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Vera Lúcia...
–... Eu também.
A dor da despedida.
- Médico.
- É muito perigoso?
- Bastante, pequena.
– Nós?
Jorge,
Fiquei sabendo que você perguntou sobre mim
para as minhas amigas. Chegou perto, com o sorriso que
por um bom tempo, me iluminou e, depois de falar sobre
qualquer outro assunto, encontrou uma maneira de saber
sobre o meu estado. Disse que há tempos não me
encontrava, mesmo frequentando os lugares que, antes de
te conhecer, também eram os meus lugares preferidos; e
também confessou sentir a falta do meu pai, da minha mãe
— que sempre te recebeu com mimos que nem eu mesma,
sendo filha dela, tinha recebido. Falou para as minhas
amigas que eu sou uma boa menina, que o fim do nosso
relacionamento foi apenas por não termos dado certo.
Desejou a minha sorte e garantiu, com veemência, diante
de todas, que eu encontraria um bom homem, o príncipe
encantado que eu mereço.
Pensei ter encontrado o meu príncipe encantado,
quando te conheci. Lentamente, fui descobrindo o coração
que existe por trás dos altos muros que você ergueu,
depois da sua desilusão com Anna. Descobri que, apesar
de sério, o carinho não lhe era completamente estranho;
que, apesar de todo afastamento — e ainda sinto que
jamais consegui te alcançar de verdade, por inteiro —,
tinha a sua maneira de proteger, demonstrar carinho. Na
minha carne morena, sempre que fecho os meus olhos,
ainda sinto as suas mãos firmes; na minha nuca, a sua
barba por fazer roçando contra a minha pele. Não sou
capaz de negar que há dias em que até mesmo o seu
sorriso, quase sempre acompanhado de um desviar de
olhos, bate à janela do meu quarto, e também à janela da
memória.
Antes de começar a escrever esta carta, tentei
pensar em quantas juras foram feitas por nós dois. Foram
muitas, não? Não me esqueço do dia que me chamou de
sua menina, tocando com a ponta dos dedos o meu rosto, o
contorno da minha boca. Perdi as contas de quantas horas
gastamos escolhendo o nome dos nossos filhos: eu falando
uma lista, e você apenas criticando todos os escolhidos.
Filhos que, bem sabíamos, não chegariam tão cedo — e
você sempre me dizia que era cedo demais para pensarmos
nessas coisas. Mas, Jorge, quando a eternidade é
prometida, não seria sempre “cedo demais”? Ainda tenho,
em algum canto do meu quarto, papéis com o meu nome
acompanhado do seu sobrenome. Que pecado há em
sonhar?
Eu era uma boa menina, quando te conheci. Na
verdade, acho que fui uma boa menina pelo tempo que
ficamos juntos. Ainda assim, agora eu me pergunto o que
restou quando você se foi, levando consigo o meu riso,
todas as promessas, sonhos e a minha pureza? Foi você o
meu primeiro homem, e um dia após o termino você
estava com outra. Sabe quanto tempo eu precisei para
conseguir ser tocada por outra pessoa? E, meu poeta, eu
estou falando da carne, pois a alma há tempos ninguém
toca — exceto eu mesma, quando decido pensar em você.
Ainda acredito que, uma hora ou outra, acabarei
me cansando dessas noites mal dormidas, das tantas festas
que me obrigo ir, dos corações que agora sou eu quem
machuco, das escapadas e lágrimas que, hoje em dia, eu
apenas sei provocar. Pode ser, sim, que eu encontre um
homem capaz de perdoar os meus primeiros tropeços, de
ficar ao meu lado quando o choro brotar, que saiba que
toda esta raiva é por medo de amar. Amar intensamente e,
mais uma vez, acabar sozinha, perdida no meio do
caminho, justo após ter escurecido. Ainda assim, o que
dizer? Se esse homem não chegar, Jorge, eu não morrerei.
Sobrevivi aos seus muitos erros, posso sobreviver aos
meus também; suportei o seu distanciamento e atração
pela autodestruição; eu posso suportar os meus defeitos
muito bem.
Hoje, graças a você, conheço na pele a dor que
você sente, desde o desgraçado dia em que conheceu
Anna. Não sei como alguém que se machucou tanto
conseguiu ser tão descuidado com quem apenas lhe fez
bem, criando uma menina amargurada, triste, apesar dos
olhos perfeitamente delineados, do batom retocado.
Homens como você criam mulheres como Anna ou
mulheres como Anna criam homens como você? É difícil
descobrir, e na verdade pouco importa. Apenas espero
que, um dia, você seja capaz de ficar e sentir — não
comigo, mas com outra mulher —, que consiga beber
menos e fumar menos. Por mais que eu nunca tenha
apontado para você, sei dos seus vícios, do quanto você
procura pelo alívio, mesmo sendo cego o bastante para
correr rumo à morte — senão do corpo, da sua alma.
Eu não te esqueci. Acredito até que jamais te
esquecerei. Você sempre será aquele erro que não falo, o
alarme que só apita quando estou diante da chance de uma
nova paixão, fazendo com que a minha cabeça fique cheia
de desconfianças, desesperança. Mas quero que saiba que
eu não choro mais, e que agora estou acostumada com a
nova mulher que eu sou. Ao me tornar dona de mim, eu
descobri que sou dona do mundo. E, no meu mundo, não
há mais espaço para meninos pequenos como você.