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“mercado de arte” atual, e o trecho acima, retirado da trigésima quarta edição da Revista da
quaisquer outros vocábulos similares. Entramos, pois, num insidiosíssimo terreno, mas difícil
seria a qualquer contemporâneo aspirante a pensador não sentir-se instigado a vasculhar essa
exorbitância toda.
afirma que “o valor não traz escrito na fronte o que ele é. Longe disso, transforma cada
produto do trabalho num hieroglifo social” (MARX, 1985, p.83). Se encararmos a arte como
trabalho humano que transforma a natureza (cf. FISCHER, 1959), a afirmação de Marx parece
contemplar a questão inerente às somas astronômicas logo acima. Afinal, sabemos de quais
obras se fala e temos alguma noção de quanto representam as respectivas cifras a elas
associadas, mas só. A junção destas com aquelas converte-se em letra ilegível. Qual a natureza
Britânicos), autor do supracitado Bezerro de ouro, é uma das principais figuras desse mundo. E
tem produzido muitos hieroglifos sociais. Ainda no início da década de 1990 era um jovem
desconhecido, até que o influente colecionador Charles Saatchi, também dono de uma galeria
instalação que consistia numa cabeça de vaca em decomposição rodeada por larvas e moscas
num contêiner de vidro chamou a atenção de Saatchi, que passou a patrocinar o artista.
Rapidamente a cotação de suas obras disparou. Hirst permaneceu abordando o tema morte, e
ficaria famoso pelas gigantescas instalações com cadáveres de animais (vaca, ovelha, zebra)
mergulhados em formol. Tendo em vista uma reflexão crítica acerca desse tipo de
controversas afirmações. Sobre o evento de 2008 que lhe rendera 198 milhões de dólares,
afirmou em entrevista: “Sempre achei que dinheiro é uma ferramenta fantástica para fazer as
pessoas levarem você a sério (...) Algo que adorei depois do leilão foi andar no centro
comercial de Londres e ser reconhecido por homens de negócios. Eu nunca havia tido isso
antes”. E Hirst, assim como outros colegas contemporâneos, não deixa mesmo de encarar a
arte como investimento: ouro nos chifres desse bezerro e milhares de libras em diamantes
incrustados numa caveira são apenas alguns exemplos de suas extravagâncias. Mas o primeiro
homem de negócios a reconhecê-lo não estava entre aqueles dos quais fala; foi, na verdade, o
tanto de Hirst2 em início de carreira quanto do grupo do qual o artista fazia parte, o Young
British Artists, Saatchi, antes de dedicar-se exclusivamente ao business art, ganhara a vida
1
Nome dado a um grupo de artistas ingleses e que começaram a expor juntos em Londres, 1988.
2
Mais tarde os dois romperiam relações.
como marqueteiro, fora inclusive o responsável pela campanha que elegera Margaret
Thatcher!
Se pensarmos nos extremos propostos por Bourdieu em As regras da arte (1992) para
estaríamos nos aproximando cada vez mais do segundo polo3. Não apenas pelos valores em si.
Mas justamente pelas leis, procedimentos e posturas em jogo. Não à toa o autor da citação
inicial mescla comentários sobre arte e crise do capital. Fica sugerida também a crise da arte,
pois mesmo em plena crise financeira mundial, parece que ela, a arte, apresenta-se como um
Responder à questão sobre qual é a função da arte jamais terá sido tarefa simples,
entretanto talvez valesse a pena visitarmos, ainda que en passant, alguns intelectuais que
refletiram profundamente sobre o tema. Ernst Fischer (1959) lembra que para Aristóteles a
arte, no caso a representação dramática, tinha como função a catarse daquele que a
contemplava; segundo Brecht, ela deveria conter em si algo que apelasse à razão do
espectador, levando-o a uma decisão e uma ação concreta na sociedade; quanto ao próprio
Fischer, afirma que “a raison d’être da arte nunca permanece inteiramente igual” e também
que “nela há algo de verdade imutável” (FISCHER, 1963, p.14), remetendo-nos a Baudelaire em
O pintor da vida moderna (1863), para quem a arte de toda época, tendo como objetivo o
belo, precisa combinar algo de eterno e algo de efêmero em sua composição. Baudelaire, por
sua vez, era herdeiro dos românticos, os “primeiros modernos” segundo ele próprio. E se
pensamos nos primeiros românticos alemães, temos uma corrente de poetas que valoriza na
3
Lembrando que para Bourdieu não há obra que toque este ou aquele polo proposto. Há tendências
maiores ou menores em relação a cada polo.
Eis o nó. Em tempos de uma cama desarrumada rodeada por preservativos usados4,
um cachorro preso deixado à míngua até morrer5 ou um tubarão tigre conservado em formol6
sendo expostos como arte, cabe o questionamento sobre se predominam nesses gestos
panorama, em publicação recente, o jornalista brasileiro Luciano Trigo com seu A grande feira:
preocupações genuinamente estéticas da arte em evidência nos dias de hoje. Trigo combate o
desenhar um bigode na Mona Lisa (1919) e apresentá-los como peças de arte, é porque isso
nunca havia sido feito antes, tratava-se de um gesto revolucionário rompendo com as
convenções então vigentes e que culminaria nas experimentações conceituais dos abstratos,
obras, teriam sido também os promotores da abertura a todo tipo de impostura do artista e
4
Trata-se da instalação My bed, de Tracey Emin. A ideia fora rapidamente acolhida e difundida por
Charles Saatchi.
5
Instalação do nicaraguense Guillermo Vargas Habacuc.
6
The Physical Impossibility Of Death In the Mind Of Someone Living (Impossibilidade física da morte na
mente de alguém vivo), obra de Damien Hirst, 2004.
relacionais, das quais fazem parte os marchands, colecionadores, galeristas,
diretores de museus e uma versão domesticada de críticos, teóricos e historiadores
da arte, também submetidos, como os artistas, às pressões do sistema (TRIGO,
2009, p.64)
mediação da crítica. Trigo passa então ao ataque ferrenho às “bizarrices vazias de sentido”
apresentadas como arte bienal após bienal, exposição após exposição, leilão após leilão.
Estaríamos num jogo de poder em que a obra pouco importa enquanto objeto estético: vale
mais sua capacidade – previamente planejada, aliás (pelo artista também, mas sobretudo pelo
mercadoria de alta cotação e circular numa espécie de bolsa de valores da arte. Ter-se-ia
conservado do artista a imagem de rebelde, mas as obras seriam não mais “produção” artística
e sim “reprodução” de gestos desgastados, tendo a arte deixado de lado seu olhar crítico sobre
a sociedade, ou seja, tendo sido assimilada pelas regras do jogo monetário capitalista.
crítica que vá no sentido de contestar esse tipo de arte, por outro lado, Luciano Trigo parece
entretenimento hollywoodiana e de nomes como Paulo Coelho, com suas fórmulas de sucesso
Substitui-se a busca pelo “novo”, tão cara aos românticos e a Baudelaire pela busca incessante
combinada com algo de eterno na composição do belo, essa “novidade” é efêmera: tem mais a
ver com a lógica da substituição própria das relações de mercado, que tem como foco a
Estamos aqui muito próximos do pensamento de Guy Debord, que em seu livro A
compreender a época e rebelar-se contra o sistema capitalista que a rege. Segundo o autor,
para sacudir a sociedade estabelecida, seria preciso formular uma teoria que a explique. Guy
mercadoria ocupou totalmente a vida social” (DEBORD: 1997, p.30). Debord atualiza Marx.
Enquanto este, percebendo muito bem o avanço do capitalismo industrial em sua época, abre
o Capital dizendo que a felicidade da humanidade está então identificada com o fetichismo e
espetáculo: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção
acopla-se a supervalorização do parecer. O autor vai então deixando clara sua preocupação
com a hipnose imagética em que está imersa a sociedade controlada pela mídia, pela
propaganda. Seria algo como o reino da falsidade. O planeta tornara-se um imenso mercado
de imagens. São criadas, vendidas e veiculadas pelos grandes ícones da mídia imagens de
rebeldes, contestadores. Mas tudo não passa de ilusão para manter fiel o alienado. Constrói-se
globalizado, alienante por natureza, tivesse conseguido aniquilar até mesmo aquela que
historicamente o criticou e combateu, a arte. Ou seja, não é que não haja mais produção
artística de qualidade, mas esta ou fica fora de cena ou, assimilada pelo mercado, perde sua
força enquanto arte propriamente para tornar-se alvo de lances em leilões, onde é vista por
colecionadores de egos inflados não como objeto estético, mas como possibilidade de
revenda, lucro. Nessa lógica espetacular, mais valerá aparecer como artista, celebridade, do
que ser artista; mais valerá apresentar a imagem de arte propagandeada pelo mercado do que
uma obra que coloque em questão este mesmo mercado. E que símbolo maior para o triunfo
do espetáculo do que vender (e vender caro!) a falsa imagem da arte, enquanto com seu
poder midiático ditatorial sufoca a genuína rebeldia, sem dar vez à arte que permanece arte?
conhecida marca de vodka Absolut ter sido convidada em 2003 como expositora oficial da
Bienal de Veneza, logo após ter fechado um contrato com diversos artistas para que estes se
responsabilizassem pelo design de suas garrafas. Dentre estes artistas estava Damien Hirst,
produzindo por encomenda itens de coleção estritamente mercadológicos. Parece mesmo que
nesse campo aqui brevemente trabalho, continuam ressoando e dando o tom geral as palavras
proferidas pelo “artista” Andy Warhol: “Ser bom nos negócios é o mais fascinante tipo de arte.
Ganhar dinheiro é arte e trabalhar é arte e um bom negócio é a melhor arte” (apud TRIGO,
2009, p.23).
comprometida com a reflexão estética continue sendo produzida, aquela arte definida por
que serve” (apud FISCHER, 1959, p.8). A frase manifesta um tipo de valor fundamental, mas a
um só tempo “sem serventia”, não utilitário. Ou seja, um valor que, apesar de não ignorar, não
possibilite sacudir a sociedade, com uma intrínseca intenção perturbadora. Perturbadora, mas
não espetacular, sensacionalista. Que indague e não apenas se reafirme numa postura
narcisista alienada e alienante. Algumas das obras aqui citadas podem até ser maneiras de se
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
MARX, Karl. O Capital (vol. I). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
TRIGO, Luciano. A grande feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea. Rio de
Web
CAIADO, Pedro. O preço da arte. Revista da Cultura (Ed. 34). Disponível em:
jun 2012.