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Habitat

Hugo Ribeiro
Guaicurus Caetés Goitacazes
Tupinambás Aimorés
Todos no chão
Guajajaras Tamoios Tapuias
Todos Timbiras Tupis
Todos no chão
A parede das ruas
Não devolveu
Os abismos que se rolou
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial
(Clube da Esquina, Ruas da Cidade)

Desván donde el polvo viejo congrega estatuas y


musgos.
Cajas que guardan silencio de cangrejos devorados.
En el sitio donde el sueño tropezaba con su realidad.
Allí mis pequeños ojos.

(Federico García Lorca, Poeta en Nueva York)

Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é um lugar.


Tem uma encruzilhada. Estradas vão para as Veredas
Tortas — veredas mortas. Eu disse, o senhor não me
ouviu. Nem torne a falar nesse nome, não. É ao que o
senhor lhe peço. Lugar não onde. Lugares assim são
simples — dão nenhum aviso. Agora: quando passei
por lá, minha mãe não tinha rezado — por mim
naquele momento?

(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)


Assim — dizem alguns — confirma-se a hipótese de
que cada pessoa tem em mente uma cidade feita
exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras
e sem forma, preenchida pelas cidades particulares.

(Italo Calvino, As Cidades Invisíveis)


*
A cidade não sonha
faz da vida um corredor dobrado
onde homens e outras ambições
se encontram

a cidade é uma ambição


que dá forma ao sonho
que não possui

a cidade ambiciona adquirir humanidade, coitada

Vejo os vidros amanhecerem


nos beirais das janelas
(tão simples)

quase sem beirais


quase sem janelas
quase sem vidros

vejo a manhã crescer


em lugares onde
quase o vento não sabe
como chegar
quase sem nome
vai a cidade repetindo
velhos cantos de trabalho

de seus antigos
tão novos
tão fortes
quase-homens
cidades construídas
como se constroem
os redemoinhos de areia

cidades de paisagens aleatórias


(quase não escolhidas)
cidades encolhidas na noite

de nomes nascidos no susto


de uma noite favorável

vejo os vidros amanhecerem


nos beirais das janelas tão simples
quase sem homens

quase sem cidade

Não guarda nenhuma estátua a cidade


nenhum personagem se diferencia
entre as cabanas invertebradas

são todos heróis


ou
todos
não o são
igualitariamente
poetas
embaixadores
beatas
mártires

ali não nasceram

ali não morreram

Caminhando
reconheci entre os dentes do povo
seu nome

na verdade

não era um nome


era uma mania
mais que uma fronteira

o povo cantava seu nome em um solfejo claro como


um tiro

enquanto isso
cidade
você dormia
É uma cidade pequena

mas poderia não ser


uma cidade assim

seria a maior das metrópoles

se não fosse
a cidade mais vazia
da região

ainda não se sabe


se pessoas
ou morcegos

se habitam
as casas
ou
as cavernas
do estranho vilarejo

(ninguém sabe do que se alimentam)

Os catrumanos passeavam
pelas ruas da cidade
como quem não reconhece
sua imagem refletida
mais que cegos

os catrumanos
não sabem
o espanto que causaram
ao atravessar a única rua do vilarejo

chupando os ossos de um grande animal

Caminhar por aquela cidade


era
permitir que ela caminhasse
por mim
inventando lembranças
compromissos
infâncias
fatalidades
equívocos

breves epidemias

aquela cidade era


em outras palavras
um abandono

à sua própria linguagem

A cidade é o seu nome


e sua gente

a soma dos sonhos


e das promessas

repartido entre todas as misérias


(a constante é a saudade)

A cidade não espera por ninguém


mas também não foge

e aí

o que pode uma cidade


contar a si mesma
enquanto chegam

depois que partem

que mistérios são inventados


durante o tempo tão sem tempo
em que dormem

o que a cidade conta a si mesma


sonambulamente
enquanto passeia
por si mesma

É importante ouvir a cidade


me dizia um velho

seu sorriso era quieto


seus olhos cheios de poeira
seus lábios empanzinados
de muitas histórias

seu rosto parecia


uma casa muito velha

o seu corpo
barro e sol

dava atenção a tudo que faltava

eu ia ouvindo
aquilo que me contava
como se ouvisse a cidade
através do velho
que tanto rangia

Muito curiosa
aquela cidade

não havia morador


que não tivesse nas mãos
um livro

como num encantamento

vendo aquilo
perguntei
ao morador mais próximo
a razão daquela folia

e descobri

não eram eles


que liam os livros
(inquietos pássaros numerados)

Chovia em cordas
quando cheguei

ô de casa

nenhuma novidade
aos meus olhos

apenas o mesmo marasmo afiando os dentes às nove


horas

nada possuía presença


de repente
os carros e as motos e os coletivos e as filas e a
pulsação das cinco horas
e todas as ligações perdidas
tomaram minha imaginação
com as coisas da metrópole

até que ouvi as palmas de uma senhora tentando


recuperar minha atenção

e me chamava
rindo largamente

ô de casa
Era inacreditável
uma sinfonia de tambores e chocalhos
velhos cantos agitavam a mata

pés socavam terra seca

quanto mais perto


mais harmônicas
formas sem cor

atravessei o último arbusto que nos separava

todos os sons pararam


só encontrei crianças brincando

Um homem conduz suas esperanças


se resigna sob o peso da esperança
de outro
que não se inclina à menor benfeitoria

assim o homem
assim a cidade

mas sempre existirá alguém


de chapéu e existência enviesados
a participar de outras experiências

jogando aos cães aquilo que não possui

restos de alimento
aos bichos que passam
restos de pássaros
aos bichos
que não voam

criando o melhor possível


os pardais
e a si mesmo

é isso ou
tornar-se mais bicho
nas ruas da capital

Existe um céu diferente


pra cada ser que sonha

existe uma cidade diferente


pra cada ser que sai
de onde os homens são paisagem

Naquela cidade
havia um recado
em cada canto

uma mensagem

em cada banco
em cada esquina
em cada muro

o que não existia


naquela cidade
em lugar algum
eram pessoas

apenas o envelope
aguardando a paciência
do primeiro forasteiro

que passaria a saber


tudo aquilo
que ninguém soube
a tempo
A cidade é o lugar de convivência
entre tudo aquilo que acredita existir
e tudo aquilo que não acredita
mas existe

assim dizia o pórtico


da cidade
pela qual passei

não pude reconhecer


nenhuma mulher
nenhum homem
crianças ou

(apenas pássaros)
Numa outra cidade
de casas justapostas
ligadas pela intimidade
de um varal de panos
tudo se repetia
como todos se repetiam

pois através das paredes


o café
os maridos
as mulheres
os filhos
as dívidas
as promessas

as mortes todas
compartilhadas

todas as coisas comunicadas


tornavam-se uma espécie de patrimônio inconfessável

por isso

quando se cruzavam nas ruas


uns aos outros não se dirigiam palavra
(mal se olhavam)

ainda que
no fundo
se amassem
como filhos

de uma mesma cidade-mãe


Ao falar sobre essa cidade
fala-se de um par de cidades

fala-se sobre a cidade em si


cheia de edredons telhados marionetes
e sobre uma outra cidade
cheia de lembranças vestígios reticências

se ao falarmos
de cada uma dessas cidades
falamos de um par

a cidade torna-se um silêncio multiplicado

Por cada lugar que passo


as pessoas falam sobre a cidade
de uma maneira bastante diferente

em alguns lugares
a cidade torna-se
uma promessa

em outros:
um pico faminto
um poeta
um sino
todos inteiramente perdidos sob suas próprias
matérias

a cidade vai adquirindo um aspecto cada vez mais


corporal
até se desfazer

simples melodia
aos poucos esquecida
confundida com o canto da ave
que dá nome à região

uma cidade é uma reunião entre


as vertigens
e suas pessoas
Cidade lamento corrido parado sem teto esforço
suado de molho na chuva do prédio cruz na colina dos
homens que sopram antigos incêndios não voltam pra
ver quando abriga outros bichos debaixo da ponte a
água que corre não desvia de ninguém é melhor que a
gente aprenda sem medo a participar da cidade de
outras maneiras
De repente, ou sempre,
a vida
é a fronteira.

(Edimilson de Almeida Pereira, Relva)

Caminhando na beira
de uma lagoa reparei
que o sotaque dos homens
imitava a paciência
das águas que por pouco davam pé
dos limites desse mar doce
de balanços tímidos

caminhando na areia de uma praia


percebi
que o sotaque dos homens
imitava a prontidão
dos panos ao mar
num ritmo sem fundo
acostumado a deixar ao horizonte
a profundidade das grandes perguntas

os homens
naquela região
não eram
do mar ou da lagoa

pertenciam às águas

valiam-se da voz
como se optassem
ora pelas canoas
ora pelas jangadas
para reconhecer de perto a linguagem
(imarcescível)
das águas

Quem não me conhece


que me invente
quem não se conhece
que se invente
quem não te conhece
que te invente
mar de mil litorais

assim cantavam elas


assim eles cantavam
enquanto lançavam redes
ao mar que nada respondia
como que vazio de peixes
Bate a roupa
seca a roupa
olererê
bate a roupa
já é tempo
de secar bater a roupa
outra roupa seca o tempo
deixa o tempo nos valer

cantavam as lavandeiras
que mais tarde estariam
com seus vestidos encardidos
na praça da cidade
de mãos dadas
com os pescadores
e seus cantos de trabalho

A cidade amanhecia
dentro de uma outra manhã
e voltava a amanhecer
enquanto os poucos habitantes
faziam a sesta

aqueles habitantes eram compatíveis com as manhãs

a cidade vizinha apenas anoitecia

homens e mulheres de ombros encolhidos


alheios à toda paisagem

as cidades os habitantes as horas

Não havia grandes casarões


igrejas de altas cúpulas
prédios de altos ombros

apenas um cata-vento

feito pelas mãos de uma criança


dependurava-se sobre a torre
da capela miúda
em que todos
iam rezar
às sete horas

não se sabe se à imagem


se à criança
ou ao cata-vento

era uma cidade de fé muito incomum


Todos os dias
às seis horas da manhã
o sino de uma igreja muito distante
soava pelas ruas da cidade
marcando o horário em que
os moradores começavam trabalhar

pois

o sino tocava
todos os dias
às seis horas
em um lugar tão distante

que parecia um firmamento improvisado.

Aqui toda a esperança é recuperada

dizia o pórtico da cidade

não se sabe se ali


eram felizes ou não

talvez outras
suas ambições

Era uma cidade dentro


da cidade
e do homem
era um homem dentro
da cidade
e de si mesmo
era um deus alheio
sentinela
dos homens

aqueles homens preferiam a cidade à deus

É possível uma cidade em que quase todos são


cegos
e quem não é cego
é louco
e incapaz de ferir a menor criatura

não se sabe se é possível

mas ela existe

atrás de uma colina

(a qualquer instante)

Os habitantes daquela cidade dialogavam


entre si
tratavam de suas pendências
conversavam sobre o tempo das arribações
e sobre a seca que já começava devorar os garrotes

mas
não se enxergavam

os habitantes daquela cidade só enxergavam paisagens


como se tivessem velhas fotografias presas à face

vez ou outra alguém corria pelas ruas com os braços


pro alto
dizendo ter visto os homens e suas quimeras

mas isso quase não se dava

Essa próxima cidade


deve ser vista muito menos
como um conjunto de habitações
uma pequena incrustação no colo de um vale
o sítio de um velho estaleiro abandonado

e
muito mais
como um santuário
onde habitam confortavelmente
os homens e as bestas

mais as bestas
que os homens

Nenhuma forma de linguagem seria capaz de


apreender os caminhos abertos pelos moradores
daquela região esquecida num horizonte órfão. É
dizer, que tudo que ali se construiu, se derrubou, se
compôs ou foi desfeito, deu-se em silêncio. Não um
silêncio altivo e potente, mas um silêncio de quem se
cala, mesmo numa conversa consigo mesmo, frente ao
espelho. Aqueles moradores, já tendo abandonado os
grandes centros, já conhecendo de perto e de baixo a
grande folia humana, não buscavam a paz.
Procuravam o silêncio, a ausência de linguagem,
alguns se analfabetizavam, por saber que qualquer
frase poderia conter aquele grande cavalo de cedro: o
não. Apenas não davam conta de que, ao absterem-se
da fala, permitiam outra grande barbárie: o sim
Todas as cidades são
ao menos uma vez por dia
outra

naquela cidade
à noite
os nobres cidadãos em seus trajes afiados
rompiam valsas no grande salão público
tratavam-se cordialmente com todos os
requintes aprendidos com as velhas fotografias
e
pela manhã
voltavam a disputar com os ratos
aos dentes
os últimos canapés

Até até até


me acenaram os moradores de uma cidade
ao se despedirem

mais parecia o grasnar de uma ave


acostumada a acompanhar
velhos cantos de trabalho

as aves repetiam a cidade


a cidade repetia as aves

Nada me espantou tanto


nesses caminhos
como aquela cidade

não pela tensão cultivada nas ruas


não pela dormência dos muros abandonados

não pelo cheiro de umidade que apascentava as


moscas
não pelas crianças
que corriam descalças
confundindo o nome dos pais

mas pela estranha paz


que tudo isso parecia conter

E dizer que eram pobres


era pouco
ou secundário

eram pobres
sim
como se dependessem disso

mas eram
sobretudo

a realização de algum sonho

(tão frágil)

Há muito habituados a auscultar a terra


a apreender os velhos signos de um céu rupestre

há muito

a dar atenção aos muros


às ruas
às fontes
às esquinas
às mesas
às cadeiras
aos velhos castiçais
ao pó das velhas estantes

foram confundindo-se com o próprio inventário da


cidade

Havia um silêncio de tintas


naquela encruzilhada
eram onze e meia

nenhum redemoinho

não havia nada maior


que a candombá florida
que ali guardava suas cores
no escuro da paisagem

quando de repente

um urutau recobriu o silêncio com seu canto esticado


e minhas pernas tremeram como se aquilo fosse uma
véspera

antes de ser uma cidade


aquele lugar devia ser muitas outras coisas

ali nada tinha hora certa

Não se sabia
que noção de existência
protegia os moradores daquela cidade

eram pouco ou nada sabidos


de qualquer coisa que se passasse aqui e agora

tratavam de suas flores antigas


com materiais antigos de jardinagem

e mesmo os maiores artistas que ali habitavam


valiam-se de técnicas já abandonadas pela arte
com velhos pentes de aço traçavam espirais no
horizonte
agravando os sonhos da cidade
tornando-a muito mais velha do que de fato era

os moradores daquela cidade envelheciam o tempo

Quando pensamos em uma cidade de


proporções miúdas
podemos associá-la à uma pasmaceira
ao marasmo como uma criatura arfando seus pulmões
lentamente
à beatitude das donzelas de joelhos desconhecidos

podemos nos equivocar de várias outras maneiras


ainda
porém
uma cidade
por menor que seja
sempre cultiva um segredo entorpecente

cada cidade ostenta sua quimera

Feita de poucas intenções


a cidade

o que ali mais propósito tinha


eram a igreja
e o prostíbulo
e talvez por isso mesmo

barranco das virgens pecadoras

o nome daquele antro


que muitos
sem desconfiar
pensavam ser a única atração da cidade

E se dependesse apenas dos sonhos


o surgimento das cidades

haveriam parapeitos
haveriam estaleiros
haveriam homens

não se sabe

até o momento
o homem antecede a cidade

(ainda que)

E não havia mais sangue


que ali coubesse
ou tentasse romper
os portais da cidade

como uma grande novidade


que ninguém esperava
a cidade era
naquele caso
sua própria
surpresa

Não podiam esperar muito os habitantes


daquele povoado
os mais bem conceituados etnógrafos da época
pensavam
que a cidade fosse apenas
o nome de uma espécie de basilisco

e o mundo todo
os jornais todos
as revistas de ciência
não aproveitavam dali

nenhuma biodiversidade

(nenhuma morte sequer)

Cada novo morador


que ali surgia
pensava ser

a pedra fundamental

o responsável pela manutenção da cidade

não estavam enganados


porém
não faziam ideia
da carga de sonhos despendida
na execução de um simples chafariz

e havendo que compor tantas esquinas


ficaria ainda por fazer
a arquitetura do sonho de cada novo morador

nem os deuses mais pacientes tem essa disposição

Aquela cidade vivia de repetir o estertor dos


velhos trens
e quem não o fizesse

era logo tachado como louco

e condenado a revitalizar dormentes


até que

os habitantes
ali
contavam muito com as viagens não-realizadas por
aqueles trens

a nostalgia deles era uma distância adiada

Ali não havia estrangeiro algum


tampouco flores
nenhuma espécie invasora
por ali divagava

era um descampado sem sol


que fazia a vez de cidade

ainda que tudo


ali
indicasse a existência

calma e verdadeira

de um sol brotado da terra


autossuficiente

enquanto isso os homens que por ali passavam


apenas passavam

O quanto deve uma cidade assumir o homem


até que possa emular um estado humano
de abandono
não se sabe

talvez as cidades e os homens compartilhem o mesmo


grau de resignação
tornando-se indissociáveis
através da espessura dos muros perfurados
à noite

Aquela cidade não tinha nenhuma didática


para exercer o que no humano são
muros esquinas galerias

tardes fantásticas
em que ninguém se fala

deixava que seus moradores flanassem abertamente

como se navios houvessem adentrado a costa e trazido


toda a bruma
do ócio

E o poema
não é a cidade
e o homem
tampouco a possui

ainda que nela trace suas ruas como lençóis

poucas coisas são a cidade


independe da nossa vontade
aquilo que nela é alicerce e tempestade

Chegando numa região


me deparei com uma cidade
entornada sobre o granito da encosta

como se ali houvesse sido disposta calmamente

entretanto

percebiam-se os gritos de excitação de suas moradoras


que festejavam enquanto a cidade se apascentava
e se retiravam

nem bem a cidade começava a afinar seu velho


acordeão

Havia outra cidade


em que nenhum muro
desconhecesse uma representação
que o conferisse presença

em cada esquina exibiam-se pinturas que refletiam


ali
o ponto simetricamente correspondente ao outro lado
da cidade
os antípodas que dão substância à diferença

e não havia quem impedisse a cidade

de se multiplicar incessantemente
sobretudo nos reflexos calados dos prédios
Menina onde andas
Menina onde estás
Conta-me das tuas esquinas.

(Oscar José Medeiros Junior, Autobiografia Poética)

Apenas na cidade acontecem estas três coisas


a solidão
a saudade
o sonho

porém

a cidade não acontece


apenas
na cidade

Ao longo do largo central


existiam três bons lugares

para tomar um bom café


para ouvir boa música
para conversar com pessoas

respectivamente

único infortúnio

os três lugares não existiam simultaneamente

e nada ali convivia

A poética da cidade
apenas é encontrada

começa a se dissolver

entre os ruídos da fábrica


e todos seus pontos de alívio

de dentro não se vê
de fora não se sabe

a poética da cidade é apreendida


como que no alheamento estratégico
de quem anda se calando
enquanto confere a cidade
e o giro de seus muitos silêncios

Há uma incorporação necessária


cidade pessoa sonho

mas
ainda que algum parto se realize
em nossas poças de lama

é preciso arrancar com os dentes


nós de dentro da cidade que então se aloja
em nós

extrair dos sorrisos a arquitetura suprimida


dos ombros todos os vergalhões
dos pés toda planta-baixa

isolar as noções de sujeito-cidade


alteridade
é uma tarefa intermitente.

Aquela foi uma noite


de apagamentos extraordinários

ainda que todos estivessem nas calçadas


ainda que os cães latissem regularmente

ainda que
a senhora dona da casa não ligasse para a louça na pia
nem as crianças dessem pela falta dos filhotes de gatos

naquele momento
tudo que a brasa da noite cobria
tornava-se outra coisa
absurdamente irreverente

que nem mesmo os velhos anciãos haviam previsto

Voltei a encontrar aquela cidade


por muitos anos ainda
não apenas na memória
mas na poeira mesma sob os pés

o mesmo sabor de tarde no sal das manhãs

o mesmo sotaque arrochado compreendido na


calmaria das noites verdes

a mesma lagoa alimentando as muitas outras infâncias


que estariam por vir

endireita-me pensar nessas loucuras

das cidades que nos acompanham por toda a vida

como uma tempestade de areia e paciência

A depender de quem nos apresente a cidade


as esquinas se aproximam
e as ruas adquirem
aspectos mais corporais
podendo ocorrer amores até mesmo à luz do dia
conhecer uma cidade é sempre um desafio
para quem não pode ignorar o comportamento
das folhas secas na avenida principal
representando afetos
em cada esquina
Após descansarem
sob a sombra de setembro
ou dezembro
não se sabe

puseram-se a erigir
a cidade imaginada

alguns metros de tábuas


amarelas calcinadas
por pouco podres
por pouco tábuas

mais pregos e parafusos


que tábuas que amarelos
mais pregos que gente
mais vontade que martelos
mais suor que paciência

queriam porque queriam


levantar uma cidade
desde seu abandono
cidade que nasceu precária
e foi acumulando misérias

havia mais solidão que portas naquele lugar

(dava dó)
O poeta escreve
e os cães se estranham

à meia noite
tudo volta a ser
diferente

os casais passeiam pelas ruas da cidade

amando-se
nem de mais
nem de menos

parecem amar um amor comedido


pois que crescido na terra vermelha
sob um sol de cimento

(os poetas cruzam-se pelas ruas sem se


cumprimentar)
os cães se lambem
alguém grita madrugada afora
pedindo calma

Uma pessoa tem as


mãos abertas na avenida central
de uma cidade de luas e cães

é preciso continuar

atravessando as cortinas da linguagem


até que possamos reaver
todas as esquinas secretas
a que temos direito

a cidade é
também
uma atitude

E assim a cidade
continua sua meditação
entregando às vistas
sempre a metade
do que pode oferecer
não há nada de anormal
que o tempo vá
compondo a cidade
com atributos animais
maio 2020

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