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05/09/2020 Folha de S.Paulo - Autor morto ou artista vivo demais?

- 06/04/2003

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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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Impessoalidade da criação anunciada pela revolução


técnica radicalizou a noção de autoria e transformou a
arte em uma negociação entre proprietários de idéias e de
imagens

AUTOR MORTO OU ARTISTA


VIVO DEMAIS?
Jacques Rancière

Desta vez, o autor estaria realmente morto. Há 30 anos os


filósofos já teriam pronunciado sua sentença de morte teórica
ao destruir o fundamento de sua pretensão, a concepção do
sujeito mestre e proprietário de seus pensamentos. Era a
época em que os artistas pop, com seus retratos de "stars" ou
suas latas de sopa em série, destruíam o privilégio da obra
única. Depois vieram: a arte das instalações em que o artista
geralmente se contenta em redispor objetos de uso e imagens
já existentes; a prática dos DJ mixando elementos sonoros
tomados de composições existentes, a ponto de torná-las
impossíveis de reconhecer; e por fim a revolução
informática, instaurando a reprodutibilidade sem controle e
ilimitada de textos, canções e imagens. Assim parece
desfazer-se o que constituía o conteúdo mesmo da noção de
obra: a expressão da vontade criadora de um autor numa
materialidade específica trabalhada por ele, singularizada na
figura da obra, erigida como original distinto de todas as suas
reproduções. A idéia de obra torna-se radicalmente
independente de toda elaboração de uma matéria particular.

Monte de papéis velhos


"A Salle des Martin" [Sala dos Martin] de Bertrand Lavier
expõe 50 pinturas executadas por autores de nome Martin.
Nenhuma dessas pinturas desempenha mais o papel de obra
original. A originalidade da obra passou para a idéia,
imaterial nela mesma, dessa reunião. Qualquer acúmulo de
materiais pode então tomar seu lugar, por exemplo o monte
de papéis velhos, elemento de uma instalação de Damien
Hirst, que um funcionário de museu londrino, preocupado
com limpeza, lançou inoportunamente ao cesto de lixo. Essa
indistinção, que torna indiferente todo material, é tentador
aproximá-la da que transforma discursos, imagens ou
músicas em bits de informação. Com a revolução
informática, toda materialidade, dizem, transforma-se em
idealidade. As idéias, imagens e músicas, igualmente
digitalizadas, correm livremente de tela em tela, zombando
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dos que querem afirmar sobre elas o direito dos proprietários.


Assim desapareceria o princípio mesmo do privilégio do
autor: a diferença entre os meios de criação e as máquinas de
reprodução.

Neocomunismo
Alguns vêem nisso a força do cérebro-mundo ou da
máquina-mundo, que faz voar em pedaços a propriedade e a
dominação. Os proletários de todo o mundo não se uniram
para enterrar a dominação burguesa, mas a revolução técnica
teria confirmado, em detrimento da propriedade intelectual e
artística, a outra grande profecia do "Manifesto Comunista":
"Tudo o que é sólido desmancha no ar". Substituindo os
produtores enfraquecidos, as máquinas de reprodução
trabalhariam por um comunismo inédito, ao tornarem toda
realidade imaterial e, portanto, inapropriável.
Essa fé nas virtudes comunistas da técnica não deixa de ser
problemática. Nem os engenheiros nem os juristas carecem
de meios para reformular os direitos da propriedade e
inventar programas próprios a fazê-la respeitar. Mais que
isso, porém, a reprodutibilidade técnica não tem nenhuma
consequência evidente sobre o estatuto conceitual do autor.
Nos anos 1930, Walter Benjamin via nas condições
industriais da produção e da difusão cinematográficas o
princípio de uma arte liberada da "aura" da obra única.

O autor contemporâneo é mais


estritamente proprietário do que
jamais o foi qualquer autor

A profecia não se verificou, muito pelo contrário: no


momento mesmo em que Broodthaers, Beuys e os artistas do
grupo Fluxus ridicularizavam a arte de museu, nos anos
1960, os jovens radicais dos "Cahiers du Cinéma"
consagravam a "política dos autores". E, quando os próprios
museus se converteram à prosa das instalações, as
"História(s) do Cinema" de Godard recolheram a sacralidade
do museu imaginário de Malraux. Não obstante a
multiplicidade das exigências de produção e das
colaborações artísticas e técnicas que um filme supõe, o
"diretor" de cinema se tornou a encarnação exemplar do
autor que põe sua marca em sua criação.
Certamente, a confiança excessiva nos efeitos da revolução
técnica decorria ela própria de uma visão um pouco simplista
do autor. É uma opinião aceita que a modernidade literária e
artística desde o romantismo esteve ligada ao
desenvolvimento do culto do autor, nasceu simultaneamente
aos direitos de mesmo nome, simultaneamente também ao
individualismo da "revolução burguesa".
Em consequência, tudo o que contradiz esse privilégio, das
imagens em série de "stars" ou de produtos comerciais da era
pop às piratarias da era digital, tudo isso é posto na conta de
uma revolução pós-moderna que teria destruído, se não os

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direitos jurídicos da propriedade, ao menos as ilusões


modernistas da originalidade artística associadas ao mito do
autor proprietário.
Mas as relações entre o autor, o proprietário e a pessoa são
infinitamente mais complexas. A consagração do gênio
literário não nasceu, no final do século 18, das iniciativas de
[Pierre Augustin de" Beaumarchais [dramaturgo francês,
autor de "As Bodas de Fígaro", de 1784] em favor do direito
de autor nem das ofensivas do "individualismo burguês".
Nasceu, ao contrário, do afinco dos filólogos dessa época em
despojar Homero da paternidade de sua obra, em fazer desta
a expressão anônima de um povo e de um tempo. A idéia
moderna de autor nasceu simultaneamente à da
impessoalidade da arte. É essa equivalência entre o autor e a
força anônima que o atravessa que, na época romântica, o
conceito de gênio exprimiu. E os representantes supostos da
arte pela arte e do culto do artista não cessaram, como
Flaubert, de exprimir a radical impessoalidade da arte ou,
como Mallarmé, de afirmar que o poeta estava
necessariamente "morto como tal".
Essa idéia jamais impediu algum artista de reclamar seus
direitos de autor. Mas ela definiu um desdobramento da idéia
de propriedade, um vínculo singular entre propriedade e
impropriedade. Cerca de dois séculos antes que Sherrie
Levine [pintor americano, nascido em 1947] produzisse obra
fotografando as fotografias de Walker Evans, os irmãos
Schlegel haviam posto na ordem do dia dos poetas
românticos a repoetização dos poemas clássicos. Nesse meio
tempo, os surrealistas demonstraram que as expressões mais
pessoais do absoluto do desejo e do sonho podiam coincidir
com a reciclagem das mercadorias fora de uso ou das
ilustrações de revistas e catálogos antiquados. O autor
absoluto e impessoal é aquele que tem à sua disposição um
patrimônio da arte, extensível a todo e qualquer objeto.
Uma solidariedade afirmou-se assim entre a impessoalidade
do processo artístico e a indiferença de seus temas, tomados
da impessoalidade da vida comum. Walter Benjamin mostrou
como a fotografia havia se tornado arte ao renunciar a
compor quadros, para apropriar-se da imagem dos anônimos.
A fotografia da pequena pescadora de New Haven, diz ele,
fez mais pela glória de David Octavius Hill do que suas
grandes composições pictóricas. Desse modo, a fotografia
pôs-se na esteira de uma revolução literária que, com
Flaubert, assimilara o absoluto de um livro, mantido apenas
por seu estilo, à impessoalidade captada da linguagem, do
sonho e da vida dos indivíduos comuns. O culto da arte
nasceu com a afirmação do esplendor do anônimo.
Num certo sentido, pode-se dizer que as performances e
instalações da arte contemporânea levam a sua extrema
consequência a impessoalidade da criação e a indiferença de
seu material. As imagens furtivamente obtidas por Sophie
Calle em quartos de hotel seriam assim a versão
contemporânea do "Journal d'une Femme de Chambre"
[Diário de uma Camareira, romance de Octave Mirbeau,
1900" e, de maneira mais ampla, do sonho romanesco de
entrar na vida de qualquer pessoa.
Mas talvez essa consequência aparente oculte uma inversão
de lógica que subverte a noção de autor de um modo
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completamente diferente de como se costuma descrever: não


fazendo tal noção desaparecer na banalidade das coisas e na
infinidade das reproduções, mas, ao contrário, aproximando-
a da propriedade pessoal da idéia. A idéia flaubertiana da
obra absoluta obrigava o romancista a identificar os
esplendores de sua frase à reprodução da banalidade do
mundo. A idéia do artista contemporâneo, ao contrário,
retira-se em sobrevôo em relação ao trabalho de sua
realização. Christian Boltanski não tem necessidade de fixar
ele próprio na parede as fotografias anônimas que forram
suas salas de exposição. E Lawrence Weiner não tem
necessidade de pegar um instrumento para abrir numa parede
de museu o minúsculo buraco que constitui sua quase
imaterial contribuição a uma recente exposição.
O que se perde então não é nem a personalidade do autor
nem a materialidade da obra. É o trabalho pelo qual essa
personalidade se alterava nessa materialidade. A retirada da
obra em direção à idéia não anula a realidade material da
obra. Mas ela tende a transformar a propriedade paradoxal da
obra impessoal em propriedade lógica de uma patente de
inventor. Nesse sentido, o autor contemporâneo é mais
estritamente proprietário do que jamais o foi qualquer autor.
Mas isso quer dizer que se rompeu o pacto entre a
impessoalidade da arte e a de seu material. Enquanto a
primeira se aproxima da propriedade da idéia, a segunda
tende a se deslocar para a propriedade da imagem.
Gerações de fotógrafos fizeram arte captando, nas ruas das
grandes metrópoles, as festas de bairro ou então cenas
populares, as ocupações cotidianas ou os prazeres
extraordinários dos anônimos. Hoje, esses anônimos são
chamados a fazer-se reconhecer, a reclamar, em vez da
imortalização da arte, direitos mais tangíveis sobre a
propriedade da imagem que lhes foi subtraída.
A propriedade não se dissolve na imaterialidade da rede. Ao
contrário, ela tende a pôr sua marca em tudo o que é
suscetível de entrar na arte, a fazer da arte uma negociação
entre proprietários de idéias e proprietários de imagens.
Certamente é por isso que a autobiografia, que faz coincidir
as duas propriedades, adquire tanta importância na arte de
nosso tempo. Pense-se nos escritores que, em realidade, não
publicam mais do que o interminável diário de sua vida e de
seus pensamentos; nos fotógrafos que privilegiam sua
própria imagem, como Cindy Sherman, ou as cenas de
intimidade dos amigos, como Nan Goldin; nos cineastas que,
como Nanni Moretti [diretor de filmes como "O Quarto do
Filho", de 2001", reduzem seu trabalho sobre a época à
crônica de sua própria vida; aos artistas instaladores que,
como Mike Kelley ou Annette Messager, tendem a povoar
suas obras com os bichos de pelúcia de suas fantasias em vez
dos objetos e imagens desviados do mundo.
O autor por excelência seria então, atualmente, aquele cuja
idéia é explorar o que lhe pertence como algo próprio, sua
própria imagem. O autor não seria mais o "espiritual
histrião" de que falava Mallarmé, mas o comediante de sua
imagem. A arte do comediante tende sempre a um limite que
é a transformação do simulacro em realidade. Ocupada em
remodelar fisicamente o próprio rosto, Orlan [artista plástica
francesa, nascida em 1947] seria, nesse sentido, a artista
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típica de nosso tempo. No tempo da digitalização universal,


o "morto" de que falava Mallarmé parece ainda bastante
vivo. Um pouco vivo demais, justamente.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" (ed. 34). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.

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