessei os trilhos para o outro lado,
ignorando a passarela que unia as duas plataformas. Subi no primeiro trem que passou no sentido oposto, de volta
à cidade.” Ele pensa que a viagem seria longa, mas que ainda conseguiria voltar a tempo de abrir a loja no dia
seguinte.

APRENDIZADO
Narrado em primeira pessoa, o conto inicia com o narrador descrevendo a “a mulher mais gostosa que já
peguei nos últimos anos” pentear-se, depois de ter revelado que ele seria demitido no dia seguinte. Ela é secretária
do seu Vanderlei – embora ela se refira a ele apenas pelo seu nome –, dono da imobiliária em que ambos trabalham.
Paralelamente ao momento de prazer vivido, o narrador pensa na doença da mãe e até cogita não ir ao trabalho no
dia seguinte. Os dois abandonam o motel em seguida, partem de ônibus. A mulher compra lanches para ela e para
a filha, enquanto que o narrador vai para sua casa. Lá, ele não encontra nada para comer, e, em seguida, ganha a
companhia de seu pai, que chega com os olhos inchados (provavelmente de chorar) e revela que a esposa não estava
nada bem: “Acho que ela tá sentindo bastante dor, ele diz.” O narrador o descreve: “Meu pai é um homem velho,
sempre foi velho, todo enrugado, a coluna curva, não me lembro dele de outro jeito. (...) As mãos tremem assim por
causa da bebida. Meu pai foi um cara que bebeu muito na vida dele, acho que começou bebendo normal, mas depois
passou a enxugar mesmo, a qualquer hora e em qualquer lugar, bebia até álcool de farmácia quando acabava a grana
— tinha uma sede que não terminava, o meu pai.” O narrador pergunta o pai se ele sabia quanto tempo era
necessário para obter o seguro-desemprego, mas o pai não tem ideia e expõe aquela que parece ser a sua maior
preocupação: “Depois que ela morrer, quem é que vai cortar as minhas unhas?” Neste momento, o narrador decide
sair para caminhar – um hábito – e termina por ir ao Bar do Jones, lugar frequentado por homens que não
“conseguiam ficar em casa”, como o Caçarola: “Para a família, o Caçarola está morto, ele não existe, no entanto o
cara vive aqui, jogando o seu snooker, vive nisso, vive a vida dele.” Lá, ele é abordado por Darci, levado para um
canto, toma uns empurrões e um soco devido à dívida de “cinquenta mangos”: “Dessa vez eu vou te dar só uma, ele
diz, me despacha um murro na boca e vai embora.” Ao voltar para o centro do bar, o narrador encontra Binho e
pede-lhe “50 pratas”, mas o empréstimo é negado. O amigo trabalhava numa veterinária, o que faz com que o
narrador peça algum remédio para tentar aliviar os sintomas da mãe. Juntos, eles vão à veterinária, onde Binho pega
um remédio que já havia utilizado em cavalos: “Este aqui vai resolver, certa vez com apenas uma dose dessas
levantei uma égua quarto de milha que os caras já iam sacrificar, ele diz mostrando as ampolas e me explicando que
é preciso misturar a incolor com a leitosa, mais um pozinho branco que vem num envelope.”
Ao voltar para casa, o narrador faz um caminho diferente e passa por um posto do INAMPS, onde uma
longa fila de pessoas se formava para a retirada de fichas para consulta. Ele entra na fila, comenta com as pessoas
que a sua mãe é que precisava do atendimento, mas ninguém parece se preocupar com seu drama. Ali, o narrador
também descobre que há pessoas que só entram na fila para vender seus lugares a outras pessoas que não podem
(ou não querem) passar a noite ali. Ele também vende seu lugar para um homem que o aborda. Com os 15 reais que
consegue com a venda do lugar, o narrador volta ao bar do Jones, entrega o dinheiro a Darci e lhe pergunta se
poderia pagar o restante no dia seguinte. A resposta é clara: “Eu quero o dinheiro todo, ele fala espaçadamente e
abrindo bem a boca direto na minha cara, o lábio chega a roçar a ponta do meu nariz, tem um bafo danado o Darci.
Tu já devia ter me pagado essa merda, ele prossegue, agora tua dívida aumentou, tu já me deve setenta agora, seu
corno filho-da-puta, tua dívida vai aumentando cada vez mais, acho que tu tá preso comigo pra sempre, seu bosta,
e ele afasta o rosto do meu e me dá um soco curto no estômago.”

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Na volta, o narrador passa por algumas lixeiras e ouve um barulho. Ele imagina que fosse algum animal e se
prepara para chutá-lo – algo que durante um tempo era uma espécie de hobby –, mas ao chegar perto vê que é um
homem barbudo que remexia as sacolas. Ele não muda suas intenções: “Quando estou a um passo dele, aplico um
daqueles meus sem puxar a perna para trás. Acerto bem na ponta do queixo, sinto que é um dos melhores bicos
dentro dessa nova técnica. O cara salta e cai de costas no meio-fio. O saco com a porcaria voa longe e me respinga
um pouco na cara.”
Ao chegar em casa, ele percebe uma movimentação inesperada de pessoas que não via há muito tempo. O
tio Olavo explica: “sua mãe acabou de falecer e seu pai foi ver se consegue o caixão, você sabe onde tem um orelhão
pra eu avisar que vou chegar mais tarde no serviço?” O narrador torce para que o pessoal da imobiliária acredite na
perda, pois ele decide realmente não ir ao trabalho no dia seguinte. No final do conto, ele passa um café – inseguro,
pois não sabia direito como fazê-lo – e pensa que o tio Olavo poderia responder uma dúvida que ele já havia
expressado em outras oportunidades sobre a possibilidade de obter seguro-desemprego tendo tido tão pouco
tempo de trabalho na imobiliária: “O tio Olavo deve saber, eu falo, baixinho. E repito: o tio Olavo deve saber. É isso,
o tio Olavo tem todo o jeito de quem sabe dessas coisas. Certa vez ouvi ele conversando com meu pai sobre isso,

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até fiz umas perguntas, mas acabei esquecendo. Da vez que saí daquela transportadora um advogado me explicou
tudo, quando saí do açougue, também. Mas sempre acabo esquecendo. Eu devia ter anotado num papel quando o
advogado me explicou. Tem coisas que a gente não aprende nunca.”

INSISTÊNCIA
O conto inicia com o narrador em primeira pessoa descrevendo uma cena na qual ele e outros homens são
abordados de forma violenta por eles, que os expulsam de um lugar: “todo mundo sabia que eles iam chegar azulando
pra cima de nós e não deu outra, eles nem perguntaram o que a gente estava fazendo ali e já foram descendo o
cacete e nos empurrando pra fora”. O narrador não especifica quem chega, nem o lugar onde eles estavam.
Inclusive, parecia não ter diferença ficar dentro ou não: “eles iam nos pôr pra fora na porrada, disso eu não tinha a
menor dúvida, no fundo o que eu questionava mesmo era o porquê daquela insistência se não mudava nada a gente
estar dentro ou fora”. O grupo do narrador mais uma vez entra no lugar e, mais uma vez, é expulso com brutalidade:
“Claro que nos tiraram na porrada de novo e parecia até que eles estavam batendo cada vez mais forte.” Mesmo
com a violência sofrida, o narrador afirma que eles se tornavam cada vez mais numerosos: “o mais interessante era
que apesar de muitos caras não voltarem nós éramos cada vez mais numerosos, dava pra sentir pela zorra e a gritaria
infernal na hora que eles chegavam pra nos tirar (...) eu percebia que os caras estavam mais numerosos e não
entendia de onde surgia tanta gente com tanta vontade de permanecer lá dentro”. O narrado, então, decide propor
ao grupo uma nova forma de ação: “disse que sozinho era muito mais fácil, que não adiantava ficar todo mundo
junto e que o negócio era dispersar porque eles iriam se sentir menos incomodados se vissem um ou dois do que
vendo aquele bando todo parado ali dentro”. Ele mente, dizendo que já havia feito isso, que teria ficado lá “uns bons
dias” e que só saíra por sua vontade, quando, na verdade, ele fora convidado a sair de lá. Sem violência, pelo menos.
Um dos membros do grupo, contudo, não aceita a indicação, afirmando que aquela luta não era individual, e, sim,
coletiva. Esse homem inflama os ânimos do seu grupo, e, novamente, eles entram no local. O narrador afirma que,
com a repetição do ataque, ele se tornara ágil na fuga das porradas que levavam. Numa das invasões, ele acerta
uma paulada tão forte num oponente, que passa a ser admirado pelos adversários. Porém, ele toma uma cotovelada
de um membro do seu grupo. Nesse momento, os inimigos passam a protege-lo intensamente. Ele muda de lado:
“quando vi estava sentando o cacete nos caras, e os outros riam entre si e até diziam pra mim “senta o pau, senta o
pau” e assim fomos tocando os caras pra fora, batendo e tocando os caras, e depois de tirar os caras pra fora eu ia
com eles, os outros, tomar uns tragos pra relaxar e conversar à toa e essa era a melhor parte da coisa, quando então
eu via que aquilo sim é que era vida, e comentava com eles que aquilo era mesmo uma beleza”. No novo grupo, a
dinâmica se repete, agora, contudo, expulsando os invasores. O narrador afirma que não entendia o porquê daquilo,
pois “aquilo tudo era muito grande, sobrava lugar pra todos e ninguém ia se dar conta se os caras estavam por ali,
e eu falava isso pra eles, mas todo mundo ia levantando e se agitando e se empurrando numa balbúrdia filha-da-
puta, e quando eu via eu já estava batendo nos caras e tocando os caras pra fora de novo, e quanto mais rápido a
gente terminava melhor era, porque aí a gente podia voltar e ficar descansando de novo sem fazer nada”. Certo dia,
cansado de abandonar a folga e as bebidas para expulsar os caras, o narrador se nega a acompanhar o grupo. Ele,
então, é interpelado por um do seu novo grupo, que diz que ele deveria sair dali, mas o narrador se nega. O outro,
depois de tentar, em vão, acertá-lo, diz que ele nunca mais teria sossego na vida. O narrador abandona o lugar
pensando: “Pensei nos caras, que àquela altura deveriam estar por ali recebendo e dando pancada. Eu continuava
achando tudo aquilo uma grande bobagem que não ia dar certo nunca, mas eu já tinha decidido que não ia ter mais
sossego na vida, e já ouvia a gritaria dos caras por ali.”

HEREDITÁRIO
Narrado em primeira pessoa, o conto inicia com o narrador relatando a morte de seu pai e a parte que ele
havia lhe deixado, uma “pequena caixa recoberta por um veludo puído”. Dentro, ele descreve o que havia: “na minha
caixa havia uma esfera. Não era bem uma esfera, mas uma coisa meio molenga, menor do que um ovo, maleável e
transparente: uma geleia. Eu resolvi chamá-la de geleia.” Ele parece ter uma ligação inerente com o objeto: “Logo
que a segurei na mão, senti-me como se nunca tivesse estado longe dela, como se ela fosse coisa minha havia muito

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tempo.” Apesar da textura e do aspecto, o narrador passa sentir prazer em lidar com o objeto e também lembra que
seu pai tentava mostrar-lhe a famosa caixa: “Confesso que cheguei mesmo a fingir que não via ele cruzar
acintosamente diante de mim, passando a caixa de uma para a outra mão. Era muito engraçado! Havia momentos
em que ele até se tornava ridículo fazendo uns sinais com a cabeça, umas mímicas, que eu também fingia não
entender, só para me divertir. Com o tempo, acho que ele desistiu. Eu também fui cuidando de outras coisas.”
Contudo, no presente, ao recebê-la, ele não consegue se separar dela, nem mesmo nos momentos em que tentou
deliberadamente fazer isso. Inicialmente, ele se sentia embaraçado por estar com a geleia sempre consigo. Ele reage
de forma negativa frente à situação: “O resultado foi que acabei me escondendo. Escolhi um quarto que já ninguém
usava, no porão (ainda vivíamos na mesma casa), e fui para lá.” A intimidade com o objeto cresce a ponto de ele
assumir sua existência, mas, para sua surpresa, ninguém a vê: “Foi com surpresa que percebi que ela não via a geléia
na minha mão. Não queria passar por louco, desviei o assunto, me despedi e fui embora. Tentei mais algumas vezes,
até concluir que ninguém via a geleia grudada em mim. Somente eu a via.” O narrador, a partir desse momento,
passa a pensar que seu pai poderia ter sofrido com a indiferença dele e até mesmo de outras pessoas a quem ele
possivelmente possa ter mostrado (ou tentado mostrar) a geleia. Também ele conclui que o pai deveria ter insistido
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um pouco mais com ele sobre o tema: “Hoje eu penso que ele tinha de ter insistido. Talvez ele não soubesse bem o
que sentia ou talvez tivesse vergonha de me falar abertamente. No fundo, era só dizer: “sabe, é uma coisa que não
sai, uma espécie de geleia”, e eu entenderia.” No final do conto, o narrador sente que ela faz parte de si: “A geleia
já não se gruda mais em minhas mãos ou nos braços ou no meu rosto, como no começo. Elaestá em mim.
Simplesmente ela está. Sinto-a quando respiro, ou falo, ou durmo. Se e incomoda? Não vou dizer que não. Tem
tempos em que chega até a me doer. Uma dor morna, por dentro. Dá uma vontade horrível de fazer uma besteira,
mas eu sei que ninguém ia me entender. Eu diria “é a geleia”, e era bem capaz de rirem da minha cara. E eu nem
poderia dizer “vejam, então, seus idiotas, aqui está ela”. Aí percebo que não tenho muito a fazer e vou me acalmando.
Respiro fundo, digo para mim mesmo “é a geleia”, e a coisa vai passando.”

O CROCODILO I
O conto, é narrado em primeira pessoa, inicia com a entrada de um crocodilo no quarto do narrador. O
animal sobe para a cama e, tranquilamente, aninha-se aos pés do narrador. A primeira reação do narrador é pensar
que estava enlouquecendo: “Nunca tive dúvidas de que acabaria louco, mas jamais desconfiei que a loucura chegaria
assim, mansamente, na forma de um crocodilo de passos cansados subindo no meu colchão.” O narrador pensa que
se fosse enlouquecer, seria dentro da maior normalidade – “um louco padrão” – e durante o verão, visto que ele
odiava o calor: “Devia fazer uns cinco dias que eu estava deitado no colchão, com nojo de mim. Só levantava dali
para ir à parede oposta à da janela e grudar as costas nela. Era a única das paredes do meu quarto que não fervia
com o calor do sol lá de fora. Devia fazer uns cinco dias que eu estava deitado no colchão, com nojo de mim. Só
levantava dali para ir à parede oposta à da janela e grudar as costas nela. Era a única das paredes do meu quarto
que não fervia com o calor do sol lá de fora.” Era seu único alívio. O animal observa-o com seus olhos tristes, o que
transmite ao narrador uma sensação que é definida como mimosa. Em seguida, a presença do animal passa a
provocar sensações conflitantes, entre o incômodo e a indiferença. Porém, o mal-estar fica evidente quando ele
percebe que não havia se encostado na parede para se refrescar por causa do crocodilo. O narrador atinge-o com
um chute na barriga, e o animal chora: “Foi aí que ele chorou. E foi aí que notei que desde o início, mesmo quando
me sorria, seus olhos esféricos e salientes represavam uma enorme quantidade de choro. E enquanto ele chorava
eu sentia que me agradecia pelo pontapé que liberara sua choradeira.” O gesto não se repete porque o narrador
sabe que ele teria ainda mais motivos para chorar. Um dos poucos prazeres vividos pelo narrador era colar as costas
na parede para se refrescar. Ao fazer isso, ele descobre ao seu lado o crocodilo fazendo o mesmo, sustentado por
seu rabo. Em seguida, o narrador dorme e, quando acorda, depois de um bom tempo, percebe que o animal estava
encostado em suas costas: “Quando acordei, ele já estava em mim. Acho que é esse o fato. Ele veio e ficou em mim.
E talvez tenha sido por isso que dormi tanto. Porque não senti calor, porque senti até certo conforto no meu sono,
porque me senti bem, me senti calmo, como havia muito não me sentia. O crocodilo estava colado em mim, e a
delícia e o frescor que eu experimentava vinham do contato da pele amarelo-pálido da sua barriga com as minhas
costas. Havia o som da sua respiração, um ruído seco e asmático que roçava meu ouvido, mas aquilo era quase nada
comparado ao prazer que me dava sua pele em contato com minhas costas.” O narrador começa a gostar de ter o
animal agarrado as suas costas, apesar do pequeno incômodo de seus dedos grudados em seus ombros. Ele dorme
mais uma vez e desperta com o som insistente do interfone. O crocodilo atende e passa o gancho para o narrador:
o zelador ameaçava expulsá-lo em função do atraso. Ele responde que já desceria, pois pensava que já que estava
louco não precisaria de casa. O animal o apoia: “Tem razão.” Ele abandona o quarto em que vivia com o animal
agarrado as suas costas. Já na rua, o narrador decide melhorar a posição do animal em suas costas e pede dois cintos
a um camelô. Este reluta em função do fato do narrador não ter dinheiro, mas acaba cedendo. Assim, o narrador
consegue amarrar o crocodilo: “Amarrei um deles convencionalmente em torno da cintura, o que correspondia mais
ou menos ao início do rabo do crocodilo, e o outro em torno do peito, logo abaixo das axilas, na altura daquilo que
seria o segmento final do pescoço do meu crocodilo.” O camelô ainda comenta que seu pai vivera um problema
semelhante, mas com um macaco. Ao sair, o narrador vê que o camelô tinha algo em suas costas, sob sua jaqueta,
mas não consegue definir o que era. A partir desse momento, ele começa a notar que muitos homens e mulheres
também levavam animais às costas: “metidos em seus ternos e tailleurs e carregando suas pastas ou dirigindo seus

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automóveis sabe-se lá para onde, muitos deles levavam às costas um gato, um cachorro, às vezes uma pomba. Por
vezes só se via uma cabecinha sobressaindo-se à gola da camisa, junto à nuca. Outros deixavam escapar um rabo,
uma pata. E em vários era apenas o volume sob a roupa, uma suave elevação no dorso, o que para mim já dizia
tudo.” O crocodilo repete a ele: “tem razão”. O conto finaliza com o narrador sintetizando sua relação com o animal:
“Eu não lhe dava muita bola. Aliás, além de reconhecer o bem-estar que ele me transmitia, nunca lhe dei bola.”

A CURA
O conto inicia com o narrador – em primeira pessoa – salientando o importante trabalho exercido pelo
doutor durante a epidemia do vírus que assola a sociedade: “É mesmo admirável que ele se arrisque tanto vindo até
aqui, vivendo boa parte do seu tempo neste meio infecto e desafiando o vírus com essa coragem que nos espanta.
Todos nós sabemos que ele e sua equipe não precisam disso, que poderiam muito bem trabalhar em meio à
segurança da cidade, nos seus gabinetes e com todos os recursos disponíveis: computadores, laboratórios, os
melhores equipamentos. Mas não. Todos os dias eles vêm, mesmo sabendo que poderão, ao final da jornada, levar
o vírus para o seio das suas famílias.” O narrador revela suas dúvidas acerca da situação vivida: “Não sabemos, e

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talvez jamais saibamos, o que veio primeiro: se foi o vírus que aqui se instalou e causou toda a degradação, ou se
foi a degradação, a insalubridade do nosso meio que gerou o vírus.” Sobre os sintomas daqueles que são
contaminados, o narrador afirma que não há uma reação específica em algum órgão, mas apenas um cansaço que
toma o indivíduo. A sensação pode gerar efeitos intensos: “nos casos mais graves é um cansaço que aniquila, que
pesa nos ossos, que imobiliza o corpo até fazê-lo desabar. (...)Nosso corpo, ali estirado, continua funcionando,
urinamos, defecamos, transpiramos, mas se não passa alguém para nos arrastar até o hospital, permanecemos
deitados até morrer de inanição.” A prostração, afirma o narrador, pode perdurar por meses e meses sem matar o
indivíduo e afetar a memória – exatamente como o doutor tinha afirmado em suas pesquisas –, deixando apenas
uma “memória branca e esfumaçada”. Contudo, com o passar do tempo, as pessoas começaram a morrer mais
depressa, fazendo com que corpos e mais corpos fossem jogados no pátio do hospital/centro de pesquisa da
doença. O narrador conta que os doentes que estão em situação relativamente boa ajudam os graves para que os
médicos tivessem mais dedicação para solucionar o problema. Os pacientes se aglomeram na porta da sala de
conferências no intuito de obter alguma nova informação. Nesse momento, a cidade sofria com uma chuva intensa,
que terminava por piorar a situação da cidade. A solução encontrada foi a abertura de um rio para escoar a água.
Porém, o rio começa a afastar os doentes da cidade: “O rio foi aberto. Inicialmente um fiapo d’água riscando a terra;
depois o leito foi se alargando; hoje parece que não para mais de crescer, entre nós e a cidade. Daí uma certa
impressão de que o rio nos empurra para longe.” Apesar disso, o narrador afirma que o rio também era sinônimo de
esperança, pois era através dele que o doutor e sua equipe chegam até os doentes. Além disso, o pôr do sol
acontecia sobre o leito do rio, criando um cenário sublime. E é nesse cenário que o narrador sonha que um dia virá
a cura: “Pois essa imagem tem um traço de divino, que nos enleva. É nessa hora que rezamos. Rezamos por e para
aqueles homens (secretamente também rezamos pelos peixes). É nessa hora que sentimos, mais forte do que nunca,
a esperança de que amanhã, depois, qualquer dia desses, o doutor venha e desça do barco para em seguida convocar
uma coletiva. Um dia ele vai finalizar suas pesquisas, vai abrir o grosso volume da sua tese diante de nós, vai
apresentar os dados, as interpretações e as conclusões. E cansado, envelhecido, mas feliz, o doutor vai nos dizer —
temos absoluta certeza de que ele virá para nos dizer as palavras que mais esperamos.”

O CROCODILO II
O narrador, em primeira pessoa, inicia o conto expondo suas angústias acerca de ter aceitado um cargo na
Instituição: “E até hoje não sei se isso foi bom ou ruim. Como também não sei se ter aceito o cargo na Instituição foi
uma decisão acertada ou não. No fundo, não foi bem uma decisão, foi mais uma decorrência natural: quando
percebi, já estava aqui dentro.” O narrador afirma que fora bem recebido pelo Doutor porque ele também tinha um
crocodilo nas costas: “A razão é muito simples e está nas suas costas, naquele crocodilo caquético e doente que ele
traz nas costas.” Cada um levava o seu animal às costas: o do Doutor, velho e babão; o do narrador, jovem e com o
papo robusto. As pessoas da Instituição imaginam que o narrador seria o sucessor natural do Doutor, e ele aceita a
responsabilidade tranquilamente: “Não me importo de ser visto como exemplo para os mais jovens, são algumas
responsabilidades que preciso assumir.” Mais tarde, depois de se tornar pai, seu filho também questiona ainda não
ter um crocodilo: “Ele reclama que não tem um crocodilo como eu, e se agita, e às vezes até bate com a mãozinha
fechada no lombo do meu crocodilo, que já está velho e nos últimos tempos mal-e-mal abre os olhos, como se
estivesse recolhido a um sono permanente.” O narrador tenta acalmá-lo, afirmando que ele também teria o seu,
mas sem afirmar que um detalhe: “nem lhe falo nada — porque acho que é muito cedo — sobre o pequeno ovo que
já se faz perceber nas costinhas dele. (...) lá vai ele, alegre e infantil, sem desconfiar que já leva de arrasto um rabinho
jovem e incipiente que se agita com o vigor dos músculos novos.” No final do conto, o narrador – e seu crocodilo –
pensa na nova geração que se formava: “Sento na areia, fico observando meu filho brincar, é uma explosão de vida
que se prepara dentro daquele corpinho. Não consigo deixar de imaginar um futuro grandioso para ele, e meus
olhos se enchem d’água. Por sobre meu ombro, o crocodilo solta aquele seu riso asmático, que logo se transforma
num acesso de tosse rouca e meio catarrenta.”

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O ROSTO
O conto é narrado em primeira pessoa e inicia com o narrador afirmando que passara a perceber há algum
tempo que um rosto o observava pela casa em que vivia desde sempre. Contudo, ele inverte as posições: “Só que
agora inverti o jogo. Sou eu quem o persegue, e não estou para brincadeiras.” O narrador imagina em quantas
situações o rosto o observou, escondido em capas de revistas, quadros ou mesmo desenhos. O que de certa forma
o tranquiliza é o fato de ele conhecer a completamente a casa: “Duvido, por exemplo, que exista alguém que
conheça melhor a casa do que eu. (...) Somente esse convívio íntimo que mantenho com a casa há anos me permitiu
descobrir a infinidade de passagens, atalhos, as portas falsas, as peças falsas. Fui aprendendo aos poucos que a casa
gosta de brincar com as coisas que são e que não são. Ela inventa cômodos, por exemplo, que às vezes logo
desaparecem, mas que outras vezes se fixam duramente à sua estrutura, como uma peça capital, algo sem o que a
casa não existiria.” Ele até pensa em encarcerar o rosto numa das peças que desaparecerá, mas o problema se
encontra em identificar tal cômodo. Com a frequência com que é observado, o narrador afirma que consegue
identificar o rastro deixado pelo rosto e que seu grande desafio é antecipar o caminho que será tomado para poder
apanhá-lo. Em uma oportunidade, ele quase conseguiu, mas teve um acesso de riso ao comparar a fuga do rosto,
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desesperado por um corredor, com uma mosca atordoada. O rosto costumava se aproximar por suas costas, o que
fez com que o narrador desenvolvesse uma espécie de percepção posterior: “Estou sempre muito atento ao que se
passa às minhas costas e, embora não consiga ver, tenho uma ideia mais ou menos acertada do que acontece atrás
de mim. Às vezes estou concentrado em alguma atividade qualquer, como lustrar os sapatos, por exemplo, e
aparentemente sem nenhum raciocínio meus músculos recebem o estímulo, me viro rápido e vejo aquela bola
escura no ar, os cabelos na horizontal, dando conta do movimento velocíssimo, como a cauda de um cometa negro
— e o rosto some através de uma porta.” Na tentativa de captura-lo, o narrador passa a ficar numa saleta, onde uma
janela com um vidro cristalino, com esforço, servia como uma espécie de espelho. Assim, o narrador poderia vê-lo
às suas costas. Era difícil manter a concentração visual no reflexo e bloquear a imagem que havia fora da casa, com
o morro e as nuvens que eram vistas no lado de fora da casa. O narrador percebe que o rosto começa a observá-lo
de forma discreta: “Primeiro notei que ele espreitava apenas com um olho, a metade do rosto para além do marco,
e ficava por longo tempo observando. Depois escorregava para trás da parede. Mas eu sabia que não tinha ido
embora, que estava logo ali, a nuca recostada contra a parede, talvez ofegante, tomando coragem para se
aproximar.” Numa das oportunidades, o rosto se aproxima calmamente do narrador e passa a olhar através da janela.
Quando seu olhar encontra o reflexo do narrador na janela, o rosto foge. Contudo, ele bate num corrimão, se
desequilibra e cai perto dos pés do narrador: “Me aproximei e não consegui evitar a surpresa ao vê-lo tão jovem.
Era o rosto de uma criança, a pele lisa e branca, um pouco avermelhada nas faces por causa do esforço da corrida,
a escoriação no queixo pela batida no ressalto do corrimão e — o que me deixou um pouco desacomodado — aquela
lágrima cristalina que escorria do canto do seu olho.” O narrador coloca o rosto, ainda desacordado, dentro de uma
gaiola e alimentá-lo. O rosto apenas bebia avidamente o leite que lhe era servido, e a ação fascinava o narrador:
“Quando se erguia outra vez, seu cabelo trazia gotículas brancas penduradas nas pontas, e seus lábios também
estavam brancos, assim como o queixo e até suas faces; todo ele ficava lambuzado de leite, o que reforçava ainda
mais seu aspecto infantil. Era o único momento em que eu conseguia perceber alguma alegria nele. E de certa
maneira aquilo também se refletia em mim. Gostava de ver o rosto deliciado de leite.” Certo dia, ao colocar mais
leite para o rosto, este dirige-se pela primeira vez ao narrador: “Você pode trazer uma toalha para enxugar a minha
boca?” O narrador, um tanto quanto emocionado com o contato, parte para buscar a toalha e, no meio do caminho,
ouve um barulho de vidro se quebrando: “Voltei correndo, mas era tarde demais. Lá estava a gaiola com a porta
aberta, a porta que, na minha atrapalhação, eu esquecera de fechar. E o vidro da janela com um buraco redondo no
meio.” O narrador passa a sentir medo, pois ele imagina que o rosto poderia ainda estar dentro da casa, embora a
cabeça não tenha mais se apresentado a ele. Certo dia, o narrador decide colocar a cabeça pra fora da casa na
tentativa de encontrá-lo, mas o resultado não é o esperado, pois ele não o encontra e termina por ficar trancado na
janela: “Agora sei que estou preso, que minha cabeça está presa lá fora. Cada movimento que faço complica as
coisas. Mas não estou desesperado. Estou triste, cansado, mas não me sinto derrotado.” O conto acaba com ele
ainda preso, com gotículas da chuva pingando numa poça de água, o que acaba por dificultar a visão do seu reflexo
na água: “Meu cabelo está pesado das gotas que não se seguram nas pontas e pingam e alargam uma grande poça
d’água abaixo de mim. Onde se reflete meu rosto. A chuva parou há algum tempo. Veio o sol e minha nuca secou.
Mas as gotas, essas malditas gotas, insistem em continuar pingando sobre a poça. O que deixa o reflexo do meu
rosto inteiramente difuso, difícil de enxergar.”

A VISITA
No início da história, o narrador, substituindo uma visita que seu irmão faria, é recebido por uma Duquesa.
Ela o leva para conhecer uma casa, acompanhada de sua filha, de um pianista, do Capitão e de um homem descrito
como “meio afeminado”. No interior da casa, ele percebe uma intensa movimentação em um dos quartos e é
informado pela Duquesa que ali acontecia uma festa. Ele descreve a cena vista: “Mas não sei bem por quê, tive a
impressão de que já fazia muito tempo que aquelas pessoas estavam ali, que era uma festa que já durava vários
dias, que se divertiam, sim, mas entediadamente. Não consegui enxergar a parede do fundo do salão e calculei que
talvez coubesse uma cidade inteira ali dentro.” Eles seguem pela casa, e em seguida o narrador observa que segui
apenas com a duquesa e com o capitão. Este, então, para em frente a uma porta e olha suplicante para o narrador

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e para a Duquesa. Com a permissão desta, o Capitão abre a porta de uma sala na qual se encontravam uma série de
homens nus se exercitando em aparelhos de ginástica. Ela explica a cena: “A Duquesa explicou que aquela era a
Sala de Ginástica, onde Os Homens do Capitão (ela falou de maneira que se percebiam as maiúsculas na sua voz:
Os Homens do Capitão) fortaleciam seus músculos e mantinham a forma necessária para fazerem parte da Guarda.”
Em seguida, o Capitão explica o porquê de os homens se exercitarem daquela maneira: “Segundo o Capitão, o fato
de os homens estarem enxergando o corpo uns dos outros aguçava-lhes o senso de competição, fazia com que
cada um buscasse aumentar o tamanho dos seus músculos para superar o outro. A questão do nu completo era o
“algo mais”, o requinte da sua teoria e o que, segundo ele, realmente pesava na balança: vendo os genitais dos
outros — disse o Capitão, com extrema gravidade na voz e um prazer indisfarçável —, seus homens sentiam-se
profundamente viris.” A Duquesa, então, continua o passeio pela casa com o narrador na direção do pátio onde ele
estava. No caminho, eles cruzam pela cozinha, e o olhar melancólico e mais completo silêncio chamam a atenção
do narrador. Uma das cozinheiras aparentemente tenta comunicar-se com o narrador, mas, quando eles estavam
frente a frente, a Duquesa o pega pelo braço para levá-lo adiante e comenta: “O seu irmão também nunca gostou
de vir à cozinha.” Eles, em seguida, chegam ao pátio: “Era um enorme descampado. Na verdade era um campo

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devastado pelo tempo, como que indo ao encontro de um deserto que, por sua vez, viesse avançando desde muito
longe, misturando-se ao campo, engolindo-o.” Eles, então, se dirigem a um galpão, no qual se encontravam a filha
da Duquesa, o pianista e o homem com cara de tédio, cada um com um grande chicote de couro nas mãos. No
fundo do galpão, o narrado ainda descreve que havia uma arena, ocupada por um homem: “um homem muito magro,
com aspecto de debilidade mental, que me olhava como um bicho acuado e de um jeito que a mim era
assustadoramente familiar. Seus olhos eram grandes e meio caídos, suas feições, e até seus gestos, me remetiam a
um não sei quê de conhecido, algo que me comunicava de forma irrevogável a uma espécie de segredo íntimo,
desses de que se tem vergonha e se faz força para esquecer.” Ele se encontrava vestido apenas com um pano
enrolado como se fosse uma fralda e com uma coleira que o prendia por uma corda a um tronco. Eles era açoitado
pelos 3 que ali se encontravam. A Duquesa o convida para tentar, e o narrador aceita: “É evidente que no início foi
difícil, inclusive fiz muitos movimentos em vão. Só depois, quando o braço foi se soltando, comecei a sentir um lento
calor tomando conta do meu corpo. Deve ter sido aí que acertei a primeira. Depois acertei mais duas muito boas, e
o outro caiu. Então ficou fácil.” A Duquesa comenta comentava insistentemente que o narrador era parecido com
seu irmão, mas ele parecia ouvir apenas o zumbido do chicote estalando sobre as costas dele. O seu entusiasmo foi
tamanho que o Capitão teve que pedir ajuda para conseguir pará-lo: “O Capitão teve de chamar sete dos seus
homens para me arrancarem o chicote das mãos.”

O ENCONTRO
Narrado em terceira pessoa, o conto inicia com a chegada de um casal, em uma noite chuvosa, em uma
pensão. Eles viveriam um encontro que não tardaria a acontecer. No dia seguinte, eles se transferem para um quarto
de uma casa perto do centro, alugado por uma Senhora Baixinha Que Falava Alto. Ela sabia do encontro que
aconteceria: “Vieram para o encontro, disse a Senhora Baixinha Que Falava Alto, não tem problema, vocês vão me
pagando por semana.” O primeiro passeio gerou uma sensação desconfortável: “Era difícil orientar-se ali dentro. A
cidade era pequena, com duas ou três ruas principais mas várias travessas, ruelas transversais, becos e escadas.
Andaram por quase duas horas.” Depois de muita insistência, eles encontram a casa onde o encontro aconteceria.
Quando eles se dirigem a um café para se protegerem da chuva, uma Velha Que Se Dizia Cantora puxa conversa com
eles e percebe que eles estavam na cidade para o encontro. Ela diz que poderia ajuda-los: “Posso ajudar vocês. Eu
sei que posso ajudá-los a ter esse encontro o mais rápido possível. Amanhã mesmo vou fazer uns contatos com o
pessoal da Casa e lhes direi alguma coisa.” Eles combinam um novo encontro no dia seguinte no mesmo café. No
dia seguinte, eles não foram ao encontro com a mulher, mas passearam pela cidade e pela muralha que a cercava.
Um homem que vendia bugigangas puxa conversa com eles e lhes dá um pequeno bonequinho “para celebrar o
encontro, quando ele se desse.” O casal pergunta quando ele aconteceria, e o velho responde: “Como é que eu
posso saber, minha senhora?, respondeu o Homenzinho Sorridente Que Vendia Bugigangas na Calçada, não é de
mim que depende o encontro, se fosse assim seria muito fácil.” No dia seguinte, o casal decide ir até a casa para se
informar sobre o encontro, mas, lá, um Jovem Com Olhar de Espanto afirma que “o encontro não se dará durante
aquela semana e que lamenta muito, mas que eles terão de retornar na semana seguinte.” Ao longo da semana, eles
tentam encontrar a Velha Que Se Dizia Cantora, mas a busca não dá resultado. Na semana seguinte, então, o casal
volta à casa e é orientado pelo Jovem Com Olhar de Espanto a encontrar a sua superiora, uma Mulher de Meia-Idade
e Ar Distraído. Ela fala sobre o encontro: “Infelizmente estamos impossibilitados nesta semana, diz a Mulher de Meia-
Idade e Ar
Distraído, o encontro não se dará nos próximos dias, com certeza.” Dias e mais dias passam sem que o
encontro acontecesse, e eles passam a perceber que as pessoas com que cruzaram simplesmente tinham
desaparecido, até mesmo a Senhora Baixinha Que Falava Alto. Certo dia, quando se dirigem à casa, encontram apenas
um “descampado vazio”. O vazio das ruas se amplia e as paredes da muralha pareciam cada dia mais próximas: “No
dia seguinte, como de costume, como se fosse o primeiro dia, ele foi buscar o pão. A cidade estava mais vazia do
que nunca. Não encontrou a padaria, não encontrou ninguém nas ruas. Andou muito e em todas as ruas por onde
se enfiou deu sempre com a sombra da muralha. Entrou e saiu de várias ruelas, mas não encontrou o caminho de
volta. Continuou por muito tempo a andar pela cidade e seria já o meio da tarde quando, exausto, pensou no

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encontro e percebeu que intimamente já havia perdido a esperança de realizá-lo.” Ele pensa que a sua companheira
também deveria estar como ele, numa busca em vão pela cidade, provavelmente encostada – como ele – na parede
fria da muralha.

CORRERIA
Narrado em primeira pessoa, o conto inicia com o narrador em meio a uma corrida, acompanhado de
Zezinho – que parece não sentir cansaço da atividade – e do gordo Soares. O narrador afirma o primeiro que não
aguentava mais o esforço feito e que pensava que morreria na atividade, mas o outro replica que era exagero. Já o
gordo Soares incentivava-o – “vamos lá, campeão” –, mas isso gerava no narrador um desprezo ainda maior: “Fui
buscar forças onde não tinha e acho que consegui acelerar minha marcha. O gordo Soares deve ter pensado que
foi o incentivo dele, e isso me deixou ainda mais puto. O que eu queria mesmo era deixá-lo para trás, deixá-lo longe
dos meus ouvidos, de preferência estatelado no chão e com um metro de língua pra fora.” O trio aproxima-se do
final da corrida, onde, para o narrador, “ao longe já se via a trilha afunilando e as crianças, os pais, os avós, os tios,
os filhos-da-puta todos, famílias inteiras de filhos-da-puta agitando bandeirinhas e batendo palmas, dizendo “vamos
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lá!”. O narrador pensa em desistir, grita a Zezinho que estava babando sangue, mas termina por acelerar cada vez
mais sua corrida. Ao ouvir palavras de incentivo, ele reage: “Campeão, o caralho, eu pensava. (...) Que me jorrasse
sangue pelos ouvidos, pela boca, pelos olhos, que me jorrasse sangue pelo cu, tudo o que eu queria era estourar de
vez e acabar com aquela merda. Finalmente, tropecei. E já estava desabando no chão quando me seguraram pelo
braço e me botaram de pé de novo e me empurraram e até me chutaram a bunda, quando eu já estava correndo
outra vez.” Zezinho o incentivava, apesar de o narrador não acreditar que conseguiria. O conto acaba com as frases
de Zezinho: ““Até o gordo Soares aguenta, seu maricão”, disse o Zezinho. E depois, como se falasse consigo: “Só te
chutando a bunda, mesmo”.”

ESPERA
Narrado em primeira pessoa, o conto inicia com o narrador descrevendo uma cena que estaria acontecendo
do outro lado de uma parede: uma mulher cantando e se despindo. Ele afirma que estava acostumado a ouvir – e
imaginar – os movimentos: “Já aprendi a identificar cada passo do seu ritual. Agora ela está nua porque há pouco a
ouvi naquele movimento de erguer a camisola pela barra e puxá-la por cima da cabeça. É um pequeno instante em
que ela interrompe a canção, o tempo suficiente para que o colarinho cruze por sua boca e por seus olhos, que
sempre se fecham nesse momento. Então ouço o ruído surdo que faz o tecido da camisola quando ela é jogada ao
chão, amontoando-se ao pé da porta e cheia do calor do seu corpo.” Nesse momento, o narrador revela que tinha
que manter o lado da cama dela aquecido, mostrando que a cena é ambientada na mesma casa. O narrador mostra-
se tocado pela cena e pelo desejo que ela venha para a cama: “Repentinamente estendo o braço para o lado da
cama, numa expectativa inútil. Na certa sonhei que ela tinha vindo. São sonhos rápidos que tenho, alguns minutos,
talvez segundos, em que adormeço antes de voltar a acordar e ouvir sua canção. Me esforço para não dormir
profundamente, sei que ela pode vir enquanto eu estiver dormindo e partir antes que eu desperte.” Ele diz que já
sonhou inúmeras vezes que vai até a porta para saber se está tudo bem com ela, se já tinha acabado o banho, mas
acorda só, abraçado nos lençóis. A espera o angustia: “Talvez seja essa espera excessiva que me deixa doente. Sim,
percebo muito bem a doença latejando dentro de mim como um bicho vivo, que me suga as forças e deixa meu
corpo prostrado, com a sensação de que só a cabeça continua funcionando. Tem vezes que eu acho que sou só um
pensamento.” Contudo, ele percebe que ouvi-la é essencial para si: “Chego mesmo a tapar os ouvidos, mas é aí que
percebo que não a escuto pelos ouvidos. Sua voz e sua canção entram em mim de um outro jeito que não consigo
precisar qual é. Mas sem dúvida é o que me mantém vivo. Acho que no dia em que ela parar de cantar eu cometo
uma loucura, não sei.” Ainda na mesma cena/espera, o narrador percebe o momento em que ela se seca: “Como é
nítido esse puxar da toalha, esse pequeno ruído do tecido deslizando no metal do cabide. Depois, no silêncio dos
movimentos seguintes, é apenas o som muito mais deduzido do que perceptível da toalha abraçando seu corpo,
enxugando as axilas e as virilhas. Sei perfeitamente quando ela enxuga os pés, porque a canção é sempre a mesma.
Ela não chega a cantar a letra, mas entoa a música com a boca fechada, como se embalasse um filho. Fecho os olhos
e a vejo com um pé apoiado na borda da banheira, o cabelo escuro caído por sobre um dos ombros e quase roçando
o joelho dobrado. Vejo os seios pequenos e muito brancos, pendidos, que se agitam conforme o movimento que
ela faz com os braços para secar em torno do calcanhar, depois entre os dedos e, por fim, virando um pouco o pé
para dentro, num movimento que a obriga a afastar a coxa para o lado, ela seca a planta do pé, demoradamente,
numa carícia lenta e várias vezes repetida.” Ele afirma que gosta de dormir com essa imagem e que a espera parece
ser a única coisa que possui. O final do conto não muda a situação: “sonhei que gritava “você não vem?”, e que ela
respondia em forma de canção, uma canção que não consegui identificar porque estava longe demais.”

PARA SALVAR BETH


O conto, narrado em terceira pessoa, inicia com um diálogo entre Gil e Soninha sobre um trabalho que ele
tinha arranjado: levar uma cadelinha todos os dias a um petshop para que ela fizesse um tratamento de saúde. A
mulher comenta que ele não gostava de cachorros e sai de casa apressadamente para o trabalho. Ele, por sua vez,
fica em casa, pensando em como sua vida havia se transformado para pior nos últimos tempos: “De uns tempos

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para cá a sua vida parecia ter entrado na descendente, em todos os sentidos. Estava sem emprego fixo havia mais
de um ano, ou seja, estava sem dinheiro havia mais de um ano. As contas se acumulavam, tiveram de mudar-se para
aquela kitchenette minúscula e malcuidada, e as coisas entre ele e a mulher decididamente já tinham sido melhores.”
Gil vai à casa da família de Beth, a cadelinha, e ouve as explicações sobre o que deveria fazer: “O senhor apanha a
Beth com a Cremilda, que vai ficar tomando conta da casa, leva-a até a Pet-shop e depois a traz de volta e entrega
outra vez para a Cremilda. Alguma pergunta?” No dia seguinte, ele inicia o trabalho que era efetivamente simples,
inclusive, permitindo que ele dormisse enquanto esperava que a cadelinha fosse tratada. Dia após dia, Gil parecia
mais tocado pelo contato com Beth e mais crente que ela superaria seus problemas com o tratamento. Contudo,
no dia seguinte, a sessão durou muito mais que o costume, o que fez com que ele chegasse em casa tarde. Ao
chegar, encontrou a mulher ainda com a roupa do trabalho, e ela lhe disse que havia saído para beber com colegas
depois do expediente e que chegara havia pouco. Nesse momento, o celular de Soninha tocou, e ela correu para o
banheiro para atender. Após sair, a mulher comenta que no dia seguinte não trabalharia e que poderia acompanhá-
lo no trabalho. Também ela afirma que eles deveriam passar uns dias na praia depois que o tratamento – e o trabalho
dele – acabasse. Ele concorda com a ideia. No dia seguinte, Soninha o acompanha à petshop e comenta que ficaria

leituras obrigatórias - UFRGS


louca com a rotina de espera enquanto Beth era tratada. Nesse dia, Beth é liberada alegre, pulando no colo da
mulher. Porém, uma semana depois, a atendente afirma que a cadelinha teria que ficar internada: ““Beth vai ficar
aqui. É um momento crítico, um momento muito crítico, e resolvemos que não seria aconselhável ela voltar para
casa. Aqui ela vai ser acompanhada durante as vinte e quatro horas do dia. Vai ser melhor. Não podemos descuidar
agora.” A mesma atendente passa o telefone para Gil falar com a dona da cadelinha, a senhora Afonso: “Olhe, já
falamos com a funcionária da Pet-shop. Sabemos que a Beth está bem e que a partir de agora será melhor ela ficar
aí. O senhor está dispensado, portanto. Eu quero dizer que o senhor fez um excelente trabalho e eu e meu marido
estamos mesmo muito satisfeitos. Nós lhe pagaremos inclusive os dias referentes à semana que vem, quando
voltarmos, porque foi assim que combinamos...” Ao voltar para casa, Gil não encontra a esposa, que chega em casa
tarde da noite. Ele não pergunta onde ela estava – nem ela diz –, pois precisava falar o que tinha acontecido:
Precisava era contar-lhe o que tinha se passado na Pet-shop. E assim fez. Contou tudo atabalhoadamente, pulando
passagens, voltando atrás para repor detalhes e dar uma ideia mais ou menos clara do que havia acontecido. Falava,
e tinha a impressão de que quanto mais falava, mais tornava difícil a compreensão da sua fala. Estava tudo muito
confuso. Já não sabia o que queria dizer.” A mulher afirma que ele não tinha o que fazer, ao que ele responde que
se sentia responsável e que sentia muito em deixar a cadelinha sozinha na petshop. Soninha, então, deita ao seu
lado e termina dormindo. Gilberto não consegue, mexe-se na cama insistentemente, até ela acordar. Angustiado e
sem ter o telefone da petshop, ele decide ir até o lugar sozinho, depois que Soninha diz que seria melhor eles não
irem juntos. No local, ninguém o atende: “A Pet-shop estava totalmente às escuras, apenas o letreiro de néon na
parte superior da fachada dava-lhe um pouco de luz. Ele subiu até o patamar da entrada principal, tocou a
campainha, esperou, mas ninguém atendeu. Tocou outra vez, nada. Contornou a casa. A parte dos fundos estava
ainda mais escura. Ficou com receio de ser surpreendido por algum cão vigia e, de súbito, se deu conta de que até
mesmo aqueles latidos que ele sempre ouvia lá dentro agora estavam ausentes. Tudo em silêncio e no escuro.
Voltou à entrada. Subiu outra vez os degraus que levavam à porta e, já sem esperança nenhuma, encostou o ombro
à porta e a roçou com a ponta dos dedos, suavemente, como quem pede socorro baixinho.”

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