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A virtude da arte é mudar velocidades, dimensões e
direções, desviar trajetórias e esperas
Longe de Seattle
JACQUES RANCIÈRE
Viagem insana
Persistir na linha reta de uma viagem insana, traçar curva
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05/09/2020 Folha de S.Paulo - + autores - Jacques Rancière: Longe de Seattle - 19/12/1999
Renúncia ficcional
Assim, as formas improvisadas do cinema-verdade, a figura
cinéfila do filme sobre o filme e a estética da balada ao estilo
nouvelle vague instituem, com o vilarejo-objeto e os atores-
sujeitos, uma relação de violência simbólica que a renúncia
ficcional do personagem não soluciona. Não é, portanto,
alguma ideologia ecológico-zen e neotradicionalista que
esses filmes de 1999 opõem às trombetas milenaristas e à
embriaguez da velocidade triunfante. Isso porque os temas
da velocidade e da direção não dependem de uma decisão
ideológica. Dependem de uma decisão artística. A questão
não é que o cinema tome partido dos desfavorecidos. Há
tempos existem gêneros cinematográficos que lhes são
devotados. Trata-se de outra coisa: que o cinema retrace a
linha que separa suas imagens, seus sons e seu movimento
próprios das formas dominantes da circulação dos bens, das
imagens e das palavras, que ele redescubra e reexplore os
seus próprios poderes. Ora, são precisamente esses poderes
que só subsistem por serem sem trégua limitados,
contrariados, reconduzidos a uma certa impotência. À
ubiquidade comunicacional o cinema opõe suas estratégias
de separação e rarefação de imagens e de sons. Foi assim que
o cinema contemporâneo reaprendeu as virtudes do plano
que revela e oculta, em detrimento daquelas do movimento
da câmera que repõe ao alcance dos personagens e
espectadores aquilo que lhes fugia ao domínio. Obstinada, a
câmera de Kiarostami permanece atrás da janela que nos
encobre a velha senhora que tarda em morrer. Ela separa o
universo sonoro dos repórteres e as imagens que eles foram
buscar, privando ironicamente de todo rosto as vozes
impacientes dos assistentes do cineasta. Ela define assim, a
meio caminho entre a promessa técnica da visibilidade total
e as interdições religiosas, a visibilidade própria do cinema.
A câmera de David Lynch, esta não desdenha o movimento.
Mas ela não retorna a uma simples sintaxe de objetos que se
alternam em retroprojeção ou de panorâmicas que sublinham
a implacável e infinita progressão do homem-roçadeira e
preparam as acelerações que suas paradas conferem à
palavra que sondará o reverso doloroso do belo livro de
imagens.
Som e fúria
A arte de Kitano, enfim, é de retardar até a paralisia os
movimentos dos homens de som e de fúria e lançar, em
contrapartida, a improváveis órbitas de velocidade e de
sucesso os canhestros e os incapazes. E, na junção dessa
aceleração e desse retardamento, ela reencontra um potencial
do cinema mudo: a força dessa impecável aliança entre o
mecânico e o humano, aliança de uma dupla potência e uma
dupla impotência, que fez a glória do cinema burlesco dos
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