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RIVIERA

Rodrigo Melo
A publicação deste livro deve-se em grande parte à amizade e à
generosidade de Marcus Borgón, Paulo Bono, Nárcia Bezerra, Zezé Barreto, Fabrício
Brandão e Francisco Correia.
Para Amaralina, Thalita, Eduardo, Márcia, Juliano e Murilo.
“Toda a juventude termina na praia gloriosa, à beira d’água, ali onde as
mulheres parecem ser finalmente livres, onde são tão bonitas que nem precisam mais da
mentira de nossos sonhos. ”

Louis-Ferdinand Céline

“A gente nunca esquece o que precisa esquecer. ”

Marcus Rey
CAPÍTULO 1

Era o final de uma tarde de domingo. O asfalto tremulava por conta do


mormaço e o céu rebentava em uma mistura de azul claro, cor de rosa e laranja,
enquanto o ônibus atravessava lentamente a Ponte Rio-Niterói. Sentado em sua poltrona,
Michel Rodrigues mordeu o último sanduíche de mortadela e pôs os olhos sobre a cidade
pela primeira vez. Lá estavam a Baía de Guanabara, os vastos e velhos prédios do Centro,
uma e outra avenida onde carros circulavam feito formigas apressadas. De onde estava,
tudo lhe pareceu bonito, de uma beleza quase sagrada, e ao mesmo tempo assustador.
Pensou nas coisas que tinham acontecido, meses antes, e em todas as forças que o
empurraram até aquele momento, e pensou também nos dias que viriam, de promessas
cumpridas, de longas trepadas e de um intenso e imperecível bem-estar. Além dos
prédios e das avenidas, assemelhando-se a um enorme presépio montado às pressas, aos
poucos ele viu despontar um morro e as luzes das suas casas e dos postes que
começavam a se acender. Michel não sabia que morro era aquele. Por esse motivo,
poderia ser qualquer um.

Minutos depois, de frente a um orelhão, envolvido pelo barulho e pelo


alvoroço da rodoviária, discou o número que havia decorado e para o qual ligara
inúmeras vezes antes. No quarto toque, alguém atendeu.

— Galeteria Wilson, boa tarde... — um homem falou.

Michel desligou. Pegou a mochila, colocou-a nas costas e caminhou até a


saída da rodoviária. Fez sinal para um dos táxis que estavam passando.

— Copacabana — disse para o motorista, um barbudo com a camisa


desabotoada até perto do umbigo. — Um hotel barato, de preferência.

— Não existe hotel barato em Copacabana — o barbudo respondeu.

— O mais barato que encontrar.


O sujeito fez um muxoxo, mas, enfim, o carro partiu, carregando em seu
banco traseiro o destemido Michel, arrebatado pela vastidão da cidade que se espalhava
ao seu redor: maior e mais frenética do que imaginara, mas que, de fato, existia, porque
estava bem ali. Um sorriso se abriu em seu rosto; e restos de pão, feito argamassa,
reluziram, cravados entre seus dentes.

Estranhamente, enquanto avançavam por aquelas largas e movimentadas


avenidas, por três ou quatro vezes Michel notou o olhar do motorista lhe esquadrinhando
pelo retrovisor. O que queria? Seu contentamento era tão aparente a ponto de infringir
algum tipo de lei?

Siga em frente, ó, contrafeito taxista — ele pensou —, uma vez que todo
homem tem direito à glória e estou prestes a alcançá-la. Se quisesse, poderia passar um
longo tempo falando sobre a pessoa que encontrarei, não no hotel para onde me leva,
pois já é tarde e a felicidade nos força a certas provações: uma admirável e encantadora
poeta de nome Sandra D’Angelo, ou simplesmente Sandy, como passei a chamá-la, uma
mulher de sorriso escancarado, costas encovadas e pernas roliças e muito grossas em
que, por memoráveis noites, alisei e rocei o meu pau. Foi o destino, se isso existir, o que
nos uniu — ela poderia ter escolhido qualquer lugar, mas estava justamente ali, passando
as férias naquela cidadezinha em que eu vivia, dourando-se sob o sol de praias desertas,
quando nos conhecemos. E então, taxista, naqueles dias que correram inabaláveis feito
um rio que vai de encontro ao mar, eu inesperadamente desbravei o universo, descobri
segredos e desvendei mistérios, me afundei até onde pude nisso que chamam de amor.
Alguém queria ver um homem feliz? Bastava olhar para mim, que levitava sobre o chão.

Porém, assim como por vezes é benevolente — Michel seguiu a pensar —,


descobri que o destino também pode vir a ser exageradamente mesquinho e cruel. Foi o
que aconteceu algumas semanas depois, quando as férias de Sandy como professora num
cursinho de pré-vestibular acabaram e ela subiu as escadas que a levaram àquele
miserável avião. Encostado à porta de vidro do minúsculo aeroporto, tentei me despedir,
levantando os braços o mais alto que conseguia, acenando feito um louco, mais um na
multidão. O avião decolou e aos poucos desapareceu naquele céu triste e nublado, o céu
que levou a vida para longe de mim.
Ainda mais desabitadas do que antes, as praias seguiam a se estender, e
ninguém, a não ser eu, vagava por ali. Lá estavam o coqueiro em que certa vez ela se
escorou, a jangada abandonada em que me pediu para fotografá-la, as pedras do velho
molhe em que certa vez nos sentamos e vimos a lua nascer. Nas madrugadas, sem sono
algum, a enxergava nas paredes do quarto, o meu inevitável e infernal drive-in: e ela se
divertia, enquanto conversava com as pessoas nos bares e nos saraus, na praia ou
ministrando as suas aulas no cursinho, e, à sua volta, todos aqueles homens, dezenas de
cafajestes que abriam portas, puxavam cadeiras, sorriam e diziam coisas terríveis, que
nunca deveriam dizer. O medo é uma companhia ruim, taxista, foi outra coisa que
descobri.

Não sei quantas vezes liguei para o número anotado num pequeno pedaço
de papel, o papel em que também havia um poema seu. Era sempre a mesma voz de
homem a atender:

— Galeteria Wilson — ele dizia —, não, amigo, não tem nenhuma Sandra
por aqui.

Procurei-a nas redes sociais, nos sites de namoro e de sexo virtual, conferi
fotos dos lançamentos e dos eventos literários. Milhares foram as ocasiões em que digitei
o seu nome no Google. Não a encontrei em canto algum.

Sim, acabei por tratar de arriscados, mas vantajosos, negócios com um


primo agiota e lhe pedi que não contasse nada para mamãe. Ela não precisava se
preocupar. Já lhe bastavam as dores nas pernas, a cerveja de papai. Sandy era uma
mulher à frente das outras - foi o que disse para eles, enquanto jantávamos. Mandou o
dinheiro da passagem para que passássemos algumas semanas juntos pelo simples fato
de que não conseguia me esquecer.

Leve-me ao encontro do meu destino, taxista — Michel continuava a pensar


—, pois, embora sequer desconfie, carrega em seu carro alguém que tem um coração por
demais inquieto, ele que bateu ainda mais forte e descompassado no instante em que
passamos pela Praia de Botafogo e pude ver o Pão de Açúcar pela primeira vez: as luzes
dos prédios, como enormes tochas acesas, refletindo-se no mar. Que bonito painel. A
natureza cantava, mesmo em meio a todo o concreto, e as pessoas, aquelas que eu tanto
ouvira falar, talvez sejam elas bem ali, dentro dos outros carros, paradas nas portarias
dos prédios, debruçando-se sobre os balcões das lanchonetes, olhando as vitrines das
lojas ou correndo desesperadamente até os pontos de ônibus, cheias de pastas e bolsas.
Nesse seu banco traseiro, ó, ensimesmado e ignorante taxista, talvez você saiba um dia,
eu me emocionei ao ver um travesti encostado numa escada de acesso ao metrô.

— Lembrei disso — o homem falou, minutos depois, estacionando o carro


em uma rua sem saída. — Acho que vai gostar.

Havia um prédio de três andares do outro lado. Era velho, tinha a pintura
gasta, uma escadaria de cimento com dois degraus corroídos e um letreiro em que faltava
o H de hotel e o R de realeza. Recendia decadência e abandono.

— Tá ótimo — Michel respondeu.

Saltou do carro, pegou a mochila e atravessou a rua. Seria apenas por uma
noite. Na manhã seguinte, no mais tardar no início da tarde, já teria encontrado Sandy e
iria para o seu apartamento.

— Ô, Paraíba! — o taxista gritou, abrindo os braços e colocando a cabeça


para fora do carro. — Não está esquecendo de nada?! Aqui as pessoas pagam pelas
corridas, malandrão!

O taxímetro marcava cento e vinte reais. Parecia muito.

— Não sou da Paraíba — Michel disse, entregando-lhe o dinheiro. — Pra


falar a verdade, nunca fui lá.

— Tanto faz — o homem respondeu, conferindo as notas uma por uma.

Enfim, o táxi dobrou a esquina e desapareceu, levando junto o seu cheiro


de fumaça de cigarros e suor, e Michel subiu os degraus da escadaria e passou pela porta
do hotel. Um velho e empoeirado tapete vermelho estendia-se sobre o saguão — o
saguão com paredes mofadas e descascadas em que um leve cheiro de mofo pairava no
ar. A um canto, um sofá verde cheio de manchas, uma miniatura do Cristo Redentor feita
de gesso, dois lustres enferrujados e com teias de aranha; no outro canto, bem à frente, o
balcão e, ao lado dele, decorando a parede, uma enorme moldura com uma foto antiga
da praia de Copacabana. O tapete acabava no pé de uma escada de madeira.
Não havia nenhum funcionário à vista, de modo que Michel ficou por
alguns minutos observando a miniatura do Cristo Redentor com os seus braços muito
curtos e o queixo avantajado. Era, por certo, algum tipo de caricatura. Os cariocas sempre
foram muito espirituosos ao brincar com os próprios símbolos. Ele pensava nisso, quando
um casal desceu as escadas e passou ao seu lado. O homem era alto e loiro, de olhos
muito azuis, na faixa dos trinta e poucos anos, e falava em inglês. Ela, uma morena de
pernas finas e seios murchos, usava um vestido vermelho muito curto e respondia com
um yes a tudo o que ele dizia. Michel observou-os até passarem pela porta e descerem a
escadaria do hotel. Tentou imaginar para onde iam.

— Posso ajudar? — alguém perguntou.

Virou-se e viu esse sujeito baixo, com a cabeça muito grande, parado ao
lado do balcão. Não usava qualquer tipo de uniforme, apenas chinelos, bermuda e uma
camisa do Flamengo.

— Preciso de um quarto, tem algum?

— Sim, temos. Está sozinho?

— Estou. Só quero dormir.

— Certo.

O baixinho pegou um molhe de chaves atrás do balcão, caminhou na


direção da escada e pediu a Michel que o seguisse. Os degraus rangeram e gritaram sob
seus pés. No terceiro andar, um estreito corredor os levou até a porta com o número 305
pregado em cima, cheia de marcas de broca e de cupim. Uma após a outra, as chaves
foram enfiadas na fechadura e só na sétima ou oitava tentativa a porta se abriu. Suspensa
no ar do quarto, uma fina névoa pairava, contrastando com a luz de um poste lá fora.
Parecia a cena de um filme antigo, uma penumbra em preto e branco, mas Michel não
lembrou que filme era. Havia um banheiro apertado, um armário de metal encostado a
uma parede, um conjunto com uma mesa e duas cadeiras de plástico, dessas usadas em
bares, e uma cama de solteiro com um colchão de molas. O baixinho foi até a janela e a
escancarou, fazendo com que o vento entrasse, roçando-se em suas caras e trazendo o
barulho da rua.
— A maior parte dos clientes fica no segundo andar por uma ou duas horas
e vai embora. Casais. No momento, além de você, o único hóspede fixo é o gringo do 301.
Ele está no Realeza há mais tempo que eu.

— Não sei se chego a ser um hóspede fixo. Fico só por essa noite. A minha
namorada mora aqui perto, na Atlântica, e amanhã vou para o seu apartamento.

— Entendi. Quer que troque os lençóis? Acho que estão limpos.

— Não precisa.

Michel se sentou sobre a cama. O colchão era duro e afundado em algumas


partes.

— Nós não temos café da manhã — o baixinho falou. — O pagamento da


diária é adiantado. Regras do hotel.

Michel tirou a carteira do bolso, pagou a diária e recebeu a chave do


quarto.

— Agora, tenho que ir. Daqui a pouco o movimento começa e não posso
ficar muito tempo longe da recepção. Meu nome é Sóstenes. Se precisar de alguma coisa,
estou lá embaixo.

— Tudo bem.

Sóstenes fechou a porta do quarto e Michel ficou a escutar os seus passos


enquanto cruzava o corredor e ganhava a escada. Depois de quase vinte e quatro horas
enfiado em um ônibus que mais parecia uma Babel, afinal estava só. Foi até o banheiro e
abriu o chuveiro. A água era fria, quase congelante. Fez alguns exercícios de polichinelo,
em seguida voltou até a sala e se debruçou na janela e olhou lá para baixo, para os fundos
do hotel, onde avistou um sinal e a faixa de pedestres de uma avenida, a calçada em que
duas velhas caminhavam com sacolas de compras. Pareciam pesadas aquelas sacolas e
isso o fez pensar em sua mãe e de como ela havia se sentado ao seu lado na cama para
lhe dar conselhos. Num papel dobrado, lhe entregou o número do telefone de sua Tia
Adélia, que morava na Zona Norte da cidade e se casara com um piloto de avião: a
sempre tão falada e distante Tia Adélia, que, décadas antes, havia feito aquele mesmo
caminho que ele agora fazia, alimentada pelas mesmas razões: o amor. Uma grande alma,
sem dúvidas. Se, por ventura, Michel viesse a precisar de algum auxílio, sua mãe disse,
com os olhos umedecidos, Adélia o ajudaria. Mas ele não ia precisar de auxílio nenhum.

Tirou os tênis e se despiu completamente, mas, em vez de voltar ao


banheiro, parou ao lado da cama e se jogou sobre ela, de costas, com os olhos fechados,
como se estivesse se jogando de um altíssimo trampolim. Deitado, abriu os braços e
puxou o ar para dentro dos pulmões. Tinha mesmo um cheiro de mofo, mas também de
esperança. Pensou que meses ou anos adiante, quando, já realizado, parasse para
lembrar da sua primeira noite naquela cidade, aqueles cinco ou seis metros quadrados
certamente se transformariam em vinte ou trinta, as paredes não estariam mais
desbotadas nem teriam infiltração, e a janela, sem poeira ou teias de aranha, seria
enorme e vez por outra alcançaria o mar. Quem teria sido a última pessoa a dormir ali, no
empoeirado quarto 305 do Hotel Realeza? Ele não fazia a menor ideia. De onde estava,
podia escutar o grito agudo das sirenes e das buzinas dos carros lá fora, as vozes que
ecoavam a poucos metros da sua cama. Talvez descesse para conhecer a Atlântica, talvez
procurasse pelo prédio com pilotis brancos ou talvez apenas se sentasse em um bar para
beber uma cerveja e puxar conversa com alguém — contaria, então, a sua história, dos
planos que fizera e sobre o quanto se sentia bem por estar ali. Mas Michel estava cansado
e simplesmente permaneceu deitado sobre aquela cama, com os olhos fechados,
aguçando o ouvido até distinguir a gargalhada distante de uma mulher, uma gargalhada
que parecia de puro contentamento, e, logo depois, o grito de alguém que passava em
um carro, a voz esganiçada e rouca ficando mais fraca na medida em que se afastava do
hotel:

— Glorinha, sua puta, eu ainda amo você!

Quando aquele grito chegou ao fim, todos os outros barulhos também


cessaram e tudo ao redor ficou quieto e Michel dormiu.

CAPÍTULO 2
O sol iluminou a mesa e as duas cadeiras de plástico, alcançou a cama e,
em seguida, pousou pacientemente sobre o seu rosto. Michel se espreguiçou e foi até a
janela. Era uma segunda-feira, passavam das sete e meia da manhã, e as calçadas
estavam abarrotadas, centenas de carros e de ônibus amontoando-se sobre o asfalto
como se fizessem parte de uma procissão. Foi até o banheiro, encontrou o chuveiro ainda
aberto e se atirou embaixo da água fria. Minutos depois, desceu até o saguão. Não havia
qualquer sinal de Sóstenes, mas a porta estava entreaberta. Caminhou até uma padaria
que ficava na esquina, sentou-se no balcão e pediu um croissant de peru defumado e uma
tigela de açaí. Sentia qualquer coisa diferente, uma espécie de eletricidade a exalar do
corpo. No caixa, ao agradecer pelo troco, imitou o sotaque carioca, e como a mulher
sequer o olhou, ele ficou a calcular que poderia fazer aquilo sempre que desejasse.

Novamente sobre a calçada, com os passos largos e decisivos, o coração a


trepidar feito uma britadeira, seguiu as placas que apareciam. Dobrou uma esquina,
cruzou uma larga avenida, que depois descobriu ser a Nossa Senhora de Copacabana,
atravessou um sinal, passou por uma praça onde casais passeavam e velhos se
exercitavam em bicicletas ergométricas, transpôs uma rua de paralelepípedos, uma feira
hippie, até que, subitamente, estava lá, na Avenida Atlântica. E ela era mesmo
espetacular. Paralisado, feito um homem quando presencia um milagre, Michel ficou a
admirar aquela infinidade de pessoas indo e vindo de um lado para o outro, metidas em
suas roupas de ginástica, calças de lycra e biquínis, todas a caminhar ou a correr ou a
andar de patins ou de bicicleta, a guiar seus cachorros de raças desconhecidas e a catar as
merdas que faziam para que ninguém pudesse pisar. Viu gringos rosados e alegres
bebendo cerveja nas sombras dos quiosques, garotas com tatuagens na nuca jogando
vôlei de praia, jovens barbudos e cabeludos, ambulantes, surfistas, turistas japoneses e
noruegueses, babás com uniformes e carrinhos de bebês. Era aquele o mundo de Sandy,
cheio de beleza e de energia, onde um desmedido oceano refletia o brilho do sol feito um
gigantesco vestido de lantejoulas azuis jogado no chão. Michel abandonara tudo para
fazer parte daquilo — um tanto para não ser esquecido, outro tanto pelo medo de que a
banalidade dos dias voltasse a lhe embalar. E agora, finalmente, ele estava ali.
Sem tréguas ou descanso, peregrinou por todo aquele dia. De início, na
busca pelo prédio com pilotis brancos. Encontrou alguns, mas nenhum deles era o que
Sandy morava. Passou então a questionar os porteiros, de quase todos os prédios,
conversou com donos de bancas de revistas, interrogou garçons e garçonetes,
guardadores de carros, estudantes com fardas e mochilas nas costas, salva-vidas,
vendedores de sanduíches naturais e de lojas de souvenir. As respostas foram todas
iguais: “Não conheço essa mulher”.

Eram seis e meia da tarde e ele havia percorrido toda a praia, de uma
extremidade à outra, quando afinal parou e se sentou num monte perto do Forte de
Copacabana. Estava cansado, faminto e deprimido. Com a ponta do dedo, desenhou um
coração na areia e, dentro dele, escreveu: Sandra D’Angelo & Michel Rodrigues. Parecia
pouco, então completou: “Nada nos separará”. Não demorou muito, a espuma de uma
onda veio e o desmanchou.

Retornou ao hotel e pagou por mais uma diária a Sóstenes. A namorada


precisou viajar a trabalho, voltaria dentro de um ou dois dias. Foi para o quarto, tomou
um banho e se deitou. As pernas doíam. Os olhos ardiam. O rosto queimava em fogo.
Calculou que na manhã seguinte, tão logo saísse para procurá-la, compraria um protetor
solar. Não queria estar igual a um camarão quando se encontrassem.

CAPÍTULO 3

E, então, dez dias se passaram. Nada havia mudado, a não ser a sua
carência, que crescera como um solitário cacto ao luar. Dez dias de intermináveis
caminhadas, de vigílias na praia e nas praças, de pombos que cagavam na cabeça dos
velhos jogando dominó e de gritos dos vendedores de biscoito Globo que marcavam a
areia com os seus longos passos de tamanduá. Dias de correrias e desilusões. Quantas
não foram as vezes em que disparou, enlouquecido, ao encontro de uma loira, na
esperança de que a sua angústia chegaria ao fim? Quantas mulheres seguiu por duas ou
três quadras para, ao se encontrar a dez passos, sentir as pernas bambearem por conta
da decepção?

Todas as manhãs, assim que o sol lhe alcançava o rosto, Michel se


levantava, tomava um banho frio e ganhava as ruas para sondar as filas dos
supermercados e dos caixas 24 horas, para inspecionar lojas, quiosques, pontos de ônibus
e saídas de metrôs, adentrando shoppings e galerias, percorrendo as areias da praia de
uma ponta à outra. À noite, quando os bares, os restaurantes e os cafés ficavam cheios,
ele ia até lá, observava as pessoas festejando as suas existências, bebia um chope e
escutava as suas conversas, imaginava como eram as suas vidas quando não estavam ali.
Mais tarde, se sentava no sofá verde do Realeza e ficava a conversar com Sóstenes, vendo
os casais subirem e descerem as escadas sem parar. O movimento começava no final da
tarde, aumentava conforme escurecia e pegava fogo na madrugada. Turistas e putas,
playboys, madames, velhotes, viados, homens engravatados e travestis. Uma infinidade
de tipos, todos se cruzando no saguão ou no corredor do segundo andar, todos em busca
de uma aventura ou da grana para o café da manhã, esfomeados e um tanto aflitos, todos
tão solitários e perdidos quanto Michel. Quando se cansava daquilo, subia até o quarto e
ficava deitado, a olhar para o teto, lembrando das coisas que vira durante aquele dia; e
sempre havia muita coisa para lembrar.

Em uma daquelas manhãs, antes de dar início às buscas por Sandy, Michel
foi até o orelhão que ficava em frente à padaria e ligou para a sua mãe. Contou dos atores
e das atrizes que tinha visto pelas ruas de Copacabana, dos passeios que fez ao Pão de
Açúcar, à Vista Chinesa e ao Cristo Redentor, da alegria que sentia e de como Sandy o
tratava bem. Uma mulher de verdade, que a todo instante lhe pedia que ficasse alguns
dias mais. E a mãe, do outro lado do mundo, cheia de ternura e compaixão, achou-o
corajoso e acreditou em cada palavra que ele falou.

Naquele final da tarde, ao voltar cansado e subir vagarosamente as escadas


que o levavam ao seu quarto, se deparou com um homem, alto e magro, debruçado no
corrimão do terceiro andar. Usava um short branco com furos de cigarros e uma camisa
estilo havaiana desabotoada. Seus ralos cabelos ruivos estavam presos em um rabo de
cavalo.
— Aí está você! — o homem disse, com um sotaque estranho.

— O quê? — Michel perguntou.

— Não é o hóspede do 305? Pensei que não ia te conhecer. Sóstenes me


falou que passa o dia inteiro andando por aí. — O homem sorria, mostrando os dentes
amarelados.

— Gosto de andar.

— Ah, isso é bom. Meu nome é Louis Buade de Frontenac — esticou o


braço e apertou a mão de Michel —, mas pode me chamar de Buade. É como todo
mundo me chama.

— Michel Rodrigues.

— Que grande coincidência! O meu avô também se chamava Michel. Ele foi
um conde. Tem uma cidade lá na França em que uma rua leva o nome dele. Quer beber
uma cerveja?

— Agora?

— Sim. Ou vai caminhar?

O quarto de Buade era do mesmo tamanho do de Michel, com um


banheiro, uma janela, uma mesa e duas cadeiras de plástico. O seu armário, porém, era
largo e de madeira, enquanto o de Michel era uma simples caixa de metal. Havia ainda
um frigobar perto da janela, uma tevê sobre uma estante, uma cama king size e uma
poltrona com o couro descascando. Algumas garrafas de long neck jaziam jogadas no
chão. As paredes estavam repletas de pinturas, a maior parte com imagens femininas,
mulheres nuas e seminuas em poses sensuais. Atrás da cama, uma moldura com a foto de
uma praia, o corpo de centenas de pessoas estiradas sob seus guarda-sóis. A legenda dizia
que a foto datava de julho de 1982.

Buade pegou duas long necks no frigobar e eles brindaram. Estavam


geladas, mas Michel ainda não havia feito o desjejum, de modo que seus goles eram
curtos e espaçados. Escutava aquele sujeito falar, ele que deixara o seu país há muitos
anos, fugindo do marasmo de uma vida sem grandes emoções. Parecia um tanto
excêntrico. Grande parte do que dizia talvez não fosse verdade.

— Que praia é aquela? — Michel perguntou, apontando para o quadro na


parede.

— Gourdon, na Riviera Francesa. É a cidade onde nasci.

— Já ouvi falar.

— Não é muito famosa. Mas eu adoro.

— Pretende voltar?

— Sim, um dia, mas não agora.

— Vai aproveitar um pouco mais o Brasil.

— Não é isso. Eu me apaixonei. Agora só posso ir embora se ela for comigo.

— Como ela se chama?

— Evelyn. É dançarina em uma casa de shows a duas quadras daqui. Se


quiser, qualquer noite dessas te levo lá para ver a sua apresentação.

— Claro.

Buade levou a cerveja até a boca e deu um grande gole. Alguns fios de seus
cabelos escapavam do rabo de cavalo e, contra a luz do sol que varava a janela, se
assemelhavam a folhas de trigo vermelhas.

— Eu também estou aqui por causa de uma mulher — Michel disse.

— Ah, é?

— Sim. Ela é uma grande escritora. No momento, está viajando,


participando de alguns eventos.

— E qual é o nome dela?

— Sandra D’Angelo.

— Sandra D’Angelo — Buade repetiu. — Bonito nome.


— Evelyn também é.

O gringo se levantou e foi até o seu armário. Voltou com uma pequena
caixa de metal, que abriu sobre a mesa. Estava cheia de papéis para enrolar cigarros,
caixas de fósforos e uma quantidade razoável do que parecia ser maconha prensada. Ele
tirou um pedaço daquilo, catou as sementes, jogou sobre um papel, enrolou e acendeu.
Suas bochechas encheram-se de fumaça, ele a engoliu e, segundos depois, a soltou, densa
como o nevoeiro dos filmes de terror.

— Vai? — perguntou para Michel.

Fazia bastante tempo que Michel não fumava maconha. Na verdade, havia
experimentado duas vezes e em nenhuma delas sentiu qualquer efeito, a não ser uma
fome descomunal. Agora, estava ali, com aquele charuto enorme na mão. Puxou, segurou
a fumaça por alguns segundos e em seguida a soltou, quase do mesmo jeito que Buade
tinha feito. Como se dançasse, a fumaça se espalhou pelo quarto e aos poucos foi
desaparecendo à sua frente. Os olhos lacrimejaram, mas nada mais. Talvez acontecesse
como nas vezes anteriores. Ele ficaria apenas distraído e esfomeado. A padaria da
esquina, com as suas tortas e bombas de chocolate, o esperava, e ele permaneceria uma
boa meia hora debruçado sobre aquele balcão. Enquanto sorria e pensava nisso,
inesperadamente a sua garganta ficou seca, coçou e ele então começou a tossir. Uma
tosse forte, uma sequência após a outra, ataques cada vez mais brutais. Em segundos, seu
corpo inteiro passou a arder como se estivesse em uma fogueira, a respiração ensaiando
escapar. Ficou de pé, mas não adiantou: outra crise veio e lhe pegou, ainda mais intensa,
fazendo-o se curvar e voltar a se sentar. O peito chiava e doía, um barulho estranho, de
ralo a escoar. Sem controle algum sobre si, pensou que talvez morresse ali, na companhia
de um francês que nunca vira antes, a espalhar perdigotos ininterruptamente sobre o
chão. Ninguém nunca ia saber.

— Dá um gole — escutou o gringo dizer, apontando para a garrafa sobre a


mesa.

E Michel então pegou a cerveja e deu um gole. E aquilo funcionou. Um gole


após o outro, aos poucos o incêndio em sua garganta começou a se apagar, as tosses
deixaram de existir e ele, milagrosamente, se viu livre da morte e da vala comum. Passou
a ser apenas aquele sujeito nauseado, esparramado sobre a cadeira de plástico, com uma
garrafa esvaziada na mão.

— Coisa boa — o gringo sorria com a cara rosada e cheia de vincos. — Eu


tinha que ter avisado.

— Eu estou bem. Não se preocupe.

Michel agora olhava para o quarto, para as telas na parede e para as que
estavam no chão, a foto da Riviera e as gambiarras de pinturas, sem talento algum. Ao
redor delas, um monte de roupa suja espalhada, garrafas de cervejas pelo chão. Na porta
do banheiro, uma teia de aranha fazia as vezes de cortina. Tirando a foto da Riviera, nada
fazia crer que aquele era o quarto de alguém cujo avô fora um nobre francês.

— Tenho que ir — disse, repentinamente, ficando de pé.

— Já?

— Sim. Preciso fazer umas coisas.

Buade se levantou e o levou até a porta, com o baseado na mão.

— Foi um prazer. Apareça quando quiser. Somos vizinhos!

O corredor parecia mais largo que o habitual, mas Michel alcançou a porta
do seu quarto e chegou até a cama. O colchão gemeu e gritou quando se deitou. Nunca
havia conhecido um francês, mas agora estava no Rio de Janeiro, de tantas aventuras e
possibilidades, e nada mais poderia surpreendê-lo. Tudo era plausível e, por isso mesmo,
possível. Pensava nisso, quando o velho colchão embolorado sobre a cama, o colchão de
molas em que estava deitado, começou a girar. E Michel, feito um náufrago boiando no
meio do oceano, apenas fechou os olhos e se deixou levar.

CAPÍTULO 4
Sobre as pedras portuguesas do calçadão, centenas de casais passeavam
de mãos dadas e faziam juras de amor eterno. Casais circulavam pelos corredores dos
shoppings e dos supermercados, namorando as vitrines, sentando-se em estreitas mesas
nos cafés, a se olhar. Casais sorriam nas capas das revistas, nos cartazes dos filmes, nos
bancos de praça e nas sorveterias. Casais dormiam sobre papelões, junto com seus
cachorros, debaixo das marquises dos bancos e das joalherias. Jovens e velhos, pobres e
ricos, casais de todo jeito, por todo lugar.

Naquela noite, as ruas pareciam ainda mais cheias e as janelas dos prédios
gritavam por conta de tanta história para contar. Michel se encontrava a dois quarteirões
do hotel, quando se deparou com uma pequena livraria onde acontecia um sarau.
Parados na porta, um monte de barbudos bebendo cerveja, garotas com piercings, saias
de renda e blusas de crochê. Sandy tinha lhe falado dos saraus, do quanto gostava de ir e
das mentes sensíveis e avançadas que costumava encontrar, e ele pensou que ela talvez
estivesse por ali.

Era escuro e apertado ali dentro, com estantes cheias de livros espalhadas
por todos os cantos. Havia um pequeno tablado no centro e um balcão onde
despachavam a cerveja. O cheiro de cigarro indiano se misturava ao de fritura. Ele
procurou Sandy por mais de meia hora, até que comprou uma cerveja e se encostou em
uma parede.

— Dedico este poema ao meu ex-namorado — uma garota ruiva disse, com
um microfone na mão, sobre o tablado. — Ele foi fazer intercâmbio no Canadá há dois
anos... Gui, eu ainda penso muito em você!

Então começou. Sua voz era alta, mas a dicção ruim, e talvez por isso
Michel não tenha compreendido bem o que o poema dizia. Podia ser sobre a dor de viver
só ou do vazio que ela sentia por ter sido deixada para trás ou mesmo sobre a esperança
de que um dia o ex-namorado retornasse e a amasse outra vez. De qualquer maneira, não
parecia ser um poema muito bom, ao menos não tão bom quanto os de Sandy. Quando a
garota acabou, porém, um monte de gente bateu palmas, soltou gritos e assobiou.

Por um curto momento, Michel pensou em também ir até lá. Declamaria


um dos poemas de Sandy — aquele que ela havia escrito, ao lado do número da Galeteria
Wilson, num pedaço de papel. Quem sabe alguém o conhecesse e lhe dissesse onde
encontrá-la. Entretanto, o microfone era disputado, pois havia uma longa fila ao lado do
tablado, e após mais quatro ou cinco declamações, ele deixou o resto da cerveja no chão,
passou pela porta da livraria e foi embora.

Caminhava pela Constante Ramos, no sentido da Atlântica. Escolheria um


dos bancos de cimento do calçadão e ficaria por lá um bom tempo, analisando cada
janela acesa, cada carro que cruzasse a sua vista. Entre um passo e outro, sem qualquer
aviso prévio, o seu corpo repentinamente se retesou, como se tivesse levado um grande
choque, e ele estacou. Porque, à sua maneira, havia sonhado tanto e sofrera demais por
isso. A certa altura, vagou como a folha de uma árvore que o vento arranca e leva para
onde quiser, a planar para lá e para cá, numa louca e apaixonada travessia. Chegou a
pensar que não teria o tempo que necessitava para encontrá-la, que os dias passariam,
que o dinheiro acabaria e que teria que desistir, levando consigo o temor a um primo
agiota e uma sangria que nunca mais iria estancar. Contudo, daquele momento em
diante, nada daquilo o assombraria outra vez. Nada mais de dúvidas ou apreensões, nada
mais de solidão. A dez ou doze passos de onde estava, sentada em uma mesa do
caríssimo Restaurante Ville Noir, encontrava-se Sandra D’Angelo, a mulher por quem
Michel daria tudo, com os seus belos cabelos de cachoeira dourada. Mesmo de perfil,
pôde reconhecer as bochechas salientes, o queixo levemente pontudo, o volume
daqueles seios que conhecia mais do que a palma da sua mão. Usava um vestido de noite
vermelho, talvez de seda, e as suas costas ainda estavam queimadas de sol e tinham a
mesma marca do biquíni que ele tanto ajudara a amarrar. Havia um homem enorme,
cheio de tatuagens, sentado à sua frente — um aluno, um leitor? Bebiam vinho, comiam e
vez por outra ele falava alguma coisa e ela sorria.

Michel se sentou em uma mesa a alguns metros de onde estavam e passou


a observá-los, na dúvida se ia ou não até lá.

— O cardápio, senhor? — um garçom perguntou, parado ao seu lado.

— O que eles estão comendo?

O garçom apertou os olhos.

— Creio que Medallion à Piamontese.


— Quero um.

— A porção é para duas pessoas.

— Estou com fome. Traga também uma garrafa daquele vinho.

— Chateau de Robienoux?

— Isso.

— É um vinho caro, senhor.

— Acha que não vou pagar? — Michel se virou para o garçom. — Acha que
não tenho dinheiro?

— De modo algum. Trarei o vinho dentro de dois minutos.

O garçom tinha um sotaque curioso. Parecia carioca, mas o “D” cismava em


estalar no céu de sua boca. Ele colocou o cardápio debaixo do braço, pediu licença e saiu.
E Michel ficou pensando no quanto era triste e estranho estar ali, a quatro ou cinco
metros, vendo Sandy sorrir das frases daquele fisiculturista, cortando um bom pedaço de
Medallion, enfiando-o na boca e mastigando-o como se mastigasse o seu coração. Meses
antes, era ele quem estava em sua companhia, e nem parecia tanto tempo assim.

O vinho chegou. Seco, mas ele bebeu uma taça após a outra e rapidamente
passou da metade da garrafa. Ela sorria de alguma outra coisa, quando o garçom
retornou e pôs o Medallion sobre a sua mesa. Era um belo retângulo de carne com um
caldo por cima e um arroz empapado ao redor. Michel cortou um pedaço, passou no
molho e levou-o à boca. O sabor era sensacional. A maciez e a suculência da carne eram
algo que nunca experimentara. Cortou outro pedaço, juntou a um pouco de arroz e
levantou a vista. O grandalhão estava curvado sobre Sandy, segurando em sua nuca. Os
dois se beijavam. O garfo despencou sobre o prato, rodopiou e foi parar no chão. E todo o
universo parou nos longos segundos em que durou aquele beijo. Embora ninguém
percebesse, sentado naquela mesa, completamente indefeso, um homem estrebuchava,
prestes a morrer — logo ele, Michel Rodrigues, que acreditara tanto no amor. Pensou em
se levantar e ir imediatamente até eles, depois calculou que o melhor seria sair correndo
em disparada, sem pagar a conta, sem olhar para trás. Por fim, ficou de pé e caminhou
até o balcão. Era uma caminhada longa sobre o piso de cerâmica que imitava as pedras do
calçadão, uma reta que parecia não ter fim. Na metade do caminho, mudou de direção.

— Que beleza, hein, Sandra! — berrou, a três metros da mesa em que eles
estavam, alto o bastante para que todos no restaurante pudessem escutar. — Sabia que
acabei de declamar aquele seu poema num sarau? Aquele que escreveu num papel junto
com um número de telefone falso! Uma baboseira que fala sobre ser claro como a água,
que o importante na vida é ser verdadeiro. Mas você não está nem aí para essa porcaria,
não é mesmo?! Você só quer um babaca para levar para a cama e dar a xoxota para ele a
noite inteira, e quando ele estiver completamente enfeitiçado, você vai arranjar outro,
depois mais outro e assim por diante! — pegou o dinheiro que tinha nos bolsos, três ou
quatro notas grandes, além de alguns trocados, e jogou sobre a mesa, entre os dois. —
Fique com isso. Faço questão de pagar o seu jantar. É a última coisa que vai ter de mim!
— Encarou-a com toda a raiva e desprezo que conseguiu reunir.

E, então, uma coisa muito curiosa aconteceu. Surpreso e embaraçado,


Michel subitamente reparou que o nariz de Sandy aparentava estar um pouco maior do
que antes, e os seus olhos pareciam mais espaçados, a sua boca não era mais tão
carnuda, e os cabelos, embora continuassem com a mesma tonalidade, de fato não
tinham o volume e os cachos daqueles de quando a conheceu. À sua frente, a mulher que
amava e que, um minuto antes, o havia destruído, se transformara em outra, ela que o
olhava assombrada, quase a chorar.

Que terrível injustiça acabara de cometer. Ele, sim, um monstro — Michel


Rodrigues, cheio de raiva e insensatez, fazendo o mundo dar passos para trás. Era preciso
pedir desculpas, corrigir o seu estúpido erro o mais breve possível. Contudo, antes que
conseguisse, o seu castigo chegou, através da mão grande e cheia de gomos que lhe
acertou a maçã do rosto. Caiu a dois metros e deslizou, derrubando algumas cadeiras no
chão.

— Bem feito! — uma mulher gritou de uma mesa próxima, batendo


palmas.

O brutamontes o pegou pela gola da camisa, o levantou e o espremeu


contra a parede.
— Que porra foi essa? — perguntou, quase cuspindo sobre o rosto de
Michel, ralhando os dentes.

— Eu me enganei — Michel disse. — Pensei que era outra pessoa. Uma


mulher que me fez muito mal.

— Ah, ela te fez muito mal?

— Sim.

— Você é algum idiota?!

O brutamontes fechou o punho e arqueou o seu braço direito, esticando-o


todo para trás. Era um punho enorme. E não havia nada que Michel pudesse fazer, a não
ser esperar pelo próximo golpe, aquele que acabaria com a sua raça, e ele fechou os olhos
e esperou. Todavia, antes que seu rosto fosse destroçado e espirrasse sangue por todo o
restaurante, um milagre aconteceu: o gerente, feito um encorpado e atarracado
querubim, de um segundo para o outro se materializou entre os dois e disse que aquela
confusão não poderia continuar. Ele tinha visto tudo. A culpa fora do garçom, que deixara
um desqualificado como Michel se sentar em uma das mesas, e, por isso, o casal não
precisaria pagar a conta. De todo modo, o gerente continuou, ele não queria saber de
violência e, se fosse preciso, chamaria a polícia, mesmo causando um certo embaraço aos
outros clientes.

— Teve sorte — o brutamontes falou, afrouxando os dedos sobre o


pescoço de Michel. — Mas qualquer hora dessas a gente vai se encontrar por aí.

Como se seguissem em um cortejo fúnebre, o gerente acompanhou os dois


até a saída do Ville Noir. A loira soluçava, agarrada ao braço do seu protetor. Metade dos
clientes olhava para eles e a outra metade olhava para Michel, que respirava fundo, ainda
encostado na parede.

— O que está fazendo aqui? — era o garçom que o havia atendido.

— Esperando pelo meu troco.

— Não tem troco. Vá embora! Se aparecer de novo, eu mesmo vou dar um


jeito em você!
Não era um garçom alto, muito menos forte, mas tinha os punhos cerrados
e Michel estava esgotado. Saiu do restaurante e atravessou a rua, dobrando a primeira
esquina que encontrou.

Andando sem rumo, um passo após o outro, mirando o chão. Agora o


universo inteiro sabia sobre ele, aquele provinciano atrapalhado, um equívoco vindo de
longe, a vagar entre aquelas pessoas e a tentar ser como elas, mas descobrindo da forma
mais triste que nunca viria a ser porque simplesmente era tarde demais. Perguntem
àquela pobre mulher que pus a chorar, Michel pensou, perguntem aos garçons com
orelhas de abano e com fogos pipocando no céu da boca, perguntem aos clientes das
outras mesas ou para o gorila que me esmurrou, eles poderão falar de mim. Um passo
depois do outro, apenas isso, era o que o sem classe conseguia fazer. Quando se deu
conta, estava sentado no meio fio em frente ao hotel, passando a mão sobre o rosto. Em
um dos prédios próximos, alguém tocava um saxofone. Uma senhora passeava com o seu
cachorro peludo e, ao ver Michel, ele rosnou e latiu e ela foi obrigada a se afastar. Uma
sensação esquisita lhe veio — a de que aquele meio fio era na verdade uma areia
movediça e que aos poucos ele seria sugado e desapareceria sem deixar vestígio algum.
Pensou que talvez não merecesse Sandy, por isso não a encontrava. O saxofone começou
a tocar outra música. Michel a conhecia, mas não lembrava o nome. Do outro lado da rua,
no saguão do hotel, Sóstenes, o faz tudo, varria o tapete, enquanto esperava algum casal
aparecer.

Uma mulher surgiu, caminhando pela rua. Era morena, os cabelos negros
como os de uma índia escorrendo até os ombros. Tinha um cigarro entre os dedos e
Michel repentinamente sentiu vontade de fumar.

— Boa noite — ele disse.

— Oi, garotão — ela respondeu —, quer se divertir?

— Só quero um cigarro. Os meus acabaram.

Ela abriu a bolsa que trazia a tiracolo e tirou uma carteira de cigarros.
Acendeu um para ele. Tinha manchas nos braços e nas pernas e o seu olhar era triste.

— Que foi isso? — ela perguntou.


— O quê?

— Tá um pouco inchado em cima do olho.

— Ah, isso. Briguei com a minha mulher.

— Que tal um pouco de carinho pra esquecer?

— Hoje, não. Não estou no clima.

A morena ficou olhando para Michel.

— Ela deve gostar de você... Me dê a sua mão.

— Pra quê?

— Quero ver uma coisa.

Michel esticou o braço e deu a mão para a mulher, que a apertou contra o
peito. Ela fechou os olhos e começou a murmurar algo, como se fizesse uma prece.

— Interessante... — disse.

— O quê?

— O seu coração: é como uma casa vazia, qualquer um pode entrar.


Mesmo quem não quer.

— Meu coração? — ele sorriu. — Você, com certeza, se enganou. Ele


nunca esteve tão bem.

— Também consigo ver uma estrada — ela continuou. — É cheia de lama e


de buracos, habitada pelo orgulho, pela loucura e pela mesquinhez. É a estrada que você
escolheu percorrer.

— Já que consegue ver tanta coisa, me diga logo aonde é que essa estrada
vai dar.

— Se chegar ao fim, em um lugar muito diferente daquele que imagina.


Mas o que importa, no fundo, é no que essa estrada vai te transformar. Porque tudo
acaba sendo um preparativo para o momento maior.

— Olha só, que bonito. O que mais consegue ver?


— Vejo Jesus, no meio dessa sua jornada, acenando com a mão. Fique de
pé e siga ao encontro dele. Ele vai te ajudar.

— Jesus?

— É.

— Acho que agora entendi. Encontrando Jesus, a minha mulher vai deixar
de jogar coisas em mim e eu não vou precisar mais ficar aqui sentado nesse passeio. Deve
ser isso.

— Quem sabe. Há muitas coisas para você descobrir.

— Quanto te devo?

— Não deve nada.

— Não vai cobrar pela leitura?

— Nunca cobro por isso.

Ela sorriu e tocou em seu rosto, passando os dedos sobre a testa, onde
começara a doer.

— Boa sorte — disse isso e partiu, gingando a bunda descarnada de um


lado para o outro, na direção da Nossa Senhora de Copacabana.

O saxofone havia parado de tocar. Michel ficou de pé e enfiou as mãos nos


bolsos, à procura de dinheiro para comprar um analgésico. Não encontrou uma moeda
sequer.

CAPÍTULO 5

Indiferente ao insucesso das suas diligências e do dinheiro que diminuía


cada vez mais, o tempo continuava a passar, silencioso e veloz. Por conta disso, Michel se
viu obrigado a abandonar as tigelas de açaí na padaria e os almoços nos restaurantes self-
services, onde enchia o prato com lasanhas, risotos, costelinhas de porco, e começou a ir
num pé sujo na Ladeira dos Tabajaras, em que pela manhã arremessavam sobre o balcão
um insosso e desprezível pão na chapa e, no meio da tarde, um prato feito, que era um
combinado de feijão preto mal cozido, arroz ou macarrão e um pequeno pedaço de bife,
que, de quando em quando, era substituído por uma ressecada coxa de frango. À noite,
frequentava o quarto de Buade, onde fumava maconha, bebia cerveja e comia pedaços
de pizza.

Em um final de tarde, quando relâmpagos riscavam o horizonte de


Copacabana e a praia e as ruas encontravam-se quase vazias, Michel estava encharcado,
sentado em um dos bancos da Praça do Lido, e uma lufada de vento então trouxe até ele
um recorte de jornal, que grudou na sola do seu chinelo. Coisa curiosa, era o anúncio de
uma Imobiliária. Chamava-se Lomma, tinha o seu escritório no Aterro do Flamengo e
procurava por estagiários. No canto direito do anúncio, os requisitos que um candidato a
corretor precisaria ter — boa aparência, desenvoltura e ambição. No canto esquerdo,
uma mensagem de Aldo Lomma, o diretor da empresa:

“Venha trabalhar conosco” — ele dizia — “, e se transforme em um grande


vencedor! ”.

Um raio poderia ter caído ao seu lado e Michel não notaria, uma vez que
estava preso a profundos e grandiosos pensamentos. Neles, era um bem-sucedido
corretor de imóveis, usava roupas caras, tinha os cabelos bem cortados e penteados para
trás e era amigo de empresários, de artistas e de jogadores de futebol. Ao seu lado, a
sempre fiel e sorridente Sandy, que o amava ainda mais. E, como era um homem de
coração justo e caridoso, toda vez que fechava um negócio, enviava um dinheiro para os
pais, que sentiam um orgulho danado de seu filho e contavam para todos sobre o que ele
se transformara: um admirável homem de negócios, parceiro de Aldo Lomma, outro
vencedor.

Correu até uma banca de revistas, comprou um cartão telefônico e foi até
o primeiro orelhão que encontrou. Uma mulher atendeu.

— Lomma Imobiliária, bom dia. Procura por casa ou apartamento?


— Meu nome é Michel Rodrigues. Estou ligando por causa do anúncio.
Quero trabalhar com vocês.

— Anúncio?

— O que vocês colocaram no jornal, acabei de ler.

— Há meses não colocamos anúncios para estagiários, Rodrigues. Mas


você está com sorte. Um dos corretores desistiu e sobrou uma vaga. Tem experiência?

— Não muita, mas sou bastante ambicioso.

— Ótimo. É o que queremos. Venha até o escritório amanhã para fazer


uma entrevista. Apareça às nove, sem atraso. O Doutor Aldo é um homem cheio de
compromissos.

— Não vou me atrasar.

De volta ao quarto, pôs sobre a cama as duas calças que tinha. Estavam
terríveis, surradas e sujas. Encontrou uma camisa polo amarela, mas ela também perdera
a cor devido aos dias de caminhadas e tinha, na altura do coração, uma pequena mancha
de ketchup. Vestiu-a mesmo assim, já que as outras estavam ainda piores. Foi até o
banheiro, molhou os cabelos, penteou-os e deu um passo para trás, olhando para o
espelho. Não se parecia em nada com um corretor. Talvez se assemelhasse a um taxista
de rodoviária, alguém que não se importava muito com a própria imagem. Sentou-se em
uma das cadeiras e arqueou os braços pesadamente sobre a mesa, desanimado. Era
muito possível que a entrevista fosse um fiasco. Não era daquele tipo de gente que Aldo
Lomma precisava. Passaria por um enorme constrangimento. Pensou nas piadas, nos
olhares de reprovação. Por fim, lembrou de Buade. Levantou-se, cruzou o corredor e
bateu na porta do quarto 301. Ninguém respondeu, de maneira que ele bateu
novamente, agora mais forte, e a porta se abriu. O quarto estava vazio. Um baseado
queimado até a metade descansava sobre o cinzeiro. Michel abriu o guarda-roupa.
Dependuradas nos cabides, dez ou doze camisas. Nenhuma lhe serviria. Ou eram
estampadas demais ou estavam sujas ou tinham furos. Ao remexer em uma das gavetas,
encontrou, como que escondida lá no fundo, uma velha foto. Era Buade, trinta anos mais
novo, deitado sobre a areia de uma praia. Não havia nada escrito no verso. Na mesma
gaveta, preso por uma borracha, um maço grosso com notas de Euro. Michel colocou o
maço e a foto no lugar em que estavam, fechou a gaveta e voltou para o seu quarto.

No dia seguinte, às oito e meia da manhã, caminhava apressado pela Rua


do Catete. Deu a volta no Parque da República, onde jovens filavam aulas para trocar
beijos e passarinhos pousavam nos bancos para comer restos de comida, e alcançou o
Aterro do Flamengo, ficando frente a frente com o prédio em que a Lomma Imobiliária
funcionava. Chamava-se Flamengo Beach Power e era enorme. Sua fachada de pastilhas
vermelhas e douradas dava-lhe um toque imponente e um largo corredor com piso de
mármore levou Michel até duas recepcionistas, as duas loiras com os sorrisos mais
brancos que ele já tinha visto. Entregou-lhes a identidade, para que o cadastrassem no
banco de dados do prédio, passou pelos seguranças, prostrados ao lado dos elevadores, e
logo saltou no nono andar e caminhou até a sala 902. Tocou a campainha. Após alguns
segundos, a porta se abriu.

— Pois não?

Era a mulher do telefone. Não se parecia em nada com o que Michel havia
imaginado. Era muito magra, com os cabelos da cor de café ralo cortados num estilo
chanel e tinha o rosto excessivamente maquiado.

— A gente se falou ontem — ele disse.

— Ah, sim. O Doutor Aldo ainda não chegou, está resolvendo umas coisas.
Como se chama mesmo?

— Michel Rodrigues.

— Isso, Rodrigues.... Sabia que era alguma coisa desse tipo. O meu é Ana
Clara. Se quiser, pode dar uma volta ou esperar aí no sofá. Ele não deve demorar.

Michel se sentou no sofá e cruzou as pernas.

O lugar se parecia com uma sala de espera de um consultório de dentista: à


sua frente, a mesa em que Ana Clara folheava um jornal e, do lado direito, uma porta de
vidro que dava em outra sala, essa um tanto maior. Lá dentro, um velho careca e uma
mulher de trinta e poucos anos curvavam-se sobre computadores e vez por outra faziam
anotações. Deviam ser alguns dos corretores da Lomma Imobiliária. Talvez não
parecessem grande coisa à primeira vista, mas certamente sabiam fazer a mágica
acontecer, do contrário não estariam ali. Naquele cubículo de cerca de vinte metros
quadrados, sonhos eram realizados, fortunas construídas. Em breve, Michel também
estaria ali.

Ana Clara tinha uma porção de classificados sobre a sua mesa: fazia círculos
sobre alguns anúncios, página por página, então os recortava, colocava dentro de uma
pasta e partia para o próximo jornal. De dez em dez minutos, o telefone tocava e ela
atendia, a perguntar se a pessoa buscava casa ou apartamento, em seguida passava a
ligação para o velho, para a mulher ou para um dos outros corretores que haviam
chegado. E então um frenesi acontecia na outra sala — todo aquele pessoal se curvando
ainda mais sobre os computadores, andando de um lado para o outro, fazendo ligações e
anotações. Um deles, o velho careca, uma hora subitamente pegou a sua pasta e saiu,
afoito como se fosse morrer, e, ao passar por Michel, seus olhos pareciam uma
constelação.

Eram onze e cinquenta da manhã e a sala 902 do Flamengo Beach Power


chiava feito uma panela de pressão, quando finalmente Aldo Lomma, o homem que
conduziria Michel à riqueza e aos dias bons, passou pela porta e ficou a lhe observar.
Assim como Ana Clara, não era nada do que esperava: de estatura baixa e barrigudo,
tinha os cabelos negros um tanto longos e desajeitados, um brinco em uma das orelhas e
a cara inchada de quem perdeu a noite anterior. Não possuía a elegância de Marcelo
Mastroianni, o olhar de Franco Nero, a classe de Vittorio Gassman. Aldo Lomma era no
máximo um Elymar Santos, mais largo e atarracado, ele que parecia mancar de uma
perna e tinha um tique, de tempos em tempos o seu olho direito piscando por dois ou
três segundos sem parar. Usava um paletó marrom muito largo e uma gravata verde
limão.

— Veio para a entrevista? — ele perguntou.

— Isso.
— Sou Aldo Lomma, o gerente proprietário da Lomma Imobiliária, onde se
faz a melhor corretagem do Rio de Janeiro! Venha até a minha mesa. Preciso saber se tem
as ferramentas certas para fazer parte da equipe.

Nenhum dos corretores respondeu ao bom dia que Aldo Lomma deu
quando entraram na outra sala. Dois ou três levantaram a vista, e nada mais. Ele então
falou outra vez, mais alto, e a coisa continuou do mesmo jeito, sem ninguém responder.
Michel presumiu que aquilo não tinha nada a ver com desdém. Era, provavelmente, foco,
comprometimento, uma inviolável vontade de vencer. Concentração, aquele pessoal
devia saber, é a mola mestra para se chegar a qualquer lugar.

Aldo pediu a Michel que o esperasse enquanto ia ao banheiro. Acabou


demorando uns dez minutos por lá. Um dos corretores falou alguma coisa e outros dois
sorriram. Eram cinco àquela hora e todos usavam roupa social e tinham algum tipo de
pasta ou maleta. Pareciam charmosos e importantes.

— Muito bem, Rodrigues, deixa eu te falar uma coisa — Aldo disse ao


retornar, ajeitando-se sobre a cadeira, piscando o olho um pouco mais do que antes. —
Toda vez que alguém me procura e senta aí onde está, basta uma rápida conferida para
descobrir se tem futuro ou não. Sou bom nisso, entendo de gente. E entendo ainda mais
de corretores! Se o cara tem futuro, é um grande alívio. Se não tem, é um outro tipo de
alívio, porque nem ele nem eu vamos perder tempo.

— Acha que tenho futuro?

— Não sei, ainda não deu para descobrir. Às vezes demora um pouco mais.
Mas a sua cara é boa. E esse sotaque?

— Sul da Bahia. Faz tempo que moro em Copacabana. Conheço como a


palma da minha mão.

— Olha só, valorizo muito os baianos. Baiano tem garra, personalidade. É o


que os clientes buscam. Os clientes não querem nada mais do que atravessar a rua para
encontrar o seu sonho, mas é uma rua muito larga e cheia de armadilhas. Eles precisam
de auxílio. Portanto, Rodrigues, é basicamente essa a função de um corretor da Lomma
Imobiliária: nós ajudamos as pessoas a atravessarem a rua. Acha que consegue fazer isso?
Michel respirou fundo e olhou para Aldo Lomma. Ninguém em sua cidade o
conhecia, mas ele era um grande empresário do ramo de imóveis da Zona Sul carioca e
estava prestes a lhe dar uma chance.

— Nasci para isso — respondeu. — Sou bom com as pessoas, elas confiam
em mim. Além de tudo, há um ditado que diz que as estrelas, no fundo, são sonhos que
se realizam. E, sinceramente, Doutor Aldo, eu quero encher de estrelas esse céu do Rio de
Janeiro.

— Belo!... — Aldo Lomma falou. — Gostei de você. E preciso de gente em


Copacabana. Um mês como captador, para ir se adaptando. Se alguém da empresa
vender um imóvel que você captou, leva a metade da comissão. Simples, e é só o começo.
Se fizer do jeito certo, em pouco tempo será um vendedor. É quando a grana entra de
verdade.

— Vou corresponder às expectativas.

— Assim espero. Amanhã começaremos o treinamento. Vou te ensinar a


captar os melhores imóveis da cidade. E, por favor, não venha mais com essa camisa. Com
ela, não vai vender nem conjugado em Madureira.

Michel saiu do prédio e caminhou até o ponto. Poderia pular e gritar, mas
apenas se sentou e esperou pelo ônibus que o levou até o Saara, não no norte da África,
mas no Centro da cidade — um shopping popular a céu aberto onde, naquela mesma
tarde, investiu uma parte do dinheiro que restava em sua carreira como corretor.
Comprou uma calça preta de brim, um sapato que imitava o couro de um jacaré e
algumas camisas sociais, que não pareciam de grande qualidade, mas que serviriam até
que pudesse ir a estabelecimentos mais conceituados, as grandes lojas em que as
atendentes esnobes o analisavam dos pés à cabeça tão logo parava para olhar as vitrines.
Seu gasto total chegou a oitenta e seis reais. Um grande valor, que seria transformado em
muito mais.
CAPÍTULO 6

O Aterro do Flamengo e o Pão de Açúcar apontando para o céu, a luz do sol


sobre a cidade que nascia mais uma vez. Metido em sua calça de brim e em uma das
camisas novas, Michel cruzou o imenso saguão do Flamengo Beach Power e acenou para
as loiras da recepção, e elas acenaram e sorriram de volta para ele. Deviam ser sempre
muito agradáveis aquelas loiras. Ao chegar à sala da imobiliária, Ana Clara lhe informou
que Aldo ia se atrasar, mas que poderia esperá-lo na outra sala, junto com os outros
corretores.

— Para ir se acostumando com o ritmo da empresa — ela falou.

Havia apenas um corretor àquela hora, e era justamente o velho careca.


Chamava-se Maciel e devia ter no mínimo setenta anos. Novamente curvado sobre o
computador, procurava, no programa da empresa, apartamentos de dois quartos para
mostrar a um cliente. Preenchia uma espécie de formulário, onde se colocava o bairro
desejado, a quantidade de quartos, de banheiros, área útil, área total, dentre outras
especificações. Depois de preencher tudo, o velho apertou o ENTER e o resultado
apareceu: três opções. Parecia bom, mas ele falou que não eram quase nada. Para alguns
clientes, necessitaria ter oito, dez imóveis. Havia clientes de todo tipo, com pressa ou sem
pressa, com muito dinheiro ou com pouco, mas quase todos eram um tanto chatos,
sovinas e desconfiados. Por conta disso, sairia para captar.

— Posso encontrar o que o senhor precisa — Michel falou.

— É? — o velho o encarou.

— Sim. Tão logo faça o treinamento.

— E quando vai ser?

— Hoje mesmo. Só estou esperando o Doutor Aldo chegar. Acho que ele
gostou de mim, disse que tenho cara de corretor.

— Ele sempre diz umas coisas assim no início.


O velho Maciel olhou para um lado e para o outro e então se curvou na
direção de Michel, como se fosse confidenciar algum obscuro segredo. Nesse exato
instante, Ana Clara abriu a porta e entrou.

— Hoje está fraco, não é, Seu Maciel? — ela perguntou.

— Tá cedo — ele respondeu, todo empertigado.

Ana Clara deixou os recortes de anúncios sobre a mesa de Aldo, ajeitou um


porta-canetas que estava fora do lugar e saiu.

— Até mais tarde — o velho Maciel falou logo depois, ficando de pé —


Preciso encontrar alguns apartamentos – e saiu pela porta.

O tempo passou. A sala se encheu de corretores, ficou quase vazia e tornou


a se encher. Aldo só apareceu à uma da tarde. Tinha, como antes, a cara inchada e os
olhos vermelhos de quem perdeu a noite anterior. Ninguém respondeu ao seu bom dia e
ele seguiu até o banheiro. Dez minutos depois, reapareceu, exultante.

— Rodrigues, está pronto?

— Sempre, Doutor Aldo!

— Então levanta essa bunda daí, que vou te ensinar a fazer dinheiro!

O carro de Aldo era um sedã preto da Renault com a porta do carona


amassada e o interior coalhado de guimbas de cigarro, canudos e copos descartáveis. Ele
explicava a Michel o que fariam, enquanto cortava ferozmente o trânsito a caminho da
Rua Belford Roxo, em Copacabana, onde minutos depois estacionou. O primeiro truque
era observar os anúncios afixados nas janelas. Aqueles que tinham o número do Creci não
serviam, pois eram de outros corretores. O que buscavam eram os anúncios feitos por
proprietários, um tanto artesanais, por vezes com o número do telefone escrito à mão.

E foi ali, com suas camisas e calças sociais, com seus sapatos de bicos
pontudos, que caminharam juntos Michel Rodrigues e Aldo Lomma, duas raposas a
esquadrinhar as janelas dos apartamentos da Zona Sul. Seus passos eram firmes, suas
posturas, eretas, e quem os olhasse saberia que estava diante de dois caçadores.
Avançaram por todo o quarteirão, atravessaram a Nossa Senhora de
Copacabana e alcançaram a quadra da praia. Não muito rápido, pois Aldo era manco e
não podiam deixar nada passar. Quase meia hora depois, quando pararam na esquina
com a Atlântica, só haviam encontrado três anúncios e todos eram de imobiliárias. Michel
ficou olhando para o Calçadão. Sempre havia gente por ali.

— Você está sem sorte, Rodrigues — Aldo falou. — Tomara que não seja
sempre assim.

— Talvez a gente encontre na próxima rua, Doutor Aldo.

— Não vai ter próxima rua. Preciso resolver umas coisas.

Naquele momento, sobre suas cabeças, um pequeno avião cortava o céu,


carregando uma faixa em que estava escrito “ — O SEU NOME NAS ALTURAS”. Michel o
acompanhou, enquanto ele fazia um arco no ar, virava de ponta-cabeça e depois voltava-
se para cima outra vez, passando por trás de um prédio. Em uma das janelas desse
prédio, presa com fita adesiva, havia uma cartolina rosa-bebê.

— Encontrei — Michel falou.

Era mesmo um anúncio de proprietário. Aldo discou o número e colocou a


ligação em viva-voz. Tocou quatro vezes e um homem atendeu. Aldo foi direto ao ponto e
falou da cartolina, depois elogiou o trecho da rua em que o prédio ficava, perguntou
sobre a metragem do imóvel, a quantidade de quartos e se havia vaga de garagem. O
homem respondeu a tudo, secamente. Então, Aldo falou que era o gerente proprietário
da Lomma Imobiliária, localizada no Flamengo Beach Power, e que tinha o comprador
perfeito para aquele imóvel. Dois segundos se passaram e o homem desligou.

— Canalha! — Aldo gritou.

Suas sobrancelhas estavam suspensas. Sua testa suava.

— Viu que filho da puta? — disse, virando-se para Michel. — Posso vender
esse apartamento num piscar de olhos, mas ele nem quis me escutar!
— Doutor Aldo — Michel falou —, eu tive uma ideia: e se, antes de
qualquer coisa, a gente logo disser que é corretor? Talvez essas pessoas sintam que
estamos jogando limpo, que a Lomma Imobiliária não tem nada a esconder.

Aldo o encarou. Seu rosto havia mudado, estava ainda pior. Era agora uma
máscara assustadora, disforme, a encarar Michel.

— Acha que não jogo limpo?

— Não me expressei bem. Eles é que são muito cismados.

— Ah, o Rodrigues aqui quer dar uma de pica grossa! — Aldo falou alto, em
meio às pessoas na calçada. — Ele quer mostrar como é que se faz! Já vendeu quantos
apartamentos, Rodrigues?! Dez, vinte?! Pelo tom da sua voz, devem ter sido quinhentos!

— Acho que falei demais, Doutor Aldo, me desculpe.

— Eu tenho certeza! Olha só, tudo o que pensar, qualquer ideia que tiver,
eu já tive antes. Estou no ramo há mais de uma década, não sou nenhum amador. Se
quiser ficar cantando de galo, dando liçãozinha de moral, vou logo avisando, não vai durar
uma semana lá na empresa.

Aldo parecia furioso. Continuava a encarar Michel, o olho piscando feito as


catracas de um caça níquel.

— Me espere aqui — disse. — Vou dar uma mijada.

Então se virou, caminhou até o bar que ficava na esquina da quadra,


entrou no banheiro e ficou dez minutos por lá.

CAPÍTULO 7
Michel recebeu um cartão de transporte, que poderia ser usado para se
locomover de ônibus ou de metrô, e um celular. Caso precisasse fazer um laudo, como
chamavam as análises e as descrições dos imóveis, pegaria uma trena e uma máquina
fotográfica com Ana Clara.

De uma extremidade à outra, ele seguiu a se aventurar por Copacabana,


embrenhando-se cada vez mais, percorrendo ruas e becos que nunca ouvira falar. Os pés
ganharam calos por conta dos sapatos, o rosto sempre banhado em um quente e
grudento suor. Na hora do almoço, engolia a promoção de um salgado com refresco em
alguma lanchonete. Não era tão fácil quanto tinha imaginado. Via, em todos os lugares,
uma porção de outros captadores com as suas pastas e os seus cabelos cortados na
semana anterior, todos olhando ininterruptamente para as janelas dos prédios, via as
placas dos corretores das outras imobiliárias, e em determinado momento percebeu que
era apenas mais um no meio daquele turbilhão de gente que ansiava vencer: ele, Michel
Rodrigues, que, em cada prédio que entrava, em cada porta que se abria, alimentava a
esperança de finalmente encontrar o seu amor.

E tantos foram os apartamentos que conheceu naqueles dias, alguns que


se assemelhavam ao que chamam de lar, outros que nem de longe lembravam um, e cada
um deles era como um universo independente, mas ao mesmo tempo unidos a fim de
formar algo maior, o universo daquele bairro, todo envolto em seu harmonioso caos.
Michel nunca se esqueceria do sujeito muito magro e com olheiras gigantescas que só
tinha um colchão e alguns livros sobre ocultismo no chão de sua sala, um homem por
demais esquisito, sempre a repetir que havia alguém lhe espionando, inclusive Michel,
olhando para a janela a cada cinco minutos e fumando um cigarro atrás do outro;
também não esqueceria daquela investidora de cabelos armados como um capacete que
morava no Leblon e que comprava apartamentos a preço de banana em Copacabana, os
reformando e fazendo anúncios cobrando o olho da cara depois; havia também o playboy
que herdou um conjugado na Barata Ribeiro e queria vendê-lo, mesmo abaixo do valor de
mercado, para passar um tempo no Havaí; o policial aposentado que se viciara em
corridas de cavalos e ia ao Jockey Clube todos os dias para apostar; e aquele casal quieto
e sem graça que estava em processo de divórcio porque o filho morrera afogado na
piscina de um hotel — os dois sentados no sofá da sala, cada um em uma ponta,
enquanto Michel tirava fotos do apartamento, e o rosto dela era só tristeza e solidão.

Numa daquelas tardes, ele andava pela Ayres Saldanha, uma rua não muito
lembrada, mas com ótima reputação. Excelentes famílias moravam ali. Nada de cortiços,
conjugados, putas ou travestis. Uma rua para se criar filhos, para bater no peito e gritar
que triunfou. A placa estava colada em uma janela do segundo andar, com um número e
um nome, Lúcia. Michel ligou e ela o mandou subir. Metida em um roupão de banho,
aguardava-o na porta: uma mulher na faixa dos cinquenta e poucos anos, falsa magra,
com os olhos azuis desbotados e sardas por todo o ombro e rosto. Seu sorriso era sem
graça, quase forçado. Mostrou-lhe a sala de estar em formato de cachimbo, uma sala
bem grande, medindo uns trinta metros, com espaço para uma mesa de jantar, dois
conjuntos de sofás, uma mesinha de centro e uma velha tevê. Lúcia falou do conhecido
ator que morava na cobertura, ele que era o atual síndico, um sujeito
surpreendentemente sério que em breve voltaria a fazer do prédio o melhor do
quarteirão. Havia um toque de melindre em sua voz, como se aquilo a emocionasse ou
duvidasse do que dizia. Michel tirou fotos da cozinha, da copa, da área de serviço, depois
passaram pela biblioteca, pelos quartos e, por fim, chegaram à suíte dos pais, cheia de
fotos da família. Lúcia então começou a se abrir. O velho fora almirante da Marinha, um
grande homem, um grande pai, amigo das pessoas e dos bichos, mas morrera há um ano,
vítima de um câncer, e a mãe, por conta da saudade, o acompanhou alguns meses depois.
Agora, ela enfim descobria como era enorme aquele apartamento, como ventava forte à
noite e como os pombos cagavam nas janelas todas as manhãs, quando ela acordava e via
as contas acumuladas debaixo da porta da sala. Era difícil pagá-las. Dividia a
aposentadoria do pai com dois irmãos e eles a convenceram de que era preciso vender o
imóvel.

— Vou para o Méier — ela falou. — Uma amiga mora na Dias da Cruz. Disse
que nem vou sentir falta daqui.

— Falam bem de lá — ele respondeu.

— É, falam. E nem é tão longe. Acho que se o apartamento for num andar
alto, talvez eu ainda consiga ver o mar...
Lúcia se calou e, por alguns segundos, era como se esperasse por qualquer
comentário de Michel. Então colocou as mãos sobre o rosto e começou a chorar. Seus
ombros sacolejavam, seu corpo inteiro vibrava em um soluço só. Ao redor, pregadas nas
paredes, as molduras da família: sobre um cais, o almirante, com o seu vasto bigode
branco, fazia continência, vestido com o uniforme da Marinha; em outra, uma senhora
com os cabelos grisalhos curtos sorria ao abraçar o almirante. Num porta-retratos sobre o
criado mudo, os dois, bem mais jovens, acompanhados de três crianças — dois moleques
loiros e sorridentes e, no meio, Lúcia, com onze ou doze anos, um tanto emburrada.

— Tudo o que vivemos é apenas um preparativo para o momento maior —


Michel disse, tocando em seu ombro.

Ela se virou e o olhou. Uma lágrima grossa escorria pela maçã do seu rosto
até o queixo e caía sobre o roupão semiaberto. Entendo o que sente, Lúcia, sei bem o que
é estar só. Apenas feche os olhos e deixe tudo seguir o seu curso. Quem sabe exista uma
recompensa por ser assim, Michel pensou.

— Por que falou aquilo? — ela perguntou, ficando de pé. — Você tem
razão. Parece que tudo foi mesmo um preparativo.

— Sim.

— Posso te abraçar?

— Pode.

Lúcia colocou a cabeça sobre o ombro de Michel e ele a enlaçou. Um gesto


de apoio, um ato de caridade, um socorro a uma alma que padecia de um terrível vazio,
mas, nossa, como foi bom! Sentiu aquele corpo colado ao seu, apertou a cintura,
percebeu o início da ladeira que dava nos quadris e o seu pau endureceu. Michel fechou
os olhos. As mãos dela passeavam e agarravam-se à suas costas, as unhas cravadas, como
se nunca mais fossem se soltar: as unhas de uma mulher. Foi inevitável imaginar que era
Sandy quem estava ali e por um instante ele teve a certeza de que era. Apalpou a sua
bunda, apertando-a com força entre os dedos, mordeu o pescoço e escutou um gemido.
Então, segurou em seu queixo e virou aquele rosto para si. E ali estava ela, não Sandy, o
seu grande e esquivo amor, mas Lúcia, com os olhos lacrimejados e tristes, olhos inchados
de tanto chorar, esperando que Michel a beijasse. E ele a beijou. Sentiu o gosto de café e
de biscoito cream cracker.

— Não! — Lúcia de repente gritou, correndo até a parede e espremendo-


se contra ela.

Michel ficou parado, com a braguilha aberta e o pau para fora da calça,
sem saber o que fazer.

— Não sei o que deu em mim - acabou falando.

— Por favor, vá embora!

— Sim, eu já vou.

Fechou o zíper e ajeitou a sua camisa.

— Não ia te fazer nenhum mal, Dona Lúcia — disse, antes de sair do


quarto. - Esse tipo de coisa nunca aconteceu. Sou comprometido. Amo a minha mulher.

— A culpa não foi sua... — ela respondeu.

— Não?

— Não. Eles estavam olhando. Eu não ia conseguir.

— Eles? — Michel perguntou.

— Eles — e ela apontou para o retrato do pai e da mãe na parede.

CAPÍTULO 8

Nas duas primeiras semanas, Michel conseguiu captar oito imóveis, a maior
parte conjugados ou quitinetes. Nada tinha sido vendido, mas era só uma questão de
tempo. Mais dia, menos dia, algum dos corretores/vendedores mostraria uma das suas
opções para algum cliente e ele receberia a sua primeira comissão.
Entretanto, outras duas semanas se passaram, dois conjugados foram
negociados e nenhum deles fora captado por Michel. Pensou em se aconselhar com Aldo,
perguntar-lhe qual a saída daquele limbo, mas foi justamente por essa época que o líder
da Lomma Imobiliária começou a passar por grandes e inesperadas mudanças. O homem
que agora entrava pela porta e que nem sempre dava bom dia para os seus subordinados
era um homem aflito, em guerra com o mundo, de constante mau humor. Aparecia só
após as três da tarde. Ia até o banheiro e, minutos depois, quando saía de lá, começava a
falar alto, quase a berrar, cobrando resultados e perguntando o porquê de as negociações
não acontecerem com a frequência que deveriam. Tudo isso de uma forma por demais
estridente. Um dramalhão cheio de baixarias e chantagens emocionais.

Algum tempo depois, vieram as reuniões. A princípio, nas terças e nas


sextas-feiras, e então quase todos os dias. Começavam às três e vinte da tarde e duravam
cerca de uma hora e meia. Os corretores que não estavam com laudos ou visitas
marcadas eram obrigados a participar. Todos lá, sentados e calados, vendo Aldo se
desesperar no intuito de provar o quanto eles eram ruins. Longos e extenuantes sermões,
intercalados com suas idas, de meia em meia hora, ao banheiro.

— Rodrigues — gritou certa vez, tão logo entrava na sala —, o que você
tem feito pela Lomma Imobiliária nesses últimos dias?

— Estou captando bastante, Doutor Aldo. Só preciso que alguém mostre as


minhas opções.

— Ué, não disse que sabia de tudo, que ia fazer isso e aquilo? Quero ver
resultados. Abre o olho, malandro, do contrário vai dançar!

Era triste, mas era a verdade: Aldo Lomma estava em crise. Almejava o
topo, mas só alcançara o nono andar. A cada reunião, o seu olho girava mais e mais, e as
idas aos banheiros passaram a ser de vinte em vinte minutos.

Michel começou a ficar na empresa todas as manhãs, quando o ar parecia


mais leve e fácil de se respirar. Sentava-se de frente para um dos computadores e entrava
nos sites com anúncios de imóveis. Em vez de procurar por proprietários, como o velho
Maciel lhe ensinara, ele apenas apreciava as fotos dos apartamentos e das coberturas da
Atlântica, tão grandes, bonitos e caros quanto se podia imaginar. Bastava um clique e lá
estava ele, o bem instalado Michel Rodrigues, circulando de bermuda ou de cueca por
todas aquelas salas enormes - e em todos aqueles sofás ele se deitou, assim como
caminhou por todos os longos corredores que o levavam até as janelas que se abriam
para o mar. Luxo e ostentação, as modernidades e o que nunca deixara de ser bom, tudo
ao seu dispor — ah, e como Michel se descobriu competente naquilo, sonhar! Quando se
aproximava das três da tarde, ele se levantava, pegava uma trena e uma máquina
fotográfica e dava a desculpa de que ia fazer um laudo.

CAPÍTULO 9

Nos finais de semana aconteciam os rodízios. Uma parte dos corretores


aparecia no sábado e a outra, no domingo. Na semana seguinte, os grupos se alternavam.
Aldo nunca dava as caras. Eram dias de paz e de divagações na frente do computador.

Num desses domingos, quando todos os corretores de plantão estavam


fazendo visitas ou captando, Michel teve a primeira grande oportunidade de vender um
imóvel.

— O nome dele é Otavio Quispe — Ana Clara lhe disse. — Quer ver a
cobertura da Lagoa. Tentei falar com o Aldo, mas ele não atendeu. Como não tem mais
ninguém disponível, é você quem vai mostrar. Vou te passar o endereço e algumas
informações.

— Quispe?

— É. Você só tem que abrir a porta e deixar ele olhar o apartamento. Não
precisa ficar falando nada. Quanto menos falar, melhor.
Michel saltou do ônibus na Rua Fonte da Saudade, entre o Humaitá e a
Lagoa Rodrigo de Freitas, e rapidamente encontrou o prédio. Era alto e branco, muito
mais branco que os demais. Havia um chafariz na entrada, uma vênus a cuspir um arco de
água sobre uma pequena bacia. Ele pegou a chave com o porteiro, que parecia odiar
corretores, e se sentou no sofá do hall de entrada. Cinquenta minutos depois, Otavio
Quispe saltou de um Chrysler branco. Era um homem baixo, de tez morena, com os
cabelos muito negros penteados de lado.

— Doutor Quispe — Michel disse, ao se apresentar. — Será um prazer


mostrar a cobertura para o senhor. É um imóvel fantástico. Tenho certeza de que é o que
busca.

— Bem, vamos ver — o Doutor Quispe respondeu.

Ali estava alguém que parecia ter classe. Os gestos de Otavio Quispe eram
delicados, ao mesmo tempo em que os seus olhos, espremidos e atentos, lhe atribuíam
certa presença. Dava para sentir que ele estava ali, sobretudo pelo perfume adocicado
que dominou todo o elevador. Saltaram no décimo e último andar e caminharam rumo a
uma colossal porta de madeira. Michel tentou imaginar o que Aldo ou Seu Maciel diriam
naquele instante, mas nada lhe veio e ele apenas enfiou a chave e a porta se abriu.

À frente deles, um imenso salão se estendia até as duas portas de vidro


que davam para uma varanda. A um lado, uma imensa sala e a cozinha em conceito
aberto, equipada com uma ilha de quartzo negro e uma gigantesca coifa de alumínio cor
de cobre. O forno era industrial. No meio da sala, do outro lado, o acesso ao lavabo e às
quatro suítes. As dependências, assim como a área de serviço, ficavam atrás da cozinha.

O Doutor Quispe suspirou ao ver tudo aquilo, Michel observou os seus


ombros subirem e descerem. Subitamente, ele tirou uma pequena bússola do bolso da
calça e, com um andar leve e saltitante, passou a conferir cada canto daquele lugar.
Conferiu os banheiros das suítes, a área de serviço, a despensa e as dependências,
sempre com a bússola na palma da mão, até que voltou à sala e seguiu até a varanda.
Michel abriu as portas de vidro e o Doutor Quispe suspirou outra vez ao ficar de frente
para a Lagoa Rodrigo de Freitas com seus caiaques e pedalinhos deslizando sobre a água
como se deslizassem em um pedaço do céu. No topo do morro, os braços abertos do
Cristo Redentor.

— Você tinha razão — Otavio Quispe disse. — Em uma hora, estarei na


imobiliária com o meu advogado. Fale para a sua equipe organizar a documentação.

— Não se preocupe, Doutor Quispe. Eu mesmo estarei lá, com a papelada


em mãos, aguardando o senhor.

Apertaram as mãos, Otavio Quispe saiu do prédio e foi embora com o seu
Chrysler branco. E Michel ficou a calcular quanto ganharia de comissão, enquanto
caminhava até o ponto de ônibus. Puxou o celular do bolso e ligou para a imobiliária.

— Ana Clara, preciso falar com o Doutor Aldo. É urgente!

— Ele está aqui. Já sabe que você foi mostrar a cobertura. Não gostou
nada.

— Diga que o cliente quer fechar negócio, hoje mesmo! Em uma hora vai
aparecer na empresa com o advogado. Em vinte minutos também estarei aí.

— Tem certeza?

— Claro! Por alguma razão achou que eu não conseguiria?

— Vou falar com ele. Mas, se ninguém aparecer, você vai ter um
problemão. O Doutor Aldo já tem muita coisa pra se preocupar.

— O Doutor Quispe vai aparecer.

Um coração em festa, o de Michel. Enfim, venceria a barreira da primeira


comissão e se transformaria em um vendedor. Nada mais de bater pernas, procurando
uma salvação nas janelas embaçadas, nada mais de proprietários arrogantes e mal-
educados. Encontrem o que quero, pessoal, e venderei para quem quer que seja, pois
vendi uma cobertura ao doutor Quispe na primeira visita que ele fez! Quem seria ele, o
Doutor Quispe, afinal? Um figurão da política, um empresário, algum juiz ou médico
cirurgião? Michel nunca ficou sabendo. Cinco minutos depois de ter se sentado no ponto
de ônibus, o celular tocou. Era Aldo. Acabara de receber uma ligação do cliente, a compra
estava cancelada. Alguma coisa ligada ao financiamento.
— Tire hoje e a segunda de folga – Aldo disse. - Essas coisas acontecem
com qualquer um.

Sentado onde estava, Michel ficou a olhar para o asfalto à sua frente.
Tentava descobrir se com as outras pessoas acontecia o mesmo. A vitória por um fio, a
felicidade escapando feito a água da chuva quando escorre rumo ao bueiro. O ônibus
para o Aterro do Flamengo passou e ele não fez sinal. Logo depois, veio o 415, direto para
Copacabana, e ele entrou. É difícil sonhar quando nada se torna real. Quando uma nuvem
negra cisma em lhe seguir. Talvez lhe faltasse sorte. Todo mundo tinha que ter um pouco
de sorte consigo, do contrário passaria a vida naquele quase conseguir. Sorte ou um
destino bom, ele não sabia dizer. Talvez fossem a mesma coisa.

A duas ou três cadeiras de onde havia se sentado, uma garota o encarava


insistentemente. Devia ter uns quinze ou dezesseis anos. Carregava uma mochila no
ombro direito e vestia uma calça jeans e uma camiseta escolar. Michel a encarou de volta
e balançou a cabeça, sem muito ânimo, a cumprimentando. Ela deu de ombros, depois
levantou o dedo do meio e se virou.

CAPÍTULO 10

A sua carreira como corretor de imóveis na Zona Sul carioca. Não tão
próspera e duradoura quanto nas fantasias que havia alimentado, pois chegou ao fim
naquele domingo, o triste domingo em que, em alguns poucos minutos, foi do céu ao
purgatório, o domingo em que, planando por entre as nuvens, Michel repentinamente
despencou. Descobriu toda a perfídia na terça-feira pela manhã, ao saltar do ônibus em
frente ao Flamengo Beach Power, quando Seu Maciel, emergindo das sombras da
padaria, o chamou para conversar. O negócio da cobertura da Lagoa fora fechado, com a
presença do doutor Quispe e de seu advogado. Aldo embolsou toda a comissão, cerca de
dezoito mil reais. O velho acompanhou o ardil, enquanto fazia uma pesquisa no
computador.

— Talvez esteja enganado, Seu Maciel, o Doutor Quispe veio resolver um


problema com o financiamento — Michel disse.

— Que mané financiamento – Maciel respondeu, impaciente. — O homem


pagou à vista. São uns tremendos canalhas, Rodrigues, eu te avisei! Aldo e Ana Clara. Ela
faz qualquer coisa que ele mandar.

— Ela gosta dele?

— Sei lá, pouco me importa. O que sei é que o Aldo está desesperado.
Deve um dinheiro grande para um traficante.
— Verdade?

— Claro que sim. É um viciadão. Já reparou no nariz dele quando sai do


banheiro? Tenho uma transação de um quarto e sala em andamento e não quero ser
passado para trás. Vou ficar na cola desses bandidos. Mas, assim que puder, parto para
outra imobiliária. Tenho muitos contatos no ramo.

Maciel suspirou, colocando as mãos na cintura. Michel olhou para ele e se


lembrou daquela primeira manhã.

— O que vai fazer? — o velho perguntou. — Vai permitir que fiquem com a
sua comissão?

— De jeito nenhum! — Michel respondeu. — Vou lá em cima agora


mesmo.

— É assim que se fala.

Michel saltou do elevador e caminhou até a porta da sala 902. Antes de


tocar a campainha, respirou longa e pesadamente, como que para ganhar tempo,
calculando o que viria a seguir. Quem sabe tudo não passasse de uma grande confusão.
Seu Maciel bem que poderia ter entendido errado; coitado, já beirando os oitenta. Ele
pensava nisso, quando a porta se abriu e em um segundo toda a sua esperança
desvaneceu. À sua frente, Ana Clara o olhava, assustada e ao mesmo tempo enojada,
como se tivesse se deparado com algum bicho que precisava ser morto.

— Não estava de folga? — ela perguntou.

— Estava. Aldo já chegou?

— O Doutor Aldo não vem hoje. Nem hoje, nem nos próximos dias.

— Está muito ocupado, como sempre.

— Sim, resolvendo umas coisas.

Ana Clara, aquela magricela empoada que morava em Mesquita e pegava


dois metrôs lotados para ir trabalhar, apaixonada pelo personagem que Aldo havia criado,
na certa se achava o máximo por pensar que o enganava. Sentou-se atrás de sua mesa e
ficou circulando anúncios no jornal, fingindo um bocejo.

— Estou por dentro de tudo, Ana Clara — Michel disse, olhando bem no
fundo dos olhos daquela mulher. — Sei que o negócio foi fechado e que a empresa está
com a minha comissão. Dezoito mil reais. Quero esse dinheiro.

— Está delirando, Rodrigues? Não fechamos negócio nenhum.

— Não? O que então o doutor Quispe veio fazer aqui no domingo com o
seu advogado? Eu estava lá embaixo, vi quando entraram no prédio. Até pensei em subir,
mas imaginei que poderia confiar em vocês.

Ela não respondeu.

— Essa comissão é fruto do meu suor, Ana Clara. Eu mereço! Se não


mostrasse a cobertura, o doutor Quispe teria procurado alguma outra imobiliária.

— Você não fez nenhuma diferença! — ela berrou, se debruçando sobre a


mesa. — Mesmo que fosse um vendedor, e você não é um vendedor! Mesmo que o
imóvel fosse negociado, o que não aconteceu, ainda não faria qualquer diferença! Você
não é nada, é só um captador! E talvez nem isso seja mais!

— Amanhã, Ana Clara. Venho depois do almoço, para que tenham tempo
de contar toda a minha parte.
— Do contrário vai fazer uma macumba?!

— Do contrário, procuro a imprensa para contar sobre as dívidas de Aldo


com traficantes. Vai sair em tudo quanto é jornal.

Michel ficou de pé, deu as costas para Ana Clara, caminhou até a porta e
saiu.

No dia seguinte, às três da tarde, retornou. Estava furioso e também


abatido. Não dormira, a imaginar a guerra que talvez tivesse que travar. Ganhou o
saguão. Por uma questão de hábito, levantou uma das mãos para as loiras, em saudação,
e elas, curiosamente, não responderam. Michel chamou um dos elevadores e esperou,
ansioso. Encheu o peito de ar. De súbito, sem qualquer aviso, o seu corpo foi deslocado e
jogado no chão. Sobre si, um dos seguranças do prédio tentava imobilizá-lo, apertando o
seu pescoço com força. Era um homem grande, cheio de energia. Antes que Michel
pudesse perguntar o que estava acontecendo, outro segurança apareceu e ele foi
colocado de pé, com o braço direito torcido para trás. Foi levado até a entrada do prédio.

— Vocês não sabem o que estão fazendo! — gritou, ao ser empurrado para
a calçada.

— É claro que sabemos — um dos seguranças respondeu. — Estamos por


dentro de todos os seus planos. Acho melhor desistir. Não queremos malucos por aqui!

Os seguranças cruzaram os braços e ficaram parados na entrada do prédio


iguais a dois cães de guarda.

Em que terrível e sórdido jogo ele fora se meter! O jogo de Aldo Lomma,
tenham cuidado com ele, é um cafajeste que anda mancando e piscando um olho por aí.
Michel são sabia jogá-lo. Não tinha jeito, não tinha forças. Talvez também não tivesse
tempo.

Foi até a padaria, mas não encontrou o velho Maciel ou qualquer outro
corretor. Tomou um café, debruçado sobre o balcão, fazendo hora até que alguém
aparecesse, só que ninguém apareceu e ele então voltou para o seu quarto no Hotel
Realeza. Pegou o celular que ainda estava em suas mãos e ligou para a Lomma
Imobiliária. Tocou inúmeras vezes, mas nada de atenderem. Na certa, tinham um
identificador de chamadas. Praguejou e xingou, não apenas Ana Clara e Aldo, mas
também Otávio Quispe, que decerto sabia da tramoia e não se opusera a ela. Dezoito mil
reais, tudo transformado em uma montanha de pó. Concluiu, sem demora, que tudo
estava perdido - não apenas a comissão, mas a sua própria existência. Eram esses os seus
pensamentos, quando escutou a voz de Ana Clara do outro lado do telefone.

— Lomma Imobiliária, boa tarde, procura por casa ou por apartamento? —


ela perguntou.

E Michel, que tanto precisava daquele dinheiro, que o merecia mais do que
qualquer um, apenas ficou em silêncio, escutando a respiração da usurpadora até ela
desligar.

CAPÍTULO 11

Não sabia por quanto tempo mais conseguiria permanecer na cidade. Devia
uma semana ao hotel e passava a maior parte do tempo nas ruas, fugindo de Sóstenes e
procurando por Sandy, enquanto tentava descobrir em uma saída para a sua situação.

Uma noite, deitado em seu quarto, sonhando com bombas de chocolate e


tigelas de açaí, viu a porta se abrir e a cara comprida de Buade aparecer. Imaginou que o
gringo viera chamá-lo para fumar ou comer um pedaço de pizza, mas estava enganado.

— A Evelyn vai dançar hoje. Vim te convidar para ir comigo.

— Agradeço o convite, Buade, mas estou duro — Michel falou. — As coisas


mudaram ultimamente.

— Não se preocupe. A noite vai ser por minha conta.


Uma hora adiante, eles estavam de frente para a Picardia Night Club, na
esquina da Prado Júnior com a Nossa Senhora de Copacabana. O suor de seus rostos
refletia o vermelho e o azul do letreiro de neon. Buade conhecia um dos seguranças, um
negro alto com um casaco de couro, e eles sorriram quando apertaram as mãos.

Era um lugar escuro, com uma porção de mesas espalhadas, mas naquele
momento só duas estavam ocupadas. Na primeira, quatro ou cinco turistas japoneses e,
na segunda, um sujeito com o paletó amassado curvado sobre uma garrafa de uísque. À
frente das mesas, um palco com um poste de pole dance. Tinham duas garotas sentadas
no balcão conversando com o barman, uma delas acenou para Buade.

Os dois bebiam conhaque e comiam uma porção de amendoins, quando a


primeira apresentação começou. Era uma morena baixa com os cabelos negros até a
cintura. Seus olhos transitavam entre uma malícia dissimulada e algum tipo de tédio ou
cansaço, como se o tempo inteiro estivesse prestes a abandonar o palco ou a gritar. Mas
ela não gritou, apenas continuou a rebolar e a tirar as peças de roupa, enquanto Tina
Charles cantava “Love to Love”. Por vezes, seu gingado não batia com o ritmo da música,
talvez rápida demais para o estado de espírito em que se encontrava. Aquilo não impediu
que o sujeito do paletó amassado e da garrafa de uísque começasse a bater palmas e a
assobiar. E então, finalmente, ela estava nua. Michel viu os seios pequenos, um tanto
flácidos, e a penugem preta, em formato de pirâmide, sobre a xoxota. Ela se agarrou ao
poste e começou a girar. Possuía uma boa elasticidade, mas nada parecia muito natural.
Somente a repetição de um movimento que aprendeu, a saga de uma alma esquiva e
saturada. Quando a apresentação chegou ao fim, a dançarina desceu do palco e
caminhou, sem muita pressa, pelo corredor que levava aos camarins.

Buade e Michel seguiam a acompanhar as apresentações e a enxugar um


conhaque após o outro, de maneira que a boate já estava cheia, e eles quase bêbados,
quando, cerca de uma hora e meia depois, a confusão começou. O sujeito do paletó
amassado foi até o palco e tentou apalpar os seios de uma das dançarinas, mas o
segurança o pegou pelo braço e o levou de volta até a sua mesa. Não demorou muito, ele
tornou a subir no palco e a agarrar a garota, que agora gritava e se debatia, enquanto
tinha um dos seios engolido. O segurança novamente intercedeu, só que, em vez de levar
aquele repulsivo sujeito novamente até a sua mesa, o escoltou até a saída da Boate e o
mandou embora. Minutos depois, ele reapareceu com um revólver na mão.

— Onde é que está o valente agora? — gritou.

Ninguém respondeu e ele então apontou a arma para o teto da boate e


atirou. De imediato, todos correram para se esconder, amontoando-se embaixo das
mesas, das pilastras e dos sofás. E, provavelmente por conta de o tiro ter atingido alguma
fiação, mas também pode ter sido por causa de algum cigarro aceso que caiu sobre o
carpete, de repente um incêndio se iniciou, trazendo a reboque o barulho de gritos e uma
correria ainda maior. Era como se o mundo estivesse se acabando e a destruição
começasse bem ali, no antro de sordidez que era o Picardia Night Club, onde garotas de
biquíni e homens bêbados e de meia idade - quase todos com medo da morte e das
manchetes nos jornais -se acotovelavam e se pisavam rumo a porta de saída. Mas, para a
aflição de todos, a porta estava emperrada. Enquanto isso, com impressionante rapidez, o
fogo se alastrava. Àquela altura, as chamas já alcançavam o corredor que levava aos
camarins e dava para ver, mesmo em meio a toda a fumaça, o terror no rosto das
pessoas, um terror por certo parecido ao que o próprio rosto de Michel exibia.

Mas eis que, afinal, movida pela pressão dos empurrões, a porta cedeu e
toda aquela gente saiu em disparada, jogando-se sobre a calçada. Alguns vomitavam,
outros tentavam puxar um pouco de ar fresco para dentro dos pulmões. Do prédio em
frente, uma multidão acompanhava a tudo. Na Prado Júnior, os carros desaceleravam sua
marcha para acompanhar aquele triste carnaval.

Michel encontrou Buade sentado no passeio, as costas encostadas na


vitrine de uma loja de souvenir.

— E a Evelyn? — ele perguntou ao ver Michel.

— Não sei como ela é.

Buade ficou de pé e começou a correr de um lado para o outro, à procura


de Evelyn, e quanto mais demorava para encontrá-la, mais desesperado ficava. Chegou
mesmo a tentar entrar na boate outra vez, mas um dos seguranças o impediu. Então
alguém lhe falou que havia uma saída nos fundos, atrás dos camarins, e que a maioria das
dançarinas tinha escapado por lá. Ele foi até onde Michel estava, do outro lado da rua, e
juntos olharam para as chamas que consumiam o Picardia Night Club, ao passo que as
sirenes do caminhão de bombeiros foram ficando cada vez mais altas e os seus faróis
iluminavam a fachada dos prédios. Estacionaram em frente à boate e direcionaram a
mangueira para o teto, que esfumaçava. Minutos depois, chegaram mais um carro de
bombeiros e uma ambulância do SAMU.

— Vocês também estavam na boate? — um homem perguntou, ao se


aproximar deles.

— Sim — Michel respondeu.

— Venham comigo. Precisam prestar depoimento.

Entraram em uma viatura e seguiram até a 12ª DP, que ficava na Hilário
Gouveia. O delegado de plantão os interrogou por cerca de uma hora. Por algum motivo,
achava estranho que um baiano e um francês estivessem juntos. Logo eles, que não
arredaram o pé, enquanto todos os outros frequentadores da boate já tinham ido
embora. Qual a justificativa para aquela estranha fixação? Perguntou de onde se
conheciam, o que faziam, se tinham alguma ligação com o turismo sexual ou com o
tráfico internacional de entorpecentes. Parecia mais preocupado em descobrir qualquer
tipo de crime em que poderiam estar envolvidos do que em ir atrás do homem que
originara toda a tragédia. Depois que o interrogatório acabou, os dois foram colocados
em uma cela e, sem qualquer explicação, os deixaram lá, juntos com um travesti e um
sujeito com cara de perturbado. Era um homem com a cabeça raspada, sem camisa, de
olhar frio e esquisito. Ele ficou um bom tempo encarando Michel e Buade, sempre
sorrindo, acocorado no chão. Então se levantou, tirou o pau para fora da bermuda e
mandou o travesti chupar. Por dez minutos, ficou a se balançar para frente e para trás,
sorrindo e olhando para os dois, que não o encaravam, até que soltou um urro grotesco e
se tremeu da cabeça aos pés. Balançou o pau, respingando um tanto de porra na cara do
travesti, fechou o zíper e voltou a se acocorar. Pouco antes de amanhecer, um policial
apareceu e disse que os dois podiam ir embora.

— Sabe — o gringo falou enquanto caminhavam de volta para o Hotel —, a


gente estava lá, trancafiado com aquelas duas figuras, eu fiquei pensando em uma coisa.
— Em quê?

— Em Evelyn e em Sandra.

— Que tem elas?

— Nós só somos o que somos por causa delas, meu amigo. Se elas não
existissem, hoje eu estaria na França e seria como o meu pai, um homem que só faz
juntar dinheiro. E você nunca teria vindo pra cá.

— Você ainda está bêbado, Buade.

— Não estou, não. Quando a Sandra chegar e eu me acertar com a Evelyn,


a gente deveria sair juntos para se divertir. Seria ótimo.

O rosto comprido de Buade parecia cansado, mas ele sorria. Suas roupas
estavam cobertas por uma fina e negra poeira. A alvorada trazia o barulho da cidade, que
despertava, e revelava neles as marcas da noite anterior. Cruzaram a esquina da Prado
Júnior com a Nossa Senhora de Copacabana e seguiram até uma padaria. Sentaram-se no
balcão e pediram pão na chapa e café.

CAPÍTULO 12

As caminhadas na Atlântica e o velho colchão de molas, o teto mofado do


quarto 305, a janela que dava para o sinal. Tantas fantasias e esperanças alimentara, mas
o prazo de Michel havia acabado e ele agora tinha que deixar para trás todas aquelas
coisas que tanto aprendera a gostar.

Àquela hora, Sóstenes ainda estaria dormindo, recuperando-se da


madrugada anterior. Não seria difícil sair sem ser notado. Era triste ir embora daquela
maneira, mas lhe sobrara pouco dinheiro, apenas o suficiente para retornar à sua cidade.

Dobrou as roupas sobre a cama, pegou a mochila e a abriu, sacudindo-a


para tirar a poeira que havia se acumulado. Ao fazer isso, algo caiu no chão. Poderia ser
uma conta de lanchonete, um folder qualquer, mas era o papel em que sua mãe tinha
escrito o telefone e o endereço de sua tia, que morava na Zona Norte.

Michel se sentou em uma das cadeiras e ficou olhando para a letra da mãe.
Ela o amava. Fazia preces, pedindo que os santos o protegessem, e eles o tinham
protegido. Agora, nada mais de tristezas ou apertos, nada mais de preocupações com
comida ou com diárias de hotel. Seguiria para Maria da Graça, na Zona Norte, para a casa
de sua Tia Adélia, uma pessoa de muita coragem que, décadas antes, também
abandonara a tudo por conta de um amor. Em verdade, não sabia muito a respeito dela,
mas não tinha importância. E em pensar que estava prestes a desistir.

Correu até o orelhão na esquina.

— Tia Adélia? — perguntou, assim que uma mulher atendeu.

— Quem é?

— Sou eu, Michel, o seu sobrinho. Estou no Rio, no apartamento da minha


namorada. Imaginei que poderia passar uns dias aí com vocês. Mamãe disse que seria
uma boa ideia.

— Lamento, mas não vai dar. A casa é pequena e está uma bagunça — a
voz da tia era grave, com um forte sotaque carioca. — Além do mais, você não ia gostar
daqui.

— Não tenho luxos, tia. Acho que seria uma ótima oportunidade para a
gente se conhecer melhor.

— Não quero que me conheçam melhor. Prefiro que fique por aí mesmo,
com a sua namorada.

— Não posso. Ela viajou a trabalho e acabou alugando o apartamento para


alguns turistas argentinos, que chegam amanhã. Mesmo que quisesse, não poderia ficar
aqui.

— Quando ela volta?

— Em quinze ou vinte dias.


— Por que não se hospeda em um hotel?

— Estou sem dinheiro. Emprestei para Sandy. Ela vai me pagar quando
voltar.

— Sandy?

— É a minha namorada. Sandra D’Angelo.

— ...

— Tia?

— ...

— A senhora está aí?

— Apareça antes de escurecer — ela disse. — Não gosto de abrir a porta


depois que escurece.

— Estarei aí antes do almoço!

A tia desligou.

Michel voltou até o quarto. Pegou as roupas sobre a cama e as enfiou na


mochila. Adeus, inoportunos ácaros do quarto 305, ele pensou, finalmente os deixarei
para trás! Adeus banhos frios, ranger de escadas, adeus gritos de turistas, putas e
travestis que atravessavam o mundo através do basculante no banheiro, adeus!

Colocou a mochila nas costas e foi até o quarto de Buade para se despedir,
mas não o encontrou. Talvez tivesse saído para comprar cerveja. Resolveu escrever um
bilhete.

“Buade, rapaz, você não vai acreditar. Hoje eu estava na Pompeu de Toledo
e de repente alguém veio por trás e colocou as mãos nos meus olhos. Era Sandy! Estou
indo para o apartamento dela neste exato momento e vim aqui me despedir, mas você
não estava. Apareço depois, já que vou ficar a apenas algumas quadras daqui.

Quando puder, fale pra Evelyn que em breve vamos vai fazer uma farra
juntos. E que ela e Sandy vão se dar muito bem.
Um abraço do seu amigo,

Michel“

Deixou o bilhete sobre a mesa, pegou a mochila e desceu as escadas até o


saguão. Estava vazio, como em todas as outras manhãs. Abriu a porta e saiu, apressado,
na direção do metrô.

CAPÍTULO 13

O leve arranhar sobre os trilhos, o pulsar da fera de metal que cortava a


cidade com o seu rugido silencioso e veloz. Botafogo, Flamengo, Catete, Glória,
Cinelândia, Carioca, Central do Brasil... A cada estação, as pessoas iam se transformando,
ganhavam outras caras e jeitos. Em vez de madames e jovens com fones de ouvido,
Michel passou a ver office boys, vigias, vendedoras da Avon, caixas de supermercados e
toda aquela gente que vivia nas sombras dos cartões postais, enchendo filas, morrendo
nas ruas e em corredores de hospitais. No lugar dos arranha-céus e das avenidas
arborizadas com vista para o mar, começaram a surgir os pequenos prédios com paredes
pichadas e manchadas pela fumaça das descargas dos carros, viadutos que funcionavam
de lar para dezenas de pessoas, botecos falidos, bancas de jogo do bicho e casas para
tratamento espiritual. Os sacos de lixo se acumulavam nas esquinas, os carros de polícia,
mesmo ao sol de quase meio dia, incendiavam o asfalto com as luzes das suas sirenes
vermelhas, e uma enormidade de gente passava apressada, todos com as feições
carregadas, como se apostassem as últimas fichas num jogo perdido. Em cinquenta
minutos, chegou à estação de Maria da Graça. Era suja e, tirando as poucas pessoas que
saltaram com ele e de um sujeito que dormia em um canto, não havia mais ninguém.

Procurou a Rua Honório por mais de uma hora. Era uma longa reta que
acabava em uma ladeira em que casas com a pintura gasta e cacos de vidro sobre os
muros jaziam enfileiradas. Dentre todas, a com pior aparência era a de número 420, a
casa de sua tia. Havia mais reboco do que pintura, rachaduras na estrutura, um jardim
com roseiras murchas e algumas telhas quebradas onde descansavam, feito duas
gárgulas, dois robustos pombos, um preto e um cinzento. A aparência era a de um lugar
prestes a ser demolido. Um muro baixo com um arame enferrujado a cercava, e havia
dois portões, um grande, que devia levar à garagem, e outro, que dava para a entrada da
casa. Michel tocou a campainha e aguardou por alguns minutos, mas ninguém apareceu.
Tocou novamente, depois mais uma vez e ainda outra. Por fim, imaginou que não havia
ninguém em casa. Sem ter o que fazer, pegou uma pequena pedra que encontrou sobre a
calçada e a arremessou contra um dos pombos no telhado. Acabou acertando o vidro da
janela. Em dois segundos, a porta da frente foi aberta e uma mulher apareceu.

— Que droga você está fazendo?! — ela gritou.

— Tentei acertar um dos pombos.

— Mentira, você jogou de propósito!

— Não. Tinham mesmo dois pombos no telhado, bem ali, mas eles voaram.
Eu nunca tentaria acertar a sua janela, Tia Adélia.

— Não gosto de baderna aqui. Menos ainda de mentiras. Acha que porque
é parente que vai fazer o que quiser?

Ela o olhava de um modo estranho, como se não acreditasse que ele de


fato estava ali. Era muito parecida com a sua mãe, só que mais gorda e mais velha. Tinha
os cabelos grisalhos desgrenhados e duas grandes bolsas embaixo dos olhos. Vestia um
camisolão vermelho. Por fim, ela suspirou, abriu o portão e o deixou entrar. Nenhum
sorriso ou abraço, nenhuma pergunta sobre a família ou se gostara da cidade. Seguiram
por um corredor que margeava a casa, repleto de vasos com plantas murchas, e
alcançaram um quintal. Era grande e cheio de árvores, mas ao mesmo tempo sujo e
bagunçado. Havia um pequeno bangalô nos fundos.

— Tem colchões e um banheiro lá dentro — ela falou, apontando para o


bangalô. — A casa só tem dois quartos e, em um deles, guardo as minhas coisas.

— Está ótimo, tia. Agradeço pela sua generosidade.


— Não é generosidade. Inclusive, andei pensando que, se você vai mesmo
ficar aqui todos esses dias, vai ter que fazer algumas coisas pra ajudar.

— Que tipo de coisas?

— Não faltam opções. Pode começar pelo telhado. Algumas telhas


precisam ser trocadas.

— Tudo bem — ele disse, observando o telhado escuro, coberto por limo e
musgo. — E o tio Pedro, está em casa?

— Não, e por mim nem precisaria voltar. Fique longe dele. É um


imprestável.

Então, sem dizer mais nada, ela se virou e seguiu até a porta dos fundos.
Seus passos eram pesados, quase arrastados, mas havia uma pressa neles, um esforço em
se distanciar. Abriu a porta, entrou e, com uma surpreendente rapidez, a fechou. Em
nenhum instante olhou para trás.

O bangalô estava bem longe de ser um quarto para visitas. Parecia-se


muito mais com um depósito. Espalhados por todo o lugar, camas desmontadas e
armários cheios de cupins, livros com traças, caixas com panelas detonadas, aspiradores
quebrados, garrafas vazias de vinho, uísque e vodca, cabos de vassoura, lustres e mais
uma porção de quinquilharias. O ar não circulava e quando Michel tentou abrir a janela,
descobriu que estava pregada. A sensação de claustrofobia era terrível. Encontrou a
espuma de um colchão sobre uma cristaleira empoeirada, estirou-o no chão, ajeitou a
mochila, fazendo-a de travesseiro, e se deitou. Sentia-se incrivelmente cansado, tanto
que adormeceu. Sonhou que caminhava por um deserto. Não havia nada ao redor, nem
gente nem casas, apenas ele e toda aquela areia. Em determinado ponto, ao subir até o
alto, enxergou alguém. Estava longe demais para distinguir, mas ele sabia que era Sandy.
Começou a correr, desesperadamente, ladeira abaixo, mas a distância entre os dois nunca
diminuía, e quanto mais ele corria, mais Sandy parecia se distanciar. Em desespero,
Michel gritou, pedindo que ela o esperasse. Então uma voz veio até o seu ouvido e lhe
disse: “Desista, Michel. Essa mulher nunca existiu”.
Abriu os olhos. Era noite lá fora e as suas costas e a sua testa estavam
suadas. Ficou de pé, acendeu a luz e foi até o banheiro para lavar o rosto.

— Está aí, garoto? — escutou alguém perguntar.

Parado na porta, um sessentão alto e magro, com a voz pastosa, a exalar


um forte cheiro de álcool. Era o seu Tio Pedro. Falou qualquer coisa sobre ter visto a luz
acesa e perguntou se Michel queria comer.

O quintal era ainda mais escuro por causa das árvores e eles subiram a
escada que levava ao pátio, passaram pela porta dos fundos e entraram na cozinha de
azulejos partidos e engordurados. Não havia nenhum sinal da tia. Uma mesa com três
pernas repousava encostada à parede, ao lado de uma geladeira enferrujada e de um
fogão sem alguns botões. Sobre ele, três panelas destampadas: uma com um caldo de
feijão preto, outra com arroz e a terceira com uma carne moída frita no óleo. O tio
esquentou as panelas, jogou tudo num prato e o colocou sobre a mesa, à frente de
Michel. Sentou-se e acendeu um cigarro. Além do cheiro de álcool e de uma tremedeira
nas mãos, parecia haver nele qualquer outra coisa fora do lugar, mas Michel não se
esforçou em descobrir o que era. Encheu o garfo com o caldo de feijão e a carne moída,
levou-o à boca e mastigou. O gosto era horrível. A carne moída parecia repleta de alho
cru, e ele detestava alho cru, e o caldo de feijão estava azedo. A vontade que lhe veio foi
a de cuspir tudo de volta no prato, mas não podia. Num esforço, engoliu de uma vez.

— Eu nem sabia que a Adélia tinha um sobrinho — o tio disse.

— Talvez o senhor tenha esquecido. Sou o único filho de sua única irmã. Ela
até me mandou um boné do Botafogo uma vez.

— Posso te garantir que não esqueci.

O tio tragou a bituca do cigarro e o reflexo da brasa iluminou o seu rosto.


Dava para ver as marcas da guerra que travou ou ainda travava com a mulher — os olhos
inchados e cansados, a pele enrugada, os ombros arqueados. Em que curva da vida a
confiança havia lhe escapado? Possivelmente após a sua aposentadoria, quando os dias
se tornaram previsíveis e iguais. Michel pensava nisso, quando sentiu o seu estômago
começar a embrulhar e um suor frio brotou de sua testa.
— Tia Adélia foi dormir? — perguntou.

— Ela quase não dorme. Deve estar no quarto, escutando a nossa


conversa, esperando que eu entre. Eu achava essas coisas engraçadas antigamente.

— Na época em que o senhor era piloto de avião?

— Não, nunca fui um piloto de avião. Cheguei no máximo a motorista de


ônibus interestadual. Não gostou da comida?

— Adorei, mas tenho que ir — Michel disse, ficando de pé. — Lembrei que
preciso fazer umas coisas.

— Já?

— Sim. Obrigado pelo jantar, tio, vamos conversar mais depois.

O tio ficou a observá-lo, curioso, enquanto ele abria a porta e saía.

Atravessou o quintal correndo, entrou no bangalô e foi direto para o


banheiro. Estava abarrotado de caixas, mesmo assim ele se curvou sobre a latrina e
vomitou. A cada golfada, uma cascata grossa e escura saía de sua boca, e foram muitas,
uma após a outra. Sentiu-se tonto, por pouco não desfaleceu. Aspirou vagarosamente o
ar.

— Poderia ter usado o banheiro da casa — a voz do tio soou do lado de


fora do bangalô. — Esse daí está com defeito.

— Não se preocupe, já dei um jeito. Eu só precisava dar uma mijada!

— Tem certeza?

— Tenho.

O tio continuou ao pé da porta por alguns segundos, a sua sombra se


movimentando por trás da vidraça da janela.

— Aceita um conselho, garoto? — perguntou após alguns segundos.

— Pode dizer.
— Não demore muito por aqui. Arranje uma desculpa e caia fora. Vai me
agradecer depois. Entendeu?

— Entendi.

— Boa noite.

— Boa noite.

Michel escutou os seus passos enquanto se afastava e, depois, a porta dos


fundos batendo. Com que espécie de gente fora se meter? Nem de longe se pareciam
com o que sua mãe havia falado. Estirou-se sobre o colchão e tornou a ajeitar a mochila
sob a cabeça. Talvez só precisasse dormir. Primeiro, deitou de lado, depois de bruços,
pressionando a barriga com uma das mãos. Fechou os olhos e tentou pensar em coisas
boas — a manhã seguinte e o ônibus para Copacabana, a caminhada pela Atlântica, um
mergulho no mar. Não adiantou. Logo se levantou, correu até o banheiro e se curvou
sobre a latrina outra vez.

CAPÍTULO 14

De início, Michel pensou que o barulho vinha de fora: um carro de som


anunciando alguma promoção ou, quem sabe, algum rádio sintonizado em uma estação
evangélica. Por fim, concluiu que aquelas vozes estridentes e incansáveis eram dos seus
tios, que discutiam na cozinha. Haviam esquecido de que ele estava ali? Talvez não
dessem a mínima. Por via das dúvidas, achou que era melhor esperar.

Seu estômago ainda dava voltas. Foi ao banheiro e descobriu que o vômito
da noite anterior continuava ali, boiando na superfície da latrina como uma mancha de
óleo no mar. Acionou a descarga e ela fez um barulho seco e esquisito. Foi até o quintal e
procurou por um balde. Encontrou apenas um pote velho de sorvete. Encheu-o no
chuveiro por cinco ou seis vezes, mas a quantidade de água que cabia não era suficiente
para fazer o vômito descer de uma vez e, tão logo escoava, a mancha tornava a emergir.
Uma hora ele desistiu, se sentou na privada e mandou ver. Estava com uma tremenda
diarreia. Sentia os respingos borrifando o vaso, por vezes alcançando a sua bunda. Porém,
assim que aquele tormento acabou, Michel sentiu-se um outro homem, cheio de energia
outra vez. Procurou pelo papel higiênico. Não estava sobre o cesto, muito menos na pia.
Abriu algumas caixas, na esperança de encontrar algo que servisse. Continham frascos
sujos, bandejas enferrujadas, cinzeiros, copos e canecas de plástico. Em outra, um
aspirador de pó quebrado. Já não havia onde procurar, quando seus olhos avistaram uma
pilha de toalhas sobre o bidê. Eram toalhas de rosto, com os nomes do seu tio e da sua tia
bordados, todas um pouco empoeiradas e comidas por baratas. Escolheu duas, rasgou-as
ao meio e se limpou.

— Tia Adélia... Tio Pedro?! — disse, ao entrar na cozinha, minutos depois,


mas ninguém respondeu.

Foi até a geladeira. Além de algumas garrafas com água, encontrou cinco
ovos, uma vasilha de margarina, alguns dentes de alho e aquela papa de feijão preto
dentro de um pote. Fritou dois ovos, comeu, depois lavou a panela e o prato que havia
usado.

— Tio Pedro? — gritou mais uma vez.

O primeiro ônibus que passou ia para a Central do Brasil. Estava cheio e ele
seguiu em pé e espremido, a apreciar a Zona Norte, um outro mundo que sequer
planejara conhecer. Viu os lava-jatos clandestinos e os seus funcionários girando toalhas
sujas no meio do asfalto, viu os viciados em crack pedindo dinheiro nos sinais, os peões
de fábricas e as morenas gordas com tatuagens nas pernas, sentadas em cadeiras de
plástico nas portas dos prédios em ruínas, bebendo cerveja e catando piolho na cabeça da
criançada - todos suando e tostando sob o abrasante sol da cidade do samba e do
carnaval. Michel sempre soubera deles, mas nunca os tinha visto, e, de onde estavam, até
que não pareciam tão ruins.

Ao saltar na Central, ele instintivamente seguiu a correnteza que saía dos


outros ônibus e se afunilava nos corredores, para, em seguida, desaguar nas largas
avenidas do Centro da cidade. Era como um peixe no meio de um incalculável cardume
que abandonava um aquário para ganhar o mar. Quando se deu conta, não estava em um
ônibus rumo a Copacabana, mas caminhando pela Avenida Rio Branco, a se perguntar
para onde ia tanta gente. Descobriu que iam para todos os cantos e lugares — feito ele,
que entrou em lojas de eletrônicos, folheou livros em sebos e livrarias, visitou um museu
e comeu duas promoções de salgado com suco em uma minúscula espelunca, pois
custavam a metade do preço das outras promoções.

Eram quase seis e meia da tarde quando retornou e abriu o portão da casa
na Rua Honório. As luzes da sala e da cozinha estavam apagadas. Caminhou pelo
corredor, chegou ao pátio e ganhou o quintal. Pouco antes de entrar no bangalô, escutou
um barulho perto do pé de graviola.

— Apareceu a margarida! — a tia falou, entre as árvores. — Quando te


procurei, já tinha metido o pé.

— Fui resolver umas coisas.

— Troque de roupa e venha aqui! Tem uma porção de folhas para tirar.
Não consigo fazer isso sozinha.

— Agora?

— Sim, claro.

Michel foi até o bangalô, trocou de roupa e voltou até onde a tia estava.

— O carrinho está bem ali — ela disse, entregando-lhe um gadanho e uma


pá. — Coloque as folhas nos sacos pretos que estão perto dos montes e leve para a rua. O
caminhão do lixo passa mais tarde. Cuidado para os sacos não rasgarem.

— A senhora não vai ficar?

Ela o encarou, as sobrancelhas grossas e semicerradas unindo-se no meio


da testa.

— Escuta aqui, rapaz, eu trabalhei a tarde inteira, enquanto você estava


fazendo sei lá o quê. Não foi nada fácil. Agora, faça a sua parte. Foi você quem pediu para
ficar aqui!
A tia esperou que Michel falasse alguma coisa, mas ele não falou e ela se
virou e saiu em linha reta na direção da casa: os passos arrastados e, ao mesmo tempo,
apressados, marcando o chão. Michel não podia confrontá-la. Além de louca, parecia-se
demais com a sua mãe.

Havia quatro montes de folhas secas, cada um com cerca de um metro e


meio de altura, nos pés de algumas árvores. Michel pegou um saco e começou a jogar as
folhas dentro dele. Quando encheu o primeiro, colocou no carrinho e levou até a frente
da casa. Depois de duas horas e meia, havia levado oito ou nove sacos, mas ainda
faltavam dois montes e ele estava cansado. Sentou-se no batente, ao pé da jaqueira,
sentindo o peito arfar por debaixo da camiseta suada, e olhou para a cidade que se
projetava além do muro do quintal — as janelas acesas da favela do Jacarezinho, onde
havia movimento e vida, e, acima dela, o céu de Maria da Graça, na Zona Norte, um teto
negro sem nuvens borrifado de pontos brilhantes que se espalhavam ininterruptamente.
Por onde andaria Sandy todo aquele tempo? Ele não fazia ideia. De um quintal próximo,
um galo cantou fora de hora e da casa ao lado veio o cheiro de café.

— Não diga que não avisei — uma voz ecoou no pátio.

Era o seu Tio Pedro, como sempre movediço, com um cigarro aceso entre
os dedos e balançando feito uma palmeira contra um temporal.

— Está tudo bem — Michel respondeu. — Eu não ligo.

— Ainda tem tempo. Eu não tenho. Viver é arranjar motivos. E a esperança


sempre foi mais uma armadilha.

Michel seguiu a colocar as folhas dentro do saco, enquanto via a sombra do


tio oscilando no quintal. Tão cheio de lições e frases de efeito e sequer fora um piloto de
avião.

— Bem, acho que vou me deitar — o tio disse após jogar o cigarro fora. —
Estou cansado. Boa noite.

— Boa noite, tio. Durma bem.


A palmeira ziguezagueou até a porta dos fundos e entrou na casa. Não
demorou muito, uma discussão começou.

Michel largou o gadanho no chão e partiu para o bangalô.

CAPÍTULO 15

O começo daquela manhã foi muito parecido com o da anterior. Acordou


com o bate-boca na cozinha, permaneceu um tempo deitado, depois foi até o banheiro.
Agora tinha papel higiênico, comprado na padaria do Alfonso, que ficava na esquina.
Abriu o chuveiro. A princípio, a água saiu marrom, cheia ferrugem e sujeira, mas aos
poucos clareou e ficou igual a qualquer outra água. Ele tomou o seu banho, se vestiu,
cruzou o quintal, passou pelo pátio e ganhou o corredor lateral. Quando estava prestes a
alcançar o portão e ganhar a rua, a porta da frente foi aberta e a sua tia apareceu.

— Achei que não ia acordar — ela falou, vestida com a camisola vermelha,
talvez a única roupa que possuísse. — O quintal está uma bagunça, você não fez quase
nada!

— Tenho que ir a Copacabana. Surgiu um problema com o apartamento.


Os argentinos não querem pagar o acertado.

— Você está mentindo!

— De forma alguma.

— Eu tenho certeza que está. Acha bonito ficar aqui e não fazer nada? Foi o
que a sua mãe te ensinou?!

Com as mãos na cintura e os ombros para a frente, ela o encarava. Que mal
Michel lhe fizera? Nenhum.
— Tudo o que disse é verdade, tia, mas não quero que pense que sou um
mal-agradecido. Vou ficar para tirar as folhas do quintal. Talvez consiga resolver o
problema com os argentinos amanhã.

Cinco minutos depois, com o gadanho na mão, Michel jogava as folhas


secas para dentro de um saco. Quanta raiva sentia. Era por causa do egoísmo de sua tia
que desperdiçava o seu tempo valioso, era por causa dela que enchia as mãos de calos e
golpeava com cada vez mais força as folhas, enchendo um saco após o outro, indo e
voltando — do quintal para a calçada, da calçada para o quintal. Até que parou. As costas
doíam. Os braços estavam inchados. Sentado no batente, tentou contar as batidas do seu
coração, mas estava exausto demais para conseguir.

Ah, liberdade, em que recanto desconhecido você se escondeu para me


abandonar aqui, nas mãos dessa megera?! Não é essa a cidade que sonhei, não são essas
as pessoas que quis conhecer! Tanto desvario para nada, a não ser o embotamento e a
frustração. Ah, em que sádica gincana eu fui me enfiar!

Por quase uma semana, se enterrou naquele quintal, seu suor respingando
por todo canto feito o sangue de um prisioneiro. A desculpa sobre os argentinos não
havia funcionado, assim como todas as outras, e a cada bom dia uma nova empreitada
lhe era lançada. Carregou móveis caindo aos pedaços, ripas de madeira cheias de cupins,
lagartixas, escorpiões e aranhas, trocou telhas, construiu um varal para estender roupas,
colheu jacas e acerolas, lavou o pátio, colocou veneno para morcegos na casinha do
cachorro que morrera cinco anos antes e derrubou uma casa de maribondos que o
seguiram encolerizados até o bangalô. Quando chegava perto das três da tarde, a tia
deixava sobre o batente um prato com arroz, aquela papa de feijão e a carne moída. Era
sempre a mesma coisa. Ele comia o arroz e jogava o resto no pé da goiabeira.

Uma via crúcis exasperante, da qual Michel receava nunca conseguir


escapar. Era, naqueles dias, um homem cortado ao meio: o seu corpo seguia preso àquela
assombrosa casa da Rua Honório, enquanto a outra parte escapava para Copacabana,
onde enterrara o seu coração.

Todavia, no auge daquele calvário, quando a sua vontade própria sucumbia


cada vez mais ante a vontade da tia, houve aquela manhã, clara e brilhante, quando os
seus pensamentos se apresentavam surpreendentemente limpos e Michel novamente se
sentiu confiante e dono de si. Vestiu a calça de brim, uma das camisas sociais, penteou os
cabelos para trás e saiu. Encontrou a tia no portão.

— Para onde vai? — ela perguntou.

— Procurar emprego. Conversei com Sandy ontem. A gente pretende se


casar.

— Está mentindo de novo?

— Não, é verdade. Ela ainda vai demorar um pouco para voltar, mas seria
interessante já estar empregado quando isso acontecer.

— Que história mais mal contada.

— Pois é.

— Então quer dizer que você quer um emprego.

— Exatamente.

— Acho que posso te ajudar.

— É mesmo?

— Sim. Sei de uma empresa que está procurando gente para trabalhar.
Pagam muito bem.

— Empresa de quê?

— De Muncks. É do marido da vizinha. A vaga é para atender as ligações no


escritório. Posso falar com ela, se quiser. A gente estava conversando esses dias e ela me
contou.

Michel não sabia qual o interesse de sua tia em vê-lo empregado. Ao


mesmo tempo, pensou que não tinha nada a perder: se houvesse mesmo alguma
empresa de Muncks, ele ao menos se livraria daquele quintal.

— Pode falar com ela — ele disse.


A tia abriu o portão e foi, com a camisola vermelha, até uma casa do outro
lado da rua. Tocou a campainha e uma senhora apareceu na janela. Tinha bochechas
rosadas e um olhar manso. Conversaram por alguns segundos, então a mulher saiu da
janela e pouco depois a porta foi aberta e a tia entrou na casa. Dez minutos depois,
retornou.

— Pronto — ela disse —, você está empregado! Vou pegar um papel para
anotar como chegar lá.

CAPÍTULO 16

A empresa se chamava Alligator Muncks e ficava ao lado da passarela 13,


na Avenida Brasil. No ponto em frente à padaria do Alfonso, Michel pegou o ônibus
679/Grotão, que cruzava por boa parte de Maria da Graça e depois entrava por
Cachambi, Del Castillo e Bonsucesso. Em Ramos, desceu do ônibus, atravessou o túnel
que ficava embaixo dos trilhos do trem e caminhou por duzentos metros até alcançar a
parada das Kombis. As duas primeiras estavam lotadas e, ao saltar da terceira, descobriu
que se encontrava na passarela errada. Caminhou por quarenta minutos, e já passavam
das dez da manhã, quando, afinal, chegou à Alligator Muncks. Era um galpão grande com
telhas de amianto e uma placa de metal pendurada na frente. Havia, logo na entrada,
uma escada que levava ao andar superior, um banco de madeira encostado a uma
parede, um bebedouro e, estacionados na garagem, uma carroceria abandonada e um
velho caminhão Mercedes. Parado entre o bebedouro e a escada, Michel escutou o som
das batidas de um martelo. Seguiu o barulho e encontrou um sujeito deitado sobre uma
caixa de papelão aberta embaixo do Caminhão Mercedes.

— Charles está? — perguntou

— É sobre o quê? — o homem gritou, parando de martelar.


— Trabalho.

— Volte amanhã. Todos os caminhões foram pra longe, só chegam no final


da tarde.

— Acho que não expliquei bem. É sobre a vaga para o escritório. O trânsito
estava horrível, só consegui chegar agora.

O homem se levantou e ficou olhando para Michel. Era baixo, mas


corpulento como um estivador, com ombros largos e a cara embrutecida. Usava um
macacão vermelho, já escurecido, com faixas fosforescentes nas pernas.

— Está no lugar certo?

— Não é aqui a Alligator Muncks?

— É... Não sabia que o Charles estava precisando de funcionário. Vou falar
com a Arlete, ela deve estar por dentro disso.

Ele passou por Michel e subiu as escadas resmungando alguma coisa. Dois
minutos depois, retornou, acompanhado de uma gorda na faixa dos quarenta e poucos
anos. Usava óculos, um vestido de malha muito justo e um coque segurando os cabelos
loiros. Tinha uma bunda enorme.

— Olha ele aí, Arlete — o sujeito falou. — Veio atrás da vaga para o
escritório.

— Você deve ter se enganado, querido — Arlete disse. — Não tem


nenhuma vaga para o escritório. Eu resolvo tudo aqui. Assino até os cheques.

— Talvez você ainda não tenha sido avisada. A minha tia conversou com a
mulher do Charles hoje pela manhã. Está tudo acertado.

— Quem é a sua tia?

— Adélia. É a vizinha deles.

— Nunca ouvi falar. Tem qualquer coisa estranha nessa história. O senhor
aguarda um pouquinho, vou ter que ligar para o Charles.
Arlete subiu as escadas, chacoalhando a bunda a cada degrau, e o baixinho
voltou para as marteladas no caminhão. Michel se sentou no banco de madeira. À sua
frente, espalhados pelo chão, correntes, parafusos, estopas, latas de graxa, baldes com
óleo ou água suja. Lá no fundo, atrás do caminhão, perto do que parecia ser um banheiro,
a carroceria torta e quebrada. As paredes eram sujas de graxa e em algumas partes havia
desenhos, frases e trechos de música, o escudo de um time, um coração com o nome de
alguém.

Meia hora se passou e Arlete não deu qualquer sinal. Michel se levantou e
foi até uma padaria ali perto. Encostado no balcão, enquanto comia um pastel de carne e
bebia um refresco de groselha, enxergou a Passarela 13, um alongado arco-íris de aço que
se curvava sobre a Avenida Brasil. Gente de todo jeito e feitio passava por ali: vendedores
de balas, sacoleiras, estudantes, trabalhadores de fábricas com seus uniformes,
moradores de rua, e, por debaixo deles, os carros, os ônibus e os caminhões que
berravam sobre o cinza escuro do asfalto abrasador, quase todos apressados, na
exasperante correria rumo a algum canto daquela selva de concreto e de metal. Havia
uma beleza e, ao mesmo tempo, algo de muito feio e de muito real naquilo.

Charles era um homem miúdo, com cabelos grisalhos penteados de lado e


olheiras embaixo dos olhos. Tinha entre sessenta e cinco e sessenta e oito anos e
transpirava qualquer coisa entre a fragilidade e a resignação, além do cheiro cítrico que
vinha de sua loção pós-banho. Estava sentado em uma das cadeiras do escritório, que
ficava na parte de cima do galpão. Tinha a voz baixa e pigarreada e foi com ela que falou
sobre a confusão. Não existia nenhuma vaga para o escritório. O combinado com a tia de
Michel era conseguir alguma coisa, qualquer coisa, e ele disse que veria o que poderia ser
feito.

— Entende de mecânica?

— Um pouco — Michel respondeu. — Talvez não o suficiente. Nunca vivi


disso.

— Vivia de quê?
— Vendia apartamentos na Zona Sul. Flamengo, Botafogo, Humaitá, Lagoa.
E Copacabana, principalmente. Era lá o meu reduto. Até algumas semanas, fazia parte do
quadro de uma imobiliária bastante conhecida.

— Olha só... — Arlete disse, admirada. — E por que não continuou?

— Descobri que o meu chefe não era um homem muito honesto. Na


verdade, era um grande trapaceiro que acabou embolsando quase todas as minhas
comissões.

— O que não falta aqui é honestidade, rapaz — Charles voltou a falar. —


Gosto de tudo transparente, e todo mundo recebe pelo que faz. Se quiser o emprego, o
salário é de mil e duzentos reais, e também dou vale transporte e alimentação.

— Mil e duzentos talvez seja pouco para quem já foi um corretor — Arlete
disse.

— Não é tão ruim. O que tenho que fazer?

— Você vai ser auxiliar de mecânico. — Charles olhou para Michel. — Faz
tempo que o Wladimir pede um. Arlete vai te conseguir um macacão.

Charles se levantou com alguma dificuldade.

— Faça o que Wladimir mandar e vai dar tudo certo — bateu no ombro de
Michel. — Sua tia disse que você gosta de trabalhar. Eu gosto de quem gosta de trabalhar.

Charles foi embora e Michel ficou ali, no meio do escritório, esperando que
Arlete trouxesse o macacão. Pensava nos mil e duzentos reais. Um pouco menos do que
tinha quando saltou do ônibus na Rodoviária Novo Rio, meses antes, e de lá para cá ele
havia aprendido algumas coisas e uma delas era poupar. Bastava passar um mês na
Alligator Muncks, fazendo o que quer que fosse, e poderia mandar os tios à merda e
voltar para o seu quarto no Hotel Realeza. Se ficasse dois meses, conseguiria pagar ao
primo. Dois meses, no entanto, parecia tempo demais.

Michel recebeu o macacão e foi até o banheiro que ficava no fundo da


garagem para colocá-lo. Passou pelo caminhão Mercedes, de onde as marteladas
continuavam a vir, e gritou:
— Wladimir, meu amigo, a partir de agora você tem um auxiliar. O Charles
me contratou!

Não houve nenhuma resposta, uma palavra sequer. Somente o barulho do


martelo sendo batido cada vez mais forte contra o metal.

CAPÍTULO 17

Os motoristas e os seus ajudantes. Havia uma porção deles, todas as


manhãs, metidos naqueles macacões vermelhos com faixas fosforescentes. Bebiam café,
contavam piadas e sorriam. Michel escutava as suas histórias até a hora em que, com as
ordens de serviço no bolso, eles partiam para as suas missões. Seu Ruy seguia com Jorge,
Palmeira ia com Renato, e Júlio, com Luiz. O único que não tinha ajudante era Seu
Arturzinho. Antes das oito e meia, todos já haviam ido embora e era a partir desse
momento que Wladimir começava a gritar. Baiano isso, Baiano aquilo, tudo de ruim que
acontecia, de alguma forma era ele, o Baiano, quem tinha que responder. Michel perdeu
a conta dos macacos que arrastou, dos baldes que carregou, dos motores e dos
carburadores que desparafusou. Os gritos reinavam naquele lugar. Quando se sentia
cansado e enfadado da voz e dos desmandos daquele sujeito grosso e arrogante e se via
prestes a largar tudo de mão, lembrava dos mil e duzentos reais, a energia retornava e ele
continuava a correr para lá e para cá.

A parte boa era o almoço no Restaurante Santiago, colado à passarela.


Todos os dias, às onze e cinquenta, Arlete descia do escritório e Wladimir largava o que
estava fazendo para a acompanhar. Alguns metros atrás, Michel seguia, como que os
escoltando. As mesas eram pequenas, para duas pessoas. Arlete e Wladimir escolhiam a
que ficava de frente para a tevê e Michel se sentava mais afastado, perto da saída,
mesmo quando Arlete o convidava a se aproximar. Enchiam o prato com pastelão, feijão
de tropeiro, arroz à grega, batata frita, salada de maionese, linguiça assada, frango e
quiabo em conserva; na sobremesa, um pedaço de bolo ou de pudim. Para Michel, aquela
era uma desforra ante a gororoba de sua tia, e, quando acabava, ele só precisava passar
no balcão para assinar a comanda que o sorridente Santiago guardava em uma gaveta. O
único problema era a moleza que vinha depois. Ele ansiava por se estirar embaixo da
velha carroceria e dormir por uma ou duas horas, digerindo todo aquele banquete. Nunca
conseguia. Quando menos esperava, Wladimir já estava gritando outra vez.

A garagem, tão ampla, diminuía de tamanho quando só os dois estavam ali.


Wladimir, por algum motivo, não parecia gostar de Michel, e, por conta disso, Michel
também passou a não gostar de Wladimir.

Era o quinto dia como ajudante de mecânico na Alligator Muncks. Como


quase todos os outros, um dia muito quente em que havia muita coisa a fazer. Michel
passava graxa em uma caixa de marchas, sentado sobre um pedaço de papelão. Ao seu
lado, uma lata cheia de parafusos e ruelas.

— Nasce dinheiro em árvore lá de onde você veio? — Wladimir perguntou,


parado à sua frente, assemelhando-se à miniatura de um general.

— O que foi, Wladimir?

— Deve nascer, do contrário você não ia ficar fazendo tanta asneira.

— Tá falando do quê?

— Do que tô falando? Da porcaria do óleo, Baiano! Você misturou tudo, o


velho com o novo! Tem algum sentido nisso?!

— Foi você quem falou para misturar.

— Foi você quem falou para misturar... — Wladimir repetiu, tentando


imitar o sotaque de Michel. — Não falei porra nenhuma! Você que é burro, não consegue
entender uma frase. A toda hora dá uma mancada. Eu disse para jogar fora o velho e
depois colocar o novo na vasilha.

Michel lembrava do que Wladimir tinha dito e não entendia o porquê de


estar mentindo naquele instante.
— Estou na empresa há oito anos — Wladimir continuou —, não é um
palerma que caiu de paraquedas aqui que vai me sacanear.

— Não deveria falar assim, cara.

— É palerma mesmo, e daí?! Vai fazer o quê?

Feito inimigos nos filmes de ação, Michel e Wladimir agora se encaravam,


desafiadoramente, cada um de um lado. Pegavam fôlego para o que viria logo a seguir: o
duelo do mocinho contra o vilão, do mal contra o bem, da escuridão versus a luz.
Wladimir, claro, era a escuridão. Ele fazia parte de uma numerosa e intolerante horda
sempre prestes a atacar: a horda dos que precisam subjugar para, enfim, se sentirem bem
— a maldade por falta de evolução. Michel estava enfastiado de tudo aquilo. Se fosse
preciso, lutaria até a morte com aquele fanfarrão metido a palmatória do mundo, amante
de arranques e de distribuidores, um desalmado que, no lugar do coração, por certo
escondia algo alimentado não por sangue, mas por óleo e diesel.

Mas nenhuma luta chegou a acontecer. Antes que Michel partisse para
cima de Wladimir e consequentemente desse adeus aos seus mil e duzentos reais, Arlete
surgiu no alto da escada.

— O que é isso? — ela perguntou, observando os dois com curiosidade.

Wladimir tinha os punhos cerrados e o seu peito inchava e desinchava


forçadamente, enquanto olhava para Michel.

— Olha só, Arlete — falou —, não quero mais saber dessa palhaçada! Se
esse bocó estiver aqui amanhã quando eu chegar, peço a minha demissão na mesma
hora. Não tem espaço pra nós dois nessa garagem.

— O que aconteceu?

Wladimir não respondeu. Foi até a carroceria do caminhão, pegou a chave


de sua moto, uma 125 antiga, e saiu pelo portão enfurecido.

— O que aconteceu, você pode me dizer?

Michel não sabia o que responder. Pensou que seria demitido, de qualquer
forma.
— Esse cara é um grande mentiroso, Arlete — acabou por falar. — E burro
como uma porta. Sendo sincero, acho que é o mecânico mais burro que eu já conheci.

CAPÍTULO 18

Por algum motivo inexplicável, em vez de ser demitido, no dia seguinte


Michel passou a ser o ajudante de Seu Arturzinho nos serviços com o Munck. Recebeu
aquilo como uma promoção. Afinal, estaria livre dos gritos de Wladimir e ainda passaria a
perambular por toda a cidade, e além dela, na boleia de um velho Volvo 440.

Logo cedo, depois de uma xícara de café e de um pouco de conversa com


os outros ajudantes e motoristas, Seu Arturzinho subia até o escritório para pegar a
ordem de serviço. Quando voltava, conferia o tacógrafo e os pneus, enquanto Michel
colocava as manilhas, as fitas, as catracas e as tartarugas na carroceria. E, então, o motor
começava a funcionar e eles ganhavam o mundo. São Cristóvão, Madureira, Curicica,
Caxias, Padre Miguel, São Gonçalo, Austin ou Nova Iguaçu, em comunidades ou em
fábricas de prensas, em empresas de tevê a cabo ou em parques aquáticos: para onde os
chamavam, era para lá que iam. Uma vez retiraram uma enorme placa da fachada de uma
escola de samba na Tijuca e, enquanto o braço do Munck fazia o seu trabalho, dava para
escutar a música que vinha de um dos barracões, e por um momento Michel pensou em ir
até lá, só para descobrir quem eram aquelas pessoas, só para ver como eram as suas
caras e os seus sorrisos. Em outra, foram até o Projac para colocar a réplica de um
submarino em um estúdio. Ele ficou todo o tempo esperando que alguma atriz ou
apresentadora aparecesse, até mesmo algum dos atores canastrões que sua mãe gostava,
mas ninguém deu as caras, a não ser aquele guarda de bigode que os acompanhou por
todo canto até irem embora. Era emocionante, de todo modo, pois ele nunca imaginara ir
a lugares como aqueles.

A sua principal função como ajudante de Munck era fazer as amarrações,


que consistiam em enlaçar com as correntes o objeto a ser transportado, prendê-las no
gancho de uma forma que o objeto não pendesse nem para um lado, nem para o outro, e
depois esperar que tudo desse certo. Se algo caísse, a culpa provavelmente seria de
Michel.

— É só prestar atenção, morou? — Seu Arturzinho falou certa manhã, no


pátio de uma metalúrgica em São João do Meriti.

O lugar recendia a um filme pós-apocalíptico, com metal espalhado por


todo lado. Eles tinham que içar algumas bobinas, colocar no fundo do caminhão e levar
até uma empresa de telefonia em Quintino. Eram gigantescas e pareciam um bocado
pesadas aquelas bobinas, elas que repousavam sobre uma altíssima plataforma. Seria
necessário que Michel se dependurasse no braço do Munck para fazer a amarração. Dez
ou doze funcionários ficaram parados no pátio, metidos em seus macacões sujos,
acompanhando a cena. Alguns sorriam. Michel pensou que talvez achassem graça da sua
lentidão em se movimentar a mais de dez metros do chão, do medo estampado em sua
cara. Era bem possível que até apostassem se ia ou não cair. Sorriam e cochichavam e
tornavam a sorrir, os filhos da mãe. Aquilo o incomodou, o deixou ainda mais nervoso, e
por um segundo ele calculou que não seria nada mal se uma daquelas bobinas de repente
caísse, nem que fosse apenas para levarem um susto, nem que fosse para ficarem na
dúvida se fez de propósito ou não. Mas nenhuma delas caiu. Uma por uma, foram todas
colocadas na carroceria. E quando, duas horas depois, o caminhão passou pelo portão da
metalúrgica rumo a Quintino, Michel era um experiente e imperturbável ajudante de
Muncks a encarar cada um daqueles homens que os observavam partir.

Às vezes a empreitada acabava mais cedo e eles procuravam algum


boteco para jogar sinuca e beber uma ou duas cervejas. Nada de extraordinário. Somente
dois homens com macacões sujos de graxa, fazendo piadas para as mulheres que
passavam, matando o tempo antes que tudo começasse outra vez.

Para a sua agonia, nos sábados e nos domingos a Alligator Muncks não
funcionava. Ele tentava acordar cedo, no intuito de pegar um ônibus para Copacabana,
mas nunca conseguia escapar da tia, nem mesmo quando madrugou. Não eram cinco da
manhã, o sol ainda nascia, e ela estava lá, sentada em uma cadeira no pátio, a lhe
esperar.
— Já que a sua namorada ainda não voltou — gostava de dizer —,
aproveite para fazer umas coisinhas.

Havia sempre uma lista de afazeres, e a voz dela se tornara ainda mais
irritante.

Com o tio, em compensação, quase não se encontrava mais. Escutava a sua


voz nas discussões pela manhã, depois os dois saíam e o tio só voltava muito tarde,
quando Michel já havia desmaiado sobre o colchão. E então, depois do que pareciam ser
décadas, um milagre acontecia e era segunda feira outra vez.

CAPÍTULO 19

Era uma manhã de muito sol e muito calor. O Volvo 440 seguiu para
Mangaratiba, um pequeno e afastado lugarejo banhado pelo mar. Barzinhos, quiosques,
restaurantes e lojas de artesanatos se estendiam por toda a rua principal, mas quase
ninguém se demorava neles, já que o maior atrativo era a balsa para Ilha Grande ou Angra
dos Reis. Centenas de turistas passavam por ali todos os dias. À noite, o que restava eram
guardanapos, copos descartáveis e embalagens de biscoitos e salgadinhos sobre calçadas
e bancos de praça. Anos depois, se alguém perguntasse para uma daquelas pessoas sobre
aquele lugar, talvez ela apenas franzisse a sua testa e, após alguns segundos de intensa
busca em seu arquivo de lembranças, dissesse, como se ainda não tivesse muita certeza:
“Sim, acho que já passei por lá”.

Michel, no entanto, nunca esqueceria do azul muito claro daquele mar, da


sombra do braço do Munck a se projetar sobre o cais, dos gritos e da correria que vieram
depois. Eles tinham sido chamados para içar o motor de um iate e levá-lo até uma retífica
em São Gonçalo. O sujeito que encontrariam chamava-se Betinho, mas ele não estava no
cais quando chegaram. Um garoto foi à sua procura e, minutos depois, retornou, dizendo
que Betinho estava almoçando e que teriam que esperar. Aquilo pareceu um grande
atrevimento para Seu Arturzinho

— Vou falar com esse filho da puta. Ele nem é o dono do iate, só faz tomar
conta. O que é que esse babaca tá pensando?

— Deixa ele — Michel disse. — Vamos procurar uma mesa de sinuca. Não
quer comer alguma coisa?

— Não, estou sem fome. Mas encaro uma cerveja, por causa do calor.

Foram até o bar que ficava em frente ao cais e pediram uma cerveja.
Minutos depois, pediram a segunda, e já estavam na sexta ou na sétima quando Betinho
apareceu. Era um moreno alto e compacto, com braços e mãos enormes e uma voz de
barítono.

— Vocês estão bêbados? — ele perguntou.

— Claro que não! — Seu Arturzinho respondeu, ficando de pé. — Paga a


conta, Baiano! A gente acerta depois. Vou adiantando o serviço — e então saiu gingando
estranhamente rumo ao caminhão.

O iate ocupava uma boa parte do cais e, mesmo ancorado atrás de uma
dezena de outros barcos, ainda dava para vê-lo: uma monstruosidade branca com listras
negras por toda a sua lateral. Perto do bico, em dourado, havia um nome: Beatriz. Michel
não a conhecia, mas calculou que, quem quer que fosse, era certamente uma mulher
muito feliz.

Seu Arturzinho decidiu que ele mesmo faria a amarração. Conduziu o braço
do Munck até perto do motor, que já estava solto, e foi até o iate com as correntes.
Demorou um tempo enorme com aquilo, mais do que qualquer outro levaria. Enfim,
voltou, conferiu se as patolas estavam fixas, foi até as alavancas de comando e o braço do
Munck começou a se mexer, desta vez para cima. Sempre que o motor ensaiava tocar em
alguma parte, ele baixava, girava um pouco para a direita ou para a esquerda, então
tornava a subir. Uma hora o motor não tocou em nada e começou a fazer um arco no ar,
do iate até o fundo do caminhão, lentamente. Michel vira aquilo tantas vezes, e tudo
corria tão bem que parecia que era só uma questão de tempo. Logo eles estariam na
boleia do Volvo, pegando a estrada outra vez. Mas eis que, de repente, a corrente se
soltou e começou a deslizar, fazendo um barulho estranho, e, em menos de dois
segundos, a amarração toda se desfez e o motor despencou, de uma altura de cinco ou
seis metros, no chão. Foi um estrondo terrível. Um carnaval de porcas, molas, parafusos,
ruelas, lascas de plástico e de metal saltitaram e se espalharam por todo o cais.

— O que você fez, seu retardado,?! — Betinho berrou, os olhos espremidos


como os de uma fera.

Seu Arturzinho havia passado por uma transformação. Era, naquele


instante, um ser murcho, descarnado. Seus olhos, sua boca e seu nariz repentinamente
tinham sido engolidos pelo rosto, uma massa pálida e retorcida. Seus ombros estavam
arqueados. Era como se a alma tivesse ido embora e o que ficou em seu lugar foi apenas
aquela carcaça esquisita, ela que suspirou alto, um grito abafado e desesperado que não
chegou a ser ouvido. E o que aconteceu em seguida foi uma implacável caçada sobre
aquele cais. À frente, Seu Arturzinho, franzino, correndo com o macacão e o boné da
Alligator Muncks, e, no seu encalço, Betinho, o gigante enlouquecido e sedento por
sangue - ambos girando ao redor do caminhão. Havia uma distância relativamente grande
entre os dois, mas ela diminuía a cada volta e não demorou muito para que Seu
Arturzinho fosse alcançado. Segurando-o pelo macacão, Betinho o levantou no ar e o
sacudiu, ameaçando jogá-lo no mar. Era angustiante testemunhar aquilo, sobretudo
porque Michel não sabia o que fazer. Poderia chutar Betinho por trás, acertando-lhe as
bolas, poderia procurar por alguma ferramenta na carroceria do caminhão para bater em
sua cabeça, poderia pedir que parasse, pois tudo não passara de um terrível e
involuntário acidente, mas nada fez. Ele era apenas mais um dos espectadores daquela
aterradora sova, assustado com a possibilidade de também ser pego pelo pescoço e
jogado no mar. Por um momento, fechou os olhos e tentou imaginar que nada daquilo
estava realmente acontecendo, que tudo era uma espécie de delírio por conta do sol e
das cervejas e que, àquela hora, o motor talvez já estivesse bem acomodado sobre a
carroceria do caminhão. Mas o que viu ao abrir os olhos novamente foi Seu Arturzinho
esperneando feito um João Bobo, seus braços e pernas balançando no ar, enquanto
Betinho dava-lhe tapas no rosto, com a parte de dentro e de fora da mão. E então, depois
de quase dois minutos daquilo, ele o jogou no chão. Durante todo aquele tempo,
ninguém interviu.

— Alguém fica de olho nesse pinguço! — Betinho gritou, olhando para dois
ou três sujeitos que estavam por perto. — Vou até a delegacia e já volto com o pessoal.

Ele saiu correndo, entrou em uma rua e desapareceu.

Michel pegou Seu Arturzinho por um dos braços e o levantou. Levou-o até
o caminhão, sob os olhares dos sujeitos, que nada disseram.

— Você dirige — Seu Arturzinho falou, com o supercílio direito sangrando.

Michel se sentou no banco do motorista, de frente para o volante. Nunca


tinha dirigido um caminhão, mas as circunstâncias eram dramáticas demais para que não
conseguisse. Ligou o motor e, após dois ou três solavancos, saíram do cais, pegaram a rua
principal, entraram à direita e lentamente subiram a ladeira que os fez passar pela placa
“MANGARATIBA TE AMA, VOLTE SEMPRE”. Olhou pelo retrovisor. Não havia ninguém.
Pensou que bastava passar as marchas e seguir em frente. Bastava acelerar o máximo que
conseguisse e nunca mais voltar àquele pavoroso lugar.

— Vou te levar a um hospital, Seu Arturzinho — disse. — Deve ter algum


pelo caminho.

— Me leve para casa. É aqui perto, em Bangu.

— Melhor, não. Seu olho está feio. Acho que vai levar alguns pontos.

— Me leve pra casa, caralho! Não quero ir para nenhuma porcaria de


hospital!

De uma hora para a outra, nuvens escuras cobriram o céu. Dava para vê-
las, densas e unidas, como se fossem uma só, se estendendo por toda a Zona Norte até
parte da Zona Oeste. Seu Arturzinho acendeu um cigarro e o tragou, em silêncio, com as
mãos tremendo. A viagem inteira, até Bangu, sem dizer uma palavra. Na frente de sua
casa, pegou as tralhas que guardava atrás do banco e no porta-luvas e ficou por um
tempo tamborilando os dedos na carroceria, com a cabeça baixa, cantando alguma coisa.
A luz do poste, que ainda esquentava, refletia-se sobre o seu olho machucado.
— Era pra ter me dado uma força lá, Baiano — disse, esticando o braço,
como se sentisse uma dor. — Porra, você não chegou nem a tentar, e olha só como
estou...

Michel ficou olhando para ele. Queria falar alguma coisa, mas, como
sempre, não conseguia. Eu tive medo, Seu Arturzinho, foi o que pensou dizer. Um medo
terrível, que me acompanha desde quando nasci. E mesmo quando estou bem, se prestar
um pouco de atenção, ainda vou escutar um rosnado miúdo e contínuo em algum lugar
dentro de mim. É o rosnado do medo, não sei se o senhor conseguiria entender.

Seu Arturzinho deu as costas e, novamente em silêncio, levantou a mão,


como quem diz adeus, em seguida entrou em sua casa. Dois segundos depois, a porta se
abriu.

— Diga para a Arlete que não vou voltar mais, que é para ela colocar outro
em meu lugar — ele gritou. — Se perguntar o motivo, diga que eu cansei. Apenas isso,
que eu cansei! — e bateu a porta.

Michel voltou a pegar a estrada, ao tempo em que a chuva começava a


cair. Serpenteando à sua frente, asfalto da Avenida Brasil, molhado e cheio de buracos,
mudou de cinza para negro quando a noite chegou.

O portão da Aligator Muncks estava fechado, mas Arlete logo apareceu e o


abriu. A garagem estava cheia, mas Michel estacionou o caminhão com surpreendente
rapidez e voltou até a entrada.

— Seu Arturzinho não veio? — ela perguntou.

— Deixei em Bangu, na casa dele. Aconteceram algumas coisas, Arlete, a


gente vai precisar conversar.

— Eu já sei. O Adalberto ligou. Estava muito nervoso.

— É um maluco esse Adalberto. Encheu Seu Arturzinho de porrada, quase


mata, por causa de um acidente.

— Ele disse que vocês estavam bêbados.

— A gente bebeu duas cervejas, só pra fazer hora. O cara não aparecia.
— Não deveriam ter bebido.

— Bem, agora não tem mais jeito. O que vai acontecer? Quer dizer, o que
vai acontecer comigo. Seu Arturzinho não vai mais voltar.

— Não vai acontecer nada. O motor estava no seguro. O único prejuízo da


empresa é nunca mais ser chamado por alguém de Mangaratiba. Não vai fazer muita
diferença.

— E o Charles, não ficou zangado?

— Eu não contei pra ele.

Um táxi havia parado do outro lado da rua. Arlete passou o cadeado no


portão, foi até ele e abriu a porta de trás.

— Não sabia que você dirigia caminhão — falou.

— Ah, dirijo, sim — Michel respondeu. — É a mesma coisa que dirigir um


carro. eu também sei operar o Munck.

Arlete sorriu, no banco de trás do táxi que partiu e desapareceu na esquina


em que ficava uma tornearia.

E Michel, subitamente, estava só. Os galpões onde funcionavam as


transportadoras, as oficinas, as funilarias e as casas de autopeças estavam fechados,
assim como o restaurante do velho Santiago. Não havia uma única alma a cruzar a
passarela, uma Kombi sequer rondando a rua. Ao longe, o barulho da sirene de uma
ambulância e o que pareciam ser tiros de fuzil. “Nunca ande pelas ruas de Ramos depois
que escurecer”, era o que os motoristas costumavam falar. Mas ele lembrava do trajeto
que as Kombis faziam e era a única forma que tinha para alcançar a estação e pegar um
ônibus até Maria da Graça. Cheio de receios e de pressa, Michel seguiu, uma mancha
vermelho-fosforescente a passar o mais rápido que podia pelos cruzamentos, tentando
furtivamente escapar das milícias, dos morros não pacificados, dos perigos do mundo e
das suas próprias assombrações. Viu as casas com luzes acesas por detrás de portas e
janelas fechadas, escutou as vozes das atrizes e dos atores da novela das oito e sentiu os
cabelos molharem por conta da chuva que voltara a cair. Por três ou quatro vezes, faróis
surgiram do nada, e ele se escondeu atrás de uma árvore ou de uma lixeira até o carro
desaparecer. Depois de quarenta minutos, avistou os trilhos do trem. Havia uma mulher
no ponto do outro lado. Usava o uniforme de alguma empresa. Não demorou para que
um ônibus aparecesse e ela fizesse sinal, e Michel, mesmo sem saber bem que ônibus era,
entrou nele. Para o seu azar, o cobrador informou que não passariam por Maria da Graça,
mas que, ao saltar em determinado ponto, havia um caminho curto e fácil para chegar até
lá.

— Você entra na segunda à direita — o homem falou quando o ônibus


parou em uma travessa —, depois segue por duas quadras e vira à direita. Aí é só subir
uma ladeira e entrar para a esquerda novamente.

Parecia fácil, mas aquelas eram ruas como as de Ramos, cheias de arames
sobre os muros, janelas e portas fechadas, ninguém a circular. Cada vez mais assombrado,
Michel começou a correr, numa marcha forte e constante, como se participasse de uma
desembestada maratona. A Rua Honório, no entanto, não parecia estar em nenhum
lugar. Talvez tivesse entrado na esquina errada. Refez o traçado duas vezes, passou por
um boteco onde só havia um velhote sentado em uma cadeira, esgueirou-se por uma
praça onde dois adolescentes com armas na cintura falavam ao celular, até que, enfim,
avistou a casa dos tios. Uma intensa sensação de alívio lhe invadiu. Foi até o bangalô, o
seu refúgio, livrou-se das roupas molhadas e se deitou.

Uma hora depois, escutou a voz de sua tia do lado de fora.

— O vizinho ligou — ela disse. — Precisa falar com você. É urgente.

Ele não respondeu.

— Eu sei que está aí, não pense que me engana. A luz do banheiro ficou
acesa.

Michel ficou de pé e abriu a porta do bangalô.

— Ele falou sobre o que era?

— Não, e eu também não perguntei — ela disse e seguiu em direção à


cozinha. — Se não tivesse insistido tanto, eu nem teria vindo até aqui!
CAPÍTULO 20

Arlete tinha labirintite. De tempos em tempos, sofria com os ataques.


Naquela noite, depois de colocar uma pizza para assar, caiu no chão da cozinha e apagou.
Uma hora depois, a vizinha sentiu o cheiro de comida queimada e bateu na porta. Como
não houve resposta, chamou a polícia. Foi o que salvou a nossa Arlete, Charles disse no
telefonema. Ela poderia ter desencarnado em meio às chamas, sem saber ou sentir o que
estava acontecendo. Deus fora misericordioso e lhe dera uma nova chance. De toda
forma, ainda havia um grande problema para ser resolvido: alguém precisava atender as
ligações dos clientes na manhã seguinte, e esse alguém, ele concluiu, seria Michel.

— Não se preocupe, Charles — Michel respondeu. — Pode contar comigo.

Era um trabalho fácil. Ele atendia as ligações, preenchia as ordens de


serviço com o nome dos clientes, o local em que os caminhões deveriam ir e o trabalho a
ser feito, depois passava tudo para os motoristas, que geralmente só retornavam no final
da tarde. E então ficava horas e horas sem ter o que fazer.

A maior parte do tempo, ficava mesmo de frente para o computador de


Arlete. Voltou a olhar os sites de imóveis, assim como a procurar por Sandy. Conferia os
vídeos no Youtube, observava cada loira que caminhava pela Atlântica, e havia sempre
uma infinidade delas indo para lá e para cá, mas nenhuma era quem de fato deveria ser.
Uma vez, enquanto olhava as fotos de um apartamento no Edifício Chopin, ligou para o
número anotado naquele amassado papel, e a mesma voz de homem o atendeu.

— Galeteria Wilson — ele disse.


Michel, como fizeras muitas outras vezes, desligou.

Passou a almoçar mais cedo, entre onze e quinze e onze e meia da manhã,
quando o restaurante ainda estava vazio e podia escolher os melhores cortes de carne.
Não era raro cruzar com Wladimir na volta, mas, subliminarmente, passara a existir uma
espécie de código de ética entre os dois: cada um escolhia a sua margem da rua e mirava
o infinito, sem olhar na direção do outro. Não fossem as marteladas na garagem, Michel
até teria esquecido que aquele sujeito existia.

E ali, ao lado da Passarela 13 da Avenida Brasil, em quentes e longos dias


de verão, ele se refestelou naquele seu pequeno império — um escritório bagunçado e
abarrotado de armários com arquivos, duas mesas de compensado, um computador
ultrapassado e um ventilador de teto sujo e barulhento, mas com um banheiro que era
mais limpo e proveitoso que o do bangalô. Os papéis se multiplicavam e se espalhavam
por todo canto, velhas ordens de serviço, notas promissórias e de compras, documentos,
rascunhos de pagamentos, grande parte daquilo indo parar no chão. Michel se levantava
e os catava a todo instante, até que teve a grande ideia de desligar o ventilador. O calor
se tornou insuportável. Voltou a ligá-lo e a recolher os papéis.

Mas eis que em uma manhã, para a sua enorme surpresa, ao abrir a porta
do escritório, ele se deparou com Arlete sentada de frente para o computador. Tinha uma
aparência abatida.

— Arlete, não devia estar descansando?

— Estou ótima — ela respondeu com uma voz tremida. — Foi só uma crise.
Já tive piores.

— Certo. Quer dizer então que vai reassumir suas funções.

— Vou.

— E eu?

— Que tem?
— Como fico? Não pode me colocar com o Wladimir, a gente vai acabar
brigando. Então andei pensando que, já que Seu Arturzinho não vai mesmo voltar, eu
poderia trabalhar com o caminhão que era dele.

— Você vai continuar aqui no escritório, pelo menos por uns dias. O
Charles acha que posso precisar.

— Entendi, ele quer que eu fique de olho em você.

— É, mas eu estou muito bem.

Não deixar que nada de ruim acontecesse a Arlete, era a única coisa que
Michel precisava fazer, e foi o que ele fez: pegava água quando ela precisava tomar o seu
remédio, atravessava a passarela para comprar bombas de chocolate, ajudava-a a descer
a escada na hora em que iam almoçar. Arlete jogava aquele braço gordo sobre os seus
ombros e encostava o imenso quadril na sua perna, e era macio e um bocado quente
aquele quadril.

Descobriu que ela gostava de ler romances policiais e de assistir a filmes


sobre serial killers. Suas cores preferidas eram o vermelho e o branco, criava um Lulú da
Pomerânia chamado Vinny e sonhava em voltar a morar na Glória ou no Largo do
Machado, a vizinhança em que cresceu e onde morava até os pais morrerem em um
acidente de carro.

— Depois disso, fui para a casa de uma tia em Olaria e nunca mais saí de lá.
Hoje, cuido dela, tem Alzheimer.

Em uma daquelas tardes, quando fazia um calor de matar e o único


barulho que escutavam eram as marteladas de Wladimir, Arlete caminhava até um dos
armários para guardar uma ordem de serviço e repentinamente se escorou na parede,
como se tivesse perdido os sentidos, e desceu até o chão. Não chegou a ser uma queda,
ela apenas deslizou, escorada na parede. Seu suor estava frio e o rosto branco como
papel. Michel a colocou sentada, com as costas contra um dos armários, e correu até o
telefone.

— Pra quem está ligando? — ela perguntou, a voz embargada.


— Pro SAMU.

— Não. Me leve pro chuveiro. Vou ficar bem se molhar a cabeça.

Arlete era mais pesada do que Michel imaginava, mas, depois de algumas
tentativas, conseguiu pô-la de pé e a levou até o banheiro. Segurava-a por trás, pela
cintura, para que não viesse a cair outra vez. Abriu o chuveiro e a água começou a molhar
os dois. Era uma sensação estranha, mas agradável. Arlete usava um vestido branco de
malha e ele grudou em seu corpo, deixando os bicos dos seus enormes seios à mostra.
Michel olhou para baixo e viu o desenho de sua calcinha vermelha com formato de asa
delta. Ela até podia estar acima do peso, mas não havia dúvidas de que tinha um corpo
cheio de curvas e saliências, um corpo em que qualquer homem poderia ser feliz. Mas
Michel não podia pensar naquelas coisas. Ele tinha que cuidar dela, pois os seus mil e
duzentos reais só dependiam disso. Não morra aqui, Arlete, pelo menos não agora,
comigo! Lembre-se das bombas de chocolate, dos livros policiais e de Vinny, o Lulú da
Pomerânia, quem lhe alimentará com sorvete e paçocas de amendoim?!

E então, enquanto se desesperava e pedia aos céus por um milagre, ele


sentiu uma mão sobre a sua calça, forte e macia, a alisar e a apertar o seu pau. Era a mão
de Arlete, que, por detrás da cascata de água, sorria e lhe fitava com os olhos
semicerrados, a língua circulando ao redor da boca. Ela o pegou pela nuca e, sem
qualquer resistência, eles se beijaram furiosa e demoradamente. Em seguida, Arlete se
ajoelhou, tirou o pau de Michel para fora da calça e começou a chupá-lo. E, nesse
momento, não havia mais crise de labirintite para ser curada, nem ligação para o SAMU,
nem Wladimir lá embaixo, martelando o caminhão, nem a velha casa na Rua Honório,
nem o barulho dos automóveis na Avenida Brasil e nem mesmo Sandy, que ele tanto
amou. Eram só os dois, Michel e Arlete, e ele a levantou, virou-lhe de costas, levantou o
seu vestido molhado, tirou a calcinha asa delta de lado e enfiou tudo, até onde pôde
enfiar. Não foi muito fundo, mas, nossa, como ela gritou! A água gelada batia nas suas
costas e o empurrava para frente, rumo à imensa bunda, e um segundo depois ele era
empurrado de volta. Vinte minutos naquilo, sem interrupção, até que ele gozou.

Mais tarde, já vestidos, cada um ocupava uma das mesas do escritório.


— Eu sempre soube que ia acontecer — Arlete falou. — Vi como me olhou
naquele primeiro dia.

— Como foi que te olhei?

— De um jeito diferente. Deu para sentir suas intenções. Uma mulher


sempre sente esse tipo de coisas.

— Arlete, não quero que fique chateada, mas tem algo que preciso te
contar.

— Eu sei o que é.

— Sabe?

— Sei. Você viu as minhas pastas no computador.

— Pastas?

— É. Espero que não conte nada pro Charles. Você sabe, ele é meio antigo
para algumas coisas.

— Tudo bem — Michel falou. — Eu não vou contar.

CAPÍTULO 21

As trepadas começavam tão logo os caminhões saíam da garagem.


Trancavam a porta, esperavam as marteladas de Vladimir e mandavam ver. Podia ser
dentro do banheiro, ela com os cotovelos sobre a pia, a se curvar e a empinar a bunda,
podia ser em cima da mesa, sentados em uma cadeira ou em pé. Arlete pedia que ele
gozasse em seus seios e gostava de chamá-lo de meu amor. Mete, meu amor, ela dizia, e
ele metia com mais força do que qualquer outro conseguiria meter. O escritório
chacoalhava, os papéis voavam e caíam no chão, o telefone tocava, mas eles não estavam
nem aí.

Dias libertadores e de autoafirmação em que ele, o grande Michel


Rodrigues, mostrava ao mundo do que era capaz. Por vezes trapaceado, humilhado e
dado como acabado, agora jorrava a vida e despertava mortos em um quente e
empoeirado escritório em Ramos. Ah, Arlete, empina esse rabo um pouco mais..., e,
depois de tudo, o tempo passava manso e sereno como se não houvesse outro caminho a
seguir.

Em uma tarde, porém, quando a porta não havia sido trancada e Arlete
suava e gemia sobre uma das mesas e Michel se agarrava às suas pernas, Charles entrou e
deu de cara com os dois. Por um minuto, ficou parado, observando-os em silêncio, com a
boca um pouco aberta.

— Por favor, se vistam. — enfim disse, com a sua voz pigarreada.

Arlete deu um enorme grito, empurrou Michel para o lado, desceu da


mesa, pegou as suas roupas no chão e correu para o banheiro. Tudo isso em questão de
dois segundos.

Michel permaneceu parado no meio do escritório, completamente nu, com


o pau à meia altura.

— É para você se vestir também — Charles falou.

Michel se vestiu e Arlete saiu do banheiro.

— Não é nada do que está imaginando, Charles — ela disse. — Meu Deus,
estou morrendo de vergonha. Olha, que foi a primeira vez que isso aconteceu. Ele me
convenceu!

— Não precisa ficar se desculpando, Arlete. Não acho que o que vocês
estavam fazendo seja algum crime — Charles parecia calmo, como se quase aceitasse a
situação. — Infelizmente, este não é o local adequado para essas coisas, é um ambiente
de trabalho. Vou ter que demitir um dos dois. E vai ser você — apontou para Michel.
— Não vai me dar uma segunda chance? — Michel perguntou.

— Não. Arlete, pague a ele os mil e duzentos reais. Já estava aqui há quase
um mês mesmo.

Arlete correu até a sua mesa e se curvou, provavelmente para assinar o


cheque. Os bicos dos seus seios ainda estavam duros por baixo da blusa. Abriu uma
gaveta e pegou um envelope. Ainda de costas, dobrou o cheque e o enfiou no envelope.

— Aqui está, Baiano — ela falou, estendendo o envelope para Michel. — A


partir de agora, você não trabalha mais na Alligator Muncks. E, por favor, não engane a
mais nenhuma mulher com a sua conversa bonita. Nós não precisamos disso!

Segurou-o pelo cotovelo e o levou até a porta.

— Tem um bilhete aí dentro — cochichou. — Me espere no ponto das


Kombis. Vou tentar sair mais cedo. — e bateu a porta na cara de Michel.

Parado no vão entre o corredor e a escada, por algum tempo ele tentou
digerir o que acabara de acontecer, mas a única coisa que conseguia lembrar era do grito
de Arlete. Olhou para o envelope em suas mãos. Ali estava o seu cheque de mil e
duzentos reais. Poderia pegá-lo e cheirá-lo. Mas, de onde estava, ainda conseguia escutar
a voz dela falando para Charles sobre o quanto ele era manipulador e de como ela fora
empurrada para tudo aquilo. Enfiou o envelope no bolso do macacão e desceu as
escadas. Passou pelo banco de madeira e pelo bebedouro, depois pela mesinha em que
ficavam as canecas e a garrafa térmica para o café. Percebeu que seria a última vez que
faria aquele trajeto. A última vez que olharia para aquela garagem suja, a última vez que
leria as frases escritas nela. O almoço daquele dia no Santiago também fora o último. Lá
do fundo, abafado pela carroceria do caminhão Mercedes, o som do martelo de Wladimir
seguia a vibrar. Era a última vez que o escutava. Pensou que algo estava lhe escapando,
como se ainda faltasse uma peça, mas não fazia ideia de que peça era.

Cruzou o portão, caminhou lentamente até a esquina e esperou a primeira


Kombi passar.
CAPÍTULO 22

Então ele estava sentado no fundo de um ônibus, voltando para a casa dos
tios em Maria da Graça. Nunca mais pegaria aquele ônibus. Quem parasse para olhá-lo,
talvez enxergasse um sujeito triste, espremido em um canto, com os olhos perdidos no
chão. A verdade, contudo, era que Michel sentia-se feliz. Além dos horizontes da
pantanosa e arriscada Zona Norte, além dos sinais abarrotados de mendigos e dos morros
de onde, à noite, cintilavam as luzes dos disparos de fuzil, Copacabana o aguardava com
as suas calçadas limpas e seguras, as suas promessas de amor eterno e o seu barulho do
mar.

Saltou do ônibus em frente à Padaria do Alfonso. Era bem possível que


encontrasse a tia no quintal, com a camisola vermelha e uma lista com as coisas a serem
feitas no final de semana. Mais tarde, o tio apareceria para lembrar que tudo estava
perdido. Michel não precisava mais aguentá-los. Assim que os encontrasse, diria que
Sandy havia retornado e que o aguardava em seu apartamento. Não tinha importância se
não acreditassem. Apenas riria na cara deles e depois pegaria as suas coisas e se
mandaria para o metrô. Quando soubessem da demissão, ele já estaria bem longe
daquele lugar.

De súbito, sentiu uma enorme vontade de ligar para a mãe, talvez porque
há semanas não se falavam, e foi até o orelhão que ficava ao lado da Padaria do Alfonso.

— Que coisa horrível você fez, Michel... — disse a voz do outro lado, a
fraquejar.

— Que coisa? — ele perguntou.

E a mãe então lhe contou tudo — do primo agiota que aparecera há duas
noites para cobrar a sua dívida e de como ela havia deixado de dormir por conta disso. O
grande verme se sentou à mesa e tomou café, falando dos juros, maiores que os de
qualquer banco, os juros que nunca parariam de crescer. Para que a mãe deixasse de se
afligir, Michel acabou por falar da surpresa que vinha guardando há algum tempo. Sim,
ele trabalhara como corretor em uma conhecida imobiliária e conseguira vender uma
enorme cobertura na Lagoa Rodrigo de Freitas. A comissão poderia sair em uma semana
ou em dois meses, assim eram as grandes negociações. Tão logo recebesse, pagaria ao
primo. Mas não poderia voltar agora. Por fim, contou dos dias na casa da tia, por conta de
uma viagem a trabalho de Sandy, e do atual emprego como gerente em uma empresa de
caminhões Munck. E a mãe, sempre tão boa e previsível, acreditou em tudo.

A casa parecia deserta, envolvida em um silêncio perturbador. Passou pelo


corredor, chegou ao pátio e olhou para o quintal. Nenhum sinal da tia. Por onde andaria?
Entrou no bangalô, pegou a escova de dentes no banheiro, as roupas que estavam sobre
algumas caixas, todas as suas coisas espalhadas pelo chão ou em cima da cristaleira e
jogou dentro da mochila. Era um lugar triste aquele bangalô, mas ele nunca mais dormiria
ali. Colocou a mochila nas costas e abriu a porta. Seu tio estava parado no pátio, fumando
um cigarro. Era estranho que estivesse em casa àquela hora. Alguns segundos depois, a
tia apareceu e eles começaram a discutir. Michel fechou a porta, sentou-se em uma
cadeira e ficou escutando os dois. Ela descobrira um empréstimo que ele tinha feito e não
acreditava que era para pagar o boteco. Ele já teria morrido se bebesse tanto. Na certa,
sustentava outra família em algum lugar. O tio apenas escutava tudo o que ela dizia e
depois de um tempo mandava-a se calar. O sol se pôs, as luzes nos morros começaram a
se acender e o galo do vizinho, sempre atrasado ou adiantado, cantou. Michel ainda
poderia ir até eles e falar do retorno de Sandy, dizer que o esperava em algum
restaurante, mas aquelas vozes os nauseavam. Deitou-se no colchão, colocou a mochila
sob a cabeça e esperou que a discussão acabasse. Sem sentir, adormeceu.

No sonho que teve, encontrava-se na poltrona de um ônibus, o mesmo em


que tinha viajado, meses antes, até o Rio. Curiosamente, não havia ninguém além dele,
nem mesmo um motorista. O ônibus seguia por sua própria conta, até que parou de
frente a um castelo. Havia uma ponte, um enorme portão e duas torres muito altas. Da
janela de uma dessas torres, Sandy apareceu. Usava uma espécie de roupão transparente
e, por debaixo dele, o mesmo biquíni do dia em que haviam se conhecido.
— Venha, Michel! — ela gritou. — Preciso que veja uma coisa.

Michel correu até o portão e o empurrou. Ele se desmanchou, como se


fosse feito de areia. E em um segundo já não havia mais nenhum castelo, e sim as dunas
de uma praia que ele vira em um filme. No alto de uma dessas dunas, a enorme cama
com lençóis dourados em que ela o esperava.

— Por que está se escondendo? — ele perguntou, sentando-se ao seu lado


sobre a cama.

— Nunca me escondi — Sandy respondeu. — Você é que não soube me


encontrar.

Sem qualquer aviso, a cama começou a flutuar com os dois. Primeiro, sobre
as dunas, depois ganhando altura e cortando espessas nuvens em uma velocidade
absurda, planando no céu até parar em um lugar que era bastante familiar para Michel.
Viu a escola em que estudou quando era criança, a praça da igreja e a rua em que ficava a
casa dos seus pais. Não sentira falta, até aquele instante.

— Tudo é um preparativo para o momento maior — alguém disse ao seu


lado.

E ali, no lugar em que há pouco se encontrava Sandy, agora ele via aquela
mulher que certa vez lhe dera cigarros e colocara a sua mão sobre o seu peito.

— Veio me cobrar? — Michel perguntou.

E então, de um instante para o outro, eles já não planavam mais sobre a


antiga cidade de Michel. Abaixo dos seus pés, completamente iluminada, a Avenida
Atlântica reluzia em um cortejo de luzes e de sons. Lá estavam os hotéis cintilantes, os
fogos pipocando em um estrondoso céu de réveillon.

— Você não vai encontrar quem procura, Michel — a mulher tornou a


falar. — Porque ela nunca existiu.

A mulher ficou de pé sobre a cama, sorriu e pulou, lançando-se na


escuridão em que tudo ao redor se transformara. Enquanto caía, ela desaparecia, assim
como a cama em que Michel estava sentado. De súbito, também ele se encontrava solto
no espaço, em uma turbulenta queda. Não sabia a que velocidade despencava, muito
menos o que fazer, mas uma coisa parecia certa: seguia rumo ao fim, às profundezas do
seu próprio sonho.

Mas eis que, em meio àquela queda e a todo o breu que lhe envolvia, um
filete de luz surgiu e tudo então parou. Michel abriu os olhos e observou as coisas à sua
volta. Viu as caixas empoeiradas, as janelas atulhadas de pregos, e se deu conta de que
ainda estava em Maria da Graça, no velho bangalô dos seus tios. Lá fora, em alguma rua
próxima, um cachorro latia incessantemente e o carro dos ovos anunciava uma
promoção. O sol entrava por entre os fios de uma teia de aranha na janela.

Foi até o banheiro, lavou o rosto e enfiou a mão no bolso. Pegou o


envelope e o abriu. Havia apenas um bilhete, nenhum sinal de cheque.

Tomara que entenda o que fiz. Não posso perder a confiança de Charles.
Sou só. Me espere no ponto das Kombis, vou levar o seu cheque. A gente precisa
conversar.

Michel amassou o papel entre os dedos. Arlete o enganara. Aquela gorda


era como Aldo, como Ana Clara, e ele nunca veria os mil e duzentos reais. A culpa era
toda sua. Quando, enfim, aprenderia que as pessoas não foram feitas para se confiar? Se
voltasse a Alligators Munck para cobrar o seu dinheiro, Arlete certamente inventaria
alguma história louca e em minutos até a polícia apareceria para lhe prender.

Abriu a carteira e conferiu o que ainda havia ali dentro: quarenta e dois
reais, além de três vales transporte. Não era muito, mas o bastante para ir embora dali.
Pegou a mochila, conferiu se o tio ou a tia, por alguma razão, ainda estavam no pátio e
saiu.

CAPÍTULO 23
As ruas e as avenidas de Copacabana continuavam como sempre,
charmosas e acolhedoras. Grupos de turistas asiáticos saíam dos hotéis de luxo e se
encantavam com a cor do mar e com o brilho do sol, os sempre atentos manobristas
flertavam com as recepcionistas em seus uniformes limpos, garotos e garotas seguiam
para a praia e velhas alquebradas arrastavam seus carrinhos de compras ao atravessar o
sinal. Michel sorriu para elas, assim como acenou para as balconistas de uma lanchonete
e piscou um dos olhos para a moça que distribuía panfletos sobre empréstimos. Quase
ninguém lhe deu atenção, mas não tinha importância. Ele só queria sentir que estava ali.

Caminhou a esmo por quase duas horas, até que comprou um jornal e o
estirou sobre uma das mesas de cimento da Praça do Lido. Conferiu o caderno literário,
sem encontrar qualquer menção à Sandy, e o classificado de imóveis. Notou que um dos
anúncios da Lomma Imobiliária era o de um conjugado na Barata Ribeiro que havia
captado. Lembrou do dono, um velho simpático que cultivava tulipas, e das atendentes
do Flamengo Beach Power, dos seus sorrisos abertos e alvos. Lembrou também de Otavio
Quispe e ficou a imaginar que àquela hora ele talvez estivesse com uma taça de
champanhe na mão, estirado sobre uma espreguiçadeira na varanda de sua cobertura.
Mais tarde, Michel foi até a praia e se sentou sobre um monte de areia. Estava cheia,
mesmo não sendo final de semana. Os berros dos vendedores de sanduíche natural, de
mate e de biscoitos Globo se misturavam aos dos salva-vidas e ao constante murmurar da
multidão. Quanta falta sentira daqueles guarda-sóis, de olhar na direção do Forte ou do
Leme e de imaginar que ela estaria por ali, entre um ponto e outro, e que ele só precisaria
encontrá-la. Por um tempo mais, teria todas as chances outra vez.

Calculou que poderia pedir um dinheiro emprestado a Buade. Nada


demais, trezentos ou quatrocentos reais. O gringo não negaria, se tivesse. Entregaria uma
parte a Sóstenes, para diminuir o débito, e voltaria para o seu quarto. Talvez conseguisse
um emprego. Sempre havia bares e lanchonetes procurando por funcionários, e qualquer
coisa seria melhor que Ramos. Era nisso que pensava no momento em que, ao seu redor,
uma agitação começou. As pessoas se levantavam, alvoroçadas, apontando na direção do
Forte. Michel também ficou de pé e rapidamente descobriu o que os tinha deixado
daquele jeito: uma mancha escura, a pouco mais de cinquenta metros, varria toda a
praia. De início, não compreendeu bem, até que se deu conta de que estava frente a
frente com um arrastão. Achou bonito, nunca tinha visto nenhum. Os combates deviam
acontecer assim antigamente, um exército correndo de encontro ao outro e, no centro do
campo de batalha, eles se atracavam e lutavam até que só restasse o vencedor. Naquele
instante, entretanto, só havia um lado interessado em lutar, pois o outro, incluindo os
vendedores de mate e os salva-vidas, começou a correr rumo ao calçadão - entre eles,
Michel, com a sua mochila nas costas, os pés fritando na areia quente, sendo empurrado
por garotões malhados e quarentonas com tatuagens na bunda. Enfim, quase sem fôlego,
alcançou a avenida Atlântica. Atravessou o asfalto até chegar na padaria do outro lado,
que, para o seu espanto, tinha acabado de fechar. Em um restaurante mais à frente, não
o deixaram entrar. E, um por um, feito peças de um dominó que, empilhadas, começam a
cair, todos os pontos comerciais à sua volta foram cerrando as portas.

Enquanto isso, sobre o calçadão da Atlântica, a mancha se espalhava. Era


rápida, mais do que deveria ser, e vinha em sua direção.

Michel disparou até a rua mais próxima, a Hilário Gouveia, onde avistou
um prédio com um jardim feito de bromélias e de pequenas palmeiras, e ali mesmo ele se
agachou e se escondeu. Menos de um minuto depois, eles apareceram, alguns com
camisetas sobre o rosto, avançando pela rua como os Cavaleiros Do Apocalipse No Dia Do
Juízo Final. Gritavam, destruíam retrovisores de carros, chutavam o lixo na frente dos
prédios e jogavam pedras nas vitrines para que elas se quebrassem. Uma senhora se
refugiara atrás de um carro, mas foi descoberta e encurralada na marquise de uma loja, e
eles levaram a sua bolsa, o seu relógio, a sua pulseira e um colar de bolas azuis. Ela ali, a
alguns metros de onde Michel estava, caída no chão, a chorar. Logo ele também seria
encontrado. Podia vê-los correndo rumo ao lugar em que se escondera. Vinte ou trinta
deles. O bonde do seu terror. Prontos para lhe esquartejar.

Acontece que Michel continuou ali, sem me mover, e eles passaram, um


por um. Não o viram. Chegaram até a esquina, pararam por dois segundos e viraram à
direita. E tudo ficou em silêncio. Michel os tinha engabelado e nem precisou de muito,
apenas de umas bromélias. Saiu do seu esconderijo e foi até a mulher, que continuava
caída no chão, balbuciando qualquer coisa. Levou-a até o batente de uma loja e a
sentou.

— Eles já foram embora — Michel falou. — Se me disser aonde mora,


posso te levar até lá.

Aquela pobre mulher, porém, estava em choque. Não sabia aonde morava,
muito menos o que fazia ali. Suas frases eram palavras soltas e não chegavam a ter
sentido. Sua voz soava como um de ganido cheio de dor. Michel calculava o que poderia
fazer para ajudá-la, quando o chão repentinamente voltou a tremer e o seu mundo girou
de ponta-cabeça outra vez. Na mesma esquina em que minutos antes havia desaparecido,
aquela legião de malfeitores retornava em sua marcha de destruição. Pareciam ainda
mais numerosos e barulhentos. Por mais estranho que soe, por um segundo Michel
chegou a pensar em conversar com eles. Diria que estavam na mesma merda, que ele
também sabia sobre o quanto de injustiça o mundo costuma alimentar. Contaria das
coisas pelas quais tinha passado, da selva que é viver. Talvez o entendessem e o
deixassem ir.

Mas ele acabou não falando coisa alguma. Simplesmente disparou, no


sentido da Nossa Senhora de Copacabana, deixando aquela senhora para trás. Até lá,
encontraria uma forma de escapar. Até lá, aqueles filhos da puta já teriam encontrado
outro alvo. E, além de tudo, ele já vira o bastante, não queria ver mais.

— Quer apostar corrida, playboy? — escutou um grito, mais próximo do


que gostaria, e sentiu um arrepio percorrer as costas.

Na esquina da Nossa Senhora com a Santa Clara, uma van passava com as
portas abertas. Era o milagre que havia pedido. A distância que o separava dela era
menor do que a que havia entre ele e os gritos às suas costas. Reuniu toda a energia que
ainda possuía e se atirou no sentido da van. O plano era dar um salto, cair sobre o piso e
gritar para o motorista acelerar, deixando todo aquele inferno no passado.

Para a sua infelicidade, antes que conseguisse saltar, a van disparou,


seguindo para outro ponto, e Michel ficou para trás. Em poucos segundos, o arrastão o
alcançou. E naqueles minutos que pareceram meses, ele teve os seus cabelos puxados,
recebeu socos no rosto e nas costelas, caiu de cara no chão, levou chutes e foi arrastado,
até que, assim como chegaram, eles abruptamente partiram, em indomada correria.

Michel ficou de pé. As costelas doíam, assim como quase todo o seu corpo.
Não sobrara muita coisa sobre ele, a não ser o short, que agora não passava de um
pedaço de malha pendurado à cintura. A mochila, com as roupas e o resto do dinheiro,
havia desaparecido. Era muito, talvez até demais, e por um breve momento ele surtou.
Com as costas em carne viva e a polpa da bunda à mostra, começou a correr, da hilário
Gouveia rumo ao Hotel Realeza, abrindo caminho em meio à multidão desavisada que
sequer vira o arrastão acontecer. O que é aquilo, — alguém por certo questionou, vendo-
o passar — tão grotesco e assustador? Aquilo era Michel Rodrigues, um animal vindo de
longe, uma alegoria a carregar, para todo lado, a sua estropiada fábula sobre a vida e o
amor.

Após cinco quarteirões, alcançou a rua sem saída, a mesma em que entrara
inúmeras vezes antes, subiu a escadaria e ganhou o saguão. O tapete vermelho, o sofá
verde, o lustre enferrujado e o Cristo Redentor com os braços curtos e o queixo
avantajado continuavam no lugar de costume, assim como o cheiro de mofo, ainda a
impregnar o ar. Como nas outras manhãs, não havia ninguém por ali. Foi até o andar de
cima e correu até porta do quarto 305, e ele estava vazio, com a cama forrada e a janela
fechada. Tomou um banho, em seguida escancarou a janela e se deitou, enrolado na
toalha. As costas ardiam como nunca, arranhadas. Que grande aperto havia passado.
Quase morrera e perdera toda a sua fortuna, algo perto dos quarenta reais. Mas agora
tudo havia passado e ele até se sentia bem, pois estava onde desejava estar.
CAPÍTULO 24

O barulho vinha do quarto de Buade. Michel se enrolou na toalha e


atravessou o corredor. Pensou nas histórias que contaria sobre muncks e fodas em mesas
de escritório, dos lugares que tinha conhecido, dos perigos das milícias e dos arrastões.

Ao entrar no quarto, porém, em vez de encontrar o gringo, se deparou


com Sóstenes, que segurava a tevê nos braços.

— Olha só quem está aí — Sóstenes disse ao vê-lo.

— Sóstenes, você deve estar chateado — Michel falou. — Saí com


urgência, sem avisar. Fui passar um tempo com uma tia, na Zona Norte, ela andava meio
mal de saúde. Mas agora está bem.

— Que bom.

— É, mas não pense que esqueci do meu débito, tanto que estou aqui.
Preciso somente de uns dias e acerto tudo.

— Tudo bem. O quarto está vago mesmo.

— Obrigado, sabia que poderia contar com você. O que houve com a tevê,
quebrou?

— Não.

— Buade comprou uma nova? Aliás, por onde anda aquele filho da mãe?
Não me diga que voltou para a França.

— Ele morreu.

— Como é?

— Buade morreu. Foi na semana passada, aqui mesmo, nesse quarto.


Descobriu que a Evelyn vai morar na França com outro gringo e parou de comer, de
conversar, e só saía para comprar vodca, uma garrafa atrás da outra. Por duas ou três
vezes, gritou, no meio da madrugada, que a vida era injusta e que tudo o que ele
precisava era de amor. Eu vinha até aqui e deixava um pão com mortadela ou uma
coxinha sobre a mesa, mas ele nem tocava. Dava pra ver em seus olhos que já tinha
desistido. O médico disse que foi ataque cardíaco.

— Puta merda.

— É.

— E os parentes? Ele vivia dizendo que eram nobres.

— Talvez sejam, mas até agora ninguém apareceu. Pra falar a verdade, só
tinha eu lá no enterro... Acho que ele não se importaria se eu ficasse com a tevê.

— Também acho que não.

Sóstenes tornou a pegar a tevê.

— Tenho que ir. Você sabe, daqui a pouco o movimento começa. Se quiser,
posso trocar os lençóis do seu quarto.

— Estão bons. Posso ficar um pouco mais por aqui?

— Claro, só não deixe a porta aberta.

Sóstenes saiu do quarto e Michel se sentou em uma das cadeiras plástico.


Buade havia morrido. Pobre Buade, o único amigo que encontrara, enfim liberto das
garras de um amor que nunca lhe pertenceu.

Michel se levantou e foi até o armário, afastando duas ou três garrafas


vazias de vodca pelo caminho. Livrou-se da toalha e, em seu lugar, vestiu uma das
bermudas do gringo. Estava um pouco apertada, mas daria para usar. Escolheu uma
camisa de botões com desenhos de abacaxis. Ao abrir uma gaveta, encontrou a caixa em
que ficava a maconha. Destrinchou um pouco, apertou um baseado, que mais se parecia
com um bombom, e o acendeu. A garganta coçou, feito daquela primeira vez, mas ele
não tossiu. Uma sensação de bem-estar lhe envolveu, uma espécie de compensação. Viu
a fumaça rodopiar e se espalhar no ar, e também viu, por detrás dela, sobressaindo-se na
superfície plana da parede, a moldura da Riviera com a sua centena de pessoas deitadas
sob os guarda-sóis. Tocado por aquela familiar imagem e pelo significado que ela ganhara,
Michel se levantou, caminhou até o quadro e o tirou da parede. Havia um buraco atrás
dele. E, dentro desse buraco, um monte de rolos do que pareciam ser notas de euros.
Michel os pegou e os levou até a mesa, livrando-os das borrachas. Contou duas vezes. O
resultado foi sempre o mesmo: mil euros em cada um dos rolos, e haviam vinte e três
deles. Michel os enrolou na toalha, colocou a moldura no lugar, pegou a caixa com a
maconha e saiu.

CAPÍTULO 25

O quarto 305 do Hotel Realeza, irrevogável retiro, onde a luz do sol batia
em seu rosto pela manhã e os dias seguiam suaves feito um longo e abençoado feriadão.
Michel trocou os euros, depositou a maior parte em uma conta, enviou um pouco para os
pais e pagou à Sóstenes e ao primo agiota. E tudo parecia acontecer de uma forma tão
espontânea, que ele, por ventura, quase se sentia feliz naquele tempo de
imperturbabilidades, quando alguma coisa perto da serenidade o alcançou. Aproveitou
para conhecer o Pão de Açúcar, andar no bondinho de Santa Teresa e, vez por outra,
beber uma cerveja em um dos quiosques do calçadão, ainda a procurar por Sandy,
embora sem a mesma pujança de antes. Usava camisas polo e óculos Ray Ban, comprados
em um shopping.

Em um final de semana, resolveu voltar ao Restaurante Ville Noir, de onde


certa vez fora expulso. O lugar parecia menor, quase não tinha mesas ocupadas e o
garçom que o havia atendido não estava lá. Michel pediu o mesmo vinho, Chateau de
Robienoux, seco e sem graça, e comeu o Medallion A Piamontese, que continuava
delicioso.
— Lembra de mim? — perguntou ao gerente quando foi ao balcão.

— Sim, claro! — o gerente mentiu. — Como o senhor está?

— Não tão bem quanto o Medallion — Michel respondeu e os dois


sorriram.

Contudo, na sombra de todas aquelas benesses, ainda havia algo a lhe


inquietar. Era a imagem de Buade, caído no chão do quarto, cheio de garrafas de vodca
ao redor, gritando em desespero, sem que ninguém, a não ser Sóstenes, conseguisse lhe
escutar.

Movido por aquele sentimento, algumas noites depois Michel passou pela
porta do reformado Picardia Night Club. O salão estava cheio e a iluminação era mais
moderna, com lâmpadas embutidas lançando jatos de luz. O carpete, em vez de
vermelho, passara a ser negro. Escolheu uma mesa mais para o canto e se sentou. À sua
direita, quatro ou cinco sujeitos brindavam e, à sua frente, dois gringos tentavam alisar as
pernas de uma garota que sorria e fingia não gostar. No balcão, um velho com cara de
índio falava alto. O barulho era uma mistura de vozes, da música que saía das caixas de
som e de copos a tilintar. Michel pediu uma dose de Martini, por pura curiosidade.

Um homem vestindo um paletó branco e uma gravata borboleta vermelha


subiu ao palco e começou a falar ao microfone. Aquela era uma ocasião especial, ele
disse, pois a melhor casa de shows da América Latina estava reabrindo as suas portas.
Novos shows, novas garotas, e o ápice: a grande despedida de Evelyn, que faria a sua
última apresentação.

— Uma noite realmente imperdível, cavalheiros! — ele ainda falou.

E, então, as apresentações começaram. Uma após a outra, elas subiram ao


palco: morenas, loiras, negras, mulatas e orientais, mulheres de muitos tipos e formas,
cores e tamanhos, mas, de alguma maneira, todas soando um tanto similares. As músicas
seguiam em uma linha flashback dançante, e a maior parte do tempo, enquanto tiravam
as roupas, elas ficavam passando a língua ao redor da boca, alisando o corpo e jogando os
cabelos, a todo e qualquer instante, para trás, numa repetição de movimentos ensaiados
e nada naturais. Quando estavam completamente nuas, iam até o poste de pole dance e
giravam quatro ou cinco vezes, depois faziam alguma pirueta, desciam até o chão e o
show acabava. O velho índio com a garrafa de uísque dava um grito, as palmas e os
assobios se espalhavam por todo o lugar.

Duas horas se arrastaram até Michel notar que o Martini ficou aguado e
que ele se enfastiara de tudo aquilo. Só estava ali por causa de Buade, mas Buade estava
morto e ele ainda tinha coisas para resolver.

Levantou o braço e pediu a conta para uma das garçonetes, mas ela não
percebeu. Nesse momento, o homem com a gravata borboleta vermelha subiu ao palco
novamente.

— E agora, cavalheiros — ele falou, com sua voz anasalada —, a fenomenal


dama da noite, a mulher que abre todas as feridas, a mais nova estrela do Picardia Night
Club, Florbela Paz!

A fumaça de gelo seco começou a subir e o barulho dos gritos e das palmas
se tornou quase ensurdecedor. Cada vez mais incendiados, aqueles elementos
refestelavam-se ante a chegada da próxima dançarina, uma tal de Florbela Paz. E ela
apareceu, galgando passo a passo os degraus da escada e em seguida ganhando o palco
para exibir o seu corpo perfeito e o seu sorriso que irradiava alguma coisa muito próxima
à luz. E, finalmente, feito naquele remoto dia em que, distraído e sem qualquer anseio,
ele caminhava por uma das praias desertas da sua velha cidade, a vida e o mundo de
Michel pararam mais uma vez. O barulho que reverberava no salão do Picardia Night Club
passou a ser o barulho que havia dentro de si. A respiração de todas aquelas pessoas era
a sua própria respiração. E toda a dor e toda a paz que pudessem existir também
passaram a ser seus. Sentado onde estava, ficou a observá-la com um biquíni cravejado
de lantejoulas douradas, os cabelos presos em um coque, o pescoço à mostra. Quantas
vezes beijara aquele pescoço? Aquele mesmo, não o de uma sósia, não o de alguma
mulher parecida. Quantas vezes teve aqueles seios entre as mãos e apertou aquela
bunda, abrindo espaço para que fossem um só? Os seios e a bunda de Sandy, ainda mais
bonita do que em suas lembranças, a mais bela sereia a deslizar sobre a superfície de
cimento daquele palco como se mergulhasse nas águas profundas que era o seu amor.
Pensou em se levantar e se posicionar mais à frente, em algum ponto de
onde ela pudesse enxergá-lo, mas concluiu que o melhor seria surpreendê-la, depois da
apresentação, no corredor que levava aos camarins. Ela correria em sua direção e se
jogaria em seus braços. E ele, com o coração vibrando feito uma britadeira em dia de
construção, a perdoaria por tudo o que fosse preciso perdoar. Daquele instante em
diante, nada mais de mistérios indecifráveis, nada mais de buscas, nem de solidão.

— Vira esse rabo pra mim! — o velho índio gritou.

Foi uma apresentação fascinante, embora longuíssima, mas felizmente


acabou. Ela desceu do palco e ele seguiu em sua direção. Para o seu assombro, encontrou
oito ou dez daqueles bêbados pela frente. Abriu caminho à força, aos empurrões, e, ainda
assim, não chegou a tempo. Viu quando, acenando para a turba, ela entrou pelo corredor,
onde havia um segurança prostrado.

— Sandra D’Angelo! — Michel gritou, a voz abafada em meio a tantos


outros barulhos, um gemido desalentado engolido pelo caos.

Mas ela parou. Sandy parou, se virou e olhou para trás, para onde ele
estava. Deu dois passos em sua direção, se abaixou e pegou algo que havia caído no chão.
Era um brinco. Apenas isso, um dos seus brincos, e ela então se levantou e tornou a
seguir para os camarins.

— Preciso falar com ela! — Michel gritou com o segurança.

— Não tem como.

— Te dou cinquenta reais se me deixar passar. Melhor, vá até ela,


correndo, e diga que Michel Rodrigues está aqui. Ela vai gostar de saber.

— Dá o fora — o segurança vociferou, olhando-o com a cara fechada. —


Não vou falar outra vez.

Sem saber o que fazer, Michel decidiu que esperaria, pelo tempo que fosse
necessário, até que ela saísse dos camarins. Encostado no balcão do bar, imaginou todas
as coisas que tinha para dizer e perguntar, e eram muitas. Então lembrou da saída que
havia nos fundos. Lançou-se porta afora e deu a volta no quarteirão. Avistou-a a vinte
metros, cruzando a rua. Usava um sobretudo com estampa de onça e os seus cabelos
agora estavam soltos, alcançando o meio das costas. Como eram bonitos aqueles cabelos!
Foi até um Monza e por alguns segundos ficou conversando com o homem sentado no
banco do motorista, depois deu a volta, se sentou no banco do passageiro e eles
partiram. E o que Michel fez foi a única coisa que podia fazer naquele instante: ele partiu,
em desvairada correria, atrás deles, da Prado Júnior até a Nossa Senhora de Copacabana,
quase duzentos metros em um esforço sobre-humano, até que, sem folego, desistiu.
Parado no meio da rua, tentando recobrar o ar, escutou um carro buzinar às suas costas.
Era um táxi.

— Siga aquele Monza! — gritou, atirando-se para dentro do táxi.

Por sorte, o taxista não achou aquilo estranho e eles seguiram Sandy e o
homem. Primeiro, por Copacabana, depois por Botafogo, pelo Aterro, passaram pelos
Arcos da Lapa e pelo Centro. Meia hora depois, em uma rua suja e estreita da Gamboa, o
Monza estacionou em frente a um antigo prédio de conjugados. O taxista parou na
esquina, de onde Michel podia observá-los. Viu quando saltaram e caminharam até a
entrada do prédio. O homem, um moreno alto com um cavanhaque e um rabo de cavalo,
seguia mais à frente e parecia reclamar de alguma coisa, enquanto Sandy tentava se
explicar. Ele tinha um jeito sombrio, quase assustador. Uma hora, ela o puxou pela mão,
como se tentasse pará-lo. Num único movimento, o homem girou o braço e a estapeou.
Sandy caiu no chão e ele a deixou onde estava e entrou no prédio.

— Que vagabundo — o taxista disse, ao lado de Michel.

Michel abriu a porta do táxi e saltou.

— Espere aqui.

— Melhor não ir, parceiro, seja lá quem ela for. Se aquele cara voltar, você
pode ter problemas. Conheço o tipo.

Michel não respondeu. Seguia, afinal, ao encontro do seu amor, por quem
procurara por um longo tempo. Pegaria em suas mãos, a levantaria daquele chão sujo e a
livraria de todas as coisas ruins pelas quais era obrigada a passar. Ninguém mais lhe daria
tapas, ninguém mais lhe faltaria com o respeito, pois, embora ainda não soubesse, ele
estava ali e voltaria a ser o seu protetor.

— Você continua linda - disse, a quatro metros de onde ela estava.

Sandy havia acabado de se levantar, os cabelos derramando-se sobre o


rosto, as pernas grossas escapando pelas brechas do roupão. Virou-se e o olhou, jogando
os cabelos para trás, mostrando a maquiagem borrada na altura do olho esquerdo. De
início, não o reconheceu. Observou-o com curiosidade e algum receio, até que seus olhos
se escancararam e ela quase sorriu.

— Michel?! — perguntou.

— Que bom que lembra.

— O que tá fazendo aqui?

— Vim te ver, o que mais?

— Sério? — ela o olhava, incrédula.

— Sim. Faz um tempão que te procuro. Andei por Copacabana de cima a


baixo. Pelo Rio de Janeiro inteiro. Fui em todos os lugares onde imaginei que poderia te
encontrar.

— Que loucura.

Sandy foi até ele, os saltos estalando sobre a calçada. Parada à sua frente,
suspirou.

— Não sei o que dizer.

— Pode começar tentando explicar algumas coisas. Tem uma porção que
eu gostaria de entender.

— Não tem o que explicar.

— Claro que tem. Não sei nem qual é o seu nome. Usa Sandra durante o
dia e Florbela pela noite? Fiquei curioso.
— Que importa?

— Que importa?! — Michel se irritou. — Importa demais! Quer que eu


conte tudo o que passei para chegar até aqui?!

— Não precisa gritar.

— Ah, está com medo do namoradinho voltar! Ele já sabe sobre a gente?
De Sandra D’Angelo?

— Escuta, Michel, eu não te chamei para vir aqui e não te prometi nada,
por isso não pode me cobrar. Você veio porque quis. Não tenho culpa.

— Vim porque acreditei nas coisas que falou!

— Não era para acreditar.

— Mas eu acreditei. E parece que tudo era mentira. Onde é que está o
grande livro que ia lançar? Aposto que nunca escreveu um poema na vida.

Sandy olhou para trás, para a entrada do prédio. Não havia ninguém.
Encarou Michel e, com aquela mesma voz que, tempos antes, lhe falara das maravilhas do
mundo, começou:

— Quer saber? Vou te contar o que aconteceu. Eu estava confusa, de saco


cheio. Comecei a pensar que se tivesse outra vida, poderia ser feliz. Sei lá, se morasse em
um lugar diferente, se tivesse uma filha. Quem sabe eu escrevesse um livro. Sempre quis
escrever. Um dia, fiz as malas, escolhi a única cidade que nunca tinha ouvido falar e
comprei uma passagem. Acabei te conhecendo. Mas poderia ter sido qualquer um. Eu só
não queria me sentir só.

— Acontece que fui eu.

— Glória! — um grito ecoou atrás deles.

Era o cabeludo, parado na entrada do prédio. Parecia um personagem dos


filmes de vampiros, os olhos fundos feito um poço.

— Preciso ir — ela disse.


— Não vá — Michel a segurou pelo cotovelo, aflito. — Eu te perdoo. De
verdade, não ligo pro seu nome nem para o que faz. Ainda não contei, mas ganhei muito
dinheiro em um negócio e estou me mudando para a França. Vamos juntos. Nunca mais
vai precisar dançar para aquele monte de bêbados.

— Não posso.

— Lógico que pode. Entre naquele táxi comigo e amanhã nós estaremos na
Riviera, em uma casa de frente para o mar. Vai ter tudo o que pedir. Te dou a filha que
você tanto quer ter.

— Eu já tenho a minha Riviera, Michel.

— E o que é, essa rua fedorenta? Aquele filho da mãe que te bateu?

— Cada um escolhe o seu próprio tesouro.

— Glória! — o cabeludo tornou a gritar.

— Posso te dar muito mais — Michel insistiu.

— Eu não quero. Não posso escapar do que sou — ela passou a sua mão
delicadamente sobre a dele. — Volte para a sua cidade, esqueça que me conheceu. Vai
ser melhor.

E então se virou — Sandy, Glória ou Florbela Paz —, caminhando apressada


até o cabeludo. Tão charmosa com aquele sobretudo, tão decidida naquele seu caminhar.
Michel sabia que de nada adiantaria falar qualquer coisa mais, e, naquele instante, até
isso soou bonito.

— Quem é?! — escutou o homem perguntar.

— Meu irmão — ela respondeu.

Sandy pegou o cabeludo pela mão e o puxou, e por um segundo ou dois ele
ainda encarou Michel, até que, juntos e de mãos dadas, os dois passaram pelo portão e
desapareceram nas sombras de um corredor longo e escuro.
E Michel se viu só, mais do que em qualquer outra ocasião, a olhar para o
prédio à sua frente. Chamava-se Bonanza. Em sua fachada de pastilhas quebradas, havia
uma placa de ferro com a data em que havia sido construído. Era um prédio esquisito,
que se assemelhava a um enorme cortiço. Em qual daqueles parapeitos ela se debruçava,
a olhar para o mundo à sua volta? Michel não lembrou de nenhuma das frases que havia
pensado quando caminhava pela Atlântica ou quando ficava sentado no sofá do Realeza,
olhando os casais subindo e descendo as escadas. Não falou dos sonhos que alimentara
enquanto cruzava a Avenida Brasil dentro de um caminhão ou das madrugadas perdidas,
olhando para o teto do bangalô. De onde estava, podia ver o táxi parado na esquina de
casas de ferragens fechadas e sobrados com pichações. Mais à frente, uma guarita
abandonada e um pequeno hortifruti. Elevando-se por sobre um daqueles sobrados,
destacava-se o letreiro em neon de um estabelecimento, provavelmente localizado na rua
de trás. Era um letreiro grande e piscava por três vezes, num vermelho muito intenso,
depois se apagava por dois segundos e então voltava a piscar. Michel nunca o tinha visto,
mas conhecia bem o número do telefone que havia nele, pois ligara dezenas de vezes
para aquele mesmo número, sempre cheio de esperança, em um tempo alimentado por
devaneios e enganações. Era o letreiro da Galeteria Wilson, onde preparavam o melhor
galeto do Rio. Ele pensou que tudo havia passado tão rápido, como em um flash. O
tempo de um grito, de um raio partir uma árvore ao meio, de fechar por um instante os
olhos e abri-los logo depois. O tempo que um rojão é disparado para clarear um céu de
réveillon. O que resta em seguida é apenas a fumaça, o rastro de algo que lentamente se
dissipa no ar e deixa de existir. Feito um louco, Michel correu ferozmente em busca do
seu céu de réveillon, da grande aventura da vida, do brilho no olhar, da doce ilusão do
amor. Mas ao chegar, encontrou apenas a fumaça de algo que nunca havia sido tão
sagrado ou genuíno quanto pensou ser. Sandy não passara de um desvario, uma centelha
que o seu verdor transformou em algo muito maior. E, agora, a mulher que ele imaginara
com tanto ardor, finalmente se desmanchava no ar e também deixava de existir. Pensou
que, de alguma forma, talvez tivesse sorte por ser assim. Viver é arranjar motivos, alguém
lhe falou uma vez. Viver é uma eterna preparação. Nas janelas acesas nos prédios à noite,
Michel seguia a avistar a poesia e a grandeza de estar vivo, e isso quase sempre lhe
bastaria, porque eram tantas as janelas e tantas as coisas que se podia imaginar. Tão
veloz, tão vigoroso, tão descuidado. E tudo estando sempre a um passo de acontecer.
Olhou mais uma vez para o parapeito do Bonanza, mas Sandy não estava
lá, nem ela nem ninguém, e ele caminhou até o táxi.

— Pra onde? — o taxista perguntou quando ele se sentou.

— Copacabana — Michel respondeu.

— Copacabana... — o taxista repetiu, ligando o carro.

Saíram da Gamboa e logo estavam cruzando as enormes avenidas daquela


cidade que se iluminava para que pudessem passar, a cruel e fascinante cidade que tanto
deu e tirou de Michel, a cidade que tanto o fez sonhar. E ali, sentado no banco daquele
táxi, ele apenas fechou os olhos e se deixou levar, cruzando os braços sobre o seu peito e
sentindo mais uma vez o pulsar do mundo, a ininterrupta correnteza dos dias, o bater
forte e descompassado do seu coração.

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