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R ESU M O :
A visão de cidade em Carlos Drummond de Andrade e Jo ã o Cabral de Melo Neto a partir de dois poemas: Lanterna
Mágica(1930) de Drummond e Paisagens com Cupins(1956) de Jo ã o Cabral.
São tratadas imagens de cidades e da paisagem rural-urbano brasileira: nos dois autores, temos o registro am bivalen
te de modernização e tradição. Carlos Drummond de Andrade aparece no momento da metamorfose do país agrário
em uma sociedade urbano-industrial. Jo ã o Cabral registra um momento posterior, a década de 50: aceleração da
urbanização e tam bém o acirramento de antigas contradições.
PALAVRAS-CHAVE:
literatura cidades urbanização rural-urbano
R É SU M É :
La ville, d'aprés Carlos Drummond de Andrade et Jo ã o Cabral de Melo Neto, à partir de deux poèmes: Lanterna Mágica
(1930) de Drummond et Paisagens com Cupins (1956) de Jo ã o Cabral.
II s' agit d'im ages de villes et du paysage rural-urbain brésilien: chez les deux auteurs le mêm e aspect am bivalent de
la modernisation et de la tradition. Carlos Drummond de Andrade apparait au moment de la m étam orphose d' un
pays agraire en une société urbain-industrielle. Jo ã o Cabral représente un moment postérieur, les années 50: accélération
de 1' urbanisation et exacerbation d'anciennes contradictions.
M OTS-CLÉS:
littérature villes urbanisation rural-urbain.
Poetas consagrados do modernismo, ainda que propriamente dito, haveria um fio condutor costuran
de gerações diferentes, Carlos Drummond de Andrade do a evolução das nossas cidades? O fato é que,
e Jo ã o Cabral de Melo Neto apresentam seus olhares sejam cidades de memória colonial, sejam cidades
sobre a cidade e suas paisagens. Lanterna Mágica de deste século, a poética de suas visões não consiste
Drummond aparece na década de 30 em Algum a Po- em encobrir as contradições de nossa formação eco
esiae Paisagens com Cupins de Jo ã o Cabral faz parte nômica e cultural, ao contrário, procura revelá-las
do livro Quaderna dos anos 50. em cada imagem sugerida pelos poetas em questão.
O primeiro ponto em comum está na orienta Em Lanterna Mágica o circuito é Belo Hori-
ção do tema, trata-se em ambos de um circuito de zonte/Sabará/Caeté/Nova Friburgo/ Itabira/São Jo ã o
cidades, de uma perspectiva plural, do aceite tácito Del Rei/Rio de Janeiro/Bahia; em Paisagens com
da diversidade do urbano; em geografia e arquitetu Cupins a seqüência é Recife/Olinda/arrabaldes de
ra, como sabemos, esta visada desperta indisfarçável Recife/vilas entre coqueiros/cidades do canavial/cer
interesse. tas cidades(Escada, Jaboatão, Goiana) e volta ao
A bem da verdade, as cidades de Drummond Recife. De nossa parte marcamos com com entários
são vistas nos anos 30 e as de Jo ã o Cabral nos anos curtos cada poema apresentado, definindo pontos de
50, momentos diferenciados da história da urbani interesse para sua retomada ao final.
zação brasileira. A pergunta que fazemos é dupla:
haveria entre os autores pontos de contato, linhas LANTERNA MÁGICA a seqüência de cid ad es de
de continuidade ou apenas um antagonismo mal-dis- Carlos Drummond de Andrade.
farçado sob a cifra por demais genérica do moder
I / BELO HORIZONTE
nismo; e, por outro lado, no que se refere ao urbano
meus olhos têm m elancolías
1 Aluna de pós-graduaçáo do Departamento de Geografia - USP
minha boca tem rugas.
6 8 Mirandulina Maria Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos D rum m ond de Andrade
Em E sq u e ci um ram o de flores no sobretudo, ria aberta a partir da vita contem plativa, uma espé
o mais enigm ático dos versos, a cidade não fornece cie de presentificação intuitiva do curso da vida por
nenhum a imagem. A situação não é clara, um ramo livre escolha.5 O próprio Drummond nos dá pistas de
de flores não foi entregue? Um desejo não realiza seu processo de criação quando intitula a seqüência
do? de poemas de Lanterna mágica, pois o que é uma
lanterna mágica senão um aparelho que, através de
VII / RIO DE JANEIRO lentes, aproxima aquilo que é visto ao longe, isto é,
que amplia o que está reduzido e o projeta então,
FIO S nervos faíscas. através da luz, à visão de todos. A memória do poeta
As cores nascem e morrem é a lente especial que discerne o que é relevante nas
com impudor violento. imagens: escrever o poema é torná-lo visível, assim
Onde meu verm elho? Virou cinza. com o faz a luz na lanterna m ágica; a operação
Passou a boa! Peço a palavra! drummoniana se vale da noção espacial, mas o que
Meus amigos todos estão satisfeitos ela realiza é o transporte do tempo através de recor
Com a vida dos outros. Fútil nas sorveterias. tes de espaços, uma vez que é som ente a imagem
Pedante nas livrarias... do espaço que, em razão de sua estabilidade, dá-
Nas praias nu nu nu nu nu nu nu nos a ilusão de não m udar através do tem po e de
Tu tu tu tu tu no meu coração. encontrar o passado no presente .6
Isso posto, antes de revisitarmos os meandros
Mas tantos assassinatos, meu Deus. do poema (nosso principal propósito), realizamos a
E tantos adultérios também. seguir algumas passagens que visam m elhor dispor
E tantos, tantissimos contos-do-vigário... do arranjo teórico disponível. O tem a da memória
(este povo quer me passar a perna) suscita hoje o interesse de um conjunto de pesqui
sas com os mais variados formatos e aspirações;
Meu coração vai molemente dentro do táxi. neste fim de século, é, por assim dizer, uma cifra
inflacionada, quase um lugar-comum. De nosssa par
A primeira noção é a de perigo: fios nervos ris te procuramos subsídios num cam po vasto de refe
cos faíscas, e aparece a expressão: com im pudor vio rências; de toda sorte, acreditam os que do ponto de
lento: o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro diferen vista de estudos desta natureza que neste momento
cia-se bastante da rotina mineira. Meus amigos todos tratamos, a perspectiva teórica bergsoniana pode
estão satisfeitos / com a vida dos outros/ fú til nas fornecer boas pistas para as perguntas que tenta
sorveterias/pedante nas livrarias. O registro da me mos encaminhar. Dentro do seguinte quadro: nos
trópole é também a violência: mas tantos assassina apoiamos num recorte feito por Benjam in a partir de
tos/ e tantos adultérios também. E o medo que o certas passagens da obra de Valéry e numa determi
interiorano tem da esperteza urbana: tantissimos con nada perspectiva da abordagem bergsoniana. As ra
tos-do-vigário/ este povo quer m e passara perna. zões deste procedimento são simples: Benjam in já
resolveu boa parte dos problem as relacionados à
questão da experiência artística tom ando por base
VISÕES DE CIDADES EM CARLOS DRUMMOND numerosos autores, entre os quais Valéry e Bergson,
DE ANDRADE e, principalmente, inclui na sua análise o exemplo
concreto de um artista: Baudelaire.
Mediado pela Lanterna m ágica ,3 o olhar de Sobre Valéry, nos inform a Benjam in: é dos
Drummond aproxima à custa da memória aquilo que primeiros que se interessou pela form a especial de
no momento descrito é distante. Trata-se neste au
tor da m emória como a entende Bergson4, a memó- 5 Como adverte W.Benjamin, a memória pura -m e m ó ire pure- de
Bergson é transformada em memória involuntária em M. Proust.
Insisto que em Bergson não se verifica o registro desta passa
3 "La n te rn e m agique(ap pareil de projectio n.) m unie d'un gem, isto é, Bergson não se refere a um registro de uma memória
dispositif optique de projeter, agrandies sur un écran, des images involuntária.
peintes sur verre", nouveau Petit Robert. D iccionaire de La Langue 6 M.Halbwachs. M em ória Coletiva. São Paulo, Vértice, 1990, A
Française. Montreal, Dicorobert, 1993. consideração do espaço adquire relevância na obra deste au
4 Henri Berson. M atière et M ém oire. São Paulo, Martins Pontes, tor; é que o espaço, mais que suporte físico, corresponde a
1990. uma imagem existente na mentalidade coletiva.
Revista Geousp, n2 2, p. 67-77, 1997. 7 1
funcionamento dos mecanismos psíquicos sob as con introduz a perfeita imagem m im ética da cidade ve
dições atuais de existência.7 O lírico Valéry perce lha, que aqui neste contexto é propriam ente uma
be, certam ente pela sua experiência própria de ar metáfora da velh ice10: O rio das velhas lam be as ca
tista, que as im pressões e as sensações hum anas sas velhas,/casas encardidas onde há velhas nas j a
pertencem à categoria das surpresas; são o teste nelas. Como os velhos nas janelas, a cidade apenas
munho de uma insuficiência do ser humano... A lem contem pla o mundo, sinal de que seu tempo de rea
brança é... um fenôm eno elem entar que pretende lização passou, um quadro urbano estático como uma
nos conceder tem po para organizar a recepção do pintura. O poeta moderno questiona a modernidade:
estímulo -tempo que nos faltou inicialmente8. A abor Eu fíc o cá em baixo/m aginando na p on te m oderna -
dagem bergsoniana interessa a Benjam in na m edi m oderna p o r quê? Aqui Drummond realiza uma co
da em que fornece uma pista de com o a experiên rajosa inflexão que verem os adiante se cumprir.
c ia (d o p o e m a ) se a p re s e n ta ao s o lh o s de Drummond percebe a relação tempo-espaço
Baudelaire. Para Bergson a m em ória é a estrutura configurada em cada cidade apresentada. Belo Hori
básica da experiência: esta form a-se m enos com zonte não é uma metrópole como o Rio de Janeiro,
dados iso la d o s e rigorosam ente fixad os na m em ó mas é uma cidade de concepção modernizadora, e é
ria , do que com dados acum ulados >e com frequência aqui que o poeta afirma seu olhar privilegiado sobre
in con scien te s que a fluem à m em ória .9 Ao abrir o a cidade. Vejamos novam ente a prim eira estrofe:
cam inho para o registro da m ém oirep u re (memória Meus olhos têm m elancolías/m inha boca tem rugas/
pura) isolada da m em ória pragmática, da qual ne Velha Cidade!/As árvores são repetidas. A reação do
cessitam os para os atos mais rotineiros e autom áti poeta à modernidade evidente de Belo Horizonte é
cos da vida cotidiana, o que Bergson deseja é fixar reticente e m elancólica. Aliás, o próprio Drummond
a estrutura básica da experiência presente na es fala de m elancolia e de envelhecim ento (rugas) e re
trutura da mem ória. Ora, este caráter da experiên fere-se a Belo Horizonte como Velha cidade ! Ora,
cia humana, em estado ideal, com o é definido por pergunta o leitor, o que significa este despropósito?
Bergson, parece ser adequado apenas para a cate Velha cidade é Ouro Preto, Sabará ou outra qual
goria dos escritores, ou pelo menos ser de interes quer, afinal BH não é uma cidade nova?
se e fornecer pistas no sentido de esclarecer os Uma pista que pode dar uma explicação so
m ecanism os de realização de uma obra. bre o estranho comportamento do poeta está na ju s
Da seqüência drummoniana de cidades há pelo tificativa fornecida por W.Benjamin a respeito da pers
menos três visões características: a cidade moderna pectiva do spleen em Baudelaire: o spleen p õ e sécu
(Belo Horizonte), as cidades tradicionais mineiras lo s entre o presente e o m om ento que acaba de se r
(Sabará, Caetés, Itabira, etc) e o Rio de Janeiro, a vivido. É ele que quer, incansavelm ente estabelecer
metrópole inabarcável com um só olhar, cidade de 'antiguidade'." Assim Drummond, m ovido também
experiências novas, onde a todo momento se esbar pelo motor do spleen, já vê o novo devidam ente en
ra com o desconhecido. velhecido. Pergunta de novo o leitor: faz sentido o
As cidades tradicionais mineiras são descritas paralelo Drummond-Baudelaire?
a partir do desenrolar do fio da memória, e a deca Em primeiro lugar, faz sentido na medida em
dência de suas econom ias as transforma na figura que no interior da obra drumm oniana -em seus pró
de velhos que, afastados da vida do trabalho, põem- prios versos - não só no exemplo desta prim eira es
se a relembrar: suas igrejas, suas personagens his trofe sobre BH como em outras situações é possí
tóricas e, numa certa medida, até o sobrenatural, vel encontrar os traços característicos de uma pers
tão presente no imaginário das pequenas cidades do pectiva permeada pelo spleen baudelaireano; que
interior: ouve-se uma voz longa que sobe o morro. As esta palavra se traduza em português por m elanco
imagens sucedem-se, mas a primeira da série é sem lia e que este 'estado de sentidos' produza tais efei
pre o panoram a mais geral, a volum etria mais signi tos estéticos anunciados é certo que sim; é um esta
ficativa: os morros, as torres das igrejas, o trem. Em
Sabará (o poema mais longo e detalhado), o poeta lo A respeito da velhice, o já clássico livro de E.Bosi. Lem bran
ças de Velhos-.Memória e Sociedade. Sào Paulo, T.A Queiroz,
1979. Há um capítulo introdutório dedicado à discussão da
7 W.Benjamin. C harles Baudelaire, um L íric o n o auge do capita memória no aspecto teórico, no qual os dois autores tomados
lism o. São Paulo, Brasiliense, 1991. P. 109. como referência são H.Bergson e M. Halbwachs.
8 Idem, ibidem, p. 1 10. 1 1 W.Benjamin. Charles Baudelaire, um líric o n o auge do C ap italis
9 Idem, ibidem, p. 105. mo. Sáo Paulo. Brasiliense, 1991.
7 2 Mirandulina Maria Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos Drum m ond de Andrade
do, contudo, que nada tem a ver com a apatia que do de dependurar o paletó, tão típico e significativo
em português associam os ao termo. no quadro funcional da nossa burocracia, desloca-se
Mas também é interessante o paralelo a nível de seu lo cu s natural (repartição pública) e faz da ci
estratégico.12 Baudelaire é afinal um lírico no auge dade aberta e abstrata seu novo nicho. Aqui volto a
do capitalism o . Como observou W.Benjam in, sua po evocar a figura de Baudelaire, para quem a cidade
esia estabelece uma relação de profunda tensão com constituía ponto privilegiado de criação.
a m odernidade, talvez porque vivesse no momento Nos versos Pelos Ja rd in s Versailles/ ingenui
vertiginoso de transform ação no século XIX; é esta dade de velocípedes não é gratuito que o poeta tome
tensão talvez a responsável pelo teor crítico de sua de empréstimo uma imagem de cidade européia
obra. Baudelaire era perfeitam ente consciente das jardins Versailles - para falar de uma situação brasi
im plicações do ato de escrever em plena modernida leira: Drummond sabe que está diante de uma cópia
de, com o se pode ver na dedicatória a Arsène de uma beleza padrão de modernização, e, quando
Houssaye feita pelo poeta: a prosa poética deve ser arremata com ingenuidade de velocípedes, a ironia é
bastante fle x ív e l e resistente para se adaptar às desvastadora. Os velocípedes eram a prim eira ver
em oções líricas da alma, às ondulações do devaneio, são das bicicletas atuais, tiveram seu auge em Paris
aos choques da consciência. Este ideal, que se pod e em 1868 e já em 1882 praticam ente não eram mais
tom ar idéia fixa se apossará, sobretudo, daquele que, utilizadas15; o poeta completa a imagem introduzindo
nas cidades gigantescas, está afeito à tramas de suas nela um objeto que correspondia a uma idéia de novo
inúm eras relações entrecortadas .I3 Nesta passagem do século passado. E por fim a imagem do velho
o poeta está esclarecendo seu processo de criação, fraque não poderia ser mais adequada para situar
trata-se pois de ser flexível e receptivo aos choques nosso visível descompasso.
da consciência. Assim é que a poesia lírica pode es Em Lanterna mágica, o Rio de Jan eiro , como
tar fundam entada na experiência do choque (o cho já observamos, oferece a prim eira visão da metró
que aliás é a norma) e para isso ela requer um alto pole ao poeta. É nesta cidade que Drummond tem
grau de conscientização, ñ o spleen, a percepção do de fato a experiência do choque, própria da moder
tem po está sobrenaturalm ente aguçada; cada segun nidade. Rio de Jan eiro é o pólo experim ental da
do encontra o consciente pronto para am ortecer o modernidade, e no primeiro verso: fio s nervos faís
seu choque.1* O papel de crítico e ator da moderni cas, trata-se de choque literalm ente.No verso seguin
dade desem penhado por Baudelaire na Europa do te, as cores nascem e m orrem / com im p u d or violen
século X IX talvez tenha sido realizado por Drummond to, está a constatação do efêm ero, que certam ente
no Brasil século XX, com as devidas proporções. Para não diz respeito apenas à gestação de prováveis flo
nós as transformações vieram tardiamente, como se res; o poeta procura dar conta da produção inces
sabe, e com fisionom ia própria, bem própria, aliás. sante de novidades, m elhor dizendo, de m ercadori
Não se trata de mera reprodução de papéis. A nossa as: trata-se de uma rotina, é a dialética da produção
modernização tem todos os males da outra, estran de mercadorias: a novidade do produto(com o esti
geira, e mais alguns próprios de sua realização tar mulante da demanda) como tam bém o sempre igual
dia e incompleta. Nosso poeta, sabemos, surge no aparecem de modo evidente na produção de mas
momento da transform ação de país agrário em soci sa .16 W. Benjam in já observava tal fato à época de
edade urbano-industrial, e ele soube ver esta condi Baudelaire; até então, este significado (do sempre
ção histórica como ninguém. igual) era desconhecido. O poeta segue. Onde o meu
Voltando ao poema, vejam os como o poeta verm elho?/ virou cinza. Aqui novamento o envelheci
resolve os versos seguintes. Já me referi antes à mento precoce. Há em seguida uma mudança de pla
seqüência: debaixo de cada árvore faço m inha cam a/ no: introduz-se a noção de pessoalidade e surge a
em cada ram o dependuro m eu p a le tó / lirism o. O idéia de grupos sociais identificáveis, dos quais o poeta
nonsense chapliano tem sabor local: o gesto repeti- inclusive faz parte: m eus am igos estào satisfeitos/
com a vida dos outros/ fú til nas sorveterias/pedante
12 Jo s é Guilherm e Merquior chama a atenção para um paralelo nas livrarias. A seguir, o plano do perigo inicial torna-
entre Baudelaire e Drummond, este visto como introdutor de se o plano da suspeita am eaçadora: tantos assassi-
uma sensibilidade lírica moderna. Verso Universo em Drummond.
Rio de Janeiro, Jo s é Olímpio, 1975.
15 W.Benjamin. Op. Cit, p l9 7 .
13 W.Benjamin. Op. Cit. pp. 68-69.
16 W.Benjamin. Op. Cit.p.172.
14- W .Benjam in.Op.cit. p 136.
Revista Geousp, n9 2, p. 67-77. 1997. 73
natos m eu DeusA A última estrofe corresponde ao PAISAGENS COM CUPINS - seq ü ên cia de cid ad es
ponto de vista do senso comum, pronunciado em torn de João Cabral de Melo Neto
familiar, e de certo modo remete à idéia de uma cons
trução coletiva a respeito das metrópoles: numa cu
PAISAGENS COM CUPINS
riosa reviravolta poética, Drummond se vale deste
artifício para recriar no poema, em tom coloquial,
O Recife cai sobre o mar
como a cidade do Rio é vista pela grande maioria dos
sem dele se contaminar.
brasileiros. Não se pode deixar de pensar na expli
O Recife cai em cidade,
cação de M .Halbwachs17 sobre a relação da memó
cai contra o mar, contra: em laje.
ria com o espaço: cada sociedade recorta o espaço a
seu m odo, m as de uma vez p o r todas, ou seguindo Cai como um prato de metal
sem pre as m esm as linhas, de m odo a constituir um sobre outro preto de metal
quadro fix o onde encerra e localiza suas lem bran sabe cair: limpo e exato
ças. e sem contágio; em só contacto.
De certo modo, é curioso que até hoje a visão
do poeta a respeito do Rio de Jan eiro enquanto Cai como cidade que caia
cidade perigosa - retirada de um quadro de memóri vertical e reta, sem praia.
as coletivo de época, persista (trata-se realmente de Cai em cais de cimento, em porto,
um quadro fixo) e torne-se até mesmo muito mais em ilhas de aresta e contorno.
trágica. A explicação está, contudo, fora do alcance
da poesia: a violência das nossas grandes cidades só O Recife cai na água isento.
atestam que a evolução urbana n o B rasil não só não Bem calafetado o cimento:
extirpou as raízes colon iais do atraso, que em p rin cí ao dente da ostra, ou sua raiz,
p io estariam historicam ente fincados no retrógrado aos bichos do mar, seus cupins.
m undo rural, m as as reproduziu em escala industrial
nas nossas cidades contrariando ponto p o r pon to a
Primeiro e último ponto da seqüência: Recife.
variante urbanística do progressism o de nossas eli
A constatação do poeta: R ecife ca i sobre o m ar em
tes ilu s tra d a s . 18 A ssim , as cid ad es vistas por
laje. Recife cai isento de cupins porque está bem
Drummond nos anos 30 incluem-se na gênese da
calafetado. Aqui o primeiro aviso ao leitor é o de
nossa evolução urbana, mas o poeta, ao descrever
uma oposição clara entre duas ordens, a natural e
Belo Horizonte, não cede aos apelos sedutores do
urbanismo m odernizados sabe bem o que vê: en tradicional dos cupins e a abstrata-industrial, ex
xerga ao longe a casinha de alpendre colonial. pressa na palavra cimento. Fácil acrescentar noções
A lanterna mágica, ao proporcionar a descri a estas duas ordens: a cupins -colonial, primitiva (de
ção em conjunto de cidades tão diferentes entre si, acum ulação), velho, memória; a abstrato - progres
Sabará, cidade quase fantasma (hoje as Sabarás são so, higiene, modernização, máquina.
muitas) ou o Rio de Jan eiro perigoso (os Rios são
alguns), nos dá conta das diversas faces do urbano, O lin d a não usa cimento.
de seus desníveis e de suas reciprocidades, inteira Usa um tijolo farelento
mente lógicas para o capital, como sabemos. Mesmo com tanta geometria
O olhar drummoniano, apesar de lírico e mo Olinda é já de alvenaria.
dernista, foi capaz de superar o campo do moderno
a nível ideológico, pois sua visão de cidade contém Vista de longe(tantos cubos)
elem entos de uma crítica sensível à ordem de nos ela anuncia um perfil duro.
sas cidades e de nossas ilusões de modernização. Porém de perto seus sobrados
revelam esse Fio gasto
17 Lembro que Halbwachs foi aluno de Bergson e que nas suas da madeira muito roçada,
reflexões o registro da memória é mantido à escala do coletivo, das paredes muito caidas,
e não do individual como o analisou exemplarmente Bergson.
18 Otilia Arantes. Metrópole na Periferia do Capitalismo, (resenha).
de ancas redondas, usuais
F o lh a de São Faulo. 10/05/97. nas casas velhas e animais.
7 4 Mirandulina Mana Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos D rum m ond de Andrade
O cupim não lhes dá combate: sentado, apenas a cidade do Recife sugere a vitória
nelas motores vivos batem de uma ordem modernista; as demais ostentam em
que sabem que enquanto funcionem signos visíveis sua própria história interrompida.
nenhum a ferrugem os come. O poeta dá conta daquilo que é realidade tangí
vel em cada paisagem descrita. Olinda é de fato uma
Mas nem na Mata ou Litoral cidade construída (na sua parte antiga) pelo sistema
há mais desse aço industrial construtivo da alvenaria, e, como se sabe, a propor
para opor-se ao cupim, ao podre ção em quadrado era comum na arquitetura colonial:
que o mar canavial traz, ou fosse. a visão ao longe configura por conseqüência uma su
cessão de cubos. A própria decadência econômica da
O autor, modernista nato, ao descrever o anti cidade está justificada na síntese estética de seu sítio:
go, o faz sem nenhum a saudade de nossso passado é p o r onde se vão infiltrar/em seu corpo os cupins do
colonial, ao contrário, o veículo do passado é exata mar.
m ente descrito e entendido esteticam ente como o A região do mangue vista pelo poeta ( o m ar
destrutivo e am eaçador cupim, a doença contra a nâo rói: corrom pe inchando), ainda que com notável
m áquina do progresso, que adquiriu status de ser qualidade estética, não se diferencia muito de deter
vivo, pois é descrita como sadia máquina. No com minado urbanismo dito progressista e de índole higie
bate entre o velho e o novo, o novo está em menor nista, e que no impulso de limpeza urbana realiza para
presença: o recife, só, chegou a cristal/em toda Mata a ordem estabelecida, seja no discurso, seja na práti
e Lito ral:/0 recife e a m áquina sadia/que bate em ca, uma certa faxina social condenando como insalu
M oreno e Paulista; mas é ainda uma presença forte: bres certos lugares onde a pobreza se instala.
o cupim nâo lh es dá com bate./nelas m otores vivos Ao descrever as vilas entre coqueirais, Jo ão
batem /que sabem que enquanto funcionem /nenhu Cabral deixa ainda mais nítida sua tese sobre o cu
m a ferrugem os come. Para Jo ã o Cabral, a moderni pim enquanto elemento de atraso: m ais que as corrói
zação e a máquina, seu veículo, representam um além o tal cupim :/ele m esm o as m odela assim
prometido contra a idéia e a realidade da degrada É, contudo, ao referir-se às cidades do canavial
ção e da morte. que o poeta dá um passo adiante, ao observar que a
paisagem do canavial nâo encerra quase metal, ou
seja, inclui um mínimo de elemento modernizador,
AS VISÕES DE CIDADE DE JOÃO CABRAL DE afinal o canavial, num determinado momento, garantiu
MELO NETO uma certa pujança econômica. Contemporáneamente,
aquela possibilidade de impulso constitui-se atraso:
A paisagem para o poeta deixa de ser ima tudo carrega o seu carruncho (...)/Da em baúba das
gem em repouso, captada especialmente por um olhar capoeiras/à econom ia canavieira.
contem plativo; a paisagem é pleno movimento. A Existem cidades que recebem o im pulso
pergunta de Jo ã o Cabral é: qual a natureza desta modernizador da industrialização na versão cabrali-
m ovim entação? Há um evidente teor surrealista: pai na: procuram se arm ar com a ç o / contra a vocação
sagens com cupins, mas a paisagem descrita não foi do bagaço. Mas, como se sabe, as medidas tomadas
gerada fora da consciência crítica, no fluxo livre das para tal não foram suficientes: M as o aço tom ado
idéias como quer o surrealismo. Antes pelo contrá deu m a l/n â o se fecharam ao ca n a v ia l. A paisagem
rio, Jo ã o Cabral tem plena consciência de que aquilo explica sua própria gênese social: a cana latifundia
que observam os como paisagem é também mani em volta,/ com os cupins que ela cria e so lta /p en e
festação do social. Ao tratar de paisagens brasilei tra ainda fundo: com bate-os/ até a soleira das fábri
ras, apresenta particularidades da nossa História, cas. O poeta vê com perspicácia: a estrutura agrária
mostrando inequivocadam ente nossa formação só- brasileira é de fato responsável pelo atraso econô
cio-econômica. mico, e, o que é pior, esta estrutura é funesta para a
São duas ordens em disputa: a sociedade de própria m entalidade do trabalhador, que chega a
raízes coloniais, simbolizada pelo cupim e suas estra considerá-la enquanto ordem natural do mundo. A
tégias de sobrevivência, e a modernização, represen explicação de Jo sé de Sousa Martins cai com o luva :
tada por vários elementos como cimento, metal, alu a propriedade da terra é o centro histórico de um
mínio, aço, máquina. No esquema das cidades apre sistem a político persistente. Associada ao capital
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m oderno, deu a esse sistema político uma força re A cifra do modernismo é por dem ais genérica
novada, que bloqueia tanto a constituição da verda para designar suas particularidades. A visão de mo
deira sociedade civil quanto a da cidadania de seus dernização é que é diferenciada: Drummond experi
membros. A sociedade civil não é senão esboço num menta o moderno mas mantém com este uma rela
sistem a político em que, de muitos modos, a socie ção de tensão, pois o poeta parece se dar conta de
dade está dom inada pelo Estado. E um Estado base que é preciso suspeitar, ou pelos menos, não se en
ado em relações políticas extrem am ente atrasadas, tregar sem reservas ao novo; Jo ã o Cabral, ao con
como as do clientelism o e a da dom inação tradicio trário, defende com fervor quase religioso a bandei
nal de base patrimonial, do oligarquismo. No Brasil, ra da modernização (processo econôm ico): só ela
o atraso é um instrum ento de poder .19 destruiria o cupim do atraso. Não se trata de uma
Por fim, ao fechar o seu circuito de cidades, visão dualista que opõe a noção do tradicional à do
de volta ao Recife, Jo ã o Cabral acaba por caracteri moderno: o cupim é exatamente a figura encontrada
zar seu poema como uma espécie de ode à moderni pelo poeta para definir as estratégias de sobrevivên
zação. Para o poeta, o novo representa o fim de toda cia e disfarce do atraso, como por exemplo o pacto
degradação das condições de vida herdadas do pas estrutural entre classes proprietárias "atrasadas" e
sado; a decadência econôm ica regional é produto "m odernas" na origem de nosso crescim ento urba
direto de um resíduo colonial persistente como um no-industrial. O quadro apresentado por Cabral pro
inseto vivo. cura dar conta desta situação:a cana latifúndia em
Voltando à pergunta inicial sobre a relação dos volta continua.
dois autores: há pontos de contato, afinal são mo Os dois autores souberam ver com exatidão
dernos, mas não dizem respeito à gênese estética, nossas cidades, e a poética de suas visões revelou a
pois a poética drummoniana, como se sabe, é bas síntese de um processo urbano incom pleto, em for
tante diversa da de Jo ã o Cabral ma e conteúdo.
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