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O cinema francês atual parece reencontrar as grandes
formas e os grandes temas tomados de empréstimo à
tradição romanesca
O cinema e a carne da história
Jacques Rancière
Retorno vazio
Contudo não é o gosto pelas belas imagens e pelas
fotografias amareladas que inspira esse recurso à história.
Não é também o cuidado de fugir das materialidades do
presente rumo aos esplendores de um mundo desaparecido.
O retorno à história opõe-se raramente às exigências,
estéticas e políticas, do presente. Nos anos 70, o cinema
francês já conhecera tal enlevo. Na época era claro o que
estava politicamente em jogo. No dia seguinte a 68, a
esquerda contestada e os esquerdistas contestadores batiam-
se pelo legado dos trabalhos, das penas e dos combates do
povo. Ao mesmo tempo, faziam furor as obras de
historiadores ou etnólogos consagradas a tais vidas
anônimas, cujo renovado peso de materialidade cotidiana se
opunha aos fastos da grande história, fosse monárquica ou
revolucionária.
Na época da ordem consensual e da mundialização, um tal
expediente parece estar bem longe. O que se reclama da
história não é sustentar tal ou qual causa presente. Entre os
patrões e os operários da fábrica de porcelana, os aristocratas
da prisão dourada de Picpus e os revolucionários de 1794, a
amante do Rei Sol e as jovens pobres que ela toma como
reféns de seus sonhos pedagógicos, esses filmes não nos
pedem para escolher. Antes, devotam-se a aproximar seus
destinos aproximando primeiro seus corpos. Em "Sade", os
corpos dos guilhotinados lançados à vala comum invadem
pouco a pouco o gramado dos aristocratas sob custódia da
casa de Picpus, antes que as próprias cabeças dos
guilhotinados nele tombem. Em "Saint Cyr", Madame de
Maintenon deixa-se mergulhar a cabeça em sua banheira por
uma de suas protegidas rebeldes.
Não se trata de enaltecer a revolta nem de chamar nossa
atenção para a precariedade do poder. Se há uma política de
representação, é, quando muito, a de tornar o poder visível,
materialmente próximo de quem ele sujeita, em oposição a
esse poder que se dissimula hoje atrás das fachadas das
instituições internacionais ou dos arcanos do mercado
mundial.
Assim, o recurso ao passado não é sinônimo de gosto pelos
álbuns de imagens e pelos esplendores de antanho. Desde
que os campeões da "nova história" opuseram as histórias
dos anônimos e da vida material às histórias das batalhas e
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Falatório de galinheiro
É daí que tiram suas forças essas ficções, que querem dar ao
presente do cinema a carne da história. Mas se trata
justamente da carne da imagem, e não da carne representada.
Ainda que "Saint Cyr" comece com alguns meneios entre
Luís 14 e Madame de Maintenon, seu efeito está em outra
parte e pode se resumir quase inteiramente a uma única
sequência, a da apresentação das jovens de nobres
despossuídos que a instituição se dispõe a formar. Em vez
das esperadas cortesias, é um falatório de galinheiro que se
faz ouvir e obriga esse filme franco-francês às legendas:
essas filhas de nobres, de fato, falam o mesmo patoá que as
filhas do campo. Se o cenário conta o processo de
"civilização" dessas provincianas, o próprio filme busca o
efeito inverso: infundir estranheza, selvageria em nossas
imagens, infundindo exotismo a esses corpos falantes.
E essa carne reencontrada, essa proximidade de corpos não
tem nada a ver com alguma exibição pornográfica. "Sade" é
significativo nesse propósito: os espectadores se
decepcionarão se esperarem ver ilustrados alguns dos "120
Dias de Sodoma". O filme narra a sedução de uma
adolescente, irmã da Eugênia, de "A Filosofia na Alcova".
Mas a câmara elide a passagem ao ato. E a própria filosofia
que lhe ensina ele, a não-separação do corpo e da alma,
parecerá bem-comportada a seus leitores e mais reveladora
do desejo de carne do cinema que do do sedutor. A
proximidade que interessa ao cineasta é efetivamente de
outra ordem. É antes de tudo aquela de todos os corpos
mascarados de aristocratas que o sucesso revolucionário
encerra num lugar fechado, que uma outra proximidade
invade: a dos corpos atulhados nas charretes do tribunal
revolucionário e nas valas comuns.
Mas é sobretudo a proximidade das palavras aos corpos e
dos corpos de ficção ao corpo da imagem. A luta
"intelectual" do sedutor e da donzela de boa família difere no
filme das orgias que ela acompanhava nos livros de Sade.
Mas é que ela constitui um erotismo mais adequado ao
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