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RELACIONAR A variedade do sentimento amoroso

E
O amor é um tema presente de forma transversal em toda a literatura portuguesa
C produzida ao longo dos séculos. Tratado nas suas mais diversas vertentes, permite ao
O leitor não só contactar com a vivência do sentimento de um ponto de vista social mas
R também com a reflexão em torno da sua dimensão individual. Trata-se de um tema
D que alberga uma diversidade de manifestações que permite olhares diversos que tanto
identificam pontos de continuidade como aspetos contrastivos.
A
R
Poesia trovadoresca – cantigas de amigo e cantigas de amor
Na poesia trovadoresca, o amor é um tema dominante que se explora sob diferentes óticas:

VER TEXTOS
• o amor popular/burguês (a simplicidade amorosa): presente nas cantigas de amigo, é um
sentimento amoroso expresso por uma jovem apaixonada e que se associa a manifestações de alegria1,
tristeza2, preocupação3, saudade4 ou ira5, em função da situação amorosa vivida com o amigo;
os sentimentos apresentados são, aparentemente, mais espontâneos e realistas do que
os encontrados nas cantigas de amor;
• o amor cortês: sentimento amoroso do trovador por uma mulher, normalmente casada, de uma
VER TEXTOS
classe social superior, a quem este deve prestar homenagem6; trata-se de um sentimento idealizado
e marcado pelo sofrimento amoroso (“coita de amor”) dada a indiferença ou a não correspondência
amorosa da “senhor”7; segue um conjunto de regras codificadas, como a vassalagem amorosa, pelo
que o sentimento é mais convencional do que o presente nas cantigas de amigo8.

PROFESSOR

Disponíveis, em
, Rimas, de Luís de Camões
todos os excertos textuais
das diferentes obras aludidas O amor é um tema maior na lírica camoniana. O poeta reflete sobre as experiências amorosas e sobre a
nesta rubrica. própria essência do sentimento amoroso, relacionando-o com a mulher amada, seja esta real ou imaginada,
e considerando-o um Bem superior. No âmbito deste tema, destacam-se os seguintes aspetos:

VER TEXTOS
• o amor neoplatónico: sentimento idealizado que o poeta experimenta por uma mulher ideal,
inatingível, que pode existir apenas na imaginação do poeta ou que, sendo real, é um reflexo terreno
da beleza divina9; o amor eleva o espírito do poeta, permitindo-lhe o acesso ao Bem e à realidade
extraterrena e está cristalizado na mulher amada10;
• as contradições do amor: o poeta vive a divisão entre o amor físico, feito de sentidos, e o metafísico,
VER TEXTOS
feito de espírito11; o amor é visto como sentimento capaz de provocar as maiores felicidades mas
também sofrimento e dor incalculáveis12.

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por Carla Marques

Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco


Construída sob o signo do sentimento amoroso13, a obra ilustra o confronto entre os direitos do coração
VER TEXTO e as convenções sociais da época, abordando perspetivas diferentes do amor:

VER TEXTOS
• o amor-paixão: o amor é apresentado como um destino que define a vida e a morte14 e é associado
a Teresa, Simão e Mariana; os enamorados experimentam-no de forma desenfreada, profunda e
Sécs. incondicional e, na impossibilidade de o realizarem, lutam por ele, indo além das próprias forças
XIII-XIV e resistindo a todo o tipo de obstáculos15; o sentimento amoroso traz consigo sofrimento e infelicidade,
pois contraria as regras sociais16; a força do amor permite a remissão até dos erros do passado,
conseguindo transformar aqueles que amam17; incapaz de vencer os obstáculos que se lhe colocam,
o amor é vencido pela desgraça18 e leva os amantes à destruição, à morte19;
• o amor-renúncia: amor que leva a personagem (Mariana) a renunciar à própria felicidade em nome
VER TEXTOS
da felicidade alheia20, indo esta ao ponto de abdicar da própria vida, passando a viver exclusivamente
para o outro21.

Os Maias, de Eça de Queirós


Um dos temas presentes n’Os Maias é o amor, sentimento que é perspetivado, por um lado, na ótica da
caracterização da alta sociedade lisboeta do séc. XIX e, por outro, como um elemento trágico. Estes aspetos
Séc. podem ser observados em alguns dos tópicos associados ao tratamento deste sentimento na obra:
XVI
• o amor adúltero22: em estreita relação com a crónica de costumes,
VER TEXTO
mas também presente nas intrigas principal e secundária,
o adultério está representado por diferentes personagens e
consiste na prática da infidelidade conjugal; na obra, aparece
associado sobretudo às mulheres casadas da alta sociedade
lisboeta que, assim, colocam em causa as convenções sociais;

VER TEXTO
• o amor-paixão23: sentimento avassalador, que leva as
personagens a desafiar a sociedade e as suas convenções;

VER TEXTO
• o amor incestuoso24: sentimento de características
altamente excecionais na obra, surge ligado aos dois
irmãos, protagonistas da intriga principal, e terá
consequências trágicas para ambos; inicialmente,
Séc. trata-se de um incesto inconsciente que resultou
XIX do facto de o Destino ter aproximado as duas
personagens, mas, depois de Carlos ter tido
conhecimento da verdade por Ega, evolui
para um incesto consciente
(por parte de Carlos).

O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago


O tema do amor surge, na obra, a partir das relações entre Ricardo Reis e Lídia, por um lado, e Reis e
Marcenda, por outro. A forma como estas relações são encaradas mostra duas vertentes do amor na obra:

Séc. • o amor físico: ilustrado pela relação entre Reis e Lídia, trata-se de sentimento concreto, ligado
XX exclusivamente ao prazer físico, momentâneo e efémero, desligado, portanto, de qualquer ligação
VER TEXTOS sentimental25; na obra evidencia-se que a ligação do amor físico ao amor emocional só seria possível
se as personagens pertencessem à mesma classe social26;
• o amor contemplativo27: sentimento presente na relação entre Reis e Marcenda, que consiste na
VER TEXTOS
incapacidade revelada por ambos de concretizar o sentimento levemente correspondido que nutrem
um pelo outro.

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

POESIA TROVADORESCA (http://cantigas.fcsh.unl.pt)

 O amor popular/burguês (a simplicidade amorosa):


1 3
( ) A alegria de amar e ser amada pode ser manifestada ( ) A preocupação da menina pode dever-se à ausência do
por meio da dança, que evidencia a juventude e a beleza amado e à suspeita de que ele lhe poderá ter mentido, não
da jovem que está disponível para amar, numa época em tendo intenção de comparecer ao acordo marcado:
que a Natureza desabrocha:
1
− Ai flores, ai flores do verde pino ,
1 se sabedes novas do meu amigo?
Bailemos agora, por Deus, ai velidas , 2
2
Sô aquestas avelaneiras frolidas, Ai Deus, e u é?
e quem for velida, como nós velidas,
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se amigo amar, 1 se sabedes novas do meu amado?
bela, formosa;
sô aquestas avelaneiras frolidas 2
por debaixo de Ai Deus, e u é?
verrá bailar.
Se sabedes novas do meu amigo,
3
Bailemos agora, por Deus, ai loadas, aquel que mentiu do que pôs conmigo?
sô aquestas avelaneiras granadas, Ai Deus, e u é?
e quem for loada, como nós loadas,
Se sabedes novas do meu amado,
se amigo amar,
aquel que mentiu do que mi há jurado?
sô aquestas avelaneiras granadas Ai Deus, e u é?
verrá bailar.
João Zorro, B 1158/V 761. − Vós me preguntades polo voss'amigo
4
e eu bem vos digo que é san 'e vivo.
2
( ) A tristeza é motivada pela ausência do amigo e Ai Deus, e u é?
acontece com maior intensidade se o motivo da separação
for, por exemplo, a ida para a guerra ao serviço do rei: − Vós me preguntades polo voss'amado
e eu bem vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
Como vivo coitada, madre, por meu amigo,
1 2 3
Ca m'enviou mandado que se vai no ferido ; − E eu bem vos digo que é san'e vivo
5
e por el vivo coitada. e será vosco ant'o prazo saído .
Ai Deus, e u é?
Como vivo coitada, madre, por meu amado,
4
ca m'enviou mandado que se vai no fossado ; − E eu bem vos digo que é viv'e sano
e por el vivo coitada. e será vosc[o] ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
Ca m'enviou mandado que se vai no ferido,
D. Dinis, B 568/V 171
eu a Santa Cecilia de coraçom o digo: 1 2 3
pinho/pinheiro; onde; combinou/acordou;
4 5
e por el vivo coitada. são; e estará convosco antes de acabar o prazo.

Ca m'enviou mandado que se vai no fossado,


eu a Santa Cecilia de coraçom o falo:
e por el vivo coitada.
Martim de Ginzo, B 1270/V 876 (C 1270)
1 2 3
pois, porque; notícia, mensagem; campo de batalha;
4
reunião anual das tropas.

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

POESIA TROVADORESCA (http://cantigas.fcsh.unl.pt)

 O amor popular/burguês (a simplicidade amorosa) (cont.):

(4) A saudade normalmente é motivada pela ausência (5) A ira da donzela pode acontecer quando descobre
do amigo e deixa a donzela em grandes cuidados, que o amigo a trocou por outra mulher:
pensando que o pior (ou seja, a morte na guerra ou
no mar) poderá ter tido lugar: Par Deus, amigo, nunca eu cuidei
que vos perdesse, como vos perdi,
Ondas do mar de Vigo, por quem nom parece melhor de mi,
1 2
se vistes meu amigo? nem ar val mais, e tal queixum'end' hei
3
1 2
e ai Deus, se verrá cedo ? que direi, amigo, per bõa fé ,
4
como parec'e seu nom'e quem é .
3
Ondas do mar levado ,
se vistes meu amado? Se vos foss'eu por tal dona perder
e ai Deus, se verrá cedo? que me vencess'hoj'em parecer bem
5 6
ou em al que quer , prazer-m'-ia en ,
7
Se vistes meu amigo, mais tam sem guisa o fostes fazer
o por que eu sospiro? que direi, amigo, per bõa fé,
e ai Deus, se verrá cedo? como parec'e seu nom'e quem é.

8
Se vistes meu amado, Em toda rem que vos possa buscar
9
o por que hei gram coidado? mal, buscar-vo-lo-ei, mentr' eu viva for,
10 11
e ai Deus, se verrá cedo? ca me leixastes por atal senhor
que, bem vos digo, com este pesar
Martim Codax B 1278/V 884/C 1278 que direi, amigo, per bõa fé,
1 2 3
como parec'e seu nom'e quem é.
virá; em breve, rapidamente; levantado.

E, poilo eu disse[r], per bõa fé,


pesar-vos-á, pois souberem quem é.

João Peres de Aboim, B 668/V 271


1
sequer;
2
disso, daí;
3
fórmula de juramento (realmente, por Deus);
4
Ou seja, a donzela ameaça revelar a identidade da outra;
5
outra coisa qualquer;.
6
disso, disto;
7
sem razão;
8
coisa;
9
enquanto;
10
pois, porque; Voltar
11
deixar. ˂

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POESIA TROVADORESCA (http://cantigas.fcsh.unl.pt)

 O amor cortês:

(6) A inferioridade do trovador é uma marca do (7) A “coita amorosa” é constantemente referida
convencionalismo social da época, que é nas cantigas de amor, sendo frequentemente
transposto para o código do relacionamento assumida pelo trovador como um traço inerente
amoroso que obriga, entre outros aspetos, a ao próprio ato de amar. Por ser consequência de
senhor a ser distante: um amor não correspondido, a intensidade da
coita leva o trovador a afirmar que a sua dor não
Nunca vos ousei a dizer tem par e pode inclusive conduzir ao desejo de
o gram bem que vos sei querer,
morrer:
senhor deste meu coraçom;
2
mais1 aque m'em vossa prisom: Senhor, hoj'houvess'eu vagar
1
3
do que vos praz de mi fazer . 2
e Deus me dess'end' o poder
que vos eu podesse contar
4 5
Nunca vos dixi nulha rem o gram mal que mi faz sofrer
de quanto mal mi por vós vem esse vosso bom parecer,
senhor deste meu coraçom; 3
senhor, a que El nom fez par .
mais aque m'em vossa prisom:
de mi fazerdes mal ou bem. Ca se vos podess'i falar,
cuidaria muit'a perder
Nunca vos ousei a contar da gram coita e do pesar
mal que mi fazedes levar, com que m'hoj'eu vejo morrer;
senhor deste meu coraçom; ca me nom pod'escaecer
4

mais aque m'em vossa prisom: esta coita que nom há par.
6
de me guarir ou me matar.
Ca me vos fez Deus tant'amar,
7 8
E, senhor, coita e al nom 5 6
Er fez-vos tam muito valer,
me forçou de vos ir falar. que nom poss'hoj'em mi osmar ,
7

senhor, como possa viver,


D. Dinis, B 536/V 139 8
pois me nom queredes tolher
1 esta coita que nom há par.
mas;
2
eis;
3 D. Dinis, B 525a/V 118
Entenda-se: a prisão é a disponibilidade do trovador para
aceitar tudo quanto a sua senhora lhe quiser fazer;
4 1
disse; descanso, sossego;
5 2
nada, coisa nenhuma; disso, daí;
6 3
salvar; igual, semelhante;
7 4
sofrimento, mágoa; esquecer;
8 5
mais nada. além disso;
6
tanto;
7
imaginar, calcular;
8
tirar.
.

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

POESIA TROVADORESCA (http://cantigas.fcsh.unl.pt)

 O amor cortês (cont.):

(8) Nesta composição, o trovador diz-se pronto a fazer tudo que a senhor lhe solicitar (exceto
deixar de a amar), o que evidencia o respeito pelo código de vassalagem amorosa:

A mia senhor, que me tem em poder


1
e que eu sei mais doutra rem amar,
sempr'eu farei quanto m'ela mandar
2
a meu grado , que eu possa fazer;
mais nom lhi posso fazer ũa rem:
quando mi diz que lhi nom que[i]ra bem,
3
ca o nom posso comigo poer .

4
Ca se eu migo podesse poer,
se Deus mi valha, de a nom amar,
ela nom havia que mi rogar,
ca eu rogad'era de o fazer;
5
mais nom posso querer mal a quem
Nostro Senhor quis dar tam muito bem
como lh'El deu, e tam bom parecer.

Sa bondad'e seu bom parecer


mi faz a mim mia senhor tant'amar
6
e seu bom prez e seu mui bom falar,
que nom poss'eu, per rem, i al fazer;
7
mais ponha ela consigo ũa rem :
de nunca jamais mi parecer bem,
8
porrei mig'eu de lhi bem nom querer.

João Airas de Santiago B 959/V 546

1
mais do que qualquer outra coisa;
2
de boa vontade;
3
pois não posso decidir-me a isso.;
4
comigo;
5
mas;
6
preço, valor, mérito; Voltar
7
mas decida-se ela a fazer uma coisa; ˂
8
decidirei eu.

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RIMAS, DE LUÍS DE CAMÕES

 O amor neoplatónico:
9
( ) A mulher amada é a representante de um ideal (10) Neste soneto, o poeta evidencia o poder do
de beleza e perfeição que o poeta constrói na amor que lhe permite unir a sua alma à da mulher
alma e que, portanto, idealiza, o que corresponde amada, deixando as limitações do corpo, e atingir
a um amor também ele idealizado: o «vivo e puro amor». Todavia, no final, o poeta
não deixa de afirmar que o espírito busca a
forma, ou seja, o material, o físico, mostrando
Ondados fios d’ ouro reluzente,
que a sua conceção de Amor não é puramente
que agora da mão bela recolhidos,
neoplatónica:
agora sobre as rosas estendidos,
fazeis que sua beleza s’ acrecente;

Transforma-se o amador na cousa amada,


olhos, que vos moveis tão docemente,
por virtude do muito imaginar;
em mil divinos raios encendidos,
não tenho, logo, mais que desejar,
se de cá me levais alma e sentidos,
pois em mim tenho a parte desejada.
que fôra, se de vós não fôra ausente?

Se nela está minh’ alma transformada,


Honesto riso, que entre a mor fineza
que mais deseja o corpo de alcançar?
de perlas e corais nasce e parece,
Em si sòmente pode descansar,
se n’ alma em doces ecos não o ouvisse!
pois consigo tal alma está liada.

S’ imaginando só tanta beleza


Mas esta linda e pura semideia,
de si, em nova glória, a alma s’ esquece,
que, como um acidente em seu sujeito,
que fará quando a vir? Ah! quem a visse!
assi co a alma minha se conforma,

Luís de Camões, Rimas. Texto estabelecido


e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão, está no pensamento como ideia:
Coimbra, Almedina, 2005 [1994], p. 164. [e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como matéria simples busca a forma.

Luís de Camões, Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por


Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 2005 [1994],
p. 126.

.
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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

RIMAS, DE LUÍS DE CAMÕES

 As contradições do amor:

(11) O poeta evidencia a dualidade entre o desejo (12a) A descrição antitética dos efeitos do Amor
físico de ver a Dama e de materializar os evidencia os seus efeitos contraditórios:
sentimentos e a espiritualidade do sentimento:

Pede o desejo, Dama, que vos veja, Amor é um fogo que arde sem se ver,
não entendo o que pede; está enganado. é ferida que dói, e não se sente;
É este amor tão fino e tão delgado, é um contentamento descontente,
que quem o tem não sabe o que deseja. é dor que desatina sem doer.

Não há cousa a qual natural seja É um não querer mais que bem querer;
que não queira perpétuo o seu estado; é solitário andar por entre a gente;
não quer logo o desejo o desejado, é nunca contentar-se de contente;
porque não falte nunca onde sobeja. é cuidar que se ganha em se perder.

Mas este puro afeito em mim se dana; É querer estar preso por vontade;
que, como a grave pedra tem por arte é servir a quem vence, o vencedor;
o centro desejar da natureza, é ter com quem nos mata, lealdade.

assi meu pensamento (pola parte Mas como causar pode seu favor
que vai tomar de mim, terrestre [e] humana) nos corações humanos amizade,
foi, Senhora, pedir esta baixeza. se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões, Rimas. Texto estabelecido Luís de Camões, Rimas. Texto estabelecido e prefaciado
e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão, por Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 2005
Coimbra, Almedina, 2005 [1994], p. 120. [1994], p. 119.

(12b) A mesma ideia encontra-se presente nesta redondilha, onde o poeta conclui que não há Amor
que dure que não traga dor:

Quem ora soubesse


onde o Amor nace,
que o semeasse!
Voltas
D'Amor e seus danos Com quanto perdi,
Vi terra florida
trabalhava em vão;
me fiz lavrador; de lindos abrolhos,
se semeei grão,
semeava amor lindos para os olhos,
grande dor colhi.
e colhia enganos; duros para a vida;
Amor nunca vi
mas a rês perdida
não vi, em meus anos, que muito durasse,
que tal erva pace
homem que apanhasse que não magoasse.
em forte hora nace.
o que semeasse.
Luís de Camões, Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão,
Coimbra, Almedina, 2005 [1994], p. 119.
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AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO

 O sentimento amoroso:

(13) A síntese apresentada na introdução deixa clara a temática central, associada à


personagem Simão Botelho:

“Amou, perdeu-se e morreu amando.”

Camilo Castelo Branco, Amor de perdição (Prefácio de Vasco Graça Moura),


Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006.

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AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO

 O amor-paixão:

(14) A carta enviada por Teresa a Simão evidencia claramente que a personagem faz depender
a sua vida e até a sua morte do amor que sente pelo jovem:

“Meu pai diz que me vai encerrar num convento, por tua causa. Sofrerei tudo por amor a ti. Não me
esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no Céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para
Coimbra. Lá irão ter as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás de responder à tua pobre
Teresa.”

Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. II).

(15) A recusa de Teresa em casar com o seu primo, indo contra a vontade seu pai, mostra a
intensidade do sentimento amoroso e a coragem de que ele dota os enamorados:

– Se ele está apaixonado, filha!... e tem bastante confiança em si para crer que hás de amá-lo
muito!...
– E não será mais certo odiá-lo eu sempre!? Eu agora mesmo o abomino como nunca pensei que se
pudesse abominar! Meu pai… – continuou ela, chorando, com as mãos erguidas – mate-me; mas não
me force a casar com meu primo! É escusada a violência, porque eu não caso!...
Tadeu mudou de aspeto, e disse irado:
– Hás de casar! Quero que cases! Quero!… Quando não, amaldiçoada serás para sempre, Teresa!
Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr um pé nas
alcatifas de meus avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha filha, não podes herdar
apelidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas!
Maldita sejas! Entra nesse quarto, e espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio
de sol.
Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto.

Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006, (cap. IV).

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO

 O amor-paixão (cont.):

(16a) A reação de Tadeu relativamente à recusa de Teresa em casar com Baltasar acontece
porque o amor da filha por Simão contraria as regras da sociedade, pois, uma vez que as
famílias Botelho e Albuquerque se odeiam, estas veem no amor dos filhos uma ameaça:

Teresa maravilhou-se da quietação inesperada de seu pai, e desconfiou da incoerência. Escreveu a


Simão. Nada lhe escondeu do sucedido; nem as ameaças de Baltasar por delicadeza suprimiu.
Rematava comunicando-lhe as suas suspeitas de algum novo plano de violência.
O académico, chegando ao período das ameaças, já não tinha clara luz nos olhos para decifrar o
restante da carta. Tremia sezões2, e as artérias frontais arfavam-lhe entumecidas. Não era sobressalto
do coração apaixonado: era a índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali a Castro Daire, e
apunhalar o primo de Teresa na sua própria casa, foi o primeiro conselho que lhe segredou a fúria do
ódio.
Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. IV).

(16b) Também o amor de Mariana por Simão contraria as regras da sociedade, tendo a jovem
plena consciência da impossibilidade de ver os seus sentimentos correspondidos:

− Oiça-me, Mariana: que espera de mim?


– Que hei de eu esperar!… Porque me diz isso o senhor Simão?
– Os sacrifícios que Mariana tem feito e quer fazer por mim só podiam ter uma paga, embora mos
não faça esperando recompensa. Abre-me o seu coração, Mariana?
– Que quer que eu lhe diga?
– Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?
– Conheço, e que tem isso?
− Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada senhora?
– E daí? Quem lhe diz menos disso?!
− Os sentimentos do coração só os posso agradece com amizade.
− E eu já lhe pedi mais alguma coisa senhor Simão?

Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. XVIII).

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO

 O amor-paixão (cont.):

(17) A transformação operada em Simão, que, inicialmente, era conflituoso, irresponsável e


boémio, acontece, segundo o próprio narrador, devido ao facto de se ter apaixonado:

No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As companhias da
ralé desprezou. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, a sua predileta. O campo, as
árvores, e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estio demorava-se por
fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento
que o sequestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para
a mesa.
D. Rita pasmava da transformação, e o marido, bem convencido dela, ao fim de cinco meses,
consentiu que o seu filho lhe dirigisse a palavra.
Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos
dezassete anos.
Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. II).

(18) A carta que Simão escreve a Teresa, no final da obra, mostra uma personagem vencida
pela desgraça que o amor lhe trouxe, o que a leva a aceitar a morte:

Não esperes nada, mártir − escrevia-lhe ele. − A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar.
Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos ao encontro da
morte. Há um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?

Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. XIX).

(19) A última carta de Teresa a Simão mostra que a morte era inevitável porque o amor já não
poderia ter lugar:

“Se te pudesses iludir, meu amor, quererias antes pensar que eu ficava com vida e com esperança
de ver-te no regresso do teu degredo? Assim pode ser, mas, ainda agora, neste solene momento,
domina-me a vontade de fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem às
vezes vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais! Quero que digas: — Está morta, e morreu
quando eu lhe tirei a última esperança”.

Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (Conclusão).

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AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO

 O amor-renúncia:

(20a) Simão, preso na cadeia, compreende que Mariana abdicou de qualquer possibilidade de
felicidade para estar junto dele e para lutar por aquilo que o faria feliz, inclusive o amor de
outra mulher:

Agudíssima foi então a dor do académico ao compreender, como se instantaneamente lhe


fulgurasse a verdade, que Mariana o amava até o extremo de morrer. Por momentos se lhe esvaiu do
coração a imagem de Teresa, se é possível assim pensá-lo. Vê-la-ia porventura como um anjo redimido
em serena contemplação do seu Criador; e veria Mariana como o símbolo da tortura, morrer a
pedaços, sem instantes de amor remunerado que lhe dessem a glória do martírio. Uma, morrendo
amada; outra, agonizando, sem ter ouvido a palavra "amor" dos lábios que escassamente balbuciavam
frias palavras de gratidão.
Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. XII).

(20b) A atitude de Mariana, ao decidir levar as Cartas de Simão a Teresa, que se encontra
enclausurado no convento, mostra que a personagem colocou a felicidade de Simão acima
dos seus sentimentos, da sua felicidade pessoal, dos ciúmes que poderia sentir e do
sofrimento que tal opção lhe trazia:

− Se o senhor Simão quer, eu vou à cidade, e procuro no convento a Brito, que é uma rapariga
minha conhecida, moça duma freira, e dou-lhe uma carta sua para entregar à fidalga.
− Isso é possível, Mariana? − exclamou Simão, a ponto de abraçar a moça.
− Pois então! − disse o ferrador − O que pode fazer-se, faz-se. Vai-te vestir, rapariga, que eu vou
botar o albardão à égua.
Simão sentou-se a escrever. Tão embaralhadas lhe acudiam as ideias, que não atinava a formar o
desígnio mais proveitoso à situação de ambos. Ao cabo de longa vacilação, disse a Teresa que fugisse, à
hora do dia, quando a porta estivesse aberta ou violentasse a porteira a abrir-lha. Dizia-lhe que
marcasse ela a hora do dia seguinte em que ele a devia esperar com cavalgaduras para a fuga. Em
recurso extremo, prometia assaltar com homens armados o mosteiro, ou incendiá-lo para se abrirem as
portas. Este programa era o mais parecido com o espírito do académico. Em vivo fogo ardia aquela
pobre cabeça! Fechada a carta, começou a passear em torcicolos, como se obedecesse a
desencontrados impulsos. Encravara as unhas na cabeça, e arrancava os cabelos. Investia como cego
contra as paredes, e sentava-se um momento para erguer-se de mais furioso ímpeto. Maquinalmente
aferrava das pistolas, e sacudia os braços vertiginosos. Abria a carta para relê-la, e estava a ponto de
rasgá-la, cuidando que iria tarde, ou não lhe chegaria às mãos. Neste conflito de contrários projetos,
entrou Mariana, e muito alucinado devia de estar Simão para lhe não ver as lágrimas.
O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse moço é gratidão ao
homem que salvou a vida de teu pai, que rara virtude a tua! Se o amas, se por lhe dar alívio às dores tu
mesma lhe desempeces o caminho por onde te ele há de fugir para sempre, que nome darei ao teu
heroísmo?! Que anjo te fadou o coração para a santidade desse obscuro martírio?!
Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. IX).

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AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO

 O amor-renúncia (cont.):

(21) Mariana recusa a oferta de Teresa, que lhe queria oferecer um anel em troca do favor
que esta lhe fizera ao trazer uma mensagem de Simão, atitude que mostra que o seu
sacrifício é feito apenas por Simão e não por Teresa e que o seu amor é feito de abnegação e
de fidelidade:

Joaquina disse fora da porta:


– Menina, olhe que a prioresa anda lá por dentro a procurá-la.
– Adeus, adeus – disse Teresa, sobressaltada. – Tome lá esta lembrança como prova da minha
gratidão.
E tirou do dedo um anel de ouro, que ofereceu a Mariana.
– Não aceito, minha senhora.
– Porque não aceita?
– Porque não fiz algum favor a Vossa Excelência. A receber alguma paga há de ser de quem me cá
mandou. Fique com Deus, minha senhora, e oxalá que seja feliz.
Saiu Teresa, e Joaquina entrou na grade.
– Já te vais embora, Mariana?
– Vou, que é pressa; um dia virei conversar contigo muito. Adeus, Joaquina.
– Pois não me contas o que isto é? O amor da fidalga está perto daqui? Conta, que eu não digo
nada, rapariga!...
– Outra vez, outra vez; obrigada Joaquininha.
Mariana, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga; e, se alguma vez se distraía
deste exercício de memória, era para pensar nas feições da amada do seu hóspede, e dizer, como em
segredo, ao seu coração: “Não lhe bastava ser fidalga e rica: é, além de tudo, linda como nunca vi
outra!” E o coração da pobre moça, avergando ao que a consciência lhe ia dizendo, chorava.

Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006 (cap. X).

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OS MAIAS, DE EÇA DE QUEIRÓS

 O amor adúltero:

(22a) A visita da Gouvarinho ao consultório de Carlos mostra claramente a sugestão de


adultério, que não deixa Carlos indiferente:

Carlos subiu: e, sem tirar o chapéu, ficou ainda enrolando uma cigarette, passeando naquela sala
sempre deserta, sempre fria, onde ela deixara agora alguma coisa do seu calor e do seu aroma...
Realmente gostava daquela audácia dela − ter vindo assim ao consultório, toda escondida, quase
mascarada numa grande toilette negra, inventando um caroço no pescocinho são de Charlie, para o
ver, para dar um nó brusco e mais apertado naquele leve fio de relações que ele tão negligentemente
deixara cair e quebrar...
O Ega desta vez não fantasiara: aquele bonito corpo oferecia-se, tão claramente como se se
despisse. Ah! se ela fosse de sentimentos errantes e fáceis − que bela flor a colher, a respirar, a deitar
fora depois! Mas não: como dizia o Baptista, a senhora condessa nunca se tinha divertido. E o que ele
não queria era achar-se envolvido numa paixão ciosa, uma dessas ternuras tumultuosas de mulher de
trinta anos, de que depois se desembaraçaria dificilmente... Nos braços dela o seu coração ficaria
mudo: e apenas esgotada a primeira curiosidade, começaria o tédio dos beijos que se não desejam, a
horrível maçada do prazer a frio. Depois, teria de ser íntimo da casa, receber pelo ombro as palmadas
do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa destilando doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia,
gostara daquela audácia! Havia ali uma pontinha de romantismo, muito irregular, e picante... E devia
ser deliciosamente bem feita... A sua imaginação despia-a, enrolava-se-lhe no cetim das formas, onde
sentia ao mesmo tempo alguma coisa de maduro e de virginal... E outra vez, como nas primeiras noites
que os vira em S. Carlos, aqueles cabelos tentavam-no, assim avermelhados, tão crespos e quentes...

Eça de Queiroz, Os Maias: episódios da vida romântica (fixação de texto Helena Cidade Moura),
a
Lisboa, Livros do Brasil, 28. ed. (cap. VII).

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OS MAIAS, DE EÇA DE QUEIRÓS

 O amor adúltero (cont.):

(22b) A fuga de Maria Monforte com Tancredo constitui o adultério que na obra provoca
maior escândalo, tendo ainda como consequência trágica o suicídio de Pedro da Maia:

− Pedro! Que sucedeu, filho?


Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do filho livre para sempre dos
Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os dois netos, toda uma descendência para amar! E
repetia, trémulo também, desprendendo-o de si com grande amor:
− Sossega, filho, que foi?
Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e levantando para o pai um rosto
devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, numa voz surda:
− Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a
pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!
Afonso da Maia ficou diante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bela face,
onde todo o sangue subira, enchia-se, pouco a pouco, de uma grande cólera. Viu, num relance, o
escândalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquele filho que,
desprezando a sua autoridade, ligando-se a essa criatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a
sua casa de vexame. E ali estava, ali jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem
traído! Vinha atirar-se para um sofá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passear
pela sala, rígido e áspero, cerrando os lábios para que não lhe escapassem as palavras de ira e de
injúria que lhe enchiam o peito em tumulto... − Mas era pai: ouvia, ali ao seu lado, aquele soluçar de
funda dor; via tremer aquele pobre corpo desgraçado que ele outrora embalara nos braços... Parou
junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra
vez, como se ele fosse ainda criança, restituindo-lhe ali e para sempre a sua ternura inteira.
− Tinha razão, meu pai, tinha razão − murmurava Pedro entre lágrimas.
Depois ficaram calados. Fora, as pancadas sucessivas da chuva batiam a casa, a quinta, num
clamor prolongado; e as árvores, sob as janelas, ramalhavam num vasto vento de Inverno.
Foi Afonso que quebrou o silêncio:
− Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar...
− Não sei nada − respondeu Pedro num longo esforço. − Sei que fugiu. Eu saí de Lisboa na
segunda-feira. Nessa mesma noite, ela partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de
joias, uma criada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse à governanta e à ama do pequeno que
ia ter comigo. Elas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.

Eça de Queiroz, Os Maias: episódios da vida romântica (fixação de texto Helena Cidade Moura),
a
Lisboa, Livros do Brasil, 28. ed. (cap. II).

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OS MAIAS, DE EÇA DE QUEIRÓS

 O amor-paixão:

(23a) Pedro da Maia, quando se apaixona por Maria Monforte, experimenta um sentimento
incontrolável:

Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu, vindo de repente numa troca de olhares fatal e
deslumbradora, uma dessas paixões que assaltam uma existência, a assolam como um furacão,
arrancando a vontade, a razão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos.

Eça de Queiroz, Os Maias: episódios da vida romântica (fixação de texto Helena Cidade Moura),
a
Lisboa, Livros do Brasil, 28. ed. (cap. I).

23b
) Este sentimento leva Pedro da Maia ao extremo de desobedecer ao pai para viver a paixão
que o domina:

O outono passou, chegou o inverno, frigidíssimo. Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pai
estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a bênção, passou um momento os olhos por um jornal
aberto, e voltando-se bruscamente para ele:
− Meu pai − disse, esforçando-se por ser claro e decidido − venho pedir-lhe licença para casar com
uma senhora que se chama Maria Monforte.
Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numa voz grave e lenta:
− Não me tinhas falado disso... Creio que é a filha de um assassino, de um negreiro, a quem
chamam também a negreira...
− Meu pai!...
Afonso ergueu-se diante dele, rígido e inexorável como a encarnação mesma da honra doméstica.
− Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha. Pedro, mais branco que o lenço que
tinha na mão, exclamou todo a tremer, quase em soluços:
− Pois pode estar certo, meu pai, que hei de casar!
Saiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o
pai ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao Hotel Europa.
Dois dias depois Vilaça entrou em Benfica, com as lágrimas nos olhos, contando que o menino
casara nessa madrugada − e segundo lhe dissera o Sérgio, procurador do Monforte, ia partir com a
noiva para a Itália.
Afonso da Maia sentara-se nesse instante à mesa do almoço, posta ao pé do fogão: ao centro, um
ramo esfolhava-se num vaso do Japão, à chama forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o
número da Grinalda, jornal de versos que ele costumava receber... Afonso ouviu o procurador, grave e
mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.
− Já almoçou, Vilaça?
O procurador, assombrado daquela serenidade, balbuciou:
− Já almocei, meu senhor...
Então Afonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:
− Pode tirar dali esse talher, Teixeira. Daqui por diante há só um talher à mesa... Sente-se, Vilaça,
sente-se.
Eça de Queiroz, Os Maias: episódios da vida romântica (fixação de texto Helena Cidade Moura),
a
Lisboa, Livros do Brasil, 28. ed. (cap. I).

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

OS MAIAS, DE EÇA DE QUEIRÓS

 O amor-paixão (cont.):

(23c) Também a relação de Carlos da Maia com Maria Eduarda ilustra a força do amor-
paixão. A opção de irem viver para os Olivais, para a Toca, refugiando-se dos olhares
indiscretos e censuradores e cortando relações com a sociedade, mostra a necessidade
cortar relações com a sociedade, ignorando as suas opiniões:

− Aí está outro inconveniente desta casa − dizia no entanto Maria Eduarda. − Aqui ao lado desse
Grémio, a dois passos do Chiado, é demasiadamente acessível aos importunos. Tenho agora de
repelir quase todos os dias este assalto à minha porta! É intolerável.
E com uma súbita ideia, atirando o bordado para o açafate, cruzando as mãos sobre os joelhos:
− Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... Não me seria possível arranjar por aí
uma casinhola, um cottage, onde eu fosse passar os meses de verão?... Era tão bom para a pequena!
Mas não conheço ninguém, não sei a quem me hei de dirigir... Carlos lembrou-se logo da bonita casa
do Craft, nos Olivais − como já noutra ocasião em que ela mostrara desejos de ir para o campo.
Justamente, nesses últimos tempos Craft voltara a falar, e mais decidido, no antigo plano de vender a
quinta, e desfazer-se das suas coleções. Que deliciosa vivenda para ela, artística e campestre,
condizendo tão bem com os seus gostos! Uma tentação atravessou-lhe, irresistível.
− Eu sei com efeito de uma casa... E tão bem situada, que lhe convinha tanto!...
− Que se aluga?
Carlos não hesitou:
− Sim, é possível arranjar-se...
− Isso era um encanto!
Ela tinha dito – “era um encanto”. E isto decidiu-o logo, parecendo-lhe desamorável e mesquinho
o ter-lhe sugerido uma esperança, e não lha realizar com fervor.

Eça de Queiroz, Os Maias: episódios da vida romântica (fixação de texto Helena Cidade Moura),
a
Lisboa, Livros do Brasil, 28. ed. (cap. XII).

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OS MAIAS, DE EÇA DE QUEIRÓS

 O amor incestuoso:

(24) O incesto consciente é associado a uma caracterização que evidencia um lado


animalesco da personagem Carlos e não leva à perpetuação da relação com Maria Eduarda
(como este sonhou por instantes), mas apenas o faz descobrir uma repugnância física e
psíquica pela irmã:

Era, surgindo do fundo do seu ser, ainda ténue mas já percetível, uma saciedade, uma
repugnância por ela, desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnância material, carnal, à flor da
pele, que passava como um arrepio. Fora primeiramente aquele aroma que a envolvia, flutuava entre
os cortinados, lhe ficava a ele na pele e no fato, o excitava tanto outrora, o impacientava tanto agora
– que ainda na véspera se encharcara em água-de-colónia, para o dissipar. Fora depois aquele corpo
dela, adorado sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como era na sua
realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de amazona bárbara, com todas as belezas
copiosas do animal de prazer. Nos seus cabelos de um lustre tão macio, sentia agora
inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda nessa noite o tinham
assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os
seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos túmidos de seiva, ainda decerto
lhe punham nas veias uma chama que era toda bestial. Mas, apenas o último suspiro lhe morria nos
lábios, aí começava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com um susto estranho: e
imóvel, encolhido na roupa, perdido no fundo de uma infinita tristeza, esquecia-se pensando numa
outra vida que podia ter, longe dali, numa casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher,
legitimamente sua, flor de graça doméstica, pequenina, tímida, pudica, que não soltasse aqueles
gritos lascivos e não usasse aquele aroma tão quente! E desgraçadamente agora já não duvidava... Se
partisse com ela, seria para bem cedo se debater no indizível horror de um nojo físico. E que lhe
restaria então, morta a paixão que fora a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o
enojava − e que era... Só lhe restava matar-se!

Eça de Queiroz, Os Maias: episódios da vida romântica (fixação de texto Helena Cidade Moura),
a
Lisboa, Livros do Brasil, 28. ed. (cap. XVII).

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O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, DE JOSÉ SARAMAGO

 O amor físico:

(25) A reação de Ricardo Reis quando Lídia lhe revela que está grávida mostra uma total
ausência de sentimentos, um total alheamento, marcado apenas pela urgência pragmática
da necessidade de procurar uma resolução para uma situação incómoda:

Ele espera que ela faça uma pergunta, por exemplo, que hei de fazer, mas ela continua calada, quieta,
apagando o ventre com a ligeira flexão dos joelhos, nenhum sinal de gravidez à vista, salvo se não
sabemos interpretar o que estes olhos estão dizendo, fixos, profundos, resguardados na distância,
uma espécie de horizonte, se o há em olhos. Ricardo Reis procura as palavras convenientes, mas o
que encontra dentro de si é um alheamento, uma indiferença, assim como se, embora ciente de que
é sua obrigação contribuir para a solução do problema, não se sentisse implicado na origem dele,
tanto a próxima como a remota. […] Então Ricardo Reis decide-se, quer perceber quais são as
intenções dela, não há mais tempo para subtilezas de dialética, salvo se ainda o for a hipótese
negativa que a pergunta esconde mal, Pensas em deixar vir a criança, o que vale é não haver aqui
ouvidos estranhos, não faltaria ver‑se acusado Ricardo Reis de sugerir o desmancho, e quando,
terminada a audição das testemunhas, o juiz ia proferir a sentença condenatória, Lídia mete‑se
adiante e responde, Vou deixar vir o menino. Então, pela primeira vez, Ricardo Reis sente um dedo
tocar-lhe o coração. Não é dor, nem crispação, nem despegamento, é uma impressão estranha e
incomparável, como seria o primeiro contacto físico entre dois seres de universos diferentes,
humanos ambos, mas ignotos na sua semelhança, ou, ainda mais perturbadoramente, conhecendo-se
na sua diferença. […] Que ideia a tua, por que motivo iria eu zangar-me, e estas palavras não são
sinceras, justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis, Meti-
me em grande sarilho, pensa ele, se ela não faz o aborto, fico para aqui com um filho às costas, terei
de o perfilhar, é minha obrigação moral, que chatice, nunca esperei que viesse a acontecer-me uma
destas.

a
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, 21. ed., Lisboa, Editorial Caminho, 2013, pp. 495-498.

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, DE JOSÉ SARAMAGO

 O amor físico (cont.):

(26a) Na obra, as personagens assumem que uma relação amorosa séria não é possível entre
membros de classes sociais diferentes. Por essa razão, Lídia aceita o papel de amante e
sabe que deixará de ser importante quando Reis encontrar uma mulher para ser sua
esposa, papel que não poderá ser desempenhado por ela que não passa de uma criada de
hotel:

Se quiser, o quê, Posso ir ter consigo nos meus dias de folga, não tenho mais nada na vida, Lídia, por
que é que gostas de mim, Não sei, talvez seja pelo que eu disse, por não ter mais nada na vida, Tens a
tua mãe, o teu irmão, com certeza tiveste namorados, hás de tornar a tê-los, mais do que um, és
bonita, e um dia casarás, depois virão os filhos, Pode ser que sim, mas hoje tudo o que eu tenho é
isto, És uma boa rapariga, Não respondeu ao que lhe perguntei, Que foi, Se quer que eu vá ter
consigo quando tiver a sua casa, nos meus dias de saída, Tu queres, Quero, Então irás, até que, Até
que arranje alguém da sua educação, Não era isso que eu queria dizer, Quando tal tiver de ser, diga-
me assim Lídia não voltes mais a minha casa, e eu não volto, Às vezes não sei bem quem tu és, Sou
uma criada de hotel, Mas chamas-te Lídia e dizes as coisas duma certa maneira, […]

a
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, 21. ed., Lisboa, Editorial Caminho, 2013, pp. 276-277.

(26b) Porque o conceito de amor está ligado à pertença a uma dada classe, Reis pede
Marcenda em casamento, ainda que não a ame verdadeiramente, mas nunca pensará em
pedi-lo a Lídia, nem mesmo depois de saber que esta está grávida:

Marcenda, case comigo, disse Ricardo Reis, ela olhou-o, subitamente pálida, depois disse, Não, muito
devagar o disse, parecia impossível que uma palavra tão curta levasse tanto tempo a pronunciar,
muito mais tempo do que as outras que disse depois, Não seríamos felizes.

a
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, 21. ed Lisboa, Editorial Caminho, 2013, p. 407.

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A VARIEDADE DO SENTIMENTO AMOROSO

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, DE JOSÉ SARAMAGO

 O amor contemplativo:

(27a) Após ter recusado casar com Reis, Marcenda escreve-lhe uma carta na qual afirma a
impossibilidade de qualquer relação real entre eles, embora confesse que nunca o
esquecerá:

Aos poucos dias chegou uma carta, a conhecida cor de violeta exangue […] as mesmas palavras,
Foi grande imprudência visitá-lo, não voltará a acontecer, nunca mais nos tornaremos a ver, mas
acredite em mim, ficará para sempre na minha lembrança por muitos anos que viva, se as coisas
fossem diferentes, se eu fosse mais velha, se este braço sem remédio, sim, é verdade, fui
desenganada, o médico acabou por reconhecer que não tenho cura, […] meu amigo, não lhe digo que
se esqueça de mim, pelo contrário, peço-lhe que se lembre todos os dias, mas não me escreva, nunca
mais irei à posta-restante, e agora termino, acabo, disse tudo.

a
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, 21. ed., Lisboa, Editorial Caminho, 2013, pp. 409-410.

(27b) Também Reis acusa esta incapacidade de concretizar o amor e aceita passivamente a
impossibilidade do amor, selando o seu fim com uma ode:

A esta mesma hora, naquele segundo andar da Rua de Santa Catarina, Ricardo Reis tenta escrever um
poema a Marcenda, para que amanhã não se diga que Marcenda passou em vão, Saudoso já deste
verão que vejo, lágrimas para as flores dele emprego na lembrança invertida de quando hei de perdê-las,
esta ficará sendo a primeira parte da ode, até aqui ninguém adivinharia que de Marcenda se vai falar,
embora se saiba que muitas vezes começamos por falar de horizonte porque é o mais curto caminho
para chegar ao coração. Meia hora depois, ou uma hora, ou quantas, que o tempo, neste fazer de
versos, se detém ou precipita, ganhou forma e sentido o corpo intermédio, não é sequer o lamento
que parecera, apenas o sábio saber do que não tem remédio, […] E colho a rosa porque a sorte
manda. Marcenda, guardo-a, murche-se comigo antes que com a curva diurna da ampla terra.
Deitou-se Ricardo Reis vestido na cama, a mão esquerda pousada sobre a folha de papel, se
adormecido passasse do sono para a morte, julgariam que é o seu testamento, a última vontade, a
carta do adeus, e não poderiam saber o que seja, mesmo tendo-a lido, porque este nome de
Marcenda não o usam mulheres, são palavras doutro mundo, doutro lugar, femininos mas de raça
gerúndia, como Blimunda, por exemplo, que é nome à espera de mulher que o use, para Marcenda,
ao menos, já se encontrou, mas vive longe.

a
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, 21. ed., Lisboa, Editorial Caminho, 2013, pp. 492-493.

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