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Revista Geousp, ne 2, p. 67-77, 1997.

Mirandulina Maria Moreira Azevedo1

R ESU M O :
A visão de cidade em Carlos Drummond de Andrade e Jo ã o Cabral de Melo Neto a partir de dois poemas: Lanterna
Mágica(1930) de Drummond e Paisagens com Cupins(1956) de Jo ã o Cabral.
São tratadas imagens de cidades e da paisagem rural-urbano brasileira: nos dois autores, temos o registro am bivalen­
te de modernização e tradição. Carlos Drummond de Andrade aparece no momento da metamorfose do país agrário
em uma sociedade urbano-industrial. Jo ã o Cabral registra um momento posterior, a década de 50: aceleração da
urbanização e tam bém o acirramento de antigas contradições.
PALAVRAS-CHAVE:
literatura cidades urbanização rural-urbano

R É SU M É :
La ville, d'aprés Carlos Drummond de Andrade et Jo ã o Cabral de Melo Neto, à partir de deux poèmes: Lanterna Mágica
(1930) de Drummond et Paisagens com Cupins (1956) de Jo ã o Cabral.
II s' agit d'im ages de villes et du paysage rural-urbain brésilien: chez les deux auteurs le mêm e aspect am bivalent de
la modernisation et de la tradition. Carlos Drummond de Andrade apparait au moment de la m étam orphose d' un
pays agraire en une société urbain-industrielle. Jo ã o Cabral représente un moment postérieur, les années 50: accélération
de 1' urbanisation et exacerbation d'anciennes contradictions.
M OTS-CLÉS:
littérature villes urbanisation rural-urbain.

Poetas consagrados do modernismo, ainda que propriamente dito, haveria um fio condutor costuran­
de gerações diferentes, Carlos Drummond de Andrade do a evolução das nossas cidades? O fato é que,
e Jo ã o Cabral de Melo Neto apresentam seus olhares sejam cidades de memória colonial, sejam cidades
sobre a cidade e suas paisagens. Lanterna Mágica de deste século, a poética de suas visões não consiste
Drummond aparece na década de 30 em Algum a Po- em encobrir as contradições de nossa formação eco­
esiae Paisagens com Cupins de Jo ã o Cabral faz parte nômica e cultural, ao contrário, procura revelá-las
do livro Quaderna dos anos 50. em cada imagem sugerida pelos poetas em questão.
O primeiro ponto em comum está na orienta­ Em Lanterna Mágica o circuito é Belo Hori-
ção do tema, trata-se em ambos de um circuito de zonte/Sabará/Caeté/Nova Friburgo/ Itabira/São Jo ã o
cidades, de uma perspectiva plural, do aceite tácito Del Rei/Rio de Janeiro/Bahia; em Paisagens com
da diversidade do urbano; em geografia e arquitetu­ Cupins a seqüência é Recife/Olinda/arrabaldes de
ra, como sabemos, esta visada desperta indisfarçável Recife/vilas entre coqueiros/cidades do canavial/cer­
interesse. tas cidades(Escada, Jaboatão, Goiana) e volta ao
A bem da verdade, as cidades de Drummond Recife. De nossa parte marcamos com com entários
são vistas nos anos 30 e as de Jo ã o Cabral nos anos curtos cada poema apresentado, definindo pontos de
50, momentos diferenciados da história da urbani­ interesse para sua retomada ao final.
zação brasileira. A pergunta que fazemos é dupla:
haveria entre os autores pontos de contato, linhas LANTERNA MÁGICA a seqüência de cid ad es de
de continuidade ou apenas um antagonismo mal-dis- Carlos Drummond de Andrade.
farçado sob a cifra por demais genérica do moder­
I / BELO HORIZONTE
nismo; e, por outro lado, no que se refere ao urbano
meus olhos têm m elancolías
1 Aluna de pós-graduaçáo do Departamento de Geografia - USP
minha boca tem rugas.
6 8 Mirandulina Maria Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos D rum m ond de Andrade

Velha cidade! não brincam de esconder.


As árvores são repetidas. O rio das Velhas lambe as casas velhas,
casas encardidas onde há velhas nas janelas.
Debaixo de cada árvore faço minha cama, Ruas em pé
em cada ramo dependuro meu paletó. pé-de-moleque
Lirismo. PENÇÃO DE JUAQUINA AGULHA
Pelos jardins Versailles Quem não subir direito toma vaia...
ingenuidade de velocípedes. Bem-feito!

E o velho fraque Eu fico cá embaixo


na casinha de alpendre com duas janelas doloro­ maginando na ponte moderna -moderna por quê?
sas A água que corre
já viu o Borba.
No início do poema, o verso Meus olhos têm Não a que corre,
m elancolías já sinaliza com a perspectiva do indiví­ mas a que não pára nunca
duo blasé entorpecido e indiferente à movimentação de correr.
nervosa da cidade. A cidade é velha cidade e as ár­
vores são repetidas, a ordem mecanicista e serial da Ai tempo!
modernidade apresenta seus traços mais evidentes. Nem é bom pensar nessas coisas mortas, muito
Mas apesar disso o poeta faz dela sua morada, num mortas.
absurdo e num nonsense quase chapliniano: Debai­ Os séculos cheiram a mofo
x o de cada árvore depenturo m eu paletó. Lirism o. e a história é cheia de teias de aranha.
Belo Horizonte, cidade planejada à inspiração Na água suja, barrenta, a canoa deixa um sulco
de Hausmann, oferece suas avenidas, seu núcleo logo apagado.
centralizador, imagem de um ideal plástico rígido, Quede os bandeirantes?
clean e purificador: tudo é luz, o poeta ajusta: p elos
o Borba sumiu.
ja rd in s Versailhes, e nos dá conta: Versailhes e seus
Dona Maria Pimenta morreu.
jardins são a matriz de possíveis cópias de belezas
típicas da modernização. Mas arremata com um sus­ Mas tudo é inexoravelmente colonial:
piro dadaísta e irônico: m odernidade de velocípedes. bancos janelas fechaduras lampiões.
Por fim dá um passo inesperado na ordem do poe­ O casario alastra-se na cacunda dos morros,
ma, aquilo que M.Bandeira chamou de alavancas de rebanho dócil pastoreado por igrejas;
a do carmo -que é toda de pedra,
estabilização2: E o velho fraque na casinha de alpen­
a matriz -que é toda de ouro.
dre com duas ja n e la s dolorosas ; articula enfim o
Sabará veste com orgulho seus andrajos...
velho fraque, este sim traje de cerimônias, sinal de
Faz muito bem, cidade teimosa!
cosmopolitismo, à casinha de alpendre colonial; o
poeta enxerga com sutileza: nossa modernidade é
Nem Siderúrgica nem central nem roda manhosa
um traje de festa numa rotina de pobreza.
de forde
sacode a modorra de Sabará-buçu.
II/ SABARÁ
A DOIS PASSOS da cidade importante Pemas morenas de lavadeiras,
a cidadezinha está calada, entrevada. tão musculosas que parece foi o Aleijadinho que
(Atrás daquele morro, com vergonha do trem.) as esculpiu,
palpitam na água cansada.
Só as igrejas
só as torres pontudas das igrejas presente vem de mansinho
de repente dá um salto:
cartaz de cinema com fita americana.
2 De ordinário, ternura e ironia agem na sua poesia como um
jogo automático de alavancas de estabilização. Manuel Bandei­
ra. "Ensaios Literários". In: Manuel Bandeira. Poesia Com pleta
E o trem bufando na ponte preta
e Prosa. Rio de Janeiro, Mova Aguir, 1990. é um bicho comendo as casas velhas
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Ha seqüência, Sabará nos é apresentada de as ferraduras batem como sinos.


forma singela: a cidadezinha está calada, entrevada Os meninos seguem para a escola.
(atrás daquele morro com vergonha do trem). Um Os homens olham para o chão.
gesto de imponência só poderia estar na ordem do Os ingleses compram a mina.
religioso: só as torres pontudas das igrejas/não brin­
cam de esconder. Ho mais, na cidade, casas encardi­ Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na
das onde há velhas nas janelas, tudo parece apenas derrota
deixar-se estar experimentando a própria sensação incomparável
de duração do tempo (Bergson).
O feitio da cidade, mais propriamente seus
artefactos, são experiências passadas: M as tudo é Ha frase do início: cada um de n ós tem seu
inexoravelm ente colonial. Observa-se o encadeamen- pedaço no p ic o do Caué, o poeta eleva Itabira ao
to de elementos que evocam noções de contempla­ universal. Em qualquer cidade os m eninos vâo a es­
ção e introspecção; b ancos ja n e la s fechaduras lam ­ cola, mas será que só em Itabira os hom ens olham
piões. O poeta descreve o urbanismo de orientação para o chãcR Será porque os de fora, os ingleses
lusitana: o casario alastra-se na cacunda dos m or­ com pram as minad? O que faz Itabira ser e deixar
ros, e define de forma inconteste que gênero de vida de ser Itabira é o minério de ferro? Ho caso de
urbana aí se dá: o ca sa rio (...)/ re b a n h o d ó c il Drummond, os elementos da natureza e mais o ca­
pastoreado p o r igrejas. Igrejas nascidas do poderio ráter de cidade interiorana de Itabira, sem dúvida,
econômico do tempo passado e que hoje são como forneceram subsídios não apenas para a temática
roupas de luxo envelhecidas, andrajos que a cidade de sua obra, mas também para uma determinada
ainda veste. visão estética do mundo.
O novo não chegou a Sabará: Nem siderúrgi­
ca nem central nem roda m anhosa de forde. O novo, V / SÃO JOÃO DEL REI
o presente, está sob a forma de um cartaz de fita
americana; como era de se esperar, o moderno é QUEM FOI que apitou
apenas uma mensagem, o sinal de um mundo que Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho.
vem de fora. Almas que nem casas.
Melancolías das legendas
ni / CAETÉS
As ruas cheias de mula-sem-cabeça
A IGREJA de costas para o trem. correndo para o rio das Mortes
Huvens que são cabeças de santo. e a cidade paralítica
no sol
Casas torcidas
E a longa voz que sobe espiando a sombra dos emboabas
que sobe do morro no encantamento das alfaias.
que sobe...
Sinos começam a dobrar.
Se na aparição morro-igreja versus trem na
descrição de Sabará a cidadezinha está atrás do E todo me envolve
m orro com vergonha do trem, em Caetés a igreja
uma sensação fina e grossa
está de costas para o trem, imagem de uma cidade
fechada, num circuito temporal fora do presente. O Os habitantes típicos dessa cidade são mais
poeta fala de uma longa voz que so b e /q u e sobe do adequadamente elementos do sobrenatural. Aleija­
m orro
dinho, mulas sem cabeça. A cidade é paralítica no
sol, como os velhos terapéuticamente deixam-se fi­
car ao sol.
III / ITABIRA
CADA UM de nós tem seu pedaço no pico do
VI / NOVA FRIBURGO
Cauê.
Ha cidade toda de ferro ESQUECI um ramo de flores no sobretudo..
7 O Mirandulina Maria Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos Drum m ond de Andrade

Em E sq u e ci um ram o de flores no sobretudo, ria aberta a partir da vita contem plativa, uma espé­
o mais enigm ático dos versos, a cidade não fornece cie de presentificação intuitiva do curso da vida por
nenhum a imagem. A situação não é clara, um ramo livre escolha.5 O próprio Drummond nos dá pistas de
de flores não foi entregue? Um desejo não realiza­ seu processo de criação quando intitula a seqüência
do? de poemas de Lanterna mágica, pois o que é uma
lanterna mágica senão um aparelho que, através de
VII / RIO DE JANEIRO lentes, aproxima aquilo que é visto ao longe, isto é,
que amplia o que está reduzido e o projeta então,
FIO S nervos faíscas. através da luz, à visão de todos. A memória do poeta
As cores nascem e morrem é a lente especial que discerne o que é relevante nas
com impudor violento. imagens: escrever o poema é torná-lo visível, assim
Onde meu verm elho? Virou cinza. com o faz a luz na lanterna m ágica; a operação
Passou a boa! Peço a palavra! drummoniana se vale da noção espacial, mas o que
Meus amigos todos estão satisfeitos ela realiza é o transporte do tempo através de recor­
Com a vida dos outros. Fútil nas sorveterias. tes de espaços, uma vez que é som ente a imagem
Pedante nas livrarias... do espaço que, em razão de sua estabilidade, dá-
Nas praias nu nu nu nu nu nu nu nos a ilusão de não m udar através do tem po e de
Tu tu tu tu tu no meu coração. encontrar o passado no presente .6
Isso posto, antes de revisitarmos os meandros
Mas tantos assassinatos, meu Deus. do poema (nosso principal propósito), realizamos a
E tantos adultérios também. seguir algumas passagens que visam m elhor dispor
E tantos, tantissimos contos-do-vigário... do arranjo teórico disponível. O tem a da memória
(este povo quer me passar a perna) suscita hoje o interesse de um conjunto de pesqui­
sas com os mais variados formatos e aspirações;
Meu coração vai molemente dentro do táxi. neste fim de século, é, por assim dizer, uma cifra
inflacionada, quase um lugar-comum. De nosssa par­
A primeira noção é a de perigo: fios nervos ris­ te procuramos subsídios num cam po vasto de refe­
cos faíscas, e aparece a expressão: com im pudor vio­ rências; de toda sorte, acreditam os que do ponto de
lento: o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro diferen­ vista de estudos desta natureza que neste momento
cia-se bastante da rotina mineira. Meus amigos todos tratamos, a perspectiva teórica bergsoniana pode
estão satisfeitos / com a vida dos outros/ fú til nas fornecer boas pistas para as perguntas que tenta­
sorveterias/pedante nas livrarias. O registro da me­ mos encaminhar. Dentro do seguinte quadro: nos
trópole é também a violência: mas tantos assassina­ apoiamos num recorte feito por Benjam in a partir de
tos/ e tantos adultérios também. E o medo que o certas passagens da obra de Valéry e numa determi­
interiorano tem da esperteza urbana: tantissimos con­ nada perspectiva da abordagem bergsoniana. As ra­
tos-do-vigário/ este povo quer m e passara perna. zões deste procedimento são simples: Benjam in já
resolveu boa parte dos problem as relacionados à
questão da experiência artística tom ando por base
VISÕES DE CIDADES EM CARLOS DRUMMOND numerosos autores, entre os quais Valéry e Bergson,
DE ANDRADE e, principalmente, inclui na sua análise o exemplo
concreto de um artista: Baudelaire.
Mediado pela Lanterna m ágica ,3 o olhar de Sobre Valéry, nos inform a Benjam in: é dos
Drummond aproxima à custa da memória aquilo que primeiros que se interessou pela form a especial de
no momento descrito é distante. Trata-se neste au­
tor da m emória como a entende Bergson4, a memó- 5 Como adverte W.Benjamin, a memória pura -m e m ó ire pure- de
Bergson é transformada em memória involuntária em M. Proust.
Insisto que em Bergson não se verifica o registro desta passa­
3 "La n te rn e m agique(ap pareil de projectio n.) m unie d'un gem, isto é, Bergson não se refere a um registro de uma memória
dispositif optique de projeter, agrandies sur un écran, des images involuntária.
peintes sur verre", nouveau Petit Robert. D iccionaire de La Langue 6 M.Halbwachs. M em ória Coletiva. São Paulo, Vértice, 1990, A
Française. Montreal, Dicorobert, 1993. consideração do espaço adquire relevância na obra deste au­
4 Henri Berson. M atière et M ém oire. São Paulo, Martins Pontes, tor; é que o espaço, mais que suporte físico, corresponde a
1990. uma imagem existente na mentalidade coletiva.
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funcionamento dos mecanismos psíquicos sob as con­ introduz a perfeita imagem m im ética da cidade ve­
dições atuais de existência.7 O lírico Valéry perce­ lha, que aqui neste contexto é propriam ente uma
be, certam ente pela sua experiência própria de ar­ metáfora da velh ice10: O rio das velhas lam be as ca­
tista, que as im pressões e as sensações hum anas sas velhas,/casas encardidas onde há velhas nas j a ­
pertencem à categoria das surpresas; são o teste­ nelas. Como os velhos nas janelas, a cidade apenas
munho de uma insuficiência do ser humano... A lem­ contem pla o mundo, sinal de que seu tempo de rea­
brança é... um fenôm eno elem entar que pretende lização passou, um quadro urbano estático como uma
nos conceder tem po para organizar a recepção do pintura. O poeta moderno questiona a modernidade:
estímulo -tempo que nos faltou inicialmente8. A abor­ Eu fíc o cá em baixo/m aginando na p on te m oderna -
dagem bergsoniana interessa a Benjam in na m edi­ m oderna p o r quê? Aqui Drummond realiza uma co­
da em que fornece uma pista de com o a experiên­ rajosa inflexão que verem os adiante se cumprir.
c ia (d o p o e m a ) se a p re s e n ta ao s o lh o s de Drummond percebe a relação tempo-espaço
Baudelaire. Para Bergson a m em ória é a estrutura configurada em cada cidade apresentada. Belo Hori­
básica da experiência: esta form a-se m enos com zonte não é uma metrópole como o Rio de Janeiro,
dados iso la d o s e rigorosam ente fixad os na m em ó­ mas é uma cidade de concepção modernizadora, e é
ria , do que com dados acum ulados >e com frequência aqui que o poeta afirma seu olhar privilegiado sobre
in con scien te s que a fluem à m em ória .9 Ao abrir o a cidade. Vejamos novam ente a prim eira estrofe:
cam inho para o registro da m ém oirep u re (memória Meus olhos têm m elancolías/m inha boca tem rugas/
pura) isolada da m em ória pragmática, da qual ne­ Velha Cidade!/As árvores são repetidas. A reação do
cessitam os para os atos mais rotineiros e autom áti­ poeta à modernidade evidente de Belo Horizonte é
cos da vida cotidiana, o que Bergson deseja é fixar reticente e m elancólica. Aliás, o próprio Drummond
a estrutura básica da experiência presente na es­ fala de m elancolia e de envelhecim ento (rugas) e re­
trutura da mem ória. Ora, este caráter da experiên­ fere-se a Belo Horizonte como Velha cidade ! Ora,
cia humana, em estado ideal, com o é definido por pergunta o leitor, o que significa este despropósito?
Bergson, parece ser adequado apenas para a cate­ Velha cidade é Ouro Preto, Sabará ou outra qual­
goria dos escritores, ou pelo menos ser de interes­ quer, afinal BH não é uma cidade nova?
se e fornecer pistas no sentido de esclarecer os Uma pista que pode dar uma explicação so­
m ecanism os de realização de uma obra. bre o estranho comportamento do poeta está na ju s ­
Da seqüência drummoniana de cidades há pelo tificativa fornecida por W.Benjamin a respeito da pers­
menos três visões características: a cidade moderna pectiva do spleen em Baudelaire: o spleen p õ e sécu ­
(Belo Horizonte), as cidades tradicionais mineiras lo s entre o presente e o m om ento que acaba de se r
(Sabará, Caetés, Itabira, etc) e o Rio de Janeiro, a vivido. É ele que quer, incansavelm ente estabelecer
metrópole inabarcável com um só olhar, cidade de 'antiguidade'." Assim Drummond, m ovido também
experiências novas, onde a todo momento se esbar­ pelo motor do spleen, já vê o novo devidam ente en­
ra com o desconhecido. velhecido. Pergunta de novo o leitor: faz sentido o
As cidades tradicionais mineiras são descritas paralelo Drummond-Baudelaire?
a partir do desenrolar do fio da memória, e a deca­ Em primeiro lugar, faz sentido na medida em
dência de suas econom ias as transforma na figura que no interior da obra drumm oniana -em seus pró­
de velhos que, afastados da vida do trabalho, põem- prios versos - não só no exemplo desta prim eira es­
se a relembrar: suas igrejas, suas personagens his­ trofe sobre BH como em outras situações é possí­
tóricas e, numa certa medida, até o sobrenatural, vel encontrar os traços característicos de uma pers­
tão presente no imaginário das pequenas cidades do pectiva permeada pelo spleen baudelaireano; que
interior: ouve-se uma voz longa que sobe o morro. As esta palavra se traduza em português por m elanco­
imagens sucedem-se, mas a primeira da série é sem­ lia e que este 'estado de sentidos' produza tais efei­
pre o panoram a mais geral, a volum etria mais signi­ tos estéticos anunciados é certo que sim; é um esta­
ficativa: os morros, as torres das igrejas, o trem. Em
Sabará (o poema mais longo e detalhado), o poeta lo A respeito da velhice, o já clássico livro de E.Bosi. Lem bran­
ças de Velhos-.Memória e Sociedade. Sào Paulo, T.A Queiroz,
1979. Há um capítulo introdutório dedicado à discussão da
7 W.Benjamin. C harles Baudelaire, um L íric o n o auge do capita­ memória no aspecto teórico, no qual os dois autores tomados
lism o. São Paulo, Brasiliense, 1991. P. 109. como referência são H.Bergson e M. Halbwachs.
8 Idem, ibidem, p. 1 10. 1 1 W.Benjamin. Charles Baudelaire, um líric o n o auge do C ap italis­
9 Idem, ibidem, p. 105. mo. Sáo Paulo. Brasiliense, 1991.
7 2 Mirandulina Maria Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos Drum m ond de Andrade

do, contudo, que nada tem a ver com a apatia que do de dependurar o paletó, tão típico e significativo
em português associam os ao termo. no quadro funcional da nossa burocracia, desloca-se
Mas também é interessante o paralelo a nível de seu lo cu s natural (repartição pública) e faz da ci­
estratégico.12 Baudelaire é afinal um lírico no auge dade aberta e abstrata seu novo nicho. Aqui volto a
do capitalism o . Como observou W.Benjam in, sua po­ evocar a figura de Baudelaire, para quem a cidade
esia estabelece uma relação de profunda tensão com constituía ponto privilegiado de criação.
a m odernidade, talvez porque vivesse no momento Nos versos Pelos Ja rd in s Versailles/ ingenui­
vertiginoso de transform ação no século XIX; é esta dade de velocípedes não é gratuito que o poeta tome
tensão talvez a responsável pelo teor crítico de sua de empréstimo uma imagem de cidade européia
obra. Baudelaire era perfeitam ente consciente das jardins Versailles - para falar de uma situação brasi­
im plicações do ato de escrever em plena modernida­ leira: Drummond sabe que está diante de uma cópia
de, com o se pode ver na dedicatória a Arsène de uma beleza padrão de modernização, e, quando
Houssaye feita pelo poeta: a prosa poética deve ser arremata com ingenuidade de velocípedes, a ironia é
bastante fle x ív e l e resistente para se adaptar às desvastadora. Os velocípedes eram a prim eira ver­
em oções líricas da alma, às ondulações do devaneio, são das bicicletas atuais, tiveram seu auge em Paris
aos choques da consciência. Este ideal, que se pod e em 1868 e já em 1882 praticam ente não eram mais
tom ar idéia fixa se apossará, sobretudo, daquele que, utilizadas15; o poeta completa a imagem introduzindo
nas cidades gigantescas, está afeito à tramas de suas nela um objeto que correspondia a uma idéia de novo
inúm eras relações entrecortadas .I3 Nesta passagem do século passado. E por fim a imagem do velho
o poeta está esclarecendo seu processo de criação, fraque não poderia ser mais adequada para situar
trata-se pois de ser flexível e receptivo aos choques nosso visível descompasso.
da consciência. Assim é que a poesia lírica pode es­ Em Lanterna mágica, o Rio de Jan eiro , como
tar fundam entada na experiência do choque (o cho­ já observamos, oferece a prim eira visão da metró­
que aliás é a norma) e para isso ela requer um alto pole ao poeta. É nesta cidade que Drummond tem
grau de conscientização, ñ o spleen, a percepção do de fato a experiência do choque, própria da moder­
tem po está sobrenaturalm ente aguçada; cada segun­ nidade. Rio de Jan eiro é o pólo experim ental da
do encontra o consciente pronto para am ortecer o modernidade, e no primeiro verso: fio s nervos faís­
seu choque.1* O papel de crítico e ator da moderni­ cas, trata-se de choque literalm ente.No verso seguin­
dade desem penhado por Baudelaire na Europa do te, as cores nascem e m orrem / com im p u d or violen­
século X IX talvez tenha sido realizado por Drummond to, está a constatação do efêm ero, que certam ente
no Brasil século XX, com as devidas proporções. Para não diz respeito apenas à gestação de prováveis flo­
nós as transformações vieram tardiamente, como se res; o poeta procura dar conta da produção inces­
sabe, e com fisionom ia própria, bem própria, aliás. sante de novidades, m elhor dizendo, de m ercadori­
Não se trata de mera reprodução de papéis. A nossa as: trata-se de uma rotina, é a dialética da produção
modernização tem todos os males da outra, estran­ de mercadorias: a novidade do produto(com o esti­
geira, e mais alguns próprios de sua realização tar­ mulante da demanda) como tam bém o sempre igual
dia e incompleta. Nosso poeta, sabemos, surge no aparecem de modo evidente na produção de mas­
momento da transform ação de país agrário em soci­ sa .16 W. Benjam in já observava tal fato à época de
edade urbano-industrial, e ele soube ver esta condi­ Baudelaire; até então, este significado (do sempre
ção histórica como ninguém. igual) era desconhecido. O poeta segue. Onde o meu
Voltando ao poema, vejam os como o poeta verm elho?/ virou cinza. Aqui novamento o envelheci­
resolve os versos seguintes. Já me referi antes à mento precoce. Há em seguida uma mudança de pla­
seqüência: debaixo de cada árvore faço m inha cam a/ no: introduz-se a noção de pessoalidade e surge a
em cada ram o dependuro m eu p a le tó / lirism o. O idéia de grupos sociais identificáveis, dos quais o poeta
nonsense chapliano tem sabor local: o gesto repeti- inclusive faz parte: m eus am igos estào satisfeitos/
com a vida dos outros/ fú til nas sorveterias/pedante
12 Jo s é Guilherm e Merquior chama a atenção para um paralelo nas livrarias. A seguir, o plano do perigo inicial torna-
entre Baudelaire e Drummond, este visto como introdutor de se o plano da suspeita am eaçadora: tantos assassi-
uma sensibilidade lírica moderna. Verso Universo em Drummond.
Rio de Janeiro, Jo s é Olímpio, 1975.
15 W.Benjamin. Op. Cit, p l9 7 .
13 W.Benjamin. Op. Cit. pp. 68-69.
16 W.Benjamin. Op. Cit.p.172.
14- W .Benjam in.Op.cit. p 136.
Revista Geousp, n9 2, p. 67-77. 1997. 73

natos m eu DeusA A última estrofe corresponde ao PAISAGENS COM CUPINS - seq ü ên cia de cid ad es
ponto de vista do senso comum, pronunciado em torn de João Cabral de Melo Neto
familiar, e de certo modo remete à idéia de uma cons­
trução coletiva a respeito das metrópoles: numa cu­
PAISAGENS COM CUPINS
riosa reviravolta poética, Drummond se vale deste
artifício para recriar no poema, em tom coloquial,
O Recife cai sobre o mar
como a cidade do Rio é vista pela grande maioria dos
sem dele se contaminar.
brasileiros. Não se pode deixar de pensar na expli­
O Recife cai em cidade,
cação de M .Halbwachs17 sobre a relação da memó­
cai contra o mar, contra: em laje.
ria com o espaço: cada sociedade recorta o espaço a
seu m odo, m as de uma vez p o r todas, ou seguindo Cai como um prato de metal
sem pre as m esm as linhas, de m odo a constituir um sobre outro preto de metal
quadro fix o onde encerra e localiza suas lem bran­ sabe cair: limpo e exato
ças. e sem contágio; em só contacto.
De certo modo, é curioso que até hoje a visão
do poeta a respeito do Rio de Jan eiro enquanto Cai como cidade que caia
cidade perigosa - retirada de um quadro de memóri­ vertical e reta, sem praia.
as coletivo de época, persista (trata-se realmente de Cai em cais de cimento, em porto,
um quadro fixo) e torne-se até mesmo muito mais em ilhas de aresta e contorno.
trágica. A explicação está, contudo, fora do alcance
da poesia: a violência das nossas grandes cidades só O Recife cai na água isento.
atestam que a evolução urbana n o B rasil não só não Bem calafetado o cimento:
extirpou as raízes colon iais do atraso, que em p rin cí­ ao dente da ostra, ou sua raiz,
p io estariam historicam ente fincados no retrógrado aos bichos do mar, seus cupins.
m undo rural, m as as reproduziu em escala industrial
nas nossas cidades contrariando ponto p o r pon to a
Primeiro e último ponto da seqüência: Recife.
variante urbanística do progressism o de nossas eli­
A constatação do poeta: R ecife ca i sobre o m ar em
tes ilu s tra d a s . 18 A ssim , as cid ad es vistas por
laje. Recife cai isento de cupins porque está bem
Drummond nos anos 30 incluem-se na gênese da
calafetado. Aqui o primeiro aviso ao leitor é o de
nossa evolução urbana, mas o poeta, ao descrever
uma oposição clara entre duas ordens, a natural e
Belo Horizonte, não cede aos apelos sedutores do
urbanismo m odernizados sabe bem o que vê: en­ tradicional dos cupins e a abstrata-industrial, ex­
xerga ao longe a casinha de alpendre colonial. pressa na palavra cimento. Fácil acrescentar noções
A lanterna mágica, ao proporcionar a descri­ a estas duas ordens: a cupins -colonial, primitiva (de
ção em conjunto de cidades tão diferentes entre si, acum ulação), velho, memória; a abstrato - progres­
Sabará, cidade quase fantasma (hoje as Sabarás são so, higiene, modernização, máquina.
muitas) ou o Rio de Jan eiro perigoso (os Rios são
alguns), nos dá conta das diversas faces do urbano, O lin d a não usa cimento.
de seus desníveis e de suas reciprocidades, inteira­ Usa um tijolo farelento
mente lógicas para o capital, como sabemos. Mesmo com tanta geometria
O olhar drummoniano, apesar de lírico e mo­ Olinda é já de alvenaria.
dernista, foi capaz de superar o campo do moderno
a nível ideológico, pois sua visão de cidade contém Vista de longe(tantos cubos)
elem entos de uma crítica sensível à ordem de nos­ ela anuncia um perfil duro.
sas cidades e de nossas ilusões de modernização. Porém de perto seus sobrados
revelam esse Fio gasto

17 Lembro que Halbwachs foi aluno de Bergson e que nas suas da madeira muito roçada,
reflexões o registro da memória é mantido à escala do coletivo, das paredes muito caidas,
e não do individual como o analisou exemplarmente Bergson.
18 Otilia Arantes. Metrópole na Periferia do Capitalismo, (resenha).
de ancas redondas, usuais
F o lh a de São Faulo. 10/05/97. nas casas velhas e animais.
7 4 Mirandulina Mana Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos D rum m ond de Andrade

Porque Olinda, uma Olinda baixa, As vilas entre coqueirais


se mistura com o mar na praia: (as muitas Itam aracás)
que é por onde se vão infiltrar mais que as corrói o tal cupim:
em seu corpo os cupins do mar. ele mesmo as modela assim.

São aldeias leves de palha,


Segundo ponto: de Olinda, a informação inici­
plantadas raso sobre a praia
al é a de que não usa cim ento, usa tijolo farelento-
com os escavados materiais
alvenaria. Olinda é geométrica, vista de longeftantos
que o cupim trabalha e o mar traz.
cubos) ela anuncia o p e rfíl duro. Porém de perto seus
sobrados revelam esse fio gasto , de materiais orgâ­ São menos da terra que da onda:
nicos com o a madeira; a seguir há a comparação têm as cavernas das esponjas,
com a figuração animal: ancas redondas -nas casas das pedras-pomes, das m adeiras
velhas e animais. Para o poeta, Olinda se justifica no que o mar abandona na areia.
rol das velhas cidades, e a explicação é a natureza
do sítio: Olinda é baixa e se m istura com o m ar que Menos da terrra que do mar:
é p o r onde se vão infíltrar em seu corpo os cupins do dos cupins que ele faz medrar
mar. e dão a tudo a cam e leve
que o mar quer nas que leve.
Os arrabaldes do recife
não opões os mesmos diques As vilas entre coqueirais. Nestas o cupim tem
contra o rio que em horas é uma grande tarefa: m ais que as r ó i ele m esm o as
o mar disfarçado em maré. modela. As vilas de pescadores: são aldeias leves de
palha plantadas sobre a praia; neste ponto o poeta
Lá o mar entra fundo no rio tom a ainda mais clara a noção de cupim como o
e em passos de rio, corredios, elemento da natureza e da tradição cultural. Estamos
derrama-se em todos os tanques aqui na ordem do parentesco de sangue e das trocas
por onde a salm oura dos mangues. marginais de excedentes, nos lim ites de um cotidia­
no pré-capitalista, ou mais precisamente falando, com
O mar por lá vai de água parda a vida nas franjas do capitalism o.
de rio, e de boca calada.
É água de mar, também salobra. As cidades do canavial,
Só que sonolenta e mais gorda. escava-as um cupim igual.
Ou outra espécie de cupim,
E lá no que se infiltra, quando, já que o mar cai longe dali.
o mar não rói: corrompe inchando.
Não traz cupins de fome enxuta. Igaraçu, Sirinhaém ,
Traz úmidos bichos de fruta. O Cabo, Ipojuca e também
Muribeca, Rio Formoso:
há algo comido em seu estofo.
Os arrabaldes do Recife: aqui o poeta quebra
a oposição cerrada Recife-Olinda. No arrabalde o m ar E outras ainda mais de dentro:
entra fundo no rio(...), salm oura dos mangues. A Nazaré, Aliança, São Lourenço:
qualidade da paisagem é outra o mangue -,o m ar imitam no estilo, no jeito,
não ró i corrom pe inchando. A noção de insalubrida- casas de cupim, cupinzeiros.
de e doença está presente, e não se pode deixar de Cidades também em colinas,
perceber no nosso autor o velho preconceito com as do mesmo tijplo de Olinda,
populações de regiões de mangue, este sempre visto também minadas por marés
enquanto zona interm ediária de uma vida rural devi­ (ora de cana) pelos pés.
damente fora da sua ordem e uma ordem urbana
insatisfatória. Mão traz cupins de fom e enxuta m as A paisagem do canavial
traz úm idos b ich o s da fruta, isto é, caranguejos. não encerra quase metal.
Revista Geousp, n9 2, p. 67-77. 1997. 75

Tudo parece encorajar Descrevendo a superfície visível das paisagens,


o cupim , de cana ou de mar. a decadência é antes apreciada pela consciência da­
quele que conhece a nossa história econôm ica e suas
Hão só as cidades, outras coisas: respectivas sínteses artísticas: eis o cupim fazendo a
os engenhos com suas moitas vez/do mestre-de-obras português:/fínge robustez na
e até mesmo os ferros mais pobres m atéria/carcom ida p ela m iséria/ E is o s p a is do n o s­
das moendas e tachas de cobre. so b arroco/ de ventre solene m as oco/e gesto p o m ­
p oso e redondo/na véspera do escom bro.
Tudo carrega o seu caruncho.
Tudo: desde o vivo ao defunto. Certas cidades de entre a cana
Da em baúba das capoeiras (Escada, Jaboatáo, Goiana)
à econom ia canavieira. procuraram se armar com aço
contra a vocação de bagaço
Em tudo pára o ar de abandono
de meia-morte ou pleno-sono, Mas o aço tomado deu mal:
e esse deixar-se im ovelm ente não se fecharam ao canavial
próprio da planta e do demente. e somente em bairros pequenos
seu barro salvou-se em cim ento
As cidades do canavial: Igaraçu, Sirinhaém ,
Cabo, Ipojuca, Muribeca, Rio Formoso, Hazaré, Ali­ E nelas(com o nas usinas,
ança e São Lourenço im itam no estilo, no je ito / ca­ que de aço também se vacinam ,
sas de cupim , cupinzeiros. Ao falar das cidades do nas quais só a custo a ferrragem
canavial inclui o poeta a paisagem rural com maestria: vive, azul, nos meses de moagem)
não só as cidades, outras coisas (...) os engenhos
com sua m oitas (...) tudo carrega o seu caruncho (...) a cana latifúndia em volta,
com os cupins que ela cria e solta,
da em baúba das capoeiras à econom ia canavieira.
penetra ainda fundo: combate-as
Sabe nosso autor da síntese original de nossas cida­
até a soleira das fábricas
des, cuja lógica nasce na heteronomia do rural so­
bre o urbano, apresentando então o rural e o urba­
As cidades de entre a cana (Escada, Jaboatão,
no com o duas faces da mesma moeda da decadên­
Goiana) procurando se arm ar com a ç o / contra a vo­
cia econôm ica regional.
cação do bagaço. O elem ento novo, a moderniza­
ção, como se sabe é incom pleta, m as o aço tom ado
Ho canavial, antiga Mata, se deu m al:/não se fecharam ao canavial/ e som en­
a vida está toda bichada. te em bairros p eq u en os/ seu barro salvou-se em c i­
Bichada em coisas pouco densas, mento. Ha síntese das nossas cidades encontra-se
coisas sem peso, pela doença. via de regra a presença de elem entos arcaicos, e o
mais conhecido e terrível deles é a estrutura agrária.
Bichadas até a carne rala E arremata o poeta, sabedor como ninguém dessa
da bucha e do pau-de-jangada. lógica: a cana latifúndia em voita,/com os cupins que
Até a natureza poída, cria e solta,/penetra ainda fundo: com bate-as/até a
porém inchada, da cortiça. porta das fábricas

Eis o cupim fazendo a vez O Recife, só, chegou a cristal


do mestre-de-obras português: em toda a Mata e Litoral:
finge robustez na matéria o Recife e a máquina sadia
carcom ida pela miséria. que bate em Moreno e Paulista.

Eis os pais de nosso barroco, Essas existem matemáticas


de ventre solene mas oco no alumínio de suas fábricas.
e gesto pomposo e redondo Essas têm a carne limpa,
na véspera mesma do escombro. embora feia, em série, fria.
7 6 Mirandulina Maria Moreira Azevedo. Da Lanterna Mágica à Paisagens com Cupins: visões de cidade em Carlos Drum m ond de Andrade

O cupim não lhes dá combate: sentado, apenas a cidade do Recife sugere a vitória
nelas motores vivos batem de uma ordem modernista; as demais ostentam em
que sabem que enquanto funcionem signos visíveis sua própria história interrompida.
nenhum a ferrugem os come. O poeta dá conta daquilo que é realidade tangí­
vel em cada paisagem descrita. Olinda é de fato uma
Mas nem na Mata ou Litoral cidade construída (na sua parte antiga) pelo sistema
há mais desse aço industrial construtivo da alvenaria, e, como se sabe, a propor­
para opor-se ao cupim, ao podre ção em quadrado era comum na arquitetura colonial:
que o mar canavial traz, ou fosse. a visão ao longe configura por conseqüência uma su­
cessão de cubos. A própria decadência econômica da
O autor, modernista nato, ao descrever o anti­ cidade está justificada na síntese estética de seu sítio:
go, o faz sem nenhum a saudade de nossso passado é p o r onde se vão infiltrar/em seu corpo os cupins do
colonial, ao contrário, o veículo do passado é exata­ mar.
m ente descrito e entendido esteticam ente como o A região do mangue vista pelo poeta ( o m ar
destrutivo e am eaçador cupim, a doença contra a nâo rói: corrom pe inchando), ainda que com notável
m áquina do progresso, que adquiriu status de ser qualidade estética, não se diferencia muito de deter­
vivo, pois é descrita como sadia máquina. No com­ minado urbanismo dito progressista e de índole higie­
bate entre o velho e o novo, o novo está em menor nista, e que no impulso de limpeza urbana realiza para
presença: o recife, só, chegou a cristal/em toda Mata a ordem estabelecida, seja no discurso, seja na práti­
e Lito ral:/0 recife e a m áquina sadia/que bate em ca, uma certa faxina social condenando como insalu­
M oreno e Paulista; mas é ainda uma presença forte: bres certos lugares onde a pobreza se instala.
o cupim nâo lh es dá com bate./nelas m otores vivos Ao descrever as vilas entre coqueirais, Jo ão
batem /que sabem que enquanto funcionem /nenhu­ Cabral deixa ainda mais nítida sua tese sobre o cu­
m a ferrugem os come. Para Jo ã o Cabral, a moderni­ pim enquanto elemento de atraso: m ais que as corrói
zação e a máquina, seu veículo, representam um além o tal cupim :/ele m esm o as m odela assim
prometido contra a idéia e a realidade da degrada­ É, contudo, ao referir-se às cidades do canavial
ção e da morte. que o poeta dá um passo adiante, ao observar que a
paisagem do canavial nâo encerra quase metal, ou
seja, inclui um mínimo de elemento modernizador,
AS VISÕES DE CIDADE DE JOÃO CABRAL DE afinal o canavial, num determinado momento, garantiu
MELO NETO uma certa pujança econômica. Contemporáneamente,
aquela possibilidade de impulso constitui-se atraso:
A paisagem para o poeta deixa de ser ima­ tudo carrega o seu carruncho (...)/Da em baúba das
gem em repouso, captada especialmente por um olhar capoeiras/à econom ia canavieira.
contem plativo; a paisagem é pleno movimento. A Existem cidades que recebem o im pulso
pergunta de Jo ã o Cabral é: qual a natureza desta modernizador da industrialização na versão cabrali-
m ovim entação? Há um evidente teor surrealista: pai­ na: procuram se arm ar com a ç o / contra a vocação
sagens com cupins, mas a paisagem descrita não foi do bagaço. Mas, como se sabe, as medidas tomadas
gerada fora da consciência crítica, no fluxo livre das para tal não foram suficientes: M as o aço tom ado
idéias como quer o surrealismo. Antes pelo contrá­ deu m a l/n â o se fecharam ao ca n a v ia l. A paisagem
rio, Jo ã o Cabral tem plena consciência de que aquilo explica sua própria gênese social: a cana latifundia
que observam os como paisagem é também mani­ em volta,/ com os cupins que ela cria e so lta /p en e­
festação do social. Ao tratar de paisagens brasilei­ tra ainda fundo: com bate-os/ até a soleira das fábri­
ras, apresenta particularidades da nossa História, cas. O poeta vê com perspicácia: a estrutura agrária
mostrando inequivocadam ente nossa formação só- brasileira é de fato responsável pelo atraso econô­
cio-econômica. mico, e, o que é pior, esta estrutura é funesta para a
São duas ordens em disputa: a sociedade de própria m entalidade do trabalhador, que chega a
raízes coloniais, simbolizada pelo cupim e suas estra­ considerá-la enquanto ordem natural do mundo. A
tégias de sobrevivência, e a modernização, represen­ explicação de Jo sé de Sousa Martins cai com o luva :
tada por vários elementos como cimento, metal, alu­ a propriedade da terra é o centro histórico de um
mínio, aço, máquina. No esquema das cidades apre­ sistem a político persistente. Associada ao capital
Revista Geousp, ne 2, p. 67-77, 1997. 77

m oderno, deu a esse sistema político uma força re­ A cifra do modernismo é por dem ais genérica
novada, que bloqueia tanto a constituição da verda­ para designar suas particularidades. A visão de mo­
deira sociedade civil quanto a da cidadania de seus dernização é que é diferenciada: Drummond experi­
membros. A sociedade civil não é senão esboço num menta o moderno mas mantém com este uma rela­
sistem a político em que, de muitos modos, a socie­ ção de tensão, pois o poeta parece se dar conta de
dade está dom inada pelo Estado. E um Estado base­ que é preciso suspeitar, ou pelos menos, não se en­
ado em relações políticas extrem am ente atrasadas, tregar sem reservas ao novo; Jo ã o Cabral, ao con­
como as do clientelism o e a da dom inação tradicio­ trário, defende com fervor quase religioso a bandei­
nal de base patrimonial, do oligarquismo. No Brasil, ra da modernização (processo econôm ico): só ela
o atraso é um instrum ento de poder .19 destruiria o cupim do atraso. Não se trata de uma
Por fim, ao fechar o seu circuito de cidades, visão dualista que opõe a noção do tradicional à do
de volta ao Recife, Jo ã o Cabral acaba por caracteri­ moderno: o cupim é exatamente a figura encontrada
zar seu poema como uma espécie de ode à moderni­ pelo poeta para definir as estratégias de sobrevivên­
zação. Para o poeta, o novo representa o fim de toda cia e disfarce do atraso, como por exemplo o pacto
degradação das condições de vida herdadas do pas­ estrutural entre classes proprietárias "atrasadas" e
sado; a decadência econôm ica regional é produto "m odernas" na origem de nosso crescim ento urba­
direto de um resíduo colonial persistente como um no-industrial. O quadro apresentado por Cabral pro­
inseto vivo. cura dar conta desta situação:a cana latifúndia em
Voltando à pergunta inicial sobre a relação dos volta continua.
dois autores: há pontos de contato, afinal são mo­ Os dois autores souberam ver com exatidão
dernos, mas não dizem respeito à gênese estética, nossas cidades, e a poética de suas visões revelou a
pois a poética drummoniana, como se sabe, é bas­ síntese de um processo urbano incom pleto, em for­
tante diversa da de Jo ã o Cabral ma e conteúdo.

19 Jo s é de Souza Martins. O P o d e r do Atraso. (Ensaios de Socio­


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Endereço do autor: Mirandulina Maria Moreira Azevedo


Endereço: Rua Francisco Leitão, 26, apt. 5. Cep: 05414-020 tel: 852-0471
O artigo foi escrito em junho de 1997-

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