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Nome: N.º Turma: 12.

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Ficha n.º 7A

Ano letivo Cesário Verde: O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL


2021-2022
PORTUGUÊS

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL


I
Ave Marias

Nas nossas ruas, ao anoitecer, E evoco, então, as crónicas navais:


Há tal soturnidade, há tal melancolia, Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

O céu parece baixo e de neblina, E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!


O gás extravasado enjoa-me, perturba; De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba E em terra num tinir de louças e talheres
Toldam-se duma cor monótona e londrina. Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Batem carros de aluguer, ao fundo, Num trem de praça arengam dois dentistas;
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Ocorrem-me em revista, exposições, países: Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros, Vazam-se os arsenais e as oficinas;


As edificações somente emadeiradas: Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
Como morcegos, ao cair das badaladas, E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros. Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Voltam os calafates, aos magotes, Vêm sacudindo as ancas opulentas!


De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos; Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Ou erro pelos cais a que se atracam botes. Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,


Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!

1 Português 12.º Ano


Cesário Verde, Obra Completa (org. Joel Serrão), Lisboa, Livros Horizonte, 1988

TEMPO ESPAÇO PERSONAGENS ESTADOS DE ALMA DO POETA


Ao anoitecer. Bulício, Tejo, maresia. As Infere-se: muita gente nas ruas. Soturnidade e melancolia. Desejo
Sombras. ruas de Lisboa. absurdo (injustificado) de sofrer.

Infere-se: o aproximar da Céu baixo e de neblina. Enjoo pelo gás extravasado.


noite (iluminação, Gás extravasado, cheiro Turba. Infere-se a tristeza do poeta,
edifícios onde se prepara a gás. provocada pela cor monótona e
o jantar, pessoas a Edifícios e chaminés. Cor londrina.
caminho de casa). monótona e londrina.
  Ao fundo, carros de   A felicidade dos que partem, em
aluguer, em direção ao oposição à infelicidade dos que ficam,
comboio. entre os quais o poeta.
O poeta manifesta desejo de evasão
para capitais europeias onde é possível
chegar de comboio. A felicidade está
onde não se está.
Ao cair das badaladas As casas de madeira Infere-se a existência de pessoas  
(velha tradição, parecem gaiolas. As no interior das casas. Os
anunciando o fim do casas são como viveiros, mestres carpinteiros saltam de
trabalho com o toque dos nelas se amontoam as viga em viga, como morcegos,
sinos). pessoas. abandonando o trabalho.
Boqueirões, becos. Os calafates, aos magotes, de O poeta, a cismar, por boqueirões, por
Cais a que se atracam jaquetão ao ombro, becos.
botes. enfarruscados, secos, regressam O poeta erra pelos cais a que se
a casa. atracam botes.
Tempo de evasão: recuo Espaço de evasão: os Personagens de evasão: A realidade dura faz o poeta ter
ao tempo dos Descobrimentos. mouros, heróis ressuscitados. consciência da necessidade que sente
Descobrimentos Camões a salvar Os Lusíadas a de evasão.
nado.
Fim da tarde. No mar, vogam os Infere-se a presença dos O poeta declara-se incomodado com o
Hora de jantar. escaleres de um ingleses, nos couraçados, os fim de tarde.
couraçado inglês. Em privilegiados da sorte a jantar
terra serve-se o jantar nos hotéis da moda.
nos hotéis da moda.
  Um trem de praça (onde Dois dentistas (arengam num O poeta revela simpatia pelos
arengam dois dentistas). trem de praça). Um trôpego desfavorecidos e hostilidade para com
As varandas das casas. arlequim (um desfavorecido da os bafejados pela sorte.
As lojas. sorte) braceja numas andas.
Os querubins do lar (a
criançada, à espera dos pais, aos
saltinhos, nas varandas). Os
comerciantes, em cabelo
(descompostos), enfadam-se, à
porta das lojas, por falta de
clientes.
  Arsenais e oficinas. O operariado deixa o trabalho e Infere-se: o poeta mostra ter
O rio a reluzir, viscoso. regressa à casa. As obreiras, consciência da vida miserável das
apressadas. As varinas, em varinas mas também de que elas não
grupo, hercúleas, galhofeiras. têm consciência disso (a felicidade está
na ordem inversa da consciência).
    As varinas, de troncos fortes O poeta comisera-se com a vida das

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como pilastras, agitam, ao varinas e antevê a desgraça dos seus
andar, as ancas opulentas. filhos, que antevê a naufragarem nas
Os filhos das varinas (que elas tormentas.
embalam à cabeça), vão dentro O poeta, consciente, sofre pelas
das canastras. varinas, que não revelam ter
consciência da realidade que as afeta.
    As varinas trabalharam, de  
manhã à noite, nas descargas de
carvão, nas fragatas, vão
descalças. As varinas moram
num bairro sem condições (aí
miam gatas, o peixe podre gera
focos de infeção).

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