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APONTAMENTOS SOBRE FERNANDO PESSOA

O FINGIMENTO POÉTICO:

Pessoa considerava que:

A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos em os libertar deles mesmos,
propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira
substância com que sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o
sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto,
tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como
sendo as que sinto de modo que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E com outrem é,
por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas todas, isto é, aquela pessoa que é comum
a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num
sentimento humano típico, ainda pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.

Assim, neste processo de fingimento poético estamos perante a necessária intelectualização das
emoções, isto é, na sua transposição para formas mentais, condição sine qua non para que haja
comunicação e arte.

É também Pessoa que diz que “A arte mente porque é social”, pois a mentira “nasce da vontade
de estar a sonhar, é tão somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de
conformar a essa existência a nossa”. E exemplifica com um exemplo. Tendo uma emoção
vulgar, num dia vulgar, um aborrecimento sem razão muito clara, pretendendo transmiti-la,
repara que a saudade da infância perdida costuma produzir nas pessoas uma sensação
semelhante. Então demora-se a procurar e trabalhar pormenores e momentos que evoquem
esse sentimento. Assim, se na linguagem devidamente trabalhada conseguir passar essa
evocação, desperta no leitor uma emoção semelhante à que ele tinha que, originalmente, nada
tinha a ver com a infância.

E eis como o próprio poeta, num outro texto, explica e aproxima a ideia de fingimento poético
da ideia de heteronímia:

O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento,
exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos variáveis e vários,
exprimirá como que uma multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo
temperamento e o estilo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é uma criatura
de sentimentos vários e fictícios mais imaginativo do que sentimental, e vivendo cada estado
de alma antes pela inteligência que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma
multiplicidade de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo, pois que o
temperamento está substituído pela imaginação, e o sentimento pela inteligência, mas tão
somente pelo simples estilo. Outro passo, na mesma escala de despersonalização, ou seja de
imaginação, e temos o poeta que em cada um dos seus estados mentais vários se integra de tal
modo nele que de todo se despersonaliza, de sorte que, vivendo analiticamente esse estado de
alma, faz dele como que a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estilo
tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja vários poetas, um poeta
dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados
insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura
diferentes, até opostos, aos típicos do poeta na sua pessoa viva.

1
A DOR DE PENSAR

Decorrente da intelectualização dos sentimentos e emoções, da vivência apenas pela


inteligência e imaginação, produz-se no poeta um sentimento doloroso, uma sensação de
incompletude.

Por outro lado, há, essa espécie de excesso de lucidez, de consciência, que o leva a dizer que:
“Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser
positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio.
Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas
as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um
medo por demais inteligente.”

Essa sensação de incompletude, de não viver inteiramente a vida, pois lhe falta a inconsciência,
o viver sem pensar, e uma perceção de incapacidade de perceber e apreender tudo, torna-o
marcado por sentimentos negativos como o tédio, resignação, cansaço, angústia, frustração e
abulia.

A dor de pensar acentua-se com a consciência de que a felicidade só é possível alcançar sendo
inconsciente de si mesmo, como é acentuado pelo poema “Gato que brincas na rua” e pelo
desejo impossível de ser um inconsciente consciente ou um outro com a sua própria consciência
como é visível no poema “A Ceifeira”.

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