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Rodrigo Melo
A publicação deste livro deve-se em grande parte à amizade e à
generosidade de Marcus Borgón, Paulo Bono, Nárcia Bezerra, Zezé Barreto, Fabrício
Brandão e Francisco Correia.
Para Amaralina, Thalita, Eduardo, Márcia, Juliano e Murilo.
“Toda a juventude termina na praia gloriosa, à beira d’água, ali onde as
mulheres parecem ser finalmente livres, onde são tão bonitas que nem precisam mais da
mentira de nossos sonhos. ”
Louis-Ferdinand Céline
Marcus Rey
CAPÍTULO 1
Siga em frente, ó, contrafeito taxista — ele pensou —, uma vez que todo
homem tem direito à glória e estou prestes a alcançá-la. Se quisesse, poderia passar um
longo tempo falando sobre a pessoa que encontrarei, não no hotel para onde me leva,
pois já é tarde e a felicidade nos força a certas provações: uma admirável e encantadora
poeta de nome Sandra D’Angelo, ou simplesmente Sandy, como passei a chamá-la, uma
mulher de sorriso escancarado, costas encovadas e pernas roliças e muito grossas em
que, por memoráveis noites, alisei e rocei o meu pau. Foi o destino, se isso existir, o que
nos uniu — ela poderia ter escolhido qualquer lugar, mas estava justamente ali, passando
as férias naquela cidadezinha em que eu vivia, dourando-se sob o sol de praias desertas,
quando nos conhecemos. E então, taxista, naqueles dias que correram inabaláveis feito
um rio que vai de encontro ao mar, eu inesperadamente desbravei o universo, descobri
segredos e desvendei mistérios, me afundei até onde pude nisso que chamam de amor.
Alguém queria ver um homem feliz? Bastava olhar para mim, que levitava sobre o chão.
Não sei quantas vezes liguei para o número anotado num pequeno pedaço
de papel, o papel em que também havia um poema seu. Era sempre a mesma voz de
homem a atender:
— Galeteria Wilson — ele dizia —, não, amigo, não tem nenhuma Sandra
por aqui.
Procurei-a nas redes sociais, nos sites de namoro e de sexo virtual, conferi
fotos dos lançamentos e dos eventos literários. Milhares foram as ocasiões em que digitei
o seu nome no Google. Não a encontrei em canto algum.
Havia um prédio de três andares do outro lado. Era velho, tinha a pintura
gasta, uma escadaria de cimento com dois degraus corroídos e um letreiro em que faltava
o H de hotel e o R de realeza. Recendia decadência e abandono.
Saltou do carro, pegou a mochila e atravessou a rua. Seria apenas por uma
noite. Na manhã seguinte, no mais tardar no início da tarde, já teria encontrado Sandy e
iria para o seu apartamento.
Virou-se e viu esse sujeito baixo, com a cabeça muito grande, parado ao
lado do balcão. Não usava qualquer tipo de uniforme, apenas chinelos, bermuda e uma
camisa do Flamengo.
— Certo.
— Não sei se chego a ser um hóspede fixo. Fico só por essa noite. A minha
namorada mora aqui perto, na Atlântica, e amanhã vou para o seu apartamento.
— Não precisa.
— Agora, tenho que ir. Daqui a pouco o movimento começa e não posso
ficar muito tempo longe da recepção. Meu nome é Sóstenes. Se precisar de alguma coisa,
estou lá embaixo.
— Tudo bem.
CAPÍTULO 2
O sol iluminou a mesa e as duas cadeiras de plástico, alcançou a cama e,
em seguida, pousou pacientemente sobre o seu rosto. Michel se espreguiçou e foi até a
janela. Era uma segunda-feira, passavam das sete e meia da manhã, e as calçadas
estavam abarrotadas, centenas de carros e de ônibus amontoando-se sobre o asfalto
como se fizessem parte de uma procissão. Foi até o banheiro, encontrou o chuveiro ainda
aberto e se atirou embaixo da água fria. Minutos depois, desceu até o saguão. Não havia
qualquer sinal de Sóstenes, mas a porta estava entreaberta. Caminhou até uma padaria
que ficava na esquina, sentou-se no balcão e pediu um croissant de peru defumado e uma
tigela de açaí. Sentia qualquer coisa diferente, uma espécie de eletricidade a exalar do
corpo. No caixa, ao agradecer pelo troco, imitou o sotaque carioca, e como a mulher
sequer o olhou, ele ficou a calcular que poderia fazer aquilo sempre que desejasse.
Eram seis e meia da tarde e ele havia percorrido toda a praia, de uma
extremidade à outra, quando afinal parou e se sentou num monte perto do Forte de
Copacabana. Estava cansado, faminto e deprimido. Com a ponta do dedo, desenhou um
coração na areia e, dentro dele, escreveu: Sandra D’Angelo & Michel Rodrigues. Parecia
pouco, então completou: “Nada nos separará”. Não demorou muito, a espuma de uma
onda veio e o desmanchou.
CAPÍTULO 3
E, então, dez dias se passaram. Nada havia mudado, a não ser a sua
carência, que crescera como um solitário cacto ao luar. Dez dias de intermináveis
caminhadas, de vigílias na praia e nas praças, de pombos que cagavam na cabeça dos
velhos jogando dominó e de gritos dos vendedores de biscoito Globo que marcavam a
areia com os seus longos passos de tamanduá. Dias de correrias e desilusões. Quantas
não foram as vezes em que disparou, enlouquecido, ao encontro de uma loira, na
esperança de que a sua angústia chegaria ao fim? Quantas mulheres seguiu por duas ou
três quadras para, ao se encontrar a dez passos, sentir as pernas bambearem por conta
da decepção?
Em uma daquelas manhãs, antes de dar início às buscas por Sandy, Michel
foi até o orelhão que ficava em frente à padaria e ligou para a sua mãe. Contou dos atores
e das atrizes que tinha visto pelas ruas de Copacabana, dos passeios que fez ao Pão de
Açúcar, à Vista Chinesa e ao Cristo Redentor, da alegria que sentia e de como Sandy o
tratava bem. Uma mulher de verdade, que a todo instante lhe pedia que ficasse alguns
dias mais. E a mãe, do outro lado do mundo, cheia de ternura e compaixão, achou-o
corajoso e acreditou em cada palavra que ele falou.
— Gosto de andar.
— Michel Rodrigues.
— Que grande coincidência! O meu avô também se chamava Michel. Ele foi
um conde. Tem uma cidade lá na França em que uma rua leva o nome dele. Quer beber
uma cerveja?
— Agora?
— Já ouvi falar.
— Pretende voltar?
— Claro.
Buade levou a cerveja até a boca e deu um grande gole. Alguns fios de seus
cabelos escapavam do rabo de cavalo e, contra a luz do sol que varava a janela, se
assemelhavam a folhas de trigo vermelhas.
— Ah, é?
— Sandra D’Angelo.
O gringo se levantou e foi até o seu armário. Voltou com uma pequena
caixa de metal, que abriu sobre a mesa. Estava cheia de papéis para enrolar cigarros,
caixas de fósforos e uma quantidade razoável do que parecia ser maconha prensada. Ele
tirou um pedaço daquilo, catou as sementes, jogou sobre um papel, enrolou e acendeu.
Suas bochechas encheram-se de fumaça, ele a engoliu e, segundos depois, a soltou, densa
como o nevoeiro dos filmes de terror.
Fazia bastante tempo que Michel não fumava maconha. Na verdade, havia
experimentado duas vezes e em nenhuma delas sentiu qualquer efeito, a não ser uma
fome descomunal. Agora, estava ali, com aquele charuto enorme na mão. Puxou, segurou
a fumaça por alguns segundos e em seguida a soltou, quase do mesmo jeito que Buade
tinha feito. Como se dançasse, a fumaça se espalhou pelo quarto e aos poucos foi
desaparecendo à sua frente. Os olhos lacrimejaram, mas nada mais. Talvez acontecesse
como nas vezes anteriores. Ele ficaria apenas distraído e esfomeado. A padaria da
esquina, com as suas tortas e bombas de chocolate, o esperava, e ele permaneceria uma
boa meia hora debruçado sobre aquele balcão. Enquanto sorria e pensava nisso,
inesperadamente a sua garganta ficou seca, coçou e ele então começou a tossir. Uma
tosse forte, uma sequência após a outra, ataques cada vez mais brutais. Em segundos, seu
corpo inteiro passou a arder como se estivesse em uma fogueira, a respiração ensaiando
escapar. Ficou de pé, mas não adiantou: outra crise veio e lhe pegou, ainda mais intensa,
fazendo-o se curvar e voltar a se sentar. O peito chiava e doía, um barulho estranho, de
ralo a escoar. Sem controle algum sobre si, pensou que talvez morresse ali, na companhia
de um francês que nunca vira antes, a espalhar perdigotos ininterruptamente sobre o
chão. Ninguém nunca ia saber.
Michel agora olhava para o quarto, para as telas na parede e para as que
estavam no chão, a foto da Riviera e as gambiarras de pinturas, sem talento algum. Ao
redor delas, um monte de roupa suja espalhada, garrafas de cervejas pelo chão. Na porta
do banheiro, uma teia de aranha fazia as vezes de cortina. Tirando a foto da Riviera, nada
fazia crer que aquele era o quarto de alguém cujo avô fora um nobre francês.
— Já?
O corredor parecia mais largo que o habitual, mas Michel alcançou a porta
do seu quarto e chegou até a cama. O colchão gemeu e gritou quando se deitou. Nunca
havia conhecido um francês, mas agora estava no Rio de Janeiro, de tantas aventuras e
possibilidades, e nada mais poderia surpreendê-lo. Tudo era plausível e, por isso mesmo,
possível. Pensava nisso, quando o velho colchão embolorado sobre a cama, o colchão de
molas em que estava deitado, começou a girar. E Michel, feito um náufrago boiando no
meio do oceano, apenas fechou os olhos e se deixou levar.
CAPÍTULO 4
Sobre as pedras portuguesas do calçadão, centenas de casais passeavam
de mãos dadas e faziam juras de amor eterno. Casais circulavam pelos corredores dos
shoppings e dos supermercados, namorando as vitrines, sentando-se em estreitas mesas
nos cafés, a se olhar. Casais sorriam nas capas das revistas, nos cartazes dos filmes, nos
bancos de praça e nas sorveterias. Casais dormiam sobre papelões, junto com seus
cachorros, debaixo das marquises dos bancos e das joalherias. Jovens e velhos, pobres e
ricos, casais de todo jeito, por todo lugar.
Naquela noite, as ruas pareciam ainda mais cheias e as janelas dos prédios
gritavam por conta de tanta história para contar. Michel se encontrava a dois quarteirões
do hotel, quando se deparou com uma pequena livraria onde acontecia um sarau.
Parados na porta, um monte de barbudos bebendo cerveja, garotas com piercings, saias
de renda e blusas de crochê. Sandy tinha lhe falado dos saraus, do quanto gostava de ir e
das mentes sensíveis e avançadas que costumava encontrar, e ele pensou que ela talvez
estivesse por ali.
Era escuro e apertado ali dentro, com estantes cheias de livros espalhadas
por todos os cantos. Havia um pequeno tablado no centro e um balcão onde
despachavam a cerveja. O cheiro de cigarro indiano se misturava ao de fritura. Ele
procurou Sandy por mais de meia hora, até que comprou uma cerveja e se encostou em
uma parede.
— Dedico este poema ao meu ex-namorado — uma garota ruiva disse, com
um microfone na mão, sobre o tablado. — Ele foi fazer intercâmbio no Canadá há dois
anos... Gui, eu ainda penso muito em você!
Então começou. Sua voz era alta, mas a dicção ruim, e talvez por isso
Michel não tenha compreendido bem o que o poema dizia. Podia ser sobre a dor de viver
só ou do vazio que ela sentia por ter sido deixada para trás ou mesmo sobre a esperança
de que um dia o ex-namorado retornasse e a amasse outra vez. De qualquer maneira, não
parecia ser um poema muito bom, ao menos não tão bom quanto os de Sandy. Quando a
garota acabou, porém, um monte de gente bateu palmas, soltou gritos e assobiou.
— Chateau de Robienoux?
— Isso.
— Acha que não vou pagar? — Michel se virou para o garçom. — Acha que
não tenho dinheiro?
O vinho chegou. Seco, mas ele bebeu uma taça após a outra e rapidamente
passou da metade da garrafa. Ela sorria de alguma outra coisa, quando o garçom
retornou e pôs o Medallion sobre a sua mesa. Era um belo retângulo de carne com um
caldo por cima e um arroz empapado ao redor. Michel cortou um pedaço, passou no
molho e levou-o à boca. O sabor era sensacional. A maciez e a suculência da carne eram
algo que nunca experimentara. Cortou outro pedaço, juntou a um pouco de arroz e
levantou a vista. O grandalhão estava curvado sobre Sandy, segurando em sua nuca. Os
dois se beijavam. O garfo despencou sobre o prato, rodopiou e foi parar no chão. E todo o
universo parou nos longos segundos em que durou aquele beijo. Embora ninguém
percebesse, sentado naquela mesa, completamente indefeso, um homem estrebuchava,
prestes a morrer — logo ele, Michel Rodrigues, que acreditara tanto no amor. Pensou em
se levantar e ir imediatamente até eles, depois calculou que o melhor seria sair correndo
em disparada, sem pagar a conta, sem olhar para trás. Por fim, ficou de pé e caminhou
até o balcão. Era uma caminhada longa sobre o piso de cerâmica que imitava as pedras do
calçadão, uma reta que parecia não ter fim. Na metade do caminho, mudou de direção.
— Que beleza, hein, Sandra! — berrou, a três metros da mesa em que eles
estavam, alto o bastante para que todos no restaurante pudessem escutar. — Sabia que
acabei de declamar aquele seu poema num sarau? Aquele que escreveu num papel junto
com um número de telefone falso! Uma baboseira que fala sobre ser claro como a água,
que o importante na vida é ser verdadeiro. Mas você não está nem aí para essa porcaria,
não é mesmo?! Você só quer um babaca para levar para a cama e dar a xoxota para ele a
noite inteira, e quando ele estiver completamente enfeitiçado, você vai arranjar outro,
depois mais outro e assim por diante! — pegou o dinheiro que tinha nos bolsos, três ou
quatro notas grandes, além de alguns trocados, e jogou sobre a mesa, entre os dois. —
Fique com isso. Faço questão de pagar o seu jantar. É a última coisa que vai ter de mim!
— Encarou-a com toda a raiva e desprezo que conseguiu reunir.
— Sim.
Uma mulher surgiu, caminhando pela rua. Era morena, os cabelos negros
como os de uma índia escorrendo até os ombros. Tinha um cigarro entre os dedos e
Michel repentinamente sentiu vontade de fumar.
Ela abriu a bolsa que trazia a tiracolo e tirou uma carteira de cigarros.
Acendeu um para ele. Tinha manchas nos braços e nas pernas e o seu olhar era triste.
— Pra quê?
Michel esticou o braço e deu a mão para a mulher, que a apertou contra o
peito. Ela fechou os olhos e começou a murmurar algo, como se fizesse uma prece.
— Interessante... — disse.
— O quê?
— Já que consegue ver tanta coisa, me diga logo aonde é que essa estrada
vai dar.
— Jesus?
— É.
— Acho que agora entendi. Encontrando Jesus, a minha mulher vai deixar
de jogar coisas em mim e eu não vou precisar mais ficar aqui sentado nesse passeio. Deve
ser isso.
— Quanto te devo?
Ela sorriu e tocou em seu rosto, passando os dedos sobre a testa, onde
começara a doer.
CAPÍTULO 5
Um raio poderia ter caído ao seu lado e Michel não notaria, uma vez que
estava preso a profundos e grandiosos pensamentos. Neles, era um bem-sucedido
corretor de imóveis, usava roupas caras, tinha os cabelos bem cortados e penteados para
trás e era amigo de empresários, de artistas e de jogadores de futebol. Ao seu lado, a
sempre fiel e sorridente Sandy, que o amava ainda mais. E, como era um homem de
coração justo e caridoso, toda vez que fechava um negócio, enviava um dinheiro para os
pais, que sentiam um orgulho danado de seu filho e contavam para todos sobre o que ele
se transformara: um admirável homem de negócios, parceiro de Aldo Lomma, outro
vencedor.
Correu até uma banca de revistas, comprou um cartão telefônico e foi até
o primeiro orelhão que encontrou. Uma mulher atendeu.
— Anúncio?
De volta ao quarto, pôs sobre a cama as duas calças que tinha. Estavam
terríveis, surradas e sujas. Encontrou uma camisa polo amarela, mas ela também perdera
a cor devido aos dias de caminhadas e tinha, na altura do coração, uma pequena mancha
de ketchup. Vestiu-a mesmo assim, já que as outras estavam ainda piores. Foi até o
banheiro, molhou os cabelos, penteou-os e deu um passo para trás, olhando para o
espelho. Não se parecia em nada com um corretor. Talvez se assemelhasse a um taxista
de rodoviária, alguém que não se importava muito com a própria imagem. Sentou-se em
uma das cadeiras e arqueou os braços pesadamente sobre a mesa, desanimado. Era
muito possível que a entrevista fosse um fiasco. Não era daquele tipo de gente que Aldo
Lomma precisava. Passaria por um enorme constrangimento. Pensou nas piadas, nos
olhares de reprovação. Por fim, lembrou de Buade. Levantou-se, cruzou o corredor e
bateu na porta do quarto 301. Ninguém respondeu, de maneira que ele bateu
novamente, agora mais forte, e a porta se abriu. O quarto estava vazio. Um baseado
queimado até a metade descansava sobre o cinzeiro. Michel abriu o guarda-roupa.
Dependuradas nos cabides, dez ou doze camisas. Nenhuma lhe serviria. Ou eram
estampadas demais ou estavam sujas ou tinham furos. Ao remexer em uma das gavetas,
encontrou, como que escondida lá no fundo, uma velha foto. Era Buade, trinta anos mais
novo, deitado sobre a areia de uma praia. Não havia nada escrito no verso. Na mesma
gaveta, preso por uma borracha, um maço grosso com notas de Euro. Michel colocou o
maço e a foto no lugar em que estavam, fechou a gaveta e voltou para o seu quarto.
— Pois não?
Era a mulher do telefone. Não se parecia em nada com o que Michel havia
imaginado. Era muito magra, com os cabelos da cor de café ralo cortados num estilo
chanel e tinha o rosto excessivamente maquiado.
— Ah, sim. O Doutor Aldo ainda não chegou, está resolvendo umas coisas.
Como se chama mesmo?
— Michel Rodrigues.
— Isso, Rodrigues.... Sabia que era alguma coisa desse tipo. O meu é Ana
Clara. Se quiser, pode dar uma volta ou esperar aí no sofá. Ele não deve demorar.
Ana Clara tinha uma porção de classificados sobre a sua mesa: fazia círculos
sobre alguns anúncios, página por página, então os recortava, colocava dentro de uma
pasta e partia para o próximo jornal. De dez em dez minutos, o telefone tocava e ela
atendia, a perguntar se a pessoa buscava casa ou apartamento, em seguida passava a
ligação para o velho, para a mulher ou para um dos outros corretores que haviam
chegado. E então um frenesi acontecia na outra sala — todo aquele pessoal se curvando
ainda mais sobre os computadores, andando de um lado para o outro, fazendo ligações e
anotações. Um deles, o velho careca, uma hora subitamente pegou a sua pasta e saiu,
afoito como se fosse morrer, e, ao passar por Michel, seus olhos pareciam uma
constelação.
— Isso.
— Sou Aldo Lomma, o gerente proprietário da Lomma Imobiliária, onde se
faz a melhor corretagem do Rio de Janeiro! Venha até a minha mesa. Preciso saber se tem
as ferramentas certas para fazer parte da equipe.
Nenhum dos corretores respondeu ao bom dia que Aldo Lomma deu
quando entraram na outra sala. Dois ou três levantaram a vista, e nada mais. Ele então
falou outra vez, mais alto, e a coisa continuou do mesmo jeito, sem ninguém responder.
Michel presumiu que aquilo não tinha nada a ver com desdém. Era, provavelmente, foco,
comprometimento, uma inviolável vontade de vencer. Concentração, aquele pessoal
devia saber, é a mola mestra para se chegar a qualquer lugar.
— Não sei, ainda não deu para descobrir. Às vezes demora um pouco mais.
Mas a sua cara é boa. E esse sotaque?
— Nasci para isso — respondeu. — Sou bom com as pessoas, elas confiam
em mim. Além de tudo, há um ditado que diz que as estrelas, no fundo, são sonhos que
se realizam. E, sinceramente, Doutor Aldo, eu quero encher de estrelas esse céu do Rio de
Janeiro.
Michel saiu do prédio e caminhou até o ponto. Poderia pular e gritar, mas
apenas se sentou e esperou pelo ônibus que o levou até o Saara, não no norte da África,
mas no Centro da cidade — um shopping popular a céu aberto onde, naquela mesma
tarde, investiu uma parte do dinheiro que restava em sua carreira como corretor.
Comprou uma calça preta de brim, um sapato que imitava o couro de um jacaré e
algumas camisas sociais, que não pareciam de grande qualidade, mas que serviriam até
que pudesse ir a estabelecimentos mais conceituados, as grandes lojas em que as
atendentes esnobes o analisavam dos pés à cabeça tão logo parava para olhar as vitrines.
Seu gasto total chegou a oitenta e seis reais. Um grande valor, que seria transformado em
muito mais.
CAPÍTULO 6
— É? — o velho o encarou.
— Hoje mesmo. Só estou esperando o Doutor Aldo chegar. Acho que ele
gostou de mim, disse que tenho cara de corretor.
— Então levanta essa bunda daí, que vou te ensinar a fazer dinheiro!
E foi ali, com suas camisas e calças sociais, com seus sapatos de bicos
pontudos, que caminharam juntos Michel Rodrigues e Aldo Lomma, duas raposas a
esquadrinhar as janelas dos apartamentos da Zona Sul. Seus passos eram firmes, suas
posturas, eretas, e quem os olhasse saberia que estava diante de dois caçadores.
Avançaram por todo o quarteirão, atravessaram a Nossa Senhora de
Copacabana e alcançaram a quadra da praia. Não muito rápido, pois Aldo era manco e
não podiam deixar nada passar. Quase meia hora depois, quando pararam na esquina
com a Atlântica, só haviam encontrado três anúncios e todos eram de imobiliárias. Michel
ficou olhando para o Calçadão. Sempre havia gente por ali.
— Você está sem sorte, Rodrigues — Aldo falou. — Tomara que não seja
sempre assim.
— Viu que filho da puta? — disse, virando-se para Michel. — Posso vender
esse apartamento num piscar de olhos, mas ele nem quis me escutar!
— Doutor Aldo — Michel falou —, eu tive uma ideia: e se, antes de
qualquer coisa, a gente logo disser que é corretor? Talvez essas pessoas sintam que
estamos jogando limpo, que a Lomma Imobiliária não tem nada a esconder.
Aldo o encarou. Seu rosto havia mudado, estava ainda pior. Era agora uma
máscara assustadora, disforme, a encarar Michel.
— Ah, o Rodrigues aqui quer dar uma de pica grossa! — Aldo falou alto, em
meio às pessoas na calçada. — Ele quer mostrar como é que se faz! Já vendeu quantos
apartamentos, Rodrigues?! Dez, vinte?! Pelo tom da sua voz, devem ter sido quinhentos!
— Eu tenho certeza! Olha só, tudo o que pensar, qualquer ideia que tiver,
eu já tive antes. Estou no ramo há mais de uma década, não sou nenhum amador. Se
quiser ficar cantando de galo, dando liçãozinha de moral, vou logo avisando, não vai durar
uma semana lá na empresa.
CAPÍTULO 7
Michel recebeu um cartão de transporte, que poderia ser usado para se
locomover de ônibus ou de metrô, e um celular. Caso precisasse fazer um laudo, como
chamavam as análises e as descrições dos imóveis, pegaria uma trena e uma máquina
fotográfica com Ana Clara.
Numa daquelas tardes, ele andava pela Ayres Saldanha, uma rua não muito
lembrada, mas com ótima reputação. Excelentes famílias moravam ali. Nada de cortiços,
conjugados, putas ou travestis. Uma rua para se criar filhos, para bater no peito e gritar
que triunfou. A placa estava colada em uma janela do segundo andar, com um número e
um nome, Lúcia. Michel ligou e ela o mandou subir. Metida em um roupão de banho,
aguardava-o na porta: uma mulher na faixa dos cinquenta e poucos anos, falsa magra,
com os olhos azuis desbotados e sardas por todo o ombro e rosto. Seu sorriso era sem
graça, quase forçado. Mostrou-lhe a sala de estar em formato de cachimbo, uma sala
bem grande, medindo uns trinta metros, com espaço para uma mesa de jantar, dois
conjuntos de sofás, uma mesinha de centro e uma velha tevê. Lúcia falou do conhecido
ator que morava na cobertura, ele que era o atual síndico, um sujeito
surpreendentemente sério que em breve voltaria a fazer do prédio o melhor do
quarteirão. Havia um toque de melindre em sua voz, como se aquilo a emocionasse ou
duvidasse do que dizia. Michel tirou fotos da cozinha, da copa, da área de serviço, depois
passaram pela biblioteca, pelos quartos e, por fim, chegaram à suíte dos pais, cheia de
fotos da família. Lúcia então começou a se abrir. O velho fora almirante da Marinha, um
grande homem, um grande pai, amigo das pessoas e dos bichos, mas morrera há um ano,
vítima de um câncer, e a mãe, por conta da saudade, o acompanhou alguns meses depois.
Agora, ela enfim descobria como era enorme aquele apartamento, como ventava forte à
noite e como os pombos cagavam nas janelas todas as manhãs, quando ela acordava e via
as contas acumuladas debaixo da porta da sala. Era difícil pagá-las. Dividia a
aposentadoria do pai com dois irmãos e eles a convenceram de que era preciso vender o
imóvel.
— Vou para o Méier — ela falou. — Uma amiga mora na Dias da Cruz. Disse
que nem vou sentir falta daqui.
— É, falam. E nem é tão longe. Acho que se o apartamento for num andar
alto, talvez eu ainda consiga ver o mar...
Lúcia se calou e, por alguns segundos, era como se esperasse por qualquer
comentário de Michel. Então colocou as mãos sobre o rosto e começou a chorar. Seus
ombros sacolejavam, seu corpo inteiro vibrava em um soluço só. Ao redor, pregadas nas
paredes, as molduras da família: sobre um cais, o almirante, com o seu vasto bigode
branco, fazia continência, vestido com o uniforme da Marinha; em outra, uma senhora
com os cabelos grisalhos curtos sorria ao abraçar o almirante. Num porta-retratos sobre o
criado mudo, os dois, bem mais jovens, acompanhados de três crianças — dois moleques
loiros e sorridentes e, no meio, Lúcia, com onze ou doze anos, um tanto emburrada.
Ela se virou e o olhou. Uma lágrima grossa escorria pela maçã do seu rosto
até o queixo e caía sobre o roupão semiaberto. Entendo o que sente, Lúcia, sei bem o que
é estar só. Apenas feche os olhos e deixe tudo seguir o seu curso. Quem sabe exista uma
recompensa por ser assim, Michel pensou.
— Por que falou aquilo? — ela perguntou, ficando de pé. — Você tem
razão. Parece que tudo foi mesmo um preparativo.
— Sim.
— Posso te abraçar?
— Pode.
Michel ficou parado, com a braguilha aberta e o pau para fora da calça,
sem saber o que fazer.
— Sim, eu já vou.
— Não?
CAPÍTULO 8
Nas duas primeiras semanas, Michel conseguiu captar oito imóveis, a maior
parte conjugados ou quitinetes. Nada tinha sido vendido, mas era só uma questão de
tempo. Mais dia, menos dia, algum dos corretores/vendedores mostraria uma das suas
opções para algum cliente e ele receberia a sua primeira comissão.
Entretanto, outras duas semanas se passaram, dois conjugados foram
negociados e nenhum deles fora captado por Michel. Pensou em se aconselhar com Aldo,
perguntar-lhe qual a saída daquele limbo, mas foi justamente por essa época que o líder
da Lomma Imobiliária começou a passar por grandes e inesperadas mudanças. O homem
que agora entrava pela porta e que nem sempre dava bom dia para os seus subordinados
era um homem aflito, em guerra com o mundo, de constante mau humor. Aparecia só
após as três da tarde. Ia até o banheiro e, minutos depois, quando saía de lá, começava a
falar alto, quase a berrar, cobrando resultados e perguntando o porquê de as negociações
não acontecerem com a frequência que deveriam. Tudo isso de uma forma por demais
estridente. Um dramalhão cheio de baixarias e chantagens emocionais.
— Rodrigues — gritou certa vez, tão logo entrava na sala —, o que você
tem feito pela Lomma Imobiliária nesses últimos dias?
— Ué, não disse que sabia de tudo, que ia fazer isso e aquilo? Quero ver
resultados. Abre o olho, malandro, do contrário vai dançar!
Era triste, mas era a verdade: Aldo Lomma estava em crise. Almejava o
topo, mas só alcançara o nono andar. A cada reunião, o seu olho girava mais e mais, e as
idas aos banheiros passaram a ser de vinte em vinte minutos.
CAPÍTULO 9
— O nome dele é Otavio Quispe — Ana Clara lhe disse. — Quer ver a
cobertura da Lagoa. Tentei falar com o Aldo, mas ele não atendeu. Como não tem mais
ninguém disponível, é você quem vai mostrar. Vou te passar o endereço e algumas
informações.
— Quispe?
— É. Você só tem que abrir a porta e deixar ele olhar o apartamento. Não
precisa ficar falando nada. Quanto menos falar, melhor.
Michel saltou do ônibus na Rua Fonte da Saudade, entre o Humaitá e a
Lagoa Rodrigo de Freitas, e rapidamente encontrou o prédio. Era alto e branco, muito
mais branco que os demais. Havia um chafariz na entrada, uma vênus a cuspir um arco de
água sobre uma pequena bacia. Ele pegou a chave com o porteiro, que parecia odiar
corretores, e se sentou no sofá do hall de entrada. Cinquenta minutos depois, Otavio
Quispe saltou de um Chrysler branco. Era um homem baixo, de tez morena, com os
cabelos muito negros penteados de lado.
Ali estava alguém que parecia ter classe. Os gestos de Otavio Quispe eram
delicados, ao mesmo tempo em que os seus olhos, espremidos e atentos, lhe atribuíam
certa presença. Dava para sentir que ele estava ali, sobretudo pelo perfume adocicado
que dominou todo o elevador. Saltaram no décimo e último andar e caminharam rumo a
uma colossal porta de madeira. Michel tentou imaginar o que Aldo ou Seu Maciel diriam
naquele instante, mas nada lhe veio e ele apenas enfiou a chave e a porta se abriu.
Apertaram as mãos, Otavio Quispe saiu do prédio e foi embora com o seu
Chrysler branco. E Michel ficou a calcular quanto ganharia de comissão, enquanto
caminhava até o ponto de ônibus. Puxou o celular do bolso e ligou para a imobiliária.
— Ele está aqui. Já sabe que você foi mostrar a cobertura. Não gostou
nada.
— Diga que o cliente quer fechar negócio, hoje mesmo! Em uma hora vai
aparecer na empresa com o advogado. Em vinte minutos também estarei aí.
— Tem certeza?
— Vou falar com ele. Mas, se ninguém aparecer, você vai ter um
problemão. O Doutor Aldo já tem muita coisa pra se preocupar.
Sentado onde estava, Michel ficou a olhar para o asfalto à sua frente.
Tentava descobrir se com as outras pessoas acontecia o mesmo. A vitória por um fio, a
felicidade escapando feito a água da chuva quando escorre rumo ao bueiro. O ônibus
para o Aterro do Flamengo passou e ele não fez sinal. Logo depois, veio o 415, direto para
Copacabana, e ele entrou. É difícil sonhar quando nada se torna real. Quando uma nuvem
negra cisma em lhe seguir. Talvez lhe faltasse sorte. Todo mundo tinha que ter um pouco
de sorte consigo, do contrário passaria a vida naquele quase conseguir. Sorte ou um
destino bom, ele não sabia dizer. Talvez fossem a mesma coisa.
CAPÍTULO 10
A sua carreira como corretor de imóveis na Zona Sul carioca. Não tão
próspera e duradoura quanto nas fantasias que havia alimentado, pois chegou ao fim
naquele domingo, o triste domingo em que, em alguns poucos minutos, foi do céu ao
purgatório, o domingo em que, planando por entre as nuvens, Michel repentinamente
despencou. Descobriu toda a perfídia na terça-feira pela manhã, ao saltar do ônibus em
frente ao Flamengo Beach Power, quando Seu Maciel, emergindo das sombras da
padaria, o chamou para conversar. O negócio da cobertura da Lagoa fora fechado, com a
presença do doutor Quispe e de seu advogado. Aldo embolsou toda a comissão, cerca de
dezoito mil reais. O velho acompanhou o ardil, enquanto fazia uma pesquisa no
computador.
— Sei lá, pouco me importa. O que sei é que o Aldo está desesperado.
Deve um dinheiro grande para um traficante.
— Verdade?
— O que vai fazer? — o velho perguntou. — Vai permitir que fiquem com a
sua comissão?
— O Doutor Aldo não vem hoje. Nem hoje, nem nos próximos dias.
— Estou por dentro de tudo, Ana Clara — Michel disse, olhando bem no
fundo dos olhos daquela mulher. — Sei que o negócio foi fechado e que a empresa está
com a minha comissão. Dezoito mil reais. Quero esse dinheiro.
— Não? O que então o doutor Quispe veio fazer aqui no domingo com o
seu advogado? Eu estava lá embaixo, vi quando entraram no prédio. Até pensei em subir,
mas imaginei que poderia confiar em vocês.
— Amanhã, Ana Clara. Venho depois do almoço, para que tenham tempo
de contar toda a minha parte.
— Do contrário vai fazer uma macumba?!
Michel ficou de pé, deu as costas para Ana Clara, caminhou até a porta e
saiu.
— Vocês não sabem o que estão fazendo! — gritou, ao ser empurrado para
a calçada.
Em que terrível e sórdido jogo ele fora se meter! O jogo de Aldo Lomma,
tenham cuidado com ele, é um cafajeste que anda mancando e piscando um olho por aí.
Michel são sabia jogá-lo. Não tinha jeito, não tinha forças. Talvez também não tivesse
tempo.
Foi até a padaria, mas não encontrou o velho Maciel ou qualquer outro
corretor. Tomou um café, debruçado sobre o balcão, fazendo hora até que alguém
aparecesse, só que ninguém apareceu e ele então voltou para o seu quarto no Hotel
Realeza. Pegou o celular que ainda estava em suas mãos e ligou para a Lomma
Imobiliária. Tocou inúmeras vezes, mas nada de atenderem. Na certa, tinham um
identificador de chamadas. Praguejou e xingou, não apenas Ana Clara e Aldo, mas
também Otávio Quispe, que decerto sabia da tramoia e não se opusera a ela. Dezoito mil
reais, tudo transformado em uma montanha de pó. Concluiu, sem demora, que tudo
estava perdido - não apenas a comissão, mas a sua própria existência. Eram esses os seus
pensamentos, quando escutou a voz de Ana Clara do outro lado do telefone.
E Michel, que tanto precisava daquele dinheiro, que o merecia mais do que
qualquer um, apenas ficou em silêncio, escutando a respiração da usurpadora até ela
desligar.
CAPÍTULO 11
Não sabia por quanto tempo mais conseguiria permanecer na cidade. Devia
uma semana ao hotel e passava a maior parte do tempo nas ruas, fugindo de Sóstenes e
procurando por Sandy, enquanto tentava descobrir em uma saída para a sua situação.
Era um lugar escuro, com uma porção de mesas espalhadas, mas naquele
momento só duas estavam ocupadas. Na primeira, quatro ou cinco turistas japoneses e,
na segunda, um sujeito com o paletó amassado curvado sobre uma garrafa de uísque. À
frente das mesas, um palco com um poste de pole dance. Tinham duas garotas sentadas
no balcão conversando com o barman, uma delas acenou para Buade.
Mas eis que, afinal, movida pela pressão dos empurrões, a porta cedeu e
toda aquela gente saiu em disparada, jogando-se sobre a calçada. Alguns vomitavam,
outros tentavam puxar um pouco de ar fresco para dentro dos pulmões. Do prédio em
frente, uma multidão acompanhava a tudo. Na Prado Júnior, os carros desaceleravam sua
marcha para acompanhar aquele triste carnaval.
Entraram em uma viatura e seguiram até a 12ª DP, que ficava na Hilário
Gouveia. O delegado de plantão os interrogou por cerca de uma hora. Por algum motivo,
achava estranho que um baiano e um francês estivessem juntos. Logo eles, que não
arredaram o pé, enquanto todos os outros frequentadores da boate já tinham ido
embora. Qual a justificativa para aquela estranha fixação? Perguntou de onde se
conheciam, o que faziam, se tinham alguma ligação com o turismo sexual ou com o
tráfico internacional de entorpecentes. Parecia mais preocupado em descobrir qualquer
tipo de crime em que poderiam estar envolvidos do que em ir atrás do homem que
originara toda a tragédia. Depois que o interrogatório acabou, os dois foram colocados
em uma cela e, sem qualquer explicação, os deixaram lá, juntos com um travesti e um
sujeito com cara de perturbado. Era um homem com a cabeça raspada, sem camisa, de
olhar frio e esquisito. Ele ficou um bom tempo encarando Michel e Buade, sempre
sorrindo, acocorado no chão. Então se levantou, tirou o pau para fora da bermuda e
mandou o travesti chupar. Por dez minutos, ficou a se balançar para frente e para trás,
sorrindo e olhando para os dois, que não o encaravam, até que soltou um urro grotesco e
se tremeu da cabeça aos pés. Balançou o pau, respingando um tanto de porra na cara do
travesti, fechou o zíper e voltou a se acocorar. Pouco antes de amanhecer, um policial
apareceu e disse que os dois podiam ir embora.
— Em Evelyn e em Sandra.
— Nós só somos o que somos por causa delas, meu amigo. Se elas não
existissem, hoje eu estaria na França e seria como o meu pai, um homem que só faz
juntar dinheiro. E você nunca teria vindo pra cá.
O rosto comprido de Buade parecia cansado, mas ele sorria. Suas roupas
estavam cobertas por uma fina e negra poeira. A alvorada trazia o barulho da cidade, que
despertava, e revelava neles as marcas da noite anterior. Cruzaram a esquina da Prado
Júnior com a Nossa Senhora de Copacabana e seguiram até uma padaria. Sentaram-se no
balcão e pediram pão na chapa e café.
CAPÍTULO 12
Michel se sentou em uma das cadeiras e ficou olhando para a letra da mãe.
Ela o amava. Fazia preces, pedindo que os santos o protegessem, e eles o tinham
protegido. Agora, nada mais de tristezas ou apertos, nada mais de preocupações com
comida ou com diárias de hotel. Seguiria para Maria da Graça, na Zona Norte, para a casa
de sua Tia Adélia, uma pessoa de muita coragem que, décadas antes, também
abandonara a tudo por conta de um amor. Em verdade, não sabia muito a respeito dela,
mas não tinha importância. E em pensar que estava prestes a desistir.
— Quem é?
— Lamento, mas não vai dar. A casa é pequena e está uma bagunça — a
voz da tia era grave, com um forte sotaque carioca. — Além do mais, você não ia gostar
daqui.
— Não tenho luxos, tia. Acho que seria uma ótima oportunidade para a
gente se conhecer melhor.
— Não quero que me conheçam melhor. Prefiro que fique por aí mesmo,
com a sua namorada.
— Estou sem dinheiro. Emprestei para Sandy. Ela vai me pagar quando
voltar.
— Sandy?
— ...
— Tia?
— ...
A tia desligou.
Colocou a mochila nas costas e foi até o quarto de Buade para se despedir,
mas não o encontrou. Talvez tivesse saído para comprar cerveja. Resolveu escrever um
bilhete.
“Buade, rapaz, você não vai acreditar. Hoje eu estava na Pompeu de Toledo
e de repente alguém veio por trás e colocou as mãos nos meus olhos. Era Sandy! Estou
indo para o apartamento dela neste exato momento e vim aqui me despedir, mas você
não estava. Apareço depois, já que vou ficar a apenas algumas quadras daqui.
Quando puder, fale pra Evelyn que em breve vamos vai fazer uma farra
juntos. E que ela e Sandy vão se dar muito bem.
Um abraço do seu amigo,
Michel“
CAPÍTULO 13
Procurou a Rua Honório por mais de uma hora. Era uma longa reta que
acabava em uma ladeira em que casas com a pintura gasta e cacos de vidro sobre os
muros jaziam enfileiradas. Dentre todas, a com pior aparência era a de número 420, a
casa de sua tia. Havia mais reboco do que pintura, rachaduras na estrutura, um jardim
com roseiras murchas e algumas telhas quebradas onde descansavam, feito duas
gárgulas, dois robustos pombos, um preto e um cinzento. A aparência era a de um lugar
prestes a ser demolido. Um muro baixo com um arame enferrujado a cercava, e havia
dois portões, um grande, que devia levar à garagem, e outro, que dava para a entrada da
casa. Michel tocou a campainha e aguardou por alguns minutos, mas ninguém apareceu.
Tocou novamente, depois mais uma vez e ainda outra. Por fim, imaginou que não havia
ninguém em casa. Sem ter o que fazer, pegou uma pequena pedra que encontrou sobre a
calçada e a arremessou contra um dos pombos no telhado. Acabou acertando o vidro da
janela. Em dois segundos, a porta da frente foi aberta e uma mulher apareceu.
— Não. Tinham mesmo dois pombos no telhado, bem ali, mas eles voaram.
Eu nunca tentaria acertar a sua janela, Tia Adélia.
— Não gosto de baderna aqui. Menos ainda de mentiras. Acha que porque
é parente que vai fazer o que quiser?
— Tudo bem — ele disse, observando o telhado escuro, coberto por limo e
musgo. — E o tio Pedro, está em casa?
Então, sem dizer mais nada, ela se virou e seguiu até a porta dos fundos.
Seus passos eram pesados, quase arrastados, mas havia uma pressa neles, um esforço em
se distanciar. Abriu a porta, entrou e, com uma surpreendente rapidez, a fechou. Em
nenhum instante olhou para trás.
O quintal era ainda mais escuro por causa das árvores e eles subiram a
escada que levava ao pátio, passaram pela porta dos fundos e entraram na cozinha de
azulejos partidos e engordurados. Não havia nenhum sinal da tia. Uma mesa com três
pernas repousava encostada à parede, ao lado de uma geladeira enferrujada e de um
fogão sem alguns botões. Sobre ele, três panelas destampadas: uma com um caldo de
feijão preto, outra com arroz e a terceira com uma carne moída frita no óleo. O tio
esquentou as panelas, jogou tudo num prato e o colocou sobre a mesa, à frente de
Michel. Sentou-se e acendeu um cigarro. Além do cheiro de álcool e de uma tremedeira
nas mãos, parecia haver nele qualquer outra coisa fora do lugar, mas Michel não se
esforçou em descobrir o que era. Encheu o garfo com o caldo de feijão e a carne moída,
levou-o à boca e mastigou. O gosto era horrível. A carne moída parecia repleta de alho
cru, e ele detestava alho cru, e o caldo de feijão estava azedo. A vontade que lhe veio foi
a de cuspir tudo de volta no prato, mas não podia. Num esforço, engoliu de uma vez.
— Talvez o senhor tenha esquecido. Sou o único filho de sua única irmã. Ela
até me mandou um boné do Botafogo uma vez.
— Adorei, mas tenho que ir — Michel disse, ficando de pé. — Lembrei que
preciso fazer umas coisas.
— Já?
— Tem certeza?
— Tenho.
— Pode dizer.
— Não demore muito por aqui. Arranje uma desculpa e caia fora. Vai me
agradecer depois. Entendeu?
— Entendi.
— Boa noite.
— Boa noite.
CAPÍTULO 14
Seu estômago ainda dava voltas. Foi ao banheiro e descobriu que o vômito
da noite anterior continuava ali, boiando na superfície da latrina como uma mancha de
óleo no mar. Acionou a descarga e ela fez um barulho seco e esquisito. Foi até o quintal e
procurou por um balde. Encontrou apenas um pote velho de sorvete. Encheu-o no
chuveiro por cinco ou seis vezes, mas a quantidade de água que cabia não era suficiente
para fazer o vômito descer de uma vez e, tão logo escoava, a mancha tornava a emergir.
Uma hora ele desistiu, se sentou na privada e mandou ver. Estava com uma tremenda
diarreia. Sentia os respingos borrifando o vaso, por vezes alcançando a sua bunda. Porém,
assim que aquele tormento acabou, Michel sentiu-se um outro homem, cheio de energia
outra vez. Procurou pelo papel higiênico. Não estava sobre o cesto, muito menos na pia.
Abriu algumas caixas, na esperança de encontrar algo que servisse. Continham frascos
sujos, bandejas enferrujadas, cinzeiros, copos e canecas de plástico. Em outra, um
aspirador de pó quebrado. Já não havia onde procurar, quando seus olhos avistaram uma
pilha de toalhas sobre o bidê. Eram toalhas de rosto, com os nomes do seu tio e da sua tia
bordados, todas um pouco empoeiradas e comidas por baratas. Escolheu duas, rasgou-as
ao meio e se limpou.
Foi até a geladeira. Além de algumas garrafas com água, encontrou cinco
ovos, uma vasilha de margarina, alguns dentes de alho e aquela papa de feijão preto
dentro de um pote. Fritou dois ovos, comeu, depois lavou a panela e o prato que havia
usado.
O primeiro ônibus que passou ia para a Central do Brasil. Estava cheio e ele
seguiu em pé e espremido, a apreciar a Zona Norte, um outro mundo que sequer
planejara conhecer. Viu os lava-jatos clandestinos e os seus funcionários girando toalhas
sujas no meio do asfalto, viu os viciados em crack pedindo dinheiro nos sinais, os peões
de fábricas e as morenas gordas com tatuagens nas pernas, sentadas em cadeiras de
plástico nas portas dos prédios em ruínas, bebendo cerveja e catando piolho na cabeça da
criançada - todos suando e tostando sob o abrasante sol da cidade do samba e do
carnaval. Michel sempre soubera deles, mas nunca os tinha visto, e, de onde estavam, até
que não pareciam tão ruins.
Eram quase seis e meia da tarde quando retornou e abriu o portão da casa
na Rua Honório. As luzes da sala e da cozinha estavam apagadas. Caminhou pelo
corredor, chegou ao pátio e ganhou o quintal. Pouco antes de entrar no bangalô, escutou
um barulho perto do pé de graviola.
— Troque de roupa e venha aqui! Tem uma porção de folhas para tirar.
Não consigo fazer isso sozinha.
— Agora?
— Sim, claro.
Michel foi até o bangalô, trocou de roupa e voltou até onde a tia estava.
Era o seu Tio Pedro, como sempre movediço, com um cigarro aceso entre
os dedos e balançando feito uma palmeira contra um temporal.
— Bem, acho que vou me deitar — o tio disse após jogar o cigarro fora. —
Estou cansado. Boa noite.
CAPÍTULO 15
— Achei que não ia acordar — ela falou, vestida com a camisola vermelha,
talvez a única roupa que possuísse. — O quintal está uma bagunça, você não fez quase
nada!
— De forma alguma.
— Eu tenho certeza que está. Acha bonito ficar aqui e não fazer nada? Foi o
que a sua mãe te ensinou?!
Com as mãos na cintura e os ombros para a frente, ela o encarava. Que mal
Michel lhe fizera? Nenhum.
— Tudo o que disse é verdade, tia, mas não quero que pense que sou um
mal-agradecido. Vou ficar para tirar as folhas do quintal. Talvez consiga resolver o
problema com os argentinos amanhã.
Por quase uma semana, se enterrou naquele quintal, seu suor respingando
por todo canto feito o sangue de um prisioneiro. A desculpa sobre os argentinos não
havia funcionado, assim como todas as outras, e a cada bom dia uma nova empreitada
lhe era lançada. Carregou móveis caindo aos pedaços, ripas de madeira cheias de cupins,
lagartixas, escorpiões e aranhas, trocou telhas, construiu um varal para estender roupas,
colheu jacas e acerolas, lavou o pátio, colocou veneno para morcegos na casinha do
cachorro que morrera cinco anos antes e derrubou uma casa de maribondos que o
seguiram encolerizados até o bangalô. Quando chegava perto das três da tarde, a tia
deixava sobre o batente um prato com arroz, aquela papa de feijão e a carne moída. Era
sempre a mesma coisa. Ele comia o arroz e jogava o resto no pé da goiabeira.
— Não, é verdade. Ela ainda vai demorar um pouco para voltar, mas seria
interessante já estar empregado quando isso acontecer.
— Pois é.
— Exatamente.
— É mesmo?
— Sim. Sei de uma empresa que está procurando gente para trabalhar.
Pagam muito bem.
— Empresa de quê?
— Pronto — ela disse —, você está empregado! Vou pegar um papel para
anotar como chegar lá.
CAPÍTULO 16
— Acho que não expliquei bem. É sobre a vaga para o escritório. O trânsito
estava horrível, só consegui chegar agora.
— É... Não sabia que o Charles estava precisando de funcionário. Vou falar
com a Arlete, ela deve estar por dentro disso.
Ele passou por Michel e subiu as escadas resmungando alguma coisa. Dois
minutos depois, retornou, acompanhado de uma gorda na faixa dos quarenta e poucos
anos. Usava óculos, um vestido de malha muito justo e um coque segurando os cabelos
loiros. Tinha uma bunda enorme.
— Olha ele aí, Arlete — o sujeito falou. — Veio atrás da vaga para o
escritório.
— Talvez você ainda não tenha sido avisada. A minha tia conversou com a
mulher do Charles hoje pela manhã. Está tudo acertado.
— Nunca ouvi falar. Tem qualquer coisa estranha nessa história. O senhor
aguarda um pouquinho, vou ter que ligar para o Charles.
Arlete subiu as escadas, chacoalhando a bunda a cada degrau, e o baixinho
voltou para as marteladas no caminhão. Michel se sentou no banco de madeira. À sua
frente, espalhados pelo chão, correntes, parafusos, estopas, latas de graxa, baldes com
óleo ou água suja. Lá no fundo, atrás do caminhão, perto do que parecia ser um banheiro,
a carroceria torta e quebrada. As paredes eram sujas de graxa e em algumas partes havia
desenhos, frases e trechos de música, o escudo de um time, um coração com o nome de
alguém.
Meia hora se passou e Arlete não deu qualquer sinal. Michel se levantou e
foi até uma padaria ali perto. Encostado no balcão, enquanto comia um pastel de carne e
bebia um refresco de groselha, enxergou a Passarela 13, um alongado arco-íris de aço que
se curvava sobre a Avenida Brasil. Gente de todo jeito e feitio passava por ali: vendedores
de balas, sacoleiras, estudantes, trabalhadores de fábricas com seus uniformes,
moradores de rua, e, por debaixo deles, os carros, os ônibus e os caminhões que
berravam sobre o cinza escuro do asfalto abrasador, quase todos apressados, na
exasperante correria rumo a algum canto daquela selva de concreto e de metal. Havia
uma beleza e, ao mesmo tempo, algo de muito feio e de muito real naquilo.
— Entende de mecânica?
— Vivia de quê?
— Vendia apartamentos na Zona Sul. Flamengo, Botafogo, Humaitá, Lagoa.
E Copacabana, principalmente. Era lá o meu reduto. Até algumas semanas, fazia parte do
quadro de uma imobiliária bastante conhecida.
— Mil e duzentos talvez seja pouco para quem já foi um corretor — Arlete
disse.
— Você vai ser auxiliar de mecânico. — Charles olhou para Michel. — Faz
tempo que o Wladimir pede um. Arlete vai te conseguir um macacão.
— Faça o que Wladimir mandar e vai dar tudo certo — bateu no ombro de
Michel. — Sua tia disse que você gosta de trabalhar. Eu gosto de quem gosta de trabalhar.
Charles foi embora e Michel ficou ali, no meio do escritório, esperando que
Arlete trouxesse o macacão. Pensava nos mil e duzentos reais. Um pouco menos do que
tinha quando saltou do ônibus na Rodoviária Novo Rio, meses antes, e de lá para cá ele
havia aprendido algumas coisas e uma delas era poupar. Bastava passar um mês na
Alligator Muncks, fazendo o que quer que fosse, e poderia mandar os tios à merda e
voltar para o seu quarto no Hotel Realeza. Se ficasse dois meses, conseguiria pagar ao
primo. Dois meses, no entanto, parecia tempo demais.
CAPÍTULO 17
— Tá falando do quê?
Mas nenhuma luta chegou a acontecer. Antes que Michel partisse para
cima de Wladimir e consequentemente desse adeus aos seus mil e duzentos reais, Arlete
surgiu no alto da escada.
— Olha só, Arlete — falou —, não quero mais saber dessa palhaçada! Se
esse bocó estiver aqui amanhã quando eu chegar, peço a minha demissão na mesma
hora. Não tem espaço pra nós dois nessa garagem.
— O que aconteceu?
Michel não sabia o que responder. Pensou que seria demitido, de qualquer
forma.
— Esse cara é um grande mentiroso, Arlete — acabou por falar. — E burro
como uma porta. Sendo sincero, acho que é o mecânico mais burro que eu já conheci.
CAPÍTULO 18
Para a sua agonia, nos sábados e nos domingos a Alligator Muncks não
funcionava. Ele tentava acordar cedo, no intuito de pegar um ônibus para Copacabana,
mas nunca conseguia escapar da tia, nem mesmo quando madrugou. Não eram cinco da
manhã, o sol ainda nascia, e ela estava lá, sentada em uma cadeira no pátio, a lhe
esperar.
— Já que a sua namorada ainda não voltou — gostava de dizer —,
aproveite para fazer umas coisinhas.
Havia sempre uma lista de afazeres, e a voz dela se tornara ainda mais
irritante.
CAPÍTULO 19
Era uma manhã de muito sol e muito calor. O Volvo 440 seguiu para
Mangaratiba, um pequeno e afastado lugarejo banhado pelo mar. Barzinhos, quiosques,
restaurantes e lojas de artesanatos se estendiam por toda a rua principal, mas quase
ninguém se demorava neles, já que o maior atrativo era a balsa para Ilha Grande ou Angra
dos Reis. Centenas de turistas passavam por ali todos os dias. À noite, o que restava eram
guardanapos, copos descartáveis e embalagens de biscoitos e salgadinhos sobre calçadas
e bancos de praça. Anos depois, se alguém perguntasse para uma daquelas pessoas sobre
aquele lugar, talvez ela apenas franzisse a sua testa e, após alguns segundos de intensa
busca em seu arquivo de lembranças, dissesse, como se ainda não tivesse muita certeza:
“Sim, acho que já passei por lá”.
— Vou falar com esse filho da puta. Ele nem é o dono do iate, só faz tomar
conta. O que é que esse babaca tá pensando?
— Deixa ele — Michel disse. — Vamos procurar uma mesa de sinuca. Não
quer comer alguma coisa?
— Não, estou sem fome. Mas encaro uma cerveja, por causa do calor.
Foram até o bar que ficava em frente ao cais e pediram uma cerveja.
Minutos depois, pediram a segunda, e já estavam na sexta ou na sétima quando Betinho
apareceu. Era um moreno alto e compacto, com braços e mãos enormes e uma voz de
barítono.
O iate ocupava uma boa parte do cais e, mesmo ancorado atrás de uma
dezena de outros barcos, ainda dava para vê-lo: uma monstruosidade branca com listras
negras por toda a sua lateral. Perto do bico, em dourado, havia um nome: Beatriz. Michel
não a conhecia, mas calculou que, quem quer que fosse, era certamente uma mulher
muito feliz.
Seu Arturzinho decidiu que ele mesmo faria a amarração. Conduziu o braço
do Munck até perto do motor, que já estava solto, e foi até o iate com as correntes.
Demorou um tempo enorme com aquilo, mais do que qualquer outro levaria. Enfim,
voltou, conferiu se as patolas estavam fixas, foi até as alavancas de comando e o braço do
Munck começou a se mexer, desta vez para cima. Sempre que o motor ensaiava tocar em
alguma parte, ele baixava, girava um pouco para a direita ou para a esquerda, então
tornava a subir. Uma hora o motor não tocou em nada e começou a fazer um arco no ar,
do iate até o fundo do caminhão, lentamente. Michel vira aquilo tantas vezes, e tudo
corria tão bem que parecia que era só uma questão de tempo. Logo eles estariam na
boleia do Volvo, pegando a estrada outra vez. Mas eis que, de repente, a corrente se
soltou e começou a deslizar, fazendo um barulho estranho, e, em menos de dois
segundos, a amarração toda se desfez e o motor despencou, de uma altura de cinco ou
seis metros, no chão. Foi um estrondo terrível. Um carnaval de porcas, molas, parafusos,
ruelas, lascas de plástico e de metal saltitaram e se espalharam por todo o cais.
— Alguém fica de olho nesse pinguço! — Betinho gritou, olhando para dois
ou três sujeitos que estavam por perto. — Vou até a delegacia e já volto com o pessoal.
Michel pegou Seu Arturzinho por um dos braços e o levantou. Levou-o até
o caminhão, sob os olhares dos sujeitos, que nada disseram.
— Melhor, não. Seu olho está feio. Acho que vai levar alguns pontos.
De uma hora para a outra, nuvens escuras cobriram o céu. Dava para vê-
las, densas e unidas, como se fossem uma só, se estendendo por toda a Zona Norte até
parte da Zona Oeste. Seu Arturzinho acendeu um cigarro e o tragou, em silêncio, com as
mãos tremendo. A viagem inteira, até Bangu, sem dizer uma palavra. Na frente de sua
casa, pegou as tralhas que guardava atrás do banco e no porta-luvas e ficou por um
tempo tamborilando os dedos na carroceria, com a cabeça baixa, cantando alguma coisa.
A luz do poste, que ainda esquentava, refletia-se sobre o seu olho machucado.
— Era pra ter me dado uma força lá, Baiano — disse, esticando o braço,
como se sentisse uma dor. — Porra, você não chegou nem a tentar, e olha só como
estou...
Michel ficou olhando para ele. Queria falar alguma coisa, mas, como
sempre, não conseguia. Eu tive medo, Seu Arturzinho, foi o que pensou dizer. Um medo
terrível, que me acompanha desde quando nasci. E mesmo quando estou bem, se prestar
um pouco de atenção, ainda vou escutar um rosnado miúdo e contínuo em algum lugar
dentro de mim. É o rosnado do medo, não sei se o senhor conseguiria entender.
— Diga para a Arlete que não vou voltar mais, que é para ela colocar outro
em meu lugar — ele gritou. — Se perguntar o motivo, diga que eu cansei. Apenas isso,
que eu cansei! — e bateu a porta.
— A gente bebeu duas cervejas, só pra fazer hora. O cara não aparecia.
— Não deveriam ter bebido.
— Bem, agora não tem mais jeito. O que vai acontecer? Quer dizer, o que
vai acontecer comigo. Seu Arturzinho não vai mais voltar.
Parecia fácil, mas aquelas eram ruas como as de Ramos, cheias de arames
sobre os muros, janelas e portas fechadas, ninguém a circular. Cada vez mais assombrado,
Michel começou a correr, numa marcha forte e constante, como se participasse de uma
desembestada maratona. A Rua Honório, no entanto, não parecia estar em nenhum
lugar. Talvez tivesse entrado na esquina errada. Refez o traçado duas vezes, passou por
um boteco onde só havia um velhote sentado em uma cadeira, esgueirou-se por uma
praça onde dois adolescentes com armas na cintura falavam ao celular, até que, enfim,
avistou a casa dos tios. Uma intensa sensação de alívio lhe invadiu. Foi até o bangalô, o
seu refúgio, livrou-se das roupas molhadas e se deitou.
— Eu sei que está aí, não pense que me engana. A luz do banheiro ficou
acesa.
Passou a almoçar mais cedo, entre onze e quinze e onze e meia da manhã,
quando o restaurante ainda estava vazio e podia escolher os melhores cortes de carne.
Não era raro cruzar com Wladimir na volta, mas, subliminarmente, passara a existir uma
espécie de código de ética entre os dois: cada um escolhia a sua margem da rua e mirava
o infinito, sem olhar na direção do outro. Não fossem as marteladas na garagem, Michel
até teria esquecido que aquele sujeito existia.
Mas eis que em uma manhã, para a sua enorme surpresa, ao abrir a porta
do escritório, ele se deparou com Arlete sentada de frente para o computador. Tinha uma
aparência abatida.
— Estou ótima — ela respondeu com uma voz tremida. — Foi só uma crise.
Já tive piores.
— Vou.
— E eu?
— Que tem?
— Como fico? Não pode me colocar com o Wladimir, a gente vai acabar
brigando. Então andei pensando que, já que Seu Arturzinho não vai mesmo voltar, eu
poderia trabalhar com o caminhão que era dele.
— Você vai continuar aqui no escritório, pelo menos por uns dias. O
Charles acha que posso precisar.
Não deixar que nada de ruim acontecesse a Arlete, era a única coisa que
Michel precisava fazer, e foi o que ele fez: pegava água quando ela precisava tomar o seu
remédio, atravessava a passarela para comprar bombas de chocolate, ajudava-a a descer
a escada na hora em que iam almoçar. Arlete jogava aquele braço gordo sobre os seus
ombros e encostava o imenso quadril na sua perna, e era macio e um bocado quente
aquele quadril.
— Depois disso, fui para a casa de uma tia em Olaria e nunca mais saí de lá.
Hoje, cuido dela, tem Alzheimer.
Arlete era mais pesada do que Michel imaginava, mas, depois de algumas
tentativas, conseguiu pô-la de pé e a levou até o banheiro. Segurava-a por trás, pela
cintura, para que não viesse a cair outra vez. Abriu o chuveiro e a água começou a molhar
os dois. Era uma sensação estranha, mas agradável. Arlete usava um vestido branco de
malha e ele grudou em seu corpo, deixando os bicos dos seus enormes seios à mostra.
Michel olhou para baixo e viu o desenho de sua calcinha vermelha com formato de asa
delta. Ela até podia estar acima do peso, mas não havia dúvidas de que tinha um corpo
cheio de curvas e saliências, um corpo em que qualquer homem poderia ser feliz. Mas
Michel não podia pensar naquelas coisas. Ele tinha que cuidar dela, pois os seus mil e
duzentos reais só dependiam disso. Não morra aqui, Arlete, pelo menos não agora,
comigo! Lembre-se das bombas de chocolate, dos livros policiais e de Vinny, o Lulú da
Pomerânia, quem lhe alimentará com sorvete e paçocas de amendoim?!
— Arlete, não quero que fique chateada, mas tem algo que preciso te
contar.
— Eu sei o que é.
— Sabe?
— Pastas?
— É. Espero que não conte nada pro Charles. Você sabe, ele é meio antigo
para algumas coisas.
CAPÍTULO 21
Em uma tarde, porém, quando a porta não havia sido trancada e Arlete
suava e gemia sobre uma das mesas e Michel se agarrava às suas pernas, Charles entrou e
deu de cara com os dois. Por um minuto, ficou parado, observando-os em silêncio, com a
boca um pouco aberta.
— Não é nada do que está imaginando, Charles — ela disse. — Meu Deus,
estou morrendo de vergonha. Olha, que foi a primeira vez que isso aconteceu. Ele me
convenceu!
— Não precisa ficar se desculpando, Arlete. Não acho que o que vocês
estavam fazendo seja algum crime — Charles parecia calmo, como se quase aceitasse a
situação. — Infelizmente, este não é o local adequado para essas coisas, é um ambiente
de trabalho. Vou ter que demitir um dos dois. E vai ser você — apontou para Michel.
— Não vai me dar uma segunda chance? — Michel perguntou.
— Não. Arlete, pague a ele os mil e duzentos reais. Já estava aqui há quase
um mês mesmo.
Parado no vão entre o corredor e a escada, por algum tempo ele tentou
digerir o que acabara de acontecer, mas a única coisa que conseguia lembrar era do grito
de Arlete. Olhou para o envelope em suas mãos. Ali estava o seu cheque de mil e
duzentos reais. Poderia pegá-lo e cheirá-lo. Mas, de onde estava, ainda conseguia escutar
a voz dela falando para Charles sobre o quanto ele era manipulador e de como ela fora
empurrada para tudo aquilo. Enfiou o envelope no bolso do macacão e desceu as
escadas. Passou pelo banco de madeira e pelo bebedouro, depois pela mesinha em que
ficavam as canecas e a garrafa térmica para o café. Percebeu que seria a última vez que
faria aquele trajeto. A última vez que olharia para aquela garagem suja, a última vez que
leria as frases escritas nela. O almoço daquele dia no Santiago também fora o último. Lá
do fundo, abafado pela carroceria do caminhão Mercedes, o som do martelo de Wladimir
seguia a vibrar. Era a última vez que o escutava. Pensou que algo estava lhe escapando,
como se ainda faltasse uma peça, mas não fazia ideia de que peça era.
Então ele estava sentado no fundo de um ônibus, voltando para a casa dos
tios em Maria da Graça. Nunca mais pegaria aquele ônibus. Quem parasse para olhá-lo,
talvez enxergasse um sujeito triste, espremido em um canto, com os olhos perdidos no
chão. A verdade, contudo, era que Michel sentia-se feliz. Além dos horizontes da
pantanosa e arriscada Zona Norte, além dos sinais abarrotados de mendigos e dos morros
de onde, à noite, cintilavam as luzes dos disparos de fuzil, Copacabana o aguardava com
as suas calçadas limpas e seguras, as suas promessas de amor eterno e o seu barulho do
mar.
De súbito, sentiu uma enorme vontade de ligar para a mãe, talvez porque
há semanas não se falavam, e foi até o orelhão que ficava ao lado da Padaria do Alfonso.
— Que coisa horrível você fez, Michel... — disse a voz do outro lado, a
fraquejar.
E a mãe então lhe contou tudo — do primo agiota que aparecera há duas
noites para cobrar a sua dívida e de como ela havia deixado de dormir por conta disso. O
grande verme se sentou à mesa e tomou café, falando dos juros, maiores que os de
qualquer banco, os juros que nunca parariam de crescer. Para que a mãe deixasse de se
afligir, Michel acabou por falar da surpresa que vinha guardando há algum tempo. Sim,
ele trabalhara como corretor em uma conhecida imobiliária e conseguira vender uma
enorme cobertura na Lagoa Rodrigo de Freitas. A comissão poderia sair em uma semana
ou em dois meses, assim eram as grandes negociações. Tão logo recebesse, pagaria ao
primo. Mas não poderia voltar agora. Por fim, contou dos dias na casa da tia, por conta de
uma viagem a trabalho de Sandy, e do atual emprego como gerente em uma empresa de
caminhões Munck. E a mãe, sempre tão boa e previsível, acreditou em tudo.
Sem qualquer aviso, a cama começou a flutuar com os dois. Primeiro, sobre
as dunas, depois ganhando altura e cortando espessas nuvens em uma velocidade
absurda, planando no céu até parar em um lugar que era bastante familiar para Michel.
Viu a escola em que estudou quando era criança, a praça da igreja e a rua em que ficava a
casa dos seus pais. Não sentira falta, até aquele instante.
E ali, no lugar em que há pouco se encontrava Sandy, agora ele via aquela
mulher que certa vez lhe dera cigarros e colocara a sua mão sobre o seu peito.
Mas eis que, em meio àquela queda e a todo o breu que lhe envolvia, um
filete de luz surgiu e tudo então parou. Michel abriu os olhos e observou as coisas à sua
volta. Viu as caixas empoeiradas, as janelas atulhadas de pregos, e se deu conta de que
ainda estava em Maria da Graça, no velho bangalô dos seus tios. Lá fora, em alguma rua
próxima, um cachorro latia incessantemente e o carro dos ovos anunciava uma
promoção. O sol entrava por entre os fios de uma teia de aranha na janela.
Tomara que entenda o que fiz. Não posso perder a confiança de Charles.
Sou só. Me espere no ponto das Kombis, vou levar o seu cheque. A gente precisa
conversar.
Abriu a carteira e conferiu o que ainda havia ali dentro: quarenta e dois
reais, além de três vales transporte. Não era muito, mas o bastante para ir embora dali.
Pegou a mochila, conferiu se o tio ou a tia, por alguma razão, ainda estavam no pátio e
saiu.
CAPÍTULO 23
As ruas e as avenidas de Copacabana continuavam como sempre,
charmosas e acolhedoras. Grupos de turistas asiáticos saíam dos hotéis de luxo e se
encantavam com a cor do mar e com o brilho do sol, os sempre atentos manobristas
flertavam com as recepcionistas em seus uniformes limpos, garotos e garotas seguiam
para a praia e velhas alquebradas arrastavam seus carrinhos de compras ao atravessar o
sinal. Michel sorriu para elas, assim como acenou para as balconistas de uma lanchonete
e piscou um dos olhos para a moça que distribuía panfletos sobre empréstimos. Quase
ninguém lhe deu atenção, mas não tinha importância. Ele só queria sentir que estava ali.
Caminhou a esmo por quase duas horas, até que comprou um jornal e o
estirou sobre uma das mesas de cimento da Praça do Lido. Conferiu o caderno literário,
sem encontrar qualquer menção à Sandy, e o classificado de imóveis. Notou que um dos
anúncios da Lomma Imobiliária era o de um conjugado na Barata Ribeiro que havia
captado. Lembrou do dono, um velho simpático que cultivava tulipas, e das atendentes
do Flamengo Beach Power, dos seus sorrisos abertos e alvos. Lembrou também de Otavio
Quispe e ficou a imaginar que àquela hora ele talvez estivesse com uma taça de
champanhe na mão, estirado sobre uma espreguiçadeira na varanda de sua cobertura.
Mais tarde, Michel foi até a praia e se sentou sobre um monte de areia. Estava cheia,
mesmo não sendo final de semana. Os berros dos vendedores de sanduíche natural, de
mate e de biscoitos Globo se misturavam aos dos salva-vidas e ao constante murmurar da
multidão. Quanta falta sentira daqueles guarda-sóis, de olhar na direção do Forte ou do
Leme e de imaginar que ela estaria por ali, entre um ponto e outro, e que ele só precisaria
encontrá-la. Por um tempo mais, teria todas as chances outra vez.
Michel disparou até a rua mais próxima, a Hilário Gouveia, onde avistou
um prédio com um jardim feito de bromélias e de pequenas palmeiras, e ali mesmo ele se
agachou e se escondeu. Menos de um minuto depois, eles apareceram, alguns com
camisetas sobre o rosto, avançando pela rua como os Cavaleiros Do Apocalipse No Dia Do
Juízo Final. Gritavam, destruíam retrovisores de carros, chutavam o lixo na frente dos
prédios e jogavam pedras nas vitrines para que elas se quebrassem. Uma senhora se
refugiara atrás de um carro, mas foi descoberta e encurralada na marquise de uma loja, e
eles levaram a sua bolsa, o seu relógio, a sua pulseira e um colar de bolas azuis. Ela ali, a
alguns metros de onde Michel estava, caída no chão, a chorar. Logo ele também seria
encontrado. Podia vê-los correndo rumo ao lugar em que se escondera. Vinte ou trinta
deles. O bonde do seu terror. Prontos para lhe esquartejar.
Aquela pobre mulher, porém, estava em choque. Não sabia aonde morava,
muito menos o que fazia ali. Suas frases eram palavras soltas e não chegavam a ter
sentido. Sua voz soava como um de ganido cheio de dor. Michel calculava o que poderia
fazer para ajudá-la, quando o chão repentinamente voltou a tremer e o seu mundo girou
de ponta-cabeça outra vez. Na mesma esquina em que minutos antes havia desaparecido,
aquela legião de malfeitores retornava em sua marcha de destruição. Pareciam ainda
mais numerosos e barulhentos. Por mais estranho que soe, por um segundo Michel
chegou a pensar em conversar com eles. Diria que estavam na mesma merda, que ele
também sabia sobre o quanto de injustiça o mundo costuma alimentar. Contaria das
coisas pelas quais tinha passado, da selva que é viver. Talvez o entendessem e o
deixassem ir.
Na esquina da Nossa Senhora com a Santa Clara, uma van passava com as
portas abertas. Era o milagre que havia pedido. A distância que o separava dela era
menor do que a que havia entre ele e os gritos às suas costas. Reuniu toda a energia que
ainda possuía e se atirou no sentido da van. O plano era dar um salto, cair sobre o piso e
gritar para o motorista acelerar, deixando todo aquele inferno no passado.
Michel ficou de pé. As costelas doíam, assim como quase todo o seu corpo.
Não sobrara muita coisa sobre ele, a não ser o short, que agora não passava de um
pedaço de malha pendurado à cintura. A mochila, com as roupas e o resto do dinheiro,
havia desaparecido. Era muito, talvez até demais, e por um breve momento ele surtou.
Com as costas em carne viva e a polpa da bunda à mostra, começou a correr, da hilário
Gouveia rumo ao Hotel Realeza, abrindo caminho em meio à multidão desavisada que
sequer vira o arrastão acontecer. O que é aquilo, — alguém por certo questionou, vendo-
o passar — tão grotesco e assustador? Aquilo era Michel Rodrigues, um animal vindo de
longe, uma alegoria a carregar, para todo lado, a sua estropiada fábula sobre a vida e o
amor.
Após cinco quarteirões, alcançou a rua sem saída, a mesma em que entrara
inúmeras vezes antes, subiu a escadaria e ganhou o saguão. O tapete vermelho, o sofá
verde, o lustre enferrujado e o Cristo Redentor com os braços curtos e o queixo
avantajado continuavam no lugar de costume, assim como o cheiro de mofo, ainda a
impregnar o ar. Como nas outras manhãs, não havia ninguém por ali. Foi até o andar de
cima e correu até porta do quarto 305, e ele estava vazio, com a cama forrada e a janela
fechada. Tomou um banho, em seguida escancarou a janela e se deitou, enrolado na
toalha. As costas ardiam como nunca, arranhadas. Que grande aperto havia passado.
Quase morrera e perdera toda a sua fortuna, algo perto dos quarenta reais. Mas agora
tudo havia passado e ele até se sentia bem, pois estava onde desejava estar.
CAPÍTULO 24
— Que bom.
— É, mas não pense que esqueci do meu débito, tanto que estou aqui.
Preciso somente de uns dias e acerto tudo.
— Obrigado, sabia que poderia contar com você. O que houve com a tevê,
quebrou?
— Não.
— Buade comprou uma nova? Aliás, por onde anda aquele filho da mãe?
Não me diga que voltou para a França.
— Ele morreu.
— Como é?
— Puta merda.
— É.
— Talvez sejam, mas até agora ninguém apareceu. Pra falar a verdade, só
tinha eu lá no enterro... Acho que ele não se importaria se eu ficasse com a tevê.
— Tenho que ir. Você sabe, daqui a pouco o movimento começa. Se quiser,
posso trocar os lençóis do seu quarto.
CAPÍTULO 25
O quarto 305 do Hotel Realeza, irrevogável retiro, onde a luz do sol batia
em seu rosto pela manhã e os dias seguiam suaves feito um longo e abençoado feriadão.
Michel trocou os euros, depositou a maior parte em uma conta, enviou um pouco para os
pais e pagou à Sóstenes e ao primo agiota. E tudo parecia acontecer de uma forma tão
espontânea, que ele, por ventura, quase se sentia feliz naquele tempo de
imperturbabilidades, quando alguma coisa perto da serenidade o alcançou. Aproveitou
para conhecer o Pão de Açúcar, andar no bondinho de Santa Teresa e, vez por outra,
beber uma cerveja em um dos quiosques do calçadão, ainda a procurar por Sandy,
embora sem a mesma pujança de antes. Usava camisas polo e óculos Ray Ban, comprados
em um shopping.
Movido por aquele sentimento, algumas noites depois Michel passou pela
porta do reformado Picardia Night Club. O salão estava cheio e a iluminação era mais
moderna, com lâmpadas embutidas lançando jatos de luz. O carpete, em vez de
vermelho, passara a ser negro. Escolheu uma mesa mais para o canto e se sentou. À sua
direita, quatro ou cinco sujeitos brindavam e, à sua frente, dois gringos tentavam alisar as
pernas de uma garota que sorria e fingia não gostar. No balcão, um velho com cara de
índio falava alto. O barulho era uma mistura de vozes, da música que saía das caixas de
som e de copos a tilintar. Michel pediu uma dose de Martini, por pura curiosidade.
Duas horas se arrastaram até Michel notar que o Martini ficou aguado e
que ele se enfastiara de tudo aquilo. Só estava ali por causa de Buade, mas Buade estava
morto e ele ainda tinha coisas para resolver.
Levantou o braço e pediu a conta para uma das garçonetes, mas ela não
percebeu. Nesse momento, o homem com a gravata borboleta vermelha subiu ao palco
novamente.
A fumaça de gelo seco começou a subir e o barulho dos gritos e das palmas
se tornou quase ensurdecedor. Cada vez mais incendiados, aqueles elementos
refestelavam-se ante a chegada da próxima dançarina, uma tal de Florbela Paz. E ela
apareceu, galgando passo a passo os degraus da escada e em seguida ganhando o palco
para exibir o seu corpo perfeito e o seu sorriso que irradiava alguma coisa muito próxima
à luz. E, finalmente, feito naquele remoto dia em que, distraído e sem qualquer anseio,
ele caminhava por uma das praias desertas da sua velha cidade, a vida e o mundo de
Michel pararam mais uma vez. O barulho que reverberava no salão do Picardia Night Club
passou a ser o barulho que havia dentro de si. A respiração de todas aquelas pessoas era
a sua própria respiração. E toda a dor e toda a paz que pudessem existir também
passaram a ser seus. Sentado onde estava, ficou a observá-la com um biquíni cravejado
de lantejoulas douradas, os cabelos presos em um coque, o pescoço à mostra. Quantas
vezes beijara aquele pescoço? Aquele mesmo, não o de uma sósia, não o de alguma
mulher parecida. Quantas vezes teve aqueles seios entre as mãos e apertou aquela
bunda, abrindo espaço para que fossem um só? Os seios e a bunda de Sandy, ainda mais
bonita do que em suas lembranças, a mais bela sereia a deslizar sobre a superfície de
cimento daquele palco como se mergulhasse nas águas profundas que era o seu amor.
Pensou em se levantar e se posicionar mais à frente, em algum ponto de
onde ela pudesse enxergá-lo, mas concluiu que o melhor seria surpreendê-la, depois da
apresentação, no corredor que levava aos camarins. Ela correria em sua direção e se
jogaria em seus braços. E ele, com o coração vibrando feito uma britadeira em dia de
construção, a perdoaria por tudo o que fosse preciso perdoar. Daquele instante em
diante, nada mais de mistérios indecifráveis, nada mais de buscas, nem de solidão.
Mas ela parou. Sandy parou, se virou e olhou para trás, para onde ele
estava. Deu dois passos em sua direção, se abaixou e pegou algo que havia caído no chão.
Era um brinco. Apenas isso, um dos seus brincos, e ela então se levantou e tornou a
seguir para os camarins.
Sem saber o que fazer, Michel decidiu que esperaria, pelo tempo que fosse
necessário, até que ela saísse dos camarins. Encostado no balcão do bar, imaginou todas
as coisas que tinha para dizer e perguntar, e eram muitas. Então lembrou da saída que
havia nos fundos. Lançou-se porta afora e deu a volta no quarteirão. Avistou-a a vinte
metros, cruzando a rua. Usava um sobretudo com estampa de onça e os seus cabelos
agora estavam soltos, alcançando o meio das costas. Como eram bonitos aqueles cabelos!
Foi até um Monza e por alguns segundos ficou conversando com o homem sentado no
banco do motorista, depois deu a volta, se sentou no banco do passageiro e eles
partiram. E o que Michel fez foi a única coisa que podia fazer naquele instante: ele partiu,
em desvairada correria, atrás deles, da Prado Júnior até a Nossa Senhora de Copacabana,
quase duzentos metros em um esforço sobre-humano, até que, sem folego, desistiu.
Parado no meio da rua, tentando recobrar o ar, escutou um carro buzinar às suas costas.
Era um táxi.
Por sorte, o taxista não achou aquilo estranho e eles seguiram Sandy e o
homem. Primeiro, por Copacabana, depois por Botafogo, pelo Aterro, passaram pelos
Arcos da Lapa e pelo Centro. Meia hora depois, em uma rua suja e estreita da Gamboa, o
Monza estacionou em frente a um antigo prédio de conjugados. O taxista parou na
esquina, de onde Michel podia observá-los. Viu quando saltaram e caminharam até a
entrada do prédio. O homem, um moreno alto com um cavanhaque e um rabo de cavalo,
seguia mais à frente e parecia reclamar de alguma coisa, enquanto Sandy tentava se
explicar. Ele tinha um jeito sombrio, quase assustador. Uma hora, ela o puxou pela mão,
como se tentasse pará-lo. Num único movimento, o homem girou o braço e a estapeou.
Sandy caiu no chão e ele a deixou onde estava e entrou no prédio.
— Espere aqui.
— Melhor não ir, parceiro, seja lá quem ela for. Se aquele cara voltar, você
pode ter problemas. Conheço o tipo.
Michel não respondeu. Seguia, afinal, ao encontro do seu amor, por quem
procurara por um longo tempo. Pegaria em suas mãos, a levantaria daquele chão sujo e a
livraria de todas as coisas ruins pelas quais era obrigada a passar. Ninguém mais lhe daria
tapas, ninguém mais lhe faltaria com o respeito, pois, embora ainda não soubesse, ele
estava ali e voltaria a ser o seu protetor.
— Michel?! — perguntou.
— Que loucura.
Sandy foi até ele, os saltos estalando sobre a calçada. Parada à sua frente,
suspirou.
— Pode começar tentando explicar algumas coisas. Tem uma porção que
eu gostaria de entender.
— Claro que tem. Não sei nem qual é o seu nome. Usa Sandra durante o
dia e Florbela pela noite? Fiquei curioso.
— Que importa?
— Ah, está com medo do namoradinho voltar! Ele já sabe sobre a gente?
De Sandra D’Angelo?
— Escuta, Michel, eu não te chamei para vir aqui e não te prometi nada,
por isso não pode me cobrar. Você veio porque quis. Não tenho culpa.
— Mas eu acreditei. E parece que tudo era mentira. Onde é que está o
grande livro que ia lançar? Aposto que nunca escreveu um poema na vida.
Sandy olhou para trás, para a entrada do prédio. Não havia ninguém.
Encarou Michel e, com aquela mesma voz que, tempos antes, lhe falara das maravilhas do
mundo, começou:
— Não posso.
— Lógico que pode. Entre naquele táxi comigo e amanhã nós estaremos na
Riviera, em uma casa de frente para o mar. Vai ter tudo o que pedir. Te dou a filha que
você tanto quer ter.
— Eu não quero. Não posso escapar do que sou — ela passou a sua mão
delicadamente sobre a dele. — Volte para a sua cidade, esqueça que me conheceu. Vai
ser melhor.
Sandy pegou o cabeludo pela mão e o puxou, e por um segundo ou dois ele
ainda encarou Michel, até que, juntos e de mãos dadas, os dois passaram pelo portão e
desapareceram nas sombras de um corredor longo e escuro.
E Michel se viu só, mais do que em qualquer outra ocasião, a olhar para o
prédio à sua frente. Chamava-se Bonanza. Em sua fachada de pastilhas quebradas, havia
uma placa de ferro com a data em que havia sido construído. Era um prédio esquisito,
que se assemelhava a um enorme cortiço. Em qual daqueles parapeitos ela se debruçava,
a olhar para o mundo à sua volta? Michel não lembrou de nenhuma das frases que havia
pensado quando caminhava pela Atlântica ou quando ficava sentado no sofá do Realeza,
olhando os casais subindo e descendo as escadas. Não falou dos sonhos que alimentara
enquanto cruzava a Avenida Brasil dentro de um caminhão ou das madrugadas perdidas,
olhando para o teto do bangalô. De onde estava, podia ver o táxi parado na esquina de
casas de ferragens fechadas e sobrados com pichações. Mais à frente, uma guarita
abandonada e um pequeno hortifruti. Elevando-se por sobre um daqueles sobrados,
destacava-se o letreiro em neon de um estabelecimento, provavelmente localizado na rua
de trás. Era um letreiro grande e piscava por três vezes, num vermelho muito intenso,
depois se apagava por dois segundos e então voltava a piscar. Michel nunca o tinha visto,
mas conhecia bem o número do telefone que havia nele, pois ligara dezenas de vezes
para aquele mesmo número, sempre cheio de esperança, em um tempo alimentado por
devaneios e enganações. Era o letreiro da Galeteria Wilson, onde preparavam o melhor
galeto do Rio. Ele pensou que tudo havia passado tão rápido, como em um flash. O
tempo de um grito, de um raio partir uma árvore ao meio, de fechar por um instante os
olhos e abri-los logo depois. O tempo que um rojão é disparado para clarear um céu de
réveillon. O que resta em seguida é apenas a fumaça, o rastro de algo que lentamente se
dissipa no ar e deixa de existir. Feito um louco, Michel correu ferozmente em busca do
seu céu de réveillon, da grande aventura da vida, do brilho no olhar, da doce ilusão do
amor. Mas ao chegar, encontrou apenas a fumaça de algo que nunca havia sido tão
sagrado ou genuíno quanto pensou ser. Sandy não passara de um desvario, uma centelha
que o seu verdor transformou em algo muito maior. E, agora, a mulher que ele imaginara
com tanto ardor, finalmente se desmanchava no ar e também deixava de existir. Pensou
que, de alguma forma, talvez tivesse sorte por ser assim. Viver é arranjar motivos, alguém
lhe falou uma vez. Viver é uma eterna preparação. Nas janelas acesas nos prédios à noite,
Michel seguia a avistar a poesia e a grandeza de estar vivo, e isso quase sempre lhe
bastaria, porque eram tantas as janelas e tantas as coisas que se podia imaginar. Tão
veloz, tão vigoroso, tão descuidado. E tudo estando sempre a um passo de acontecer.
Olhou mais uma vez para o parapeito do Bonanza, mas Sandy não estava
lá, nem ela nem ninguém, e ele caminhou até o táxi.