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APONTAMENTOS SOBRE “AMOR DE PERDIÇÃO”

PARA EVITAR A PERDIÇÃO DOS ALUNOS


1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA/LITERÁRIA:
Camilo Castelo Branco faz parte da segunda geração romântica, também
conhecida por ultraromânticos, que coincide com o período da Regeneração e a
governação do Duque de Saldanha em 1851.
Assiste-se a um desenvolvimento económico do país de que é visível o fomento
da agricultura, o investimento na indústria e a abertura de estradas e caminhos de ferro.
A pequena e a média burguesia são as classes particularmente beneficiadas com estas
alterações.
Surgem as ideologias socialistas e republicanas e a classe operária adquire alguma
expressão; contudo, na obra de Camilo Castelo Branco, prevalecem os valores feudais,
circunscritos, sobretudo, à região de entre Douro e Minho, embora seja patente a crítica
aos preconceitos que se associam ao tipo de organização sociopolítica feudal.
De facto, a produção literária camiliana caracteriza-se por dois fatores temáticos e
estruturais fundamentais:
• temas do amor irrealizável, da morte - predominância temática da absolutização
do amor que conduz à tragédia e ao martírio, numa exaltação passional que
determina o próprio ritmo narrativo.
• marcas que o aproximam da estética realista (embora não aceite a sua presença)
- sátira de costumes (desde a crítica à sociedade burguesa aos preconceitos
inflexíveis de estratos sociais caducos e fossilizados até à crítica à vida religiosa)
2. TIPOLOGIA DA OBRA – A NOVELA
Amor de Perdição, em termos de género narrativo, apesar do autor a considerar
um romance, é uma novela.
Caracterizam a novela os seguintes aspetos:
• A concentração de episódios conducentes à ação principal e a consequente
ausência de episódios colaterais.
• A rapidez do ritmo narrativo.
• O número reduzido de personagens.
• A concentração do espaço e do tempo.
• A quase inexistência de descrição.
• A ausência de digressões.
• A frequência do diálogo como expressão dos momentos de tensão dramática.
• A extensão (menor que a do romance).
Como se pode verificar, encontram-se estas características na obra Amor de
Perdição.

3. ESTRUTURA DA OBRA
A obra apresenta uma ação fechada, na medida em que o leitor é informado
sobre o destino final das personagens. A ação, por sua vez, estrutura-se a partir de uma
sucessão de sequências narrativas, ligadas entre si por uma relação de causalidade, ou
seja, os acontecimentos posteriores são sempre uma consequência dos episódios
anteriores, que dão expressão ao segmento textual que o narrador inclui na Introdução:
«(...) amou, perdeu-se e morreu amando».
Este segmento sintetiza a estrutura tradicional da narrativa:
introdução desenvolvimento conclusão
AMOU PERDEU-SE MORREU
AMANDO
Capítulo II – Capítulos III a Conclusão da
momento em XX – desde a obra
que Simão vê recusa de Teresa
Teresa pela em casar com
primeira vez. Baltasar, por
amor de Simão,
até à partida
deste para o
degredo.

4- A OBRA COMO CRÓNICA DA MUDANÇA SOCIAL


4.1- Crónica e mudança social
A história contada em Amor de Perdição é vivida por personagens que estão
isoladas no mundo em que se encontram. Elas pertencem a uma sociedade, agem e
reagem perante os seus costumes e as suas normas. É nesse sentido que se pode dizer
que o Amor de Perdição, tal como outras novelas camilianas, tem uma componente de
crónica que, em certa medida, dá conta de uma determinada mudança social. Assim, o
Amor de Perdição assume a dimensão de crónica, na medida em que nele podemos ler a
marca de um certo tempo histórico. Neste caso, trata-se dos primeiros anos do século
XIX. Recorde-se, conforme é dito no início da obra, Simão Botelho parte para a Índia
em 17 de marco de 1807 e morre alguns dias depois.
No que concerne à componente de mudança social, esta está diretamente
relacionada com a da crónica. O tempo que foi referido corresponde a uma época de
transformações que vinham desde o fim do século XVIII e daquele que foi o seu grande
acontecimento histórico: a Revolução Francesa (1789). A mudança social tem a ver com
a relação entre gerações, com o culto de novas ideias e com a afirmação de novos
valores.
É neste tempo e neste ambiente social que nasce Simão Botelho, em 1784, ainda
no século XVIII, portanto. Isto significa que a personagem principal de Amor de
Perdição pertence a uma família da nobreza e que, em princípio, deveria adotar
costumes adequados à sua condição. Não é assim que se passa, contudo, porque a época
que então se vivia estimulava transformações e mesmo conflitos. Pode dizer-se que esse
potencial de conflitos parte de uma situação de estabilidade aparente, que se encontra
descrita nestes termos: «Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de
Mesquita corregedor em Viseu.
Manuel, o mais velho dos seus filhos, tem vinte e dois anos, e frequenta o segundo
ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda Humanidades em Coimbra. As três
meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe.».
A referida situação de estabilidade indica que o filho mais velho seguirá a carreira
do pai, que era juiz. De Simão Botelho não se sabe ainda o que fará na vida. As irmãs
vivem na proximidade da mãe. Note-se que este era um tempo em que os filhos e filhas
da nobreza não tinham de ter (e normalmente não tinham) uma profissão remunerada. O
que se observa na família de Domingos Botelho é significativo do que se passava na
época:
 O filho mais velho (o morgado) herdaria o património e os títulos da
família. Como se mencionou, preparava-se também para seguir a carreira
de juiz, como o pai.
 O outro filho homem, Simão Botelho, dedicar-se-ia à carreira militar ou
entraria na vida eclesiástica. Ao estudar Humanidades, Simão poderia ir
neste último sentido.
 As filhas estavam destinadas a casar com um homem da nobreza, assim se
mantendo no nível social a que pertenciam. Se isso não acontecesse, o seu
destino poderia ser a vida religiosa, num convento.
Do lado de Tadeu Albuquerque, pai de Teresa, os comportamentos sociais eram
semelhantes. Sabendo do amor da filha por Simão, Tadeu entende que pode ignorar esse
sentimento, até porque as famílias estão divididas por um conflito provocado por casos
judiciais em que Domingos Botelho, como juiz, decidira contra o pai de Teresa. E
assim, por vontade do pai, ela deveria casar com seu primo Baltasar Coutinho, «senhor
de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia». Isto quer dizer também o seguinte:
sem ter filhos homens, Tadeu de Albuquerque desejaria certamente que o seu
património continuasse na família, ao casar a filha com um seu sobrinho, esse, sim,
morgado.
A história dos amores contrariados de Simão e Teresa assenta, então, na revolta de
ambos contra a proibição do casamento. Quando Mariana entra em cena, acompanhando
Simão na prisão e depois no degredo, percebe-se que existe nela um forte sentimento
amoroso pelo jovem condenado; e, contudo, jamais se coloca a hipótese de uma união
entre ambos, porque Mariana vem de um nível social muito inferior (é filha do ferrador
João da Cruz, que acolhe Simão em sua casa). Isto quer dizer que, para ela, a mudança
de nível social pelo casamento era ainda praticamente impossível.
Passa-se tudo isto num tempo histórico de mudança de século. As ideias que então
começavam a circular em Portugal e também certos traços de temperamento em Simão
e em Teresa determinam perturbações profundas nas normas e nos costumes em vigor.
4.2- A crítica ao código ideológico e social da época
A obra foi escrita em 1861, durante o período em que Camilo se encontrava preso
na Cadeia da Relação do Porto, acusado, tal como Ana Plácido, de adultério. Os
apaixonados esperavam, assim, o julgamento. Apesar de o autor fazer referência aos
factos que deram origem à produção da obra e apontar as pessoas da sua família que
suscitaram a conceção das personagens (como acontece em relação ao seu tio Simão e à
irmã deste, Ritinha), o que o levou a escolher para a obra o subtítulo “Memórias duma
família” é a crítica à sociedade do seu tempo, que ressalta, irónica, nas páginas de Amor
de Perdição. Na verdade, Camilo transferiu para a obra o sentimento de revolta e o
desencanto pelo seu país, onde a conduta humana era determinada por condicionantes
que esmagavam os indivíduos, negando-lhes a possibilidade de conquistar a felicidade e
de optar de acordo com as leis de seu coração.
O amor surge como uma forma de caracterizar o tecido social da época, tornando
as personagens heróis, pela faceta anti-heroica que revelam ao nível da sociedade em
que se inserem. Simão e Teresa opõem-se à mesquinhez e ao caráter decrépito das
outras personagens. O par amoroso representa a pureza que se manifesta na
entrega total a um amor idealizado e que é antagónica à moral burguesa instituída
e decadente. É a sua condição de anti-heróis, porque condenados socialmente, que os
eleva à categoria de heroicidade. Simão e Teresa representam, fundamentalmente, o
direito à diferença e a assunção de uma forma de estar no mundo que valoriza o
indivíduo face a uma massa social que o atrofia na sua teia inflexível e destruidora.
A tragédia é, aliás, motivada pela oposição entre os valores absolutos, ligados ao amor,
e os valores sociais, enraizados em estruturas familiares e códigos de comportamentos
que revelam instituições e não indivíduos, condenando o par amoroso à solidão total.
Para além da crítica social subjacente à própria ação, que culmina com a morte
das personagens, Camilo enfatiza a sua intenção crítica em relação a algumas estruturas
instituídas, salientando o seu funcionamento corrupto e desumano. Nesta perspetiva,
deve-se ter em conta a especificidade de alguns momentos da narrativa. Assim:
Critica a corrupção no interior do sistema judicial português, no momento em
que Simão é convidado a fugir, após a morte de Baltasar, pelo facto de ser filho do
corregedor; mais tarde, pelo mesmo motivo, é poupado à morte na forca e é-lhe
permitido o degredo.
Critica à corrupção da estrutura militar – apesar da deserção de Manuel
Botelho, o filho mais velho do corregedor, Domingos Botelho consegue o perdão que o
isenta da punição.
Crítica à igreja enquanto instituição – A disponibilidade dos conventos para
receber raparigas que não respeitam a vontade dos pais; a conduta das freiras do
convento de Viseu, que se entregam aos prazeres da mesa e da carne e que são
apresentadas como intriguistas e mesquinhas; a conversa do padre com a prioresa, o
interesse carnal deste por Mariana e os ciúmes da religiosa.
Conclui-se, pois, que os núcleos estratificados da textura social são postos em
causa. Deste modo, pode-se observar a contestação nos seguintes pontos: à Justiça, ao
Exército e à Igreja.
Tratava-se, em suma, de uma sociedade em que a dimensão humana é
desvalorizada, em função de dogmas ultrapassados como o estatuto social…; em poucas
palavras, a aparência define o contexto epocal apontado pelo autor.
É ainda de notar que o retrato que é feito em relação ao povo evidencia as
características românticas da obra. É neste estrato social que encontramos os valores
autênticos e a pureza instintiva do coração.
4.3- Tempo Histórico
Tal como acontece com muitas outras obras do século XIX (por exemplo, com
Viagens na minha terra e com Os Maias), a história contada em Amor de Perdição
relaciona-se com acontecimentos históricos que são uma espécie de cenário de
enquadramento da ficção. Na Introdução e na narrativa propriamente dita, há
várias dessas referências históricas que permitem fazer um paralelo entre a
história de Simão e Teresa e o que então se passava em Portugal e na Europa. As
alusões a factos e a figuras políticas do princípio do século XIX correspondem ao tempo
em que Simão Botelho foi estudante em Coimbra. Sendo, nessa altura, um jovem
conflituoso e agressivo, Simão manifesta também esse seu modo de ser quando estavam
em causa as ideias que defendia - a adesão aos princípios da Revolução Francesa.
Simão Botelho encontrava-se entre os defensores da Revolução Francesa e
daquilo que nela havia de mais violento. Por isso e «apesar dos seus imberbes
dezasseis anos», «Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins e muitos outros algozes
e mártires do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão»;
deste modo, «difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e
pistolas engatilhadas à cara do difamador».
O modo como Simão vive os acontecimentos históricos e políticos desse tempo
de grandes mudanças torna evidente o seguinte: trata-se de uma figura rebelde e
conflituosa, com tendência para episódios como aquele que se conta logo a seguir. Por
causa das suas posições políticas, Simão é preso, perde o ano letivo e regressa a Viseu,
onde se defronta com a cólera do pai.
Por sua vez, Teresa está ausente de questões desta natureza, por uma razão que
tem a ver com os costumes da época: eram os homens que participavam na vida política,
na reflexão e nas leituras que ela exigia.
4.4- A concentração temporal da ação
Amor de Perdição é uma novela, visto que apresenta um ritmo rápido e uma
exposição sucessiva, linear dos acontecimentos. De facto, embora o narrador tenha a
preocupação de situar o leitor no tempo da história, fornecendo constantemente datas
que ajudam a balizar os acontecimentos, tem-se, a dada altura, sobretudo quando a
intriga amorosa se começa a adensar, a sensação de que tudo decorre num tempo
indefinido, vago, intemporal - o tempo do discurso.
Existem, pois, dois tempos:
 Tempo da história - corresponde à sucessão cronológica de eventos
suscetíveis de serem datados com maior ou menor rigor.
 Tempo do discurso - pode ser definido como a consequência da representação
narrativa do tempo da história, o que quer dizer que corresponde à forma como os
acontecimentos se dispõem na narrativa de modo a conduzirem ao desenlace,
podendo, por exemplo, haver recuos ou avanços no tempo (analepses e prolepses).
Relativamente ao tempo da história, pode-se dizer que ele é linear e quase sempre
cronológico. A perceção de linearidade é particularmente veiculada através das datas,
mais ou menos detalhadas, com que o narrador pontua o seu relato, a começar logo pela
Introdução. Na realidade, nessa parte inicial, o narrador deixa já algumas pistas sobre o
tempo da história, referindo o registo «das entradas dos presos desde 1803 a l805» e
ainda a data de partida de Simão para a India - «17 de março de 1807». Assim, ainda
antes de se iniciar a narração propriamente dita, o leitor fica já com uma noção do
período de tempo durante o qual decorrerá a intriga amorosa. A Introdução funciona
como uma espécie de resumo da vida de Simão e da sua trágica história de amor
com Teresa, o que quer dizer que apresenta, em termos de tempo do discurso, um
desfasamento temporal entre o relato, a narração (em poucas linhas) e aquilo que é
relatado e que corresponde a um período de tempo longo.
Essa sensação de desfasamento também se verifica no capítulo I. Esse capítulo
apresenta os antecedentes da intriga, ocupando menos de dez páginas. No entanto,
abarca um período de mais de quatro décadas: a data mais antiga mencionada
corresponde ao ano de 1758, ano em que se dera uma tentativa regicida, na qual,
supostamente, participara Fernão Botelho, avô de Simão, e a data mais recente é a de
1801, ano em que o narrador nos diz - «achamos Domingos José Correia Botelho de
Mesquita corregedor em Viseu»).
Por sua vez, a intriga central, que se inicia no capítulo II e que se prolonga até à
Conclusão, ocupa bastante mais de cem páginas. Mas essas páginas narram eventos
ocorridos em apenas seis anos (1801 a1807), ou, para se ser mais exato, quatro anos,
já que Simão avista Teresa pela primeira vez quando tem dezassete anos (Capítulo II -
«Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda
reforma aos dezassete anos.»).
Nesse sentido, há uma concentração-temporal da ação, uma vez que os
principais factos da intriga amorosa correspondem a um período de tempo muito
curto, sendo-nos apresentados ao longo de vários capítulos, rumo à fatalidade.
Todos os factos expostos no capítulo I servem para explicar a ação central – o amor
contrariado de Simão e Teresa - e, por isso, o narrador percorre os cerca de quarenta
anos de vida dos Botelho (passando por três gerações) em poucas páginas. Por isso,
também o florescer do amor entre Simão e Teresa é relatado de forma tão breve, porque
o que interessa ao narrador é contar a perdição dos amantes, uma vez que esta é uma
história de amor - paixão, um amor que só pode terminar na morte.
5- SUGESTÃO BIOGRÁFICA E CONSTRUÇÃO DO HERÓI
ROMÂNTICO
5.1- Sugestão biográfica
Pode-se falar de sugestão biográfica a propósito do Amor de Perdição, porque a
composição da narrativa e o discurso do narrador sugerem a existência de uma certa
relação entre a experiência de vida de quem conta (narrador) e uma das personagens
(Simão).
Assim, no subtítulo Memórias duma Família podemos ler que se as memórias são
de uma família, elas dizem respeito a um coletivo que se pode encontrar prolongado
para além dos acontecimentos, por outras palavras, prolongar-se de Simão a Camilo, seu
sobrinho.
A introdução (que não faz parte, em rigor, do relato) combina dois elementos de
informação:
 Um elemento pessoal. Quem nos diz «li [...]o seguinte» introduz, naquilo que
escreve, o seu conhecimento pessoal e a sua subjetividade. É esta que está
presente nas considerações que se seguem, acerca da tristeza que esta história
inevitavelmente provoca.
 Um elemento documental, porque quem “fala” na Introdução apoia-se nos
«livros de antigos assentamentos» (isto é, nos registos) da Cadeia da Relação
do Porto. O que significa que a história que vai ser contada pode ter uma base
de verdade, em função de factos acontecidos.
Essa base de verdade não obriga, contudo, a que Amor de Perdição seja lido
como um livro de História propriamente dito (do mesmo modo que lemos uma
qualquer História de Portugal, por exemplo). É preciso recordar que os escritores
românticos cultivaram muitas vezes este procedimento: introduziam na
composição da obra o seu conhecimento pessoal do que era contado, a fim de
impressionarem os leitores com esse testemunho de autenticidade. Um testemunho
que muitas vezes era reforçado por documentos citados: cartas, testamentos,
notícias da imprensa, livros de registos, etc.
Em Amor de Perdição, isso acontece com frequência. O narrador apoia-se
repetidas vezes em cartas que transcreve, sobretudo naquelas que foram trocadas entre
Simão e Teresa. Por exemplo, no capítulo XII, é transcrita uma carta que o narrador
atribui a uma «senhora daquela família». Nessa carta que se percebe ter sido escrita
pela irmã mais nova de Simão, Rita Emília) é contada uma parte daqueles «tristes
acontecimentos da minha mocidade». A certa altura, o narrador interrompe o relato
que a carta contém, «para não anteciparmos a narrativa de sucessos, que importa, em
respeito à arte, atar com fio contado».
Note-se que o narrador afirma «em respeito à arte». Sendo assim, por muito que a
história de Simão e de Teresa esteja baseada em factos e em testemunhos verídicos, a
sua composição é, por fim, artística e literária. Por outras palavras: o relato trabalha os
acontecimentos em função de um propósito literário, incluindo a sua transformação em
ficção. É de acordo com esse propósito que Amor de Perdição deve ser lido pelos
leitores mencionados na Introdução.
5.2- Construção do herói romântico
A partir de uma figura real, cuja biografia Camilo Castelo Branco conhecia
(tratava-se de um irmão do seu pai), é construído um herói romântico, em quem
predominam os seguintes traços:
 O herói romântico é uma figura excecional, que não obedece a regras
impostas, sobretudo quando elas contrariam os seus valores e as suas
crenças.
 O herói romântico é rebelde e enérgico: ele persegue ideais em que
acredita, sejam eles de amor, de pátria ou de religião.
 O herói romântico é, muitas vezes, uma personalidade instável, dividida
entre forças opostas, por exemplo, entre as obrigações da sociedade e os
impulsos que o fazem revoltar-se contra essas obrigações.
 O herói romântico é uma figura com tendência para o conflito, o que
muitas vezes o leva à morte.
 O herói romântico tem nobreza de caráter e valoriza o amor e a
verdade.
Em Amor de Perdição, algumas das características do herói romântico estão
concentradas sobretudo em Simão. Mas essas características só fazem plenamente
sentido quando observadas na relação com Teresa e, num segundo plano, com Mariana.
Simão é uma personagem que muda de comportamento, graças à vivência do
amor, um tema fundamental no tempo do romantismo e um daqueles que ajudam a
definir o herói romântico. Assim:
 Nos capítulos I e II, Simão é caracterizado por uma rebeldia às vezes
violenta. A sua figura de jovem «forte de compleição» faz dele um «belo
homem com as feições de sua mãe».
 Logo, então, vemos um Simão que «zomba de genealogias», uma atitude
que o coloca em conflito com a família.
 Quando Simão descobre o amor por Teresa, ocorre uma «maravilhosa
mudança nos[seus] costumes».
 A busca de um amor ideal, mas contrariado pelas famílias de ambos -
que aqui podem ser entendidas como as obrigações da sociedade –,
acentua a conflitualidade do herói romântico até à sua destruição.
Com a ajuda dos comentários do narrador, percebe-se que Teresa é uma
personagem com temperamento forte e dotada de uma maturidade invulgar para os
quinze anos que então tinha. Esses atributos fazem dela uma personagem que escapa ao
modo de ser habitual das jovens da sua idade e da sua condição social. Desobedecendo à
vontade do pai, Teresa põe em causa a dignidade, o brio, a honra, o amor-próprio de
Tadeu de Albuquerque, isto é, o sentimento de orgulho social que a obrigaria a rejeitar
Simão. Assim, ela corresponde inteiramente à coragem, à energia e à rebeldia do herói
romântico.

6- AS PERSONAGENS - CARACTERIZAÇÃO
O amor é o grande tema da obra, correspondendo a um sentimento que atravessa
todo o relato e condiciona a vida das personagens. A perdição antecipa um destino
extremamente negativo para a experiência amorosa das figuras mais destacadas.
6.1- Simão Botelho
De todas as personagens, Simão Botelho é aquela em quem mais nitidamente se
encontram atitudes e modos de ser diretamente relacionados com valores românticos. A
essas atitudes juntam-se os termos em que ele se expressa nas cartas que dirige a Teresa,
bem como a sua situação na família a que pertence. Tudo isto faz de Simão o herói
romântico, evidenciando os seguintes comportamentos e características:
• Individualismo extremo.
• Rebeldia e tendência para contrariar as normas sociais impostas.
• Impulsividade e agressividade.
Muitas destas características – rebeldia, bravura, determinação, impulsividade
– são hereditárias, tendo-as herdado do seu Tio Luís Botelho e do seu avô Fernão
Botelho. Simão tem, pois, no seu interior, as duas grandes forças dos Botelho: o amor e
a violência. E, se numa primeira fase, até aos quinze anos, ou seja, até conhecer Teresa,
predomina a violência (vida tumultuosa em Coimbra, desacatos em Viseu), após a visão
de Teresa, a sua vida será regida pelo amor. No entanto, sendo um amor-paixão, a sua
natureza é violenta e, por isso, esse traço não desaparece do caráter de Simão.
Facilmente se pode comprovar ao atentar-se nas suas reações quando sabe da vontade
de Tadeu de Albuquerque de encerrar a filha num convento, ou quando sabe que
Baltasar acompanhará Teresa. Nesses momentos, como noutros, o «Génio sanguinário»
de Simão desponta e ele deixa-se dominar pelo ódio, rancor, raiva, orgulho e ciúmes.
No seu amor por Teresa, Simão mostra-se fiel, constante, não desistindo
perante os obstáculos: a oposição do seu pai, a oposição do pai de Teresa e a de
Baltasar Coutinho. A pureza deste amor é transmitida nas cartas que envia a Teresa e
nas quais deposita os seus sentimentos mais verdadeiros e intensos. A grandiosidade do
mesmo amor condu-lo à dor, à perdição e, em última instância, à morte.
Simão vive pelos afetos, pela verdade do coração e por ela está disposto a tudo.
Ainda que invoque a honra, o seu conceito de honra é muito diferente do conceito de
honra do seu pai, do pai de Teresa ou mesmo de Baltasar. Para ele, a honra é
indissociável do amor absoluto que sente por Teresa.
Consciente da sua desgraça, Simão aceita-a com dignidade e coragem, quer antes
de cometer o crime, quer depois, recusando-se a fugir e entregando-se à justiça. A sua
bondade e nobreza de caráter já tinham, aliás, ficado bem patentes, quando, na
sequência da tentativa do seu assassinato por parte de dois criados de Baltasar Coutinho,
pede ao ferrador que deixe ir embora um deles, dizendo-lhe «-Não se bate assim num
homem ajoelhado»; «eu não sei castigar miseráveis que me não resistem».
Em relação a Mariana, Simão não é indiferente ao sentimento que esta nutre por
si, acabando por aceitar a sua companhia rumo ao degredo. Já no navio e depois de
saber da morte de Teresa, Simão pede ao comandante que ampare Mariana a quem
considera como irmã.

6.2- Teresa de Albuquerque


Comparada com Simão, Teresa é uma personagem menos dinâmica, mas não
menos afirmativa. Não sofre transformações e está como que estabilizada numa atitude
que complementa a posição e as decisões tomadas por Simão.
Em Teresa observam-se as seguintes características:
• Perfil temperamental vigoroso.
• Individualismo, manifestado pela via da resistência.
• Autenticidade emocional constantemente afirmada.
• Caráter vigoroso e orgulhoso.
Assim e tal como Simão, revolta-se contra certos preconceitos, que são aqueles
que impedem a relação amorosa. Ao pundonor (brio/dignidade/honra/amor próprio) e ao
orgulho do pai responde Teresa com a firmeza e com a serenidade corajosa com que
nega o casamento com Baltasar Coutinho; por outro lado, a sua autenticidade fica mais
evidente no ambiente de intriga dos conventos em que o pai a encerra, primeiro em
Viseu, depois no Porto.
Teresa faz a sua aparição no capítulo II, quando Simão a avista da janela e por ela
se apaixona. Ela é a causa da sua aparente mudança de caráter e comportamento,
despertando nele o amor-paixão que igualmente a consome desde esse primeiro instante.
O diálogo que mantém com o primo Baltasar, no capítulo III, mostra a força do
seu amor e a sua determinação, mas é no capítulo IV que a sua caracterização
psicológica é apresentada de forma explícita pelo narrador, que a elogia,
destacando a sua «força de caráter», o «orgulho fortalecido pelo amor», o
«despego das vulgares apreensões» e a perspicácia. Já a sua caracterização física,
rapidamente esboçada no capítulo II («regularmente bonita») fica mais completa
no capítulo X, quando Mariana vê a fidalga pela primeira vez, descrevendo-a como
«menina muito branca, alva como leite», «além de tudo, linda como nunca vi
outra».
Todas as características se adequam ao perfil de mulher-anjo e de heroína
romântica que ela assume. O mesmo se pode dizer da sua intransigência e
irredutibilidade, manifestadas na recusa em submeter-se à vontade do pai, seja em que
circunstância for. Na verdade, Teresa começa por não aceitar casar com o primo
Baltasar (capítulo IV), para depois não aceitar sair do convento do Porto, quando Simão
é transferido para a mesma cidade.
Tal como Simão, Teresa valoriza a liberdade do coração. É por ela que luta
até ao fim e é por ela que morre. Num mundo governado por homens e pela
vontade masculina, Teresa é a exceção: a filha que não aceita o jugo paternal, a
mulher que ama de forma verdadeira, forte e «varonil», apesar da sua tenra idade.
A sua excecionalidade é, aliás, reconhecida pelo narrador, por mais do que uma vez
(«Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor» – capítulo
II; «mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta, de que rezam os meus
apontamentos, era distintíssima» - capítulo IV).
A força do seu amor opõe-se, porém, a sua fragilidade física que culminará na
doença (tuberculose) e na morte. Com efeito, aquando do confronto entre Simão e
Baltasar, Teresa cai «desfalecida». Já no convento do Porto e sabendo que Simão está
preso, abandona-se à morte; mais tarde, embora pareça recuperar, quando Simão a
anima com a sua vinda para a cadeia da Relação no Porto e a eventual salvação devido à
interferência de seu pai, Teresa recai novamente no desespero e na angústia, acabando
por falecer ao mirante do convento, avistando a nau em que Simão partia para o
degredo.
Ao morrer, Teresa alcança a bem-aventurança, tornando-se a «esposa do
Céu» de Simão. O céu é, pois, o único local onde o amor destas duas almas se pode
realizar.
De salientar ainda que, ao entrar no convento de Viseu, Teresa destacar-se-á entre
as freiras, que são apresentadas aos leitores como mulheres corrompidas pela luxúria,
pela mentira, pela hipocrisia, pela gula (capítulo VII).
NOTA: A expressão mulher-anjo designa um tipo de personagem feminina que,
no tempo do Romantismo, representava os valores da pureza e da perfeição da mulher
capaz de atuar positivamente sobre o homem. No polo oposto, estava a mulher
diabólica.

6.3- Mariana
A filha de João da Cruz aparece num momento decisivo da ação, quando Simão se
refugia em casa do ferrador (capítulo IV). Pouco depois, diz-se que João da Cruz «tinha
uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto belo e triste». A partir
daí começam a revelar-se nela outros atributos, para além da beleza: quando Simão é
ferido por um dos criados de Baltasar Coutinho, é Mariana quem se encarrega de o
tratar, com total dedicação; depois disso, quando Simão é preso, Mariana acompanha-o
e dá-lhe apoio, dispondo-se a ir para o degredo com ele. Por fim, suicida-se, lançando-se
ao mar juntamente com o cadáver de Simão.
Em função destes comportamentos, podem sintetizar-se as características de
Mariana como personagem individual que se aproxima da condição de mulher-anjo:
• Origem social inferior à de Simão.
• Sentido de dedicação associado a força anímica.
• Sentimentos nobres e desinteressados.
• Extrema lealdade e generosidade.
Na verdade, a filha do ferrador João da Cruz é uma mulher do povo, elogiada pela
sua beleza e sensualidade. Exemplo disso são três comentários que o leitor encontra em
momentos distintos da obra: um de um padre capelão que, ao vê-la chegar ao convento
de Viseu, quando ela vai entregar uma carta a Teresa, exclama «Que boa moça»
(capítulo X); outro do carcereiro de Simão, que comenta, quando Mariana o vai visitar
«Esta é bem mais bonita que a fidalga» (capítulo XI); e ainda outro do magistrado que
trata da passagem para o degredo, e que, quando a avista e é informado de que ela
acompanhará Simão, não resiste a esta observação «- E a passagem vale-a bem! »
(capítulo XIX).
Mesmo antes de privar com Simão, Mariana já o tinha visto e tinha ouvido
falar dele (capítulo V). Admirava-o, portanto, há muito tempo, pela sua bravura e
temperamento. Quando Simão, porém, se instala em casa de seu pai, o amor
acabará por despontar no seu coração, levando-a a todos os sacrifícios. Assim,
aceita levar uma carta a Teresa, sendo intermediárias dos dois amantes; muda-se
para o Porto, para estar sempre ao lado de Simão, na prisão; morto o pai e sem
nada que a prenda a Portugal, oferece-se para acompanhar Simão no degredo;
quando Simão morre, suicida-se e acaba abraçada ao seu cadáver.
A partir do momento em que Simão entra no seu coração, a vida de Mariana é
uma vida de abnegação (altruísmo, generosidade, desapego) e de total dedicação ao
amor. Mariana deseja ardentemente ser amada como Teresa e sofre com isso, tal como
sofre por Simão, chegando a enlouquecer por ele, quando ouve a sua condenação à
forca.
O coração de Mariana é também um coração especial, porque lhe revela o
que vai acontecer no futuro. É um coração cheio de presságios, intuindo as
desgraças.
Mariana é o anjo da guarda, o «Anjo da compaixão» para Simão. É a mulher-anjo,
mas é também a mulher real, aquela que sofre e que sente ciúmes. Nela encontramos o
verdadeiro coração da mulher.
Em certa medida, Mariana é uma das personagens mais complexas de Amor de
Perdição. Só a compreenderemos verdadeiramente dando atenção às relações que as
personagens mantêm entre si.

6.4- Tadeu de Albuquerque


O pai de Teresa encarna a figura do pai tirano, violento e controlador. À
semelhança do pai de Simão, também ele coloca a honra e o ódio pela família vizinha
acima de tudo, mesmo da felicidade e da vontade da própria filha (« - Hás de casar!
Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada serás para sempre, Teresa.
Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr o
pé nas alcatifas de meus avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha filha,
não podes herdar apelidos honrosos, que foram a primeira vez insultados pelo pai desse
miserável que tu amas! Maldita sejas!» - capítulo IV).
Nem mesmo perante a perspetiva de morte da filha, Tadeu de Albuquerque recua
na sua posição. Com efeito, ao ser informado por carta, pela prelada de Monchique, de
que Teresa estava condenada a morrer brevemente, a sua resposta foi «Que a não
desejava morta, mas, se Deus a levasse, morreria mais tranquilo, e com a sua honra sem
mancha» - capítulo XIII).
E embora nos seja apresentado, desde o primeiro momento, como um homem
violento, essa violência cresce à medida que a intriga se intensifica; em especial, depois
do assassinato de seu sobrinho. A partir daí, vemo-lo inteiramente dominado pelo ódio e
pelo desejo de vingança, fazendo todos os esforços por condenar Simão à forca.
Tadeu de Albuquerque é, então, um fidalgo colérico, bravio de natureza,
presunçoso, vingativo e prepotente, que procura justificar junto da filha as suas
atitudes: «(...) a tua felicidade é daquelas que precisam de ser impostas pela violência;
a violência de um pai é sempre amor») - capítulo IV).
Em síntese, pode-se afirmar que Tadeu de Albuquerque era um mau pai. Na
perspetiva de Baltasar Coutinho, ele era o responsável pela rebeldia da filha, uma vez
que deixara que ela fosse criada “à discrição” («Se o meu tio a obrigasse desde menina a
uma obediência cega, tê-la-ia agora submissa, e ela não se julgaria autorizada a escolher
marido» - capítulo X). Porém, na perspetiva do desembargador Mourão Mosqueira, ele
foi o causador da morte do sobrinho e de todo o sofrimento que se gerou («Se vossa
senhoria tivesse consentido que sua filha amasse Simão Botelho Castelo Branco, teria
poupado a vida ao homem sem honra que se lhe atravessou com insultos e ofensas
corporais de tal afronta, que desonrado ficaria Simão se as não repelisse como homem
de alma e brios. Se vossa senhoria se não tivesse oposto às honestíssimas e inocentes
afeições de sua filha, a justiça não teria mandado arvorar uma forca nem a vida de seu
sobrinho teria sido imolada aos seus caprichos de mau pai.» - capítulo XIV).

6.5- Baltasar Coutinho


Baltasar Coutinho funciona como contraponto de Simão e, por isso, é considerado
um anti-herói.
Segundo Tadeu de Albuquerque, Baltasar é «um composto de excelências», assim
descritas: «Teu primo é um composto de todas as virtudes, nem a qualidade de ser um
gentil moço lhe falta, como se a riqueza, a ciência e as virtudes não bastassem a formar
um marido excelente.». (capítulo IV).
No entanto, segundo o narrador, Baltasar «tinha apenas uma quebra: a absoluta
carência de brios». E é desta forma que o leitor o verá ao longo da obra, uma vez que o
rival de Simão se revelará um homem orgulhoso, cobarde e sem princípios. Na
verdade, convicto de que o amor de Teresa era uma “segura conquista”, Baltasar fica
ofendido com a sua recusa em casar, procurando, daí em diante e por meios pouco
dignos, alterar o curso das coisas. A alternativa que encontra é a de tentar matar o seu
rival, mas não pelas próprias mãos, antes contratando outros para executarem o crime.
Cumprindo o que dissera (« [...] eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salvá-la
das garras de Simão Botelho» - capítulo III), Baltasar torna-se uma presença constante
na vida de Teresa, influenciando todas as decisões de seu pai. Daí que esteja presente no
momento da partida da menina do convento de Viseu para o do Porto. A troca de
palavras entre Teresa e o primo é bastante azeda e denota o juízo que ela faz dele: «os
covardes escondem-se nas costas dos criados que se deixam matar» (capítulo X). Simão
tem a mesma opinião e lança a Baltasar essa mesma acusação.

6.6- João da Cruz


João da Cruz é um homem do povo, um homem simples, como ele próprio diz.
Daí que a sua linguagem seja marcadamente popular e castiça (usa expressões
populares, ditados, vocabulário simples e calão).
Em termos da sua função na intriga, João da Cruz é um adjuvante, uma vez que as
suas ações e comportamentos têm em vista auxiliar Simão a aproximar-se de Teresa.
A primeira referência a esta personagem secundária surge no final do capítulo IV.
Nessa altura, ainda não sabemos o seu nome, mas é-nos dito que é primo de um arrieiro
e que é ferrador. No capítulo seguinte, o ferrador coloca-se à disposição de Simão para
o acompanhar no que fosse preciso, revelando-lhe o favor que devia a seu pai e a
gratidão que lhe tinha. Daqui em diante, João da Cruz não mais deixará Simão,
mostrando ser um homem corajoso e um bom e fiel amigo.
A primeira característica pode ser deduzida a partir das suas primeiras palavras:
«Olhe que isto não é medo, fidalgo; tome sentido que João da Cruz sabe o que é pôr
dois homens duma feita a olhar o Sete-Estrelo, mas não sabe o que é medo.» (capítulo
X), bem como das ações (recorde-se o episódio da emboscada preparada a Simão –
capítulo V; e a cena do assassinato de Baltasar - capítulo X). Quanto à segunda
característica, torna-se evidente, em alguns momentos da narrativa, como, por exemplo,
quando, depois de Simão ter matado Baltasar, João da Cruz aparece no local do crime e
tenta ajudá-lo a fugir, ou quando Simão está preso e o ferrador prescinde da companhia
de sua filha para que ela possa socorrer o condenado.
Todas estas atitudes revelam a sua natureza – a de um homem corajoso e frio, de
instintos sanguinários, mas nobre de alma -, e permitem-nos identificá-lo com a
figura romântica do “bom bandido”, um homem que comete crimes (morte do
recoveiro de Carção; morte do criado de Baltasar Coutinho), mas que, nem por
isso, deixa de ser solidário e humano (relativamente a Simão).

7- O AMOR-PAIXÃO
Não é só o título de Amor de Perdição que põe no centro da narrativa a temática
amorosa. Logo na abertura da obra, uma epígrafe, retirada da Epanáfora Amorosa de D.
Francisco Manuel de Melo, diz o seguinte: «Quem viu jamais vida amorosa que não a
visse afogada nas lágrimas do desastre ou do arrependimento?». Como quem diz: a
história que vai ser contada mostra que o amor sempre leva ao sofrimento.
Desde que as personagens começam a manifestar os seus modos de ser e os seus
sentimentos, ficamos a saber que em três delas o amor é o centro das suas vidas:
• Em Simão e em Teresa de Albuquerque, a partir do capítulo II.
• Em Mariana, a partir do capítulo V.
Só que, nestas três personagens, o amor tem feições e manifestações exteriores
que não se confundem umas com as outras. Ou melhor: é também pela forma como
vivem o amor que as personagens se individualizam.

7.1- Simão Botelho


Em Simão Botelho, o amor e a paixão dificilmente se separam. Por isso, diz-se
que é sobretudo nele que o amor-paixão tem razão de ser. É bom lembrar que se trata de
uma personagem muito impulsiva e, às vezes, agressiva. E assim, se num primeiro
momento o amor surge como um sentimento que provoca a tal «maravilhosa mudança
nos [seus] costumes», depois disso, em vários episódios, ele invoca a paixão para
explicar o seu comportamento impetuoso. Numa das cartas a Teresa, diz Simão: «É
indispensável que te refaças de ânimo para te não assustarem os arrojos da minha
paixão».
Pode-se, então, dizer que, também em Simão, a paixão corresponde a um estado
emocional muito intenso, que leva a idealizar a pessoa amada e, muito
romanticamente, a querer chegar a uma plenitude ou totalidade que não atinge. É
esse desejo que explica gestos e desespero às vezes violentos: a tentativa de rapto da
mulher amada, a morte do rival, o conflito aberto com a sociedade e a desistência de
viver.
72- Teresa de Albuquerque
Em Teresa, o amor-paixão tem uma outra feição, diretamente ligada ao modo de
ser da personagem. Quando descobre o amor por Simão, Teresa tem apenas quinze
anos; contudo, não existe nela o pueril amor que o pai imaginava, mas sim um
sentimento excecional, como é próprio de uma personagem romântica. Refere o
narrador que «a fixidez, a constância daquele amor, funda em causa independente do
coração: é porque Teresa não vai à sociedade» (capítulo III). Como quem diz: o seu
amor tem uma autenticidade que contrasta com as convenções sociais. Também por
isso, ela recusa a paixão de Baltasar Coutinho: neste, «a paixão inflamou-se tão
depressa, quanto o coração de Teresa se congelou de temor e repugnância» (capítulo
III).
Pode-se dizer que o amor-paixão de Teresa por Simão vai dando lugar a um
sentimento mais sereno e mais sofredor. E o amor-sofrimento que se instala nela.
«Ama-me assim desgraçada» (capítulo VII), diz Teresa a Simão, numa carta; é também
quando escreve ao amante numa fase em que já sabia que o amor acabaria em perdição
que Teresa trata Simão por «meu querido esposo» e por «esposo do céu». Trata-se de
um amor estabilizado em união espiritual, que acredita no prolongamento dessa união
para além da morte.

7.3- Mariana
A situação de Mariana é diferente da de Teresa, desde logo tendo em atenção a
sua condição social. Torna-se evidente, em diversos momentos, que existe nela amor
por Simão; ao mesmo tempo, está presente nas suas atitudes a consciência de que
aquela condição social a “condena” a servir, mas não a ser amada. Por isso, em
Mariana, o amor é unidirecional, ou seja, não é correspondido enquanto amor, mas sim
enquanto afeto fraternal. Simão chega a tratar Mariana por «minha irmã».
Deste modo, o amor de Mariana é feito por dedicação, sem outra expectativa que
não seja a de «dar alívio às dores?!" (capítulo IX) de Simão, como refere o narrador,
que exclama «que nome darei ao teu heroísmo!» (capítulo IX). O reconhecimento do
heroísmo daquele amor impossível leva Simão a dizer a João da Cruz: «Pudesse eu ser o
marido de sua filha, meu nobre amigo» (capítulo XV).
Certamente que existe paixão em Mariana, mas escondida até ao último momento,
como se essa paixão não pudesse fazer parte do amor por Simão. O ato final de
Mariana, lançando-se ao mar para morrer, abraçada ao cadáver de Simão,
representa a coragem apaixonada de quem não quer sobreviver ao homem amado.

8- A DIMENSÃO TRÁGICA DA OBRA


Encontram-se, no desenvolvimento da diegese, elementos que estruturavam a ação
das tragédias clássicas antigas. Com efeito, a novela Amor de Perdição apresenta uma
dimensão trágica, que se traduz na morte das personagens principais, que lutam até ao
fim pelo único motivo pelo qual, para elas, vale a pena estar vivo. Findas as esperanças
na vida na terra, sucumbem ou procuram na morte o seu único consolo.
Atente-se, assim, nos seguintes elementos estruturadores das tragédias clássicas e
tente-se conferir a sua significação própria no âmbito da mensagem desta obra.

8.1- Anankê ou Fatum (destino)


Simão é, desde o seu nascimento (é batizado em perigo de vida) marcado por um
Fado/Destino inexorável. O mesmo acontece em relação a Teresa e a Mariana. De facto,
qualquer uma destas personagens cumpre o seu destino trágico ao entregar-se a um
amor proibido.
O que está em causa, em relação a Simão e a Teresa, é o orgulho terrível das suas
famílias, que os condenam à morte, por alimentarem preconceitos e estereótipos
comportamentais, que caracterizam um espaço social onde não há lugar para a
afirmação individual. Camilo critica aqui o "homem social”, mesquinho e
descontrolado pela sua própria razão.
Em relação a Mariana, é como se, à partida, e dada a realidade social estabelecida,
ela estivesse irremediavelmente condenada a amar sem ser correspondida. Simão acaba
por considerar Mariana e João da Cruz a sua família, mas a sua incapacidade de dar
amor à filha do ferrador (porque ama Teresa) aparece, ainda que sub-repticiamente,
como um estigma que marca as diferentes classes sociais; é esse o sentido da reflexão
de João da Cruz, ao afirmar que Mariana vale mais do que qualquer fidalga.

8.2- Hybris (desafio)


Quer Teresa, quer Simão desafiam a autoridade dos pais, negando-se a
renunciar ao amor que sentem um pelo outro. Mariana desafia a mentalidade da época,
assente numa estrutura de classes.

8.3- Pathos (sofrimento)


Simão e Teresa sofrem o desespero motivado pelo facto de adquirirem uma
consciência progressiva da incapacidade de realizarem o seu amor. Mariana sofre
por intuir a desgraça que afetará Simão e pelo facto de a compartilhar.

8.4 – Peripeteia (peripécia)


A peripécia da obra consiste, fundamentalmente, no facto de Simão e Teresa
perderem a sua liberdade - Teresa é encarcerada num convento e Simão é preso.

8.5- Climax (auge)


O sofrimento das personagens aumenta gradualmente, até ao momento do
desenlace (conclusão).

8.6 - Catastrophé (catástrofe)


A catástrofe consiste na morte das personagens que constituem o triângulo
significativo da obra: Simão, Teresa e Mariana.
.
9-0 NARRADOR
Segundo o Dicionário de Narratologia, o narrador dever ser entendido
fundamentalmente como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção,
cabe a tarefa de enunciar o discurso. É, pois, uma entidade distinta do autor. No
entanto, no caso de Amor de Perdição, existe uma ambiguidade, uma contaminação
entre o narrador, o autor e o próprio protagonista.
O narrador confunde-se com a figura do autor, por exemplo, na Introdução e
nas últimas linhas da Conclusão. Na restante parte da obra, que corresponde à intriga
amorosa, o narrador é uma entidade fictícia que relata a história de amores
contrariados sem nela intervir como personagem – narrador ausente ou
heterodiegético. Nesse sentido, o narrador coloca-se numa posição temporal de
ulterioridade em relação à história, ou seja, ele tem conhecimento da história que narra,
depois desta ter ocorrido, podendo por essa mesma razão dispor os factos pela ordem
que desejar (usando analepses, prolepses e resumos).
Em termos discursivos, verifica-se também que, sendo o narrador
maioritariamente heterodiegético, o relato está construído na terceira pessoa do singular.
Quanto à focalização narrativa, isto é, quanto ao ponto de vista adotado, ao
conhecimento que o narrador detém da história relatada, podem-se reconhecer as
seguintes modalidades:
 Focalização omnisciente: o narrador detém um conhecimento ilimitado
do que vai narrar.
 Focalização externa: o narrador centra-se, de forma objetiva, nos
acontecimentos, nas personagens; daí que esta focalização seja constituída
pela estrita representação das características superficiais e materialmente
observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas ações.
 Focalização interna: quando aquilo que é relatado é sob a perspetiva de
uma determinada personagem, logo, limitado ao que ela conhece. São, por
exemplo, os seus pensamentos, sentimentos que são apresentados. Este
tipo de focalização predomina sobretudo nas cartas.
O narrador de Amor de Perdição conhece a história de Simão e de Teresa na sua
totalidade, através, segundo ele, de documentos que consultou ou que lhe chegaram às
mãos, ou ainda através do contacto com pessoas que conheceram os protagonistas; é,
por isso, um narrador omnisciente. No entanto, em alguns momentos, o narrador faz
questão de limitar o seu conhecimento e de afirmar que não possui informações sobre
alguns factos. É o que acontece, por exemplo, no capítulo I, em mais do que um
momento: «As artes com que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D.
Maria I e de D. Pedro III não as sei eu.»; «Não tenho assunto de tradição com que possa
deter-me nas miudezas da vida do provedor em Lamego.». Trata-se de uma estratégia
para imprimir velocidade ao ritmo da narração, cingindo-a, pois, aos pontos fulcrais.
O narrador de Amor de Perdição tem ainda uma outra particularidade, em parte
decorrente da sua omnisciência, em parte do espírito romântico da obra: é um narrador
interventivo. Efetivamente, são vários os momentos em que o narrador tece
comentários sobre o comportamento ou o destino das personagens, tomando,
claramente, o partido de umas relativamente a outras. É notória a sua simpatia pelo
grupo dos que se amam: o protagonista, Teresa e Mariana e ainda por João da Cruz.
Outras vezes, as intervenções do narrador centram-se em aspetos da própria
construção narrativa e dos seus elementos. E o que acontece, por exemplo, na
Introdução (reflexão sobre a história que vai ser narrada, apelando à compaixão do
leitor), no início do capítulo IV (reflexão sobre o coração da mulher e a mulher do
romance) ou o início do capítulo XIX (reflexão sobre a verdade num romance e a
verdade do coração humano). Neste último, o narrador apresenta mesmo a sua opção
estética de retratar a verdade do coração humano nesta obra: «Os reparos são de quem
tem o juízo no seu lugar, mas, pois que eu perdi o meu a estudar a verdade, já agora a
desforra que tenho é pintá-la como ela é, feia e repugnante». Assim se compreende
como a preocupação do narrador pela verdade acaba por ser mais uma preocupação ao
nível dos sentimentos, ao nível do coração, foco de toda a obra.

10- LINGUAGEM E ESTILO DA OBRA


A linguagem de Camilo Castelo Branco em Amor de Perdição caracteriza-se pelos
seguintes aspetos:
 a narrativa denota a influência da técnica jornalística, que se manifesta,
essencialmente,
 na concisão dos diálogos;
 na ausência de divagações filosóficas.
Estas características relacionam-se, com efeito, com a tipologia da obra, com a sua
contextualização literária e com a ideologia da mesma. Assim, encontramos:
 a linguagem simples (ainda que, por vezes, de sabor ultrarromântico);
 a quase ausência de subordinação na construção frásica.
 por vezes, o paralelismo frásico (construção paralelística ou paralelismo de
construção);
 a predominância de um léxico, para a época, de um nível de língua corrente;
 a utilização de níveis de língua familiar e popular, a par dos níveis corrente,
cuidado e literário;
 a quase ausência de adjetivação;
 a utilização dos pretéritos perfeito e imperfeito (que ajudam ao relato rápido e
conciso);
 a relevância conferida ao verbo;
 a recorrência a metáforas como forma de intensificação da expressão dos
sentimentos;
 a ironia como forma de crítica social ou de personagens que representam esses
valores,

São ainda de realçar as características realistas que apresenta a linguagem de João


da Cruz (ou mesmo a das freiras do convento de Viseu, no capitulo VII). A naturalidade
do discurso do ferrador, a sua notável verosimilhança, conseguida quer pelo descuido da
construção frásica, quer pelo tipo de léxico utilizado, assim como pela predominância
do nível de língua popular, são características que o situam ao lado de muitos autores
realistas.

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