A obra “O Sentimento de um Ocidental” retrata a deambulação de um poeta pelas
ruas de Lisboa. É um poeta reativo e ativo que justifica o seu mal-estar com o cenário humano preocupante e desolador. E não se trata apenas de retratar esse cenário, a sua interiorização potencia o aparecimento de outros cenários, carregados de vivências e valores pessoais, trabalhados literariamente. Por outro lado, podemos olhar para este texto como uma pequena narrativa em que o narrador é o próprio sujeito poético. É ele que vai convocando espaços, tempo e personagens, descrições e ações. Assim vemos e sentimos as ruas pelos seus olhos e sensações e, pelas associações que ele vai criando, percorremos, deambulamos pela sua própria subjetividade. No texto de Cesário, deparamos com quatro cenários – Ave-Marias, Noite Fechada, Ao Gás, e Horas Mortas, a que correspondem, respetivamente, o Anoitecer, Escuridão, a Fixação da Noite, a Noite Profunda.
PARTE I – (AVE-MARIAS)
Localiza a ação em termos de espaço – “Nossas ruas” (Lisboa) e
temporalmente “Anoitecer”; Justifica a sua melancolia, soturnidade, náusea e sofrimento (“Desejo absurdo de sofrer”) com o ambiente que o rodeia: O gás — “enjoa e perturba”; os edifícios e as pessoas são de “cor monótona e londrina “, as edificações são como “gaiolas”. Perante um lugar opressivo e um tempo angustiante, resta apenas ao sujeito poético o desejo de evasão: no espaço – desejo de acompanhar os que partem felizes; no tempo – evocação das glórias passadas. As “evasões” são também elas momentos de deambulação, pensamentos que surgem não arbitrariamente, mas motivados pelo que é percecionado (a via-férrea suscita a vontade de partir; os botes a memória de outros tempos). O passado aparece como irrepetível e impossível (“Singram naus que eu não verei jamais”) Valorização do povo que, mesmo enfrentando dificuldades, mostra vitalidade: os carpinteiros “saltam”; as varinas “correm com firmeza” e mesmo de negro surgem “galhofeiras”. Sensações visuais, auditivas e olfativas captadas em deambulação: • Tinir de louças • Hotéis que flamejam • O rio que reluz, viscoso • Os dentistas que arengam • As varinas hercúleas • O cheiro do peixe pobre Recursos dos versos «E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, /Correndo com firmeza, assomam as varinas.» Metáfora – cardume; Anteposição dos adjetivos relativamente ao nome, dupla adjetivação (varinas hercúleas e galhofeiras) O poeta é sensível à realidade difícil do povo, símbolo de vitalidade e de fecundidade (“ancas opulentas”), vive em condições difíceis e pouco saudáveis. Além disso, estão constantemente em luto – “cardume negro”- inclusive dos próprios filhos. Haverá algo mais trágico do que elas próprias, inconscientemente e por necessidade, recriarem o ambiente onde mais tarde, muitos deles, irão morrer?
PARTE II– (NOITE FECHADA)
Adensa-se a ideia de prisão: referência literal à prisão de Aljube e às construções
que se assemelham a muros. Crítica social – a justiça não é cega, só afeta os mais frágeis – velhinhas e crianças – deixa de fora os mais favorecidos – mulher de “dom”. Procura de encontrar uma justificação fisiológica para o seu mal-estar (“aneurisma”); Equivalência das prisões com os símbolos da igreja que lhe fazem chorar “o coração”; Contraste entre a luminosidade das casas e das lojas com a “nódoa negra” das igrejas; Mais uma deambulação pela história, neste caso, à vista das sombras das igrejas, vem-lhe à memória a inquisição e as suas severas leis. O Catolicismo é aqui percecionado como pernicioso e opressivo. Nova deambulação pelo passado, para, mais uma vez, o contrastar com o presente. A figura imponente de Camões contrasta com a realidade que o circunda: vejam-se os pares: “monumental”/“vulgar”; “Proporções guerreiras”/”bancos de namoro”; “épico doutrora”/”exíguas pimenteiras”. Na visão das pessoas que o rodeiam, do povo, o ar doentio, “enfezados”, convoca-lhe a memória de doenças que afetaram muito as pessoas daquele século, em especial as camadas mais baixas; Contrastando com a estátua e o passado de “proporções guerreiras”, os soldados são descritos como fantasmas “sombrios e espetrais” e os quartéis parecem conventos. Tudo isso lhe lembra os tempos da Idade Média. Contraste entre o palácio e as casas pobres; A cidade é tão triste que ele tem receio que isso tenha consequências nas suas recordações e que avive o que ele pretende manter esquecido. A visão das “elegantes”, burguesas ou aristocratas, mulheres da moda, privilegiadas, causam-lhe incómodo (“Enlutam-me”), pois o seu sorrir, curvado, às possíveis prendas contrasta com o sofrimento das mulheres do povo. Compare-se este “curvadas a sorrir” com a descrição viva e ativa das varinas e com o desejo de manter o pescoço alto (a dignidade) das costureiras e floristas. Também dignas de atenção do sujeito poético são as costureiras e floristas, mulheres também do povo, a quem custa manter a dignidade “custa-lhes a elevar os seus pescoços altos” e são obrigadas, para sobreviver, a ter atividades menos dignas “comparsas ou coristas”. Por fim entra na cervejaria, e mesmo os mais discriminados se divertem. O sujeito poético assume-se como tendo “luneta de uma lente só”, isto é a sua visão é subjetiva, pessoal, mas íntegra e sem duplos sentidos: “Homem de um só parecer, / D'um só rosto, uma só fé(…) Sá de Miranda Encontra assunto na realidade, no mundo que o rodeia: “eu acho sempre assunto a quadros revoltados”. O uso de estrangeirismos reforça a ideia de Lisboa como cidade europeia.
PARTE III– (AO GÁS)
A cidade cada vez mais opressiva – uso da gradação (“pesa, esmaga”); Referência à prostituição sem moralismos, embora use o termo impuras, vendo apenas o seu sofrimento: “arrastam-se” e sofrem o frio da cidade; A visão das prostitutas, a sua decadência e tristeza, cria a associação com os hospitais, as doenças e a moleza, ausência de força, vida. As lojas como símbolo da nova religião o consumismo – imagem das lojas como catedrais. A visão das burguesinhas que resvalam pelo chão minado pelos canos. São seres desprezíveis, insignificantes que lhe lembram as freiras de antigamente, que os jejuns matavam de histerismo. Reparemos que há mulheres (varinas, costureiras, prostitutas) que em vez de jejuns voluntários, passam realmente fome e morrem dessa fome. A referência ao cutileiro e à padaria serve para valorizar o trabalho honesto dos homens do povo que é acentuada pela hipálage presente no “cheiro salutar e honesto”. Vontade de escrever algo de extraordinário, partindo da realidade e da sua análise. O contraste entre as casas de confeção, onde se aglomeram as “elegantes” e o povo que só vê de fora e apenas pelo roubo pode aceder ao seu produto. Frustração por não conseguir escrever /pintar o que vê – pode ser por falta de arte ou porque todas estas misérias que vê suplantam essa vontade. Volta às mulheres de luxo e à sua vivência superficial que obriga os caixeiros a requebrarem-se. Aos poucos, com o avançar da noite, as lojas vão-se fechando, tornando-se túmulos. Um vendedor de lotaria grita ainda, desespero de quem quer “ganhar” a vida. Figura do professor de latim, semelhante ao professor de Dante na Divina Comédia.
PARTE IV– (HORAS MORTAS)
Tal como o início da parte III, a IV começa com o acentuar da ideia de prisão/opressão. Vontade de partir, “transmigrar” pelo sonho. A cidade fecha-se, apaga-se – “colocam-se taipais, rangem as fechaduras”. Uso da sinestesia “um parafuso cai nas lajes – às escuras”. Desejo de imortalidade e perfeição pela sua arte. Nova digressão/deambulação, agora pela vontade de ser feliz, burguesmente, com esposa e filhos; Desejo de que uma nova geração surja em Portugal capaz de recuperar a nossa importância no mundo, que nos resgate da melancolia e da “apagada e vil tristeza” do momento. Frustração, pois num mundo assim, num mundo que castra e limita a vontade e faz os homens “emparedados”, sem horizonte, é impossível esse espírito novo e ativo. A referência aos únicos transeuntes – gente suspeita, bêbados e cães. Esfomeados, os cães, são uma imagem terrível, o contraponto trágico da deambulação do sujeito. Nova referência às prostitutas e nova relação com a doença – “tossem”. A última quadra é uma espécie de síntese: perante uma realidade sem horizonte, fechada e limitadora (“prédios sepulcrais”), o homem sente-se frustrado, e apenas lhe resta o sonho, a vontade, para tentar evadir-se dessa prisão, contudo, essa esperança depressa cai em desilusão, pois à sua frente há apenas “marés, de fel, como um sinistro mar”. CONCLUSÃO PRINCIPAIS TÓPICOS: Deambulação: física – pela cidade de Lisboa –, psicológica – as suas emoções, desejos – e temporal – a memória individual e coletiva. Contraste entre a memória épica e a realidade triste atual. Transfiguração do real – olhar subjetivo que seleciona, compara, evoca. Olhar compassivo, empático, com o povo que sofre, mas mesmo assim é a única evidência de alguma vitalidade e dignidade. Olhar crítico para a igreja, “ a nódoa negra” e para as mulheres privilegiadas, da moda, que se por um lado seduzem, perturbam, por outro fazem -no sofrer (“enlutam-me”). “O Sentimento dum ocidental” é o sentimento melancólico frustrado e trágico do poeta que sonha libertar-se da cidade opressiva, desse tempo decadente, através da viagem física para outras cidades, do sonho e, principalmente, através da sua arte – buscando a perfeição que lhe trouxesse a imortalidade, mas que tem apenas como horizonte: “marés, de fel, como um sinistro mar”.