Você está na página 1de 2

COUTO, Mia. O mapeador de ausências. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Quando um ciclone remonta um chão para a literatura


(Resenha com spoilers)

A primeira versão de Mia Couto de "O mapeador de ausências" celebrava a infância do


autor em sua cidade de origem, Beira, no centro de Moçambique. Essa versão foi revista
em 2019, após o ciclone Idai sepultar, com o peso das águas, o chão que até então o autor
conhecia. O fim de uma cidade deu lugar a outra, assim como a primeira versão da obra
deu lugar a uma segunda. Então, em 2021, é lançado no Brasil o 20o romance, que
também pode ser lido como uma autoficção, de um dos autores africanos contemporâneos
mais publicados no mundo.

Em síntese, mapear dores presentes escrutinando lacunas do passado é a tarefa para a


qual o protagonista e poeta Diogo Santiago se lança. O que ele busca é a cura para a sua
insônia, um lugar de paz em que os vivos possam descansar sem perturbar os sonhos dos
mortos. Para tanto, Diogo se desloca de Maputo para Beira, sua cidade natal, em busca dos
rastros de desaparecidos da sua família.

Com a ajuda da misteriosa Liana e demais personagens, ele junta variadas pistas: fotos,
documentos da polícia política portuguesa (PIDE), anotações, cartas, diários, depoimentos,
testemunhos, poesias, e outros textos.

Na medida em que vai desvelando os vestígios de um tempo colonial que ruía diante das
lutas pela independência, segredos são revelados, ressignificando não apenas a própria
história de Diogo e de outras personagens, como também a dos lugares por onde essas
histórias e personagens transitam.

Forma-se uma intrincada trama de deslocamentos: fantasmas sobrepõem a narrativa


produzida pelos de "carne e osso", o lado mau dos mocinhos é tão evidente quanto o lado
bom dos bandidos, a verdade vai se parecendo mais com uma areia movediça do que com
uma terra firme onde se possa apoiar.

Essa instabilidade do enredo se aprofunda diante de um permanente jogo de traições que


suspende a realidade. Essa sensação de incerteza é amplificada com a chegada do ciclone
Idai que, com ventos furiosos, tal qual na vida real, literalmente coloca tudo de cabeça para
baixo.

Deste modo, o mergulho de Diogo pelo seu passado atravessa o de Liana e de outras
personagens. Pouco a pouco, como em uma colcha de retalhos, um fato vai se costurando
a outro, fazendo com que pequenos pedaços conformem ao fim parte de um mesmo todo.
Contudo, não se trata de uma história única. Pelo contrário, fluída como as águas, ela corre
por diferentes rios que desembocam conflitantes em um oceano.

Afinal, quanto da vida das personagens é também a vida do autor? O que é ficção e o que é
história? E quem matou Ermelinda, mãe de Liana, a Frelimo ou a PIDE? Adriano Santiago,
pai de Diogo, era um anjo ou um demônio? Maniara, esposa de Fungai, era uma heroína ou
assassina? Óscar Campos, pai de Liana e carrasco de Adriano, era um inspetor ou
impostor? Para essas e muitas outras questões o leitor vai encontrar mais de uma resposta,
cabendo a ele decidir no que ou em quem acreditar, o que o convida a se questionar sobre
os seus próprios parâmetros éticos.

E é justamente por se situar nessa zona árida, gris, pouco rígida e definida, que o romance
de Mia Couto surpreende. Seja por sua estrutura baseada em variados gêneros da
linguagem, seja pelos diferentes pontos de vista que uma mesma história é contada, quem
se aventura pelo "Mapeador de ausências" se depara com a negação do óbvio.

É como se a linguagem perseguisse a plasticidade da força dos ventos e, num redemoinho,


arrancasse o passado da terra para para depois entregá-lo desconjuntado, a procura de
quem pudesse, tal qual um quebra-cabeça, remontá-lo de acordo com as peças de que
dispusesse.

Dessa violência surje uma provocação: o que sustenta as nossas verdades? Em tempos
pandêmicos, com ideias terraplanistas e outras reverberações da Idade Média, provocações
como essa parecem essenciais.

Carla Santos é mestra em Literatura Portuguesa e Africanas pela UFRJ e doutoranda em


Literatura Comparada pela USP.

Você também pode gostar