Você está na página 1de 8

Adriano Lacerda de Souza Rolim RA 058553

Mestrado TL_disciplina LITERATURA, CULTURA E MÍDIA


Professor Francisco Foot Hardman
Trabalho final

A arte, o gesto e o espetáculo

Nova York, setembro de 2008: estoura a bolha do crédito americano. O anúncio da


falência da empresa financeira Lehman Brothers culminou numa recessão
econômica mundial. Londres, setembro de 2008: por US$ 15 milhões é vendida a
obra Bezerro de Ouro, do britânico Damien Hirst, na casa de leilões Sotheby’s. A
peça expõe um animal morto e mantido sob formol adornado com chifres e patas
de ouro 18 quilates. O leilão foi assistido por milhares de visitantes e massivamente
comentado, fechando em US$ 198 milhões em apenas dois dias. Um sucesso muito
além das expectativas: quebrou o recorde de vendas para um leilão de um único
artista. O momento marcou o início de uma crise econômica global e também,
profundamente, o mercado da arte contemporânea, levantando a questão: qual é
o valor da arte?

Evocássemos as relações entre arte e mercado ou mesmo as relações próprias do

“mercado de arte” atual, e o trecho acima, retirado da trigésima quarta edição da Revista da

Cultura, aceitaria de muito bom grado as alcunhas de emblemático, exemplar, sintomático ou

quaisquer outros vocábulos similares. Entramos, pois, num insidiosíssimo terreno, mas difícil

seria a qualquer contemporâneo aspirante a pensador não sentir-se instigado a vasculhar essa

exorbitância toda.

E já que se falou em “valor”, podemos recorrer a quem magistralmente tratou do

tema. Karl Marx, ao apresentar o que chamou de “fetichismo da mercadoria” no Capital,

afirma que “o valor não traz escrito na fronte o que ele é. Longe disso, transforma cada

produto do trabalho num hieroglifo social” (MARX, 1985, p.83). Se encararmos a arte como

trabalho humano que transforma a natureza (cf. FISCHER, 1959), a afirmação de Marx parece

contemplar a questão inerente às somas astronômicas logo acima. Afinal, sabemos de quais

obras se fala e temos alguma noção de quanto representam as respectivas cifras a elas
associadas, mas só. A junção destas com aquelas converte-se em letra ilegível. Qual a natureza

de tais valores no mundo da arte?

O polêmico Damien Hirst, integrante do Young British Artists1 (Jovens Artistas

Britânicos), autor do supracitado Bezerro de ouro, é uma das principais figuras desse mundo. E

tem produzido muitos hieroglifos sociais. Ainda no início da década de 1990 era um jovem

desconhecido, até que o influente colecionador Charles Saatchi, também dono de uma galeria

de arte em Londres, o descobriu através da exposição Freeze em 1991 na Inglaterra. Uma

instalação que consistia numa cabeça de vaca em decomposição rodeada por larvas e moscas

num contêiner de vidro chamou a atenção de Saatchi, que passou a patrocinar o artista.

Rapidamente a cotação de suas obras disparou. Hirst permaneceu abordando o tema morte, e

ficaria famoso pelas gigantescas instalações com cadáveres de animais (vaca, ovelha, zebra)

mergulhados em formol. Tendo em vista uma reflexão crítica acerca desse tipo de

manifestação artística, valeria a pena ressaltar a postura de Hirst em algumas de suas

controversas afirmações. Sobre o evento de 2008 que lhe rendera 198 milhões de dólares,

afirmou em entrevista: “Sempre achei que dinheiro é uma ferramenta fantástica para fazer as

pessoas levarem você a sério (...) Algo que adorei depois do leilão foi andar no centro

comercial de Londres e ser reconhecido por homens de negócios. Eu nunca havia tido isso

antes”. E Hirst, assim como outros colegas contemporâneos, não deixa mesmo de encarar a

arte como investimento: ouro nos chifres desse bezerro e milhares de libras em diamantes

incrustados numa caveira são apenas alguns exemplos de suas extravagâncias. Mas o primeiro

homem de negócios a reconhecê-lo não estava entre aqueles dos quais fala; foi, na verdade, o

próprio Saatchi, em 1991. Trata-se de outro “emblema”, se quisermos: principal patrocinador

tanto de Hirst2 em início de carreira quanto do grupo do qual o artista fazia parte, o Young

British Artists, Saatchi, antes de dedicar-se exclusivamente ao business art, ganhara a vida

1
Nome dado a um grupo de artistas ingleses e que começaram a expor juntos em Londres, 1988.
2
Mais tarde os dois romperiam relações.
como marqueteiro, fora inclusive o responsável pela campanha que elegera Margaret

Thatcher!

Se pensarmos nos extremos propostos por Bourdieu em As regras da arte (1992) para

analisar o campo artístico/literário, ou seja, de um lado uma arte pura, totalmente

independente do mercado e de outro a arte absolutamente subordinada às leis

mercadológicas, com Hirst, Saatchi, os Jovens Artistas Britânicos e outros contemporâneos

estaríamos nos aproximando cada vez mais do segundo polo3. Não apenas pelos valores em si.

Mas justamente pelas leis, procedimentos e posturas em jogo. Não à toa o autor da citação

inicial mescla comentários sobre arte e crise do capital. Fica sugerida também a crise da arte,

pois mesmo em plena crise financeira mundial, parece que ela, a arte, apresenta-se como um

projeto financeiro viável e altamente lucrativo. Seria esta a sua função?

Responder à questão sobre qual é a função da arte jamais terá sido tarefa simples,

entretanto talvez valesse a pena visitarmos, ainda que en passant, alguns intelectuais que

refletiram profundamente sobre o tema. Ernst Fischer (1959) lembra que para Aristóteles a

arte, no caso a representação dramática, tinha como função a catarse daquele que a

contemplava; segundo Brecht, ela deveria conter em si algo que apelasse à razão do

espectador, levando-o a uma decisão e uma ação concreta na sociedade; quanto ao próprio

Fischer, afirma que “a raison d’être da arte nunca permanece inteiramente igual” e também

que “nela há algo de verdade imutável” (FISCHER, 1963, p.14), remetendo-nos a Baudelaire em

O pintor da vida moderna (1863), para quem a arte de toda época, tendo como objetivo o

belo, precisa combinar algo de eterno e algo de efêmero em sua composição. Baudelaire, por

sua vez, era herdeiro dos românticos, os “primeiros modernos” segundo ele próprio. E se

pensamos nos primeiros românticos alemães, temos uma corrente de poetas que valoriza na

arte a sua capacidade de produzir crítica.

3
Lembrando que para Bourdieu não há obra que toque este ou aquele polo proposto. Há tendências
maiores ou menores em relação a cada polo.
Eis o nó. Em tempos de uma cama desarrumada rodeada por preservativos usados4,

um cachorro preso deixado à míngua até morrer5 ou um tubarão tigre conservado em formol6

sendo expostos como arte, cabe o questionamento sobre se predominam nesses gestos

realmente pretensões estéticas ou se estamos diante de exibições essencialmente

espetaculares, que querem unicamente causar polêmica, atraindo a atenção midiática em

busca de autopromoção. Sem analisar muito profundamente, mas apresentando interessante

panorama, em publicação recente, o jornalista brasileiro Luciano Trigo com seu A grande feira:

uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea, aponta justamente a ausência de crítica, de

preocupações genuinamente estéticas da arte em evidência nos dias de hoje. Trigo combate o

que chama de um conceitualismo dominante, cujas raízes estariam numa apropriação de

gestos contestadores absorvidos e transformados pela lógica do espetáculo.

Se no contexto de Marcel Duchamp, fazia sentido assinar um urinol (1917) ou

desenhar um bigode na Mona Lisa (1919) e apresentá-los como peças de arte, é porque isso

nunca havia sido feito antes, tratava-se de um gesto revolucionário rompendo com as

convenções então vigentes e que culminaria nas experimentações conceituais dos abstratos,

instalações e performances das décadas de 1960 e 1970. Entretanto, figuras como os

americanos Andy Warhol e Robert Rauschenberg, os principais responsáveis por uma

“reduchampização” da arte, ao se apropriarem de objetos alheios e imagens prontas em suas

obras, teriam sido também os promotores da abertura a todo tipo de impostura do artista e

todo tipo de esperteza do mercado:

Desde o final dos anos 1970, consolidou-se o processo de assimilação do sistema


da arte a uma lógica de mercado neoliberal – não limitada, é claro, ao jogo de
forças cego da oferta e da demanda, mas envolvendo também uma produção
incessante de signos, valores, gostos e modismos por redes simbólicas e

4
Trata-se da instalação My bed, de Tracey Emin. A ideia fora rapidamente acolhida e difundida por
Charles Saatchi.

5
Instalação do nicaraguense Guillermo Vargas Habacuc.

6
The Physical Impossibility Of Death In the Mind Of Someone Living (Impossibilidade física da morte na
mente de alguém vivo), obra de Damien Hirst, 2004.
relacionais, das quais fazem parte os marchands, colecionadores, galeristas,
diretores de museus e uma versão domesticada de críticos, teóricos e historiadores
da arte, também submetidos, como os artistas, às pressões do sistema (TRIGO,
2009, p.64)

Sintomático que desapareça, nesse contexto artístico mercantilizado, justamente a

mediação da crítica. Trigo passa então ao ataque ferrenho às “bizarrices vazias de sentido”

apresentadas como arte bienal após bienal, exposição após exposição, leilão após leilão.

Estaríamos num jogo de poder em que a obra pouco importa enquanto objeto estético: vale

mais sua capacidade – previamente planejada, aliás (pelo artista também, mas sobretudo pelo

curador, pelo colecionador, pelo marchand) – de chamar a atenção, estabelecer-se enquanto

mercadoria de alta cotação e circular numa espécie de bolsa de valores da arte. Ter-se-ia

conservado do artista a imagem de rebelde, mas as obras seriam não mais “produção” artística

e sim “reprodução” de gestos desgastados, tendo a arte deixado de lado seu olhar crítico sobre

a sociedade, ou seja, tendo sido assimilada pelas regras do jogo monetário capitalista.

Se, por um lado, os grandes nomes do mercado taxam de conservadorismo qualquer

crítica que vá no sentido de contestar esse tipo de arte, por outro lado, Luciano Trigo parece

ter alguma razão quando aproxima a arte contemporânea da indústria cinematográfica do

entretenimento hollywoodiana e de nomes como Paulo Coelho, com suas fórmulas de sucesso

baseadas não na reflexão estética, mas em discursos rasos e estratégias de marketing.

Substitui-se a busca pelo “novo”, tão cara aos românticos e a Baudelaire pela busca incessante

da “novidade”, que é novidade apenas na aparência, pois a estrutura da reprodução

permanece. Além disso, diferentemente do “novo” como parcela contemporânea a ser

combinada com algo de eterno na composição do belo, essa “novidade” é efêmera: tem mais a

ver com a lógica da substituição própria das relações de mercado, que tem como foco a

tendência, o consumo, a cultura de massa.

Estamos aqui muito próximos do pensamento de Guy Debord, que em seu livro A

sociedade do espetáculo (1973) faz de certa maneira uma convocação, no sentido de

compreender a época e rebelar-se contra o sistema capitalista que a rege. Segundo o autor,
para sacudir a sociedade estabelecida, seria preciso formular uma teoria que a explique. Guy

Debord nos apresenta a teoria do espetáculo. O espetáculo “é o momento em que a

mercadoria ocupou totalmente a vida social” (DEBORD: 1997, p.30). Debord atualiza Marx.

Enquanto este, percebendo muito bem o avanço do capitalismo industrial em sua época, abre

o Capital dizendo que a felicidade da humanidade está então identificada com o fetichismo e

acumulação das mercadorias, eis o que lemos no primeiro fragmento de A sociedade do

espetáculo: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção

se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. Enquanto em Marx vê-se a

passagem da valorização do ser para a valorização do ter, em Debord, à valorização do ter

acopla-se a supervalorização do parecer. O autor vai então deixando clara sua preocupação

com a hipnose imagética em que está imersa a sociedade controlada pela mídia, pela

propaganda. Seria algo como o reino da falsidade. O planeta tornara-se um imenso mercado

de imagens. São criadas, vendidas e veiculadas pelos grandes ícones da mídia imagens de

grandiosidade, heroísmo e felicidade eterna. No caso da arte, imagens de obras e artistas

rebeldes, contestadores. Mas tudo não passa de ilusão para manter fiel o alienado. Constrói-se

uma espécie de esperança perversa: vende-se a insatisfação disfarçada de satisfação,

perenizando-se o ciclo espetacular.

Voltando às contemporâneas manifestações artísticas, é como se o capitalismo

globalizado, alienante por natureza, tivesse conseguido aniquilar até mesmo aquela que

historicamente o criticou e combateu, a arte. Ou seja, não é que não haja mais produção

artística de qualidade, mas esta ou fica fora de cena ou, assimilada pelo mercado, perde sua

força enquanto arte propriamente para tornar-se alvo de lances em leilões, onde é vista por

colecionadores de egos inflados não como objeto estético, mas como possibilidade de

revenda, lucro. Nessa lógica espetacular, mais valerá aparecer como artista, celebridade, do

que ser artista; mais valerá apresentar a imagem de arte propagandeada pelo mercado do que

uma obra que coloque em questão este mesmo mercado. E que símbolo maior para o triunfo
do espetáculo do que vender (e vender caro!) a falsa imagem da arte, enquanto com seu

poder midiático ditatorial sufoca a genuína rebeldia, sem dar vez à arte que permanece arte?

Grande exemplo desse casamento entre arte e capital é o fato de a mundialmente

conhecida marca de vodka Absolut ter sido convidada em 2003 como expositora oficial da

Bienal de Veneza, logo após ter fechado um contrato com diversos artistas para que estes se

responsabilizassem pelo design de suas garrafas. Dentre estes artistas estava Damien Hirst,

produzindo por encomenda itens de coleção estritamente mercadológicos. Parece mesmo que

nesse campo aqui brevemente trabalho, continuam ressoando e dando o tom geral as palavras

proferidas pelo “artista” Andy Warhol: “Ser bom nos negócios é o mais fascinante tipo de arte.

Ganhar dinheiro é arte e trabalhar é arte e um bom negócio é a melhor arte” (apud TRIGO,

2009, p.23).

Resta-nos a esperança romântica de que, mesmo às escondidas, uma arte

comprometida com a reflexão estética continue sendo produzida, aquela arte definida por

Jean Cocteau ao falar de poesia: “A poesia é indispensável – se ao menos eu soubesse para

que serve” (apud FISCHER, 1959, p.8). A frase manifesta um tipo de valor fundamental, mas a

um só tempo “sem serventia”, não utilitário. Ou seja, um valor que, apesar de não ignorar, não

privilegiará as imposições mercadológicas. Algo que acompanhe a onda de Debord: que

possibilite sacudir a sociedade, com uma intrínseca intenção perturbadora. Perturbadora, mas

não espetacular, sensacionalista. Que indague e não apenas se reafirme numa postura

narcisista alienada e alienante. Algumas das obras aqui citadas podem até ser maneiras de se

expressar. Mas será que são arte?


Bibliografia

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

FISCHER, Ernst. A necessidade da Arte. Lisboa: Ulisseia, 1963.

MARX, Karl. O Capital (vol. I). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

TRIGO, Luciano. A grande feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

Web

CAIADO, Pedro. O preço da arte. Revista da Cultura (Ed. 34). Disponível em:

http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc34/index2.asp?page=capa. Acesso em: 15

jun 2012.

Você também pode gostar