Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
POESIA E ENSAIO
Recife
2020
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons -
Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.
ISBN nº 978-65-00-05088-2
Contatos:
APRESENTAÇÃO ...................................................................... 5
POESIA
I. CDU (Várzea) ............................................................. 7
II. HAICAIS URBANOS .................................................. 28
III. PEQUENA GAVETA DE CARTAS E NOTAS ........... 39
ENSAIO
DRUMMOND EM MIRÓ DA MURIBECA .................... 48
APRESENTAÇÃO
S
e tivesse nascido e crescido em Pernambuco, talvez não
existisse precisão deste livro. Mas sou agregado recente.
Necessito suprir a falta de ter chegado aqui atrasado. A falta
de não ter sido exposto a essa cultura e a essa paisagem
desde menino. Este livro prova que tenho me esforçado
para dar conta do tempo perdido. Reúno nele algumas
poesias e um ensaio de crítica literária. As poesias se
ramificam nessas três direções: CDU (Várzea), Haicais
urbanos e Pequena gaveta de cartas e notas. O ensaio não
passa de uma simples homenagem ao poeta Miró da
Muribeca. Um pequeno mergulho exploratório na relação
do poeta pernambucano com algumas de suas referências
artísticas. O título do ensaio é Drummond em Miró da
Muribeca.
Adilson Júnior
Várzea, junho de 2020
Cotidiano | 5
POESIA
PARTE I
CDU (Várzea)
Evocação da Várzea
Cotidiano | 7
Poesia
Cotidiano | 8
Natureza
Os cachorros, gabirus
vagando no esgoto nu,
roendo, do lixo, ossos.
Todos sujos.
Os gatos, carrapatos
ruminando a ração
impregnados em cima
dos carros abandonados.
Só as galinhas, faceiras,
seguem as mesmas,
ciscando na rua da feira.
Cotidiano | 9
Entre destroços do presente
Várzea adentro
vejo Recife
naquele cavalo morto
de sorriso goro
na grama nova duma Pague Menos.
A rua detrás dá para o rio
onde Bandeira viu rolar, enorme,
o boi morto.
Agora são duas almas que ficam,
atônitas para jamais.
O corpo, esse vai com
o boi morto e o cavalo morto
que ninguém sabe o que foram.
Cotidiano | 10
Ciclo da morte e vida
Cotidiano | 12
Construção
Sol a pino.
Digestão na calçada.
Debaixo do pé de jambo,
no faro do vira-lata.
Cotidiano | 13
Poeta
Cotidiano | 14
Alerta
As maritacas se aninham
perto daquele instante,
em que um céu laranja ardia
na Várzea anoitecendo,
com a cor do incêndio
de todas suas fogueiras de junho.
Madrugada adentro,
chuva com trovoada.
Jorra vento.
O claro da lâmpada tremendo.
O coração na mão, pequeno.
Pelo ninho no coqueiro agitado,
pelas vidas por um triz na barreira.
Sem aviso foi cumprir suas promessas.
Ah, Apac traiçoeira!
Cotidiano | 15
Lembrança
Por um instante
Tomezinho perde a vista
na linha do horizonte.
No que Tomezinho pensa,
pra esquecer a brincadeira?
Na onda o castelo de areia.
O picolé de morango
escorrendo nos dedinhos.
A mãe reclama:
- Menino, a água está levando
as tuas havaianas.
O que a pequena alma,
num dia tão azul
guarda lá dentro?
Só sua avó conhece o mérito:
– Deixa lá filha, essa criança está
com saudade do exército.
Cotidiano | 16
Ocorrências de carnaval
A injustiça rói
madeira de lei
que no lombo de cupim dói.
Cotidiano | 17
Frevo de rua
Cotidiano | 18
Brasilit em fim de expediente
1
No bar da fossa,
afogou a mágoa
no fundo do poço.
E foi-se
pela rua de lama.
2
Com o alcatrão puro,
sem mel nem limão,
no fiteiro da praça,
fitou o copo descartável.
Pensava nos poços de piche
fossilizando dinossauros.
Não via mais outra solução
pra levar o vazio à extinção.
E por apenas dois reais.
3
Depois de pintar parede
o dia inteiro com sede,
parou num pega bêbo
pra um latão gelado
um copo de caldo.
De volta pra vida,
entrou no beco
todo salpicado.
Cotidiano | 19
Ao redor da CDU
Cotidiano | 20
Três crônicas dos últimos dias
1
No templo dos constrangidos
pelo amor divino,
foi pego em flagrante no ato.
E um testemunho fiel garante:
– Jesus estava no barco.
2
Está tão raro dormir profundo,
na loucura desse mundo.
Até nos classificados deu anúncio:
TROCA-SE
UMA NOITE DE SONHOS SERENOS
POR TRÊS PAGUE MENOS.
3
Uma tortura
ter que torrar seu amor
guardado num baú de prata,
pra fazer aquele café de soldado.
Acordou de sobressalto.
Pulou da cama atrasado.
Um embrulho no peito.
Lembrou que não tinha
nada em casa.
Tomou um pingado amargo na esquina.
Naquele dia
a vida ia ser dura.
Cotidiano | 21
Start up
Vivia resmungando
que aquilo não cabia mais na vida.
Toda hora um subir e descer escada.
Vinte litros d‖água nas costas.
Chacoalhando umas notas magras
e mil moedas na pochete.
Tudo arriado.
Uma gentileza insossa ou nem isso,
ao entrar descalço nas casas dos outros.
Odiado por todos os cachorros.
As mesmas caras aguadas
duas vezes (ou mais) por semana.
O sol do Recife sem perdoar,
abafando o suor da roupa ensopada.
Vez por outra sem um banho decente.
Depois do dia, conta da Compesa atrasada.
Assim num tem amor que aguente!
Cotidiano | 22
a mulher acordada
pra amor nenhum.
A vida coube toda
na mochila térmica quadrada
que carrega sempre nos ombros
arqueados.
Cotidiano | 23
Cidade
Cotidiano | 24
A Recife
Só o sol ilumina
as ruas do bairro do Recife.
A Celpe até tenta,
mas não consegue.
Cotidiano | 25
Banzo
Nesses dias,
a cidade quer ficar só,
em casa com suas dores.
Cotidiano | 26
Chuva nova
Cotidiano | 27
PARTE II
HAICAIS URBANOS
Pra lá da Luz
Cotidiano | 28
Pra cá da Luz
E o segurança do bar,
pra despachar,
usa o resto do arroz.
Cotidiano | 29
Luz
Cotidiano | 30
SE FOR BEBER, NÃO DIRIJA.
Adverte o PCC
(Perigo de morrer).
FIM DE MÃO DUPLA.
Assinado CV.
GDE deixa mensagem:
PROIBIDA ULTRAPASSAGEM.
FDN afiança:
COLOQUE O CINTO, CUIDE DA SEGURANÇA.
VERIFIQUE OS FARÓIS. USE A SINALEIRA.
O trânsito do Ceará
não está pra brincadeira.
Cotidiano | 31
Cotidiano1
1
Tradução livre da primeira estrofe da música A Day in The Life (The
Beatles).
Cotidiano | 32
Dia de alegria
Cotidiano | 33
Confissões do Quarto de Despejo2
1
Estar sempre em falta, o que era?
Não ter sapato pros pezinhos de Vera.
E Vera não gostar de andar descalça.
2
Na cabeça o peso do saco,
mais o de Vera Eunice nos braços.
Revolto-me. Depois me domino.
Essa pequena inocente de tudo,
sem culpa de estar nesse mundo.
3
Fiz o café cedo.
Caí da cama.
Fui carregar água.
Ia alta a Estrela d‖alva.
Como é horrível pisar na lama.
4
Um menino aqui na favela
morreu, tinha dois meses.
Ia passar fome, se vivesse.
2
Poema-citação do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960),
de Carolina Maria de Jesus.
Cotidiano | 34
Dia de festa3
3
Poema-citação do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960),
de Carolina Maria de Jesus.
Cotidiano | 35
São Paulo Carolina4
4
Poema-citação de Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de
Carolina Maria de Jesus. Em celebração aos 60 anos do livro.
Cotidiano | 36
troca de dramas pungentes
por nomes, endereços.
Cotidiano | 38
PARTE III
PEQUENA GAVETA DE CARTAS E NOTAS
Leminski e Itamar
Cotidiano | 39
Coaxo de um sapo,
de tarde às quatro,
encharca o charco.
Cotidiano | 40
Almoço e jantar
1
Hoje é sem tempero rebuscado.
Volta simples do tempo passado.
Feijão só no sal arroz só no alho.
2
Boa pressão de panela
amolece até o coração
duma macaxeira velha.
Cotidiano | 41
Fermentação
Cotidiano | 42
Rede
No sereno do alpendre,
o preto do cabelo balança pesado.
Acalma a varanda branca
que se lança leve.
A cabeça é movimento
de rede e movimento de mundo.
No movimento, se lança leve.
Cotidiano | 43
Sol
Cotidiano | 44
Luck
Se falasse,
com certeza diria,
o velho yorkshire:
– Vida de vira-lata
deve ser massa
pra cachorro.
Cotidiano | 45
Notas para a sabedoria popular
1
Vade retro
todo veto.
Deusulivre
de pieguice.
2
Maior a pia,
maior a louça
pro outro dia.
Cotidiano | 46
ENSAIO
DRUMMOND EM MIRÓ DA MURIBECA
1.
5
Trata-se do vídeo intitulado Muribeca.com - Bastidores livro Quase Crônico Poeta
Miró, publicado em 2011 no site do YouTube.
Cotidiano | 48
intercalando ilações: “Drummond disse [...] ―como pode o homem
sentir-se a si mesmo quando o mundo some?‖6 Como é que eu me sinto
quando o mundo sumiu dos meus pés, agora que o meu amor foi
embora ou que minha mãe morreu ou que... [...] E ele diz ―Deus,
porque me deixaste sozinho se sabia que eu não era Deus?‖7 Se eu não
sou Deus como vou suportar tanta angústia, tanta tempestade na
minha vida?”
Antes da declaração em Confesso que também vivi meio século,
já havia referências a Drummond no livro Tu tás onde? (2007). Nesse
conjunto poético nutrido por notícias, situações e personagens do
cotidiano, Miró apresenta uma sequência de dois poemas em que
novamente Drummond comparece com grande significado humano:
um bastante centrado em conflitos existenciais de Miró e outro que
privilegia a resposta a pequenos dilemas ético-valorativos diários –
este último com o título dedicado ao amigo poeta então falecido.
Pra Espinhara
6
Composição, do livro Novos Poemas (1948).
7
Poema de sete faces, do livro Alguma Poesia (1930).
Cotidiano | 49
Como se não bastasse essa evidência tão íntima e explícita, a
presença de Drummond na construção poética de Miró é reiterada
frequentemente em entrevistas ou depoimentos fornecidos para
documentários e programas televisionados. Basta cotejar produções
como Miró: Preto, Pobre, Poeta e Periférico (2008, dir. Wilson Freire,
2008) ou Onde estará a Norma (2007, dir. Bárbara Cristina, Jacqueline
Granja e Patrícia Gomes). Também o atestam a pesquisa
Corpoeticidade: Poeta Miró e sua literatura performática (ROSÁRIO,
2007) e o livro-reportagem Poesia, Mesa de Bar e goles decadentes
(SOARES, 2013). Ao descrever o ambiente cultural que iniciara Miró na
poesia, o livro-reportagem revela seu envolvimento com as famílias
dos amigos oriundos de outros estratos sociais. O envolvimento
oportuniza trabalhos em serviços domésticos e o acolhimento num
círculo afetivo e intelectual novo. Em especial, na casa de Dona
Godiva, mãe de Maurício Silva – ambiente onde ocorre o acesso a
poesia escrita, justo pela via de Drummond.
Lá dormia, tinha a oportunidade de comer bem [...] e, entre uma
faxina e outra, escutava discos que os irmãos Maurício Silva [...] e Alex
gostavam. Conheceu, assim, Milton Nascimento, Gal Costa, Djavan,
Caetano Veloso (esse, achava-o incompreensível) e uma de suas
grandes paixões: Gilberto Gil. [...] Passou a ter quatro casas e receber
muito carinho a ponto de não o deixarem voltar para casa à noite.
Eram famílias bem liberais que acabaram gerando muitos artistas.
Miró acabou convivendo com músicos, poetas e pintores desde cedo.
Cansou de ver Lenine e Paulo Rafael irem ensaiar com Zé Rocha,
irmão de Maurício Silva, as músicas da banda Flor de Cactus. [...] A
primeira vez que leu uma poesia foi quando Geraldinho lhe emprestou
um livro de Drummond. Bem verdade que não entendeu muito , mas
alguma coisa naquela maneira de se expressar o cativou . Mas não foi
de Drummond, e sim de Maurício Silva, a primeira influência poética:
“Farda verde verde verde / Praça verde verde verde / E o coração bate
continência / a toda mulher que passa.” Os olhos dele brilhavam.
Aquilo de trazer uma cena do dia-a-dia para o papel era maravilhoso.
Queria um dia escrever como o amigo: “Maurício Silva foi minha
primeira parabólica” (SOARES apud ROSÁRIO, 2007, p. 52-53).
Cotidiano | 50
empréstimo, um livro do poeta, cativando-o por “alguma coisa
naquela maneira de se expressar”. Mais que isso, em atitudes de
egoísmo humano, ele reconhece uma espécie de falta para com
Drummond. E pede perdão. Quem sabe alentando expiar os pecados de
poesia que se quer também engajada com o sentimento social. Por
último, em caso desses acidentes cotidianos, dos quais podem ser
vítimas a alma do poeta e da poesia, um livro de Drummond é algo para
os primeiros socorros de Miró. É a própria respiração boca a boca da
poesia salva-vidas na poesia desfalecida. É isso que se conclui do
flagrante, da confissão e das testemunhas. Mas tudo isso é pouco.
Desconfiamos que exista mais de Drummond para todos os lados,
ecoando.
Por hora, teríamos pelos menos quatro ressonâncias explícitas
para agregar, localizadas em alguns livros de Miró. De início, uma que
aflora a partir de um depoimento do próprio artista: “Drummond, o
poeta que eu amo, uma vez disse assim ―... O primeiro amor passou. / O
segundo amor passou. / O terceiro amor passou. / Mas o coração
continua. ‖ Aí, eu escrevi no meu primeiro livro, Quem descobriu o
Azul Anil? eu tinha 25 anos, iluminado por Drummond, aí eu fiz
esse...” E cita o tal poema, publicado sem título, e inspirado na
segunda estrofe de Consolo da Praia, do seminal livro A Rosa do Povo
(1943-1945). A citação inteira, em paralelo, dos dois poemas, será
proveitosa aqui. Antes, porém, um pequeno adendo. Esse depoimento
que transcrevemos foi retirado de uma matéria jornalística8 sobre o
processo de recuperação de Miró após uma crise provocada pelo
consumo excessivo de álcool; nela, consta ainda essa referência a
Drummond: “Décimo quinto dia após a internação, João Flávio [Miró]
pôde sair da clínica pela primeira vez e voltou à antiga residência –
uma pensão próxima ao largo de Santa Cruz, ironicamente o ―câncer
alcoólico do Recife‖ – para pegar documentos e uns livros de
Drummond, alguns exemplares de ―Adeus‖ (que fez depois da primeira
morte).” Dito isso, aí estão as duas poesias:
8
Matéria com o título Miró (re)nasce como poeta, publicada em 28 de novembro de 2016,
produzida por Tatiana Notaro para o jornal Folha de Pernambuco.
Cotidiano | 51
Consolo na Praia
o amor quando invade
Vamos, não chores... arde bem dentro
A infância está perdida. risos e lágrimas se confundem
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu. o amor quando invade
deixa cores alegres
O primeiro amor passou. e tristes paisagens
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou. o amor quando invade
Mas o coração continua. deixa a pele vermelha
e a pálida saudade
Perdeste o melhor amigo. (MIRÓ, 2016, p. 128).
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Cotidiano | 52
novamente em paralelo, do famoso poema de Drummond, encontrado
no livro homônimo de 1942, e daquele de Miró, produzido mais de
meio século depois.
José
Cotidiano | 53
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
(DRUMMOND, 1977, p. 130).
Cotidiano | 54
Descobriu o Azul Anil? (1984-1985): “certas coisas diante de mim /
parecem água / outras facas / e eu nem sei mais distinguir / no meu
caminho / o que seja pedra e espinho” (2016, p. 221).
Ressalte-se: nenhum outro poeta, no sentido estrito da
palavra, alcança esse grau de refração tão direta, afirmada por tantas
fontes, percorrendo tanto tempo da vida criativa de Miró. É certo seu
mais remoto fascínio pelas letras das músicas de Roberto Carlos,
Reginaldo Rossi, Fernando Mendes, Djavan, Gilberto Gil e tantos
outros – este último, considerado “talvez o maior poeta / da nossa
musilíngua” no já citado Confesso que também vivi meio século. É
certo seu reconhecimento a Maurício Silva, que o despertara com a
decisiva inspiração poética. É certa a influência na criação advinda do
intercâmbio com poetas do Movimento dos Escritores Independentes
(MEI) e o contato com a dita poesia jovem alternativa dos anos 1970. É
certa a inspiração provocada pela recitação do poeta baiano Manuca
Almeida para a construção da identidade expressiva de Miró. É certo
que os romances, contos e crônicas de Ignácio de Loyola Brandão
produziram grande efeito a partir dos anos 1990 – ele próprio
reconhece a impressão que causaram as leituras, quando estava em São
Paulo, de Não verás país nenhum (1981) e Cabeças de segunda-feira
(1983). É certo, ainda, que pirou quando fez tantas outras descobertas
em São Paulo: “descobri Mario Varga Llosa / Gabriel García Márquez,
Glauber Rocha / Caetano Veloso, Ednardo, Geraldo Azevedo...” 9
(2016, p. 60-61).
Mais ou menos nessa altura Miró já havia lançado os livros
Quem Descobriu o Azul Anil? (1984-1985) e São Paulo é fogo (1987). E,
como declara sempre, já amava Drummond. Isso, todavia, não
relativiza o impacto, por exemplo, da obra literária de Ignácio de
Loyola Brandão na sua poesia. No mínimo, ela o teria estimulado a
acentuar a crueza da expressividade, e as tonalidades mais viscerais,
nos seus versos de crítica social. Em seu livro dizCrição (2012), Miró
chega mesmo a prestar homenagem ao escritor no poema-pílula
intitulado Ressaca: “tem gente doido / pra dar um tiro na cara da
segunda-feira” (2016, p. 28).
9
Versos do já citado Confesso que também vivi meio século.
Cotidiano | 55
Em suma, isso tudo é certo. Mas é certo também a insistente,
confessada e transversal presença da poesia de Drummond; presença
que, se acrescente, tudo indica provir de uma fruição fragmentária,
não sistemática e baseada em interpretações auto-referenciadas da
obra. Ademais, existem outras coisas menos certas, localizadas ainda
no plano das sugestões: um escritor amigo de Miró opinou certa feita
que ele seria a versão atualizada do poeta pernambucano Solano
Trindade;10 outro observador percebeu nele a influência de Manuel
Bandeira, o qual a poesia de Miró deixaria entrever nas cenas de solidão
e nas fotografias da miséria e da violência;11 um comentador
reconheceu – no mesmo espírito – o legado de Manuel Bandeira no
despojamento da linguagem e no olhar voltado para o cotidiano
premido pela opressão econômica.12
Mencionamos essas alusões porque pretendemos também
explorar as duas últimas pistas que insinuam os vestígios de Manuel
Bandeira, ao lado da presença de Drummond, na poesia de Miró.
Vestígios, aliás, que nada surpreendem – seja pela proximidade (e
admiração mútua) que Drummond e Bandeira cultivaram em vida,
resultando em influências recíprocas na feitura poética de ambos; seja
pela origem pernambucana deste último e sua recorrente evocação do
Recife. Por sinal, Bandeira até hoje continua sentado na Rua da Aurora,
contemplando a imagem do Capibaribe com o arco da mão esquerda
premendo e recostando levemente a testa, como quem tivesse a
conjurar mais um poema para a cidade. Impossível um observador
sensível da vida urbana do Recife – como Miró demonstra ser – passar
alheio a esse quadro.
Se, pretendendo ser justos, ousássemos especular invertendo
os termos da questão? Se interrogássemos à poesia de Drummond
10
Essa alusão foi feita por Wilson Freire na p. 12 do Suplemento Cultural do Diário Oficial
do Estado de Pernambuco, Nº 125, de julho de 2016, publica com o título Miró: um retrato
de corpo inteiro de um dos poetas mais inventivos do Brasil.
Referimo-nos ao comentário do jornalista Igor Gomes na matéria Miró e a importância
11
de dar um penúltimo olhar sobre todas as coisas, do mesmo Suplemento citado na nota
anterior.
12
Essa observação foi feita pelo escritor e pesquisador Pedro Américo, no programa
Opinião Pernambuco da TV Universitária, realizado em 20 de março de 2015, com o tema
Poetas Marginal do Recife.
Cotidiano | 56
sobre a presença de Miró em seu seio? É saudável imaginar. No
mínimo, ele seria a encarnação daquele anjo torto – do tipo dos que
vivem na sombra – que atentou e aliciou o acanhado itabirano na sua
chegada ao mundo. Com contorções e exclamação arrebatada dizendo:
“Vai Carlos! ser gauche na vida”. O tal anjo torto aparece no poema
que abre o primeiro livro publicado por Drummond, o Alguma Poesia
(1930). Um poema que, sozinho, já esboça tanto de nuances da
personalidade poética do autor, a vocação dramática da poesia, o
périplo do poeta e do seu personagem Gauche13: a sensibilidade do
olhar; a valorização de elementos prosaicos com grande potencial
lírico, esboçados por uma veia quase crônica; o esboço inicial dos
conflitos do poeta com o mundo (respondida, nesse momento, com a
fórmula eu maior que o mundo, depois alterada); a expressão coloquial
e arredia à métrica e ao convencionalismo nas rimas, com gestos
inusitados e fórmulas populares, além de um gosto pela repetição (mas
que não significa aversão às formas clássicas e ao verso rimado, como
também se vê na evolução de Drummond); o humor que o poeta
oferece destilando certa ironia e, ao mesmo tempo, consolando nossos
nervos sensíveis, depois do arrebatamento que provoca. Como se fosse
um clown de Shakespeare – que convocasse o poeta para uma vida
desajustada ou deslocada no mundo – assim aparece o dito anjo torto
no Poema de Sete Faces:
13
Sobre isso, consultar a importante pesquisa Drummond, o gauche no tempo, de
Affonso Romano de Sant‖Anna (2008).
Cotidiano | 57
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
Com a qual o caracteriza Mario da Andrade no pequeno artigo Fortuna Crítica, incluído
14
[...]
Cotidiano | 59
feitura e expressão poética de Miró? Ou, simplesmente: e Drummond
em Miró da Muribeca?
2.
Nos LP‖s Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade (1978, Philips), Vinicius &
15
17
Basta verificar os casos escassos em que seus poemas foram veiculados na linguagem
musical. O maior sucesso nesse campo se deveu a versão de Canção amiga, musicada por
Milton Nascimento, no álbum Clube da Esquina II (1972). Uma iniciativa maior
envergadura – porém de pouca audiência – foi o CD duplo As várias caras de Drummond,
lançado por Belchior em 2004, em parceria com a revista Caras, com 31 poemas
musicados. Ademais, a edição da poesia e prosa completa da Editora Aguilar registra, em
apêndice, outras composições musicais sobre poemas de Drummond – além de uma
discografia em torno de sua obra - no geral ainda mais inacessíveis e desconhecidas
atualmente.
18
Em documentário Onde estará a Norma (2007, Dirigido por Bárbara Cristina,
Jacqueline Granja e Patrícia Gomes).
Cotidiano | 61
encontraria, com toda a poesia que transborda para o texto envolvendo
esse leitor perspicaz!
As tentativas para classificar e caracterizar tal fazer poético
resultaram em diferentes rótulos. Além de Cida Pedrosa, com a ideia-
síntese de que Miró é sua própria poesia, outros observadores
sinalizaram o traço distintivo, ora do que seria uma “vocalidade” ou
“vocalização”, ora de que seria uma “oralidade”.19 Enquanto algum
rótulo já se havia esboçado com a alcunha de bricolagens grafico-
sonoro-gestuais.20 Um estudo mais formal, e de maior fôlego, foi
oferecido por André Telles do Rosário, em seu livro Corpoeticidade:
Poeta Miró e sua literatura performática (2007). O pesquisador recorre
a ideia de “literatura performática” para apanhar a natureza formal
dessa criação, apontando sua “corporalidade”. Isto é, a materialização
pela mediação do corpo, com a finalidade de modular as manifestações
do poema. Ela seria a resultante de um híbrido de expressões
tipográficas e corporais. Nas primeiras se incluindo, além da base
textual, desenhos, colagens, gravuras, arranjadas nos impressos
publicados com diversas roupagens. E as segundas remeteriam à
recitação, que abarca as dimensões orais e gestuais. Ocorreria, por esse
meio, a execução do poema como leitura corporal do texto poético.
Onde se agrega a linguagem corporal para compor o significado do
poema. E onde a interação com o público, o espaço e seus objetos leva
aos resultados sempre inusitados – mesmo irrepetíveis – da recitação.
Aí, o poema ganha vida pelo corpo do poeta – ou pelo corpo dos livros
através da recorrência a imagens, colagens e outros meios gráficos. No
sentido inverso de Drummond, a poesia de Miró olha para seu criador a
exclamar: Parla! O poema requer o corpo do poeta como a extensão
orgânica sem a qual não alcançaria manifestar plenamente todo o
significado que possui.
Não é que se dissolva o lastro textual da poesia. Entretanto, na
medida em que Miró encontra esse caminho próprio de criação e
expressão, progressivamente aquele lastro textual passa a ser
19
Veja-se o debate no programa Opinião Pernambuco da TV Universitária, realizado em
20 de março de 2015, com o tema Poetas Marginais do Recife.
20
Jomard Muniz de Brito na apresentação Ilusão de Ética (1995), de Miró.
Cotidiano | 62
condicionado pela recitação, o poema passa a ser moldado
acusticamente, a segmentação dos versos forjada pelas pausas da
apresentação. Mas não se trata de uma característica que absorve o
conjunto da produção. Ela aparece latente no primeiro livro, Quem
Descobriu o Azul Anil? (1984-1985), onde ainda o autor começava a
desbravar o caminho para sua expressão poética. Pode-se dizer
também que essa característica oscilaria, a julgar por comentários ao
livro aDeus (2015), segundo os quais, nele, o texto estaria falando mais
por si mesmo.21 Em todo caso, trata-se da característica que mais se
destacou como traço original de Miró.
3.
Com tudo isso, tem sentido insistir mais nessa procura dos ecos
de Drummond em Miró? Para além das pistas antes levantadas, o que
mais dessa presença poder-se-ia captar numa obra poética que
relativiza tanto a dimensão textual através da expressão oral e gestual,
que é tão moldada pela criação espontânea e instantânea, e pela base
do autodidatismo? O ponto de partida pode ser justo os traços de
coloquialidade e oralidade na linguagem poética e na forma poema! É
bem onde Drummond pode estar à espreita – com Manuel Bandeira de
consorte e sob a regência amiga de Mário de Andrade – navegando pela
corrente do modernismo, com a valorização e uso da linguagem
coloquial.
Não foi Manuel Bandeira que, em Evocação do Recife – do livro
Libertinagem (1930) – ao lembrar a infância na capital de Pernambuco,
expôs de modo tão direto e afrontoso uma das principais pelejas
daquele movimento renovador? Dizia ele: “[...] A vida não me chegava
pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada
do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o
português do Brasil / Ao passo que nós / O que fazemos / É macaquear
21
Trata-se da resenha do livro aDeus feita por Thiago Corrêa, com o título A
metamorfose de Miró, publicada em 22 de outubro de 2015 no site Vacatussa.
Cotidiano | 63
/ A sintaxe lusíada [...]” (1967, p. 255). Não foi, por seu turno,
Drummond quem se envolveu numas das maiores profanações dos
cânones poéticos tradicionais do século XX no Brasil ao optar pelo
coloquial “tinha” ao invés do normativo “havia” no seu conhecido
poema No meio do caminho do livro Alguma Poesia (1930)? Reparem
vocês no desacato despudorado a “sintaxe lusíada”: “No meio do
caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho /
Tinha uma pedra / No meio do caminho tinha uma pedra / Nunca me
esquecerei desse acontecimento / Na vida de minhas retinas tão
fatigadas / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / Tinha uma
pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho / No meio do caminho
tinha uma pedra” (1977, p. 61). Em meados dos anos 1940, o próprio
Manuel Bandeira oferece uma síntese explicativa do modernismo que,
a partir das primeiras décadas do século XX no Brasil, enformava essas
manifestações no campo da poesia “oficial”:
Os modernistas introduziram em nossa poesia o verso livre,
procuraram exprimir-se numa linguagem despojada da eloqüência
parnasiana e do vago simbolista, menos adstrita ao vocabulário e à
sintaxe clássica portuguesa. Ousaram alargar o campo poético,
estendendo-o aos aspectos mais prosaicos da vida, como já o tinha
feito em seu tempo do romantismo Álvares de Azevedo. Movimento
a princípio mais destrutivo e bem caracterizado pelas novidades de
forma, assumiu mais tarde cor acentuadamente nacional, buscando
interpretar artisticamente o presente e o passado brasileiro, sem
esquecer o elemento negro entrado em nossa formação. Foram seus
pioneiros e principais porta-vozes Mário de Andrade e Oswald de
Andrade, em São Paulo, Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, no Rio
de Janeiro (BANDEIRA, 1967, p. 705).
Cotidiano | 65
botam a gente comovido como o diabo.” Parece que uma confidência
repentina e espontânea saltou da boca do poeta para a estrofe do
poema – lembrando um procedimento criativo de Miró destacado por
nós. Em seu livro dizCrição (2012), uma poesia sem título se utiliza
desse mesmo recurso de Drummond, ao encerrar com a confissão
espontânea e coloquial, inclusive reiterando a escandalosa heresia de
substituir o normativo “há” pelo vulgar “tem”:
Cotidiano | 66
raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão. Assim, a expressão
―ficar safado da vida‖, em que o adjetivo ―safado‖ só pode ser superado
por outro que não se deve escrever, continua para mim preservando,
na sua condição de lugar-comum, a mesma virtude poética inicial”
(1967, p. 105). Segundo a origem, condição e ambiente social e cultural,
além do tempo histórico, a partir dos quais Miró produz sua poesia,
esse confessado recato de Manuel Bandeira acaba por cegar a lâmina da
poesia. O poeta precisa descortinar o adjetivo que “não se deve
escrever”, como instrumento cortante da expressão e como forma
orgânica da sua personalidade social. O que Miró faz com capacidade
de modulação e efeito lírico.
Talvez aí outra possível identificação com Drummond, que
viveu duas décadas a mais que Bandeira, e pôde conhecer um ambiente
cultural menos hostil a temas e termos inconfessáveis no terreno
poético, permitindo-se publicar discretamente alguns de seus poemas
eróticos ainda em vida. Mas sem ultrapassar certos limites. Deixou para
edição póstuma a matéria e a linguagem desnudada do livro O amor
natural (1992). Nas divagações em seu livro de prosa, Passeios na Ilha
(1952), Drummond mesmo reconhecia as fronteiras de classe que
separam – no universo da produção e expressão literária – a veia
criadora dos “[...] exemplares da boêmia ou da miséria fecundas, que
nos legaram obras imperecíveis”, em face da extração a qual ele
próprio pertencia, junto com Manuel Bandeira; ou seja, do “escritor-
funcionário” ou “funcionário-escritor” que “[...] constrói, sob a
proteção da Ordem Burocrática, o seu edifício de nuvens, como um
louco manso e subvencionado” (1977, p. 842-843).
Acreditamos que a coloquialidade representa uma das nuances
daquela “maneira de se expressar” que tenha cativado Miró no seu
primeiro contato com Drummond. Uma “maneira de se expressar” que
serviu para efetivar um dos fulcros da obra de Drummond: o gosto pelo
cotidiano – o qual se alarga dando eficácia, por exemplo, a sua poesia
de cunho social. Pela figuração desse plano, as várias inquietudes da
poesia ganharam vida: inquietude frente ao próprio ser “torto” do
poeta, em face de sua relação com o “mundo caduco”, até a inquietude
em relação à própria poesia. Mesmo quando a criação revela um estado
mais sereno do poeta, o gosto pelo cotidiano representa um canal para
Cotidiano | 67
retratar o mundo. De diversas formas isso ocorre: seja na fixação da
vida do dia a dia nos seus quadros mais pitorescos e anedóticos, seja,
em momentos de maior força política, na transfiguração do destino
individual na malha das circunstâncias, como discernimento da
condição humana em certos dramas corriqueiros da sociedade
moderna (CANDIDO, 1995). Em suma, aí se corporifica a excelente face
de crônica que a obra de Drummond possui, não apenas em poesia,
mas igualmente em prosa. Exercitou de tal modo essa verve de crônica
no campo da poesia que, quando publicou, em dois livros, a seleção da
produção poética que mais puramente se enquadrava nesse campo,
achou necessário identificá-la com o neologismo versiprosa. O
primeiro dos dois livros saiu com o título Versiprosa: crônica da vida
cotidiana e de algumas imagens (1967). Com a seguinte justificativa
para a invenção da palavra: “Versiprosa, palavra não dicionarizada,
como tantas outras, acudiu-me para qualificar a matéria deste livro.
[...] Crônicas que transferem para o verso comentários e divagações da
prosa. Não me animo a chamá-los de poesia. Prosa, a rigor, deixaram
de ser. Então, versiprosa” (1977, p. 433). O enquadramento crônico da
figuração lança-se no raio da experiência pessoal, se projeta nas
reminiscências da memória familiar dos ambientes provincianos e
rurais, se espraia nas facetas da vida urbana.
Insistimos nessa característica de Drummond porque nos
parece que ela possa ter servido como um importante estímulo (dentre
outros) para a construção da identidade da criação poética de Miró.
Sempre que precisa definir o que perfila sua expressão, Miró aponta
para a crônica. Diz retratar a crônica do campo da poesia, e
comumente oscila na auto-identificação das obras entre a poesia e a
crônica. Já se declarou mesmo uma espécie de repentista sem rima22,
sugerindo, não apenas esse enraizamento no cotidiano, mas a
espontaneidade e a oralidade que permeia sua criação, o seu ancestral
do trovadorismo. Também nomeou alguns de seus livros com essa
identificação – pense-se no explícito Quase crônico (2010) ou nos
sugestivos dizCrição (2012) e Flagrante deleito (1998).
22
Programa Tesão Literário, TV Pimenta ( YouTube), apresentação de Sidney Nicéas, de
23 de março de 2018.
Cotidiano | 68
Já observamos que o modernismo no Brasil impeliu esse
alargamento do campo poético, estendendo-o aos aspectos mais
prosaicos da vida. Manuel Bandeira e Drummond foram dos que mais
representaram e tornaram perene esse traço, que translada a tal ponto
para a poesia que ela se traveste de página jornalística no livro, ao
mesmo tempo em que habita as páginas da imprenssa roubando o
papel das notícias – tudo isso sem ser mera reportagem: evocam
flagrantes de episódios diários da vida urbana, incluídos os quadros da
vida privada, dos hábitos e costumes, da miséria e opressão social; da
cena política da cidade ou do país; dos acontecimentos histórico-
mundiais. Em seu poema Carta a Stalingrado – Rosa do Povo (1945) –
Drummond chega mesmo a anunciar, por ocasião das notícias de
vitória naquela frente de guerra: “A poesia fugiu dos livros, agora está
nos jornais / Os telegramas de Moscou repetem Homero. / Mas
Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo.” (1977, p.
195). Sobre o verso que abre essa sentença, diz Antonio Candido: “Este
verso manifesta a faculdade de extrair do acontecimento ainda quente
uma vibração profunda que o liberta do transitório, inscrevendo-o no
campo da expressão” (1995, p. 82). Já antes – no livro Sentimento do
mundo (1940) – o apelo para esse mergulho mais direto e intenso na
realidade se faz sentir em Os ombros suportam o mundo: “Chegou um
tempo em que a vida é uma ordem / A vida apenas, sem mistificação”
(1977, p. 111); ou na poesia seguinte, Mãos dadas: “Não serei o poeta de
um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou
preso à vida e olho meus companheiros. [...] O tempo é a minha
matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”
(1977, p. 111). Isso se mostra mesmo uma inclinação perene na poesia
de Drummond. Além desses exemplos da produção intermediária,
pense-se em poemas do livro Alguma Poesia (1930) como Poema do
Jornal (p. 64) e Nota Social (p. 64) ou – mais de quarenta anos depois,
no livro As impurezas do branco (1973) – num poema como Diamundo
– 24h de informação da vida do jornaledor (DRUMMOND, 2015, p.
433), praticamente uma colagem de recortes de matérias jornalísticas.
A pulsão de figurar as nuances mais corriqueiras da vida, de
transfigurá-las para a forma poética, Manuel Bandeira apontava
explicitamente, quase como uma declaração, por exemplo, em seu
Cotidiano | 69
livro Libertinagem (1930) – o mais equalizado, na sua bibliografia, com
a técnica e a estática do modernismo – com o Poema tirado de uma
notícia de jornal: “João Gostoso era carregador de feira livre e morava
no morro da Babilônia num barracão sem número. / Uma noite ele
chegou no bar Vinte de Novembro / Bebeu / Cantou / Dançou / Depois
se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.” (1967, p. 257).
Noutro poema – do mesmo Libertinagem – Manuel Bandeira apresenta
uma variação dessa abordagem no seu retrato, com nuance mais lúdica
e crítica, da Pensão Familiar: “Jardim da pensãozinha burguesa. Gatos
espapaçados ao sol. / A tiririca sitia os canteiros chatos. / O sol acaba
de crestar os gosmilhos que murcharam. / Os girassóis / amarelo! /
resistem. / E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais. / Um
gatinho faz pipi. / Com gestos de garçom de restaurant-Palace /
Encobre cuidadosamente a mijadinha. / Sai vibrando com elegância a
patinha direita: / – É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.”
(1967, p. 245).
4.
Cotidiano | 70
O Bicho Fim de Feira
23
Nesse ponto, uma diferença importante pode ser localizada no fato de que o núcleo
social que buscava Drummond alcançar a “compreensão” era a classe tipicamente
operária. Enquanto Miró se liga com vários estratos espoliados mais localizados na esfera
de um universo social de despojados e pauperizados do exército industrial de reserva.
Cotidiano | 72
exemplos – integralmente expostos abaixo em paralelo –
respectivamente, dos livros Onde estará Norma? (2006) e Poemas para
sentir tesão ou não (2002). Eles materializam as duas formas de
expressão poética da injustiça e opressão discutidas até aqui: a
abordagem crônica – que se imbrica com a narrativa jornalística – e a
cumplicidade com a miséria social – quando o poeta demonstra uma
intimidade que faz os personagens ganharem um colorido mais
singular.
Linha de risco
Cotidiano | 74
Seu Cláudio vende vale-transporte
no início da Dantas Barreto
Cotidiano | 75
Libertinagem, e quase toda a Estrela da Manhã, e um de prosa – as
Crônicas da Província do Brasil” (1967, p. 75). A nova morada,
igualmente modesta, mas no coração da Lapa, permitiu que da janela
do quarto pudesse “[...] contemplar a paisagem, não como fazia do
morro do Curvelo, sobranceiramente, mas como que de dentro dela: as
copas das árvores do Passeio Público, os pátios do Convento do Carmo,
a baía, a capelinha da Gloria do Outeiro...” (1967, p. 104). Bandeira
avançava um degrau a mais para dentro da paisagem social que
contemplava, admitindo: “No entanto, quando chegava à janela, o que
mais me retinha os olhos, e a meditação, não era nada disso: era o
becozinho sujo embaixo, onde vivia tanta gente pobre – lavadeiras e
costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de cafés” (1967, p.
104). Esse sentimento de solidariedade com a miséria, a partir de uma
contemplação meditativa tão próxima, eternizou-se na concisão lírica
do Poema do Beco, escrito em 1933, e publicado no livro Estrela da
Manhã (1936): “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do
horizonte! // – O que vejo é o beco.” (1967, p. 272).
Agora imaginemos onde Miró estaria nessa cena se amargasse a
mesma situação social de sua infância e juventude no Recife dos anos
1960-1970, mas transportado para a Lapa carioca daquelas primeiras
décadas do século. Uma ideia já bastante clara é dada pelas primeiras
estrofes do seu próprio poema autobiográfico Confesso que também
vivi meio século: “sua vida não valia nada / tudo que passava pela sua
cabeça / era estourar os miolos de alguém / morava num beco que se
estivesse bêbado / nem a metade passaria // quando criança, foi jogado
num caminhão / se mudou a pulso / pois a classe média precisava
construir / seus arranha céus” (2016, p. 60). Com que potência, com
que expressão, teria se configurado a poesia de Manuel Bandeira, acaso
descesse mais alguns degraus para dentro da paisagem social que
retinha seus olhos, se sua solidariedade com a miséria passasse a
germinar desde o beco?24 Talvez o poeta divisasse seu próprio destino,
acaso tivesse brotado nessa origem social despossuída, quando, em
24
Isso não significa que a lírica de Manuel Bandeira não tenha legado, para o campo da
poesia social, figurações de grande realismo, tais como Meninos Carvoeiros (p. 228), do
livro O ritmo dissoluto (1924). Uma abordagem da qual muito se aproxima Miró, por
exemplo, em Rua da Palma (p. 205), do livro Quem descobriu o azul anil? (1984-1985).
Cotidiano | 76
Evocação do Recife, fez aquela observação à remota lembrança da vida
infantil: “A gente brincava no meio da rua / Os meninos gritavam: //
Coelho sai! / Não sai! // À distância as vozes macias das meninas
politonavam: // Roseira dá-me uma rosa / Craveiro dá-me um botão /
(Dessas rosas muita rosa / Terá morrido em botão...) (BANDEIRA, 1967,
p. 253-254).
O caso é que Miró possui essa origem. A infância vivida no
conjunto de casinhas da Quadra José Revoredo, no núcleo de Santo
Amaro, berço de explorados e oprimidos do Recife longínquo. O
ambiente e a composição social do lugar – é provável que não tenha
variado muito daqueles delineados por Josué de Castro, pouco mais de
duas décadas antes, na descrição do Recife em seu texto Cidade:
―Afogados‖, ―Pina‖, ―Santo Amaro‖, zonas dos mangues, dos
―mocambos‖, dos operários, dos sem-profissão, dos inadaptados, dos
que desceram do sertão na fome e não puderam vencer na cidade, dos
rebelados e dos conformados – dos vencidos. Zona dos ―mocambos‖.
Cidade aquática, com casas de barro batido a sopapo, telhados de
capim, de palha e de folhas de flandres. Cumbucas negras boiando nas
águas. Mocambos – verdadeira senzala remanescente fracionada em
torno às Casas Grandes da Veneza Americana. Poesia primitiva de
negros e mestiços fazendo xangô e cantando samba. Fisionomia
africana (CASTRO, 1968, p. 17).
Cotidiano | 77
Quadra José Revoredo
estou velho
lembro dos amigos
com estilingue no pescoço
sacos de seixos
pedras de matar passarinhos
Cotidiano | 78
sensível e só nos escombros de uma espécie de Sarajevo. Transborda
para a poesia: a angústia, o deserto vazio, a incapacidade de se deslocar
da penumbra, a sombra da morte, a solidão quase irremediável, o
pessimismo, o silêncio de sepulcro dos prédios caixão. Fazendo uma
poesia impulsionada por um drama pessoal, Miró concretiza a
contradição da especulação imobiliária, vínculo inarredável das
empreiteiras com o Estado desde o nascimento do capitalismo no país.
O regime social liga dois dramas. A “montanha pulverizada” na
pequena Itabira de Drummond, corroída com a exploração do minério
de ferro pela empresa Vale do Rio Doce, primeiro para a Segunda
Guerra, depois para o comércio mundial de aço; tragédia de uma
pilhagem secular que nenhuma barragem por ela criada pode conter –
testemunham a poesia de Drummond, Mariana e Brumadinho.25
Décadas depois do despertar do “sono rancoroso dos minérios” em
Itabira, Drummond ainda denunciava a exploração que se alastrava.
Em 1965, olhava para a cidade de Itabirito, onde era a vez do seu pico
ser dinamitado: “O Pico do Itabirito / será moído e exportado / mas
ficará no infinito / seu fantasma desolado.” (1977, p. 502). A Muribeca
de Miró ruindo e indo embora, voltando ao barro (os prédios e as
pessoas), depois do capital da construção civil sugar toda a riqueza
social que o Estado poderia oferecer – ciclo tão perdulário e insistente,
como testemunha o estado atual de muitas das obras dos mega-
eventos esportivos no Brasil. O ponto crítico da trajetória da vida
urbana nos prédios e edifícios que expelem e absorvem a substância
humana confinada em apartamentos; crescimento vertical da cidade
cuja arrancada Drummond abordou – a partir da experiência na capital
federal do Rio de Janeiro – em poemas como Edifício Esplendor (1977,
p. 123), de José (1942), Edifício São Borja (1977, p. 160), de A rosa do
povo (1945) ou A torre sem degraus (p. 430), de A falta que ama (1968).
Duas poesias sem título do livro aDeus (2015) retratam essa
nova espécie de despojamento material e humano na vida de Miró em
meio aos escombros da Muribeca. A primeira parece evocar a falta da
25
Sobre isso, ver a poesia A montanha pulverizada, do livro de Drummond, Boitempo II
(Menino Antigo) de 1973. A relação entre a obra de Drummond e a história da mineração
do Brasil foi largamente explorada por José Miguel Wisnik, em seu livro de 2019,
Maquinação do mundo: Drummond e a mineração.
Cotidiano | 79
mãe, o retorno para Muribeca sozinho, depois de uma estada breve na
cidade natal de São Bento do Uma, onde ela faleceu. A segunda é a
própria Muribeca personificada erodindo; embora nua, patrulhada pela
repressão policial; a decisão do poeta de mudar-se:
26
Miró em matéria no programa Nosso Povo, realização TV Gamera (YouTube), repórter
Luma Araújo, 19 mar. 2013.
Cotidiano | 81
impasse. [...] Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918
chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com
ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima. // Uma flor
nasceu na rua! [...]” (DRUMMOND, 1977, p. 140).
5.
Cotidiano | 82
sardinha: “quantos sacos de cimento / há em ti São Paulo? // quiçá
meu coração não fique concreto / alguma coisa acontece? // a elite vai
em massa a eletra / substantivo concreto // quem lê os campos? /
substantivo abstrato // náufragos dessa onda / atenção para o toque de
8 segundos” (2016, p. 195).
Na criação de estímulos poéticos, certos motivos de
Drummond parecem como que resgatados e traduzidos, em Miró, para
um ponto mais avançado do desenvolvimento da vida urbana.
Vicissitudes que atravessam o tempo, os espaços e o aprofundamento
das relações mercantis. Cenas cujo perfil se distingue pelas iniquidades
amplificadas que resultam desse avanço, a degradação humana e a
opressão decorrente. Basta notar como isso ocorre em Cabaré Mineiro,
do livro Alguma Poesia (1930), e no poema sem título do livro de Miró
Poemas para sentir tesão ou não (2002):
Cabaré mineiro
Cotidiano | 83
poesia de Drummond é o lirismo mais antifuturista que se possa
imaginar. A modernização nunca é por si mesma matéria de apologia;
ela não é celebrada, é sofrida. O progresso começa com a brutalização
dos costumes” (2016, p. 35). Se Drummond se deparou com essas
alienações nascentes durante a germinação de um imperialismo total27
no país, com sua força ainda em germinação, com a racionalização
ainda se impondo sobre os poros da vida social e estatal, com as
mercadorias modelares da expansão capitalista ainda despontado para
a generalização; por sua vez, Miró enfrenta essa avalanche,
experimentada como puro desperdício e perdularidade, agregada aos
novos aparelhos e tecnologias informacionais, à inaudita capitalização
da cultura e à barbárie social fruto de intricadas crises. Sem embargo, a
crítica da modernização aparece em Miró no mesmo espírito de
Drummond, como nos poemas citados abaixo em paralelo, onde nota-
se, não apenas esse cerne da crítica, mas a forma lacônica do poema-
pílula, a utilização (significativa) do estrangeirismo e as interdições e
perdas provenientes da modernização. Miró parece mesmo invocar
aquele verso do poema O sobrevivente, de Alguma Poesia (1930), em
que Drummond divisa, também abordando a modernização: “Amor se
faz pelo sem-fio” (1977, p. 70).
27
Sobre o tema, conferir Florestan Fernandes (1975; 1976).
28
Disponível em: https://www.facebook.com/mirodamuribeca/photos/a.19508206729
8785/1075190232621293. Acesso em: 28 mai. 2020.
Cotidiano | 84
de Miró, no itinerário em busca da própria identidade artística. É, por
exemplo, sob o prisma desse importante cerne da vida na metrópole
que talvez possamos divisar uma das diferenças vitais que separam
Drummond de um grande poeta como João Cabral de Melo Neto. Por
sua figuração mais orgânica da geografia natural e humana do
Nordeste, sua força e suas contradições, seria de supor um grande
poder de influência em Miró. Porém, ele próprio se reconhece mais
refratário à poesia de João Cabral, cujo perfil percebe, legitimamente,
marcado por uma feitura mediada por maior minúcia formal, em
contraste com sua própria inclinação para a criação mais espontânea e
instantânea.29
Se avançássemos, desbravando outros contrastes que
bloquearam os caminhos que levariam as afinidades de Miró para com
João Cabral? Por exemplo: este último, em seus próprios depoimentos,
revelava a sua busca criativa por uma poesia com textura áspera, por
uma poesia que fosse difícil de ser lida em voz alta, por uma poesia que
não embalasse o leitor, em que cada palavra fosse um obstáculo ao
leitor – malgrado o seu auto de natal pernambucano Morte e Vida
Severina e, digamos, outros “poemas em voz alta”. Intenção que
parece oposta à de Miró, na sua expressão projetada para a récita.
Diferente da textura áspera, ela exige muito mais uma fluidez, que não
é incompatível, aliás, com as estocadas bruscas, agudas ou
interpelativas. Ademais, João Cabral se esmerava para afastar-se de
exaltações do confessionalismo, de saturação subjetiva das mensagens,
desejando mesmo exilar a musicalidade e o sentimentalismo. Algo tão
destoante de uma obra como a de Drummond, na qual Antonio
Candido chega a identificar uma “constante invasão de elementos
subjetivos”, apontando mesmo a presença de uma “subjetividade
tirânica”!30 Inclinação essa que se nota largamente na poesia de Miró,
onde, mesmo na crônica social, o objeto, por vezes, é o próprio poeta,
onde são constantes os poemas memorialísticos, onde tanta coisa se
confessa. Acrescente-se outros traços de João Cabral que Drummond
capturou num texto de 1948 – publicado através de pseudônimo –
29
Ver Poesia urgente (2009, Documentário Miró da Muribeca – Poeta Pernambucano,
Dirigido por Daniel A. Rubio).
30
Sobre esse debate, ver Candido (1995).
Cotidiano | 85
comentando o livro Psicologia da Composição (1946-1947), lançado
um ano antes. Nesse livro de João Cabral, Drummond visualizava a
característica principal do hermetismo, uma poesia de onde se
encontrava excluído o elemento sensual, na qual estava proscrita a
emotividade romântica e ressaltada a frieza e incomunicabilidade.31
Uma lista de nuances que dificilmente poderiam servir de estímulos
construtivos para a direção da criação e expressão poética aspirada e
desenvolvida por Miró, voltada para a comunicação direta, a recepção
e o acesso mais imediatos, a comunicação aberta. É provável que Miró
encarasse tais tendências do dito poeta-engenheiro da construção
laboriosa, pensando na necessidade pessoal de uma poesia com
comunicação mais acessível e direta, e cismasse – como o faz em seu
poema Reflexões sobre a construção civil: “cimento na cabeça / dos
outros / é isopor” (2016, p. 166).
Se regressarmos àquele cerne da vida na metrópole, talvez
consigamos entender a razão pela qual sejam praticamente ausentes,
em Miró, referências a elementos tão enraizados na composição social
e nas origens de uma capital como Recife: aqueles dados pela
sociabilidade rural, seus referenciais simbólicos, brinquedos
populares, suas tradições culturais e religiosas; ou reminiscências de
signos das religiões de matriz africana e indígena, também suas
manifestações culturais. A depuração dessas referências na poesia
parece corresponder – ao menos em parte – a depuração que o próprio
metabolismo urbano tende a operar com a expropriação e exploração
econômica, a opressão social e cultural. A crônica social da poesia,
debruçada sobre quadros mais drásticos de miséria ou desigualdades,
já decantados pela ação da opressão capitalista, acaba por ser um
documento dessa profunda liquidação e alienação. Apenas excepcional
e genericamente, se pode divisar a figura do retirante da seca sendo
evocada de modo mais direto na crítica social do poeta, como em ... e
ainda nos chamam de vagabundos, do livro Quebra a direita... (1999).
Mas aí essa figura social também aparece já ressequida na relação com
a grande cidade: “quatro séculos de seca / quatro séculos de orações /
31
Trata-se de um texto resgatado por Affonso Romano Sant‖Anna, e comentado pelo
mesmo no artigo ao Estadão, Uma relação delicada, de 29 de outubro de 2011.
Cotidiano | 86
pra São José / [...] quatro séculos de solidão / e os pés rachados de
tanto / tentar a vida na cidade de São Paulo [...] (2016, p. 149).
O mesmo ocorre quando cotejamos a participação, na
figuração, do meio ambiente natural, ou aquilo que na paisagem dada
pela poesia corresponderia aos interesses da geografia física. É
impossível que qualquer elemento incluído nesse plano apareça isento
da ação ou significação dada pela mediação do metabolismo urbano. Os
elementos da natureza humanizados pela mediação do capital. Quase
em sua totalidade, parecem já ter sido engolidos pelas contradições
intrínsecas da metrópole. O próprio binômio província-cidade foi
transfigurado na dialética periferia-centro; os recursos e elementos
naturais, absorvidos pela lógica industrial, seus efeitos artificializantes
e destrutivos – como ocorre na já mencionada poesia Meu lado
Greenpeace (2016, p. 83). A geografia física assim apropriada pela
acumulação pode se apresentar, quando muito, como mais um dos
palcos onde os dramas do antagonismo social, e seus corolários, se
apresentam para a crônica poética. Um dos poemas mais
representativos disso é Outras ostras, do livro Onde estará Norma?
(2006). Talvez o único momento onde o rio, que passa a cidade inteira,
é mencionado nominalmente na obra de Miró: “lá vai Recife / em mais
um fim de tarde / as águas do Capibaribe cor de sangue / nos ombros
dos negros / que moram nos Coelhos / unhas na lama e a classe média /
comendo ostras / de frente ao Acaiaca” (2016, p. 102). Ou no seu
poema sem título no livro Ilusão de Ética (1995) – também talvez o
único verso onde conste a referência nominal, na forma de um
trocadilho, a famosa praia da capital de Pernambuco: “[...] quantos
negros moram em frente ao mar / de Boa / Viagem? [...]”. Ou, ainda,
no seu poema sem título, e cheio de trocadilhos, do livro São Paulo é
fogo (1987), que trafega pelas regiões e assimetrias da cidade até chegar
ao seu rio mais conhecido, na estrofe: “[...] miséria / miséria / do norte
ao sumaré / do carandiru ao brás / ninguém agüenta mais / nem eu /
nem tu / nem tietê” (2016, p. 197).
A fauna dessa geografia natural também é escassa. Mesmo
assim oferece sua contribuição lírica. Salvo engano, seus exemplares
aparecem com três funções poéticas ou figurativas. Alguns são
oferecidos como signos da degradação humana (espiritual e material)
Cotidiano | 87
na situação da miséria, em especial onde a precariedade habitacional e
a poluição forjam uma situação coletiva crítica. Urubu, jumento,
cavalo, moscas e mosquitos, vira-latas ajudam a pintar esses quadros,
em alguns casos assumindo um papel lírico e emotivo. Eventualmente
aparecem no duplo papel de lenitivo cômico (ou lírico) e de baliza para
nuançar, por contraste, o grau de determinadas formas de
desumanização. Como na poesia sem título do livro Quase crônico
(2010) onde, numa espécie de desabafo cru, o poeta resgata, e como
que inverte, uma injúria vulgar de longínqua raiz moura. E o vira-lata
praticamente assume a mesma função que o gatinho no já citado
poema Pensão Familiar de Manuel Bandeira: “os cachorros, mesmo
sem falar, conversam / tem pessoas que falando nem sequer latem /
essa raça nem ração merece / quem dera / tivessem a elegância de um
vira lata” (2016, p. 67). Ou como na poesia Em Fortaleza também, do
livro Onde estará Norma (2006), na qual a imagem de um jumento
inquieto evoca tanto uma pobreza das mais rústicas no núcleo rico de
uma grande capital, uma reminiscência de gesto humano e um suspiro
de enternecimento na asfixia do concreto:
Em Fortaleza também
no coração finesse da
Aldeota, um jumento espera inquieto a
volta do seu dono que foi tomar uma
sopinha com pão, com o dinheiro das
migalhas que catou
Cotidiano | 88
Aí notamos mesmo aquela abordagem sobre as criaturas que
Drummond enaltecia em Manuel Bandeira, numa estrofe do poema A.
B. C. Manuelino: “Na sua lira moderna / a dor de cada criatura / colhe
um eco de ternura” (1977, p. 509). Mas outros exemplares da fauna
dessa geografia natural, por suposto quase extintos no âmago da
metrópole, surgem ajudando a compor o cotidiano de Miró (em
poemas dos anos 1980) ou a recordação nostálgica de um passado com
reminiscências da ruralidade sufocada pela urbanização. Como as
práticas alimentares ainda não mediadas pela industrialização e
mecanização: desde o ato de abater a galinha em casa, hoje apenas uma
lembrança remota do poeta, até a alusão a rincões onde talvez
personagens – evadidos da grande capital – ainda pudessem ordenhar
caprinos. Basta cotejar os poemas O dia a dia (2016, p. 209) e Passagem
para Gualrapes (2016, p. 150). O primeiro, do livro inicial Quem
descobriu o azul anil? (1985), o segundo, do livro Quebra a direita...
(1999). Nesses casos, tais referências produzem o efeito de realçar as
resultantes da industrialização nos hábitos mais corriqueiros, antes
infiltrados no cotidiano social em fase de modernização capitalista
selvagem.
Enfim, de modo mais episódico, encontram-se imagens de
animais que representariam sinais de uma natureza ainda poupada pela
cidade – borboletas, beija-flores. Mas hora aparecem feridas pela
artificialidade – como na citada poesia Meu lado Greenpeace (p. 83),
onde o beija-flor confuso ensaia se alimentar das plantas artificiais;
hora sugerem mais elementos figurativos ou metáforas para um estado
de espírito – como no poema-pílula dizCrição: “quando se está feliz /
até as borboletas de levam até a esquina” (2016, p. 42).
Restam as referências a elementos ou paisagens naturais. Nesse
espectro, se encontram as imagens aquáticas quase que circunscritas
ao par mar-praia e chuva. Pelos quadros com imagens aquáticas
compostas através do mar-praia e chuva, o poeta parece vocalizar tudo
aquilo vetado ou interditado pelas opressões e alienações condensadas
na cidade sob domínio do capital. Sonho, efetivação da vida (ou a vida
plena de sentido), possibilidade de consciência de si no mundo e no
tempo. O que, em parte, nos remete aos significados que assumem as
mesmas imagens aquáticas em Drummond. Affonso Romano de
Cotidiano | 89
Sant‖Anna (2008) já havia verificado que Drummond adota largamente
as imagens aquáticas como expressão de tomada da consciência
espaço-temporal. Água: possibilidade e fonte de vida, sentido de
fluição vital, portanto consciência da decomposição cotidiana da vida,
da transitoriedade, da finitude. Em Miró, esse sentido das imagens
aquáticas é identificado. E a ele se acrescem conotações positivadas
para as cenas com mar-praia e chuva.
Tomemos esses significados, em Miró, através de um olhar
panorâmico e a partir de uma mirada cronológica. Em quase todo livro
publicado aparece algum poema agregando sentido às imagens de
mar-praia ou chuva: em Quem descobriu o azul anil? (1984-1985) elas
se associam a atitudes de abandono das tristezas e tormentos,
compondo palco de cenas esperançosas e de fruição da vida (2016, p.
204), de tranquilidade interior, consolo e oportunidade de instantes
meditativos, perpassados pela consciência do tempo e do
amadurecimento (2016, p. 211), de ativação das lembranças felizes e
amorosas, da construção de projetos (2016, p. 216); em Ilusão de Ética
(1995), as imagens aquáticas remetem a ideia de alcance de posição
social superior (2016, p. 183), da construção de sonhos, projetos e
utopia, alegria e passagem do tempo (2016, p. 188), de resgate de um
passado infantil onde a imaginação proporcionava acesso ao lúdico
(2016, p. 190); em Poemas para sentir tesão ou não (2002), essas
mesmas imagens pintam lembranças de realização amorosa (2016, p.
142); em Onde estará Norma? (2006), elas associam-se à quebra do
ritmo frenético urbano que oportuniza a reflexão sobre o mundo (o
tempo e a passagem ou transitoriedade da vida) (2016, p. 101), à
esperança de mudança da vida (2016, p. 105), à ativação do prazer
sexual (2016, p. 109); em Tu tás onde? (2007), o acesso ao mar-praia
vincula-se à fruição da vida (2016, p. 92); em Quase crônico (2010), as
imagens aquáticas ligam-se às mudanças existenciais provocadas pela
passagem do tempo, que levam a maturidade e perda da inocência
(2016, p. 52), à sensação de bem-estar, de esperança de mudança na
humanidade (2016, p. 53), à projeção de uma vida sem alienação (2016,
p. 66); em dizCrição (2012), elas relacionam-se com a perda da
inocência, superação de superstições e a tomada de consciência da
realidade (2016, p. 34), à percepção do tempo e da destruição da vida
Cotidiano | 90
(2016, p. 21), aos efeitos do estrago ou destruição dos planos amorosos
(2016, p. 37).
Em Drummond, a consciência espaço-temporal – representada
pelos referentes aquáticos que se avolumam nos seus livros
intermediários, como José (1942) e A Rosa do Povo (1945) –
representou uma conquista do poeta na sua trajetória humana e
artística. Os referentes aquáticos são – diz Sant‖Anna – indicadores
“[...] do mergulho do gauche no mar do tempo” (2008, p. 177). Um
rico complexo histórico, com variáveis microscópicas e
macroscópicas, explicam esse mergulho de Drummond: seu
deslocamento na estrutura de classes e no espaço social – desde a
confessada ruína pequeno-burguesa em face da origem oligárquica, até
sua transferência para o então Distrito Federal no Rio de Janeiro, onde
a dinâmica urbana pungente se impõe e o mar penetra sua rotina; sua
simpatia temporária com o campo político e valorativo do socialismo, a
partir do qual se acirra o impulso para os dramas histórico-mundiais,
assim como a necessidade de ligação com os trabalhadores. Em suma,
todas as dimensões decisivas de sua vida cambiadas pelos abalos sociais
da transformação capitalista no país premido pelo domínio mais
absorvente e contraditório do imperialismo no século XX: a infiltração
dos monopólios internacionais na exploração das riquezas naturais,
nas operações financeiras, industriais e nos serviços; a crescente
urbanização do país, com suas amplas vicissitudes e mazelas sociais; a
hipertrofia, modernização e racionalização da intervenção estatal
sobre a vida social e os conflitos entre capital e trabalho; a angustiosa
visão internacional da ascensão do fascismo e do nazismo, da irrupção
da Guerra Civil Espanhola, a conflagração da Segunda Guerra Mundial,
o embate ideológico e geopolítico entre capitalismo e os regimes de
transição socialista.
Por seu turno, em Miró os referentes aquáticos –
expressamente representando uma consciência espaço-temporal – se
apresentam desde um momento inicial da sua criação, marcando uma
presença relativamente equilibrada entre os livros lançados. No seu
primeiro livro, consta inclusive um pequeno poema – Estória compacta
da origem do mundo (2016, p. 222) – pretendendo o rastreio do ponto
de origem do homem, sugerindo a consciência instintiva da raiz
Cotidiano | 91
ontológica da linguagem-cultura. Não acreditamos ser coincidência
que o título do poema tenha seu cerne na palavra “mundo” – a mais
colada à identidade da poesia de Drummond. Assim definido, o título
tanto pode estar se referindo ao “mundo” como base natural da vida,
da humanidade e da cultura, quanto pode estar aludindo ao
fundamento do “mundo” enquanto léxico de significado complexo
extremamente rico do universo poético de Drummond. Em todo caso,
assim se desdobra o poema: “há milênios atrás / uma luz / não sei se
vinda de / outra luz / fez-se luz / e vieram os homens / e logo ali ao
lado / as palavras / dando nome às coisas” (2016, p. 222). Uma
preocupação com as raízes mais remotas e originárias da vida subjetiva
e espiritual que Drummond demonstrou na abertura de Lição de Coisas
(1962) com o poema A palavra e a terra (1977, p. 323), regressando,
também através de uma fórmula lacônica, ao estágio aurinaciano –
uma cultura material do período paleolítico superior.
Isso sugere que, em Miró, tal consciência espaço-temporal já
estaria dada no instante em que despertava para a produção poética. É
verdade que, ao ser influenciado por Drummond, Miró já conseguiria
partir daquele legado de conquistas no plano dos motivos, imagens,
símbolos oferecidos por sua referência poética. Porém os elementos
selecionados e recolhidos desse legado, por parte de Miró, apenas se
explicam segundo os conflitos íntimos e atuais do próprio poeta – com
suas evidentes raízes históricas e sociais – os quais demandaram a
escolha pelas imagens aquáticas, por exemplo. Havíamos mencionado
em que consiste, minimamente, o conteúdo dessa consciência espaço-
temporal representada dos referentes aquáticos: sentido de fluição
vital, consciência da decomposição cotidiana da vida, da
transitoriedade, da finitude.
Mas o que explica, histórica e socialmente, a presença
prematura dessa consciência em Miró? Ele já brotou na condição social
que impele para essa consciência, e em circunstâncias muito mais
regressivas do que aquelas que jogaram uma sombra sobre a vida de
Drummond – cujos condicionamentos, mesmo assim, também
impeliram para a tomada de consciência do tempo, da transitoriedade
e da destruição da vida. Miró é um poeta espoliado numa época da
barbárie imperialista que se acelera. Ameaça diária da liquidação da
Cotidiano | 92
vida, colocada pela penúria econômica, pela violência urbana e pela
opressão estatal. O deslocamento permanente no espaço como
condição existencial de quem brota nos ditos “aglomerados
subnormais” e convive com o despejo desde o nascimento. A vida
mergulhada numa geografia e num universo cultural onde os
fenômenos e paisagens aquáticas entranham-se nos habitantes,
definem rotinas e os percursos urbanos, delineiam a segregação social:
Recife com seus rios-mangues estruturantes, suas praias segregadas,
suas chuvas e alagamentos. Depois uma vida adulta com aquele
intricado circuito de viagens por diversas cidades e capitais no país.
Se o já referido poema Estória compacta da origem do mundo
(2016, p. 222) demonstra essa força da consciência espaço-temporal a
partir de uma angulação – digamos – filosófica, noutros poemas –
ainda do primeiro livro Quem descobriu o Azul Anil? (1984-1985) –
essa mesma percepção aparece penetrando a crônica social
propriamente dita, para não falar daqueles poemas diretamente
memorialísticos. A sensação do peso do tempo sob os ombros do poeta
pode aparentar até certo exagero. Naquele livro de estreia, por
exemplo, com seus vinte e poucos anos, Miró inicia o anteriormente
citado poema Quadra José Revoredo com esses versos – onde,
inclusive, se encontra tacitamente o rio através dos seus seixos: “estou
velho / lembro dos amigos / com estilingue no pescoço / sacos de
seixos / pedras de matar passarinho” (2016, p. 214). Já no retrato da
vida e opressão urbana reproduzido no premiado poema Quatro horas
e um minuto – ainda do livro de 1984-1985 – a temporalidade é
patente, não apenas no título e conteúdo das cenas, mas no andamento
dos versos, na sensação de fluxo acelerado dos verbos:
quatro horas
quatro ônibus
levando vinte e quatro
pessoas
tristonhas e solitárias
Cotidiano | 93
acendi um cigarro
e a cidade pegou fogo
cinco horas
cinco soldados
espancando cinco pivetes
filhos sem pai e
órfãos de pão
seis horas
o Recife reza
e eu voando pra
ver Maria
(MIRÓ, 201, p. 215).
6.
Cotidiano | 94
livro aDeus (2015). Ali evidenciando a convivência pessoal com a
morte em meio à já falada solidão e decomposição da saúde, no estágio
habitacional crítico da moradia na Muribeca. Em face desse tema
particular, não apenas a poesia de Miró nos parece também precoce,
mas atacada pelos múltiplos lados através dos quais a morte pode
assolar a existência na vida urbana. Não se limitando a morte mais
discreta, menos percuciente, improvisada e repentina, que Affonso
Romano de Sant‖Anna encontra em Drummond, onde ela “[...] é uma
decorrência e transformação do fluxo, forma de fluir completamente,
último lance e um contínuo processo de entropia social” (2008, p.
209).
Seria maçante ilustrar as dezenas de ocasiões em que a morte se
faz presente na obra de Miró. Talvez relacionarmos suas nuances e
abordagens já sirva para dar ciência do seu enraizamento nos poemas:
a morte desponta nos versos que retratam as notícias de violência nas
bancas de jornal e nos noticiários, nas paisagens urbanas ou em
episódios pessoais nos quais funerárias e cemitérios surgem ou se
insinuam – nesses casos, ela é, ao mesmo tempo, identificada como um
produto passível de ser objeto de lucro, em algumas circunstâncias
observadas como um meio de subsistência assalariada, retratado na
figura do matador de aluguel; aí, como em outros poemas, a morte
também pode mostrar sua face pela ameaça ou o atentado concreto à
vida promovido pela violência urbana, que se estende, em certos
momentos, na forma da aniquilação coletiva provocada pelos conflitos
bélicos, desastres naturais ou regimes políticos violentos da nossa
época; a morte, ou a memória da morte, das pessoas do círculo familiar
e afetivo do poeta; a morte de outros que personificam a opressão, que
se afigura no ímpeto instintivo, mas recalcado, para reação violenta
(homicida) às injustiças pessoais ou sociais, em certas ocasiões
confessado pelo próprio poeta; a morte que joga uma sombra de
incerteza sobre o dia seguinte do poeta premido pela saúde degradada
e as condutas autodestrutivas correspondentes; a morte como finitude
irremediável – por vezes antecipada socialmente – que aguça a
meditação existencial sobre o valor da vida.
Vários dos poemas de Miró citados até agora refletem essa
presença visceral da morte, nas suas diversas nuances: um trem azul
Cotidiano | 95
(2016, p. 93), Confesso que também vivi meio século (2016, p. 60),
Ressaca (2016, p. 28), Linha de risco (2016, p. 103), Pra não dizer que
não falei de flúor (2016, p. 130), Quadra José Revoredo (2016, p. 214).
Acrescentaríamos apenas mais um exemplo que condensa alguns dos
vários referentes figurativos e líricos rastreados sob essa rubrica geral
da consciência espaço-temporal. Ele possui a vantagem adicional de
evidenciar um momento decisivo de perturbação existencial,
amplificando a solidão e angustia de Miró. O poema 16 de janeiro de
2012 – do livro dizCrição (2012) – evoca o velório da mãe, aglutinando
o referente aquático, os rituais da morte tomados como objeto de um
comemorado lucro que dilacera a comunhão de sentimentos, o
fenecimento das próprias flores correspondente aquela despedida da
vida que então ajudam a ornamentar, a própria finitude percebida
como um sono no qual inexiste conteúdo anímico:
16 de janeiro de 2012
32
Matéria do Diário de Pernambuco, produzida por Fellipe Torres, intitulada Poeta Miró
da Muribeca comemora renascimento com novo livro, "aDeus", de 6 ago. 2015.
Cotidiano | 97
está passível de amnésia e de falhar em sua função, eventualmente
sente-se confuso e perdido ou quer evadir e se esconder das situações
que trazem sofrimento.
Ao fazê-lo encarnar, Miró figura-o com traços que
personificam sua própria condição de classe, seus próprios sentimentos
em relação ao mundo e a humanidade. Quando isso ocorre, Deus
aparece mais como um alter ego do poeta que se coloca em estado de
confrontação com o mundo na sua universalidade; do poeta que
projeta o olhar mais abrangente e panorâmico que é capaz de lançar
sobre a sociedade e a humanidade. Ao lançar mão desse personagem,
com seus amplos poderes atribuídos pela tradição católica na formação
do nosso senso comum, o poeta como que legitima e valida uma mirada
sua que se quer maior e mais potente, que pretende o salto imediato
entre o que aparece na singularidade da crônica e a universalidade da
qual faz parte. Daí os poemas sob esse enfoque relacionarem quase
sempre a tríade de substantivos “Deus”, “mundo” e “humanidade”
(ou o correlato “homem”). Daí também as atitudes e sentimentos desse
Deus equivalerem aos que compõem as reações do próprio poeta em
face dos quadros sociais com os quais se depara no cotidiano. De modo
que Deus, ora pode aparecer como essa espécie de alter ego, ora como
aquela força extra-humana criadora, num significado mais afinado –
embora em certa tensão – com a cosmovisão católica. Dois poemas do
livro Quase crônico (2010) são representativos desses dois tipos de
abordagem:
Cotidiano | 98
e leu a notícia: por causa de um time
pai mata filha de cinco meses com cinco
facadas Deus não inventou nada
Deus só jogou um monte de gente
Deus largou a bicicleta aqui dentro
pegou um foguete e faz como Pilatos
e voltou pra casa lavou as mãos
(MIRÓ, 2016, p. 77). só não sei com que sabão
(MIRÓ, 2016, p. 74).
Cotidiano | 101
Rifoneiro Divino Atchim!
Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.
(DRUMMOND, 1977, p. 85)
7.
33
Matéria escrita por Igor Gomes, intitulada Miró e o penúltimo olhar sobre as coisas, no
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Nº 125, de julho de
2016, publica com o título Miró: um retrato de corpo inteiro de um dos poetas mais
inventivos do Brasil.
Cotidiano | 104
entre o tema de Deus e da morte: “acordei / Deus me deu passaporte
para mais um dia / espero saber voar para lhe agradar” (p. 41).
O lirismo mais existencial, a poesia memorialística com a voz
do presente, a penetração da figura paterna em certas poesias,
principalmente em O penúltimo olhar sobre as coisas (2016a) e Atchim!
(2019) não deixa de nos provocar sobre algumas correspondências com
os caminhos da criação poética de Drummond, principalmente após A
rosa do povo (1945). Um repertório que igualmente poderia tanto
servir de estímulo e inspiração quanto de fonte de recursos para poesia
de Miro na trajetória atual da vida. Alcides Villaça (2006) avalia que a
adoção do tempo verbal no presente, nos poemas da memória da série
Boitempo, de Drummond, faz com que tudo que poderia ser pura
lembrança ressurja com o impacto do que é vivido no aqui e no agora
do menino antigo. Não apenas evocando a percepção pretérita, na
ilusão de revivê-la como se deu, mas construindo com ela (e para ela)
uma nova percepção. Também o ensaísta observa que a matéria bruta
da autobiografia impõe-se – numa velhice em que a revisitação do
passado é trabalhada pelo desejo de totalização da própria história –
como estímulo vital para um surpreendente re-enraizamento. Quando
se propôs a retorquir alguma resistência crítica em torno dessa nova
vereda tomada pela sua poesia, Drummond assim se manifestou na
sugestiva epigrafe Intimação, de Boitempo III (Esquecer para lembrar)
(1979): “– Você deve calar urgentemente / as lembranças bobocas de
menino. / – Impossível. Eu conto o meu presente. / Com volúpia voltei
a ser menino” (2015, p. 691) Em algumas de suas poesias recentes,
claramente Miró volta a ser menino, também com certa volúpia.
É inevitável não topar também com certas identificações que
Miró assume com Drummond em termos das opções estilísticas. Em
especial a opção de Drummond pelo “[...] trânsito nervoso da
consciência mais aguda ao lirismo mais desarmado e vice-versa” do
qual falou Alcides Villaça (2006, p. 48) no seu ensaio sobre o Alguma
Poesia (1930); algo já evidente mesmo no Poema de Sete Faces. Traço
que José Guilherme Merquior parece capturar sob a rubrica da “mescla
de estilos”, verificada em tradições literárias – primeiro presentes na
literatura cristã da Idade Média, depois encarnadas no romance realista
do século XIX – que se propuseram a erigir pessoas e coisas vulgares
Cotidiano | 105
em objeto de representação séria, problemática e mesmo trágica. Um
plano da realidade que, no classicismo antigo, estava relegado a níveis
inferiores de estilo, representados pelos registros leve-pitoresco ou
cômico-vulgar. Diz Merquior: “Aplicando a maneira sublime a
assuntos prosaicos e rotineiros, a literatura realista se torna séria (ib.);
assim fazendo, do ponto de vista da doutrina dos níveis, ela mescla os
estilos” (2016, p. 32). O ensaísta avalia, por exemplo, que uma grande
parte da importância de Baudelaire, em seu papel de fundador do
lirismo moderno, vem do fato de introduzir essa mescla dos estilos na
poesia, da qual a justaposição do tom sublime e do assunto vulgar é tão
característica. Assim, essa mescla, além de compor o universo de
recursos do lirismo moderno no plano poético, foi, apesar das
variações no conjunto da obra, uma característica de estilo decisiva da
poesia de Drummond.
É evidente que Miró estava, desde o início, exposto à influência
desse “estilo mesclado” pelo próprio ambiente cultural geral da poesia
e do lirismo moderno criado a partir do movimento modernista. Porém
acreditamos que o contato mais íntimo com a poesia de Drummond
deva ter potencializado e fertilizado sua sensibilidade criativa para esse
caminho estilístico. É impossível elencar aqui todos os exemplos que
ilustram esse estilo em Drummond – já amplamente demonstrados
pela crítica – e propor as várias correspondências em Miró. Ao invés,
talvez seja já revelador evidenciar isso com a reprodução de um motivo
aparentemente banal em que esse contraste entre o prosaico e o
sublime é radicalizado através do deslocamento entre detritos/sujeira-
alma/coração. O citado poema de Drummond encontra-se no livro
Versiprosa (1967), enquanto o poema-pílula de Miró está incluído no
dizCrição (2012).
Mosaico
Cotidiano | 106
Mas que falta nos faz, ó maquininha,
um limpa-almas, pois não? Estás sozinha...
Não é por falar mal dos semelhantes:
a mim mesmo, serviços relevantes
prestaria esse insólito aparato. [...]
(DRUMMOND, 1977, p. 467).
[...]
Cotidiano | 107
quase verdes
se ardesse o sol de domingo
[...]
[...]
Cotidiano | 108
Mas na poesia de Miró também encontramos ecos de outras
tendências estilísticas, tais como as que representam uma elocução
lírica mais “pura”, em contraste com a “mescla de estilos” de que fala
Merquior ao tratar das nuances criativas de Drummond. Por exemplo:
num poema de Miró como trago boas notícias (2016, p. 66) – do livro
Quase crônico (2010) – pode-se divisar traços de um pathos idealizante
– de cunho neorromântico – que Merquior localiza nas passagens
impregnadas de utopismo de Cidade Prevista em A Rosa do Povo
(1945). Se essa correspondência possui mesmo validade, então Miró
teria reproduzido um motivo que, em Drummond, foi tomado através
do veio estilístico do modernismo neorromântico – caminho através
do qual Merquior nota certa mutação estilística no lirismo do poeta
mineiro, manifesta numa certa poesia engajada de teor neorromântico,
muito presente no livro Sentimento do Mundo (1940).
8.
Cotidiano | 109
p. 77). Não encontramos descrição mais oportuna para revelar a
impressão que causa a bricolagem gestual e poética das apresentações
de Miró.
Certa feita, Georg Lukács salientou a importância de Goethe na
identificação do conflito básico que toda obra artística precisa dar
conta de solucionar, ou seja, aquele conflito posto pelo dualismo entre
universal e particular. Diz Goethe – citado por Lukács: “Compreender
e representar o particular é o específico da arte. E, ademais, enquanto
nos limitarmos ao universal, todos podem nos imitar, mas ninguém
pode imitar nosso particular. Por que? Por que os outros não o
viveram” (1970, p. 143). O crítico e poeta Affonso Romano Sant‖Anna
acredita que Drummond foi exitoso na resolução desse conflito básico,
na medida em que ele parece ter partido, na criação poética, da
aceitação da sua individualidade. Daí uma poesia onde o caráter
altamente pessoal se verifica até mesmo nas fórmulas impessoais. Diz o
crítico: “O poeta está falando dele mesmo o tempo todo, mas ninguém
nota” (2008, p. 30). Daí também uma poesia que forja aquela síntese
poderosa e penetrante entre a singularidade do poeta e as
transformações sociais decisivas da época de transição pela qual
passava seu país e o mundo em boa parte do século XX. Uma poesia que
expressa o núcleo de dramas humanos concretos e determinados, que
afetavam classes sociais concretas e determinadas, e que eram
correspondentes àquela época de transição. Daí, por último, uma
poesia que – nas suas realizações mais profundas e de maior vulto –
oferece um testemunho e reflexo dos dramas individuais mais perenes
e universais da luta humana pelo autoconhecimento e efetivação das
capacidades pessoais, em face de suas bases e barreiras naturais e
instintivas, por um lado, e em face, por outro lado, da alienação e
desumanização socialmente produzidas.
Vários momentos dessa incursão pela produção de Miró nos
provocam a sensação que algo correlato ocorre. A afirmação da
individualidade parece se impor – nesse caso – através do fato de que o
poeta é sua própria poesia. Os quadros sociais narrados na crônica
poética capturam circunstâncias e acontecimentos dramáticos nos
quais o poeta mesmo se encontra envolvido – como objeto,
personagem ou expectador participante, exprimindo suas reações
Cotidiano | 110
psicológicas e emocionais. A miséria e opressão vocalizadas e
documentadas na obra – seja nos poemas de cunho existencial ou
memorialístico, seja nas crônicas – são aquelas a que Miró está sujeito,
a partir de uma condição de classe definida pelo alto grau de
expropriação. Aqui também se identifica um forte testemunho de uma
luta pessoal intestina contra a desumanização, a alienação e a opressão
da vida urbana, num estágio de crescente degradação na periferia do
imperialismo. Ela captura o particular nessa síntese entre o destino
pessoal do poeta e as tendências sociais mais dilacerantes do seu
tempo.
Mas sugerimos isso apenas como hipótese. Não nos permitimos ir
mais além dessa nossa limitada entrada na obra de Miró, a partir da
questão de partida sobre sua inspiração e referência em Drummond.
Não foi nossa preocupação, nesse ensaio, medir a voltagem poética de
qualquer poema, avaliar a convencionalidade ou extraordinariedade
das imagens, sopesar as regularidades formais ou padrões métricos dos
versos, aquilatar a facilidade ou raridade dos seus simbolismos e rimas.
Ademais, frente aos intentos da crítica literária, nos parece mesmo que
a poesia é inesgotável. Pois os sentimentos humanos que são seu cerne
combinam-se de inumeráveis maneiras e provocam as reações mais
imprevistas nas inesgotáveis e irrepetíveis individualidades que
compõe o gênero humano. Este, por sua vez, inesgotável, porque
inesgotáveis suas possibilidades históricas no tempo. Por isso, mesmo
depois dessa nossa incursão, a pergunta pode ser repetida; uma
intocada e densa floresta de respostas se descortinará: e Drummond
em Miró da Muribeca?
Cotidiano | 111
Referências
Cotidiano | 112
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens
Enderle e Leonardo de Deus. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond. São
Paulo: É Realizações, 2016.
MIRÓ. aDeus. Recife: Mariposa Cartonera, 2015.
MIRÓ. Atchim! Recife: Cepe, 2019.
MIRÓ. Miró até agora. Organização de Sennor Ramos. 2ª ed. Recife:
Cepe, 2016.
MIRÓ. O penúltimo olhar sobre as coisas. 3ª ed. Recife: Mariposa
Cartonera, 2016.
NOTARO, Tatiana. Miró (re)nasce como poeta. Folha de Pernambuco,
Recife, 28 nov. 2016. Disponível em:
https://www.folhape.com.br/folhape/nwsPrint.aspx?mId=8064.
Acesso em: 7 jun. 2020.
ROSÁRIO, André Telles do. Corpoeticidade: Poeta Miró e sua literatura
performática. Recife, 2007. 131 f. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.
SANT‖ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. 5ª
ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SANT‖ANNA, Affonso Romano de. Uma relação delicada. Estadão, 29
out. 2011. Disponível em:
https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,uma-relacao-tao-
delicada,791936. Acesso em 7 jun 2020.
SOARES, Camilo. Poesia, mesa de bar e goles decadentes: descaminhos
de três poetas marginais do Recife. Recife: Nektar, 2013.
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Miró:
um retrato de corpo inteiro de um dos poetas mais inventivos do Brasil.
Nº 125, de julho de 2016. Disponível em:
https://www.suplementopernambuco.com.br/images/pdf/PE_125_w
eb.pdf. Acesso em: 7 jun. 2020.
Cotidiano | 113
TORRES, Fellipe. Poeta Miró da Muribeca comemora renascimento
com novo livro, "aDeus". Diário de Pernambuco, 6 ago. 2015.
Disponível em:
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2015/08/po
eta-miro-da-muribeca-comemora-renascimento-com-novo-livro-
adeus.amp.html
VILLAÇA, Alcides. Passos de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo: Drummond e a
mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Documentários e Reportagens
Cotidiano | 114
Poetas Marginais do Recife. Opinião Pernambuco, TV Universitária,
realizado em 20 de março de 2015. Disponível em:
https://youtu.be/jxxb5kzm_RQ. Acesso em: 7 jun. 2020.
Programa Tesão Literário. 2018. 1 vídeo (37 min). Publicado pelo canal
TV Pimenta, apresentação de Sidney Nicéas, em 23 mar. 2018.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1EJoWm0AqIs.
Acesso em: 7 jun. 2020.
Cotidiano | 115
Este livro foi composto
em Glosa, corpo 10/9/8
e Century Gothic, corpo 12/11.