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EXU É

Padê 1 ________________________________________7

Padê 2 ________________________14

Padê 3 __________________________________________________16

Agô ________________________22

7 Prosas _______________________________________27

Lebara 1 ______________________________________63

7 Esquinas _________71

Lebara 2 ____________________153

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Pade 1
EXU EM CORPO DE ORIKI
A proposta de escrever sobre o que os orikis podem revelar-nos a respeito de
Exu contém um sutil desafio. Exige um recorte que só é fácil em aparência. Pre-
parando-me para a tentativa algo temerária de dar conta deste recado — missão
mais apropriada para aquele de quem falarei — trago logo à tona uma questão
preliminar, subjacente à proposta: Como Exu se dá a conhecer?
Um adorador dos orixás dirá que ele se faz presente de muitas maneiras:
no transe em que arrebata seus iniciados, em ritmos e melodias que o evocam,
em seus símbolos e imagens, em animais ou plantas de sua escolha, em danças
cheias de seu frenesi, nos assomos com que empolga até mesmo profanos, quan-
do inspira, espicaça, anima ou agita quem sequer o conhece. O devoto pode ainda
dizer quer ele tem presença assegurada em todos os atos de culto, visto como
Exu Odara é o portador das oferendas, sacrifícios e preces, agência indispensável
nos principais sacramentos do candomblé e dos ritos africanos que lhe deram
origem. De resto, não se podem esquecer as aparições surpreendentes em que o
poderoso Elebará, cavalgando sonhos ou penetrando de súbito no curso da vida
cotidiana, toma inúmeras formas aos olhos abertos para seu mistério: feição de
criança inocente e malina a fazer traquinagens incríveis, de homem embriagado
ou de cavalheiro elegante e irônico, de moço bizarro, de mulher assanhada, de
bicho esquisito (cão, ave, serpente, qualquer coisa viva e fogosa). Mesmo no que
a gente considera inanimado ele é capaz de manifestar-se com um toque extrava-
gante. Além disso, para quem o cultua Exu é capaz de revelar-se sem propriamen-
te aparecer, na irrupção de um acontecimento inesperado. Claro, ele também se
faz conhecido através de seus patakis (mitos) e de seus orikis.
O difícil é separar umas das outras essas manifestações. E o problema se
torna ainda mais complicado quando a gente se lembra de um dado perturbador da
teologia africana (e afro-brasileira) em que o divino Mensageiro figura com des-
taque: no seu panteão, Exu vem a ser um orixá que se associa a todos os outros,

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irmãos que não raro falam por sua boca. É um mediador entre divinos e humanos, justiça: deixam de fora sua caprichosa musicalidade, em que aliterações, rimas
entre os vivos e os mortos. A um tempo, incorpora a distância irrecorrível entre tonais e jogos rítmicos diversos são um fator de encantamento. Assim também se
esses domínios e encarna o mais imediato — pois está presente em nosso corpo, perde muito de sua força imagética, pois torna-se difícil perceber nessa classe de
em nossa gana: é um Senhor do Corpo. versão a compacta densidade dos seus arranjos figurativos.
Os orikis de Exu se reportam de maneira sutil (às vezes críptica) a mitos De resto, convém lembrar que os oriki são composições orais, que nascem
de que ele é personagem e se referem de diferentes formas às suas múltiplas e vivem em desempenhos, em performances. Vê-los escritos, despidos de voz e
epifanias. Espelham jaculatórias dos cânticos litúrgicos que o invocam e ecoam gesto, é vê-los “desnaturados”, convertidos em outra coisa (por vezes, num belo
o ritmo dessas cantigas. Assim sugerem movimentos de sua dança. Envolvem suas poema de outro tipo). Na sua forma original, eles pertencem ao coletivo. A audiên-
invocações. Com frequência imitam ou recapitulam o teor de preces dirigidas a ele. cia que os acolhe em seu nascedouro logo se capacita a reproduzi-los. E quando o
Nessa altura, outra questão se impõe: o que é mesmo um oriki? faz, não raro os amplia. Não se priva de modificá-los a seu gosto no que os repete.
Em termos simples, pode-se dizer que o oriki corresponde a um gênero da Já na fonte a audiência pode desempenhar papel ativo. O enunciador não reivindi-
lírica iorubana, um tipo de poema celebrativo, de louvação, como diz o povo. O ob- ca autoria.
jeto do louvor pode ser uma pessoa, um animal, uma cidade, uma instituição, qual- Como acima indiquei, essas composições orais podem tornar-se literatura.
quer coisa. Os que celebram Exu correspondem ao subgênero dos chamados oríkì Isso tem ocorrido no seu berço e também na diáspora. No Brasil há quem compo-
orísá, dedicados aos divinos. Mas para entender bem a natureza desta modalidade nha oriki, como faz, por exemplo, Ricardo Aleixo. Mas os belos poemas autorais a
lírica é preciso ter em mente sua origem. Tudo indica que ela tem a ver com os que ele dá esse nome já são um novo tipo de criação poética.
complexos procedimentos de nominação existentes na cultura iorubana. Ou seja, Traduzir oriki é sempre um grande desafio. Exige, sim, criatividade. Eu
o oriki representa o desenvolvimento lírico de uma classe de fórmulas do rico re- mesmo me arrisquei a isso e o resultado me surpreendeu. Como expliquei no
pertório onomástico dessa cultura. Dá-se que há diferentes tipos de procedimen- prefácio do livro que encerra a tentativa, quanto mais eu me empenhava na tra-
tos nominativos na antroponímica iorubana, entre elas formas de nominação que dução, mais a transformação se impunha. Ela decorria do meu desejo de não trair
fazem referência ao clã do sujeito ou a particularidades do seu nascimento, por os originais com uma transposição prosaica. Percebi logo que essa lírica maravi-
exemplo. O oríkì vem a ser, na origem, um recurso de designação que assinala seu lhosa não se transfere tal e qual para nossa língua. Sua poderosa música procura
objeto referindo suas características idiossincrásicas, com recurso a epítetos e sempre outros caminhos em meus ouvidos, em meus olhos, em meu coração.
a sintéticos enunciados descritivos. Este processo empresta variedade à denomi- De começo, as metamorfoses ocorriam sem que eu as buscasse, mas logo
nação que resulta. A peça lírica derivada, o oriki-poema, surge de uma combinação passei a aceitá-las e, mais ainda, a procurá-las. Como digo no referido prefácio,
de epicleses e sentenças curtas. O gênero se constituiu, por suposto, a partir de sou um crioulo da Bahia, acostumado ao encontro com os orixás que povoam nos-
uma extensão do modelo onomástico (do paradigma da epiclese, do nome/título), so imaginário e enchem nossos corações com seu encanto, fazendo-se presentes
quando passou a ser uma forma de designação não apenas de pessoas (humanas em ritos de grande beleza. Seus mitos invadem nossa vida e se entretecem com
ou divinas) como também de animais, coisas e instituições. ela. Quando quero traduzir seus orikis, a bonita língua estrangeira em que os leio é
O oriki-poema se aproxima do hino, principalmente quando se aplica a di- logo assaltada por outra, a um tempo semelhante e distinta, familiar e longínqua.
vindades. Tende para a litania, mas é raro que se limite a uma sucessão de epí- Eu me refiro aos falares que chamamos aqui de “línguas de santo”, com destaque
tetos, como ocorre nos hinos órficos dos helenos. Também ao contrário destes para o nosso “nagô”, um código derivado do ioruba: uma sua variedade crioula (no
— que habilmente modulam um canto caprichoso na sua gaiola métrica — os sentido que dão ao termo “variedade” os sociolinguistas e etnolinguistas). Este
oriki têm uma estrutura maleável, capaz de variações, bem mais solta e fluente, código é apimentado pela mistura de elementos colhidos de outros do mesmo
feita para voar. As traduções analíticas que se encontram em certos registros et- tipo, mas oriundos de idiomas diferentes (como o fon e o quimbundo), línguas
nográficos (na coletânea de Verger, por exemplo) estão muito longe de fazer-lhes que em nossos terreiros se cristalizaram em cânticos, preces e fórmulas rituais.

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Estou acostumado a ouvi-las de bocas devotas e de sagrados atabaques. Sua sos africanos. Transformei uma ave de rapina dos sertões da Nigéria em nosso
música me penetra e se combina com imagens fascinantes. As “línguas de santo” carcará. Um cacto de lá nativo virou mandacaru em minha tradução. Na tentativa
enriquecem com sua graça mística o dialeto baiano, entusiasmando nosso portu- de responder de um modo indireto à irrepetível sonoridade das duas primeiras
guês. jaculatórias recorri a um verbo insólito (“manducar”, em vez do usual “comer”),
Do mesmo jeito, os patakis, as antigas histórias sagradas dos orixás, se- recurso que me propiciou uma aliteração convincente. Bem sei que Exu, tal como
guem vivendo em nossa terra, onde assumem formas novas, criam variantes su- os Orixás seus irmãos, gosta dos jogos verbais em que as palavras se entrelaçam,
tis, misturam-se às histórias do povo de santo. com sabor de música.
Não consigo separar esse móvel repertório do que registros etnográficos Sou frequentador de terreiros, sou membro do povo de santo. Posso confir-
me trazem de longe. Quando desfruto a estranha beleza dos orikis iorubanos expe- mar que tal como em Oyo, onde Verger colheu o oriki em apreço, em minha terra é
rimento, a um tempo, proximidade e distância. Tenho a impressão de que eles me notória a predileção de Exu por plantas ásperas. Nas proximidades de seus santu-
surgem de uma memória profunda cujos movimentos não controlo, que fica além ários baianos cactos são bem-vindos, assim como pimenteiras e touças de urtiga
de minha consciência, mas ainda assim a afeta. Os orixás cujo esplendor cintila ou de cansanção.
em seus versos enigmáticos mostram-se ricos de uma novidade que há muito me Uma sentença corrente em meio ao povo de santo reza que Exu “come tudo
conhece. Dá-se então um reencontro marcado pela surpresa. que boca come”. Mas ele vai além. Consome o que não se imagina comestível. Mui-
Ao propor-me a passagem para o português de um oriki de Exu sinto que tos pataki e oriki assinalam sua tremenda voracidade. Neles se fala também de
ele está a meu lado e me provoca, me esclarece e me instiga, exige o desvio cria- seu insaciável amor a tudo que pica e requeima, a sua eterna sede de aguardente.
dor, quer que a mesma seja outra coisa. Meus orixás me agitam do mesmo modo. Para seus devotos, tanto daqui como da África, Exu pode manifestar-se
Assim passo da tradução à invenção. Por isso no livro dedicado a essa ousada em forma de ave. Um velho Ogan falou-me que o poderoso Elebará gosta muito de
tentativa preferi chamar o resultado por um nome novo: neoriki. gavião, tem afinidade com o gavião.
Mas sou fiel: imito o procedimento dos poetas anônimos, combinando ja- Não por acaso são aproximados nos versos acima os opostos campos de
culatórias, ainda que às vezes junte peças de origens diferentes e me valha sem- ação de Exu. A ele se pede a bênção de uma prole, a geração de uma criança, o
pre, também, do tesouro crioulo. Dou como exemplo minha tradução de um oriki dom da vida; mas afirma-se também que ele é agente de morte, um terrível mata-
de Exu em que sigo seu impulso desviante: dor.
Faz parte de seu ser esta contradição.
Se há mandacaru maduro, A súplica contida no texto em epígrafe faz todo o sentido para quem se
manduca mandacaru. recorda do caráter fálico de Exu. Em seus altares ele pode ser representado por
Se ainda não madurou, uma (esquemática) figura itifálica, ou mesmo com a forma de um falo: assim é
depois o manducará. visto em santuários do Benin e num importante terreiro baiano. Exu abre caminho
Faz tu, Exu, que em meu lar para a geração, torna os homens rijos e fecundos.
cara criança apareça Seus poetas celebram seu extraordinário vigor e a incomparável dureza
— Ó tu da bocarra aberta do seu membro viril. A mistura de uma curiosa fórmula iorubana com uma lírica
em bico imagem crioula rendeu-me um pequeno neoriki:
de carcará
Com que a morte caça cabeças. Nua que nem a lua
A moça branca sai da garrafa.
Primeiro devo assinalar as adaptações crioulas que fiz ao transpor os ver- Exu

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Todo duro Esses paradoxos indicam que a sua essência pertence o movimento con-
Dá com o caralho no muro. tínuo, demolidor de barreiras, a mudança cuja mola propulsora é a contradição.
Mitos cosmogônicos o confirmam, atribuindo-lhe um papel decisivo na criação do
A moça branca que deleita o poderoso Orixá é a cachaça, logo se vê. mundo: nessas histórias Exu se ocupa de modificar o arranjo perfeito elaborado
Semelhante ao falo é insígnia de Exu, o ogó: um bastão que indica com pelo Criador, introduzindo no mundo disparidades e deslocamentos, promovendo
clareza sua agressividade. Dizem seus orikis que ele tem muitos porretes e os uma bela desordem que faz o cosmo alterar-se e mover-se. Essa desordem resulta
manipula com perícia. Assim armado, ele faz-se um invasor irresistível, que entra criativa, pois induz à transformação, aciona o motor do tempo. Assim a inquietude
à força em qualquer cidade, casa ou aldeia — em qualquer lugar, por bem guarda- do Perturbador traduz-se em constante mudança.
do que seja. Todavia ao mesmo tempo Exu (Legba) é propiciado como um guardião Os cânticos insistem: Exu é rápido, rápido, rápido. Sempre em movimento,
poderoso. Tal como o grego Hermes, ele tanto exerce o papel de assaltante como ele acelera o mundo. E corta caminho. Por isso o saúdam como Viajante infati-
o de guarda e defensor. Os orikis retratam sua fúria e sua graça benévola. Irado, gável que atravessa todos os espaços com sua fina cabeça, sua crista de faca
Exu tira sangue da pedra que calca. Cioso de seu privilégio, pune quem não lhe de- afiada.
dica a oferenda de preceito. Mas ele é também o grande Odara, Mensageiro indis- Rico de muitos dons, Elebará é quem traz a dança, afirmam os jejes. Quan-
pensável que leva ao Deus supremo os sacrifícios, preces e votos dos humanos. do dançamos estamos em contato com ele. O santo incontrolável assim nos en-
Sim, a contradição está em sua natureza. Este núncio tão próximo de to- volve em seu eterno carnaval.
dos os orixás, que os assiste com zelo, pode igualmente fazer-se seu antago- Encontra-se Exu nas encruzilhadas, nas estradas e nos desvios, nos mer-
nista, como reza um oriki registrado por Olu Daramola e Adebayo Jeje. Esta peça cados, nos umbrais, nas fronteiras, nos portos, na partida e na chegada, em toda
lírica foi reproduzida num livro pequeno, mas substancioso de Mawó Adelson de a parte. Imprevisível, ele sempre surpreende. Merece bem o título de Viramundo,
Brito, que fez com capricho sua tradução. Vários pataki retratam o estranho an- que lhe damos no Brasil. É o anjo travesso presente em todas as passagens. Mas
tagonismo evocado nesse oriki: eles contam como Exu dedicou-se, não poucas os orikis africanos também o intitulam Porteiro de Deus.
vezes, a perturbar os mais poderosos entre os divinos, começando pelo Criador, o Na verdade, não há como apreendê-lo, pois ele é múltiplo.
excelso demiurgo Obatalá. E único.
Na verdade, o que atrai o incansável amante das disputas é o confronto Embora os orikis não o afirmem diretamente, dão a entender um segredo
em si. Na boa versão do Mawó, o oriki acima citado afirma que “Exu joga nos dois que com a devida autorização revelo agora a meus leitores: Exu é poeta.
times sem constrangimento”. Ele é também mostrado nessa classe de poemas
com um perturbador que fomenta discussão, um típico trickster, malicioso, enga-
nador, mas sempre dúplice: tanto entorta o que está direito como endireita o que
se acha torto. Senhor do mercado, produz igualmente o logro e o lucro. Em todo o Ordep Serra [Cachoeira, Bahia] marido de Regina Serra, é antropólogo, helenista, es-
caso, sem ele não há comércio. Não há comunicação. critor, atual Presidente da Academia de Letras da Bahia. Fez na UnB o Bacharelado em
Os orikis de Exu recorrem com muita frequência ao paradoxo a fim de Letras e o Mestrado em Antropologia Social. Doutorou-se em Antropologia pela USP, tendo
descrevê-lo, referir suas proezas, caracterizá-lo. Segundo rezam seus louvores, estagiado no Centre Louis Gernet da EHESS, a convite de Jean-Pierre Vernant. Ensinou Lín-
o inquieto orixá se revela enorme, mas para almofada basta-lhe a pele de uma gua Grega na UnB. É Professor aposentado da UFBA, onde ensinou Sociologia e Antropologia
formiga. Em pé, ele não se mostra alto, mas quando se senta ou se agacha sua na FFCH. Foi também Pró-Reitor de Extensão da UFBA, Diretor do IPAC e Presidente da Fun-
cabeça toca o teto. Goza de ubiquidade tanto no espaço como no tempo, que ele dação Cultural do Estado da Bahia. Como ficcionista, conquistou três prêmios nacionais de
atravessa em todos os sentidos. Com uma pedra que atira hoje, mata um pássaro Literatura. É Ogan no Terreiro do Engenho Velho, Olopitan no Ilê Oxumarê.
no dia de ontem. É feliz outrora agora, que nem Fernando Pessoa.

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Pade 2
UM SAMBA SOBRE O INFINITO
Menina, você sabe onde é o fim do mundo? Eu já vivi 75 anos e ainda não sei. Você
sabe onde o mundo acaba? Já foi lá? Ela, nos cinquentinha recém-completados se
alegra. O que posso dizer é quem chega ao fim do arco-íris encontra o fim do mun-
do. Mas alguém já encontrou? O motorista pergunta enquanto vira o rosto para trás,
tranquilo no trânsito de feriado em Salvador. Não sei. Aí o senhor me apertou sem me
abraçar.
E a Lua? Dizem que o homem já foi à Lua? Você acredita, menina? Eu não acredito,
não. Ah, que foi à Lua, eu acredito, tem as fotos, as filmagens... Mas quem garante
que não é mentira? Você viu? Você tava lá? Isso foi armação, só pra dizer que se o
homem chegou à Lua, ele pode chegar no fim do mundo.
Dizem que no fim do arco-íris tem um pote de ouro. O senhor já ouviu falar disso?
Eu, já. Quando menino, o povo falava isso pra engabelar bobo e pra atiçar a ganância
da meninada. Ah... aí eu discordo do senhor. Não poderia ser para instigar a beleza? O
encanto pelo desconhecido? O sonho? O brilho do ouro como recompensa pela curio-
sidade? Pela busca? É, não sei, mas você pode ter razão.
E o céu? Você acha que o céu existe? Eu achava que sim, até o senhor me fazer
essa pergunta, agora não sei mais. Uma vez um erê me disse que o céu é a mãe do
arco-íris. Rindo, o motorista avisa, você é mais confusa do que eu. Mas o céu, menina,
esse existe. É mesmo? Por que o senhor tem certeza? Existe porque tem função. O
céu é o tampo do mundo, como a lona de um circo.
Essa é boa. O senhor parece taurino. Eu sou taurino mesmo, como é que você sabe?
Um touro reconhece outro e só um taurino para justificar a existência do céu pela
necessidade de um telhado para o mundo.
A Terra é o circo e o céu é a lona. Mas é lona furada, porque de lá cai chuva, arre-
mata o motorista. É, sim! O senhor tá certo. A chuva cai e enche o mar. E o mar vai
dar aonde? O senhor sabe aonde o mar vai dar? Essa é fácil! Uai, é mesmo? Aonde é?

O mar deságua no coração do marujo e por lá faz morada, menina.

Cidinha da Silva [Belo Horizonte, MG] é escritora e editora na Kuanza Produções [www.
kuanzaproducoes.com.br]. Publicou 19 livros e tem 220,4 mil exemplares em circulação. Um
Exu em Nova York [Prêmio Biblioteca Nacional, 2019] Os nove pentes d’África [PNLD Literário
2020], são dois destaques. Tem publicações em alemão, catalão, espanhol, francês, inglês e
italiano. É curadora de Almanaque Exuzilhar [Youtube] e conselheira da Casa Sueli Carneiro.

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Pade 3
UMA CIDADE-PASSAGEM QUE
EXALA O SAGRADO
Na teoria da minha profissão há um debate sobre a união ou separação entre o jor-
nalismo e a literatura como centro do discurso da objetividade. Por gostar dos dois
gêneros, geralmente, encontro literatura em alguns textos jornalísticos e vice-versa.
Mas esse quase nariz de cera – um pecado para o jornalismo – tenta justificar a re-
ferência a uma comemoração que já passou: o aniversário de Salvador, celebrado em
29 de março. E, para convencer de vez o editor dessa revista, conclamo o patrono da
publicação, que tem poderes de fazer com o tempo o que desejar: trazê-lo de trás pra
frente, de frente pra trás ou deixá-lo no meio do caminho. E eis que ganhei coragem
para seguir o fio que imaginei. Licença, editor.
A fundação de Salvador foi determinada pelo rei João III como providências para
tomar posse com mais vigor do território que a Coroa Portuguesa passou a considerar
como seu a partir de 1500. Frequentemente encaramos a fundação de Salvador como
algo corriqueiro, mas construir uma cidade para ser uma capital – ícone da represen-
tação de poder – foi sempre tarefa complexa. Não é a vila que vai crescendo até virar
cidade, mas um empreendimento e tanto. Se Brasília deu trabalho a Oscar Niemeyer
em 1960 e, por isso, celebramos a sua genialidade, imaginemos o que foi erguer Sal-
vador no século XVI. (E nem estou colocando nesta conta o custo da tragédia que se
abateu sobre os verdadeiros donos da terra: os grupos indígenas que até hoje estão
aí, por várias partes do Brasil, como se suspensos no tempo dizendo que têm o direito
de permanecer no que é deles, enquanto os herdeiros daquele estado estrangeiro con-
tinuam massacrando esses povos originários só para o nosso conforto: desmatamen-
to para criar gado e soja; construção de hidrelétrica para garantir nossas tecnologias
de comunicação e informação porque estamos falando em 5G, mas a matriz ainda é
a elétrica com características de geração quase nunca limpa, em vários sentidos).
Mas voltemos ao ponto em que encontramos Tomé de Souza com o regimento real

PYM
debaixo de um braço e uma espada na outra para cumprir a determinação de sua ma-

PAKA
jestade, João III, que inventou de construir uma cidade para dar jeito na questão que
atormentava a Coroa Lusitana há quase meio século. A Coroa já tinha experimentado
alguns modelos que não funcionaram muito bem. Alguns dos reis de Portugal foram

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chegados a ideias mirabolantes. Dom Sebastião, por exemplo, se meteu a ir virar herói Elegbara, Exu que traça caminhos para além da terra, afinal eles nunca têm um fim e
de cruzadas. Mas aí se perdeu na Batalha de Alcácer-Quibir e, nunca mais se soube um começo se a gente observa bem. Depende da perspectiva.
dele fora da condição de uma espécie de messias que voltaria para devolver glória a E, possivelmente, o senhor das comunicações entre tantos mundos, usando o nome
Portugal. Como o povo brasileiro é generoso, deu um novo destino à saga desse pobre que mais lhe agradou no momento, gargalhou, gargalhou e gargalhou mais ainda, des-
rei. Por aqui ele virou encantado pelas artes das devoções mágicas e intricadas do sa vez terminando cantarolando: águas, águas e águas. Partiu para fazer mais uma
catolicismo popular. Em Canudos, ganhou até as bênçãos do Bom Jesus de Antônio ligação. A cidade que nasceria como centro de governo precisava de mãos e cabeça
Conselheiro. Já Dom João VI transladou uma estrutura oficial todinha da capital do femininas.
reino, Lisboa, para a então colônia, em 1808. Isso pelo mar e por tabela cozinhou em Antes de prosseguir na saga sobre a fundação da Cidade da Baía, vamos ter que fa-
banho-maria as duas geopotências da época (Inglaterra e França) livrando-se das zer uma pausa em um ensinamento que pertence à cosmogenia dos povos chamados
pressões em dose dupla. Ou seja: se olharmos para essas histórias podemos pensar nagôs. No início dos tempos, após a criação do mundo e dos seres que passam a nele
que mexer com essas terras bota tudo do avesso. Magia é isso, suas majestades. habitar, formou-se um conselho de governo. Mas quem passou a integrá-lo foram ape-
Em 1549, proclamado governador-geral, Tomé de Souza ergueu oficialmente a Sote- nas os deuses. As iabás (o sagrado em forma feminina) não foram convidadas, mas se
ropólis, também chamada de Cidade da Baía. Adoro essa última denominação porque tivessem prestado atenção, os aborós (divindades que assumem o gênero masculino)
mostra quão privilegiada é esta cidade, escolhida para ser entreposto e, portanto, teriam visto um arquear discreto de sobrancelha da Senhora das Águas Doces, Oxum.
elo, nas andanças de Portugal por suas possessões nos cantos do mundo então co- Passam-se dias, meses e anos desse governo totalmente masculino. E tudo come-
nhecido. Na América, os portugueses só pegaram uma, mas logo a de dimensões con- ça a dar para trás: a vida não se manifesta em sua plenitude. As flores são as primei-
tinentais, ora pois. Se para celebrar feitos portugueses como esse, Camões fez com ras a desaparecer; as árvores frutíferas não conseguem chegar ao estágio de renovar
Os Lusíadas a sua versão da Ilíada, nós, baianos, filhos legítimos ou adotivos dessa as folhas. Até os nascimentos e, consequentemente a renovação da humanidade,
Cidade da Baía podemos escolher tantas e tantas odes para celebrar a nossa terra cessaram de ocorrer. Ficou tudo seco, feio, sem brisa ou água correndo.
e com recursos muito próprios. Nem é preciso imitar os moldes dos colonizadores, Desesperados, os deuses do conselho foram até o pai de todos, Olorum, que ob-
como ocorreu na saga do casal Catarina Paraguaçu e Caramuru. Quem conhece deter- serva tudo da distância da sua transcendência como regente de algo mais complexo
minados trechos da história de Pocahontas fica com a certeza de que a semelhança que é o universo. E antes que o debate se prolongasse ele fez apenas uma pergunta:
entre John Smith e Caramuru não pode ser apenas mera coincidência. Isso só reforça “Oxum está nesse conselho?”
como as narrativas no campo do simbólico com criatividade são para quem sabe. E Epifania. Problema, enfim, revelado. Oxum recebeu o convite para integrar o conse-
não tem exigência de antiguidade: é contemporâneo, é barroco, é modernista, antro- lho, que também lhe pediu desculpas. Primeiro, a deusa resolveu dar um tempo para
pofagista ou tudo junto e misturado. que os seus irmãos sentissem o que fizeram e que entendessem que não há socieda-
de sem participação de toda a sua diversidade.
Vários milagres de um povo Que história e que lição! Ela ensina sobre governo, cidadania, divisão de habilidades
Caetano já mandou o aviso de que nem ateu aguenta esse baque de renunciar e consequências da exclusão e muito mais que podemos extrair dessas filosofias
totalmente à magia, porque afinal de contas quem transita pelas ruas da Bahia vai altamente qualificadas e sedimentadas na narrativa da voz, a oralitura. Esse recurso
presenciar milagres aos montes: Sabe que os deuses sem Deus/Não cessam de bro- permite deixar tudo ainda mais belo com um som ou sorriso de quem sabe contar
tar, nem cansam de esperar/E o coração que é soberano e que é senhor/Não cabe na histórias, como faz Nanci de Souza Silva, mais conhecida como Ebomi Cici de Oxalá,
escravidão, não cabe no seu não/Não cabe em si de tanto sim. uma griot que temos a alegria de ver atuar em plenitude.
De alguma forma é uma convergência a Jorge Amado que, olha só, cantou, em Bahia
de Todos os Santos – Guia de ruas e mistérios, a bola de quem era o dono do chão Filhas e filhos das águas
dessa cidade fervilhando poder e potência de interligação entre tantos mundos: Nzila, A senhora das águas e dos governos compreendeu o destino daquela cidade esco-

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parece, assoviando: ”Não mexe comigo que eu não ando só...”
lhida para ser entreposto por meio das artes de visualizar o que está para acontecer,
A Cidade da Baía só festeja espada se for a vinda de Nkossi ou Ogum, essas real-
e que domina bem. Até então, aquele território vibrava nas redes do canto de outra
mente capazes de defender um povo que teve a força de convocá-los para deixar suas
encantada e celebrada pelos povos que chamavam a baía de Kirimurê. Não tardou
terras de origem e continuar por aqui para protegê-lo. É necessário muito amor entre
para ser forjada a aliança entre as forças de nomes diversos, mas conectadas em um
mulheres, homens e os divinos para se operar uma saga com essas proporções. Por
mesmo ethos: Janaína, Mãe D´Água, Oxum, Dandalunda, Kayala e Iemanjá.
isso sobra beleza em profusão para quem se dispõe a traduzi-la nas mais variadas
E o Senhor dos Caminhos gargalhou de novo. Como havia pensado antes que o pen-
linguagens. E disso vem mais uma certeza: quem não se rende a uma cidade dessas
samento ganhasse forma, sua Cidade da Baía ia ficar cada vez mais potente. Para
não tem preparo para entender os milagres de fé.
expor seu plano nem precisou dizer muito, pois Oxum arqueou a sobrancelha em en-
Saudações mais uma vez, mestre Caetano.
tendimento absoluto e “aceite”. Ela seria a mãe dos filhos da cidade nascida com vo-
cação de abrir as portas para o vai e vem pelos caminhos de tantas potencialidades.
Esse acordo entre deusa e deus chegou aos ouvidos, pensamento e coração de ou-
tro bardo, cantador, poeta arteiro e versado em entender, mas não contar tudo sobre o
mistério; apenas o que é preciso saber para sentir. E foi então que Gerônimo compôs
É d´Oxum e se juntou a Caetano na trilha sonora de Tendas dos Milagres, na versão
para a TV do texto produzido pelo outro aprendiz de feiticeiro: Jorge Amado.
Nessa cidade todo mundo é de Oxum/homem, menina/mulher/Essa cidade irradia
magia... No seu canto-poesia, Gerônimo diz muito sem precisar entrar no campo do
segredo, porque artista não precisa comunicar fundamento. Não há necessidade de
racionalizar. Só dar corda para a roda girar.
Como dizia Jaime Sodré, o professor-potência, o que Gerônimo fez foi um oriki. Este
canto versa sobre as alianças mágicas traçadas nas águas receptoras de mistérios
não à toa chamada, em português, de Todos-os-Santos. Os lusitanos pensavam estar
no controle, mas os povos donos da terra se aliaram aos recém-chegados de forma
compulsória. Estes grupos e mais dos que viriam depois, forjaram uma aliança que só
deu maior peso a essa consagração da baía, e por extensão à cidade que se abriga às
suas margens, a todos os sagrados possíveis.
Tomé de Souza não viu e nem ouviu, mesmo porque esse tipo de encantamento não
chega para quem só pensa no poder para dominar e causar dor. Já a Cidade da Baía
não escuto a toada do colonizador. Fingiu que entendeu, mas não se dobrou. Aceitou
o título de Cidade-Passagem, valiosíssimo, mas em outros sentidos, ora, ora. Tanto
que Tomé não aguentou. Partiu depois de muito pedir a seu rei, João III, que usou um
tempo que pode ser definido como uma pirraça para autorizar o retorno do seu servo.
Tomé não entendeu a cidade que fundou porque não tinha recursos para pisar no ter-
reno das artes poderosas que dobram reis sem fazer alarde. Já o povo da Cidade da
Baía, esse foi ficando cada vez mais escolado, preparando um levante aqui e outro ali.
Não deu sossego a poderosos variados, inclusive os “da terra”. E isso tudo, ao que

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

20 21
AGO
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· JULiANA · THiAGO · PAKAPYM · CRAVO NETO · SARAH · PONTE DO CRUSH · BORGÓN · KÁTiA ·
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EURiCLÉSiO · CAMiLA · ROBERTA · WENDELL · MAX · L8 · PELOURiNHO 1973 · ZUMVi · LENON · GUY
· LiMA · FRAZÃO · GABRiELA · VíTOR · CLEiDiANA · LADEiRA DA MONTANHA · BAUER · RAiANE ·
BRENA · MOÇAMBiQUE · WESLEY · TENiLLE · SAMUCA · SANDRO · PAULA · ÁLVARO · NíLSON ·
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· AMANDA · TiAGO · BONO · PATRiCK · MOEMA · FRANKLiN · VAGUiNER · SÃO JOAQUiM · iNGRESiA
· FABiANA · EVANiLTON · ÂNGELA · CLAUDiUS · MARiANA · CORRÓ · GOLi · TOM · LAROYÊ

22 23
24
25

Foto: Tom Correia


Prosas
MARCUS BORGÓN
GUSTAVO RIOS
CARLOS BARBOSA
RITA SANTANA
LIMA TRINDADE
KÁTIA BORGES
FLÁVIO VM COSTA

26 27
O PRIMEIRO
ENTARDECER
filósofos todos pareciam querer nos incutir. Ele pôs a mão nas minhas costas, e disse, com
fumacento hálito de Hollywood: “não leve tão a sério”. Boa forma de amenizar o estrago que
vinha fazendo. Se a vida é um sofrimento sem trégua, o suicídio é a única saída viável? Eu
para Juliana Braga ficava bolando perguntas capciosas apenas para lhe chamar a atenção. Mas nem sempre tinha
a ousadia de fazê-las.
Cresci com um pendor para a penumbra, para me esgueirar pelos cantos. Uma discrição que
beirava a ausência. Preferia o cercadinho da minha casa à convivência com os outros meni-
***
nos. Ocupava o tempo lendo o que me caía nas mãos. Alguns quadrinhos, revistas de fofoca,
enciclopédia Barsa. Eu havia adquirido uma ilustração genérica e um conhecimento apenas
Um colega engajado me convidava para umas reuniões políticas num barzinho do Campo
superficial, até entrar para a faculdade. Eu ainda ignorava as profundidades.
Grande. Certa feita, me arrastou para uma passeata. Ao dobrarmos o Forte de São Pedro,
senti um braço me envolvendo o pescoço. Tentei disfarçar, temia que me considerassem um
***
alienado. Desci a Avenida Sete quase alheio aos manifestantes. O tédio, sobre meus ombros,
aumentava de peso a cada passada. A turba que clamava por Diretas Já virou no Sulacap e
Barba disforme e camisa aberta. Aspecto de perene enfado. Indivíduo culto, entediado com
pegou a Carlos Gomes. Segui em frente. Sentados sob a sombra da estátua, mendigos repe-
as demandas de sobrevivência, até que é comum. Como se o cuidado com a aparência e o
tiam o gesto do poeta. Subi a rua Chile. Aquela modorra, aos poucos, foi se desfazendo. Largo
desvelo intelectual fossem concorrentes. E inconciliáveis. Seu estilo remetia aos botecos
do Pelourinho. Turistas sorridentes, meninos descamisados. Rua Direita do Santo Antônio,
de esquina, borracharias. Ou a qualquer outro ambiente de macheza em estado bruto. Quando
um samba em harmonia com o toque do berimbau. Enfim, o tédio se soltou de mim e des-
abriu a boca, estremeci na cadeira. Oratória persuasiva, instigante. Uma gravidade ponderada
ceu a Ladeira da Água Brusca. Alguém me disse que às vezes o via na estação da Calçada,
e imponente. Até os mais insolentes ficaram intimidados. Em tom monocórdico, explicou o
aguardando o trem. Ao lado de gente que não protestava, não tinha tempo para isso. Lembrei
conteúdo da disciplina e as formas de avaliação. Até então, para mim, Filosofia não passava
da aula de Filosofia no dia seguinte. O único brado que retumbava em meu peito juvenil.
de uma matéria ornamental. Obrigatória, porém dispensável para o exercício do jornalismo.
Aquela voz cavernosa, curada – depois fui saber – no uísque e no cigarro, reverberava em
***
minha cabeça. Por timidez, alguns professores buscam um ponto imaginário no fundo da sala.
Eu preferia acreditar que ele olhava para mim. E a turma, testemunha daquela aula particular.
Ausente de todas as outras matérias, fui alertado pelo coordenador para os riscos de
Um dia, tomei coragem e o indaguei sobre essa visão negativa do mundo que aqueles
reprovação e jubilamento. Lancei uma frase do Kraus: “os alunos comem o que os professores

28 29
digerem”. E segui, deixando-o com uma interrogativa cara de cu. cansaço. Tantas braçadas e mergulhos. Subidas e descidas. Idas e vindas. Respiração suspensa.
Apneia. Corpos liquefeitos. Dois rios que confluíam e corriam para o mar. A água salgada cicatri-
*** zando as feridas. Os mistérios das profundezas abissais. Um mergulho sem volta.
Os meninos desmaiados ao meu lado. A mulher, emburrada. Ele colocou uma fita do Djavan,
Eu esquadrinhava os adágios de Erasmo de Rotterdam, porque o professor o mencionara, para fazer média com a patroa. Às vezes me olhava pelo retrovisor, mas eu desviava. Ainda na
quando senti alguém pousar a mão no meu ombro e apertar com cuidado. O livro escancarado praia, me revelou que fora contemplado com uma bolsa de doutorado na Alemanha. Viajaria em
sobre a mesa. Ele disse apenas “muito bem”, e dirigiu-se ao setor de devolução. Na volta, puxou duas semanas.
a cadeira e me perguntou se eu havia conseguido encontrar o que buscava. A bibliotecária pediu
silêncio. Sugeri que fôssemos para a cantina, mas fui surpreendido com uma oferta de carona. ***
“Quem não tem destino aproveita o caminho”. Ele adorava soltar frases com sentido nebuloso.
Quando eu ia descer do carro, ele me segurou pelo braço. Gelei. Perguntou se eu não queria dar Dias depois do passeio, encontrei um disco do Caetano sobre a minha cama. Minha mãe falou
uma chegada em Arembepe, “num fim de semana desses”. Procurei voz e não encontrei. Confir- que um rapaz o havia deixado com a vizinha. A capa trazia um carimbo: INVENDÁVEL – AMOSTRA
mei, meneando a cabeça. Entrei em casa flutuando. Minha mãe me puxou pelos pés e me trouxe GRÁTIS TRIBUTADA. Na contracapa, uma seta feita à caneta apontava para a segunda música do
de volta para o chão. Ameaçou me internar, caso eu continuasse com mania de levitação. lado A. Era um recado, presumi. Aquela música trazia alguma mensagem subliminar, um bilhete
Somente no final do semestre, quando o tempo instável de junho contraindica qualquer evento que ele não quis escrever. Arrastei o aparelho de som para o quarto, em respeito ao horário da
praiano, ele resolveu marcar o bendito passeio. Pouco depois das nove, ele apareceu, dando duas novela. Dias Gomes e Janete Clair eram santos que minha mãe cultuava com fervor. Ouvi várias
breves buzinadas. Ao cruzar o portão, minha alegria se esvaiu: uma mulher ocupava o banco do vezes aquela canção. Cada vez, uma interpretação diferente, uma nova descoberta. O contra-
carona. No banco de trás ainda havia duas crianças. Era um programa de família. Nem nos meus baixo pulsante embalava minhas divagações. Nem sei dizer as outras músicas que compõem o
mais cáusticos acessos de pessimismo eu poderia aventar uma hipótese daquela. Passei a bolachão. Eu só colocava o lado A, deslizando a agulha diretamente para a segunda faixa.
viagem num estado de quase catatonia. Ao chegarmos à praia, me senti um joão-bobo murcho. A
nuvem cinzenta sobre o piquenique da família feliz. ***
Tarde avançada. O professor me chamou para dar uma volta. Atravessamos as dunas que es-
condem a aldeia dos hippies. Grupos de cabeludos compartilhavam baseados e despiam-se de Meses mais tarde, um colega de curso, cujo pai era radialista, me contaria que as gravadoras
suas sebosas vestes. Caminhamos até uma lagoa mais deserta. Sem a menor cerimônia, ele ti- enviavam os discos com aquela seta para indicar a faixa que deveria ser executada. A chamada
rou a sunga e se jogou na água. Imerso até a cintura, perguntou se eu ia ficar só olhando. Respirei “música de trabalho”, que visa entrar na programação a fim de tornar-se um hit. Lembrou, inclu-
fundo e desci o short. Procurei deixar, também, meus temores pelo chão. sive, que deixara um LP Cores Nomes com a vizinha, de brinde para mim.
Mergulhei, e continuei embaixo d’água até encontrar suas pernas. Duas colunas que escalei, “Ela não entregou pra você?”
vagarosamente. Atravessei a floresta de pêlos. Trilhei o relevo da barriga. Ele me puxou pelos ca-
belos. Não tive coragem de abrir os olhos, apenas senti o gosto amargo de nicotina me invadindo
a boca. Mergulhei, e decidi ficar submerso até quase perder o fôlego. Ao retornar à superfície,
havia anoitecido. Ninguém mais me fazia companhia, apenas a sinfonia dos grilos e o coaxar dos
sapos. Mergulhei. Optei por mergulhos curtos. Me aproximando lentamente, qual um golfinho. A
cada subida, a lagoa crescia. O professor era uma imagem fugidia, distante. Eu nadava, nadava,
MARCUS BORGÓN
e ele cada vez mais longe aparecia. Mergulhei. E ao voltar à tona, percebi que o professor havia publicou textos em jornais, sites especializados em literatura,
saído. Me observava, sentado numa pedra. Sorrindo, como se debochasse da minha agonia. e coletâneas de contos. É autor da novela O pênalti perdido

Mergulhei tantas vezes, que já não distinguia mais se ainda mergulhava ou apenas me recor- [P55 edições, 2016]. Pratica auto-exorcismo durante os jogos
da Ponte Preta. Aprecia os avanços da ciência em busca da
dava do mergulho anterior. Ou ainda projetava novas engolfadas. Meu corpo franzino acusou o
expansão da consciência.

30 31
Dali a pouco desceriam à praia para ver os fogos de perto, era a ideia. Quem sabe
conseguissem, champanhe sob o braço, pés marcando o asfalto quente, o Porto da Barra
logo à frente. Dezembro em seu último dia. Recomeço. Rute tentaria mesmo exausta.
Desde que descobriu as fotos no celular dele, se “reinventava”. Foi o termo usado pelo
analista. Então, fodia. Com outros, outras, às vezes muitos. Com o analista rolou duas
vezes, o idiota de pince-nez e tudo, a tarde se esticando além da conta. Ela bebera um
tanto.
Não adiantou: quando encarou a Avenida ACM, saindo do consultório, chorava. Foi a

Chuva
primeira vez que desejou a chuva. Pouco importava a avenida, as pessoas sem rosto, a
canção tonitruante das ruas. Queria se livrar daquilo, a certeza de que nada havia muda-
do. Seguia firme para o abismo.
Só lhe restava tentar novamente. E seria naquele dezembro.

pra dois
Daí que a encontramos no dia trinta e um, na varanda de seu apartamento a encarar
sem ânimo o Farol; a grande marcha branca em direção ao mar seguia logo abaixo. O ma-
rido parecia não saber. Ou fingia. Acabara de sair do banho. Sempre a mesma indolência,
os gestos vagos, havia pouca vontade naquilo, era certo. Avançava com as amenidades
de sempre; suas frases se perdiam na dura neblina das horas. Era o mesmo fantasma.
Manteve assim por muitos anos; manteria até o dia seguinte. Quando acordaria sob o sol
do meio-dia para encontrar seus amigos na Ribeira.
“Vou encontrar o Sidinei”, ele dizia, ou Pedro, ou Afonso. Os nomes mudavam, eram
muitos. A intenção, não. Rute sabia.
O tempo caía como pétalas, enquanto isso. E não havia beleza naquilo apesar da poe-
sia na frase. Só ela parecia enxergar.

***

Juntos há vinte e tantos. Nem um nem outro poderá dizer que algo os arrebatou no
princípio. A inércia. Foi comodidade, aflição, o medo da entrega. Tudo acontecendo numa
noite ruidosa e suja, num daqueles quiosques da pracinha do Imbuí. Rute saía de um re-
lacionamento difícil em que havia perdido muito mais que seu tempo e sua autoestima.
Fora o tipo de relação em que nada poderia ser apreendido – ainda caminhava sobre
escombros.

32 33
Daí, o medo. Um pouco de sexo casual com estranhos (alguns nem tanto), além da- Nos últimos doze anos ou mais, o que a valia a pena era a noção de que nada daquilo

quela fatigante rotina de viagens ao litoral e saída com amigos, em sua maioria casais. ruiria. Tê-lo como marido parecia o certo, a indispensável calmaria. Para ele, a esposi-

Sentia-se digna de pena. nha-em-casa lhe agradava. Enquanto pegava umas putas na rua (a tal foto no celular) e

Foi numa dessas saídas que a apresentaram a Jonas. Parecia um sujeito alegre, do saía com amigos, sempre divertido, um homem de bem. O piadista.

tipo piadista e bonachão. Era metido com política, coisa sobra a qual nunca conversava Foi quando Rute viu as tais fotos no celular dele, as putas. Jonas ressonava largado

com ninguém, ao menos publicamente, além de ter ombros largos e uma barriga comum no sofá. Foi numa segunda. Rute ligou para o número gravado, escutou as verdades.

aos que já haviam passado dos quarenta. A mesa havia sido arranjada de forma a fica- “O gorducho paga bem”. O que ela poderia lhe dizer, enfim?

rem lado a lado. Os amigos ao redor os secavam com os olhos numa tola expectativa. No dia seguinte, resolveu testar outras posições no divã. Tentou ignorar o jeitinho

Funcionou. Depois de um tempo, beijaram-se e prometeram um reencontro para o dia afetado, as ponderações de sempre. O tal pince-nez, surreal. Mas até isso havia se es-

seguinte (e tudo correria bem, dentro dessa lógica maçante). gotado. O sabor da aventura tinha a mesma medida do desgaste, o sonho corroído. Não

Quando se deram conta, moravam num quarto-e-sala no Dois de Julho. Fingiam se só com o analista, mas com os outros e as outras: não queria daquela forma.

amar de verdade. Tudo seguia o fluxo. Quieto, sem nenhuma intensidade. A convivência
muda, presa aos projetos futuros, o acúmulo trivial de objetos sem préstimo. Um novo ***

apê, quem sabe, mas nada de filhos. E a coisa não passava disso: ambos mergulhados
no escuro da sala, tomando o café em goles suaves. A novela. Não era o momento, contudo. Evitaria pensar nos erros, Rute na varanda encarando a

Foi mais ou menos quando se mudaram para Barra que Jonas começou a sair com Baía. Tomou a dianteira e o convidou. Pediu proximidade; vem cá, vamos ver juntos os

mais frequência. Mas sem ela. Havia sempre um baba no antigo bairro (Ribeira), um ami- fogos daqui de cima, o Porto tão lindo; vamos ver tudo de nossa varanda-a-beira-mar.

go promovido na corretora de seguros, um aniversário-só-para-homens, mas numa boa e Vamos refazer os passos. Depois a gente desce, quem sabe, mais um casal na marcha,

sem sacanagens. Falava dessa forma, e ria; Jonas cada vez mais distante. o monstro de mil faces abarrotando o asfalto, da ladeira até o morro do Cristo. Chegando

Quanto mais ela ficava só, mais as coisas se tornavam vazias que o habitual. Ela se à Ondina, fácil.

acostumara ao vácuo das tardes, havia largado o emprego a pedido dele. Tinha tempo Nessa hora, bocados de luz atravessaram as cortinas, junto com um vento sorrateiro

de sobra. Vivia de sobras. e frio. Rute lembrou da chuva; não era hora praquilo, porém. O lance era outro. Reconci-

Rute cruzava a cidade a esmo. Longas caminhadas pelas ruas do Centro, pelo Corredor liar, apesar de tudo.

da Vitória, o sonho burguês enclausurado em bunkers de vidro e fumaça. Na Carlos Go- Então o chamou novamente. Sorriu para ele. Mas aquele foi um voo curto. Desabaria

mes, ela costumava ser mais lenta, olhava as fachadas tacanhas, a rua estreita, seus novamente. Jonas não escutou seu pedido, sequer a olhou. Sentado no sofá, ele mexia

monolitos. no celular, umedecia os lábios. Amanhã sairia com “os amigos”, certeza.

Muitas vezes ela parou na Cruz Caída da Sé, a tarde febril, esporas de luz atingiam A ela só restou desejar o milagre: a tal chuva sobre o Farol. Pois talvez só a chuva

seus olhos. Os sacizeiros a cercavam, os mendigos e seus olhos famintos. O Comércio pudesse salvar a mulher que ainda caminhava sobre escombros. E que tentava sorrir,

logo abaixo cintilava por conta. Ela gostava daquilo. Jonas continuava a chegar tarde afinal, movida pelo doce esquecimento daquilo que nem mais ódio era.

em casa. Muitas vezes bêbado. Outros perfumes. Foi assim no aniversário de casamen-
to, no dela, no dele. O carnaval sempre o encontrava no Gandhi, ela entenderia, ele e os
amigos; era tipo ritual, tradição.
Na cama, eram dois corpos estranhos que pouco se encontravam. Trepavam sem von- GUSTAVO RIOS
tade, não se suportavam mais.
Rios [Salvador, Bahia] é autor de Allen mora no térreo
Jonas cada vez mais longe.
(Mariposa Cartonera) e O Amor é uma coisa feia [7le-
A cabeça dela cheia de porquês.
tras]. De poesia, lançou o livro Rapsódia Bruta – po-
Então as perguntas de sempre. A crise e o pilates. A cartomante e o rivotril, às nove. emas e outras brutalidades [Mariposa Cartonera].
O analista foi indicação de uma amiga. Às terças, Avenida ACM. Um imbecil. Também participou de várias coletâneas: Tempo Bom [Ilu-
minuras], Soteropolitanos, As Baianas [Casarão do
*** Verbo] e Revista Confraria [Confraria do Vento].

34 35
Camila carrega no ombro direito uma tatuagem de sereia com rabo de satanás. Cir-
culava quase sempre de blusa regata, o que tornava possível ver parte da sereia e, a
depender da largura da alça, até mesmo a tatuagem por inteiro. Minha banca de salga-
dinhos fazia parte de seu roteiro diário aqui na Faixa de Gaza, apelido que um professor
colocou neste amontoado de vendedores por entre os pavilhões de aula. Quase uma

SEREIA
menina, ela costumava ficar por aqui de papo com colegas enquanto devorava uma em-
panada, e se agitava o suficiente para eu afirmar com segurança que, além do rabo de
satanás, a sereia usa óculos e cabelos curtinhos. Do mesmo jeito que a Camila.
Tomou chá de sombra. Não aparece por aqui desde que o semestre começou.
Então, repare que já faz um tempinho, isso, né? Você não é a primeira pessoa que me
pergunta por Camila, como se eu tivesse alguma intimidade com ela... Camila é minha

COM RABO freguesa, apenas, ou era, mas possui uma simpatia extensiva, sabe? Por isso mesmo
se notou logo quando ela perdeu a paz, assustada com qualquer barulho, esmorecida.
Também, o clima ficou agitado por conta das eleições pra presidente, sabe como é, uns
e outros falando alto, grupos estranhos fazendo manifestações aqui no campus de On-

DE
dina, de vez em quando um bate-boca, puxar conversa ficou difícil, nunca se sabia, como
ainda não se sabe, a pedrada que podia vir como resposta. Mas a Camila murchou rápido
demais. E depois sumiu.

SATANÁS
*

O que você faz aí atrás da cortina?


“Não estou atrás da cortina.”
Oxe, você está atrás da cortina, sim!
“Nada disso adianta. Ele sabe que estou aqui.”
Ele, quem, pelamor de Santa Dulce?!
“Olhe lá fora.”
Mas há tanta gente na rua...
“Então, repare melhor.”
(E porque não havia árvores na calçada fronteiriça, dava pra ver o rapaz encosta-
do ao poste, olhando fixamente para a janela da casa onde a moça se postara atrás da
cortina recolhida num dos cantos).
Ora, mas é o filho de Alcina. Que é que tem o rapaz?
“Tá me espionando, me esperando...”
Como é que você sabe? Ele pode estar esperando uma carona... Sei lá.
“Não, ele tá me seguindo.”
Como seguindo? O rapaz mora aqui na rua. É filho de gente conhecida, frequenta

36 37
a igreja e tudo o mais. te, as ocasionais tardes de sábado começaram a ser canceladas pela mãe dela, sempre
“Esses são os mais perigosos!” havia um motivo novo, e eu senti que estava sendo dispensado. Então, deixei de lado a
Deixe disso. O rapaz pode estar interessado em você. Rua do Céu e seu colchão de nuvem e fui cuidar de minha arte. Até que me contaram do
“Não seja inocente. Você sabe que não se trata disso. É outra coisa.” sumiço das duas, mãe e filha.
O quê, pelamor de Deus? A Liberdade podia ser uma empresa de ônibus que fazia a mesma linha todo dia,
“Quer mesmo que eu diga? Quer?!” como se pichou em muro no tempo da ditadura. Como também podia ser uma calça
Como você sabe o que ele quer? velha, azul e desbotada, como apregoou a propaganda. Podia até ser uma arma quente,
“Ele mesmo me disse, gritou pra todo mundo ouvir.” mas só se fosse de tanto atirar... Dizem que a liberdade é o bem mais precioso para o
Não quero ouvir, não quero ouvir! ser vivo, dizem. Mas a verdade é que ninguém nasce na liberdade, ninguém. Muita gente
“Ele e os amigos dele são fascistas, entende?” pode pensar que vive na Liberdade, pensar que vive... Desculpe aí, eu embaralho os tem-
Não acredito que você acha que esse rapaz tá lá fora por causa de política, não pos e os temas... Rua do Céu, Liberdade, levantadinho do chão...
acredito.
“Antes fosse, mas é coisa mais rasteira e tenebrosa.” *

* Tudo isso ainda é muito recente. Mas não há mistério, há surdina. Porque não se
trata somente da Camila, há mais estudantes sumidos do campus. Boa parte entrou em
Você sabe o que é nascer na Liberdade? Eu também não, nasci no interior. Mas depressão braba, outros desenvolveram doenças estranhíssimas, muitos desistiram,
nascer na Liberdade deveria ser algo próximo a “nascer na liberdade”, não? simplesmente, e houve os que sofreram perseguição virtual e física das mais odiosas.
Lembro quando cheguei aqui para estudar no Central. A gente precisava apresen- Ou porque faziam oposição ao presidente eleito, ou por ostentarem pele escura, ou por
tar carteirinha de saúde na matrícula. E juntar uma abreugrafia. Abreugrafia! Veja o tipo questões de gênero, ou por conta de religiosidade, que no fim das contas sempre agrupa
de preocupação que se tinha, então, na área de saúde pública. E a estudantada recorria alguns desses outros temas. E isso aconteceu também com professores, viu? Houve
ao posto de saúde da Liberdade pra tirar o atestado. Era uma aventura sair do Campo quem reagisse etc. E houve quem cedesse e preferisse sumir do mapa, procurar outras
Grande, ou da Piedade, atravessar Nazaré, subir o Barbalho e esticar até a Liberdade vias de sobrevivência ou luta.
numa arabaca de Pero Vaz. Precisava ver nossa cara de pau ao dar o endereço residen- O quadro geral pode até sugerir um copo de liquidificador cheio de ingredientes, pron-
cial: Rua do Céu, 35, ou 18, ou 44... A gente nem sabia onde ficava a Rua do Céu e sequer to pra vitaminar, só que não, está pior do que no período da ditadura militar: o absurdo
se dava ao trabalho de antes andar um pouco por ela pra verificar se o número existia. normalizado. E vai piorar. Isso não é calmaria, é melancolia. Tá certo... Reconheço que
Ora, os servidores do posto sabiam de cor e salteado que era gaiva nossa, patacoada melancolia é uma forma de seguir resistindo, mas a situação vai piorar.
de estudante. Rua do Céu, Liberdade. Escrevi uma letra de música com esse título, mas Então, tudo aqui agora parece calmo, esse espaço urbano privilegiado, um campus
isso é outra história. universitário aberto, frondoso, arejado... Aproveite, pois não vai durar muito. O objetivo
Pois era lá que Camila morava com a mãe. Dizem que era um sobrado, mas isso está posto e é nítido: já dá pra ver prédios residenciais e comerciais subindo no lugar
passa uma falsa ideia do local. Era uma casa de dois pisos, espremida entre outras desses pavilhões de aula. Ou ruínas, embora duvide disso, pois não deixarão de aprovei-
residências humildes, com aquele famigerado portãozinho de ferro plantado na base de tar o terreno para aumentar suas fortunas.
uma escadinha de concreto para dar acesso ao segundo andar. Passei algumas tardes Aqui deixou de ser espaço de resistência pra Camila, talvez ela consiga em outro lu-
de sábado na Rua do Céu, naquele levantadinho, quando a Camila não estava. Sabia pela gar, em outro momento. Eu mesmo vi essa garota sendo perseguida até o ponto de ôni-
mãe dela do engajamento da menina em movimentos sociais de defesa das minorias, bus da Adhemar de Barros, cercada por um grupinho de fortões de camisetas amarelas,
LGBT e mais que fosse. Ela era empolgada com a universidade, com os faróis do novo a ouvir torpezas, tipo, vou lhe foder toda, vou lhe ensinar a gostar de macho, você vai
mundo em que mergulhava... Hummm, faróis do novo mundo... Bem, fato é que, de repen- aprender a gozar num caralho, vou arrancar na gilete esta sua tatuagem, filha de satã!

38 39
E mais outras ameaças vis, coisas que estão na lei como crimes, mas que atualmente
dizem ser “exercício do direito de expressão”.
Lamento, mas preciso vazar, tenho que recolher equipamentos e guardar ferramentas.
Não, não, vai piorar, é no que acredito. Em vez de campus, vejo um deserto pantanoso
sem possibilidade de canto de sereia com rabo de satanás.

CARLOS BARBOSA
é jornalista e bancário aposentado e tem livros de poemas e de
ficção publicados. Nasceu no sertão do São Francisco e veio
para Salvador, em 1974, estudar no Colégio Central. Residiu
em vários bairros da cidade, entre eles, Aflitos, Politeama, 2 de
Julho, Santo Antônio Além do Carmo e Vila Laura. Formou-se na
UFBA. Morou e trabalhou em Feira de Santana e Brasília. Pisou
uma vez em solo estrangeiro, quando visitou Lethem, na fron-
teira Brasil/Guiana. É pai de Maíra. No mais, resiste e insiste.

40 41
OGÓ
Ser imortal é insignificante;
exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte;
o divino, o terrível, o incompreensível, é se saber imortal.

O Aleph
Borges

Orfeu, por que não me esperas? O que há contigo, não percebes a minha fadiga, o meu
estado de apatia, a incompletude do meu processo, à revelia da minha vontade? Não
quero estar atrás de ti, não quero ser a tua sombra! Aqui, te abandono; aqui, sigo a minha
Solidão. Quero ser dona de minha própria história. O destino é meu. Estou tão combali-
da e fraca, trêmula diante dos labirintos toscos da Morte. Insegura quanto ao que sou
agora, que espécie de ser eu sou, se atravessei os subterrâneos e agora volto à vida.
Ainda me desejarás, ainda serei possuída por ti? Serei a mesma e quererei o mesmo de
antes? Sentirei desejos? Sinto medo, Orfeu. As mulheres da Cidade são verdes, frescas,
tenras, suas carnes não experimentaram a fealdade e o terror de estar entre os mortos;
estão vivas e jovens. Seus corpos não foram atravessados pelo tempo e pelo abandono,
no profundo dos oceanos mais sombrios. Está tudo tão escuro, meu amor! Por onde me
levas? Enganaram-te os Deuses? Quanta escuridão testemunham meus olhos! E tu ape-
nas caminhas, Orfeu! Como se estivesses sem mim! Como tantas vezes, apenas olhas
para ti. Narciso! Tu não me vês!

42 43
Orfeu seguia adiante, caminhando à frente de Eurídice, determinado a encontrar a luz,
pois não queria arriscar o olhar em direção a ela; fora proibido pela grande Deusa. Se *
olhasse para trás e a visse, em meio às trevas, a perderia para a Morte novamente. Se
ele olhasse para trás, penetraria mistérios e vislumbraria aparições vedadas ao huma- Orfeu era homem das encruzilhadas. Talvez, fosse filho daqueles moradores do Pe-
no. Veria os mistérios de Eurídice e não se pode penetrar, jovem amante, o invisível de lourinho, apagados do lugar, como se nunca tivessem existido, num processo violento,
uma mulher. Seguia determinado, rijo. Adoraria estar ao seu lado, segurando a sua mão e brutal e de relocação forçada. Saíram de onde sempre viveram para terras mais ásperas.
apoiando o seu corpo combalido. Eurídice parou, pois já não suportava seguir os passos Numa clareira da memória, lembro de ter entrado por uma porta estreita no Pelourinho,
daquele homem e gritou: Olha para mim, tirânico egoísta! Orfeu estancou e segurou a quando me deparei com um terreiro redondo, circular, onde muitas portas se abriam com
cabeça, em agonia. Fora atingido no cerne de sua vaidade, afinal, estava naquele lugar crianças correndo, mulheres lidando com roupas, comida e árvores que davam boas som-
terrível, por ela. Largou os braços em desistência, em entrega e, como se pensasse no bras e frescor ao lugar. Eu estava lá e vi, numa daquelas crianças, o nosso Orfeu. Ali nas-
que ouvira, após algum tempo, voltou-se desesperado e olhou nos olhos de Eurídice, que ceu e cresceu bonito, negro, músico com voz de suavidades. Sorriso largo, gargalhada
esvaneceu como nuvem. espalhafatosa que sacudia o corpo inteiro. Filho dileto de Deuses e Deusas. Sentia-se
dono de poderes, como se pudesse mudar o movimento do mundo e não exercesse o seu
* destino, a sua força. Mas que poderes? Era apenas um mortal! Apenas um menino negro
do Centro Histórico da Cidade e poderia ser mais um nas estatísticas. Lembro também
Passei longo silêncio. Apenas ouvia as mulheres do lugar que me traziam pergami- que havia Dona Santa em seu sobrado de assoalhos, seu santo Antônio no oratório, copo
nhos, partituras, relatos, ervas, histórias; ouvia diálogos entre mulheres. Eu era toda de água fresca do filtro de barro, janelas de imensidão, e o seu envelhecimento. Quem
audição e mutismo, enquanto velhas peles caíam sucessivamente e me via em carne sabe, fosse avó do nosso Orfeu? Quem sabe ela, um dia, teria lhe dito: Orfeu, a vaidade
viva, exposta aos vermes, às moscas, à Terra. Uma mulher me trouxera uma ânfora que ainda te mata! Ou você entalha essa natureza, como o velho Pandini faz com a madeira,
trazia Dionísio, entre sátiros e homens vermelhos com paus imensos, soberbos, retos, ou você se perde, meu filho. Ele me veio em sonho e me deu esse recado, trazia o ogó
grossos e de glandes palatáveis. A mulher me ofertava a bebida, feita de raízes mágicas que era para não haver dúvidas. Está me ouvindo, meu filho? O menino correra desatina-
e eu caía em sonhos profundo, em êxtase. O cântico sagrado das mulheres me trazia do, assustado. E antes que descesse a escada, vira dona Santa lá embaixo, esperando
de volta do transe. A bebida acendia regiões do cérebro e me fazia viajar por outros por ele, tranquila. Você me ouviu, Orfeu? O menino parado ali, no alto da escada, sem ter
universos. Ela me servia o Tempo e me olhava em silêncio, enquanto eu, destituída de pra onde correr, assentiu com a cabeça. Ubiquidades o acompanhariam por toda a vida
corpo, era apenas luz, centelha solta no universo. Reencontrei com meus mortos e os e, naquele instante, descobriu que manteria sempre um diálogo com mundos estranhos.
mortos da Cidade que me contavam segredos e curas. As anciãs me envolviam em um O menino chorou no colo de Dona Santa e tudo ficou no quintal das coisas esquecidas.
grande círculo, em que giravam dançando, ensinaram-me delicadezas e refinamentos,
antes apenas intuídos. Rudimentos e apreciações da Justiça. Tornei-me intransigente *
ao barulho. Aperfeiçoei a sondagem da natureza humana. Aprendi a olhar e dançar com
espelhos, mas os nomes eram outros; os nomes eram-me dados em sonhos e eu os Nas calçadas, o abandono se perpetuava. Pessoas morriam a caminho de casa, sem
guardaria em segredo. Coube a mim o mistério do mundo. O meu próprio nome foi-me retorno, petrificadas em seus gestos, risos, suspiros. Correntes de ar advindas dos
dado em sonhos, quando eu era iniciada na solidão de pequenos quartos. Vi-me pintada, subterrâneos traziam a maldição, numa espécie de Vesúvio invisível que massacrava a
vi-me sem pelos, vi-me nua. Longos tempos fui tratada, às margens do rio. Uma outra Cidade. Eram cinzas tóxicas que penetravam os pulmões, ossos e o corpo, enquanto o
cidade me sequestrava, uma cidade de iniciação e primórdios. Mulheres que sempre me sangue, em combustão, explodia. Estávamos sem ar. Mais uma vez, em nossas vidas,
visitaram em sonhos estavam ali. Durante todo o antes, estive perdida, sem exercer não conseguíamos respirar. O contato daquela experiência química com a atmosfera
intuições, poderes, sem cuidar da minha cabeça. marítima e com a história de sangue do lugar provocava o estado pétreo dos corpos.

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O medo rondava nossas pupilas. Comíamos investigando se ainda havia paladar, olfato os caminhos giraram diante de si naquele momento. Orfeu não hesitou e mergulhou,
e sinais dos sentidos. Uma anosmia coletiva impedia de sentirmos o odor dos mortos, sabendo que caminharia para a Morte. Não se pode dizer o que viu durante a travessia,
que grassava em toda parte. As gentes eram tomadas pela demência, fraqueza do pen- nem das almas silenciosas remando sob às ordens de Caronte que, por sua vez, obede-
samento, tibieza que rondava o estado das pessoas, cuja musculatura já não compor- cia a uma mulher negra e muito velha. Ela apenas olhava para o jovem e permitia a sua
tava os ossos, o medo, o esqueleto, o desespero e a consciência. Buscava-se oxigênio. ida, batera em sua cabeça com o ibiri. Enquanto a barca o levava, o amor se firmava em
Matava-se por oxigênio. Aviões de oxigênio cruzavam horizontes, invadiam os céus e se Orfeu. A Anciã, determinara a proibição: só olhe a moça na Claridade, se a quiser viva.
chocavam no mar.
*
*
Agora, estamos todos aqui, no Dique do Tororó, e Orfeu observa os Orixás e a Cidade.
No Passeio Público, um homem negro e carpido pelo tempo, cego, muito forte e bo- O Povo de Santo desce dos morros e chega de toda parte; entoam cânticos sagrados,
nito chupava mangas amarelas, maduras e doces que caíam das árvores diretamente vestidos de branco. Os Orixás, reunidos ali, movimentavam-se, dançam de acordo com o
em suas mãos, como se ele ordenasse a queda. Era Tirésias com o seu bastão, cum- chamado dos atabaques, dos cânticos. Fez-se um grande círculo com o povo dos terrei-
primentando os frequentadores do lugar, inclusive as deidades anfitriãs, explicando às ros, em torno do dique e suas águas negras se abriram e dali nasceram lírios brancos.
divindades forasteiras o que acontecia ali. Os deuses de outras terras resolveram pedir Orfeu cantava com seu povo e dançava, em transe. Ele sabia que seria a hora de rece-
permissão aos Deuses da Bahia para se mudarem temporariamente para a Cidade. A ber, enfim, Eurídice. Seria o momento de cantar também à Cidade da Bahia. A melodia
Baía é um Golfo! Deuses caminhavam pelo Campo Grande e se sentavam nas escadarias enternecia os ponteiros dos relógios e as batidas do coração. Na Paralela, os trens do
do Teatro Castro Alves, tomavam toda a arquitetura do lugar, entristecidos. metrô paravam lentamente e todos ouviam aquele canto de amor. Todas as divindades
que estavam visitando a Cidade estavam lá, compondo com a multidão aquele espetá-
* culo. No centro do Dique, todos os Orixás em dança e em cânticos ofertavam a cura. As
encruzilhadas entrecortavam-se em rituais, oferendas e sacrifícios de cabras, bois e
Aristeu era policial negro, de seus 35 anos. Conheceu Eurídice no Pelourinho, enquan- carneiros, que eram entregues ao Deus de Orfeu. Os lírios se abriram e surgiu Eurídice,
to ela fazia aula de dança com Zebra. Namoraram durante poucos meses e ela rompeu a numa barca. Agora, ela já havia cumprido sua sina e cantava. De mãos dadas, cantaram e
relação porque não estava apaixonada. Inconformado, ele a seguia e aparecia nos luga- permaneceram. Já não haveria o excesso de mortes e de dores. O ar fantasmagórico da
res frequentados por ela e seus amigos. Depois, veio Orfeu e pronto. Naquele dia, Aristeu Cidade lentamente desaparecia e a vida exercia-se novamente. Muitas voltas o Tempo
acordara decidido a resolver as coisas com a ex-namorada. Chegara ao estacionamento deu sobre si mesmo, mas tudo aconteceu numa Segunda-feira.
do Dique do Tororó e começou a caminhar em busca da moça. Ela costumava ficar com
livros sob a sombra das árvores e ensaiar com a turma do teatro. Lá estava ela. Orfeu
descera do ônibus e de longe avistara aquele sujeito que vivia no pé de Eurídice. Logo RITA SANTANA
hoje! Ele saíra de casa tão feliz; diria tantas coisas a sua namorada sobre a monta-
[Ilhéus, Bahia] é poeta, contista, atriz e professora graduada
gem que estavam ensaiando, os planos sobre morarem juntos de uma vez, os planos.
em Letras [UESC]. Em 2004, foi vencedora do Prêmio Braskem de Li-
Acelerou os passos para livrar Eurídice daquele cara porque ela gesticulava e parecia
teratura para autores inéditos com o livro de contos Tramela, além
exaltada, apreensiva. Orfeu gritou seu nome para que ela o visse e acenou. Preferiu de participar de diversas coletâneas, publicou vários livros de
andar tranquilamente, dançando, como era seu modo de andar. A mochila estava aberta poesia: Tratado das Veias [2006], Alforrias [2012] e
e a agenda caiu. Intencionou apanhá-la, quando ouviu o tiro. Eurídice caindo nas águas Cortesanias [2019].
escuras do dique, enquanto Aristeu fugia. O filho das encruzilhadas se erguera! Todos

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À Deriva
Não estou certo do dia que aconteceu. Com pouco mais de dezessete anos, eu já desperdiçara
O pior é que eu nem sabia seu nome. Ou onde morava. Parece mentira, mas eu só a percebi
alguns meses antes do convite para a orquestra. Até então, era tudo um vazio. A mais completa
falta de vontade. Talvez, reflito agora, eu já a tivesse visto antes. Talvez ela apenas não usasse
ainda os dreads que eu gostava tanto. Outra coisa que reparei nas festas de finais de semana da
vizinhança: ela só se ligava em caras mais velhos. Eu logo imaginei a razão. Eles tinham grana.
Eram o tipo de caras que andava por aí ostentando cordões de prata no pescoço, bonés coloridos
com óculos de sol nas abas e bermudas e camisas de marca.
Eu e meu irmão poderíamos não ser bonitos nem malhados como os cantores de pagode que
arrastavam a mulherada nas festas de largo e Carnaval. No entanto, se analisássemos de perto
a estampa do pessoal da nossa rua, acredito que ficávamos bem acima da média. Nosso ver-
uma chance com a Orquestra Jovem da Bahia. Por bobagem. Seria o meu primeiro concerto. Nós dadeiro problema, e não tenho dúvidas quanto a isso, estava no fato de nossa mãe julgar que
ensaiávamos às tardes. E, adianto logo, a culpa, se culpa houve, não foi minha. Nós brincávamos precisávamos mais de comida e livros do que roupas e calçados. O resultado disso era que meu
sempre. Gostávamos de provocar um ao outro. Brincadeira de homem. Não era somente eu ou guarda-roupas era quase todo das peças que não serviam mais no meu irmão.
ele, mas todo o grupo, inclusive meu irmão. Do que me lembro, o nome dele era esquisito. O final Eu vivia esfarrapado. Como eu poderia atrair a atenção feminina daquele jeito? Então, essa
parecido com uísque. Tocava trombone e tinha esse nome que poderia ser polonês ou russo. Eu foi a segunda motivação para dizer a Joel, meu irmão, que eu aceitava o convite de substituir o
não sabia ainda como se chamavam todos. Estávamos com apresentações marcadas na Europa ex-clarinetista da Orquestra Jovem, encontrado morto após sofrer um assalto a poucos metros
e eu precisaria tirar meu passaporte se desejasse mesmo acompanhá-los. A possibilidade de de casa. Eu precisava desesperadamente ganhar uns trocados para comprar uma bermuda e uma
atravessar o oceano me animava. camisa que tinha visto no shopping e, desse modo, conquistar a garota dos dreads.
Meu irmão viajaria pela terceira vez só naquele ano. Eu entrara nessa por influência dele. Não A bobagem aconteceu depois do ensaio. Os músicos recolheram as partituras, guardaram seus
que eu quisesse imitá-lo. Mas a mãe ficou toda besta quando ele apareceu na tevê. As amigas instrumentos nas caixas e desceram as escadas de um prédio baixo no Pelourinho. Eu e o gordo
dela se achegavam da janela de casa e comentavam a roupa chique que ele estava vestindo e do trombone ficamos para trás, falando de futebol. Ele era ligeiramente estrábico e a gente vivia
como, mesmo parecendo um ratinho ao andar na nossa rua, de uma hora pra outra, ali na tela, fazendo piada um com o outro. Eu estava sentado com o clarinete entre as pernas quando ele se
parecia gente, sem se intimidar na presença daquele pessoal importante do jornal. virou para mim e disse:
Eu nunca pensei em imitá-lo. Éramos muito diferentes. Enquanto ele adorava cordas, eu pre- “Olhando assim, seu instrumento aparenta ser bem grande.”
feria sopro. Enquanto ele se isolava em nosso quarto por horas e horas e horas, ensaiando ou Eu ri.
estudando partitura, eu em pouco tempo aprendia as músicas e estava livre para jogar bola no “Pra não negar a cor.”
campo, beber cerveja ou conversar com a turma nas rodinhas perto da linha de trem. “É o que dizem. Rá, rá, rá!”
Talvez a única coisa que nos igualasse era o fato de, àquela altura da vida, não termos nenhuma “Já tocou um desses?”
menina interessada em nós. A maioria dos caras do nosso bairro era bastante precoce em relação “Rá, rá, rá… Não, não. Desses, não.”
a namoro e sexo. Alguns deles, inclusive, comentavam ter transado até com mulheres casadas. Eu me levantei e fiquei bem de frente pro gordo.
Eu era tarado por uma menina com dreads descoloridos e olhos de um verde capazes de tornar “Quer experimentar?”
qualquer um pedra. Se eu não sabia ainda qual era meu lugar no mundo, que finalidade dar à vida, Ele estendeu o braço e me apalpou até que ficasse duro. Tirei o “clarinete” pra fora da calça e,
meu corpo sinalizava com todas as suas forças quais eram as suas necessidades mais dramáti- enquanto ele o segurava e hesitava em levá-lo à boca, o maestro entrou na sala. Tentamos disfar-
cas, mais urgentes. Eu pensava nela enquanto tomava meu banho, quando estava só no quarto, çar, mas não teve jeito. Uma brincadeira boba e eu estava fora. Não cheguei a ganhar nem o pri-
quando assistia televisão ou ensaiava. Pensava em como seus peitinhos deveriam se encaixar meiro salário, que estava mais para ajuda de custo, mas serviria para eu alcançar o meu objetivo.
nas palmas de minhas mãos, na cor de seus mamilos, em sua barriguinha sexy, no formato do Não sei a justificativa que o maestro deu ao meu irmão, se falou toda a verdade. Para minha
seu umbigo, no quanto sua bunda deveria ser firme e ao mesmo tempo macia. E pensava, sobre- mãe eu contei que ele não ia com a minha cara e cederia o lugar para algum protegido, possivel-
tudo, repetidamente, em mim agarrado em suas tranças, beijando-a ao mesmo tempo em que mente até alguém da própria família.
trepávamos.

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“Essa gente branca gosta de perseguir gente como nós”, ouvi ela repetir mais de uma vez às No começo do nosso turno houve uma movimentação razoável. Assim que a zoada vinda do
amigas. palco começou, o trânsito foi diminuindo gradativamente até parar de uma vez.
Os dias passavam e eu via meu irmão sair toda tarde para seu ensaio na orquestra. Deixei Se eu não era considerado um cara dos mais comunicativos, Ferreira se passaria por defunto
de ir ao campinho e de frequentar as rodinhas dos amigos. Não saía mais de casa. Sem Europa, numa boa. Senti sede. Nós éramos obrigados a ficar em pé como dois idiotas naquele portão.
sem bermuda e camisa novas e sem os olhos verdes da menina de dreads, não disfarçava minha Um tédio. Resolvi comprar uma latinha de cerveja. Meu parceiro não gostou da ideia. Eu não me
sensação de fracasso. Preocupada, minha mãe tentava me animar. Ela saía para o trabalho e eu, importava se ele me delataria pro encarregado e eles não viessem a me contratar depois. Minha
sempre com a cara voltada pro aparelho de televisão, mal me despedia dela. garganta estava seca. Seria somente o que meu dinheiro poderia pagar: uma latinha.
Aos poucos, fui me acostumando com aquela rotina sem sentido e já começava a curtir meu Quando passei ao lado do palco, vi uma multidão hipnotizada a olhar para um ponto específico
isolamento. Na ausência dos meus familiares, fechava porta e janelas da casa e mantinha apenas entre os músicos. Parei, abri minha cerveja e dei um gole. A atenção de todo o público se concen-
a luz do televisor no ambiente. Quando não acompanhava um programa de auditório idiota ou um trava no cantor da banda. O sujeito, para meu espanto, deveria ser uma das pessoas mais feias
filme, eu dormia ou me masturbava. do mundo. Era magro, desajeitado, não se vestia bem, o cabelo aparentando ter sido cortado
Não lembro o dia da semana exato, mas uma noite minha mãe chegou do trabalho e me contou por um serrote cego, a boca com dentes pontudos e amarelos como os de um animal, os braços
que conseguira um bico de porteiro para mim. Era coisa temporária. Seria para uma empresa pres- pálidos cobertos de pelos muito pretos e os olhos injetados de vermelho. Surpreendentemente,
tadora de serviços. Eu teria de me apresentar em determinado final de semana. Se eu me saísse os demais componentes da banda representavam o seu oposto: tinham cara de filhinhos de papai
bem, talvez me contratassem. A princípio, recusei. Ela não baixou a guarda e me martelou com que foram criados com leitinho morno pra não queimar a língua. Eram fortes, saudáveis, típicos
a proposta até quase me enlouquecer. Acabei concordando. Provavelmente o dinheiro não daria estudantes de escola particular com pele macia e dentes brancos. Havia um baixista, um bateris-
para comprar a camisa e a bermuda de marca, mas quem sabe ao menos uma delas? ta e um guitarrista. Todos os três bonitos de maneiras diferentes. Contudo, as pessoas estavam
A firma ficava na Calçada. O prédio era achatado e sujo. Havia um pátio logo na entrada. Estava encantadas justamente por aquele cantor de aparência medonha e voz possante. Que misterioso
repleto de kombis com logotipo na porta. Deram-me um uniforme e disseram para eu calçar um magnetismo ele exercia! Observei a plateia mais atentamente e notei uma grande quantidade de
par de botas. Eu e mais sete outros homens entramos numa das kombis e o motorista nos levou lindas meninas gritando, dançando e chorando ao mesmo tempo. Sem perceber, mesmo achando
embora. A cada parada desciam dois de nós e um novo par assumia seu lugar, exibindo nos rostos a música pobre, comecei a balançar o meu corpo da mesma maneira que os demais balançavam
uma mistura de tédio e cansaço. Creio que eu era o mais jovem, mas ninguém aparentava ter os corpos deles, olhos presos nos passos e gestos teatrais do vocalista. Terminei minha latinha
mais de vinte e cinco. de cerveja e continuei a dançar, tomado pela certeza de que não voltaria ao meu posto e não mais
O motorista encostou num portão lateral da Concha Acústica e mandou eu e o Ferreira, um precisaria de bermuda e camisa de marca para conquistar o amor de ninguém.
negro forte, com cabelo raspado de milico e bigodinho, descermos. Logo apareceu o encarregado,
outra dupla ocupou nosso assento, o motorista assinou um papel e partiu. O encarregado nos
explicou que nossa função seria controlar a entrada e saída de veículos, que haveria um show
naquela noite e não deveríamos deixar nosso posto por nada.
LIMA TRINDADE
“Artista importante?”, perguntou Ferreira timidamente. [Brasília, DF] reside em Salvador desde 2002. Publicou o ro-
“Não que eu saiba. Vocês gostam de rock?” mance As margens do paraíso [Cepe, 2019] e a novela

“Odeio”, respondi. O retrato ou um pouco de Henry James não faz


mal a ninguém [P55, 2014], entre outros. Atualmente as-
“É uma banda nova. Tem uma música deles tocando no rádio. Se não me engano, fala de coca-
sina uma coluna de crônicas no site do jornal Rascunho.
-cola”, disse o encarregado com malícia.
“Coca-cola? É sério isso?”
“Sim.”
“Puta que pariu!”
“De todo modo, se fizerem seu trabalho direitinho, não verão o focinho de ninguém. É só abrir e
fechar o cadeado para os carros autorizados entrarem e saírem.”

52 53
Piloto trabalhava de carregador quando soube que havia vaga na Espada de Ogum. Nada mal
trocar carrinho de mão e peito nu por camisa de botão e salário de vendedor. João Baobá, compa-
dre de Tia Miúda, ficou de fazer a viração. Só faltava fé. Sem nunca ter tocado nota de cem, vivia
do troco das compras das freguesas. Entre barracas de toda coisa, aprendera que nem tudo tem

O
seu preço. Pouco doía a memória dos dias de fome. Da infância, só lhe vinha o mimo das vendei-
ras, desde que chegara com a mãe em São Joaquim.
Ajeitaram-se de primeira numa banca de caixotes, sob as bênçãos de Tia Miúda. Em poucos
dias, a energia do menino já explodia em mergulhos nas águas da Baía de Todos-os-Santos. O
mar se erguia ali feito milagre. No Boteco de Valda, na pequena orla alheia ao trânsito, era regra
conferir se os moleques estavam todos almoçados. Nunca mais faltou comida e tudo parecia cair

MEL
do céu. Peixe, fruta, feijão de caldo, até suco de caixa para dividir por três. Com o tempo, a mãe
passou a fazer esculturas, orixás, santos e pretos velhos, vendidas no Palácio de Oxóssi. Piloto
sentia que era hora de ir também para uma loja.
A Espada de Ogum pertencia a um português falador apelidado Bololó, conhecedor das folhas.

DO
Alguns até diziam ser estudado, doutor em botânica. Não seria tonto de recusar um pedido do
feirante mais antigo. E foi assim que Piloto descansou pela primeira vez os braços sobre um
balcão. Entre as paredes da loja, de onde avistava a rua que ia dar no ferry, sentia-se importante

MUNDO
de crachá: José Cândido. O problema é que não sabia ler. De alho a rosas, guiava-se pelo instinto
em um universo iletrado que resistia a desaparecer frente àquele outro, no qual Bololó consultava
livros sobre a origem das espécies.
“É fácil, caso não localize nas páginas, basta jogar no Google.”
Cândido olhava o compêndio de botânica, e a máquina sobre o balcão, sem se sentir no direito
de aprender. Nunca estivera próximo de um computador, assim de usar, de ter um seu, de se per-
mitir navegar ou mesmo tentar entender como se dava aquela navegação. Não saber ler nem era
um drama. O mundo lhe chegava pelas coisas. No que intuía, conformado, ser aquela outra forma
de leitura. Pois um peixe é um peixe, estando morto ou vivo, e não precisa ser lido ou escrito para
que se saiba se está podre ou se tem escamas. Do mesmo modo, imaginou lidar com as folhas.
Por cima da feira, as nuvens
Dias a fio, dedicou-se a associar cada espécie às suas forças, sentindo a textura entre os
Atrás da feira, a cidade
dedos, levando ao nariz os maços. Quando desafiado a entender, arrancava um naco e punha
Na frente da feira o mar
na boca, identificando na língua o que era insosso, azedo, amargo. Por dois meses, deu certo.
Gilberto Gil
Atendeu fregueses muito falantes. Alguns chegavam já anunciando a encomenda e não faziam
cerimônia quanto a procurar o que queriam por si mesmos nas prateleiras de folhas.
Até o dia em que a moça ruiva passou pelo passeio e ficou parada, olhando para dentro através
do vidro fosco. Era uma tarde de sábado, estava sozinho na loja. Torceu para que seguisse o rumo
do Palácio de Oxóssi, logo ao lado. Mas, após três voltas hesitantes, ela entrou e colocou uma

54 55
lista indecifrável em suas mãos. Enquanto olhava os itens desenhados em letra de forma, a me-
nina ensaiou uma conversa aleatória, dessas que se tem com os feirantes. Cândido virou a cara,
tentando parecer grosseiro. Talvez a reação a expulsasse. Mas logo viu que não desistiria fácil.
Reparou que tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado toda a noite, como se estivesse
chorando naquele momento.
“Estou com pressa, moço”, falou baixinho.
Seguia paralisado diante dela, certo de que não caberia em nenhum mundo que não fosse o de
antes. Falava com gente de outros lugares, inventava sotaques, zombava ao vê-los encantados
com as pimentas nos cestos, contritos diante dos pretos velhos. Precisava de um milagre. Foi
quando Bololó se materializou no umbral da loja. Vendo Piloto mudo e a moça que chorava, tomou
de chofre o papel de suas mãos e o leu em voz alta. Só então Cândido correu às prateleiras, enro-
KÁTIA BORGES
lando com rapidez os maços de folhas. [Salvador, BA] é jornalista, poeta e cronista. Doutora em Lite-
ratura e Cultura [UFBA], é autora dos livros De volta à cai-
“Não sabes ler, então? Pois, sim. É fato. Tens que estudar”. Testa franzida, Bololó disse, depois
xa de abelhas [As letras da Bahia, 2002], Uma balada
que a freguesa chorosa deixou a loja. para Janis [P55, 2009], Ticket Zen [Escrituras, 2010],
Não sentia pena do garoto, talvez até certa inveja. Porque era livre de regras e sabia o mel do Escorpião Amarelo [P55, 2012], São Selvagem

mundo como poucos. Que o gajo fosse alfabetizado como se deve ou nada feito, que voltasse a [P55, 2014], O exercício da distração [Penalux, 2017]
e A teoria da felicidade [Patuá, 2020].
ser carregador de feira. Cândido ouviu tudo, querendo e não querendo manter o emprego. Havia
passado adiante o carrinho de mão. O dinheiro, investiu na fatiota. Calça de tecido, camisa de
algodão, tênis de marca. Como haveria de ter volta?
Saúde é não pensar nas coisas. Deu de ombros. Conhecia o mal de se examinar inteiro. Assim
fizera o amigo de infância. Vira de perto a vergonha de se matar na feira. Neto, o pulador magistral
da Baía de Todos-os-Santos. Naquele dia, tudo se moveu intenso. O sol pôs cores nas frutas.
Fregueses ávidos, carregadores virando carrinhos nas curvas. Ali perdera a fé.
Nenhum dos seus se erguera muito, o céu é longe. Vendeu fatiota, montou banca de frutas.
De estudar, desconhecia lógica. Sandálias de dedo, peito nu, corpo suado. O pouco que tentou
se perdeu na escola pública, onde Pena o levou para estudar. Quando o padrasto foi morto numa
emboscada, Piloto recuou, deu meia-volta. Então sabia, sim, o “A” das coisas, desenhar em um
papel o próprio nome. Mas agora até o próprio nome, José Cândido esquecera.

56 57
Rumaram ele pra cima com tamanha força que o corpo rodopiou duas vezes antes de voltar
para os braços do pessoal. A criançada gritava enlouquecida enquanto os caras arrancavam a far-
da e lhe apertavam as calças na altura do pau. Batiam com a boina na bunda enquanto ele ficava
dependurado de cabeça pra baixo.
Jaime Anão só conseguia dizer por favor, pessoal, sou eu, sou eu, não façam isso comigo.
Tentei impedi-los.

UMA “Porra, velhos, parem com isso”.


Eu conhecia todo mundo desde pivete. Éramos coligados de roubar juntos os otários na esta-
ção da Lapa.
“Colé, Binho. Se saia. É parente seu?”, disse-me Juninho, visivelmente alterado.
“Ele não é parente de ninguém. Deixem de sacanagem.”
Juninho estapeava a nuca de Jaime Anão e me encarava com um olhar ameaçador.

COISA
“Faça a merda que quiser”.
Voltei para o bar e continuei a tomar minha cerveja.
Jaime Anão começou a chorar.

BONITA
“A sua é essa, né Juninho?”
Não se pode confiar na PM.
Jaime Anão andava pra cima e pra baixo com uma imitação de farda ajustada ao pequeno cor-
po, repassando as ordens dos policiais militares que tomavam conta de nossa área. A galera do
tráfico tinha sido expulsa, parece que correu todo mundo para os lados da cidade baixa.
Aderimos à nova ordem. Todo mundo precisa sobreviver. Eu entendo. Só que Jaime Anão gos-
tava desse negócio de ser piru dos homens. Isso ninguém perdoava. Não sei dizer o motivo, mas
ele caiu em desgraça com os PMs e o pessoal da rua se aproveitou. Os PMs assistiam, distantes
uns dez metros da cena. Gargalhavam, assobiavam, aplaudiam enquanto bebiam encostados nas
viaturas.
Jaime Anão ficou nu. Juninho cortava os longos cabelos dele com uma tesoura. Um outro cara
pintou a boca com um batom vermelho. Alguém apareceu com uma calcinha vermelha e uma pe-
ruca. Juninho esticou o pau de Jaime Anão e fez menção de cortá-lo com uma tesoura.
“Vai virar Jana, vou abrir uma buceta em você”.
A gritaria era geral e cada vez mais surgiam curiosos.
“Celular no bolso. Ninguém vai filmar nada”, dizia o tenente Rodrigues, que comandava a nossa
área.
Jaime Anão desistiu de resistir. Não emitia mais nenhum som. Vestiu a calcinha fio dental sem
qualquer resistência. Colocou a peruca, com um olhar vago. Botaram nele também um sutiã roxo.
Rebolou com o dedo na boca porque ordenaram. Desfilou porque ordenaram.

58 59
Por um momento achei que ele estivesse curtindo, até que percebi o olhar maligno. Eu já tinha
visto aquele olhar. A gente não andava mais pelos lados de Pernambués por causa daquele olhar.
Rumaram ele pra cima de novo. O corpo diminuto rodopiou outras duas vezes. Desta vez nin-
guém segurou. Ele caiu com um baque surdo no asfalto. Começou a ter convulsões. Todo mundo
correu. Os PMs arrancaram com as viaturas.
Em menos de um minuto, não havia mais ninguém perto dele. O corpo deu mais uns tremeliques
e ficou paralisado. Terminei minha cerveja e andei até ele.
Jaime Anão sorriu e abriu os olhos.
“Eles iam me matar, Binho.”
A boca sangrava. Percebi que faltavam dois dentes inferiores.
“Você é um bom ator. Vá pra um posto”.
Ajudei ele a levantar. Sua farda fora rasgada em pedaços. Não havia o que vestir. Tirei minha
camiseta branca e dei a ele. Ela o cobria todo.
“Vou no HGE”. FLÁVIO VM COSTA
Voltou duas semanas depois. Mancava com a cabeça enfaixada. Vestia ainda minha camisa [Salvador, Bahia] É formado em jornalismo pela Universidade
branca, encardida com manchas de sangue, um short verde de criança e chinelas. Os dias de Federal da Bahia, Flávio VM Costa escreveu os livros de contos
oficial acabaram. “Você morre quando esquecem seu nome” [Bissau Livro, 2020]
e “Caçada Russa” [Penalux/2016]. Mora em São Paulo, onde é
O pessoal falava com ele de boa. Aquilo tudo era passado. Eu bebia minha cerveja na mesa ins-
editor do UOL.
talada na calçada. É no bar que faço negócios, recebo encomendas e encontro os clientes. Jaime
Anão puxou uma cadeira e encheu seu copo. Como se a gente tivesse se visto ontem.
“Binho, você soube que o tenente Rodrigues foi preso?”
“É por isso que ninguém apareceu aqui hoje”.
Jaime Anão se guardou em silêncio. Pedi um rango pra gente. Comeu devagar. Lambeu os bei-
ços. Eu sabia que ele gostava muito de galinha ao molho pardo.
“Os meninos devem voltar hoje de noite mesmo. Mais tardar amanhã”.
Foi a minha vez de ficar calado.
“Não fique preocupado. Tá tudo certo”.
Juninho chegou no bar. Escolheu uma mesa lá dentro. Falava alto, cumprimentando todo mun-
do. Dava aquela risada que parecia relincho de cavalo. Devia ter roubado alguém com grana, ce-
lular bom. Só ficava alegre assim. Jaime Anão gastou um tempo, que parecia infinito, observando
cada gesto de Juninho. Era o olhar perverso, não o maligno. Era por causa dele que a gente estava
proibido de entrar nas Cajazeiras.
“Perdoar é uma coisa bonita, Jaime. Precisa ser muito homem pra isso”.
“Pena que nunca fui homem”.
Passamos a conversar sobre nossos negócios com a galera do tráfico.

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Lebara 1 63
SALVADOR ENTRE PAREDES

MÔNICA MENEZES
SARAH FERNANDES
(FOTOS)

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I.
uma nesga de mar é tanto para quem acostumou-se ao muro.

II.
vigésimo oitavo dia. vários dias sem escrever. vontade nenhuma de anotar qualquer coisa. mui-
to o que cuidar na casa. tarefas da universidade multiplicam-se. vou fazendo. vou vivendo. todo
dia um pouco. yoga, nem sempre. pilates, raramente. alongamento, às vezes, no final da tarde.
cada dia menos redes sociais. gostei tanto do conto “bliss”, de katherine mansfield, porém não
me embriaguei como fez virginia woolf após sua leitura. logo será meu aniversário.

III.
uma moça. duas moças. três moças. quatro moças. tantas moças, todas negras, sobem apres-
sadas, logo cedo, a ladeira do morro do gato. e descem no final da tarde, exaustas, após servirem
por horas a fio homens e mulheres de bem que defendem no twitter o distanciamento social, o
auxílio emergencial e dormem tranquilos em suas camas king size cobertas por lençóis de algo-
dão egípcio 400 fios.

IV.
anotações de leitura: aprender a perder; fazer da perda uma força erótica, afetiva, química;
servir-se da perda; fazer da perda laboratório, ganho; conquistar formas de uma tristeza alegre.

V.
quadragésimo primeiro dia. não arrumei o guarda-roupa. não organizei os livros. não atualizei o
currículo lattes. não li aquela pilha de textos. não comecei um novo ensaio. nem finalizei o antigo.
não iniciei um curso on-line. escrevi nenhum poema. sequer organizei meus originais. cozinho.
lavo. limpo. águo as plantas. vejo tv. ouço música. converso pelo whats. leio pouca poesia. na-
vego. como. durmo. acordo. alongo-me. tomo banho. escrevo estas notas. falo sozinha. danço na
sala cantando alto. choro às vezes. desisto outras. quase sempre tenho muita esperança.

VI.
nonagésimo quinto dia. manhãzinha, fui à rua, vi o mar e chorei.

VII.
na rua deserta, borboletas voam no esforço pela continuidade da vida. alheias às angústias e
medos, elas enfeitam a tarde. tão miudinhas. tão frágeis. verdinhas-translúcidas, amarelas-bran-
quinhas, livres e leves, elas dançam, elas giram, elas resistem, elas salvam a moça que assiste
a tudo sozinha do lado de dentro da janela.

66 67
VIII.
centésimo primeiro dia. abro as cortinas: azul, branco, verde, amarelo, vermelho. luz, luz, muita
luz, som, calor. minha melancolia não combina com a cidade.

IX.
centésimo octogésimo quarto dia. a vizinha parou de tocar a ave maria ao cair da tarde.

X.
MÔNICA MENEZES
tricentésimo nono dia. escrevo para habitar meu desespero.
[Lagarto, Sergipe] vive em Salvador há mais de vinte anos. É
professora de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da
XI. UFBA. Publicou os livros de poemas Estranhamentos [p55 Edi-
diante da janela: três árvores altas dispostas em triângulo, um pedacinho de mar ao longe ções, 2010] e, em parceria com sua filha, Sarah Fernandes,
entre as paredes dos edifícios, os micos saltitando nos fios do telefone, o ressoar do silêncio na Pequeno álbum de silêncios [paralelo13S, 2021]
ensolarada manhã de domingo.

XII.
cansaço. dores no corpo. dores de cabeça. perda de olfato. perda de paladar. tosse. febre. náu-
seas. medo. medo. medo. muito medo. a médica intensivista explica ao repórter que a falta do
kit intubação pode causar dores terríveis nos pacientes que necessitam de respiração mecânica.
por favor, desliga a tv.

XIII.
cinquenta por cento do pulmão comprometido. por que ele e não eu? por que não o prendi no
meu abraço? quem escutará os meus silêncios? quem me fará rir até chorar? om mani padme SARAH FERNANDES
hum. om mani padme hum. om mani padme hum.
[Salvador, Bahia]. É fotógrafa e designer. Tem fotografias publi-
cadas na antologia literária e fotográfica Profundanças 3 [Voo
XIV. Audiovisual, 2019]. Publicou em parceria com a poeta Mônica
domingo de páscoa e a moça do prédio ao lado saltou no vazio. não consegui salvar a moça. não Menezes o livro Pequeno álbum de silêncios [paraLeLo13S,
consegui salvar meu irmão. “é preciso construir-lhes um túnel – um túnel sem fim e sem saída”. 2021]. Mais: www.instagram.com/libelluleph/

XV.
equinócio de outono no hemisfério sul. dias e noites iguais. hora de florescer, mas para dentro.
aniversário. tempo de começar a recomeçar. quatro mil duzentos e vinte e nove mortos no país
nas últimas vinte quatro horas. inspira. expira. inspira. expira. devagar e sempre. tempo de apren-
der a acolher o medo.

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Esquinas
ARLETE SOARES
CHRISTIAN CRAVO
HUGO MARTINS
JULIANA NERI
THIAGO BORBA
VINÍCIUS XAVIER
HIROSUKE KITAMURA

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PELOURINHO, ANOS 1970
ARLETE SOARES

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ARLETE SOARES

ARLETE SOARES
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ARLETE SOARES

ARLETE SOARES
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ARLETE SOARES

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ARLETE SOARES ARLETE SOARES

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ARLETE SOARES ARLETE SOARES

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ARLETE SOARES

[Valença, Bahia] é fotógrafa e editora, aquariana e filha


de Iemanjá. Em Salvador, nos anos 1970, fundou o co-
letivo ZAZ – Design e Fotografia e depois de uma icôni-
ca viagem de Kombi da Europa ao Oriente criou a Corru-
pio, a primeira editora brasileira a publicar livros sobre
culturas negras. É autora de cinco livros de fotografia.
Seu acervo analógico e digital, de muitos sotaques e
tonalidades, tem cerca de 15 mil itens, capturados en-
tre os anos de 1968-2021. Mais:
www.instagram.com/acervoarletesoares

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MARIANA
CHRISTIAN CRAVO

NÃO HAVIA SIRENE DE ALERTA. ERAM 16H20 QUANDO AS BARRAGENS DA SAMARCO ROM-

PERAM E COUBE AOS PRÓPRIOS MORADORES ATERRORIZADOS DO DISTRITO DE BENTO RODRI-

GUES, EM MARIANA, AVISAR UNS AOS OUTROS QUE UMA AVALANCHE DE LAMA SE APROXIMAVA.

PERSUADIDOS REPETIDAMENTE PELA EMPRESA DE QUE AS BARRAGENS DE FUNDÃO E SANTA-

RÉM NUNCA FALHARIAM, ELES TIVERAM POUCOS MINUTOS PARA SE PROTEGER DA ONDA DE

QUASE 2,5 METROS DE ALTURA QUE MATOU 17 PESSOAS E FERIU OUTRAS DEZESSEIS. CERCA

DE 600 FICARAM DESABRIGADAS E, ATÉ ENTÃO, DUAS NUNCA FORAM ENCONTRADAS. SUAS VI-

DAS, APARENTEMENTE, NÃO VALIAM O PREÇO DE UMA SIMPLES SIRENE.

PATRICK BROCK

LUÍS
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FARPAS

CHRISTIAN CRAVO

SAGRADA GLÓRIA
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CHRISTIAN CRAVO
TENEBRIS
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DESENRAIZAR ESTAR

CHRISTIAN CRAVO CHRISTIAN CRAVO

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CHRISTIAN CRAVO
ALBUM DE FAMÍLIA

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FÁTIMA

CHRISTIAN CRAVO

[Salvador, Bahia] é um dos artistas brasileiros que mais alcançou reconhecimento nos
últimos vinte anos, tendo conquistado prêmios [APCA, Museu de Arte Moderna da Bahia e
Mother Jones International Fund for Documentary Photography] e realizado diversas ex-
posições individuais e coletivas [Throckmorton Fine Art, Billedhusets Galeri, Ministério da
Cultura em Brasília, Instituto Tomie Ohtake e Museu Afro Brasil, Witkin Gallery, na S.F. Ca-
mera Works Gallery, na Bienal Fotofest em Houston e no Palais de Tokyo em Paris]. Além
de contemplado com bolsas de pesquisa da Fundação Vitae e da Fundação John Simon
Guggenheim para sua pesquisa sobre a água e a fé, já publicou os livros: Irredentos, Roma
noire, ville métisse, Nos Jardins do Éden, Exú Iluminado, CHRISTIAN CRAVO [pela Cosac
Naify] e MARIANA. Mais: www.christiancravo.com
VÉU

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RITOS INQUIETOS É U M A S É R I E D E A U T O R R E T R A T O S E X P L O R A N D O I N Q U I E T A Ç Õ E S
LATENTES RESTRITAS DE FLUXO ENERGÉTICO NATURAL. O ENSAIO É A EXPRESSÃO

DA IMPORTÂNCIA DOS APEGOS AOS RITUAIS, QUE TORNAM SE AINDA MAIS NECESSÁRIOS

À S A Ú D E M E N TA L , F Í S I C A E E S P I R I T U A L E M T E M P O S D E R E S T R I Ç Õ E S D E M O B I L I D A D E E C O N TAT O

SOCIAL. EXPLORAR NOVOS RITUAIS A PARTIR DAS NECESSIDADES INTIMAS, ENERGÉTICAS

E C R I A T I V A S É U M D O S C A M I N H O S Q U E A A R T E N O S O F E R E C E E M T E M P O S D E C O N F I N A M E N T O.

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HUGO MARTINS HUGO MARTINS

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HUGO MARTINS
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HUGO MARTINS

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HUGO MARTINS

[São Paulo, SP] Atualmente vivendo em Salvador, tenho


formação em Design Gráfico. Durante a faculdade ob-
tive o aprendizado em fotografia. Minha sensibilidade
nas artes visuais e direcionamento são formados pelas
experiências com fotografia e design gráfico. Comecei
a fotografar em 2004, e encontrei na fotografia e nas
artes visuais a maneira de expressar o que diariamente
vivo no ambiente que me rodeia. Sou autor do fotolivro
ODÙ, resultado de longa pesquisa sobre o comércio,
cultura e relações do povo Negro em Diáspora na Fei-
ra de São Joaquim. Pesquiso atualmente as relações
entre apagamentos históricos, as lacunas e existên-
cias das memórias a partir da minha história ancestral.
www.hugomartinsfotografia.com

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AQUI, SÓ QUE LÁ

MAPUTO, MOÇAMBIQUE. 7500 KM DE DISTÂNCIA. NÃO NOS BANHAMOS NO MESMO MAR. E

AINDA ASSIM, NAQUELA CIDADE, TIVE A INUSITADA SENSAÇÃO DE ESTAR EM CASA. TÃO DIS-

TANTE, MAS AO MESMO TEMPO TÃO PERTO. ANDAR POR ALGUNS LUGARES DA CIDADE É VER PE-

DAÇOS DE SALVADOR, MAS EM OUTRA CONFIGURAÇÃO. PASSAR NA FRENTE DE UMA BANQUINHA

NA ESQUINA E SENTIR O CHEIRO DE ACARAJÉ, MAS COMER BADJIAS DENTRO DO PÃO. ENCON-

TRAR GAROTOS BATENDO BABA NO CAMPO DE TERRA. VER NAS PORTAS DAS CASAS MUDAS DE

ESPADA DE OGUM E DE IANSÃ. NESTA SÉRIE, TENTO TRANSMITIR A FAMILIARIDADE QUE SENTI

EM MAPUTO E AO MESMO TEMPO EVIDENCIAR SUAS PARTICULARIDADES AO ACRESCENTAR UMA

CARACTERÍSTICA FORTE DO POVO MOÇAMBICANO: AS CAPULANAS. SÃO CENAS QUE FACILMENTE

ENCONTRAMOS AQUI, COM UM TOQUE QUE SÓ PODERIA SER ENCONTRADO LÁ.

JULIANA NERI

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JULIANA NERI
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JULIANA NERI
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JULIANA NERI

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JULIANA NERI

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JULIANA NERI

[Salvador, Bahia] Nascida e criada na comunidade do


Nordeste de Amaralina, fotografa desde 2008. Histo-
riadora de formação acadêmica, sua produção artística
é inspirada no movimento surrealista, na Pop Art, e em
arte urbana periférica e flerta com o afrofuturismo. A
artista faz experimentações com equipamentos de bai-
xo custo, onde as limitações se tornaram um estímulo
para saídas criativas. Atua também com fotografia de
eventos culturais e institucionais e fotografia de rua.
www.instagram.com/nerijulianaa/

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THIAGO BORBA

#BLVCKSBTFLL – BLACK IS BEAUTIFUL NASCEU NA BAHIA, PORTA DE ENTRADA DOS NAVIOS

NEGREIROS NO BRASIL. ESSAS IMAGENS PROPÕEM UM OLHAR GENEROSO SOBRE O CORPO

NEGRO COMO FORMA DE REPARAÇÃO HISTÓRICA DA IMAGEM CONSTRUÍDA, NA MAIORIA DAS

VEZES, ESTIGMATIZANDO E MARGINALIZANDO ESSE CORPO, SILENCIANDO SEUS PODERES ES-

PIRITUAIS E FENOTÍPICOS QUE POR SUA VEZ PASSAM A TER SUA AUTOESTIMA COMPROMETIDA,

REFLETINDO O RACISMO ESTRUTURAL QUE FAZIA OS NEGROS NEGAREM A SUA PRÓPRIA IMA-

GEM AO “EMBRANQUECER” SUA EXISTÊNCIA PARA SE SENTIREM PERTENCENTES A UMA SOCIE-

DADE GOVERNADA PELA SUPREMACIA BRANCA. A COMPOSIÇÃO DE IMAGENS BUSCA REVELAR

A GÊNESE DO NEGRO, REUNINDO ELEMENTOS QUE APONTAM PARA UM LUGAR DE ORIGEM: A

NATUREZA, BERÇO DA ANCESTRALIDADE DOS CORPOS FOTOGRAFADOS. O TÍTULO DO PROJETO

É UMA REFERÊNCIA AO MOVIMENTO CULTURAL AFRO-AMERICANO BLACK-AND-BEAUTIFUL, QUE

ACONTECEU ENTRE AS DÉCADAS DE 1960 E 1970 NOS ESTADOS UNIDOS, DESCONSTRUINDO A

NOÇÃO INSTILADA PELO RACISMO DE QUE O FENÓTIPO NATURAL DO NEGRO É FEIO OU MENOS

ATRAENTE DO QUE O PADRÃO DE BELEZA EUROCÊNTRICO.

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THIAGO BORBA

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THIAGO BORBA

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THIAGO BORBA

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THIAGO BORBA

[Salvador, Bahia] Com formação em Marketing, come-


çou a trabalhar fotografia em 2006, quando mudou-se
para a Espanha e se tornou assistente de fotógrafos
como Alfonso Zubiaga e Silvia Paredes. De volta ao Bra-
sil, se estabeleceu em São Paulo, onde fotografou para
as principais revistas do país: Elle, Vogue, Cosmopoli-
tan, Glamour e QG. Ao retornar a Salvador, iniciou o pro-
jeto #BLVCKSBTFLL – Black is Beautiful. Já participou
de diversas exposições: Jeito de Corpo, em conjunto
com Caroline Lima, Corpo Presente no Espaço Paulista
de Arte em São Paulo, e também da mostra ‘Territori
Paralelli’, que reuniu trabalhos de 14 artistas brasilei-
ros em Milão. Sua primeira exposição individual, Hidden
Paradise, na Sunny Art Centre em Londres, contou com
36 fotografias da série #blvcksbtfll .

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ÁLCOOL, TABACO, AMOR, SEXO, FERTILIDADE. A POMBA-GIRA TUDO ISSO TRÁS. E TOMA
DE VOLTA, TAMBÉM. CABE A QUEM A CULTUA – OU MESMO APENAS OBSERVA SEUS PASSOS –
ESTAR BEM ATENTO A SEUS MEANDROS. NO ENSAIO “LEBARÁ – FEMININA FORÇA”, VINICIUS
XAVIER TRAZ ESTA POPULAR ENTIDADE AFRODESCENDENTE À MODERNIDADE, PORÉM, SEM
SEQUELAR SUA AURA DE PODER, MISTICISMO, FASCINAÇÃO E MEDO.

UM CORPO ENCERRADO EM UM QUARTO ESCURO É APRESENTADO AO MUNDO. O CALOR E O


AR PESADO PULAM DE DENTRO DAS FOTOS E NOS INUNDAM COM SEU MATIZ CLAUSTROFÓBI-
CO. A “MUSA” COR DE SANGUE FAZ “SELFIES” E NINA UM BEBÊ. TRABALHA, LUTA E AMA SEM
PRECONCEITOS. MOSTRA UM EMPODERAMENTO DO FEMININO, UM ASSUNTO MAIS QUE ATUAL. A
ESTÉTICA QUE NOS LEVA À POLÍTICA.

UM ENSAIO FOTOGRÁFICO QUE INCORPORA AO MUNDO CONTEMPORÂNEO TODAS AS POM-


BAS-GIRAS, TODAS A MULHERES QUE RECUPERAM O PODER ANCESTRAL DA “GRANDE MÃE”, DA
V Ê N U S D E W I L L E N D O R F. E M Q U E A D U A L I D A D E S E F A Z P R E S E N T E S E M M E I A S - P A L A V R A S . F E I T O
ESPELHOS. UMA DICOTOMIA QUE ESTÁ PRESENTE EM TODAS AS IMAGENS – E SENTIDOS. UMA
EXPOSIÇÃO EM QUE VINICIUS XAVIER ASSENTA O MÍSTICO E O PROFANO DE MÃOS DADAS À
IMAGINAÇÃO E À TRANSCENDÊNCIA. NOS COLOCA COM OS PÉS FINCADOS NA TERRA OU FLUTU-
ANDO NO ARE.

E O LEITOR TEM O PRIVILÉGIO DE ESCOLHER O SEU LUGAR.

GUY VELOSO

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VINÍCIUS XAVIER VINÍCIUS XAVIER

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VINÍCIUS XAVIER VINÍCIUS XAVIER

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VINÍCIUS XAVIER
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VINÍCIUS XAVIER

Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em


Antropologia, é colecionador de arte popular e música
popular brasileira em vinil. Fotógrafo autoral radicado
em Salvador, seu discurso visual propõe um encanta-
mento pela cultura popular afro-brasileira. Já teve di-
versos trabalhos premiados [Prêmio SESC Marc Ferrez,
Festival de Fotografia de Tiradentes, Concurso de foto-
grafia Bembé do Mercado], além de participar de expo-
sições no Memorial Pierre Verger da Fotografia Baiana
e no Festival de Fotografia do Sertão.
www.viniciusxavier.com.br

VINÍCIUS XAVIER

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Lebara 2
HIROSUKE KITAMURA

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CONHECI AS CASAS DE ENCONTROS AQUI EM SALVADOR NO ANO DE 2000. ANTIGAMENTE, ESTE TIPO DE CASA ERA MUITO FREQUEN-

TADO POR MARINHEIROS QUE DESEMBARCAVAM NO PORTO DE SALVADOR. ASSIM QUE ELES CHEGAVAM, IAM DIRETO PARA OS BREGAS

DA LADEIRA DA CONCEIÇÃO E DA LADEIRA DA MONTANHA PARA ENCONTRAR COM AS PROSTITUTAS.

HAVIA SEMPRE UMA RADIOLA TOCANDO FORRÓ E MÚSICA BREGA NAS ALTURAS PARA ANIMAR E/OU ACALENTAR OS SEUS FIÉIS

CLIENTES. ERA SOBRE ESTE EMBALO, GUIADOS PELOS CORPOS DAQUELAS PROFISSIONAIS QUE OS HOMENS VINHAM E PARTIAM EM

ENCONTROS IMEDIATOS E OBJETIVOS. ENTRAVAM, VIAJAVAM NESTE AMBIENTE E RETORNAVAM À SUA VIDA PURA E SIMPLESMENTE.

COM O PASSAR DO TEMPO, CASAS MAIS MODERNAS FORAM SURGINDO EM OUTRAS ÁREAS DA CIDADE, FAZENDO COM QUE AS AN-

TIGAS PERDESSEM SEU BRILHO E, COM ELE, BOA PARTE DE SEUS CLIENTES. FIQUEI INTERESSADO POR ESSAS ANTIGAS CASAS DE

PROSTITUIÇÃO DEVIDO ÀS MARCAS DE SUA HISTÓRIA, MUITO BEM REPRESENTADAS PELOS SEUS CASARIOS IMPONENTES E DECADEN-

TES. UMA HISTÓRIA CONTADA NAS PAREDES E/OU NOS OLHOS, ROSTOS, COSTAS, PEITOS, PERNAS, BUNDAS... DE SUAS CANSADAS

MORADORAS.

APÓS CERCA DE 15 ANOS EM QUE FREQUENTEI OS BREGAS, ELES COMEÇARAM A SUMIR E AGORA NÃO EXISTEM MAIS, POIS MUITAS

DE SUAS DONAS FALECERAM E AS PORTAS TIVERAM QUE SER FECHADAS. ÀS VEZES, SÓ ENCONTREI O RESTO DAS CASAS DESMONTADAS

POR CAUSA DA “REVITALIZAÇÃO” FEITA PELA PREFEITURA. ENFIM, NAS LADEIRAS NÃO EXISTE MAIS AMOR COMO ERA ANTES. SÓ RESTA

AGORA A MEMÓRIA EM IMAGENS AQUI APRESENTADAS.

HIROSUKE KITAMURA [OSKE]

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HIROSUKE KITAMURA
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HIROSUKE KITAMURA

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HIROSUKE KITAMURA

HIROSUKE KITAMURA

[Osaka, Japão] Oske foi criado na Tailândia. Queria ser


trompetista de jazz, não deu certo. Boxeador profis-
sional, não deu certo. Chegou ao Brasil em 1990 pela
Associação de Intercâmbio. Começou a aprender foto-
grafia em 1995. Era correspondente da Revista Latina
de música que circula no Japão. O seu trabalho mais
conhecido é sobre os bregas das Ladeiras da Concei-
ção e Montanha. Já fez exposições em vários lugares.
Circulava pela noite no underground soteropolitano,
mas atualmente perambula mais durante o dia na Ci-
dade Baixa. Além de fotografia, também produz vídeo.
www.hirosukekitamura.com

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Expediente
Criação, curadoria e edição
Tom Correia

Produção executiva
Mirtes Santa Rosa

Conselho editorial
Cleidiana Ramos
Mirtes Santa Rosa
Tom Correia

Projeto gráfico e diagramação


Junior Pakapym

Comunicação e mídias sociais


Camilla França
Pedro Gomes
Roberta Gonzaga

Revisão de Texto
Titivillus

Video
Agência Dudes

Site
Agência Ative

Realização
Fabiana Pereira Produções

Parcerias
Galeria Triângulo
Pau Viola Cultura e Entretenimento

www.laroye.com.br
Todos os textos não-ficcionais assinados por colaboradores
não necessariamente são alinhados à opinião da revista Laroyê.
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*Não é Diabo

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