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“Acho que um dia você vai ser um grande escritor” disse

ele. “Mas”, acrescentou perversamente, “primeiro você


terá que sofrer um pouco. Quero dizer sofrer realmente,
porque você não sabe o que significa essa palavra. Você
apenas pensa que sofreu. Primeiro, você tem de amar
alguém.”

Trópico de Capricórnio, HENRY M ILLER.


Para ela.
“Basta! Eis a punição. – marchar!”, Arthur Rimbaud.

Depois de três semanas morando sozinho, não tive


outra escolha senão procurar um emprego qualquer para
pagar o aluguel e, sobrando alguns trocados, estocar
alguma comida que não fosse congelada, visto que eu
ainda não tinha comprado nenhum eletrodoméstico. Ainda
não descia pela garganta a ideia de gastar quase um salário
mínimo pagando por uma casa caindo aos pedaços, cheia
de infiltrações e rachaduras, pisos quebrados e sem a
tampa do vaso sanitário; mas, ainda assim era um teto, e
enquanto eu estivesse debaixo dele eu não precisaria me
preocupar com algum morador de rua querendo me socar
por tomar o seu espaço sob a ponte ou algum mauricinho
qualquer que, por puro tédio, resolvesse atear fogo ao
corpo ossudo e desleixado deste miserável. Apesar de
gastas, aquelas paredes eram tudo o que eu tinha agora –
as paredes, que hora ou outra eu teria que devolver ao Seu
Zé, o caseiro; um colchão usado posto num dos cantos do
quarto, uma mala com roupas e outra maior com romances
rabiscados e amarelados – Hemingway, Dostoievski,
James Joyce, Henry Miller e o velho Charles Bukowski.

Foram três semanas gastas mergulhando nas


páginas puídas dos livros, entupindo a marginália com
anotações sentimentais, aforismas, reflexões filosóficas
tão decadentes que fariam Tomás de Aquino e Agostinho
de Hipona desejarem com todas as suas forças o fim da
cidade dos homens, e o advento da cidade de Deus. Com a
cabeça inebriada pela prepotência da juventude, eu me
considerava um gênio da literatura aos dezessete anos,
sem ao menos ter escrito um único conto que prestasse.
Nas paredes do quarto, escrevi alguns versos
nietzschianos; e na cozinha, outros versos de William
Blake e Rimbaud, autores que eu julgava conhecer antes
mesmo de ter passado pela minha primeira temporada no
inferno. Com o notebook aberto diante de mim, com o
ponteiro do editor de texto oscilando sobre o papel branco,
fiquei horas e horas digitando palavras floreadas e
parágrafos apocalípticos, apenas para apagar tudo o que
havia produzido, sempre que eu chegava ao final da
página.

Antônio Fraga não precisou de um mês para


escrever Desabrigo – quanto tempo eu precisaria para
escrever o próximo diamante bruto da literatura bastarda?
Três semanas depois de alugar a casa, abri um maço de
Marlboro vermelho e, depois de duas ou três riscadas no
isqueiro, acendi o cigarro. Deixei que o gosto forte do
fumo se alojasse na minha boca, fazendo o meu coração
bater com a brutalidade dos socos que o meu pai me deu,
enquanto eu era apenas um menino. Por conta dele eu
havia saído de casa. Por conta da nossa briga animalesca
que resultou na figura de minha mãe com os olhos
vermelhos de tanto chorar e os lábios secos dos berros
dados; meu pai caído no chão, desmaiado após ser
sufocado; e eu, em silêncio, com o corpo trêmulo de
excitação por ter reagido, pela primeira vez, às violências
sofridas por anos. Sempre suportadas num silêncio
profundo e fúnebre. Não foram poucas as madrugadas
cortadas às claras, com as mãos repousadas sobre a pia do
banheiro, os olhos focados na figura do menino que me
encarava do outro lado do espelho, com os olhos vertendo
lágrimas como duas cachoeiras; o pescoço travando,
fazendo com que o queixo quase tocasse o ombro, numa
espécie de movimento causado por um soco invisível; os
dedos, mesmo pressionando o mármore da pia, se
contorcendo como se as mãos estivessem, de repente,
definhando. Noites em que contemplei a loucura se
aproximando, sorrindo para mim, levantando a barra da
sua saia e mostrando a sua buceta fria e consumidora.

“É melhor eu sair desta casa, antes que ele me leve


para a completa loucura” decidi, às presas, enquanto ele
era acudido pela minha mãe e eu metia algumas roupas
dentro de uma mala qualquer. Embora hoje eu acredite que
apenas uma extensa e profunda estupidez possa motivar
alguém a agir desta maneira, naquele momento pensei ser
movido por uma espécie de coragem juvenil, o primeiro
passo rumo à autonomia – ao proustiano “cume do
particular”. “Ao passar por aquela porta de ferro, que tanto
é instrumento para ameaças de expulsões, os meus
grilhões cairão e poderei ser quem de fato eu sou”, pensei
inocentemente.

Três semanas depois, eu era o homem dominado


pela fome, com roupa amarrotada, pedindo emprego como
faxineiro de um restaurante no shopping center da cidade;
recebendo das mãos do gerente, um meninote delicado de
pele rosada e cabelos penteados para o lado, o uniforme:
calças sociais de cor preta, uma camiseta de gola na cor
coral e um boné da mesma cor ridícula. “E não tire por
nada o boné da cabeça, entendeu?” ele repetiu duas, três
vezes, sem fazer questão de me explicar a razão de usar
boné dentro de um edifício que era completamente
coberto. “Ah! Mas você não pede por esperar, seu
mauricinho leite com pera. Um dia vocês, todos vocês,
descobrirão que o homem que limpava o chão deste
restaurante era o maior escritor dos últimos anos, ou
melhor, das últimas décadas!” eu sempre festejava
silenciosamente antes de molhar o esfregão no balde, e
pressioná-lo contra o piso pela milésima vez, no mesmo
dia.

– Moleque, coloque um sorriso na cara. Faz ideia


de quantos gostariam de estar no seu lugar?

– Imagino que muitos.

– Exatamente, pois então trate logo de pôr um


sorriso nessa cara, afinal, cliente algum quer jantar
olhando para a cara de um moleque que mais parece um
defunto.

Prometi para mim mesmo que, cedo ou tarde, eu


enfiaria o cabo do esfregão no rabo dele, e o faria limpar
cada piso sujo da praça de alimentação com o cu
latejando, pipocando de dor. Mas, por precisar – e não era
pouco – do emprego e do salário de miséria que eles me
pagavam, acenei segurando a aba do boné e forçando um
sorriso que, creio eu, deve ter saído meio torto, amarelado,
claramente dado contra a minha vontade. Para a minha
sorte, a risada debochada foi o suficiente para que ele
bufasse e saísse de perto a fim de se aproximar de alguma
atendente gostosa que ele estivesse cercando com
gracejos, embora jamais tenha conseguido arrancar um
sorriso ou uma piscadela indecente. Pinte de dourada uma
medalha de cobre e o mais desgraçado dentre os homens
se comportará como se fosse o mais poderoso ser de todos
os tempos. Capitães do asfalto, sempre sorridentes ao
lançar um de seus vizinhos ao pau de arara; capazes de
revirarem os olhos enlouquecidos e ficarem com o pau
duro ao estalarem o chicote contra o lombo alheio. “É uma
cadeia sem fim”, pensei, “ele tira o meu couro; outra
pessoa tira o couro dele, e outra pessoa tira o couro de
quem tira o couro dele; e, por fim, o cliente que, se de
repente, decidir comprar no restaurante ao lado fará com
que toda esta estrutura maquiavélica pereça vulgarmente,
sem razão alguma para ter sido erguida”.

Das dezesseis horas até meia noite, eu sentia a vida


escoar pelas minhas próprias mãos macias e pequenas,
diminuindo o meu espírito arrogante por meio de cada
ordem dada, cada chamada que um cliente emitia, pedindo
para que alguém limpasse a sujeira que o seu filho
pentelho fez ao empurrar para o chão um prato abarrotado
de comida, tudo por mera birra infantil; ou então
recolhendo as bandejas deixadas sobre as mesas, olhando
de um lado ao outro, embrulhando as sobras de um Triplo
Stacker do Burguer King e colocando nos bolsos, a fim de
comer ao chegar em casa – e é enlouquecedor perceber
como um miserável se torna invisível para a maioria,
mesmo vestindo a droga de uma camiseta cor coral,
mesmo usando um boné dentro de um prédio fechado.

“É coral e não laranja!” disse Vinícius, o gerente,


quando me passou o embrulho em meu primeiro dia de
emprego. Apostei comigo mesmo que ele nunca havia
metido a mão na massa, mesmo sendo bem mais velho que
eu. “Aposto que entrou como gerente por causa da
indicação de algum peixe grande”, acreditei enquanto o
via se afastar, tentando disfarçar a mania que tinha de
rebolar. Todas as suas ações, até aquele momento, só
comprovaram as minhas acusações: era apenas outro
derrotado tentando se sobrepor aos mais derrotados que
ele. “Chegará o dia em que você pagará por cada ordem,
por cada xingamento feito, meu chapa! Quando eu for o
autor mais vendido do país, eu voltarei neste restaurante e
pagarei o dobro para que você mesmo limpe a minha
sujeira”, prometi telepaticamente, permitindo-me apenas
um sorriso malicioso, sujo.

“No que estou me transformando?”.

Antes mesmo de ter recebido uma medalha de


cobre, eu já estava maquinando todas as ações prepotentes
de um homem que ostenta uma medalha de ouro e, um
bocado mais, uma coroa de diamantes. Respirei fundo e
pressionei o cabo do esfregão, forçando-o para baixo,
limpando com tanta potência que, se ficasse esfregando ali
por mais alguns segundos, provavelmente abriria um
buraco no piso. Depois de algumas horas, todo aquele
comportamento intelectualóide, que sempre gostei de
exibir, foi arrancado de mim secamente; e meu lado mais
sujo, animalesco, não apenas foi invocado como coroado;
atiçado com vara curta, porém presenteado com um longo
cetro. Nada mais passava pela minha cabeça senão
vingança, agressão, um cigarro e uma dose forte de bebida
para me ajudar a suportar o tranco de mais um dia de
serviço.

A forma como as pessoas se tratavam, de certa


maneira, parecia uma perspicaz conspiração para fazer dos
melhores homens da terra, criaturas assustadoras,
sufocadas pelos seus próprios sonhos e, por isso,
dominadas pela raiva de encarar, por oito horas diárias, a
desilusão coisificada.

Raiva que tomou os meus olhos, tão firmemente


focados nos olhos do gerente, quando ele me mandou
recolher toda comida que havia sobrado, misturá-la em
grandes sacolas plásticas, e jogá-las dentro de uma grande
caçamba de lixo, nos fundos do segundo andar. Arroz,
feijão tropeiro e carioca, peito de frango empanado e
batata frita, sushi e bolinhas de queijo; um montante que
encheu três sacolas transparentes – o que renderia um
digno banquete para um batalhão de recrutas, pior,
cristãos. Decidi que não seria tortura alguma eu ficar mais
alguns minutos no serviço, caso decidissem separar a
comida corretamente e doá-la aos miseráveis que, do lado
de fora, aguardavam por àquela hora. Eu era moleque e
mais sensível que hoje, certamente ajudaria de bom grado.
Mas, segundo o gerente, “se algum morador de rua comer
a nossa comida e passar mal, ele poderá nos processar e
faturar milhões!”. Como se um morador de rua, com o
corpo encolhido no meio de outros mendigos, tremendo de
frio e com a fome martelando o seu estômago com
pancadas brutais; ao receber, em mãos, um prato com
feijão, arroz, carne, salada e maionese fosse se preocupar
em arrumar um esquema ilícito, contratar um advogado,
abrir um processo contra a empresa, aguardar anos e, só
então, vencida a causa, largar a sua amigável caixa de
papelão e trocá-la por uma mansão com quatro banheiros!
Mesmo um homem tropeçante feito eu reconhece que é
preciso um padrão moral que consiga subjugar as relações
comerciais entre os animais de terno que nós somos. O
lucro pelo lucro nos levará a um fim decrépito, com as
mãos sujas de sangue e a mente atormentada pela memória
de todos aqueles que fizemos sofrer em troca de férias em
Paris ou Orlando.

Quando estava prestes a erguer a sacola, três


figuras familiares de relance me atingiram. Franzi o cenho,
estreitei os olhos e enxerguei quem eram aquelas pessoas.
Numa das mesas da praça de alimentação, meu pai e
minha mãe conversavam animados, enquanto a minha
irmã mais nova se divertia com o brinquedo de plástico de
um Mc Lanche Feliz. Embora não tivessem me visto,
saber que todos estavam naquela praça de alimentação me
atingiu de uma maneira inesperada e, quando dei por mim,
estava procurando algum lugar em que eu conseguisse me
esconder. “Se eu fosse um pouco mais paciente, eu estaria
comendo com eles e não aqui, esfregando o chão por oito
horas para comer pão com manteiga!” – mas a verdade é
que, naquela instante, fui tomado por uma generosidade
até então desconhecida, já que eu havia decidido substituir
a manteiga por mortadela, que era mais barata e poderia
ser usada no pão e com os ovos mexidos que eu raramente
fazia, apenas nos dias que eu queria me presentear. Pensei
na casa dos meus pais, completamente mobiliada e com
chuveiro quente; na minha cama, que não fora encontrada
nos fundos de um shopping center, e na dispensa sempre
abarrotada de comidas que, ainda amortecido pela
frescura, sempre rejeitei antes mesmo de prová-las.

O que tinha dado em mim para reagir com


violência ao meu próprio pai? Lembrei, enfim, da sua
mão gorda e calejada me tomando pelos cabelos e batendo
a minha cabeça contra o azulejo branco de riscos cinzas da
cozinha, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito,
nove vezes seguidas; berrando que para ligar a televisão
era preciso pedir a sua permissão e não a permissão da
minha mãe. Mãe que, ao ver a criatura saída do seu
próprio ventre sendo esmagada pela mão daquele que
lançou a semente que a fecundou, por ímpeto o segurou,
enquanto se entregava a um lamento desesperado.
Desespero que, apesar do silêncio forçado, beirou o pavor
quando meu pai a empurrou contra a parede e depois,
segurando-a pelo braço, arrastou seu corpo frágil pelo
corredor, lançando-a no chão do seu quarto, lugar em que
a desposava, dizendo que ficaria trancada por lá a fim de
que aprendesse o momento oportuno para ficar muda.
Ordem que foi interrompida, e porta que não foi trancada,
devido o meu surgimento impetuoso e quase heroico –
senão quixotesco – que berrando saltou contra o corpo
mais forte e firme daquele que, sempre que viajava a
serviço, dizia “cuide da sua mãe, agora você é o homem
da casa”. Presa em meu braço, a sua cabeça ficou
vermelha, enquanto o resto do corpo se debateu
desesperadamente. No lugar dos costumeiros berros
patriarcais, ecoou a minha voz clamando por aquilo que
ele, através de murros e pontapés, sempre exigiu de mim:

– VIRE HOMEM, SEU MALDITO!

Respirei profundamente e tentei me recompor.


Quando notei, os meus punhos estavam fechados e a
minha boca, tamanha era a raiva acumulada,
estranhamente retorcida. Por um segundo pensei em
caminhar à mesa para soca-lo um pouco mais; terminar o
espetáculo gritando com aquela que me gerou,
sentenciando que ela deveria abandoná-lo e procurar um
homem que a tratasse com cuidado, com carinho; pegar a
minha pequena irmã pelas mãos e dizer que, de agora em
diante, seria eu o tutor dela. Mas, não. Do que importava?
Eu estava certo, se continuasse naquela casa, por mais
alguns dias, eu enlouqueceria de tal maneira que pediria
para ser internado, num lapso de lucidez. “Antes padecer
de fome, enquanto busco tornar real aquilo que todas as
noites sonho, que crucificar o meu espírito em troca de um
prato de comida”, anotei os meus primeiros versos nas
paredes do crânio.

Segurei com firmeza a sacola plástica cheia de


comida e a ergui, colocando-a sobre o meu ombro
dolorido. Bufando feito um touro no momento do ataque
derradeiro, caminhei com altivez pela praça de
alimentação, passando diante da mesa em que eles
estavam sentados, embora o meu rosto permanecesse meio
escondido pelo volume que era carregado. Entretanto,
ainda assim, passei bem diante deles; forte e imperioso,
com o mesmo poderio que fez tombar o gigante que
assolava a minha infância e agora me fazia o maior dentre
todos os meninos de sonhos destruídos que esfregavam o
chão para que outros meninos da mesma idade passassem,
com os sapatos sujos, em busca de uma roupa de marca
que justificasse seu vazio interior e a sua necessidade de
aceitação. Caminhei cultivando dentro de mim um ódio
contra tudo, uma raiva contra todos. Não só Vinícius, o
gerente pavoneado, mas também os meus pais ainda
ouviriam falar de mim:

– Aquele não é o Jorginho? Sim, veja! Amor, ele


falou Jorge Andrade! É o nosso Jorge, querido! O que é
aquilo? Ele está sendo aplaudido por todos, até mesmo por
aqueles três velhos escritores que já morreram! Como é
mesmo o nome deles? Céline, Ernest e Fante, não?! Oh
Deus, querido, o nosso menino conseguiu. Ele é um gênio!

Com um chute forte empurrei as portas que, por


conta do impacto, estouraram contra as duas paredes
laterais; e se fecharam logo assim que passei. Alguns
faxineiros, no lado de dentro, paqueravam as atendentes de
outros restaurantes, apertando-lhes as dobras, as tetas,
arrancando algumas risadas e bofetadas. Assim que
cheguei, coloquei com cuidado a sacola dentro da grande
caçamba que fora feita de lixeira, lentamente para que
nada tombasse, contaminando assim a comida com os
dejetos ali despejados. Qualquer cuidado tolo, ínfimo, algo
que diminuísse a humilhação dos homens famintos que,
um pouco afastados, esperaram que eu me distanciasse
para uma zona segura, antes de invadirem os fundos do
segundo andar daquele shopping center para se
banquetearem com aquilo que o restaurante havia
rejeitado. Despreocupado com as consequências, decidi
permanecer naquele lugar por algum tempo. “Eles não
sentirão a minha falta por uns dois minutos”, resmunguei,
enquanto observava os homens e mulheres passarem por
mim num tímido trote rumo às sacolas, com os olhos
vidrados no chão e os ombros curvados para frente, quase
sempre corcundas.

– Enfia essa mão no cu, maldito! Você acabou de


comer lasanha e já quer comer de novo? Ora essa, maldito,
deixe comer quem ainda está de barriga vazia!

– Não fode! Se eu for caridoso contigo, quem será


comigo?

– Filho de uma puta! Quero o pedaço de carne!


Não coma, maldito! O que você quer em troca? O quê?
Quer ver minha teta?! Está louco? Quê? Só uma teta e
nada mais, certo? Era olhar e não tocar, desgraçado!

Enfiei a mão dentro do bolso e peguei um cigarro.


Permiti que as minhas pesadas pálpebras caíssem e que o
vento tocasse o meu rosto, depois de um dia exaustivo de
serviço, com a mesma candura que a mão daquela que me
pariu, um dia, me tocou. O meu corpo doía por inteiro e a
minha alma estava estirada no chão, sendo esmagada por
uma legião de sapateadores revoltados por conta das
calças collant que haviam entrado em seus respectivos
regos. No outro bolso, encontrei um embrulho e o abri
cuidadosamente: dois pães, três carnes, queijo, bacon e
molho estupendo. Um luxo. Lambi os beiços e dei uma
mordida bárbara, selvagem; estava frio, mas ainda assim
foi como comer algo preparado pelas mãos de todos os
santos. Nunca havia comido, até então, um sanduíche tão
gostoso. Nem mesmo quando havia pago, centavo por
centavo por ele e o recebido quente, acompanhado de
batatas fritas e refrigerante grátis por meia hora, mediante
apresentação da nota fiscal.

Dando um peteleco, taquei para longe a bituca do


cigarro e limpei nas calças a mão engordurada. Dobrei as
minhas pernas e me sentei num dos cantos, apoiando as
minhas costas doloridas na parede e repousando uma das
mãos sobre a barriga recentemente forrada. Em pouco
tempo o gerente entraria por aquelas portas, enfurecido,
doido para comer o meu cu com pó de pedra, sem dar uma
cuspida sequer na forma de um presente, perguntando a
razão da minha demora. Ele, certamente, não se
preocuparia com a minha dor na coluna, as minhas pernas,
os meus ombros e pescoço; menos ainda com a minha
mente ainda destroçada pela imagem da minha família
sorrindo e seguindo os seus dias, se virando muito bem
sem mim. Jurei que se ele entrasse nos próximos minutos
eu me esticaria, pegaria o esfregão e o enfiaria nele, antes
mesmo de qualquer grito ser dado. Eu veria, satisfeito,
aquele rostinho redondo e rosado ficar vermelho de
desespero e o seu corpo delicado sair saltitando pela praça
de alimentação, limpando o chão enquanto o cabo
estivesse preso dentro do seu rabo e as cerdas do esfregão
roçassem o piso, conforme se deslocava confuso e
verdadeiramente envergonhado. Apenas assim ele saberia
o que é ficar cansado e deixaria de me dar tantas ordens,
provocando menos tormento que o necessário.

Enquanto as minhas costas escorregavam pela


parede olhei para os homens e mulheres que mordiscando
um pedaço um pedaço de carne. Cessavam os gritos e
suavizavam as suas expressões rústicas, quase severas, à
medida que se afastavam da caçamba e mergulhavam na
noite fria e escura. Quando um moleque de nove ou dez
anos passou diante de mim, tive a minha atenção
arrebatada. Através de passos pequenos e incertos, por
vezes apressados, acompanhava a sua mãe que, segurando
uma bolsa menor com uma das mãos e ajeitando a alça da
sua camiseta com a outra, cantarolava uma canção cristã
que ouvi quando era pequeno e, sem pestanejar,
acompanhava minha mãe para os cultos dominicais. Antes
de sair, o pequeno estancou como se ouvisse os meus
pensamentos, olhou para trás, bem no fundo dos meus
olhos e, sorrindo um sorriso desdentado, acenou se
despedindo. Depois correu broncamente, enfim, rumo à
boca da noite.

Parte do que escrevo é para buscar a palavra que


definirá, por excelência, aquilo que encontrei no fundo
daqueles poços escuros, também chamados por olhos. A
palavra que resumirá o domínio da estranha sensação
provada no segundo em que o abismo, perdidamente
cansado de ser encarado, devolve o olhar com pupilas
desprovidas de inocência e, por isso, cruelmente justas. Os
outros faxineiros e as atendentes, aos poucos, saíam
deixando para trás promessas de encontros e xingamentos
seguidos de gargalhadas espalhafatosas. Faltavam apenas
cinco minutos para o fim do expediente, mas ainda era
segunda-feira.
UM RABO QUE ABRIGAVA O MUNDO
“Com efeito, a respeito do olho parece impossível
pronunciar outra palavra que não seja sedução, pois
nada é tão atraente quanto ele no corpo dos animais e
dos homens”, Georges Bataille .

Às três da madrugada, acordei com os berros


desesperados de Vera Lúcia. Empapado de suor, balancei
o meu corpo amassando alguns papéis cheios de anotações
que estavam espalhados pela cama e fiz cair no chão do
cômodo um exemplar de capa dura vermelha e páginas
amareladas de o O sol também se levanta, escrito pelo
“papa” Ernest Hemingway. Esbravejei alguns
xingamentos destinados à sua quinta geração e me sentei
na beirada da cama. Esticando-me o quanto meus
músculos doloridos permitiram, peguei um cigarro sobre o
criado-mudo e provei o gosto de um fumo ruim. Depois de
oito horas em pé, andando de um lado para outro com um
esfregão nas mãos, limpando o chão da praça de
alimentação para que, no minuto seguinte, outro
desgraçado sujasse propositalmente ou por puro desleixo,
era enlouquecedor ser acordado daquela maneira, aos
berros desesperados no meio de madrugada – era um
tormento.

Respirei fundo e, depois de algum tempo corrido,


tentei fazer o ódio passar. Vera Lúcia era uma boa vizinha
para mim – boa de curvas, boa de coração. Nos meus
primeiros dias após a mudança, foi ela quem mais me
ajudou a sobreviver, reunindo as condições básicas para
abandonar a completa miséria. Foi dela o primeiro colchão
que tive, antes do colchão de agora encontrado na pilha de
objetos rejeitados dos estabelecimentos do shopping.
Buscando-o debaixo da cama, apoiando os seus joelhos no
chão e ficando de quatro, erguendo um rabo enorme preso
numa cintura fina. Bem mais de uma década mais velha
que eu, Vera Lúcia era uma balzaquiana deslumbrante;
suportando na face morena, quase âmbar, os fortes traços
das manauaras, os olhos rasgados nos cantos, beiços
voluptuosos; um corpo curvilíneo de quadris largos e uma
bunda enorme, a barriga com um piercing balançando,
sempre notado quando ela decidia usar uma das camisetas
curtas que adorava; os seios pequenos, mas graciosos nos
dóceis morrinhos que causavam sob o pano; os cabelos
longos e escuros que despencavam da cabeça até o limite
das costas. Creio que, anos depois, não existiriam tantas
outras balzaquianas na minha vida se, antes de todas, não
houvesse surgido Vera Lúcia – que era mãe de Carlos, o
pequeno Carlinhos, nome escolhido para homenagear o
pai que era sargento de um batalhão qualquer, ela me
contou. Sargento que era ajuntado de uma outra mulher
em Duque de Caxias.

Por isso os berros dados às três da madrugada.

Aos dezessete anos de idade, a mulher deixou para


trás seu pai e sua mãe, gastou escassos recursos
financeiros comprando uma passagem de ônibus. Entrou
no transporte caindo aos pedaços e cortou o país de uma
extremidade a outra pela rota daqueles que descem do
Norte cujo sol não é tão bonito. Tudo ousadamente feito a
fim de encontrar o homem que, numa noite de prazer,
havia roubado o seu ar, o seu pensamento e coração, além
de rompido o selo de sua buceta apertada. Tendo em mãos
apenas um pedaço de papel com o quartel em que Carlos
estava alojado, não arredou o pé da guarita até que o
encontrassem e o chamassem. Desde os anos da mocidade,
ela era arredia – a menina de inocência roubada encarou,
no rosto de Andrade, o desespero ao vê-la ali, com as
malas nas mãos, com a barriga de fora e o piercing
pendulando, a regular os ponteiros do relógio que marcava
as poucas horas restantes que o homem infiel teria.

– O que você está fazendo aqui?

– Ai meu preto, não consegui esquecer a noite que


nós tivemos. Não me esqueci do seu beijo e do seu cheiro.
Eu vim atrás do meu homem!

– E as malas, Vera Lúcia?

– Esqueceu que, enquanto me fazia mulher, você


disse que se eu fosse ao Rio de Janeiro a gente se casaria?
Pois cá estou, homem.

Anos depois do acontecimento, ela me contou que


naquele mesmo segundo a máscara caiu e caiu antes que
ele pudesse encontrar qualquer desculpa esfarrapada que
fosse capaz de enganá-la. Quando encarar os olhos
esbugalhados de Andrade se tornou difícil de suportar,
Vera Lúcia fez cair os próprios olhos e, num dos dedos
grossos e curtos, reparou que uma aliança cercava o dedo
grosso do homem. “Uma aliança de casamento?”,
perguntou para si mesma. O espanto subitamente dominou
o seu peito, depois a raiva que foi escoada enquanto ela se
debatia feito um peixe recém-fisgado. Andrade, mais para
controlá-la que oferecer consolação, a abraçou. Depois de
se debater desesperadamente, a menina cedeu ao
sentimento de desolação e começou a chorar. Berrou o
mais alto que pôde e o xingou das mais desprezíveis coisas
que conseguiu pensar, dizendo para quem quisesse ouvir
que ele a desonrara; que ele fora o seu primeiro homem
devendo, portando, ser também o último.

– EU TE DEI O MEU CU, CARLOS!

Tomado pela vergonha, o sargento forçou a sua


mão de dedos curtos e grossos contra o rosto dela, tapando
a sua boca e abafando os gritos. Estando perto dele, Vera
sentiu o cheiro do seu corpo e, aos poucos, amoleceu.
“Antes eu tivesse aproveitado a oportunidade para acabar
com ele, bebê!” repetiu algumas vezes para mim, de
costas, estendendo as roupas no varal enquanto eu, sentado
num velho banco de madeira, mordia um naco endurecido
de pão com manteiga, engolia três dedos de café e
observava o movimento do seu rabo – indo para um lado e
depois para o outro, com a popa aparecendo por baixo de
um shortinho de tecido fino.

– Bebê, depois de chorar e espernear, ficar


desesperada e envergonhada, ele disse que cuidaria de
mim. Você é um homem, sabe que é fácil convencer uma
mulher apaixonada. Basta pegar no corpo com jeitinho,
dando um beijo no cangote, falando umas coisinhas
bonitas ao pé do ouvido... Então me enfiou neste buraco,
me fez um filho e não largou daquela mulher, pobre
coitada! De lá pra cá, só soube prometer e prometer um
pouco mais. E você sabe bem, bebê, como a promessa de
um homem infiel convence melhor que a promessa de um
político esperto.

Carlinhos, que agora era um moleque forte e em


formação, não sabia que o seu pai tinha outra família na
cidade vizinha. Ela me contou que, para evitar a decepção
e rebeldia do menino, preferiu mentir dizendo que o seu
pai não conseguia estar sempre presente por viajar
bastante para incontáveis missões de paz espalhadas por
todos os cantos do mundo. Eu não me esqueço do aperto
no peito que senti e do meu estômago embrulhado no dia
em que o ouvi dizer, perdido num orgulho infantil, que o
pai era um grandioso herói e que, quando crescesse,
gostaria de ser incrível e bom como ele.

“Tio Jorge, o senhor sabia que o meu pai está lá na


África ajudando as crianças com fome? Eu vi na televisão
que lá é cheio de leão!” ele disse, certo dia, enquanto
folheava um pequeno livro infantil cheio de cores e
desenhos de animais que eu encontrei nos fundos de uma
livraria. Não sei mais se o pior é acreditar que o pai é um
herói, enquanto todos sabem que na verdade ele é um
absoluto filho de uma puta; ou saber que ele é um filho da
puta, enquanto todos pensam que ele é um grande herói.
Manter acesa certas ilusões da infância não me parece,
necessariamente, uma má ideia, visto que a maturidade
traz, em suas mãos frias, alguns punhados de amargura
para despejar homeopaticamente na vida dos homens e
mulheres que, perdidos, agem como cegos num tiroteio:
perambulando pelas ruas sem muito compreender.

– Já parou para contar por quantos anos eu estou


neste buraco à sua espera, homem?! Eu não quero mais
saber de desculpas! A única coisa que espero de você é
que visite o seu filho. Ele não é culpado pela burrice da
mãe ou pela cafajestagem do pai, Carlos!

De repente, eu ouvi um grande estalo. Rápido


como um tiro e assustador como um estouro. A voz de
Vera Lúcia foi contida, enquanto a de Andrade crescia e
reverberava pela vila através de acusações e maldições.
“Cafajeste? Eu não te chamei para vir atrás de mim! Quem
decidiu abrir as pernas no primeiro encontro foi você, sua
puta!” ele repetia incontáveis vezes. Apesar do meu
coração ateu, torci para que Carlinhos não estivesse em
casa naquele instante. No segundo que consegui digerir o
caos que estava ocorrendo, me ergui e peguei uma garrafa
de vodca que estava por perto, num canto do chão. Em
silêncio, mas por meio de passos firmes e rápidos, rumei
para a casa vizinha.

A porta estava entreaberta. Forcei meu pé contra a


madeira que se abriu batendo fortemente contra a parede.
Andrade estava de costas para mim e o corpo de Vera
Lúcia esticado no chão, preso entre a figura assustadora do
seu amado e as paredes infiltradas, com algumas
fotografias das festas escolares que Carlinhos participou
emolduradas. No momento em que ele, por instinto, virou
sua cabeça para a entrada da casa, eu o acertei com a
garrafa que explodiu em vários estilhaços, deixando em
minha mão apenas a boca do recipiente.

Quando ele tombou para um dos lados, eu avancei


sobre o seu corpo e, movido pelo ímpeto, peguei a bituca
de um cigarro que estava preso à minha boca e o segurei,
com a ponta dos dedos, diante do seu olho esquerdo.
Apesar da idade, ela era um homem muito mais troncudo
que eu e, por mais que a juventude seja uma boa aliada
numa briga dando mais agilidade e energia, bastaria um
soco bem encaixado na minha fuça para que eu ficasse
abalado, atordoado. Eu tinha que aproveitar aquele
momento de fragilidade, retroceder não era uma opção.

– Nunca mais encoste a sua mão suja nela,


entendeu? Eu juro que apagarei o meu cigarro no meio do
seu olho, seu merda. Juro deixar uma marca que te
lembrará para sempre da covardia que fez.
A coragem para encarar o destino é, sem dúvida
alguma, a minha dádiva, dos que não possuem coisa
alguma para perder. Eu era apenas um jovem homem sem
contato com os próprios pais, sem dinheiro, sem esposa ou
filhos; sem grandes sonhos ou expectativas de melhoras
para a humanidade. Diferente de Vera Lúcia, que era uma
boa mulher e, além disso, mãe de um bom menino. Apesar
dos tropeços da vida e das ciladas que armaram na sua
juventude, ainda era uma boa pessoa, bastante generosa.
Encontrou forças na solidão e na vergonha pública e,
numa penosa labuta, criou o seu moleque com bons
valores firmados, bem definidos. Às vezes a vida é injusta
com pessoas boas; e boa demais para algumas pessoas
injustas. Não naquele momento que, mesmo enfurecido, o
meu discernimento não estava distorcido. “Antes falhar
como escritor e dar certo como homem que dar errado
como homem que, ao mesmo tempo, também é dar errado
como escritor”.

Andrade se debateu e me empurrou, conseguindo


por fim sair de baixo de mim. Apesar das expressões
severas e dos xingamentos, eu encontrei o desespero no
fundo dos seus olhos. Ele se arrastou para longe de mim e,
se apoiando no sofá de dois lugares com um rasgado que
expunha o estofo, se levantou e foi embora, deixando para
trás algumas gotas de sangue e a promessa de que nunca
mais voltaria – única promessa que, segundo Vera, ele
seria capaz de cumprir.

Respirei fundo e limpei o suor da testa com as


costas da mão. Com o sangue quente, dei um último trago
na bituca de cigarro, queimando o filtro e a ponta dos
dedos. Joguei para longe a bituca, fazendo-a passar pelas
janelas abertas. Sentada no sofá, a mulher escondia o rosto
entre as mãos espalmadas e chorava desesperadamente,
soluçando e fungando.

Apesar da minha constante seriedade, apenas


abandonada entre os mais chegados ou quando estou
embriagado pelo álcool, eu nunca aprendi a lidar bem com
o choro de uma mulher. É pior do que ser acertado por um
cruzado perfeito, um gancho bem dado no meio do queixo.
Aqueles soluços quebrariam o músculo pulsante de
qualquer brutamonte, imagine de um homem mal
alimentado feito eu. Em silêncio, fechei a porta e dei uma
volta pela casa, procurando por Carlinhos. Por sorte, não o
encontrei no quarto. Andei até a cozinha e enchi de água
um copo de vidro que tinha colado um adesivo com escrito
“milho verde” corroído pelo tempo. Acariciando os seus
longos cabelos escuros, pedi para que bebesse tudo e
tentasse respirar fundo.

– Ai! Eu não queria ter te metido nisso, bebê!


Perdoa eu, perdoa...

Depois de pedir para que eu passasse a noite ali,


por ter medo que o sargento Andrade pudesse retornar
para se vingar, Vera me explicou que o seu filho Carlinhos
estava na casa de um amigo da escola que o convidou para
dormir lá, depois de horas jogando o videogame novo.
Agradeceu aos céus por isso, dizendo que jamais
encontraria perdão se algo houvesse acontecido com o
filho; repetindo que seria capaz de esfaquear o homem
caso decidisse descontar no menino a fúria sentida.

– Mas ainda bem que você apareceu! Ele seria


capaz de me matar, tenho certeza disso...
– Não se preocupe. O pior já passou. Agora, por
que você não toma um banho quente para relaxar o corpo
e, depois, tenta descansar por algumas horas?

Nitidamente cabisbaixa, ergueu-se e abandonou o


cômodo limpando a coriza que descia pelas suas narinas
com as costas da mão direita; com os olhos ainda
vermelhos de tanto chorar, e balançando aquele rabo
enorme pelo corredor, enquanto procurava pelo banheiro.
Os cacos da garrafa de vodca que eu quebrei estavam
espalhados pelo chão, assim como um pouco de sangue,
certamente saído da cabeça do homem. Atrás da porta de
madeira da cozinha, eu peguei a vassoura e a pá para
recolher os estilhaços e tentar ajeitar o que fosse possível.
“Oito horas diárias limpando o chão? Continue a varrer
quando chegar em casa, seu corno!” Por fim, passei um
pano molhado e estiquei o tapete escuro. Assim que ela
abandonou o banheiro, eu estava na cozinha guardando
tudo atrás da porta, e de lá ouvi os agradecimentos feitos

– Ai, bebê! Você é um anjo por ter limpado tudo –


começou a dizer, quase num berro de surpresa, enquanto
passava pela sala – Eu nem sei como posso te agradecer...

Quando chegou à cozinha, eu quis dizer que não


precisava agradecer e que todos os favores tinham sido
quitados naquele instante, ao vê-la vestida daquela
maneira. Com os cabelos molhados divididos pelos
ombros, algumas mechas molharam, na altura dos seios, a
camisola de tecido fino que vestia, estampando a grande
cara do Mickey Mouse. As suas pernas – e que pernas! –
estavam desnudas e apostei que, se ela desse uma volta, eu
conseguiria enxergar muito mais que a popa da sua bunda.
– Você não se incomoda, não é? Eu tenho idade
para ser a sua tia!

“Que bela tia seria!”, constatei. Aposto que a


minha infância seria muito mais divertida, disposta do
material imaginativo para os mais longos banhos. Afastei
os pensamentos vadios da minha mente e arrastei uma das
cadeiras para que eu pudesse me sentar. Imaginar
sacanagem com uma mulher que tinha acabado de chorar e
apanhar, e que, bem diante dos meus olhos esboçava sua
fragilidade emocional, era bastante egoísta, mesmo para
mim. Naquele momento, eu não estava disposto a fingir
não enxergar todos os anos que Vera Lúcia suportou sendo
usada como um mero buraco criado para que um homem
enfiasse o seu membro pulsante, mas, com o passar do
tempo, murcho e preguiçoso. Não para que eu tivesse o
prazer momentâneo de urrar até esvaziar o meu saco.
Éramos dois desgraçados pela vida, párias vagando pelo
esmo dos dias – e tanta merda aproxima as pessoas,
harmoniza os corações numa sensibilidade sofrida, quase
desesperada, quando não os torna inimigos, odiosos galos
rinhando enquanto apostadores bradam excitados.

– Eu preciso beber, sabe? Você tem algo forte na


sua casa, bebê?

– Sinto muito, querida. A minha última garrafa foi


parar na cabeça do Andrade.

– Hm... Será que eu tenho alguma coisa? –


Perguntou mais para si mesma que para mim, enquanto
abria a geladeira e se abaixava para vasculhar as gavetas
inferiores. Não pude deixar de ver metade do seu rabo e a
calcinha de renda preta entre as coxas grossas. – Ah!
Achei uma garrafa de vinho! Você bebe comigo?
– Não sou muito bebedor de vinho, mas sou
menos ainda de rejeitar bebida.

Ela abriu um largo sorriso e, por um momento, o


rosto ficou completamente iluminado, escondendo a parte
vermelha marcada pelo tapa. Eu poderia me acostumar – e
sem grande tormento – aos sorrisos de uma mulher como
ela: doce e com um corpo que poderia ser um abrigo numa
noite tempestiva. De repente, sem grandes ou profundas
explicações, fui preenchido por uma fúria desmedida. Quis
voltar os ponteiros do relógio e ter socado uma, duas, três,
quatro, cinco vezes, ou quantas fossem necessárias, a fuça
fodida de Andrade; desmontá-lo até que o nariz estivesse
partido e os beiços estourados. Apesar de todas as tristezas
acumuladas em seus dias, Vera Lúcia aquecia o coração
mastigado e cuspido de um homem feito eu; pensei, então,
nos poderes que o seu sorriso e o seu rabo abrigavam aos
dezoito, dezenove anos, quando o brilho dos olhos ainda
não tinha sido roubado. De imponente menina apaixonada
para a desiludida mulher afetuosa. As pessoas
simplesmente consomem a alma, o espírito, tudo aquilo
que a outra tem de melhor; domam o comportamento
alheio por meio de doces mentiras, cândidas promessas
que jamais serão cumpridas; e quando eles, finalmente,
conseguem possuir tudo o que querem; dispensam a
carcaça vazia, desprovida de vida, numa sarjeta qualquer
e, lambendo os dedos satisfatoriamente, caminham rumo
às próximas vítimas.

Despejou o vinho em dois copos e empurrou um


para mim. Esticando-se para alcançar um rádio velho
colocado numa prateleira de madeira pregada à parede,
sobre a pia, girou o botão passando por várias estações,
fazendo soar pela noite o chiado e canções que eram
rapidamente interrompidas. Depois de dar uma bela golada
no vinho barato, observei as curvas deliciosas de Vera
Lúcia que, na ponta dos pés, empinava o rabo enorme,
erguendo a fina camisola do Mickey Mouse, revelando
parte da carne e da calcinha enfiada no rego. Na minha
mente uma chuva de imagens surgiu, e em todas elas Vera
Lúcia gemia de prazer, sussurrava o meu nome, implorava
por mais das minhas chupadas, dos meus toques, das
minhas estocadas. Quando dei por mim, percebi que ela
me olhava por cima dos ombros, com os lábios
entreabertos, com um olhar que não era acusador, mas
que, no entanto, também não era receptivo – apenas
curioso, suponho. Por quanto tempo teria me encarado? O
suficiente para ter visto a minha expressão desejosa ao
admirá-la? Num súbito silêncio, voltou o seu rosto para o
rádio e continuou passando pelas estações, até que parou
ao ouvir a voz rasgada, oriunda do mais escuro beco do
coração.

– Gosta de Belchior? A voz dele fala muito


comigo, sabe, bebê? É voz de gente sofrida, mas que,
apesar de todas as coisas, não desiste. Se eu pudesse, faria
como ele e fugiria lá para a Patagônia, sei lá! Ou, quem
sabe, voltaria para Manaus, mesmo.

Vera Lúcia, apesar dos áridos anos acumulados nas


costas, do corpo santificado em desejo, ainda conservava
uma meninice de um espanto encantador. Longe de ser
uma birrenta dissimulada, era uma espécie de balzaquiana
com espírito de ninfeta. As suas manifestações inocentes,
despretensiosas, quase num ronronar felino, surgiam nos
momentos menos esperados e quase sempre privados de
grandes interesses – exceto ser ouvida; ser quem de fato
era e não correr o risco de ser atingida por isso – o que,
nos dias de hoje, parece ser um querer impossível de se
realizar. Sempre que penso em Vera Lúcia, minha bruta
flor manauara, um assombro espreita os meus sorrisos
como um manto escuro que cresce até conquistar vida
própria: pequena menina desiludida, quantos sonhos foram
roubados por meio dos toques brutos e enganadores de
Andrade? O que seria dela se, depois de uma madrugada
ao lado do homem, acordasse e seguisse a sua vida
normalmente, sem pensar no marinheiro que, de volta ao
oceano, retornava aos braços da sua família? Mas sempre
somos tragados pela discórdia, guiados pelos erros, como
se fosse uma blasfêmia desejar uma vida mansa e plena,
apesar do incêndio incontrolável que faz arder os nossos
dias.

... Meu bem, talvez você possa compreender a


minha solidão
O meu som, e a minha fúria e essa pressa de
viver
E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza
E arriscar tudo de novo com paixão...

Ao se sentar diante de mim, percebi que ela estava


diferente. Os seus olhos estavam fixos nos meus, mas era
possível perceber que a sua cabeça estava a mil. Eu estava
sendo analisado, colocado numa balança, sendo medido.

– Por que você está me encarando assim?

– Só estava pensando, bebê. Queria ter te


conhecido quando eu era mais nova. Seria bem melhor que
ter conhecido aquele traste!

– Mas agora você me conhece, Vera. E eu estou


bem aqui, na sua frente.
– Só que agora eu já estou ficando enrugada, tenho
celulite e estrias, daqui a pouco fico toda caída,
pelancuda...

Respondeu enquanto se levantava e caminhava


rumo à janela aberta. Ainda sentado, peguei um cigarro do
seu maço jogado sobre a mesa, o acendi e logo depois vi o
seu rabo apetitoso se afastar. Era um senhor rabo! Levei a
minha mão ao rosto e cocei a barba desgrenhada,
pensando na espécie de homem que deixa de invadir um
paraíso daqueles por uma causa tão imbecil. De certo que
entram na piscina descendo pela escadinha, pelo raso. Não
se tornou raridade encontra-los por aí, pelas ruas, quase
sempre ostentando uma virilidade forçada, teatral. Às
vezes penso que há uma conspiração, por trás de tudo isso,
uma ideia maquiavélica que, há anos, está moldando
homens sem peito; incapazes de chupar uma buceta
cabeluda e que, certamente, tocam punheta segurando o
pau com um guardanapo. Dei um último trago e lancei o
cigarro dentro da pia. Sem pensar duas vezes, andei até
Vera Lúcia e a tomei em meus braços, provando o sabor
de vinho da sua boca, embriagando-me com a dança da
sua língua. Coloquei-a de costas para mim, arranquei a sua
calcinha e, segurando com as duas mãos a carne farta
daquele rabo, eu afastei as duas bandas e enfiei ali a minha
cara.

– Ai, bebê, que delícia...

Chupei o seu cu com desejo, enquanto esfregava a


sua buceta molhada e quente. Belchior rasgava a
madrugada com sua navalha feita de carnalidade,
insinuando que somente o desejo, a falência desmedida,
traz à tona a vida que, aos poucos, se esvai pela
racionalidade árida – o sertão está em toda parte,
principalmente dentro de nós. Vera Lúcia gemeu, chamou
meu nome; com a parte de cima do corpo para fora da
janela, encarou o céu noturno, as estrelas que cintilavam
enquanto o seu cu era desvendado pela minha língua
endurecida, enquanto seu clitóris sentia meus dedos
encharcados que, por afobação, cutucava a sua buceta no
fundo, apenas para senti-la fechar o rabo, ao reagir, quase
me matando sufocado de tesão.

No quarto, deitados sobre a cama, depois de termos


fodido com vontade, Vera Lúcia adormeceu. Na ponta dos
dedos dos pés, saí do cômodo sem fazer barulho. Ela
dormia suavemente e, depois de toda confusão que havia
enfrentado, depois do gás gasto comigo, ela merecia um
período de descanso solitário. Na cozinha, desliguei o
rádio. Apesar de sentir o meu corpo dolorido, pedindo por
algumas horas de sono, a minha cabeça não parava de
funcionar, vomitar questionamentos que um homem feito
eu é incapaz de responder. Ainda assim, por que eu não
conseguia parar de pensar no tormento por ela sentido?
Por qual maldita razão eu temi pela sanidade de
Carlinhos? Roubei mais um cigarro do seu maço; no
balcão, peguei um bloco de papel e uma caneta azul de
tampa mordida.

Vera Lúcia...

Depois de escrever o seu nome e olhá-lo por alguns


minutos, enquanto o filtro do cigarro queimava entre os
meus dedos, despejei sobre o papel tudo aquilo que estava
dentro do meu crânio. As palavras não brotaram com
suavidade – elas vazaram pelos meus poros com fúria,
rapidez, com uma força devastadora que fez com que eu
ficasse dobrado sobre o bloco, quase o devorando,
protegendo aquilo que, de repente, estava surgindo talvez
não pela minha criação, mas por meu intermédio. Do
mesmo jeito que uma ponte não faz surgir outra cidade,
apenas interliga dois lugares. As palavras corriam por
mim, fluíam pelas minhas veias, artérias, fio de prata,
qualquer porra que pudesse ser um condutor – até estourar
no papel, fixando o que antes era etéreo, regalo metafísico,
brinquedinho do plano das ideias.

Desde moleque sempre fui um acolhedor afoito,


tratando por meu aquilo que nunca me pertenceu, que
sequer teve a pretensão de permanecer ao meu lado.
Cercava, com os meus braços finos, corpos que escorriam
como se fossem inteiramente feitos d’água, incapazes de
serem retidos daquela maneira – ou ainda como o vapor
que é levado pelo vento e logo desaparece.

Quando terminei, olhei com cuidado para a folha


pautada rabiscada com tinta azul: versos curtos, sem
grandes floreios ou exaltações ao deus sol, ao deus vento.
Um poema narrado, pretensioso por seguir unicamente as
suas próprias regras, ainda que quase vivo, palpável. “Eu
sou Jorge Andrade, o deus da vivência! Eu sou o príncipe
das sarjetas!” debochei enquanto apertava a ponta do
cigarro contra a folha que, ao queimar, deixou uma marca
amarronzada nas bordas do pequeno rombo. Pensei na
buceta escura de Vera Lúcia, na forma como o buraco da
sua intimidade me pareceu acolhedor, quente como um
abraço dado pela mãe no filho que, por muito tempo,
permaneceu distante; pensei no bucetão que mais parecia
uma rosa desabrochada, com as pétalas saltando para fora
a fim de esbanjarem suas belezas para um mundo
decadente.

“Xereca é boa, mas pode levar um homem ao


precipício, moleque” meu pai me disse, anos antes,
quando me viu agir feito um estúpido, gastando mais
dinheiro que eu tinha para comprar presentes caros para
uma mulher que só estava interessada em montar um novo
guarda-roupa. Entre os miseráveis, há mais sabedoria que
supõem as nossas vãs academias. Algo que só pode ser
descoberto quando seguramos o cabo de uma enxada,
carregamos nas costas suadas um saco de cimento;
genialidade difundida entre os cachaceiros que, depois de
um maldito dia de labuta, sendo a manga que o cão chupa,
pedem duas doses para revigorar o corpo e amansar o
espírito. Lições que são passadas com o desdém de quem
sabe que, apesar do pouco estudo, é um grande pensador;
semelhante aos anciãos que, encaravam os presos
delicados das Recordações da casa dos mortos. É preciso
sentir certas coisas, encarar algumas experiências – da
mesma maneira que somente o desafortunado que levou
um soco na cara saberia descrever a dor que se sente ao ser
atingido.

Andrade usou Vera Lúcia, enquanto ela ainda era


uma menina perambulando com o piercing pendulando no
umbigo, pelas ruas de Manaus. Eu usei Vera Lúcia
quando, fascinado pelo seu rabo, meti o meu pau sem
graça na sua buceta. E quem poderá me provar que Vera
Lúcia não me usou para atingir, como um tiro silencioso e
quase invisível, Andrade? No fim das contas, as pessoas
aprendem a dançar conforme a música; apelam ao
egoísmo, não por encanto, mas sim por temerem a gula da
existência que, mastigando lentamente, destroça moleques
inocentes e mocinhas virgens – ai desta geração depravada
deste o ventre da mãe!

Pensar tanta merda fez com que o meu estômago


ficasse revirado, ardendo, como quem acaba de beber uma
dose de Fogo Paulista. Coloquei as minhas mãos sobre a
mesa. Sempre odiei o formato das minhas mãos: pequenas
e sem calos, com apenas uma cicatriz. Mãos de
mauricinho, embora eu já tivesse batido algumas lajes e
capinado alguns terrenos. Mas eram as minhas mãos. As
mãos que usei para socar meu próprio pai, as mãos que
usei para dividir uma carreira de cocaína, as mesmas mãos
que se esconderam dentro de bucetas e cus, as mãos que
depois de uma punheta folhearam páginas amareladas e
cheias de rabisco. O que mais elas fariam? Quis voltar a
ser o moleque magrelo que, sentado num banco de igreja,
olhava com admiração para a pintura no batistério: amplo
céu azulado, nuvens de algodão e o próprio Jesus de
braços abertos, com o rosto levemente inclinado, com um
ameno sorriso no rosto.

– Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

Quando dei por mim, estava quase chorando.


Respirei fundo e forcei a minha boca, desenhando uma
carranca estranha, retorcida. Que homem, em sã
consciência, tem aspirações filosóficas e teológicas depois
de trepar com uma balzaquiana gostosa? Acendi mais um
cigarro; peguei a garrafa de vinho e me arrastei para a
janela. Coloquei a minha boca no gargalo e, erguendo a
garrafa, bebi o vinho barato dando várias goladas. No dia
seguinte, pensei na dor de cabeça me colocaria de joelhos.
Bebi para silenciar as muitas vozes ou, pelo menos, para
encará-las vagarosamente. Às vezes tudo o que precisamos
é parar de caminhar, erguer os pés cansados e repousar o
rabo numa pedra. Montaigne, Nietzsche, Waldo Emerson,
Tolkien, não foram poucas as mentes brilhantes que
compreenderam a sabedoria escondida na caminhada.
Ainda assim, raros são os que falam do repouso. O
momento certeiro para pensar no quanto já foi percorrido e
ter certeza que é melhor seguir em frente; pois o destino,
depois de tantos passos, está mais próximo que o ponto de
partida. Dobrar-se, num ato de sujeição a si mesmo e
amarrar novamente os cadarços para que não se soltem
nos metros adiante. A chance para perceber o ritmo de
todas as outras coisas que, embora fincadas ao solo,
também se movimentam; dançantes pelo acaso,
balançando conforme a canção entoada pelo vento – e o
ritmo de todas as coisas, querendo ou não, afeta o seu
próprio ritmo assim como ter, ao lado, alguém batendo
palmas no momento errado obriga a criatura que aplaude
corretamente repensar as suas ações, ser mais cuidadosa
com o que faz.

Por isso, depois de peregrinar pelo corpo de Vera


Lúcia, caminhando com a minha boca pelo vale dos seus
seios; descendo, como um ermitão, pelo deserto do seu
ventre rumo ao monte a fim de chupar sua fenda; fiz com
que ela virasse e me mostrasse a sua caverna, pequenina e
misteriosa. Apertei as suas ancas e, enfiando o meu rosto
no seu rabo, chupei o olho do cu. “Foi a primeira vez que
recebi um beijo grego, bebê” confessou durante a conversa
de leito, metida entre os meus braços, olhando-me com
aqueles olhos rasgados e escuros. Beijou a minha boca,
com lentidão, um beijo tão gostoso que, mesmo depois de
ter lutado bravamente, dispondo assim de motivos para
pedir clemência, o meu pau endureceu mais uma vez.
Esporrei na boca de Vera Lúcia que, ao terminar, colocou
servilmente a língua para fora, mostrando-me que tinha
engolido tudo, tudinho.

Naquela madrugada, não voltei para a cama de


Vera Lúcia. Alternando entre a cadeira e a janela, passei a
madrugada acordado – ou num estado semiconsciente:
com o corpo congelado, enquanto a mente falecia num
incêndio. Quando ela acordou, eu estava com a garrafa de
vinho quase pelo fim, fedendo a cigarro, com os olhos
caídos de tanto beber. Levou a mão à boca, e correu para
me ajudar, perguntar se eu estava bem. Segurei-a pelo
maxilar e beijei a sua boca, suas bochechas, seu queixo,
sua testa. Vera Lúcia era uma santa e se não é deveria ser,
decidi enquanto enfiava o papel dentro da sua calcinha, ao
som das risadas dela que, se remexendo toda, perguntava o
que eu tinha. Enfiou a mão na calcinha e tirou o meu
poema da sua buceta e, se afastando de mim, leu em
silêncio.

– Eu não sabia que você era poeta, bebê. Escreveu


para mim? Mas por quê?

Quis ser pintor para eternizar numa magnífica tela


a sacra imagem de Vera Lúcia inclinando a face, com um
sorriso ameno no rosto, com as mãos pressionando o papel
contra o peito – uma santa, eu digo, uma santa!

Fodemos no chão da cozinha pequena, de maneira


desajeitada, mas bastante apaixonada. Empurrando a
cadeira todas as vezes que as nossas pernas batiam contra
as pernas dela, quando nos movimentávamos. Ainda
abraçados, com as costas coladas no piso frio, ela
confessou que estava pensando em voltar para Manaus.

– Eu me preocupo com o crescimento de


Carlinhos, sabe? Ele não pode crescer e ficar igual ao pai,
um homem que faz esse tipo de coisa. Ele é um bom
menino, você sabe, não é? É forte e ama a mamãe dele! Eu
preciso recomeçar, bebê, não aguento mais essa vida.

Em um súbito desejo, quase pedi para que ficasse


um pouco mais. Uma noite não era o suficiente para mim,
eu queria descobrir mais sobre o seu corpo e seus
costumes; arrombar as barreiras erguidas, pegar o seu
coração em minhas mãos e fazer dele o meu bem mais
precioso. Do que me importava se era ela mais velha e
mãe? Meus pais, cedo ou tarde entenderiam e aprenderiam
a gostar dela, respeitá-la pelo que ela é, deixando de julgá-
la previamente. “Ora essa, mãe! Vocês duas têm quase a
mesma idade, por que não podem ser amigas?” eu poderia
dizer ao secar as lágrimas que rolariam do seu rosto,
dizendo que a minha união com Vera Lúcia era um pecado
aos olhos de Deus. Quis segurá-la pelas mãos e contar,
berrar se fosse preciso, “eu chupei o seu cu!”. Ela
entenderia a profundidade disso e escolheria ficar.

– O que você acha, bebê?

Pensei que, se ela perguntou a minha opinião, era


provável que parte do seu ser estivesse pedindo para que
eu a impedisse. Eu poderia entrelaçar os nossos dedos,
olhar no fundo dos seus olhos puxados e dizer que tudo
ficaria bem; que, a partir daquele momento, Carlinhos
seria como um filho para mim e ela a minha mulher. Mas
como eu poderia prometer um futuro seguro para duas
criaturas sequer conseguindo sustentar a minha própria
existência com decência? Pensei na casa alugada, sem
móveis, com as paredes implorando por uma ou duas mãos
de tinta; eletrodoméstico algum, senão por uma geladeira
antiga e sempre vazia. Em Manaus, Carlinhos teria seus
avós por perto e tios e tias, certamente alguns primos para
brincar. “Quero Vera Lúcia ao meu lado”, entretanto, seus
pais a receberiam com afeto e segurança, depois de tantos
anos afastados; e mimariam Carlinhos com brinquedos
que eu, certamente, seria incapaz de comprar. Eu poderia
amá-los, sim, mas em Manaus eles teriam além de amor,
meios de sobreviver.
E Vera Lúcia encontraria outro homem, cedo ou
tarde. O amor ao seu filho falaria mais alto que os meus
bons tratos, quando ela ouvisse os roncos do seu pequeno
estômago, e ninguém poderia culpá-la por isso. Mas eu
queria aquela bruta flor manauara em meus braços,
preenchendo os meus dias me chamando de “bebê” o
tempo inteiro, e usando “sabe” ao final de todas as frases,
por mais que a minha opinião lhe fosse indiferente; até
mesmo ouvi-la cantarolar Belchior, dizendo que a voz dele
era voz de gente sofrida. Retê-la seria egoísmo, dispensá-
la convocar o sofrimento.

– É a melhor decisão para vocês dois.

Por um bom tempo ela ficou em silêncio. Quis


saber se eu tinha dito algo errado e se ela poderia me dar
uma chance de corrigir o tropeço oferecendo uma resposta
melhor. Mas, fiquei com medo do que ela poderia falar.
Eu não era forte o suficiente para rejeitá-la, afastá-la mais
vezes; por mais que soubesse que o distanciamento era a
melhor decisão que ela poderia tomar. Ela se sentou,
enrolou os cabelos escuros num coque alto, bastante
frouxo, e me olhou por cima do ombro. Percebi que,
emudecida, ela chorava.

– Você é bom para mim, bebê. Em outros tempos...

–... Eu também.

Nada mais precisava ser dito. No comedimento das


palavras, nós dois tínhamos sonhado um doce futuro
juntos, bastante afastados de todos os perigos. Às vezes,
sonhar junto é o mais perto da felicidade que a realidade
nos permite provar. À porta, Vera Lúcia repousou os seus
lábios salgados de choro sobre os meus, amargos de fumo,
dando-me o beijo de despedida.

Poucos dias depois, na rodoviária, observei-a entrar


no ônibus e tomar assento. Repousou a mão sobre o vidro
da janela e sorriu para mim, enquanto o motorista dava a
partida e se distanciava, deixando-me para trás. Lutei para
erguer o meu braço e me despedir, esboçando um sorriso
amarelo no meu rosto cadavérico.

A dor da despedida.

Trocamos algumas cartas, que ainda tenho


guardadas comigo, dentro de uma caixa, num canto do
armário. Mas, com o passar do tempo, o hiato se tornou
maior à medida que as palavras diminuíram. Pouco a
pouco, nos distanciamos mais do que a distância entre a
Baixada Fluminense e Manaus. Na última carta que recebi,
ela me contou que Carlinhos estava indo muito bem na
escola, tendo decidido ser militar igual ao pai. O pequeno,
enfim, conheceria os leões no continente africano.

Guardarei, com cuidadoso afeto, os poucos


momentos que tive ao lado de Vera Lúcia. Os seus risos,
toques singelos, a barriga de fora, as manhãs sempre
agradáveis ao vê-la pendurar as roupas no varal, e o seu
rabo incrível. Um rabo que, de tão grande, era possível se
perder ali dentro, mas que eu me encontrei.
Debaixo dos caracóis dos seus pentelhos
“Uma mistura de ternura com naufrágio, este era o meu
sentimento por aquela garota que me conduzia a tiracolo: apesar
da noite antiga, apesar de mim”, Marcelo Mirisola.

Depois de oito horas seguidas sendo mastigado por


um emprego odioso, eu me debrucei sobre o balcão do
botequim e pedi por uma dose generosa de conhaque.
Sendo três reais a dose, era bom mesmo que ela fosse
bastante generosa, pensei. Enfiei a mão no bolso das
calças surradas e peguei o maço amassado de Gift branco.
Acendi um cigarro paraguaio e deixei que o sabor amargo
do fumo se alojasse em minha boca, e escapasse pelas
narinas. Pensei, mesmo que por alguns momentos, no
roubo que marcava o universo do tabaco: todos os anos o
preço aumentava sobre o maço, esfregando na cara do
miserável viciado que, até mesmo para se suicidar
lentamente, ele teria que trabalhar sob o sol e a chuva. Por
isso, eu havia desistido de financiar a Souza Cruz e
decidido comprar apenas cigarros paraguaios, que eram de
péssima qualidade, mas que machucavam menos o bolso.

Do outro lado do balcão, Seu Renato me encarou


enquanto apertava o botão do controle remoto, alternando
entre os canais à procura de uma partida de futebol da
série B. Sinto que, no fundo, ele sempre quis saber a razão
de eu me enfiar naquele bueiro e dividir espaço com os
outros bêbados e desfavorecidos do bairro; mas, mantendo
o seu silêncio rotineiro, guardou os seus questionamentos,
manifestando apenas os olhares curiosos que,
constantemente, lançava para mim, enquanto eu engolia as
minhas doses. Não o culpo nem um pouco. O botequim
era um dos piores que eu já havia frequentado: uma
pequena rampa de concreto guiava o azarado para dois
portões de ferro escancarados, exibindo a ferrugem e a
tintura metálica gasta; do lado de dentro, duas mesas de
ferro com algumas cadeiras bambas, uma mesa de sinuca
com um calombo no meio, chão de concreto, paredes sem
tinta e um banheiro sem lâmpada. Estava na cara que
aquele lugar, antes de ser um bar, era uma garagem.
Encontrei, certa vez, atrás da mesa de sinuca, uma caixa
de papelão com álbuns de fotografia. Dei, por fim, um
último gole e pedi para que ele despejasse mais uma dose
dentro do copo.

Por sorte, sempre preferi os bares “pés sujos”.


Talvez não seja uma questão de preferência, mas de
disponibilidade. Os botecos fodidos são os únicos que eu
posso frequentar, então, eu os aceito de bom grado, sem
pestanejar. Pode ser que, um dia, a escrita decida parar de
consumir o meu tempo, paciência, energia e alma e decida
me devolver através de dinheiro, bebidas melhores, novas
bucetas. Somente um escritor fajuto, ou previamente rico,
rejeita o dinheiro dos seus leitores – eles ficam com a
minha alma atormentada, eu fico com o salário deles e
assim dançamos a dança da morte, valsando com os
demônios. Mas, até que toda a minha miséria seja
justificada, aprendi a gostar daquele ambiente sempre
empoeirado, cheirando ao odor acre do suor misturado ao
fumo barato e ao álcool.

Naqueles dias eu já tentava ser um escritor.


Nenhuma página escrita, mas com o ego protegido pelo
estandarte da arte, do arauto da realidade, o homem que
fixa em um papel tudo aquilo que e a mente pensa e o
coração sente – um pequeno imbecil afogado em
arrogância que, aos dezoito anos de idade, já tinha
rejeitado os conselhos ferinos e odiosos do pai, feito das
madrugadas da mãe sempre inundadas de choro, o irmão
pária, o projetinho de intelectual que virou as costas para a
academia duas vezes e, num súbito mergulho de cabeça,
alugou uma casa em Nova Iguaçu, subúrbio do Rio de
Janeiro. “Antônio Fraga, meu chapa, segure o seu cu
porque o escrevedor aqui beijou a margem enquanto você
ficava de cu doce com o Oswald de Andrade” eu repetia
copiosamente, enquanto observava a casa sem móvel
algum, o meu colchonete emprestado colocado num canto,
as pilhas e pilhas de livros cheios de anotações em suas
páginas amareladas; as paredes infiltradas, o vaso sanitário
sem tampa, o banheiro sem espelho.

- Eu sou um escritor, senão pelos escritos, ao


menos pela carteira vazia.

Às três da madrugada, enquanto eu ouvia Belchior


e fumava os dois últimos cigarros do maço debruçado na
janela, eram os fantasmas de Hemingway, Henry Miller e
Charles Bukowski que me socavam – eis o meu espinho
na carne. Os três grandes malditos bicando o meu corpo
esguio, fraco por não ter o que comer, fazendo chacota
toda vez que eu ligava o notebook e repousava a ponta dos
meus dedos sobre as teclas. De sorte que fiquei calado e
suportando sem chorar todo o tormento, trinquei meus
dentes e prometi para mim mesmo que, um dia, eu
também entraria no ringue e os colocaria para beijar a
lona, forte como um touro no momento do primeiro
ataque. Miller cairia e se arrastaria rumo aos peitos
siliconados de uma loira norte-americana; Hemingway me
xingaria e diria que, apesar da minha vitória, os maiores
colhões sempre seriam os dele; e o Velho Safado peidaria,
tentaria alcançar uma cerveja, lançando – apesar do nariz
quebrado – um sorriso debochado, um olhar que seria uma
jura: cedo ou tarde a revanche aconteceria, mesmo sem
saber que morreria antes de a sua vingança acontecer.

Ainda assim, lá estava eu entre os velhos


combatentes. As moscas de bar. Homens de carne
endurecida pelo sol, mãos calejadas, corpos marcados
cobertos pela camiseta de um político qualquer para qual
eles juraram votar, caso pagasse o jogo de coletes para o
time dos moleques ou contribuísse para o próximo
churrasco da associação dos moradores. “Cada um aqui
tem uma história, meu garoto. Aqui não é o seu lugar, não
antes de ter passado uma noite na delegacia” contou-me,
certa noite, Seu Renato. Esfreguei a minha barba
desgrenhada e retorci a boca, numa forçada expressão de
espanto. Um ano antes eu tinha ido parar na delegacia por
quebrar uma garrafa de cerveja na cabeça do dono do bar,
que atrás de uma pilha de caixas estava apalpando uma
menina perdidamente bêbada e bem mais nova que ele.
Respirei fundo e feito um homem não arredei o pé daquele
lugar, embora eu não tivesse sossegado até ter cruzado a
esquina – às vezes é permitido lamentar por uma surra,
antes mesmo de ela acontecer, sabendo de antemão que
tentar escapar dela é mais vergonhoso que ser destruído
por um bando de velhos cachaceiros. Simplesmente não dá
para romantizar uma situação dessas e dizer que, diante da
ameaça de uma surra, eu deveria sorrir; encará-la como
um novato diante do clube da luta iguaçuano. Sempre
achei “Clube da Luta” uma obra supervalorizada.

Com o tempo eles se acostumaram com o meu


silêncio, assim como eu me acostumei à conversa fiada
deles. Eu não os incomodava, eles tampouco se
preocupavam comigo. Apesar de a minha figura destoar
do cenário e dos outros bêbados, qualquer xingamento era
deixado de lado quando eu me encaminhava rumo à
máquina de música, depositava uma moeda e escolhia
algumas canções decentes da velha guarda. Fagner
garantiu o meu salvo conduto naquela garagem que
também era projeto de botequim. Apenas Seu Renato que,
apesar de todas as minhas idas e vindas, todas as doses
pagas decentemente, nenhum copo quebrado – embora
para recompensá-lo fosse necessário apenas comprar um
copo de requeijão, consumir o produto e lavar o recipiente
para entrega-lo –, persistia em me encarar por cima dos
óculos equilibrados sobre a ponta do nariz.

- Moço, eu quero uma dose de Montila e uma


latinha de Coca-Cola.

Feito um moleque tonto que não está acreditando


no que está vendo, observei aquela que tinha chegado por
alguns segundos que passaram lento demais, mas
disfarçando a minha reação juvenil, voltei a encarar o meu
copo que ainda tinha um dedo de conhaque. Sentada ao
meu lado, pude sentir quando o seu perfume impregnou o
ambiente, no instante que o ventilador passou pelo seu
corpo. Apenas fechei os olhos e respirei profundamente,
deixando escapar um torto sorriso com o canto da boca. O
cheiro era incrível, ao mesmo tempo em que a minha
mente pareceu derreter, senti que dentro das calças o meu
pau tinha acordado. Seu Renato voltou ao balcão e
despejou no copo a dose de Montila, deixando ao lado da
latinha que ele abriu naquele instante. Era um copo largo,
decente. Aquele velho filho da puta não era bobo; era
dono de bar e qualquer homem que se preze sabe que
“dono de bar” não é uma raça de homens imbecis, sem
experiência. Se ser dono de bar fosse uma graduação,
experiências de vida seriam o ENEM. Para mim, o copo
de requeijão ou de milho; para ela o copo de uísque. “O
melhor para a melhor e o pior para o merda”, nada de
novo sob o sol.

- Aqui vende cigarro a varejo?

- Cê sabe que vender eu até vendo, mas olha,


minha filha, esses bêbados já fumaram tudo. Hoje eu estou
sozinho, aí nem deu para pedir para o moleque comprar
outro, no posto de gasolina.

- Eu não tenho cigarro, mas tenho Gift. – Peguei,


mais uma vez, o maço de cigarros no bolso e a caixa de
fósforos – Quer?

- Acredita que já cansei de fumar essa porra? –


disse antes de sorrir um sorriso de mil sóis, exibindo os
seus dentes brancos e perfeitamente alinhados – Depois
que eu fumei o primeiro maço, nunca mais precisei de
Activia. Regulou o meu intestino que é uma beleza!

Somente quando ouvi as gargalhadas grosseiras eu


percebi que todos estavam nos observando. Feito urubus
sobrevoando a carne, esperando pelo momento da morte,
todos estavam de olho nela. O que era bastante
compreensível. Ela parecia um anjo enfiado no meio do
inferno, uma sensação tão desarmônica que beirava a
lógica de colocar uma tela pintada por Renoir num
morredouro da Vila Mimosa. Os seus cabelos eram longos
e negros e a sua pele branca, os olhos eram dois botões
tristes e esverdeados, nariz alongado e lábios carnudos,
seios pequenos que, logo percebi, caberiam perfeitamente
em minhas mãos e dentro da minha boca. E um dos
melhores rabos que eu esbarrei em toda a minha vida. Um
rabo mais atraente que o rabo da Vera Lúcia, uma vizinha
balzaquiana que, semanas antes, tinha pedido para que eu
lhe desse um beijo grego. Só de estar perto dela, eu fiquei
com o pau dolorido de tão duro; e, pelo que eu pude
enxergar dos velhos, todos teriam material imaginativo
para três dias de punheta.

Por isso, sorri em resposta à sua piada, mas evitei


encará-la por muito tempo. Sempre me senti incomodado
ao lado de uma mulher muito atraente. Mulheres que
sabem que são atraentes são perigosas demais e quase
sempre gostam de esfregar na sua cara que estão contigo
sem precisar estar e que, ao menor descuido, outro homem
mais bonito e rico poderá conquista-la. Pelo menos foi
assim com Helena, que trabalhava como modelo por
vários estados, chegando até ser miss-alguma-coisa. Um
metro e oitenta de beleza escandinava, com os seus
cabelos loiros e longos, os olhos claros, a pele lisa. Pena
que, sempre que todo instante em que abriu a boca, foi
para dizer como todos os homens a desejavam, como eu
não deveria beber tanto e como eu precisava de roupas
novas para acompanha-la para um evento repleto de
pessoas pomposas e, a mim, insignificantes. Não me
surpreendi quando ela me trocou por um homem rico e
continuou com ele mesmo depois de ter descoberto que
era traída – cá penso em Helena e na sua boceta moldada
pelos anjos, tendo sido consumida por todos que
conheceu; toda a sua ganância não seria apenas uma
tentativa desesperada de se proteger e fazer aos outros
tudo aquilo que sempre fizeram com ela? A busca
insaciável pelo dinheiro uma ânsia enlouquecida que lhe
fora privada por ter nascido mulher? Será, Helena Bovary?

Apenas sei que, ao lado daquela mulher, só me


restou pedir outra dose. Acendi outro cigarro, apenas para
disfarçar o corpo contraído e a sensação de deslocamento.
Em silêncio, resmunguei por saber que, às três horas da
madrugada, só teria um cigarro para fumar debruçado
sobre a janela. “Mas, porra, que perfume é esse?”, naquele
mesmo instante, tendo olhado apenas uma única vez no
fundo daqueles dois olhos tristonhos, eu soube que atrás
dela muitos homens se arrastavam caídos e enlouquecidos,
babando, clamando por mais uma dose do chá de sua
buceta; aquele bagageiro enorme estava abarrotado de
corações partidos, constatei enquanto engolia uma dose
pequena.

“É pelos outros que eu sei quem você é...” ao meu


lado, ela começou a cantarolar, batendo com a ponta dos
dedos brancos de unhas cor bordô, na bancada de tijolos e
cimento. Do outro lado, os velhos resmungavam uns para
os outros, provavelmente comentando como os homens
dos dias de hoje são frouxos comparados aos homens de
outros tempos, do tempo deles – “Ah se eu fosse moleque!
Cê num sabe, rapá, já tinha dado um chega na branquinha!
Parado eu num ia ficá não”, diriam contando glórias dos
tempos da mocidade que, bem todos sabiam, jamais
tinham acontecido; divertindo-se numa mentirosa disputa
de hombridade e galanteio que, bem sabiam, todos sairiam
derrotados. Dispensar uma bela buceta nunca foi o meu
esporte preferido, mas, eu já tinha passado por poucas e
boas e apesar da pouca idade todos os tropeços estavam
pesando sobre as minhas costas. Julguei estar entrando
naquela fase em que um homem está disposto a trocar,
sem penar algum, uma orgia por uma noite agarrado ao
corpo nu de uma única mulher que, ao primeiro trovejar,
pedirá que você a abrace mais forte e não que a deixe
vestir suas roupas e ir embora para jamais retornar.

- Você não é muito de papo, não é?

- Dia pesado. Muito trabalho, pouco descanso.


- Em quê você trabalha?

- Serviços Gerais. – respondi sem pensar duas


vezes. Eu tinha noção da merda que era ficar oito horas
esfregando o chão para que um bando de mauricinhos
passassem, de um lado para o outro, comprando roupas e
mais roupas para que, diante de outros mauricinhos,
pudessem exibir quão “fodões” eles eram; por isso, eu não
estava disposto a mentir para agradá-la. Eu já estava no
fundo do poço e negá-lo era tentar cavar um pouco mais. –
Eu limpo a sujeira dos outros por oito horas seguidas no
Top Shopping.

- Serviço pesado, não é? Cresci ouvindo o meu pai


falar que, quando mais novo, trabalhou como faxineiro e
que, por isso, eu deveria valorizar todas as minhas
oportunidades.

- E hoje o seu pai é o quê?

- Médico.

A típica volta por cima que eu não darei se não for


pela literatura – o que, honestamente, a cada dia que passa,
desacredito um pouco mais. Nos dias em que a minha
maior diversão era furar uma lata vazia de achocolatado e
recolher, no valão, vários girinos; meus pais também me
aconselharam a valorizar as oportunidades que a vida me
oferecesse. Aprendi a ler cedo e a minha letra era bastante
bonita, cuidadosa; conseguia, com facilidade, memorizar
incontáveis versos, sem falar na minha facilidade de me
expressar em público; possuindo tantos talentos
indispensáveis, eu deveria reuni-los na palma da minha
mão, colocá-los no fundo de uma gaveta, trancafiá-la,
engolir a única chave, pôr uma rolha no meu cu para que
nada escapasse numa bela caganeira, e me tornar militar.

- Médico é uma boa profissão. E você? O que faz?

- Acabei de entrar na Universidade Rural, ali perto


do viaduto. Cheguei a cursar Direito, fiz alguns períodos,
mas desisti. Agora eu vou cursar Literatura. É o que eu
quero fazer, sabe?

“Talvez eu saiba muito bem, pequena” eu quis


dizer, mas dei um último gole no meu conhaque, a fim de
deixar de lado a situação incômoda. Antes de sair da casa
dos meus pais sob uma tempestade de maldições
desferidas por ele, eu estudava Literatura na Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Estava no quarto período
e, para alguns professores, eu era um aluno promissor.
Acho incrível como, no curso de Letras, a quantidade de
admiradores dos livros do Nicholas Sparks é bem maior
que os leitores de Graciliano Ramos, até mesmo dos
contos machadianos. Não seja um perfeito imbecil,
demonstre conhecimento – sequer tão profundo assim –
sobre duas obras brasileiras e duas europeias –
Dostoievski e Goethe não cairiam mal – e, em pouco
tempo, doutores e pós-doutores começarão a pedir a sua
opinião sobre a análise de Roland Barthes acerca da
formação do escritor e da preparação do romance. Por
sorte, conquistada a fama de aluno prodígio, qualquer
merda pode ser dita, senão pelo relativismo universitário,
pelo simples fato de professor algum ter, de fato, lido
Goethe em todos os seus anos de magistério.

Ainda assim, sendo a criatura mesquinha que de


Deus se afastou, desde a desobediência adâmica, eu me
enchi de uma estranha raiva. Deveria estar no mesmo
lugar que ela, ser seu veterano. Eu deveria estar na
universidade percebendo como é bom possuir a fama de
intelectual, beber praticamente o dia inteiro e foder
algumas bucetinhas que, assim como eu, estão decididas a
experimentar tudo que juventude tem para oferecer; mas,
para o meu azar, eu estava esfregando chão, bebendo
conhaque num botequim pé sujo, jantando restos de
sanduíches esquecidos pelas mesas, pagando aluguel de
um casebre caindo aos pedaços, sem móvel e sem
eletrodoméstico algum. Ela? O papai era médico e aceitou
que trocasse de Direito para Letras; estava no botequim,
sim, mas bebendo rum com refrigerante. Eu desejei a
facilidade que, de maneira precoce, enxerguei em sua
vida; quis roubá-la sem dó, sem piedade.

- O que gosta de ler?

- Oi? Falou comigo?

- Eu perguntei quais autores você gosta de ler.

- Gabriel García Márquez, Pablo Neruda, Jorge


Amado... Já ouviu falar de algum? Jorge Amado escreveu
o romance que inspirou aquela série chamada “Gabriela”,
conhece?

No fundo, percebi que ela estava tentando ser


gentil. Fui criado para ser um homem antiquado, “à moda
antiga”, e homens assim sempre possuem um ego delicado
demais, ficando irritadinhos diante da menor ameaça; o “já
ouviu falar de algum?” me acertou como um soco
desferido pelo Rocky Balboa. “Bastou saber que trabalho
como faxineiro para pensar que eu sou um imbecil que
nunca leu algo decente, não é? Pensou que, se eu sou um
maldito faxineiro que está bebendo conhaque barato num
boteco pé sujo, é óbvio que a única coisa que eu li na
minha vida foram os itens que precisava preencher para
pedir algum benefício governamental, não é?”. Na minha
garganta estavam presos os mais ferinos xingamentos, os
questionamentos mais grotescos que consegui pensar. Por
fim respondi:

- Não. Acho que eu nunca ouvi falar deles. Eu não


sou um grande leitor.

- Foram escritores que escreveram o sofrimento do


povo, mesmo. Não escritores que escrevem como se o
mundo fosse uma coisa linda. Eles perceberam que a vida
é dura!

“E o que você sabe sobre a dureza da vida,


pequena?” por pouco eu perguntei. No fundo dos seus
olhos verdes, contemplei a tristeza; mas, depois de tantas
humilhações sofridas, eu não estava disposto a ouvir o que
parecia ser uma conversa marxista. Depois de ter sido
abandonado por todos os meus camaradas comunistas,
quando perceberam que a minha cachaça e os meus
cigarros e a minha comida estavam acabando, ser
convocado para uma revolução era tudo que eu menos
queria. Gabo, Neruda e Jorge Amado, todos comunistas;
dois ganhadores do prêmio Nobel e, por isso, com o cu
entupido de dinheiro. Quando eu for rico e limpar o meu
rabo com notas de cem, posso pensar em voltar a ser
comunista e berrar, para todos os lados, que é possível
criar na terra o paraíso – Agostinho de Hipona jamais
sonhou que, da Cidade dos Homens construiriam a Cidade
de Deus. Pobre Escolástica. Pobre São Tomás de Aquino,
pobre Abelardo, pobre Duns Scot.
Depois de um mergulho profundo e sujo nos
escritos marxistas, chegando até a ostentar a rubra flâmula
comunista, percebi que qualquer convocação para uma
revolução oriunda dos revolucionários frouxos e
despreparados que nós temos só causaria uma
transformação para um estado ainda pior que o estado
vigente. Qualquer imbecil sabe que as coisas não estão
boas e precisam mudar, mas espera-se que os agentes da
mudança estejam, no mínimo, preparados para provocá-la.
Decidi não confiar o meu futuro às mãos macias dos
rebeldes sustentados pelos pais que, sendo protegidos
pelas rezas de uma mãe religiosa, pegam em megafones e
berram que a fé dos oprimidos é tolice, que o
relacionamento com o divino é puro ópio, causador de
alienação. Quem empunharia as armas e se enfiaria no
meio do matagal, comendo mal e suportando a chuva e o
lamaçal, trocando tiros com as forças militares existentes?
Os mauricinhos maconheiros que impregnam as
universidades federais apenas para professarem que o
conhecimento acadêmico é opressor? Não é de hoje que
rebeldes mimados usam os pobres para estampar as suas
birras, seus interesses pessoais. Eu já fui um deles, já
esbravejei o discurso e citei autores que nunca estudei.

- Quer saber como a vida é dura, pequena?


Pergunte àqueles homens.

Ela parou e me olhou com aqueles malignos e


tristes olhos verdes, ficou em silêncio, imagino eu que
mastigando, degustando, o que eu tinha acabado de falar.
“Perdi a buceta” constatei, antes de pedir uma última dose
de conhaque para o Seu Renato que, ajeitando os óculos
caídos na ponta do nariz, me olhou com decepção: “eu
esperava mais de você, rapaz”, quase o ouvi murmurar.
Bati com o copo no balcão, apenas para apressá-lo:
“dispenso o seu olhar, desgraçado, eu só quero beber e
dormir”.

- Como você se chama?

- Jorge Andrade, e você?

- O meu nome é Anna. – respondeu abrindo o zíper


da bolsa e enfiando a mão no meio das suas
quinquilharias, até encontrar a carteira e retirar de lá uma
nota, praticamente nova, de vinte reais. – Foi bom falar
contigo. Agora eu preciso ir, já está tarde.

Anna repousou a mão sobre a minha coxa e beijou


o meu rosto, antes de se despedir de Renato e passar pelos
portões abertos, rebolando um rabo capaz de despencar
outra terça parte dos anjos. No canto em que a sua boca
me tocou, senti um agradável formigamento, como a
sensação provada depois que a dormência de um dos
membros passa. Apesar de todo o fedor do fumo barato e
dos corpos suados, quando ela passou o perfume ficou e,
por alguns instantes, provei uma dose da fonte d’água
viva, e compreendendo que, em mim, não havia mais sede;
saboreei da completude. Assim que as suas nádegas
saíram do meu campo de visão, a mansidão também se foi
– e, de repente, todo o tormento voltou para o seu dono, se
é que o tormento ainda não conseguiu me dominar, sendo
assim, o meu senhor.

- Cê sabe que eu já encontrei muitos clientes


burros, né? Assim, meu filho, cê foi o mais burro de todos
eles! Como cê deixa escapar um pandeiro daquele? Bebeu
demais, foi?
- Meu chapa, bonita daquele jeito, ela só quer uma
aventura.

- Ela pode se aventurar no meu colo quando quiser!

- HAHAHAHAHA – todos riram, antes de


completarem a frase com “no meu também”, “e depois no
meu” e outros comentários asquerosos.

- Quando uma mulher daquelas pede uma aventura,


meu filho, cê oferece uma volta ao mundo e um final feliz.
Cê não tá com essa bola toda, não.

Pelo desenrolar das coisas, todo o respeito que o


meu silêncio havia conquistado tinha sido abandonado por
conta de uma visita inesperada e, até mesmo, indesejada.
Apesar de gostosa, eu não estava disposto a abandonar o
meu canto, a minha zona de conforto para enfrentar a
peleja que é conquistar uma mulher para que, no fim de
todas as coisas, eu me encontrasse desolado num canto.
Apesar de nenhuma página escrita, feito o Velho Safado,
eu também não queria trocar ideias ou corpos. Nas últimas
semanas, estava preferindo os puteiros e a punheta, que
apesar de solitária é gratuita. Que dizer? A punheta nunca
nos abandona. Sempre que necessária, ela está à palma da
mão. No fundo, acredito que eu apenas estava fugindo de
encarar o mesmo que encarei com Cecília. Suportar
aquilo, pela segunda vez, não seria tarefa fácil e, querendo
ou não, o mesmo aconteceria. Não há novidade em canto
algum, são tempos sofridos aos amantes.

O mundo inteiro está perdido em chamas. Os


grandes edifícios estão em chamas, ardendo como grandes
piras funerárias, enquanto no chão as pessoas são
esmagadas todos os dias por colossais botinas invisíveis.
Enquanto soco as minhas podres palavras, um menino de
oito anos enforca o seu gato de estimação, enquanto os
pais fodem na cozinha, sem se preocupar com quão alto
estão os gemidos e os xingamentos; ao atravessar a rua,
perdido em devaneios, ainda refletindo sobre os doces
lábios do homem que beijou, o rapaz é atingido na cabeça
por uma lâmpada: o seu pecado foi ter amado o seu
semelhante; no valão cheio de lixo e merdas expelidas por
cus sujos, um açougueiro lança o corpo de uma menina de
dezesseis anos que, ao descobrir que estava grávida, o
procurou para matar o seu feto; alguém chora, com uma
fotografia em mãos, pela pessoa amada que se foi cedo
demais e sem se despedir. O mundo está em chamas e é
ridículo pensar que é possível amar nobre e docemente
numa realidade tão destruída. Nos dias de hoje, qualquer
centelha de amor padece antes mesmo de arder.

Por isso, intelectuais garbosos escrevem e


discursam que “nada foi feito para durar”, tudo é
passageiro, sendo o momento o único período que deve ser
aproveitado – porém, creio que o “momento” é justamente
o período que jamais pode ser captado. Sempre que ouso
pensar no presente sou levado a crer que ele já é passado,
pretérito jamais perfeito.

Antes de ir embora, coloquei o maço de cigarros no


bolso junto com a caixa de fósforos. Acenei educadamente
para todos, apenas para não esboçar que tudo aquilo tinha
me deixado puto e um pouco enjoado. Desci a pequena
rampa, dando para a rua vazia que se estendia até a pista
Araguaia que acabaria na rodovia Presidente Dutra. Em
silêncio, segui o meu rumo. Meti as mãos nos bolsos das
calças e franzi o cenho, permanecendo de olho em
qualquer movimentação estranha. Na padaria da rua
detrás, era costume acontecer troca de tiros. Alguns roubos
estavam ocorrendo pela região, assaltos aos moradores
que, de tão descarados que eram, incomodaram os antigos
matadores do bairro, há anos aposentados de suas funções,
fazendo-os pensar que era obrigação de todos caçá-los e
“fazer a limpa” na cidade. Baixada Cruel, a terra em que o
filho chora e a mãe não o ouve. Quando passei pela
esquina, ouvi um “psiu” vindo do ponto de ônibus, alguém
camuflado pela escuridão.

- Sou eu, Anna. Eu sei que não te conheço direito,


mas você poderia ficar comigo até o ônibus chegar? Ele
está demorando e eu estou com medo.

- Ônibus? Eu sinto muito, mas o último ônibus saiu


do ponto final faz mais de uma hora. Acho melhor você
ligar para o seu pai.

- Puta merda! E agora?! – Resmungou enfiando a


mão, mais uma vez, dentro da bolsa à procura do aparelho
celular. Quando o encontrou, tocou a sua tela com força
algumas vezes, batendo com o dedo indicador,
pressionando a lateral com o polegar. – Era só o que me
faltava! A bateria acabou, puta merda. Estou fodida!

Nessas raras situações que os homens mais


decrépitos se sentem agraciados por uma misteriosa honra
e, contrariando todas as expectativas, decidindo tomar
uma decisão admirável, uma escolha que contraria
qualquer comportamento egoísta, antes tão rotineiro. Ao
vê-la com os grandes olhos verdes arregalados, saltando
de um lado para o outro, os braços cruzados como se
estivesse sentindo frio, mesmo com o calor demoníaco
dessas bandas, desfiz a minha carranca marcada por
expressões severas e ofereci o melhor sorriso que eu
poderia oferecer, depois de um dia inteiro de labuta.
- Eu não tenho celular, mas você pode ligar do meu
telefone convencional. Não é muito bom que você fique
esperando pelo seu pai no meio da rua em plena
madrugada.

- É muito perigoso?

- Bastante, pequena.

- Quem me garante que, seguindo contigo, eu não


estarei me metendo em mais perigo ainda?

- Não precisa vir comigo, se não quiser.

- Ai! Espera! Eu vou contigo, tudo bem. Qualquer


coisa é melhor que ficar aqui.

Cruzei a pista em silêncio, enquanto ao meu lado


ela resmungava dizendo que, apesar da ajuda, eu poderia
ser um pouco menos grosseiro, “não faria mal” disse ao
final. Respirei profundamente e pensei que tudo que eu
queria era tomar um banho – gelado, já que o chuveiro não
era elétrico – e depois dormir por algumas horas – sobre
um colchonete fino deixado de presente por uma antiga
vizinha que, arrastando seu filho pelo braço, voltou para
Manaus. “O que mais um homem poderia querer? Duvido
muito que James Patterson, Dan Brown e John Green
possam aproveitar de um conforto maior que o meu, eu
duvido!” ri quando pensei no choque de realidade que ela
receberia assim que eu girasse a chave na fechadura e
empurrasse a porta emperrada; ao encontrar a casa vazia,
caindo aos pedaços, por certo que aprenderia a valorizar
todos os mimos do seu papai e correndo buscaria se
agarrar à barra da saia da mamãe. No mínimo, eu faria
uma boa ação: contribuiria para a reconciliação de uma
família, visto que o relacionamento com a minha eu
sentenciei ao esgoto, ao decidir dar ouvidos às lorotas
edipianas, aos conflitos freudianos. Apenas torci para que,
depois de tudo, o pai dela voltasse e molhasse a minha
mão, numa forma de agradecimento.

Abri o portão da vila e falei para que ela tomasse


cuidado para não tropeçar nos gatos, que eram onze no
todo. Duas gatas grandes, alguns filhotes e o AACD, que
era um gato cego de um olho e com um cotoco no lugar do
rabo. Por sinal, o gato mais violento que eu vi em toda a
minha vida, fazendo com que vários cachorros corressem
desesperados, amedrontados. Atravessamos por um
estreito corredor e nos deparamos com um pequeno pátio,
com dois portões fechados e uma escada. Pensei em deixa-
la subir na frente, de maneira que eu acompanhasse a sua
bunda por cada degrau alcançado, pensando em como
seria tocá-la, dar algumas tapas; mas decidi subir na
frente, por achar que não faria sentido algum agir com
falso cavalheirismo. Quando abri a casa, o cheiro de velho
foi soprado contra a minha cara. Espalmei a parede e, ao
encontrar o interruptor, acendi a luz.

- Lar doce lar.

- Acho que você não pode reclamar por falta de


espaço, Jorge.

Estava começando a gostar um pouco do humor


dela. Sorri com o canto da boca e apontei para um
aparelho telefone antigo, esquecido no canto da sala. Ela
caminhou até o lugar e, com a bunda virada para mim, se
abaixou e buscou o aparelho telefônico – quase ouvi, ao
fundo, um anjo pianista tocando Clair de Lune, em
homenagem àquela enorme lua cheia que contemplei feito
um acólito diante de uma aparição divina. Ela discou o
número e, me olhando com aqueles olhos tristes,
aguardou. Chamou, chamou, chamou, porém ninguém
atendeu. Ela discou novamente, todavia mais uma vez
ninguém a atendeu. Quando percebi que ela teria que ficar
mais um tempo, na minha sala, até que conseguisse entrar
em contato com alguém, eu encostei a porta e fui até o
meu quarto, buscar dentro da mala aberta uma toalha
limpa e uma muda de roupa.

- Não se preocupe. Daqui a pouco você tenta mais


uma vez.

- Cara, desculpa pela merda toda. Eu não queria


causar tanto trabalho!

Pedi para que ela ficasse no quarto que, além de ser


mais fresco, tinha o colchão no chão para que ela pudesse
se sentar; mas percebi que ela só entrou no cômodo depois
que eu saí e segui para o banheiro. Ela deu sorte por ter
sido eu a cruzar o caminho dela. Pensei em quantas
mulheres não passaram por situações parecidas, ficando à
mercê da maldade de vários filhos da puta sem escrúpulo
algum. Basta perder a hora uma vez para que as suas
chances de ser atacada aumentem desesperadamente, para
que você se transforme num cordeirinho saltitando
enquanto uma alcateia te cerca e mostra os dentes
pontiagudos. O que ela faria, numa situação de perigo?
Gritaria numa rua deserta e esperaria pela chegada de
outro homem desconhecido? Mas e se esse homem
também fosse um insano e decidisse saltar sobre o seu
corpo, o que faria? Agora imagine a cena: no ponto de
ônibus, um homem se aproxima silenciosamente a fim de
atacá-la, ao perceber, ela berra, mas percebe que está
sozinha. Ao enfiar a mão na bolsa, o que encontra? Um
revólver que aponta para a fuça de um estuprador, que
tomado pelo medo trancou o cu com tanta força que nem
mesmo um átomo passou por lá! Parece, às vezes, que há
uma conspiração fomentando o caos, na esperança de que
os desesperados clamem pelo grande Estado salvador e
sabedor de todas as coisas.

Permiti que a água gelada caísse contra o meu


corpo e me despertasse no mesmo momento. Esfreguei o
sabonete contra a minha carne, forçando para que saísse a
gordura que, toda vez que eu limpava a cozinha, grudava
em mim. Quando me senti limpo, peguei a toalha e me
sequei. Coloquei uma bermuda jeans, com o botão aberto
e por cima uma camiseta qualquer. Quando saí do
banheiro, percebi que ela ainda estava no meu quarto. Não
que tivesse algo para ser roubado, mas era bom tomar
cuidado e não deixa-la por lá sem ser vigiada. Quando
passei pela porta, senti os meus pés ficarem rígidos e das
solas brotarem raízes que se ficaram ao chão de maneira
que eu não consegui sair do lugar. Anna estava de quatro,
com aquele seu rabo enorme empinado na minha direção,
enquanto os seus olhos estavam perdidos nos livros que eu
tinha empilhado contra a outra parede, formando algumas
pilhas altas, mas tortuosas. Como se tivesse lido a minha
mente, ouvido as sacanagens que a minha imaginação
estava gritando aos quatro cantos, ela virou o rosto e me
encarou por cima do ombro, e sorriu.

- Por que você mentiu para mim?

Demorou um pouco para que eu conseguisse parar


de fazer os meus olhos saltarem do seu rosto à sua bunda
e, por isso, sei que ela percebeu a maneira que eu a
devorei, ali mesmo, naquela posição que congelou os
meus pés, porém incendiou o meu âmago.
- Do que você está falando?

- Por que você mentiu para mim, no bar? Disse que


não era um grande leitor, mas olha só para tudo isso!
James Joyce, Camus, Woolf, Graciliano Ramos,
Guimarães, Faulkner... Todos eles são geniais, Jorge...

- Nem todos. Se você olhar direito, é capaz de


encontrar uns dois romances do José de Alencar e uns três
ganhadores do Jabuti.

Ela riu e aproveitou para se sentar direito.

- Não gosta das obras do José de Alencar?

- Não mesmo. Alguns homens são


supervalorizados, pequena, mesmo quando se é um jurista
brincando de literatura e fazendo das páginas uma espécie
de ata ou processo.

- Que comentário ousado, Jorge. Bastante idiota,


mas ainda assim ousado...

- Acho que posso sobreviver com isso.

- Pode sim. Ousado é bom. Eu gosto de homens


ousados.

“Então é assim que você devora as suas vítimas?


Fazendo-se de frágil, desperta o lado protetor dos homens
e, ao conhecer suas intimidades, cansa seus corpos
oferecendo prazer, delírios; mas apenas para comê-los
depois?”. Acreditei que talvez ela fosse uma espécie de
viúva negra que destrói o seu consorte, depois do coito.
Percebi na nossa primeira troca de olhares. Reconheci
aqueles olhos tristes, mas não de uma tristeza de quem
apenas sofreu e sim a tristeza de quem já sofreu bastante e
que, por isso, agora suporta a sina de também machucar.
Conheço aqueles olhos tristes, pois assim agora também
são os meus, depois de tê-la conhecido.

- Quer beber alguma coisa? Deve ter alguma


garrafa de catuaba perdida na geladeira e umas duas ou
três latas de cerveja.

- Fico com a catuaba.

Na cozinha, peguei a garrafa e dois copos. Quando


voltei, ela estava debruçada sobre a janela aberta,
descalça, com a camiseta para fora das calças justas; os
cabelos enrolados num coque frouxo. Entreguei o copo e
despejei o líquido bordô, quase da cor das suas unhas, e
depois coloquei dentro do meu. Ao contemplá-la mais
uma vez, eu achei que tê-la em meu quarto era como
ostentar uma obra artística no meio de um terreno baldio.

- O que você faz quando não está trabalhando?

- Eu escrevo algumas porcarias. Quase sempre,


escrevo poemas. Acho que ainda não me fodi o suficiente
para escrever contos ou romances.

- Olha só, que chique! Um poeta!

- Acho que estou mais para poeteiro. Os poetinhas


são sempre frescos demais, falando sobre o céu e as flores,
dando pitis sempre que alguém decide escrever sobre as
putas, os bêbados, os cheiradores de cocaína que trocam
desilusões por pinos de pó.
- Não acha que o mundo já está sujo demais para
que alguém precise escrever sobre isso?

- E é justamente por isso, por estar sujo, que


precisam escrever sobre o que acontece nas sarjetas.
Acredito que a boa literatura é aquela que traz à tona
aquilo que nós somos, uma parte do deserto que há dentro
do nosso peito. São tempos difíceis e a moralidade escapa
pelas brechas dos nossos dedos, todos os dias, segundo
após segundo, enquanto nos enganamos com doces ilusões
de que tudo é relativo, tudo é uma questão de perspectiva.
No fundo, sabemos que estamos todos fodidos. Descrever
sobre a forma que os nossos pecados nos fodem, sem um
cuspe de cortesia, também é arte.

- Também acho... – ao me empolgar com aquele


assunto, não percebi que estava falando pelos cotovelos,
enquanto Anna apenas me observava com os seus olhos
estreitos e o cenho franzido – Por pouco eu não reconheço
aquele homem do bar. É algo no ar, na atmosfera? Só
entrar aqui que, do nada, você se transforma num filósofo
ou crítico literário? Olha só! O que é isso? Você até está
rindo para mim.

- Eu acabo me empolgando um pouco quando falo


sobre isso. Aparentemente sou bastante rápido nas críticas,
e um pouco mais preguiçoso para fazer melhor e corrigir o
que julgo.

- Quer escrever uma obra prima?

- Eu só quero escrever com fúria e, ao socar as


letras, fazer jorrar sangue, porra e lágrimas.
Anna, que agora estava sentada perto de mim,
sorriu e repousou a sua mão macia e quente no meu rosto
para afagar a minha barba molhada. Lançando sobre os
meus olhos castanhos os seus olhos glaucos, fazendo com
que os mares da sua tristeza encontrassem os barrosos rios
de minha melancolia; repousou, em silêncio, os seus lábios
sobre os meus. O sabor da sua boca, apesar de tudo que foi
bebido e fumado, era doce; enquanto o meu, certamente
amargo de fumo barato. Coloquei a minha mão na sua
nuca e deixei que as mechas dos seus cabelos lisos e
escuros deslizassem pelos vãos dos meus dedos; quando
nossas línguas dançaram, mordisquei o seu beiço inferior
e, ao mesmo tempo, puxei o seu cabelo. Ouvi o seu
suspiro e logo soube que ela tinha se arrepiado.

- Jogo sujo, Jorge...

Anna sussurrou antes de voltar a me beijar com


intensidade e puxar os meus cabelos, à medida que
mordiscava o beiço e deslizava a sua boca pelo meu
queixo e pescoço. Eu novamente estrava numa
encruzilhada: dividido entre a excitação de estar com uma
mulher atraente e a fúnebre sensação de que tudo não
passaria de uma perda de tempo, visto que o resultado era
sempre o mesmo: duas pessoas desoladas, vagando pelas
margens dos dias e recolhendo os cacos de um coração
que antes costumava pulsar. Mas, diante de um
monumento daqueles, qualquer receio foi deixado de lado
sem muito esforço, eu não nego. Saltei sobre o seu corpo
segurando firmemente uma de suas coxas e apertando a
farta carne da sua bunda. Enquanto colocava o peso do
meu corpo contra o seu para conseguir beijá-la mais
desejosamente, provar mais da sua boca e pescoço, do seu
colo e vale dos seios; ouvi com afeição os gemidos que
escaparam entre as nossas carícias. Forcei os joelhos
contra o chão e me mantive entre as suas pernas.
Arranquei as nossas camisetas, desabotoei as suas calças e
a arrastei com força para que o jeans – justíssimo como
uma segunda pele – passasse pelo volume das nádegas
fartas. Parei por um breve momento e a fitei vestindo
apenas as peças íntimas; uma lingerie rendada da cor preta
que, embora contrastasse com a cor pálida de sua carne,
compunha harmonicamente a imagem que estava diante
dos meus olhos.

Desci o zíper da bermuda e, ao me levantar, deixei


que ela escorresse pelas minhas pernas peludas de sátiro,
revelando a cueca boxer preta e o volume dentro dela.
Anna repousou a sua mão por cima do pano e, aos poucos,
começou a apertar o meu pau. Colocou-se de joelhos,
diante de mim, e erguendo a face esculpida pelos anjos,
ela me olhou com as suas duas órbitas verdes – o olhar
sincero e quase submisso de uma mulher que só está
pedindo uma única coisa: um pau dentro da sua buceta.
Encostou a testa na minha barriga e, mordiscando o pano,
abaixou a peça faltante; quando percebeu que o volume do
membro duro atrapalhava, tirou com as mãos, fazendo
com que passasse pelas pernas. Fez o caminho de volta,
beijando a minha carne, apertando as minhas coxas. Pegou
com força o meu membro e o levantou. Olhando dentro
dos meus olhos, Anna passou a língua no meu saco,
vagando por toda a extensão até chegar à cabeça, que era o
instante em que me engolia, chupando até a base com
escancarado desejo. Por vezes, segurava apenas pelo talo,
colocando todos os centímetros dentro da sua boca,
fazendo o meu pau desaparecer, apenas para provocar um
engasgamento que ela interrompia ao tirá-lo rapidamente e
trocar as chupadas por uma punheta.
Com os seus longos cabelos enrolados em meu
antebraço e mão, observei Anna me chupar com vontade,
sem preguiça alguma. Uma das melhores chupadas que eu
já tinha recebido, sem qualquer sombra de dúvidas. As
suas mãos fincaram as unhas cor bordô na carne das
minhas coxas, provocando a sinestesia existente entre dor
e o prazer; duas sensações diferentes se chocando dentro
deste invólucro que eu sou até se fundirem e verterem,
sobre o espírito constantemente atormentado, o bálsamo
da satisfação. Prendendo-a pelos cabelos, ergui o seu rosto
indicando que deveria se erguer. Diante de mim, repousei
a minha boca sobre a sua e envolvi a sua cintura com um
dos braços, enquanto o outro, num rápido estalo, desatou o
feixe do sutiã; afrouxando as alças sobre os ombros,
botando um sorriso malicioso no canto da sua boca.

- Que habilidade, poeteiro.

É fácil retirar um sutiã quando os seios são médios


ou pequenos. Quando se trata de peitos enormes, do
tamanho de melões apetitosos, o papo é outro. De
qualquer maneira, difícil mesmo era colocá-lo no lugar –
tanto pelo feixe, quanto pela tarefa lamuriosa que é cobrir
a perfeição que são as tetas.

- Um pouco de experiência não faz mal.

- Não mesmo, baby.

Enquanto respondia, Anna deu as costas e passou


as alças do sutiã pelos braços, ainda me olhava por cima
do ombro. Uma mecha de cabelo preto cortava a sua face,
agindo como fronteira entre os seus olhos, dois universos
consumidores. Lançou para trás a peça de roupa e riu
quando ela caiu bem na minha cabeça. Enfiou os dedos
polegares nas laterais da calcinha e se abaixando fez com
que passasse pelas suas coxas grossas. Aos meus olhos, o
seu rabo ocupou o lugar de uma lua cheia, refletindo
naquele cômodo sujo e empobrecido um brilho
descomunal, algo de divino. Entre as fartas bandas pálidas,
o botão rosado de uma flor que julguei jamais ter sido
desvendada.

- Garota, eu poderia me afogar dentro do seu rabo.

- Você gosta do meu rabo? Às vezes acho que ele é


grande demais, sabe? Poderia ser um pouco menor.

- Está perguntando se eu gosto? Eu não mudaria


um centímetro sequer do seu corpo ou do seu rosto. O seu
rabo é muito mais do que um homem feito eu merece ter
em mãos. – Dobrei os meus joelhos, segurei-a pela cintura,
ainda de costas para mim e beijei a carne da sua bunda –
Ele é muito mais do que qualquer homem merece ter,
mesmo que só por uma noite.

Anna também ficou de joelhos e espalmando as


mãos sobre o colchão, forçou os joelhos para se firmar
melhor e afastou as pernas, ficando de quatro para mim.
Olhando para trás, ordenou, apesar de usar um tom de
súplica, que eu beijasse o seu cu e chupasse o seu rabo
com excitação e afeto. Finquei os meus dedos na sua carne
e afastei as bandas, passando a minha língua no botão
apertado que se contraía ao menor deslize da minha língua
molhada. Os gemidos que começaram tímidos
reverberaram pelo cômodo decadente, grudando-se às
paredes e confundindo as infiltrações com o gozo interno
da casa; sendo cravadas nas paredes do meu crânio,
ecoando pelos becos da minha mente por muito tempo
depois – “Ai, Jorge... Que gostoso... Isso! Chupa mais...”.
Eu nunca entenderei como um homem deixa de
aproveitar um paraíso daqueles por culpa de algumas
estrias e celulites – se é que há muita diferença entre as
duas coisas. Penso, às vezes, que há, bem debaixo dos
nossos olhos, um grotesco vírus que está transformando os
homens em camundongos amedrontados, frouxos
desesperados que são incapazes de proporcionar prazer às
mulheres pelas razões mais banais que uma mente tacanha
poderia criar. Não se tornou raridade encontra-los pelas
ruas, escondidos atrás de uma masculinidade forçada, de
uma boemia mais falsa que nota de três reais. Era um rabo
digníssimo, delicioso, e só de olhá-lo eu senti a minha
boca salivar de desejo.

Durante o beijo grego, Anna apoiava a sua testa no


antebraço, enquanto esticava o outro para tocar a buceta,
esfregar o clitóris. Movia-se sobre o leito de maneira
sinuosa como se estivesse dançando ou se mexendo de
maneira ofídica, enfeitiçando o seu observador. Afastei o
meu rosto do seu rabo e desferi um belo tapa que causou
uma marca vermelha em sua branquidão. Segurei o meu
pau e rocei a cabeça, lenta e suavemente, na sua buceta
molhada até que tomado pelo desejo enfiei todo o membro
– que nunca foi grande coisa. Clamando por mais de mim,
Anna pediu para que eu socasse com força, estocasse com
fúria. Amarrei os seus cabelos no meu braço, uma vez
mais, e finquei meus dedos nos seus quadris e comecei a
meter uma, duas, três, quatro, continuei colocando o meu
pau dentro da sua fenda cada vez mais forte. Enquanto eu
puxava o seu cabelo, escutei seus gemidos entoando a
sinfonia em conjunto dos estalos provocados pelo choque
dos nossos corpos e os cânticos invocados pela sua buceta
molhada.
Parei as estocadas por um momento a fim de virá-
la, deixando-a de barriga para cima. Afastei as suas coxas
e enfiei o meu rosto no vão das suas pernas. Chupei a sua
buceta molhada sentindo os pelos do monte de vênus
roçando contra o meu rosto sedento, seu gozo inundando a
minha barba desgrenhada, perfumando os pelos da minha
cara antes martirizada pelo sofrimento de um dia de
labuta. Diante de uma buceta com pelos, eu sempre me
senti mais excitado. Bastava ver que não estava
completamente depilada para que o meu pau pulsasse de
delírio, ficasse perdidamente tomado pela vontade de
invadi-la. Nada contra as bucetas completamente lisas,
depiladas – sou incapaz de rejeitá-las – mas, as que estão
cobertas por uma fina camada de pelos, passam a sensação
de certa segurança, estar fodendo com alguém que
conhece a própria intimidade, e de estar satisfeita com ela.

Permaneci chupando os seus lábios inferiores com


honesta vontade, sem preguiça alguma. Coloquei a minha
língua em seu clitóris e a fiz gozar, enfiando as unhas cor
bordô no colchão numa reação ao prazer sentido,
transformando os gemidos longos em gemidos curtos,
cortados pela respiração ofegante, e finalizando com um
gemido prolongado, agudo, seguido de um sorriso de
satisfação e um suspiro profundo. Trazendo-me pelos
cabelos, Anna me fez subir pelo seu corpo, beijando o seu
ventre, passando a língua pelo vale entre os seus seios,
chupando delicadamente os mamilos rosados, o pescoço –
perfeita torre de marfim -, roçando minha barba em seu
queixo, tocando afetuosamente a sua boca e vertendo os
rios dos meus beiços sobre os seus lábios ressequidos.
Esgueirando-se para deitar ao meu lado, apertou com
cuidado o meu pau endurecido e o punhetou até que eu
gozasse em sua mão, respingando em seu corpo quente e
suado.
- Eu quero te abraçar, ficar com o meu corpo mais
perto do seu.

Encolhida, quase escondida pelo meu corpo que,


apesar de magro, era bem maior que o dela; sorriu e
adormeceu com o meu membro em sua mão, até que ele
amolecesse.

Quando eu acordei, demorei um pouco para reunir


a potência necessária para me sentar e depois levantar. O
meu corpo ainda doía devido os apertões, arranhões e todo
esforço dispendido durante a madrugada; de maneira que,
por pensar em cada parte dolorida, não percebi que, exceto
por mim, a casa estava vazia. Pensei que ela estivesse no
banheiro, resmungando por conta da coroa de merda no
vaso sanitário, abrindo as pernas e se esforçando para não
encostar-se à borda ao mijar. Quando percebi que a sua
bolsa não estava em canto algum, perambulei pelos
cômodos à procura de algum bilhete, qualquer frase escrita
que deixasse algum contato, telefone ou até mesmo um
aviso como “volto mais tarde”; mas contrariando minhas
expectativas, nada encontrei, exceto o sutiã preto que, por
conta de toda a nossa calorosa movimentação, foi parar
debaixo de algumas quinquilharias, certamente passando
despercebido do olhar de Anna que, caminhando nas
pontas dos pés, vestiu-se apressadamente para não ser
descoberta, enquanto tentava escapar de mim. Amassei a
peça, única recordação dos nossos poucos, porém intensos
momentos e a levei ao meu nariz; fungando
profundamente, sendo inebriado pelo cheiro do perfume
que não apenas marcava o meu corpo, mas também
marcava a peça de renda.
Procurando nos bolsos das calças que eu tinha
vestido, na noite anterior, o maço de cigarros; encontrei o
último Gift e o acendi. Procurei pela garrafa de catuaba e
dei alguns goles generosos, permitindo que o líquido
bordô – da mesma cor do esmalte escolhido, dentre tantas
outras cores, por Anna – escorresse pela minha garganta,
fodesse um pouco mais o meu fígado que, dizem as más
línguas, não é um dos melhores.

Eu quis esbravejar alguns xingamentos naquele


momento, deixar escapar alcunhas sujas e idiotas apenas
para externar toda aquela inquietude e raiva que eu estava
sentindo por conta de um encontro inesperado; mas,
sentindo que eu não tinha direito algum de fazer isso,
esforcei-me por abandonar a ideia. Em momento algum
pensei que, após um exaustivo dia de serviço, eu dormiria
abraçado com uma mulher gostosa de pele perfumada,
sentindo o seu rabo gentilmente moldado pelo maior
dentre os oleiros, roçar contra o meu membro adormecido,
porém jamais morto. “Boa demais para mim” eu pensei
enquanto baforava alguns anéis de fumaça que, bem diante
dos meus olhos se desfaziam conforme eram levados pelo
vento – insinuando, talvez, num conselho emudecido, que
tudo é efêmero: as sensações, as relações, até mesmo a
própria existência. Numa era líquida, nada foi feito para
durar.

Nós os homens, às vezes, precisamos de algumas


lições, do tipo: um tapa de realidade dado pela mão macia
de uma mulher. Não foram poucas as vezes que, após uma
madrugada afogada em bebedeiras e metidas
desesperadas, acordei ao lado de desconhecidas – às vezes
belas, outras vezes saudáveis – e, murmurando desculpas
esfarrapadas, vesti as minhas roupas e cambaleei
apressado à porta, deixando para trás uma promessa de
retorno que, ambos sabíamos, nunca mais aconteceria.
Pelos meus poucos anos acumulados, perdi as contas de
quantas decepções causei, apenas para alimentar a minha
falsa sensação de liberdade, por mais que, naqueles dias,
eu fosse cego o bastante para não perceber que, às vezes, a
liberdade é apenas uma nova forma de aprisionamento;
sentenciando a criatura a vagar, ser um eterno errante. Um
pássaro azul pode atrofiar as suas asas, caso seja obrigado
voar o tempo inteiro, sem nunca ter permissão para
repousar. Respirei fundo e tentei ignorar a tempestade de
questionamentos que surgia dentro de mim – “bons
ventos, pequena”, ofereci os meus sinceros votos, antes de
dar mais uma golada de catuaba.

O trabalho foi a mesma merda de sempre. Durante


oito horas, eu enfiei o esfregão dentro do balde, tirei o
esfregão do balde, forcei o esfregão no chão e, é claro,
esfreguei o maldito chão. Forcei aquela porra com raiva,
quase abrindo um buraco no segundo andar do shopping
center. “Qual o paradeiro do meu tão nobre discurso
acerca do valor de um trabalho honesto, seja ele qual for?”
eu me perguntei. Antes de abandonar meus pais e todo o
conforto de uma cama decente, água quente, móveis,
eletrodomésticos e mais de três refeições diárias; não
foram poucos os momentos que, num silencioso e profano
intuito de ganhar glória pela falsa modéstia, discursei que,
sendo honesto, qualquer trabalho era digno e que, por
hipótese alguma, eu me envergonharia de cumpri-lo.
Acredito, de fato, que a honestidade de um faxineiro é
mais nobre que a pompa de um empresário maldito que
ergue o seu império através de uma exploração repulsiva;
a farsa não se esconde aí; ela se esconde na moralidade
apoteótica que eu quis passar. Eu era apenas um moleque
mesquinho fingindo ser um grande homem, perdido nos
próprios desejos de grandeza e, por isso, incapaz de
perceber que estava sendo sugado pela própria terra,
devorado pelo nada. O meu trabalho não era desonesto:
desonesto era trabalhar tanto, e por tão pouco.

Pensando ser o gênio que mais tarde eu descobri


estar distante de ser, aquelas oito horas eram as piores oito
horas do mundo. Resmunguei mais vezes que posso contar
que, precisando trabalhar tanto, o meu anseio por alcançar
os mais altos degraus da intelectualidade seria
injustificado – “eu estou me desperdiçando, é isso”.
Somente com o tempo pude perceber que não era esfregar
o chão e limpar bandejas que me incomodava, obrigando-
me a lidar com a sensação de alienação. Era a repetição do
meu serviço que, pouco a pouco, estava me empurrando
para o despenhadeiro. Do que valia me esforçar para
limpar o piso se, poucos segundos depois, outra pessoa
passaria e o sujaria até que ficasse parecido com um
chiqueiro, sentenciando-me a limpar novamente o mesmo
lugar? Dostoievski estava certo: a melhor maneira de
torturar um prisioneiro é ocupa-lo com um serviço cuja
inutilidade seja perceptível. Fazê-lo carregar pedra de uma
pilha para a outra, o dia inteiro, apenas para que, ao findar
da luz, precise transportá-las novamente para o lugar da
primeira pilha de pedras. E, bem sabemos, todos somos
prisioneiros. Sequer nascemos livres, já que dependemos
das tetas maternas para a nossa sobrevivência; os anos
seguintes apenas nos conscientizam desse aprisionamento,
com suas correntes por todas as partes. Mesmo Roland
Barthes, o estruturalista francês, percebeu que não é a
repetição que aliena Sísifo, porém a inutilidade de seus
esforços.
Assim que eu coloquei o pé na rua, acendi um
cigarro e fechei os olhos. Com o uniforme dentro da bolsa
que eu trazia às costas, estiquei os braços e deixei que a
noite beijasse o meu rosto com suavidade. “Enfim,
liberdade!” eu pensei pouco antes de correr para o ponto
com medo de perder o último ônibus e ter que voltar a pé.
Embora já estivesse acostumado com a distância, os meus
pés estavam doendo, assim como a minha coluna e
ombros; e para terminar, a minha cabeça estava cheia de
preocupações: “aluguel, Anna, comida, Anna, móveis,
Anna e o seu rabo”. Pior que enfrentar um transporte
coletivo, no fim da noite, com o dobro de pessoas que
deveria abrigar – todas amontoadas para não ter de pagar
cinquenta centavos a mais numa Kombi ou, simplesmente,
por não possuírem nada além de um cartão Riocard dentro
de suas carteiras ou bolsas; é precisar correr com o olhar
suplicante direcionado ao motorista, implorando para que
ele decida permitir a sua entrada naquele cubículo que
mais parece uma câmara de tortura.

Quando desci do ônibus, torci para que Anna


estivesse na frente do meu portão à minha espera. Em seu
lugar, esbarrei com o zelador que, retorcendo a boca numa
expressão severa, berrou que o aluguel estava atrasado e
que, no meu próximo deslize, eu seria lançado à rua com
os meus “panos de bunda”. Balancei a cabeça para cima e
para baixo, apesar de manter os meus olhos focados no
chão esburacado com merdas de gatos espalhadas – “quer
ser homem, moleque? Encare a vida como um homem
encararia” pude ouvir o meu pai dizer, num tom de
escárnio, e rapidamente inflei o peito.

Mas, apesar de parecer um galo de quintal, do meu


peito não saía canto algum.
*

Dois dias depois, Anna aparece na minha porta e


bateu com os nós dos dedos. Ainda sem entrar na sala, ela
me encarou com os olhos vermelhos, certamente de tanto
chorar. Nas suas costas, uma mochila estufada, cheia.
Desviou os olhos dos meus, respirou fundo, entreabriu os
lábios numa tentativa de transformar em palavras a aflição
que perturbava o seu peito, porém rapidamente os fechou
com força, querendo impedir que as lágrimas brotassem
novamente. Encontrá-la naquele estado acabou comigo,
mais do que eu gostaria que acabasse. Há algo de
torturante em observar uma mulher chorando, uma
estranha sensação de inutilidade, incapacidade de protegê-
la daquele martírio. Caso eu pudesse escolher, certamente
escolheria ser atingido por um cruzado bem colocado no
meio do queixo a presenciar um pratear feminino. Antes
beijar a lona, com a mente turva, a enxergar o sorriso mais
querido ser tragado rumo ao vácuo do sofrimento.

Decidido a pôr fim ao silêncio quase palpável,


escancarei a porta e puxei Anna pela mão, acolhendo o seu
corpo sinuoso – mas agora tão pequeno e tão frágil – em
meus braços que, numa afetuosa firmeza, tentaram
transmitir proteção e segurança. Com a cabeça repousada
sobre o meu peito desnudo, Anna desabou e chorou,
soluçou, balbuciou que precisava de mim e que não
poderia voltar para casa por um tempo.

Ao entender que ela pretendia se abrigar dentro da


minha casa, o primeiro questionamento que surgiu na
minha cabeça, feito um eco distante ou um sussurro
bucólico, foi saber se apenas por isso ela havia decidido
dar as caras – será que, se o seu pai médico estivesse
orgulhoso da sua criança, ela teria aparecido? Eu me senti
profundamente traído, mesmo estando consciente da
minha hipocrisia. Eis o que nós somos: criaturas
mesquinhas domadas por pensamentos e vontades
egoístas, impulsos que precisam ser refreados de cinco em
cinco segundos. A fúria que destrói um lar pode ser a fúria
que, num campo de batalha, garante a proteção da sua
pátria; o ímpeto sexual refreado diante de uma rejeição é o
ímpeto sexual que precisa ser solto diante das carências
sexuais de quem o deseja; até mesmo o amor de uma mãe,
se não for controlado, será capaz de preterir injustamente
outras crianças a fim de favorecer o seu filho e assim criar
um mimado enfraquecido – desses que entopem as
universidades e os fronts revolucionários.

Olhando no fundo dos seus olhos verdes, eu forcei


um sorriso, repousei a minha mão no seu pescoço e
acariciei a sua nuca. Incapaz de considerar sagrada a
desordem do meu espírito, eu fiquei injuriado com falta de
beleza do meu pensamento e disse repetidas vezes que ela
poderia ficar por quanto tempo fosse necessário.

– Eu juro que, assim que eu puder, voltarei para


casa! Eu juro, Jorge, eu juro... É que... Dói só de lembrar,
sabe? Dói tentar falar... Só não posso ficar lá... Com ele
fazendo aquilo com ela... Eu tentei ajudar, disse que
ficaria ao lado dela... Mas, se ela disse para eu não me
meter o que posso fazer?

– Às vezes a melhor maneira de ajudar é se


distanciando, caso contrário serão duas pessoas loucas,
confusas com tanta merda. Não se preocupe com isso.
Fique aqui quanto tempo for preciso.

– É isso! Eu estou com medo de enlouquecer por


guardar, em silêncio, tudo aquilo que vi. Eu sei que ao
guardarmos muitos sentimentos, uma hora a gente estoura
e perde o controle.

– Nós ficaremos bem.

– Nós?

– Nós. Agora o seu problema, é o meu problema.


Eu cuidarei de você.

Um homem jamais será capaz de desvendar os


becos e vielas existentes dentro da alma de uma mulher.
Até certo ponto, o eterno desconhecimento é afrodisíaco e
todos os atos que, aos olhos masculinos são loucuras,
geram estranho contentamento, uma indescritível
fascinação. Digo isso por conta do tímido sorriso que
escapou dos seus lábios e do beijo manso que me deu – tão
suave que mais pareceu o deslizar de uma pena sobre a
carne dos meus beiços. Encolheu-se dentro dos meus
braços como se, por um milésimo, quisesse entrar em
mim; mas guardou para si tudo aquilo que pensou,
sentenciando-me à eterna curiosidade.

– Vamos para a cama? Quero ficar abraçada


contigo. Prometo que amanhã eu te recompensarei, mas
hoje só quero descansar um pouco, sentir que estou
segura.

Anna tirou a roupa, permanecendo apenas com a


calcinha, enquanto eu mantive apenas a cueca. Deitamos
sobre o colchão fino e velho, com o tecido rasgado donde
o estofo ameaçava escapulir. Atrás de Anna e com uma
das minhas mãos segurando um dos seus seios, fiquei com
o pau endurecido. Sem olhar para mim, ela se ajeitou
chegando mais perto, roçando o seu rabo no meu membro
que através de pulsações implorava para fodê-la. Poucos
minutos depois, ela adormeceu. Com os nossos corpos
juntos, eu percebi que misturado ao perfume, o cheiro do
álcool denunciava que, antes de me procurar, ela havia
bebido. Para amansar a dor, talvez, empurrá-la para o dia
seguinte quando a mente estivesse menos atormentada,
tendo assim mais chances de encontrar uma solução. Com
o coração apertado, fiquei revoltado com a ideia de perdê-
la para os seus próprios sofrimentos, observá-la mergulhar
num poço sem fundo, sendo hipnotizada pelo encarar do
próprio abismo.

Àquela sensação amarga feito fel, desferi as


minhas maldições. Por que eu estava tão preocupado com
uma desconhecida? Tínhamos fodido incrivelmente bem
durante a madrugada inteira, mas ainda assim. Depois de
um longo tempo erguendo as minhas barricadas, percebi
que, por conta própria, eu havia feito passar, por um
caminho secreto, a adaga que cedo ou tarde me atingiria.
Eu estava me apaixonando, mesmo sabendo que, hoje em
dia, estar apaixonado é o mesmo que assinar o próprio
atestado de óbito – “puta merda!” constatei, antes de
suspirar pesadamente. Apesar de sentir as pálpebras
pesadas, somente às quatro horas da manhã eu consegui
adormecer.

Ao abrir os meus olhos, percebi que a cama estava


vazia – “Outra vez, Anna?”. Respirei profundamente e,
após certa relutância, reuni a energia necessária para me
erguer. Cambaleei pelo cômodo à procura do maço de
cigarros e, ao encontra-lo, peguei um e o acendi. O gosto
do fumo se misturou ao gosto amargo de uma noite mal
dormida. Estava decidido a não perder o controle e me
irritar, profunda e amargamente, com Anna. Ora, se ela
gostava de ir e vir sem deixar avisos, quem tinha o direito
de impedi-la? “Eu tenho o direito! Eu sou o dono da casa,
eu a acolhi mesmo sendo ela uma estranha!”, eu me
respondia logo em seguida, sem ao menos dar tempo para
que a pergunta flutuasse pelo cômodo que, sem ela,
parecia mais desgraçado, com infiltrações maiores, teias
de aranha mais pegajosas.

– Bom dia, flor do dia.

Quando olhei para trás, em direção à porta do


quarto, encontrei Anna que, vestindo apenas uma calcinha
e uma toalha de banho enrolada na cabeça, sorria para
mim. De repente, quis correr ao seu encontro, toma-la
pelos braços, erguê-la do chão, beijar os beiços até que
ficassem dormentes; demonstrar, da mesma maneira que
faria um adolescente ao perder o cabaço, toda a minha
alegria. De sorte que, afoito à retenção, apenas sorri com o
canto da boca.

– Bom dia, raios de sol.

– Já estamos trocando apelidos carinhosos? Daqui


a pouco estaremos usando o mesmo perfil do Facebook.

Riu o seu típico sorriso flamejante, assim que


terminou de falar, e eu cheguei a pensar que a sua alegria
era a razão encontrada pelo sol para brilhar tão forte, dia
após dia. Ao se aproximar, colocou suavemente as suas
mãos sobre o meu peito e ergueu o rosto para beijar o meu
queixo, terminando com uma mordiscada.

– Eu preciso ir para a faculdade. Ficará bem sem


mim?
– Você pode ir, mas ele fica. – Respondi sorrindo
com o canto da boca, enquanto apertava e balançava o seu
rabo. – O que acha?

– Nada disso, bobo! É tudo ou nada.

– Sendo assim, acho que precisarei suportar você


por mais um tempo.

– Espero que não seja tão sofrível para você,


senhor Jorge.

Equilibrada na ponta dos pés, Anna me respondeu


com a boca próxima à minha, roçando nossos lábios
conforme os dela se moviam; enfiando a sua mão,
lentamente, dentro da minha cueca e segurando, com
intensidade, o meu membro que, agradecido pelo
despertar, já estava duro.

–Que delícia... Ele está prontinho para mim. –


abriu os dedos, soltando o meu membro e com a mesma
lentidão de antes, retirou a sua mão de dentro da minha
cueca. – Pena que eu já estou atrasada!

Aos risos, Anna foi se arrumar. Intensa, refém das


próprias emoções, ela passou da completa tristeza para a
inocente alegria em questão de horas. À primeira vista,
pensei que estivesse dissimulando a fim de não me
incomodar com os seus sentimentos manifestos em
expressões de desgosto e profundo silêncio, mas não tardei
em perceber que assim era ela: sempre profundamente
afetada pela ocasião, um tipo de alvo fácil do momento. A
oscilação sempre esteve estampada em seu rosto, nos
olhos verdes e melancólicos, no sorriso caloroso e
reluzente. Algo me dizia que, em seu mistério, certa
loucura era bem criada, alimentada todos os dias e todas as
semanas levada para dar um passeio; e, de certo modo, não
me incomodei. Passei a minha juventude inteira me
sentido atraído por mulheres quebradas pela vida –
provavelmente por me considerar outro quebrado,
esmagado, pelos meus dias de tormenta.

Aceitei a ideia de passar com ela o tempo que fosse


necessário. Ela cuidaria de mim e eu dela. Ficaríamos tão
íntimos que, embora tivéssemos dois corpos, seríamos
apenas um coração – ou eu pagaria pela minha inocência
estúpida e recolheria, com as mãos e os joelhos esfolados,
os cacos de mim. Demorei um bocado para apanhar o meu
pássaro azul e enfiá-lo dentro de uma gaiola, de modo que,
ainda mancebo, tomei a esperança no colo e a acariciei por
meio de dóceis afagos, amenas cantigas de ninar; a ideia
de deixa-lo bater suas asas, uma vez mais, surgiu
acompanhada de grande terror.

Descendo as escadas, Anna sorriu para mim.


Debruçado na janela, fumando um cigarro, ouvi os seus
passos se afastando pouco a pouco. Olhei para a casa
diante da minha: a porta e as janelas estavam trancadas,
sem sandálias na entrada, nenhuma roupa pendurada no
varal. Pensei em Vera Lúcia e Carlinhos e quis saber como
estavam, as venturas e desventuras em Manaus. Nunca fui
bom em momentos de despedidas. Aprendi, pouco tempo
depois, que o pior distanciamento é aquele que sequer nos
permite dar adeus, deixando na boca o amargo gosto do
que é inacabado, a estranha e marcante sensação de que
algo ainda pode acontecer – e quase sempre queremos que
aconteça. A ideia de alguém entrar em minha vida, fazer
com que eu aprenda a lidar com a sua personalidade, por
vezes, necessitando lapidar a minha em nome de uma
suposta harmonia; lutar contra o meu senso de preservação
e, enfim, nos afeiçoarmos para que, no fim de tudo, cada
um siga o seu rumo, e recomece toda a construção com
outra pessoa, era insana. Completa e desesperadamente
insana.
Quando Anna chegou da universidade, eu estava
terminando de me arrumar. Quando se aproximou e me
beijou, eu pude sentir o seu hálito de cerveja. Fiquei em
silêncio pensando que ela tinha desaparecido por três
horas após do término da aula. Quando eu estava prestes a
sair, entreguei a chave em suas mãos e disse para que
ficasse à vontade, e que eu voltaria assim que pudesse. Ela
sorriu meio abobalhada, denunciando que estava
embriagada e me deu mais um beijo, murmurando que
sentiria a minha falta e depois falando mais alto enquanto
eu descia as escadas.
No instante em que o meu expediente terminou e
eu corri para o ponto de ônibus, olhei para o relógio.
Apesar de ter trabalhado feito um condenado, estar com as
pernas estourando, os ombros e costas doendo sem parar,
eu tinha sido liberado meia-hora mais cedo. É incrível
como quem está na merda é capaz de se alegrar por
qualquer besteira, agradecer aos céus por qualquer
migalha de benção. Entrei no ônibus, paguei a passagem e
fiquei em pé ao lado do motorista, sem passar pela roleta.
Do outro lado, homens e mulheres disputavam por
qualquer espaço vago, distribuindo cotoveladas, pisadas e
xingamentos.
Assim que abri o portão da vila, o gato Satanás
veio ao meu encontro, roçou na minha perna e miou, antes
de sumir nas sombras — bichano demoníaco. Ao subir as
escadas, reparei que a porta e a janela estavam trancadas.
Bati com os nós dos dedos, algumas vezes, mas do outro
lado o silêncio indicou que eu não seria atendido. Respirei
fundo e tentei mais uma vez, em vão. Fiquei sentado na
mureta por algum tempo, baforando um cigarro, à espera
de Anna. “Ela pode ter ido comprar algo para comer ou até
mesmo comprar cigarros” pensei, enquanto aos poucos me
irritava mais e mais.
Depois de esperar por um bom tempo, decidi me
arrastar pelo beiral da casa, rumo à janela aberta da
cozinha. Esfreguei-me à parede, temendo pisar falsamente
e cair sobre a telha de amianto da casa de baixo, e saltei
para dentro do cômodo praticamente vazio. Acendi a luz
do quarto, apenas para conferir se ela não estava num
profundo sono, mas encontrei o colchão arrumado e a sua
bolsa aberta, jogada perto da mala, mesmo lugar que
coloquei a minha mochila, antes de ir ao banheiro para
tomar banho. Esfreguei a esponja contra a minha pele
numa busca desesperada para tirar a sensação de ter sido
mergulhado num caldeirão de gordura e depois deixei que
a água gelada caísse contra as minhas costas e pescoço –
“há quanto tempo eu não tomo um banho quente?” pensei,
mais para tentar afastar a mulher dos meus pensamentos
que qualquer outra coisa.
Folheando um livro de poesia contemporânea,
acabei pegando no sono. Dormi com o livreto esquecido
sobre o meu peito e com os óculos no rosto. Despertei
apenas quando Anna chegou, abrindo a porta
desajeitadamente e, logo depois, tentando fechá-la através
batidas. Respirei profundamente, inflando o meu peito,
mantendo o ar dentro de mim por alguns segundos e por
fim deixando-o escapar pelas narinas dilatadas. Eu não
queria soar como um louco que, no início de um
relacionamento, já pensa em estabelecer certas regras de
convívio; mas não estava disposto a suportar aquela
situação outras vezes. Quando eu me levantei, encontrei
Anna tentando se apoiar na parede, impregnada com
cheiro de bebida.
– Amor! Ainda acordado?
– Que merda é essa, Anna? – Falei baixo como
quem mede as próprias palavras, inclusive se elas devem
ser ditas. Fiz com que o meu braço passasse pelo seu
corpo e a arrastei rumo ao banheiro. Depois de sentá-la no
vaso sanitário, tirei os seus brincos, a sua camiseta e o seu
sutiã. Reparei que, em seu colo, tinha uma marca de
chupão, ainda bastante recente, que, sem dúvida alguma,
não fora provocada por mim. Em silêncio, ergui o seu
corpo e tirei a saia e depois a calcinha. – Entre debaixo do
chuveiro, por favor.
– Está gelada, Jorge!
– Debaixo do chuveiro. Anna.
Assim que a água gelada tocou a sua pele, Anna
contraiu o corpo, deixando escapar um gritinho. Juntou os
braços diante do rosto, espremendo os seios, creio que por
frio. Escovei os seus dentes e, depois de ensaboá-la e
enxaguá-la, sequei o seu corpo com cuidado. Enrolei-a na
toalha e a guiei ao quarto, fiz com que vestisse uma
calcinha mais confortável e a deitei na cama. Em pé,
próximo à janela, observei o seu corpo, quase inerte,
estendido sobre o leito na qual havíamos nos amado.
Como, depois de tê-la recebido dentro da minha própria
casa, tendo compartilhado a minha miséria, ela revolveu
aparecer com o corpo marcado por outra pessoa?
Enquanto a minha cabeça estava abaixada, inclinada ao
chão, a fim de limpar o piso; a cabeça dela estava erguida,
acolhendo o rosto de outro alguém. Tomado pela raiva,
senti o meu estômago revirar. Eu me arrastei ao banheiro
e, ajoelhado diante do vaso sanitário fedorento, vomitei as
minhas tripas. Fui atingido por um cansaço desumano e,
por isso, fiquei debruçado ali mesmo, sentindo o cheiro do
que eu havia colocado para fora, chorando mesmo sem
querer chorar, talvez por medo de sentir fome, um pouco
mais cedo e não ter nada para comer.
Depois, quando consegui reunir alguns cacos de
amor próprio, saí do banheiro e fiquei na janela da
cozinha, olhando para uma mangueira, enquanto no
terreno ao lado os ônibus começavam a manobrar.
Busquei mais um cigarro e o acendi, implorando para que
o vento que, naquele canto, surgia mais fortemente
aliviasse o meu enjoo.
Naquela madrugada, eu não consegui dormir.
Permaneci debruçado na janela, apesar das pernas
cansadas. Fumei um cigarro atrás do outro, apagando-os
na parede e lançando as bitucas sobre a telha. Quando
Anna acordou, caminhou por meio de passos pesados até o
banheiro. Percebi que, antes de entrar, parou por um
instante, na porta da cozinha; talvez pensando se deveria
ou não falar comigo. Entrou no banheiro em silêncio.
Apesar dos muitos apesares, eu sinto falta do som do seu
mijo caindo contra a água do vaso sanitário – um dos
incontáveis cânticos que a intimidade fornece aos ouvidos
atentos.
Depois de escovar os dentes, Anna me abraçou por
trás. Envolveu os seus braços na minha barriga e encostou
a sua cabeça nas minhas costas. Manteve a boca fechada
por um bom tempo, apenas respirando lenta e
profundamente, até que por fim disse:
– Eu sei que estou errada.
– Não quero falar contigo, pequena. Acho melhor
você pegar as suas coisas e caçar o seu rumo. A minha
casa não é grande coisa, eu sei, mas ainda não é hotel para
você entrar e sair com a chave e me deixar trancado do
lado de fora.
– Eu sei, amor, eu sei. É que eu acabei perdendo a
hora e quando percebi já era de madrugada!
– Não fode, Anna. Pensa que eu não vi o chupão
no seu corpo? Quem você acha que tirou a sua roupa, tirou
o cheiro de álcool do seu corpo e te colocou na cama?
–... Que chupão? Ah! Foi uma brincadeira, só,
Jorge!
“Brincadeira é o meu saco” pensei em dizer, mas
respirei fundo e fiquei calado. “Calado, poeteiro de merda!
Não queria inspiração? Então, tome!” desatei os seus
braços do meu corpo e olhando no fundo dos seus tristes
olhos, sustentei a minha expressão severa e repeti para que
juntasse as suas coisas e, depois da aula, fosse embora. De
repente o afeto que ela esbanjava cedeu espaço ao ódio
descontrolado. Esbravejando xingamentos, socou-me no
braço, peito, e saiu bufando, repetindo que não esperaria
um minuto sequer, garantindo que iria naquele mesmo
momento e que eu jamais ouviria falar dela novamente.
Parte de mim torceu para que fosse verdade,
enquanto a outra apenas quis abraçar o seu corpo e beijá-la
incontáveis vezes, por todos os centímetros possíveis,
falando copiosamente que eu a amava; que apesar de
rápido, aquilo que eu sentia era amor. Dividido entre as
duas vontades terríveis, eu andei até o quarto e me deitei
na cama virado para a parede, por fim fechando os meus
olhos com força.
No momento em que Anna bateu a porta, eu
percebi que uma parte minha tinha escapado com ela. Tive
medo que, com ela, tivesse ido embora a parte boa.
*
Duas semanas se passaram até que eu encontrasse
Anna novamente. Depois de um dia de trabalho, ao subir
as escadas amarelas, tomei um susto ao vê-la sentada no
chão, com as costas apoiadas na porta, repetindo que não
sairia daquela porta até que nós conversássemos
decentemente. Apenas quis correr ao seu encontro e beijá-
la muitas vezes, dizer que ela era a minha mulher e eu o
seu homem, repetir que a sua buceta fora perfeitamente
desenhada para acolher o meu pau e que o seu rabo era o
melhor do mundo – todas as outras coisas doces que um
homem feito eu poderia falar. Constante escravo do
orgulho, eu apenas olhei para a porta e falei: “entre”.
– Eu quero que você me desculpe, Jorge. Sei que
eu errei. Você acolheu uma desconhecida, alguém que não
é nada para você; e eu fui ingrata, folgada.
Como assim “uma desconhecida”? “Alguém que
não é nada para você”? Desde aqueles dias, sigo a minha
vida conforme o fragmento do poema drummondiano,
tendo os meus romances devorados pela literatura.
Sedento pelas hábeis estrofes e parágrafos, eu me tornei
um homem apegado às palavras, sendo enormemente
honrado quando elas são boas e destruído quando más.
Algo sussurrava, no fundo da minha mente, que era uma
absurdo querer que as pessoas falassem com perfeição
aquilo que eu queria ouvir; enquanto todas outras vozes do
meu corpo berravam que as palavras eram verdadeiras, por
mais que as outras pessoas não soubessem, passando
sempre a mensagem que deveria ser passada, apesar da
intenção dos outros.
– O que você me diz?
– O que eu te digo? Absolutamente nada. Queria
pedir que eu te perdoasse, não? Já pediu.
– Por que você é sempre tão cabeça dura? –
Perguntou enquanto se aproximava de mim, tentando me
beijar, colocando a sua mão dentro das minhas calças,
apertando o meu pau até que ele ficasse duro. – Diga que
não sente a minha falta.
– Eu não sinto a sua falta...

– Parece que ele sente.


A cabeça inferior nem sempre age de acordo com a
cabeça de cima. Anna dobrou os seus joelhos, ficando
agachada e desabotoou a minha calça; fazendo correr o
zíper, desceu o jeans até às coxas, arrastou a cueca e
segurou o meu pau duro. Com os olhos focados nos meus,
ergueu o meu membro e passou a ponta da língua por
baixo dele, dando um delicado beijo ao chegar à cabeça. A
cabeça de cima repetia “sua desgraçada, filha da puta”
enquanto a inferior implorava “eu quero que você me
chupe, amor”. Abocanhou-me com fome. Ela sugou o meu
pau com força, tocando uma rápida punheta ao mesmo
tempo; e quando decidia mordiscar as minhas pernas,
repetia pedidos sujos: “goza na cara da sua putinha”,
“quero a sua porra na minha boca”. Obedeci, por fim.
Esporrei dentro da sua boca, urrando de prazer, sentindo
as suas unhas cravadas na minha carne, enquanto ela abria
mais a boca para abocanhar tudo, até o talo, e engolir o
meu gozo.
Meia hora depois, virando o seu corpo de lado para
enfiar na sua buceta, percebi que de nada tinha valido a
minha palavra visto que, sem muito esforço, ela tinha
conseguido me dobrar. Dentro da sua buceta, forçando o
meu corpo contra o seu rabo enorme, eu não era apenas
um faxineiro que limpava o chão para que moleques
pretensiosos passassem por cima, sujando de maneira
despreocupada; eu era uma espécie de deus caído ou um
homem caído elevado à potência de um deus. Apertando
os seus seios, com o rosto enfiado entre os seus cabelos
escuros e o pescoço suado, gozei mais uma vez. Apesar
dos nossos corpos trêmulos, cansados, eu sorri quando ela
aproveitou da sensação de prazer para rebolar timidamente
e sentir por um pouco mais de tempo o meu membro que,
ainda dentro dela, pulsava e, aos poucos, amolecia.
Ao pegar a minha mão que segurava o seu seio,
aconchegou-se junto ao meu corpo. Respirou fundo
fazendo com que eu sentisse o seu tórax subir e descer,
antes de entrelaçar os nossos dedos e leva-los à boca,
beijando-os muitas vezes.
– Eu estou arrependida, Jorge. Estou arrependida
de verdade.
O que eu poderia fazer além de acreditar? Em
resposta, alisei com o meu polegar a sua pele. Não
demorou a que caíssemos no sono.
Nós dois vivemos como perfeitos amantes, por
uma semana. Trocamos carícias e risadas, costuramos os
nossos sonhos para que o futuro de duas pessoas se
transformasse em apenas um. Deixando que a vergonha e
as burocracias do relacionamento, naqueles dias tão
dispensáveis, ficassem do lado de fora da casa; brincamos
de escolher o local do nosso casamento, o nome dos
nossos filhos, o local em que construiríamos o nosso lar.
“Eu gosto de Hadassa. O que você acha?”, “Hadassa é um
nome lindo, mas eu tive uma tia que perdeu o bebê que se
chamaria assim. Acho que dá azar!”, “Qual nome, então?”,
“Alice”. Nome que, depois de muita insistência por parte
dela, ficou estabelecido. Com a beatificada chegada do
meu pagamento, nós começamos a comprar algumas
coisas para dentro de casa, tornando o lugar menos
decrépito, quase habitável. Eu entrava com o dinheiro,
Anna com o dedo de ouro para escolher as coisas – sempre
sem olhar o preço. “Pequena, eu não vou pagar tão caro
por uma lixeirinha de banheiro” eu respondia, enquanto
ela se aproximava e me beijava, mordia a minha boca, e
me convencia a levar não apenas a lixeira para o banheiro,
mas como também uma para a cozinha.
Até que chegou a maldita notícia que pôs fim ao
nosso conto de fadas.
– Ela ficará bem. É uma mulher forte, conseguirá
passar por isso.
– Jorge, eu preciso ver a minha mãe. Eu preciso
ver a minha mãe.
O câncer de mama atingiu fortemente a mãe de
Anna, pegando toda a família de surpresa. Ninguém
imaginou que, numa família de médicos, esses problemas
aconteceriam e seriam identificados num estágio digno de
uma preocupação considerável. Na casa dos pais de Anna,
vestindo a minha melhor roupa, fiquei de pé num dos
cantos da sala de estar, observando as duas mulheres
pranteando abraçadas, enquanto o pai fumava um cigarro
lentamente, olhando através do vidro da janela para o seu
quintal. A agonia presente naquela atmosfera era quase
tangível. Naquele instante senti que perderia Anna para
sempre, mas logo repreendi o meu pensamento,
considerando que era uma monstruosidade estar
preocupado com a minha solidão, diante de todo aquele
cenário catastrófico – “O que pretendo fazer? Pedir para
que ela escolha entre a mãe ou eu? Não seja tão imbecil,
Jorge”.
Anna não me apresentou como seu namorado,
marido ou “ajuntado”. Disse aos pais que eu era apenas
um amigo da faculdade e, enquanto esteve lá, praticamente
sequer falou ou olhou para mim. Na verdade, ninguém
falou comigo. O seu pai, de expressão abatida e
comportamento sempre silencioso, ousou me encarar
algumas vezes com olhar de reprovação, certamente
reconhecendo mais uma mentira da filha, desconfiando
que eu fosse mais um dos muitos romances
despropositados que ela teve.
– Já está tarde. Por que vocês não dormem aqui?
– O que você acha, Jorge?
– É a sua casa, Anna. Pode ficar com a sua família.
Mas, eu preciso voltar. Trabalho amanhã cedo e eu ainda
preciso preparar algumas coisas.
Anna me olhou com um olhar suplicante, insistindo
apesar do silêncio. Eu mantive a minha resposta, repetindo
que ela poderia ficar se quisesse, mas por fim decidiu ir
comigo, deixando os pais com a promessa de que voltaria
assim que pudesse. Apesar de reprimir os meus
pensamentos mesquinhos, egoístas, a pulga permaneceu
atrás da minha orelha; trazendo à memória os olhares que
o seu pai, por trás dos óculos, lançou para a filha; o
silêncio mantido através de um doloroso esforço, às vezes
revelando uma veia saltando no seu pescoço pálido como
quem engole a própria fúria. O seu pedido de licença,
admitindo que precisava dormir, quando Anna passou a
repetir mais e mais vezes que precisava ir porém
retornaria, talvez numa tentativa improvisada de não
precisar se despedir da filha e trocar alguma espécie de
contato corporal – beijo na testa, abraço ou aperto de mão
–, apenas serviu para reforçar o incômodo que eu sentia.
Detalhes que nunca consegui esquecer, gestos que hoje
interpreto como um aviso silencioso dado por um homem
que, de certo modo, conhecia bem a dor que eu encontraria
futuramente.
No dia seguinte, quando eu estava saindo para o
trabalho, Anna disse que visitaria a sua mãe. “Eu sonhei
com ela, isso significa alguma coisa. Ela precisa de mim”
contou, enfiando algumas peças de roupa dentro de uma
bolsa e depois ajeitando os cabelos enquanto se olhava
pelo espelho pequeno de bordas laranja – “cor coral”
como diria meu supervisor – preso à parede. Eu balbuciei
qualquer frase de apoio e beijei a sua boca – fria e murcha.
Quando cheguei do trabalho, a porta de casa estava
apenas encostada. Do lado de dentro, a chave estava
enfiada na fechadura. Encontrei um bilhete de Anna,
dizendo que, assim que chegou por lá, a mãe pediu para
que ela dormisse por uns dois dias em seu antigo quarto,
apenas para que ambas pudessem conversar
tranquilamente. “Volto logo, amor!” escreveu no bilhete,
antes de assinar unicamente com o primeiro nome.
Naquela madrugada, demorei a dormir. Descansei apoiado
na parede e, enquanto Bach tocava na estação de rádio,
matei uma garrafa de catuaba e um maço de cigarros.
Ajoelhado sobre o colchão, um bocado bêbado, orei aos
céus pedindo pela saúde da mãe de Anna – no mínimo, era
o objetivo inicial, porém bastou fechar os olhos para que
eu começasse a repetir pedidos egoístas, desesperados.
– Deus, faça com que a Anna fique comigo. Deus
faça com que a Anna fique comigo. Deus faça com que a
Anna fique comigo.
Anna voltou dois dias depois, mas apenas para
pegar mais algumas roupas e coloca-las numa bolsa maior.
Com o rosto vermelho de choro, sequer olhou dentro dos
meus olhos conforme deixava avisado que estava voltando
para a casa dos pais, por algum tempo, mas que ainda
estávamos juntos, e que os nossos sonhos ainda eram os
mesmos. Eu consegui manter a pose de durão por algum
tempo, tentando desarmá-la pelo jogo da indiferença, mas
quando notei que a sua indiferença às minhas reações era
maior e mais potente, segurei o seu corpo e pedi para que
ficasse: “resolveremos tudo junto, pequena”, “posso te
levar lá quantas vezes você quiser”, repeti algumas vezes
torcendo para que ela me encarasse e notasse no meu rosto
que eu estava sendo sincero.
– Você pode sair da minha frente e parar com o
drama, Jorge? Está me atrapalhando.
Esperei pelo reaparecimento de Anna por cinco
dias. Nenhuma ligação, tampouco visita. Perambulando
pela universidade, reencontrei alguns conhecidos em
comum que me contaram que ela estava faltando às aulas.
Na verdade, que desde o trote ela praticamente não tinha
assistido aula, gastando o seu tempo andando pelos cantos
do campus, fumando maconha, bebendo e pegando outro
alguém – Anna mantinha um relacionamento com um
veterano de outro curso que, todos os dias às dez horas da
manhã, abria a porta do carro para ela, antes de saírem
juntos para um motel.
– Por que você está perguntando tudo isso?
Conhece a Anna?
– Por nada. É apenas uma conhecida, nada mais.
Ao voltar para casa, eu decidi que não trabalharia
naquele dia. Sentado no chão da sala, fiquei bebendo o dia
inteiro, sendo incomodado pelo toque do telefone. Da
primeira vez, atendi rapidamente, pensando ser Anna, mas
ao ouvir a voz do me gerente berrando do outro lado da
linha, rapidamente coloquei o fone no gancho. Eu não
dispunha de condições físicas ou psicológicas para limpar
o chão e desperdiçar sacolas de comida diante dos olhos
famintos dos mendigos. Eu estava na merda, no fundo do
poço. Eu não tinha Deus, família, amigos e nem mulher,
sequer um conto escrito e sobrevivendo em situações
desumanas, abaixo da linha da miséria. Eu estava sozinho
e com as minhas mãos vazias. De repente eu senti falta da
minha irmã mais nova, entrando na adolescência, e quis
abraça-la fortemente; chorar no seu colo, ouvi-la cantar
pessimamente qualquer canção de qualidade pior ainda;
dos berros dados pela minha mãe que, naquela hora,
estaria ligando o rádio já sintonizado na estação gospel e
cantarolando alguns louvores, enquanto preparava a janta;
até mesmo dos passos firmes do meu pai, do ronco da
cafeteira ligada, o cheiro de café se espalhando pela casa.
Por vezes romantizamos a loucura fazendo com
que ela seja protagonista de um processo criativo, movidos
unicamente pela intenção de tornar interessante o menor
dos gestos. Mas a capacidade de se julgar e até mesmo de
considerar a loucura atrativa é um sinal de sanidade, visto
que, para o verdadeiro louco, a falta de razão é algo
comum, natural, incapaz de ser percebido e
problematizado. Não há glória na miséria de um homem e
vivenciá-la não transforma qualquer merda num grande
artista digno de aplausos. A dor não cria a obra, pois a
criação é exercício da superação, à medida que põe os
acontecimentos diante de um olhar crítico – e toda crítica é
descrição que, por si só, é o caminho inverso para a
significação que é a redução da existência pelas mãos do
Homem. Pode ser preciso sofrer para saber criar com
decência, o que não quer dizer que é preciso viver de
sofrimento, acumulando lamúrias como quem conta
carneiros.
Pensei em correr de volta para a casa dos meus
pais, mas tive medo e, temendo aqueles que me colocaram
neste mundo; eu corri ao encontro da casa dos pais de
Anna, à procura daquela que, apesar de todo o caos dos
meus dias, era uma dose de mansidão; apesar do
abandono, egoísmo e traição, era o mais próximo que eu
tinha chegado do que é amar. Poderíamos até mesmo
nunca mais nos encontrar, eu pensei, mas se assim fosse
decidido, no mínimo terminaríamos corretamente.
Na varanda da frente, encontrei o pai de Anna
segurando uma mangueira verde, colocando o dedo na
abertura para que, incentivado pela pressão, a água saísse
com mais potência pelo espaço vago. “Eu nunca poderei
oferecer uma vida assim para ela” pensei, sendo notado
apenas quando bati algumas palmas. Ele me olhou por
alguns segundos, ainda parado, possivelmente analisando
se valeria a pena ou não falar comigo. Desistindo de
molhar a grama e me ignorar, ele desligou a mangueira e,
secando as mãos nas calças, seguiu pelo pequeno declive.
Ele não era um homem alto ou forte, mas o tipo de homem
que educa outras pessoas apenas com a sua presença séria,
imponente.
– Não sei se o senhor se lembra de mim, mas eu
estive aqui com a sua filha.
– Eu me lembro. Algum problema?
– Problema algum. Só quero falar com a Anna, por
alguns minutos. O senhor pode chama-la para mim?
O pai de Anna, Aristides, franziu o cenho,
praticamente juntando as sobrancelhas grossas e grisalhas.
Encarando-me por trás dos óculos grandes, enquanto
retorcia a boca, desenhando no rosto rústico uma máscara
estranha, grotesca, entreabriu a boca. Depois de um bom
tempo me olhando, sem nada dizer, ele se afastou da porta
e começou a seguir para a casa por uma rampa feita pela
junção de vários blocos de pedra. Como eu não sabia o
que aquele gesto significava, permaneci parado diante do
portão aberto, até que ele parou e olhou para trás.
– É melhor você subir, filho.
Nós entramos pela porta da cozinha. Tirei os
sapatos, mesmo depois de ele repetir muitas vezes que não
era necessário, possivelmente numa insinuação de que eu
não me demoraria muito. Ordenou, pois estava na cara que
não era o tipo de homem que faz pedidos aos mais jovens,
que eu me sentasse numa das cadeiras e pegou dois copos
gordos e uma garrafa de uísque. Colocou uma dose
generosa em cada copo, bebeu a sua dose num gole
admirável e depois o encheu novamente. Ficou olhando
para o copo cheio, perdido em pensamentos, até que falou:

– Não é a primeira vez que ela faz isso.


– O que ela fez?
– Não me interrompa, garoto. – respondeu, antes
de dar um gole, dessa vez mais tímido – Não é a primeira
vez que ela faz isso e eu espero que você não fique se
culpando por muito tempo. A minha esposa e eu nos
culpamos por anos, até nós percebermos que é dela o erro.
O que eu quero dizer, filho, é que a sua namorada, a minha
filha, não está aqui.
Engoli a minha dose num único gole.
– Onde ela está então?
– É uma boa pergunta. Eu, realmente, pensei que
você tivesse conseguido muda-la. Nunca vi Anna tratar a
mãe com tanto carinho como ela a tratou da última vez
que veio aqui. Pensei que, depois de todos os problemas,
ela tinha aprendido a lição e decidido parar de decepcionar
os outros mas, pelo que posso ver, eu estava errado.
A minha cabeça estava a mil, sendo pisoteada por
centenas de pensamentos confusos e não raramente
contrastantes. Mesmo assim, dentro de mim a fúria crescia
rapidamente, atingindo todos os cantos do meu corpo,
fazendo de mim uma criatura odiosa, pronta para explodir
a qualquer momento. Como uma pessoa poderia ser capaz
de fazer tudo isso com as pessoas que, por ela, só
demonstraram amor? Comecei a pensar que o seu pai
poderia estar mentindo, tentando fazer com que eu me
afastasse da filha por não enxergar em mim as
características – simplesmente dinheiro, eu quero dizer –
necessárias para ocupar o lugar de genro; mas, antes que
eu pudesse formular melhor a minha teoria
conspiracionista, ele começou a chorar. Um choro que,
apesar de mudo, falou mais que qualquer berro que eu
poderia soltar naquele segundo. Eu era apenas uma
espécie de namorado que, pelo visto, não a conhecia muito
bem; ele era o pai, aquele que ficou ao seu lado desde a
época em que ela era apenas um espermatozoide dentro do
seu saco, passando pela gestação, primeiros passos, o dia
em que a ensinou andar de bicicleta, a festa de quinze anos
e a valsa, a formatura, o vestibular, etc. Ainda assim,
compreender que a dor de Aristides era infinitamente
superior à minha dor, não fez com que eu me sentisse
melhor. Por dentro eu ainda estava destruído, estraçalhado,
e sem nenhuma ideia do que eu poderia fazer.
– Ela apenas... Foge. Depois, quando o dinheiro
acaba, reaparece arrumando uma desculpa qualquer,
sequer pensando em criar algo convincente. Ela apenas te
usou, filho, assim como sempre nos usou. O que eu direi
para a Marilene? Diabos!
Eu não consegui chorar. Por mais que, em meu
âmago, eu estivesse desesperado; não consegui verter uma
lágrima sequer. Deixando o período de confusão, apenas
senti raiva: raiva de Anna e raiva de mim mesmo por ter
permitido a aproximação de alguém como ela. “Muito cara
legal já foi parar debaixo da ponte por causa de uma
mulher, meu chapa” pensei ter ouvido o velho Bukowski
dizer, enquanto eu me arrastava pelas ruas do bairro, à
procura do primeiro bar pé sujo que eu encontrasse.
– Uma dose do seu melhor “ameniza dor”.
O velho despejou o conhaque barato dentro do
copo, enchendo até a boca. Perdi as contas do quanto eu
bebi. Em alguns momentos, apenas apaguei e fiquei
debruçado sobre o balcão, com a cabeça repousada sobre
os braços, à mercê de qualquer perigo. Sem me importar
com qualquer coisa ou qualquer alguém que estivesse ao
meu alcance – apenas me importando com Anna e o seu
rabo maravilhoso e a sua buceta que me acolheu tão bem.
Quando fui jogado para fora do boteco, era tarde da noite.
Lancei alguns xingamentos e maldições às próximas
gerações e cambaleei rumo ao centro de Nova Iguaçu. A
minha carteira estava vazia e nos bolsos sequer uma nota
de cinco reais. Andei por mais de uma hora até chegar à
vila, num tipo de piloto automático, enxergando o rosto de
Anna em todos os outros rostos, ouvindo a sua voz o
tempo inteiro: “goza na cara da sua putinha”, “fode
gostoso, Jorge”. O que era aquilo que eu estava sentindo
rasgar o meu peito? Por que eu não conseguia chorar?
Sequer gritar? Por que, diabos, eu estava guardando tudo
aquilo dentro de mim? Assim como o ódio que cultivei
sobre o tratamento do meu pai, explodindo depois de
muito tempo e numa única vez, senti que eu guardaria
todo aquele monte de merda por um bom tempo, se é que
um dia eu conseguiria me recuperar por inteiro daquele
baque.
Foram seis longos e malditos meses perdido no
fundo do poço.
Eu perdi o emprego por sempre chegar atrasado e
fedendo a bebida. Vinícius, o gerente, não foi um
completo imbecil e não me demitiu por justa causa,
fazendo com que eu ainda ganhasse alguns trocados, o
suficiente para que eu continuasse seguindo o roteiro do
meu último plano: um suicídio parcelado por meio das
bebidas e drogas. Carreiras e mais carreiras de pó barato
comprados na comunidade Ben 10. Metade de um ano no
fundo do poço! Incapaz de comer outras bucetas, beijar
outras bocas, conversar com outras mulheres; apenas
murmurando, pelos cantos, que sequer tínhamos tirado
uma fotografia como recordação; dormindo com um sutiã
preto de renda em minhas mãos e a segurando como o
último regalo de um homem amaldiçoado como eu. Seis
meses sem conseguir cantar ou rir honestamente.
Definhando, apenas, acordando com a cara afogada no
próprio vômito, ficando inchado, tossindo e cuspindo
sangue atrás de sangue, sentindo fome e dores nos dentes.
Durante seis meses escrevi o seu nome nas paredes
do meu crânio. Ergui copos e os cantos da boca num
confuso brinde ao abandono, à solidão. Com as guimbas
do cigarro, eu fiz flores e ornamentei o meu teto de
telhado rachado, meu céu sem estrelas. Beijei o vazio do
meu quarto sem ter a carne dos seus lábios e apertei os
lençóis da minha cama desarrumada, sem ter o seu corpo
montado sobre o meu. Em tardes chuvosas, eu adormeci
sem a sua cabeça repousada sobre o meu peito e sem a sua
perna esquecida sobre a minha perna. Durante seis
malditos meses, eu ouvi o disco Transa do Caetano
Veloso sem vê-la dançar despretensiosamente pelos
cômodos daquela maneira que apenas ela conseguia
dançar; chamei pelo seu nome, nas madrugadas de
desespero, e rejeitei outros corpos por enxerga-la a me
encarar nas pupilas dos olhos alheios.
Mas, ao findar o sexto mês, Anna retornou.

Consigo me lembrar como se fosse ontem. Eu


estava sentado no chão da sala bebendo e fumando,
usando um copo com água de cinzeiro. Na rádio, Fagner.
Ignorei, por um tempo, as batidas na porta, pensando que
fosse algum dos vizinhos ou Seu Zé, o caseiro, desejoso de
cobrar mais algum aluguel atrasado. Mas, as batidas
continuaram. Apoiando-me na parede, consegui me
levantar e resmungando, com a minha voz grave, abri a
porta enfurecidamente.
– Eu quero que você me perdoe, Jorge. Eu te amo.
Fiquei em silêncio. Forcei a minha boca para que
permanecesse fechada, sem deixar escapar uma palavra
que fosse. Olhei no fundo dos olhos marejados e de um
esverdeado triste, porém nada consegui dizer. Eu fui
tomado por um desejo inabalável de berrar, segurá-la
pelos ombros e fazê-la ouvir todos os meus xingamentos,
lamentos; e ao mesmo tempo, fui tomado por um querer
desmedido de abraça-la, forçar a minha boca contra a sua,
trazer o seu corpo para perto do meu. Fiquei em silêncio,
querendo, mas não conseguindo chorar, sentindo que ela
seria um fantasma a me atormentar por bastante tempo;
despertando-me no meio da noite, puxando o meu pé
sempre que ele ficasse descoberto, assombrando os meus
sonhos. Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando para
Anna sem nada dizer. Desnorteado, apenas abri mais a
porta, saí do caminho dando as costas, e voltei para o meu
santuário: o chão com o copo cheio de bitucas de cigarro,
água suja e fedida.

– Podemos conversar? Eu sei que te devo algumas


explicações...
– Eu não quero ouvir a sua voz.

– Jorge... Eu só precisava respirar um pouco,


entende? A minha mãe está doente, com câncer, não dá
para fingir que isso não me atingiu.
– E por estar tão preocupada com a sua mãe que
você desapareceu por seis meses, sem ao menos ligar para
saber como ela está? Eu não quero ouvir as suas mentiras,
Anna. Eu sei que não é a primeira vez que você faz isso.
Sabe quem tem ficado ao lado dela, durante os
tratamentos, enquanto o seu pai viaja a trabalho? Anna,
em todas as vezes ela olhou no fundo dos meus olhos e
disse ter certeza que eu sou o culpado pelo seu sumiço, diz
que eu fiz alguma coisa para que você fugisse assustada.
Sabe o que é amar tanto alguém que, mesmo depois do
abandono, cuidar da sua família é uma espécie obrigação?
Uma forma de mantê-la ainda presente nos meus dias? Eu
não quero ouvir o que você tem para me falar. Não, eu não
quero. Você vai entrar naquele quarto, dormir e amanhã
cedo voltará para a casa dos seus pais. Agradeça que eu
sou imbecil o suficiente para me preocupar com a sua
segurança, caso contrário eu te expulsaria daqui agora
mesmo.
As minhas palavras saíram como tiros, uma
saraivada rápida e sem dó. Não olhei nos olhos dela, creio
que por medo de ser convencido, ter a minha raiva
abrandada pela sua beleza e por todas as boas sensações
que eu bem sabia que ela era capaz de causar, apesar de
sempre tão passageiras. Mas percebi que ela ficou em pé,
parada no mesmo lugar, por algum tempo. Até que deixou
as bolsas no chão e entrou no quarto aos prantos. Não fui
capaz de dormir naquele cômodo, naquela madrugada. A
ideia de entrar no quarto me enjoou a tal ponto que
vomitei duas vezes, debruçado sobre o vaso sanitário. “Do
que vale ter alguém se esse alguém não estiver ao seu lado
sempre que for preciso?”, eu repeti algumas vezes a fim de
reafirmar a minha decisão de expulsá-la.
Assim que amanheceu, eu desliguei o ventilador e
disse que estava na hora dela ir embora. Ela ousou me
xingar, enquanto eu saía do cômodo, mas fingi não ouvir
para evitar uma tenebrosa discussão logo pela manhã. Era
o melhor a ser feito. Abri a porta da sala e arrastei as suas
coisas para o lado de fora, deixando bastante claro que eu
não queria que ela ficasse por mais tempo. Odiei-me por
ser tão grosseiro, demoníaco, mas um homem faz o que é
preciso para sobreviver às artimanhas de uma mulher.
Quando ela entrou na sala e viu as suas coisas na varanda,
correu para pegá-las. Aquela, provavelmente, foi a minha
única chance de não ser convencido pelo seu charme.
Assim que passou pela porta, eu fechei a porta e girei a
chave, trancando Anna do lado de fora. Forçando a minha
testa contra a madeira que, do outro lado, era socada por
ela, fechei os olhos e respirei profundamente para que o
controle não escapasse das minhas mãos. Não, eu não
queria perdoá-la.
– Você é um covarde, Jorge! Você não é um
homem, é um covarde que não tem coragem de encarar
uma mulher! Odeio você! Não merece uma mulher como
eu, não merece mulher alguma! Eu vou encontrar um
homem de verdade, bem melhor que você!
Desferi um potente soco contra a porta e, do outro
lado, Anna se calou. Senti os nós dos meus dedos doendo,
o meu coração ribombando violentamente, meus dentes
trincados, a minha respiração ofegante. “Não mereço
mulher alguma” pensei, enquanto voltava para o chão e
acendia um cigarro. Respirar era difícil. Na minha mente,
os pensamentos estavam embaralhados, confusos, apesar
de todos causarem uma dor desumana. Eu me sentia como
um sepulcro vazio e, assim, perambulei pelos cômodos
esperando cair dos céus algo que pudesse aliviar o meu
sofrer, um bálsamo que, ao ser vertido sobre as minhas
feridas, trocaria o meu tormento por uma mansidão
duradoura.
Horas depois, revirando algumas caixas no quarto,
encontrei um antigo caderno de arame. Segurei com força
o sutiã de renda esquecido após o nosso primeiro encontro
e despejei sobre o papel linhas e mais linhas de
sofrimento, agonia, desespero. Folhas e mais folhas
rabiscadas com poemas de amor, com o nome de Anna,
com o sofrer que me é de direito. Sobre uma das páginas,
uma gota de água caiu sobre o seu nome, escrito por meio
de uma caligrafia asquerosa. Percebi, então, que
finalmente eu estava chorando. Depois de seis longos
meses sem prantear, seco como um deserto, eu chorei e,
por isso, também sorri – apesar de tudo, eu ainda era capaz
de sentir.

Naquele instante eu compreendi que nunca mais


seria o mesmo homem. Eu havia cruzado a linha, seguido
pelo caminho que não há retorno. Entretanto, percebi
também que ela não tinha conseguido me matar
completamente. Apesar de todos os machucados, feridas
ainda abertas, os meus punhos ainda estavam erguidos e
eu, através das palavras, ainda combatia o árduo combate
que é existir.
A CARTA
“A literatura estragou as tuas melhores horas de amor”,

Carlos Drummond de Andrade .

Jorge,
Fiquei sabendo que você perguntou sobre mim
para as minhas amigas. Chegou perto, com o sorriso que
por um bom tempo, me iluminou e, depois de falar sobre
qualquer outro assunto, encontrou uma maneira de saber
sobre o meu estado. Disse que há tempos não me
encontrava, mesmo frequentando os lugares que, antes de
te conhecer, também eram os meus lugares preferidos; e
também confessou sentir a falta do meu pai, da minha mãe
— que sempre te recebeu com mimos que nem eu mesma,
sendo filha dela, tinha recebido. Falou para as minhas
amigas que eu sou uma boa menina, que o fim do nosso
relacionamento foi apenas por não termos dado certo.
Desejou a minha sorte e garantiu, com veemência, diante
de todas, que eu encontraria um bom homem, o príncipe
encantado que eu mereço.
Pensei ter encontrado o meu príncipe encantado,
quando te conheci. Lentamente, fui descobrindo o coração
que existe por trás dos altos muros que você ergueu,
depois da sua desilusão com Anna. Descobri que, apesar
de sério, o carinho não lhe era completamente estranho;
que, apesar de todo afastamento — e ainda sinto que
jamais consegui te alcançar de verdade, por inteiro —,
tinha a sua maneira de proteger, demonstrar carinho. Na
minha carne morena, sempre que fecho os meus olhos,
ainda sinto as suas mãos firmes; na minha nuca, a sua
barba por fazer roçando contra a minha pele. Não sou
capaz de negar que há dias em que até mesmo o seu
sorriso, quase sempre acompanhado de um desviar de
olhos, bate à janela do meu quarto, e também à janela da
memória.
Antes de começar a escrever esta carta, tentei
pensar em quantas juras foram feitas por nós dois. Foram
muitas, não? Não me esqueço do dia que me chamou de
sua menina, tocando com a ponta dos dedos o meu rosto, o
contorno da minha boca. Perdi as contas de quantas horas
gastamos escolhendo o nome dos nossos filhos: eu falando
uma lista, e você apenas criticando todos os escolhidos.
Filhos que, bem sabíamos, não chegariam tão cedo — e
você sempre me dizia que era cedo demais para pensarmos
nessas coisas. Mas, Jorge, quando a eternidade é
prometida, não seria sempre “cedo demais”? Ainda tenho,
em algum canto do meu quarto, papéis com o meu nome
acompanhado do seu sobrenome. Que pecado há em
sonhar?
Eu era uma boa menina, quando te conheci. Na
verdade, acho que fui uma boa menina pelo tempo que
ficamos juntos. Ainda assim, agora eu me pergunto o que
restou quando você se foi, levando consigo o meu riso,
todas as promessas, sonhos e a minha pureza? Foi você o
meu primeiro homem, e um dia após o termino você
estava com outra. Sabe quanto tempo eu precisei para
conseguir ser tocada por outra pessoa? E, meu poeta, eu
estou falando da carne, pois a alma há tempos ninguém
toca — exceto eu mesma, quando decido pensar em você.
Ainda acredito que, uma hora ou outra, acabarei
me cansando dessas noites mal dormidas, das tantas festas
que me obrigo ir, dos corações que agora sou eu quem
machuco, das escapadas e lágrimas que, hoje em dia, eu
apenas sei provocar. Pode ser, sim, que eu encontre um
homem capaz de perdoar os meus primeiros tropeços, de
ficar ao meu lado quando o choro brotar, que saiba que
toda esta raiva é por medo de amar. Amar intensamente e,
mais uma vez, acabar sozinha, perdida no meio do
caminho, justo após ter escurecido. Ainda assim, o que
dizer? Se esse homem não chegar, Jorge, eu não morrerei.
Sobrevivi aos seus muitos erros, posso sobreviver aos
meus também; suportei o seu distanciamento e atração
pela autodestruição; eu posso suportar os meus defeitos
muito bem.
Hoje, graças a você, conheço na pele a dor que
você sente, desde o desgraçado dia em que conheceu
Anna. Não sei como alguém que se machucou tanto
conseguiu ser tão descuidado com quem apenas lhe fez
bem, criando uma menina amargurada, triste, apesar dos
olhos perfeitamente delineados, do batom retocado.
Homens como você criam mulheres como Anna ou
mulheres como Anna criam homens como você? É difícil
descobrir, e na verdade pouco importa. Apenas espero
que, um dia, você seja capaz de ficar e sentir — não
comigo, mas com outra mulher —, que consiga beber
menos e fumar menos. Por mais que eu nunca tenha
apontado para você, sei dos seus vícios, do quanto você
procura pelo alívio, mesmo sendo cego o bastante para
correr rumo à morte — senão do corpo, da sua alma.
Eu não te esqueci. Acredito até que jamais te
esquecerei. Você sempre será aquele erro que não falo, o
alarme que só apita quando estou diante da chance de uma
nova paixão, fazendo com que a minha cabeça fique cheia
de desconfianças, desesperança. Mas quero que saiba que
eu não choro mais, e que agora estou acostumada com a
nova mulher que eu sou. Ao me tornar dona de mim, eu
descobri que sou dona do mundo. E, no meu mundo, não
há mais espaço para meninos pequenos como você.

Nunca mais sua menina,


Beatriz.
Douglas Zílio Coutinho nasceu no Rio de Janeiro.
Professor, Produtor Cultural e fundador do Sarau
Marginália, atualmente mora em Nova Iguaçu.

Para maiores informações:


https://www.facebook.com/douglaszilioc

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