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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores - Jacques Rancière: Longe de Seattle - 19/12/1999

São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999

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+ autores
A virtude da arte é mudar velocidades, dimensões e
direções, desviar trajetórias e esperas
Longe de Seattle
JACQUES RANCIÈRE

Um velho que mal se firma nas pernas e sem carteira de


habilitação pega sua roçadeira para uma viagem de 400
milhas a fim de se reconciliar, antes que seja tarde demais,
com um irmão vítima de um ataque cardíaco. Um yakuza
aposentado acompanha um jovem que parte em busca de
uma mãe distante. Ele esconde do garoto aquilo que
descobre (a mãe tem uma nova família) e se empenha em
diverti-lo com mil facécias antes de devolvê-lo à avó que o
cria. Um repórter de Teerã segue para um vilarejo do
Curdistão com o intento de filmar um ritual funerário
herdado dos tempos antigos. A heroína da cerimônia
infelizmente tarda a morrer. E, quando ela o faz, enfim, o
caçador de imagens terá perdido o gosto pela caça e
retornará de mãos abanando. Três filmes marcantes de 1999,
"Uma História Verdadeira", de David Lynch, "O Verão de
Kikujiro", de Takeshi Kitano, e "O Vento Nos Levará", de
Abbas Kiarostami, parecem nos contar, assim, fábulas do
mesmo gênero, parecem nos fazer escutar uma mesma e
delicada música. No momento em que a França de Luc
Besson ergue sua heroína libertadora, "Joana D'Arc", contra
o invasor cinematográfico anglo-saxão, emblematizado por
"Star Wars", esses três filmes parecem esboçar as feições de
uma outra globalidade, de um outro planeta cinematográfico,
estranho aos conflitos entre verdadeiros e falsos gigantes.
Nesse planeta, no qual os eventos espetaculares e os efeitos
especiais são ignorados, uma mesma virtude parece reinar, a
virtude da lentidão. Ela comanda ao mesmo tempo a
obstinação em linha reta do velho Alvin Straight, formiga
puxando uma charrete com seu trator de jardim, e os desvios
infindos que inventa o yakuza Kikujiro para estampar um
sorriso no rosto do garoto amargurado. Ela reina no vilarejo
curdo e triunfa sobre a afobação dos caçadores de imagens
de Teerã.

Viagem insana
Persistir na linha reta de uma viagem insana, traçar curva
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após curva o caminho que reconduz ao ponto de partida,


renunciar ao único objetivo de uma viagem custosa e de uma
longa espera, eis as três maneiras de homenagear a mesma
virtude. Essa virtude do tempo pausado é também, nos três
casos, uma homenagem rendida à força dos fracos, uma
celebração dos poderes secretos daquilo que a lógica
dominante gosta de descrever como o mundo da impotência
e do retrocesso.
Essa virtude, o cineasta japonês e seu colega iraniano nunca
deixaram de cultivá-la. São conhecidos os cenários típicos de
Kitano: lutas paroxísticas entre bandos de yakuzas ou entre
yakuzas e policiais que se transformam em jogo de praia e
baladas contemplativas ("Sonatina", "Hana-Bi"), ou então
histórias, entre realidade e sonho, de personagens canhestros
ou deficientes que logram realizar seu desejo, como o surdo-
mudo e aprendiz de surfista do admirável "A Scene at the
Sea".
Os filmes de Kiarostami narram uma mesma história
fundamental, a busca obstinada de um único objeto, quase
sempre irrisório, um objeto de que se carece e é obtido por
compensação. O caçador de imagens de mãos abanando de
"O Vento Nos Levará" segue assim as pistas da criança
emblemática da obra-prima de Kiarostami, "Onde É a Casa
de Meu Amigo?". Este ia e vinha para devolver o caderno
que, por engano, tomara emprestado a seu colega,
renunciava a tal propósito diante da porta da casa afinal
encontrada e fazia, ali mesmo, os deveres do amigo no
caderno. David Lynch, por sua vez, habituou seu público a
histórias bem diversas. A própria balada do velhote assume
ares de um parêntese ou de uma conversão numa filmografia
povoada de crimes e violência, de monstros e guerras
interplanetárias.
Essa conversão e essa conjunção dão evidentemente o que
pensar. O que elas opõem, exatamente, às grandes manobras
da globalização e às grandes trombetas da entrada de um
novo milênio, presidido pela velocidade agora sem entraves
da circulação de capitais e da comunicação eletrônica?
A primeira suspeita é que essas histórias de obstinada
lentidão ou de compensações do desejo, essas longas
travessias dos campos de trigo do Curdistão ou dos campos
de milho de Iowa, esses reencontros com as tradições
ancestrais do vilarejo iraniano ou com os personagens
pitorescos e ardorosos do Meio-Oeste americano compõem
um hino passadista. A resistência aos grandes cenários da
globalização triunfante assumiria neles o tom de uma
nostalgia ambígua, e a exaltação da natureza, a afirmação do
"small is beautiful" e a "sabedoria oriental" exaltariam ao
mesmo tempo o yakuza desajustado, a mulher velada do
vilarejo iraniano e os valores familiares da América
profunda.
Não é isso, porém, que está em jogo nas contraficções do
último ano do século. O Meio-Oeste americano abrasador de
Lynch é assombrado por seus fantasmas, quer se trate dos
dramas da pobreza, quer das histórias de uma Guerra
Mundial, evocada aqui por dois veteranos sob sua face
menos gloriosa.
O vilarejo curdo não é o local de um aprendizado tranquilo
de valores ancestrais, mas o de uma tensão violenta que
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reflete as próprias condições de sua filmagem. Para rodar


esse filme, que tem por único tema a impossibilidade de
realizar um filme, Kiarostami não teve somente de perturbar
as ocupações do vilarejo e afrontar suas tradições. Ele
também obrigou os atores amadores, escolhidos no local, a
decorar os papéis de uma ficção que não se parecia com nada
daquilo que, pare eles, era uma ficção.

Renúncia ficcional
Assim, as formas improvisadas do cinema-verdade, a figura
cinéfila do filme sobre o filme e a estética da balada ao estilo
nouvelle vague instituem, com o vilarejo-objeto e os atores-
sujeitos, uma relação de violência simbólica que a renúncia
ficcional do personagem não soluciona. Não é, portanto,
alguma ideologia ecológico-zen e neotradicionalista que
esses filmes de 1999 opõem às trombetas milenaristas e à
embriaguez da velocidade triunfante. Isso porque os temas
da velocidade e da direção não dependem de uma decisão
ideológica. Dependem de uma decisão artística. A questão
não é que o cinema tome partido dos desfavorecidos. Há
tempos existem gêneros cinematográficos que lhes são
devotados. Trata-se de outra coisa: que o cinema retrace a
linha que separa suas imagens, seus sons e seu movimento
próprios das formas dominantes da circulação dos bens, das
imagens e das palavras, que ele redescubra e reexplore os
seus próprios poderes. Ora, são precisamente esses poderes
que só subsistem por serem sem trégua limitados,
contrariados, reconduzidos a uma certa impotência. À
ubiquidade comunicacional o cinema opõe suas estratégias
de separação e rarefação de imagens e de sons. Foi assim que
o cinema contemporâneo reaprendeu as virtudes do plano
que revela e oculta, em detrimento daquelas do movimento
da câmera que repõe ao alcance dos personagens e
espectadores aquilo que lhes fugia ao domínio. Obstinada, a
câmera de Kiarostami permanece atrás da janela que nos
encobre a velha senhora que tarda em morrer. Ela separa o
universo sonoro dos repórteres e as imagens que eles foram
buscar, privando ironicamente de todo rosto as vozes
impacientes dos assistentes do cineasta. Ela define assim, a
meio caminho entre a promessa técnica da visibilidade total
e as interdições religiosas, a visibilidade própria do cinema.
A câmera de David Lynch, esta não desdenha o movimento.
Mas ela não retorna a uma simples sintaxe de objetos que se
alternam em retroprojeção ou de panorâmicas que sublinham
a implacável e infinita progressão do homem-roçadeira e
preparam as acelerações que suas paradas conferem à
palavra que sondará o reverso doloroso do belo livro de
imagens.

Som e fúria
A arte de Kitano, enfim, é de retardar até a paralisia os
movimentos dos homens de som e de fúria e lançar, em
contrapartida, a improváveis órbitas de velocidade e de
sucesso os canhestros e os incapazes. E, na junção dessa
aceleração e desse retardamento, ela reencontra um potencial
do cinema mudo: a força dessa impecável aliança entre o
mecânico e o humano, aliança de uma dupla potência e uma
dupla impotência, que fez a glória do cinema burlesco dos
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Chaplin e dos Keaton.


Não há virtude artística particular à lentidão ou à miudeza. A
virtude da arte é de mudar as velocidades, as dimensões e as
direções, de desviar as trajetórias e as esperas. Chegada a
hora dos balanços de fim de século e das grandes
negociações planetárias, ouvimos grandes vozes patéticas
exigirem que as obras de arte se subtraiam à infâmia do
comércio e às vulgaridades da comunicação.
Na verdade, nenhuma linha preestabelecida separa os
produtos da arte daqueles do comércio. A separação é
sempre local e pontual. Ela se produz a cada vez, ou não, na
escolha de uma cena lenta ou rápida, no liame sugerido ou
omitido de imagens e sons, na repartição arrojada daquilo
que a imagem oferece e o que ela oculta. Como dizia Gilles
Deleuze, tudo se resume a "ganhar um pouco de tempo e de
espaço". O mesmo filósofo opunha aos grandes discursos do
começo e do fim a necessidade de tomar as coisas pelo meio.
Essa é talvez a lição desses filmes que, em contradição com
toda a febre de entusiasmo ou de desespero milenarista,
ocupam-se simplesmente em dar continuidade ao cinema.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso" e "O Desentendimento", entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores".
Tradução de José Marcos Macedo.

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