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As Cidades e o Desejo 1 As Cidades e a Memória 4

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Ao se transporem seis rios e três cadeias de montanhas, surge Zora,


Da cidade de Dorotéia, pode-se falar de duas maneiras: dizer que cidade que quem viu uma vez nunca mais consegue esquecer. Mas não porque
quatro torres de alumínio erguem-se de suas muralhas flanqueando1 sete deixe, como outras cidades memoráveis, uma imagem extraordinária nas
portas com pontes levadiças que transpõem o fosso cuja água verde recordações. Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por
alimenta quatro canais que atravessam a cidade e a dividem em nove ponto, nas sucessões das ruas e das casas ao longo das ruas e das casas ao longo
bairros, cada qual com trezentas casas e setecentas chaminés; e, levando- das ruas e das portas e janelas das casas, apesar de não demonstrar particular
se em conta que as moças núbeis2 de um bairro se casam com jovens dos beleza ou raridade. O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras
outros bairros e que as suas famílias trocam as mercadorias exclusivas que que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou
deslocar nenhuma nota. Quem sabe de cor como é feita Zora, à noite, quando
possuem: bergamotas, ovas de esturjão, astrolábios, ametistas, fazer
não consegue dormir, imagina caminhar por suas ruas e recorda a seqüência em
cálculos a partir desses dados até obter todas as informações a respeito da
que se sucedem o relógio de ramos, a tenda listrada do barbeiro, o esguicho de
cidade no passado no presente no futuro; ou então dizer, como fez o
nove borrifos, a torre de vidro do astrônomo, o quiosque do vendedor de
cameleiro que me conduziu até ali: “Cheguei aqui na minha juventude, melancias , a estátua do eremita e do leão, o banho turco3, o café da esquina, a
uma manhã; muita gente caminhava rapidamente pelas ruas em direção travessa que leva ao porto. Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma
ao mercado, as mulheres tinham lindos dentes e olhavam nos olhos, três armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que
soldados tocavam clarim num palco, em todos os lugares ali em torno deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações
rodas giravam e desfraldavam-se escritas coloridas. Antes disso, não vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre
conhecia nada além do deserto e das trilhas das caravanas. Aquela manhã cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de
em Dorotéia senti que não havia bem que não pudesse esperar da vida. afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória. De modo que os
Nos anos seguintes meus olhos voltaram a contemplar as extensões do homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor.
deserto e as trilhas das caravanas; mas agora sei que esta é apenas uma Mas foi inútil a minha viagem para visitar a cidade: obrigada a
permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou,
das muitas estradas que naquela manhã se abriram para mim em
desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo.
Dorotéia”.

1
Cercando.
2 3
Com idade para casar. Tipo de sauna pública.
As Cidades e o Desejo 3 As Cidades e os Símbolos 2
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Há duas maneiras de alcançar Despina: de navio ou de camelo. A cidade Da cidade de Zirma, os viajantes retornam com memórias bastante
se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar. diferentes: um negro cego que grita na multidão, um louco debruçado na cornija
O cameleiro que vê despontar no horizonte do planalto os pináculos dos de um arranha-céu, uma moça que passeia com um puma na coleira. Na
arranha-céus, as antenas de radar, os sobressaltos das birutas brancas e realidade, muitos dos cegos que batem as bengalas nas calçadas de Zirma são
vermelhas, a fumaça das chaminés, imagina um navio; sabe que é uma cidade, negros, em cada arranha-céu há alguém que enlouquece, todos os loucos passam
mas a imagina como uma embarcação que pode afastá-lo do deserto, um veleiro horas nas cornijas, não há puma que não seja criado pelo capricho de uma moça.
que esteja para zarpar, com o vento que enche as suas velas ainda não A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente.
completamente soltas, ou um navio a vapor com a caldeira que vibra na carena Também retorno de Zirma: minha memória contém dirigíveis que voam
de ferro, e imagina todos os portos, as mercadorias ultramarinas que os em todas as direções à altura das janelas, ruas de lojas em que se desenham
guindastes descarregam nos cais, as tabernas em que tripulações de diferentes tatuagens na pele dos marinheiros, trens subterrâneos apinhado de mulheres
bandeiras quebram garrafas nas cabeças umas das outras, as janelas térreas obesas entregues ao mormaço. Meus companheiros de viagem, por sua vez,
iluminadas, cada uma com uma mulher que se penteia. juram ter visto somente um dirigível flutuar entre os pináculos da cidade,
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma da corcunda de um somente um tatuador dispor agulhas e tintas e desenhos perfurados sobre a sua
camelo, de uma sela bordada de franjas refulgentes entre duas corcundas mesa, somente uma mulher-canhão ventilar-se sobre a plataforma de um vagão.
malhadas que avançam balançando; sabe que é uma cidade, mas a imagina como A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir.
um camelo cuja albarda4 pendem odres5 e alfajores de fruta cristalizada, vinho de
tâmaras, folha de tabaco, e vê-se ao comando de uma longa caravana que o
afasta do deserto do mar rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada das
palmeiras, rumo a palácios de espessas paredes caiadas, de pátios azulejados
onde as bailarinas dançam descalças e movem os braços para dentro e para fora
do véu.
Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o
cameleiro e o marinheiro vêem Despina, cidade de confim entre dois desertos.

4
Tipo de sela grosseira.
5
Garrafas feitas a partir de peles.
As Cidades e a Memória 5 As cidades e o desejo 4
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Coreto: é uma cobertura, situada ao ar livre, em praças e jardins, para abrigar bandas
musicais em concertos, festas e romarias. Minarete: é a torre de uma mesquita.
As Cidades e os Símbolos 3 As Cidades Delgadas 2
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Palafitas: habitações suspensas sobre a água.


Bailéus: Andaime ou estrado de madeira suspenso por cordas.
Belvederes: Qualquer estrutura construída com o objetivo de se poder usufruir da vista.
Pagode: tipo de templo oriental, geralmente budista. Alpendre: Tipo de varanda.
Lazareto: Leprosário; Estabelecimento para controle sanitário de doenças contagiosas. Nastros: Fita estreita de linho, algodão ou outro fio.
As Cidades e o Desejo 5 As Cidades e os olhos 3
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Andas: Pernas de pau.


Diáfana: Em que a luz passa parcialmente.
Pórtico: Local coberto à entrada de um edifício.

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