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O Sentimento dum Ocidental

Cesário Verde

➪ O poema O Sentimento dum Ocidental, de


Cesário Verde, é de carácter deambulatório e
sensorial.
o sujeito poético regista o que vai
percepcionando ao movimentar-se pela
cidade.

da cidade
Cesário - poeta

de Lisboa
dos sentidos etc...
objetivo
subjetivo

➪ O poema é composto por 44 quadras (1º verso decassílabo, restantes alexandrinos)


divididas em 4 secções, cada uma com 11 quadras:

I - Ave-Marias II - Noite fechada III - Ao gás IV - Horas mortas

Início da A digressão A deambulação


deambulação prossegue pela finaliza já de
Recolha de
(exterior e cidade, à luz de madrugada,
impressões, agora
interior) pela candeeiros a gás, tendo se
já de noite.
cidade de Lisboa, iluminação prolongado no
ao entardecer. pública de então. tempo.

➥ As ave-marias correspondem aos toques dos sinos das igrejas às 6, 12 e 18 horas.


Neste caso (secção I), às 18 horas.

Deambular: caminhar sem rumo.


I - Ave-Marias
Nas nossas ruas, ao anoitecer, E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
Há tal soturnidade, há tal melancolia, De um couraçado inglês vogam os escaleres;
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia E em terra num tinir de louças e talheres
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

O céu parece baixo e de neblina, Num trem de praça arengam dois dentistas;
O gás extravasado enjoa-me, perturba; Um trôpego arlequim braceja numas andas;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Toldam-se duma cor monótona e londrina. Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Batem carros de aluguer, ao fundo, Vazam-se os arsenais e as oficinas;


Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
Ocorrem-me em revista, exposições, países: E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Semelham-se a gaiolas, com viveiros, Vêm sacudindo as ancas opulentas!


As edificações somente emadeiradas: Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
Como morcegos, ao cair das badaladas, E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros. Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Voltam os calafates, aos magotes, Descalças! Nas descargas de carvão,


De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos; Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E o peixe podre gera os focos de infecção!

E evoco, então, as crónicas navais:


Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

➪ O sujeito poético situa-nos na cidade de Lisboa - ''Nas nossas ruas'' - pelas 18 horas
- ''ao anoitecer''.
➪ Alguns sentimentos - melancolia, soturnidade e náusea - provocam no sujeito
poético o ''desejo absurdo de sofrer''.
desejo associado ao espaço e às sensações do ''eu lírico''.
➪ O gás enjoa e perturba ; os edifícios e a turba são de cor monótona e londrina.
➪ As edificações são como ''gaiolas'' - o sujeito sente-se confinado na cidade (gaiola =
falta de liberdade).
➪ Dicotomia espacial e temporal.
As ''nossas'' ruas - presente angustiante e melancólico.
O ''mundo'' - passado grandioso e heroico.
felicidade dos que partem - '' (...) os que se vão. Felizes!''.
recordação de um passado glorioso.
''Luta Camões (...) /
''E evoco, então, as Impossibilidade de
(...) naus que eu não
crónicas navais (...)'' repetir a epopeia
verei jamais!''
Sensações

visuais
auditivas Desencanto e
olfativas regresso ao
presente.
metáfora
➪ ''E num (...) / (...) as varinas.'' - descrição das varinas. adjetivação
anteposição da qualidade

II - Noite fechada
Toca-se às grades, nas cadeias. Som E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! Nesta acumulação de corpos enfezados;
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças, Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Bem raramente encerra uma mulher de <<dom>>! Inflama-se um palácio em face de um casebre.

E eu desconfio, até, de um aneurisma Partem patrulhas de cavalaria


Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes; Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma. Derramam-se por toda a capital, que esfria.

A espaços, iluminam-se os andares, Triste cidade! Eu temo que me avives


E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Alastram em lençol os seus reflexos brancos; Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares. Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

Duas igrejas, num saudoso largo, E mais: as costureiras, as floristas


Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero: Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo, Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
Assim que pela História eu me aventuro e alargo. E muitas delas são comparsas ou coristas.

Na parte que abateu no terremoto, E eu, de luneta de uma lente só,


Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas; Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas, Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
E os sinos dum tanger monástico e devoto. Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

Mas, num recinto público e vulgar,


Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Estrofes 1 e 2

Um épico doutrora ascende, num pilar!


descrição da prisão - sentido literal
➪ ''Iluminam-se os andares'' ''Toca-se às grades, nas cadeias''
a escuridão adensa-se. passagem para um sentido
metafórico
Sentido metafórico

A realidade aprisiona o ''eu O ''eu'' lírico continua a evocação:


lírico'' - ''Muram-se (...)'' aventura-se pela história e
emociona-se - ''Chora-me o
coração que se enche e que se
abisma.''
➪ As igrejas lembram um ''inquisidor severo''.
➪ Os quartéis lembram conventos.
➪ Nova referência a Camões - ''épico doutrora''.
Camões como símbolo da epopeia irrepetível - só é possível como memória.
➪ O ''eu'' lírico descreve a realidade através de uma ''luneta de uma lente só'' - visão
pessoal + descrição crítica.
é na realidade que encontra assunto - ''Eu acho sempre assunto a quadros
revoltados''.
descrição da ''Triste cidade!'':
soldados sombrios e espectrais.
oposição entre o palácio e o casebre.
contraste entre as elegantes que se curvam nas montras e as que vivem
do trabalho.

III - Ao gás
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos E eu que medito um livro que exacerbe,
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. Quisera que o real e a análise mo dessem;
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras Casas de confecções e modas resplandecem;
Um sopro que arripia os ombros quase nus. Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso Longas descidas! Não poder pintar


Ver círios laterais, ver filas de capelas, Com versos magistrais, salubres e sinceros,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas, A esguia difusão dos vossos reverberos,
Em uma catedral de um comprimento imenso. E a vossa palidez romântica e lunar!

As burguesinhas do Catolicismo Que grande cobra, a lúbrica pessoa,


Resvalam pelo chão minado pelos canos; Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo. Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

Num cutileiro, de avental, ao torno, E aquela velha, de bandós! Por vezes,


Um forjador maneja um malho, rubramente; A sua trai^ne imita um leque antigo, aberto,
E de uma padaria exala-se, inda quente, Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno. Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros; <<Dó da miséria!... Compaixão de mim!...>>
Plantas ornamentais secam nos mostradores; E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores, Pede-me esmola um homenzinho idoso,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros. Meu velho professor nas aulas de Latim!

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes


Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

➪ ''A noite pesa, esmaga'' - acentua-se a ideia de aprisionamento / clausura.


➪ ''Cercam-me as lojas, tépidas'' - a cidade está iluminada pela luz artificial dos
candeeiros a gás.
➪ ''E eu que medito um livro que exacerbe, / Quisera que o real e a análise mo
dessem'' - síntese da intenção do ''eu'' lírico (conceção poética).
fazer uma poesia de análise e crítica à sociedade - retrata espaços associados
ao consumismo e à burguesia.
''Casas de confeções e modas''; ''luxo (...) / que ao longo dos balcões de
mogno se amontoa''.
➥ ''Mas tudo cansa!''
➪ Reencontra o velho professor de latim - ''Pede-me sempre esmola um
homenzinho idoso, / Meu velho professor nas aulas de latim!''
simboliza, no seio de uma sociedade onde o luxo se amontoa, o desprezo pela
cultura e pelo saber.

IV - Horas mortas
O tecto fundo de oxigénio, de ar, Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar. Numas habitações translúcidas e frágeis.

Por baixo, que portões! Que arruamentos! Ah! Como a raça ruiva do porvir,
Um parafuso cai nas lajes, às escuras: E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, Nós vamos explorar todos os continentes
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. E pelas vastidões aquáticas seguir!

E eu sigo, como as linhas de uma pauta Mas se vivemos, os emparedados,


A dupla correnteza augusta das fachadas; Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
As notas pastoris de uma longínqua flauta. E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente E nestes nebulosos corredores


Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Esqueço-me a prever castíssimas esposas, Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente! Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos; E, enorme, nesta massa irregular
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes; De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, A Dor humana busca os amplos horizontes,
Amareladamente, os cães parecem lobos. E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

E os guardas, que revistam as escadas,


Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

➪ Noite profunda / luz baça das estrelas - ''Vêm lágrimas de luz dos astros com
olheiras''..
metáfora, personificação.
➪ Registo de sensações visuais e auditivas.
''lágrimas de luz''.
''Um parafuso cai nas lajes''.
➪ Alusão a um ambiente pastoril.
''As notas pastoris de uma longíqua flauta''.
➪ Desejo de perfeição e imortalidade.
''Enleva-me a quimera azul de transmigrar''.
➪ Nova evocação do passado português.
''frotas dos avós'', aliada ao desejo de restaurar a grandeza no ''porvir''
explorando ''todos os continentes''.
➪ Dicotomia (repetição) espacial e temporal.
realidade - presente - as ''nossas ruas''.
o aprisionamento e a estagnação são ideias que prevalecem na conclusão
do poema.
➥ ''triste cidade'' - sem liberdade - onde vivem os ''emparedados'', ''sem árvores'',
no ''vale das muralhas''.

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