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POEMA – Sophia de Mello Breyner

A minha vida é o mar o Abril a rua


O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro


Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações


Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar


São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade


Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente


Cada dia preparada

EXÍLIO
Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
O POEMA
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá


Às searas

Sua passagem se confundirá


Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes


Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará


Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas


De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

DATA
Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira


Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro


Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça

TÃO GRANDE DOR


> palavras de um timorense à RTP

Timor fragilíssimo e distante


Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha

<
 Cantos danças ritos
E a pureza dos gestos ancestrais>>

Em frente ao pasmo atento das crianças


Assim contava o poeta Rui Cinatti
Sentado no chão
Naquela noite em que voltara da viagem

Timor
Dever que não foi cumprido e que por isso dói

Depois vieram notícias desgarradas


Raras e confusas
Violências mortes crueldade
E anos após ano
Ia crescendo sempre a atrocidade
E dia a dia --- espanto prodígio assombro ---
Cresceu a valentia
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha

Timor cercado por um bruto silêncio


Mais pesado e mais espesso do que o muro
De Berlim que foi sempre falado
Porque não era um muro mas um cerco
Que por segundo cerco era cercado

O cerco da surdez dos consumistas


Tão cheios de jornais e de notícias

Mas como se fosse o milagre pedido


Pelo rio da prece ao som das balas
As imagens do massacre foram salvas
As imagens romperam os cercos do silêncio
Irromperam nos écrans e os surdos viram
A evidência nua das imagens

AS PESSOAS SENSÍVEIS
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira


À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"


Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

EU CONTAREI
Eu contarei a beleza das estátuas -
Seus gestos imóveis ordenados e frios -
E falarei do rosto dos navios

Sem que ninguém desvende outros segredos


Que nos meus braços correm como rios
E enchem de sangue a ponta dos meus dedos.

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