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04/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores - Jacques Rancière: O cinema e a carne da história - 20/08/2000

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São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000

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+ autores
O cinema francês atual parece reencontrar as grandes
formas e os grandes temas tomados de empréstimo à
tradição romanesca
O cinema e a carne da história
Jacques Rancière

Haverá uma nova tendência no cinema francês? Acusaram-


no muitas vezes, nesses últimos tempos, de ser
"egocêntrico", de se comprazer com comédias de costumes e
de sociedade, feitas de pequenas notações sobre as mutações
imperceptíveis de um microcosmo social, em benefício de
uma pequena burguesia intelectual que nele contemplava
com narcisismo seus modos de ser, de falar e de agir. De
repente ele parece tomar distância, abandonar as histórias de
empresários tomados pela dúvida, de professores de filosofia
presas dos desejos de suas estudantes ou de casais que se
desfazem e se reformam, para reencontrar as grandes formas
e os grandes temas tomados de empréstimo à tradição
romanesca e à representação dos momentos fortes da história
nacional. Testemunhas disso são três filmes realizados
recentemente por três cineastas emblemáticos de uma certa
tradição do cinema francês autoral, herdeira da Nouvelle
Vague. "Les Destinées Sentimentales" (Os Destinos
Sentimentais), de Olivier Assayas, retoma a tradição das
histórias de família e de amor contra o pano de fundo das
reviravoltas do tempo, ilustradas particularmente pelo
Visconti do "Gattopardo". A província profunda, a grandeza
e a decadência da indústria de porcelana e a Primeira Guerra
Mundial servem de tela de fundo para uma história de amor
tirada de um romance de Jacques Chardonne, emblemática
da literatura dos anos 30. "Saint Cyr" (São Ciro), de Patricia
Mazuy, faz reviver a instituição que Madame de Maintenon
fundou nos anos 1680 para a educação de jovens pobres da
nobreza. Enfim, "Sade", de Benoît Jacquot, imagina um
episódio privilegiado da vida do marquês: sua detenção
numa casa de saúde para aristocratas protegidos no tempo do
Terror. Será uma conjunção circunstancial ou o índice de um
"retorno" equívoco à tradição? Alguns já falam, a propósito
dessa volta a filmes de costumes, de um "novo
academicismo". Como se, apartando-se das histórias de
família e de sociedade à Rohmer ou à Rivette, o cinema
francês negasse também o legado da modernidade narrativa e
cinematográfica. E certamente existe algo de emblemático
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em "Les Destinées Sentimentales" que alinha as "cenas a


fazer" e desfila seus heróis e heroínas numa paisagem de
cartão-postal da belle époque: baile no castelo, vindimas,
idílio suíço, cenas de trabalho na fábrica e manifestação
operária, hospitais da Grande Guerra. Mas o símbolo está
talvez ainda mais na própria ficção. Um filho de industrial da
porcelana que escolhera a pobreza, a vocação de pastor e
depois a solidão acaba por ceder ao apelo da família e
retoma a fábrica paterna, onde se esmera, porém, em fazer de
seus serviços de mesa obras-primas da arte, à antiga. Aí se
veria de bom grado a parábola de um cinema herdeiro da
Nouvelle Vague, renunciando à austeridade de Godard e ao
intimismo de Rohmer para manter, dentro da própria
moldura da indústria cinematográfica mundializada, a
tradição artesanal do cinema autoral.

Retorno vazio
Contudo não é o gosto pelas belas imagens e pelas
fotografias amareladas que inspira esse recurso à história.
Não é também o cuidado de fugir das materialidades do
presente rumo aos esplendores de um mundo desaparecido.
O retorno à história opõe-se raramente às exigências,
estéticas e políticas, do presente. Nos anos 70, o cinema
francês já conhecera tal enlevo. Na época era claro o que
estava politicamente em jogo. No dia seguinte a 68, a
esquerda contestada e os esquerdistas contestadores batiam-
se pelo legado dos trabalhos, das penas e dos combates do
povo. Ao mesmo tempo, faziam furor as obras de
historiadores ou etnólogos consagradas a tais vidas
anônimas, cujo renovado peso de materialidade cotidiana se
opunha aos fastos da grande história, fosse monárquica ou
revolucionária.
Na época da ordem consensual e da mundialização, um tal
expediente parece estar bem longe. O que se reclama da
história não é sustentar tal ou qual causa presente. Entre os
patrões e os operários da fábrica de porcelana, os aristocratas
da prisão dourada de Picpus e os revolucionários de 1794, a
amante do Rei Sol e as jovens pobres que ela toma como
reféns de seus sonhos pedagógicos, esses filmes não nos
pedem para escolher. Antes, devotam-se a aproximar seus
destinos aproximando primeiro seus corpos. Em "Sade", os
corpos dos guilhotinados lançados à vala comum invadem
pouco a pouco o gramado dos aristocratas sob custódia da
casa de Picpus, antes que as próprias cabeças dos
guilhotinados nele tombem. Em "Saint Cyr", Madame de
Maintenon deixa-se mergulhar a cabeça em sua banheira por
uma de suas protegidas rebeldes.
Não se trata de enaltecer a revolta nem de chamar nossa
atenção para a precariedade do poder. Se há uma política de
representação, é, quando muito, a de tornar o poder visível,
materialmente próximo de quem ele sujeita, em oposição a
esse poder que se dissimula hoje atrás das fachadas das
instituições internacionais ou dos arcanos do mercado
mundial.
Assim, o recurso ao passado não é sinônimo de gosto pelos
álbuns de imagens e pelos esplendores de antanho. Desde
que os campeões da "nova história" opuseram as histórias
dos anônimos e da vida material às histórias das batalhas e
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dos tratados, a história, pelo contrário, tem por função


resgatar ao presente a presença, o sangue e a carne. A era de
ouro que ela invoca não é aquela de pompas régias, de lutas
heróicas ou de paixões perdidas. É antes uma era em que os
pensamentos se faziam imediatamente carne, em que todas
as coisas materiais eram raras e preciosas, em que a vida e a
morte eram ao mesmo tempo mais brutais e mais
cerimoniosas e em que os corpos estavam mais próximos uns
dos outros. Mas não se trata mais, como há 30 anos, de
resgatar a carne da história e o sangue do povo aos
programas dos partidos. É por si próprio que o cinema os
reclama hoje. A hora em que o poder mundial desaparece da
vista dos corpos é também, de fato, aquela em que todos os
tipos de profetas anunciam a grande catástrofe do real e da
imagem: o real viraria um simulacro, a imagem sumiria no
reino da comunicação industrial, do número e do virtual.
Pouco importa aqui julgar a validade dessas crenças. O certo
é que elas agem, que criam a mania de um mundo onde a
imagem, tendo perdido sua distância em relação ao real,
sumiria ao mesmo tempo que ele.

Falatório de galinheiro
É daí que tiram suas forças essas ficções, que querem dar ao
presente do cinema a carne da história. Mas se trata
justamente da carne da imagem, e não da carne representada.
Ainda que "Saint Cyr" comece com alguns meneios entre
Luís 14 e Madame de Maintenon, seu efeito está em outra
parte e pode se resumir quase inteiramente a uma única
sequência, a da apresentação das jovens de nobres
despossuídos que a instituição se dispõe a formar. Em vez
das esperadas cortesias, é um falatório de galinheiro que se
faz ouvir e obriga esse filme franco-francês às legendas:
essas filhas de nobres, de fato, falam o mesmo patoá que as
filhas do campo. Se o cenário conta o processo de
"civilização" dessas provincianas, o próprio filme busca o
efeito inverso: infundir estranheza, selvageria em nossas
imagens, infundindo exotismo a esses corpos falantes.
E essa carne reencontrada, essa proximidade de corpos não
tem nada a ver com alguma exibição pornográfica. "Sade" é
significativo nesse propósito: os espectadores se
decepcionarão se esperarem ver ilustrados alguns dos "120
Dias de Sodoma". O filme narra a sedução de uma
adolescente, irmã da Eugênia, de "A Filosofia na Alcova".
Mas a câmara elide a passagem ao ato. E a própria filosofia
que lhe ensina ele, a não-separação do corpo e da alma,
parecerá bem-comportada a seus leitores e mais reveladora
do desejo de carne do cinema que do do sedutor. A
proximidade que interessa ao cineasta é efetivamente de
outra ordem. É antes de tudo aquela de todos os corpos
mascarados de aristocratas que o sucesso revolucionário
encerra num lugar fechado, que uma outra proximidade
invade: a dos corpos atulhados nas charretes do tribunal
revolucionário e nas valas comuns.
Mas é sobretudo a proximidade das palavras aos corpos e
dos corpos de ficção ao corpo da imagem. A luta
"intelectual" do sedutor e da donzela de boa família difere no
filme das orgias que ela acompanhava nos livros de Sade.
Mas é que ela constitui um erotismo mais adequado ao
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cinema que a filmagem em close das penetrações que


valeram recentemente ao filme "Baise-Moi" (Beije-me) os
açoites da censura. De fato, ele é tratado por um uso
espetacular do campo-contracampo em close, muitas vezes
centrado somente nos rostos. "Saint Cyr" usa igualmente
essa figura que, de algum modo, faz aderir a palavra ao
corpo que a profere como ao que a suscita, a recebe e a
reenvia.
As figuras cinematográficas, como as ficções, têm uma
história, feita de avanços e retrocessos. Nos anos 50, André
Bazin opôs à tradição hollywoodiana do campo-contracampo
a profundidade do campo e o plano-sequência, de que Orson
Welles e Rossellini eram os heróis. Ao ilusionismo da
narração clássica, o plano-sequência opunha a marcha de
uma verdade que o tempo e a paciência da câmara deviam
fazer surgir nos rostos dos seres filmados. É talvez essa fé
fenomenológica nas virtudes do visível que se alcançou hoje.
Tal como o retorno à história é antes de tudo uma busca de
corpos, o recurso a figuras "clássicas" da narração é talvez
uma maneira de constatar o privilégio do visível, de
emprestar à palavra o cuidado de dar corpo às imagens.
Apesar do que dizem os profetas da midiologia, o destino
das imagens decididamente não é linear.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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