Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Recuos
No final do século XX, talvez por causa das incertezas do futuro e das dificul-
dades do presente, certamente em razão da imensa desconfiança que avança em
grande número de setores da sociedade, muitas obras adotam posturas de recuo.
Recuo no ordinário ou no derrisório; recuo na intimidade; recuo na identidade
social, sexual ou étnica; recuo, também, no nada, no vazio. Tantas formas de resis-
tência passiva, de estratégias de evitação ou de retraimento diante de alguma coisa
de muito grande, bastante difusa, que ameaça envolver, encobrir, sufocar. Recuar
para proteger-se de qualquer coisa excessiva, diferente, estranha. Em outros ter-
mos, reterritorializar-se à margem dos grandes fluxos que atravessam um mundo
em ebulição. Ancorar no local para escapar à hegemonia do global. Uma maneira
de microrresistência.
Ü ORDINÁRIO, O IRRELEVANTE
4 14
1 SECULAR I ZAÇÕES 1
se, para ele, fotografar fosse uma atividad e t-ao ban al e necessária
. quanto tomar
banho e comer.
. . Nada mais medío cre, igu
· al mente, do que estacionamentos e zo-
nas comerciais de subúrbios (Dom·mique
· Auerbacher), aviões estacionados em
aeroportos anônimos
. (Fischli & we· ) · ·
iss , mtenores de supermercados (Véronique
Ellena), canteiros de obras públicas (Stéphane eoutuner· ), etc. A arte-fotografia
procede,
. .. então, a uma
. , ampla
. abertura temáfica, a uma imensa
• - das v1-•
renovaçao
s1bihdades.
" _ No
,, terntono . social , por exemplo, os Iugares de ontem dao
- lugar aos
nao lugares,. e as. paisagens,
, . àquilo que poderíamos eh amar de «·mfr apa1sagens
· ,,.
Aos espaços ident1tanos, relacionais , carregados de hi·stó na
· e de humam·dade, ou
seja, aos lugares antropológicos, 33 sucedem as imagens de zonas de Iazer, de at1v1-
· ·
dades comerciais, de trânsito, de errância ou de exclusão.
Além disso, muitas vezes o ordinário é representado sem efeitos formais, do
modo mais neutro e transparente possível, sem iluminações cintilantes ou refina-
das, sem composições estruturadas, sem ângulos de vista insólitos. Recusar temas
e formas extraordinários, representar ordinariamente o ordinário: esse programa,
que não se reduz ao grau zero da escritura nem a um aquém da arte, opõe-se à
ingênua sofisticação das fotografias "de arte" tanto quanto ao trivial imaginário
das mídias. Define, de fato, uma maneira de resistência: diante das tecnologias
que incessantemente ampliam os limites do visível, diante das mídias que sonham
em projetar os espectadores aos confins do mundo, diante das imagens de síntese,
que afogam o real nas miragens do virtual, diante das sofisticações gráficas da
indústria cultural- a publicidade, a televisão, a imprensa, o turismo, etc. Nessa si-
tuação, um número crescente de artistas utiliza a fotografia (considerada simples,
grosseira, e mesmo pobre) para descobrir o próximo, o imediato, o aqui, o ba-
nal, o ordinário. Simplesmente, sobriamente, diretamente. Ao inverso da imagens
pomposas, enfáticas e vazias das mídias.
Nas últimas décadas, a explosão do consumo e das mídias-isto é, a generaliza-
ção do reino da mercadoria, em imagens e em todas as atividades da vida - resul-
tou em uma espécie de consagração do derrisório. Sob a forma de divertimento,
de espetáculo, de jogo e de lazer, os espíritos e as economias foram invadidos pelo
insignificante, 0 fútil, 0 superficial, ou mesmo, o trivial. Diante da superficialidade
cintilante do mercado, algumas obras tomaram partido da pobreza e do irrisório,
-
para opor-se à arrogância vazia da mercadoria, ao culto da rentabilidade e da
' ' Ver Marc Augé, Non-lieux. lntroduction à une anthropologie de la surmodernité (Paris: Seuil, 1992).
415
( A A RT E - FOTO G RA F I A J
416
[ S ECU LARI Z AÇóES [
Ü ÍNTIMO, A IDENTIDADE
--
dependência sexual), de Nan Goldin, entre 1971 e 1985. Perpassada pelo sexo e
JS p· . .
ternck Sono, em Collection 1989- 1999. Frac Provence-Alpes-Côte d'Azur. l!dition 2000, catálogo (Marselha:
Actes Sud/Frac Provence-Alpes-Côte d' Azur, 2000), p.3 13.
417
[ A ARTE - FOTOGRAFIA J
-
" Richard Billingham, em La sphere de /'intime, catálogo (Saint-Herblain: Le Printemps de Cahors/Actes Sud,
1998), p. 36.
418
( SECU LA RIZAÇÕES 1
419
( A ART E- F O T OG RA F IA J
" Bernard Marcadé, "Le devenir-femme de l'art", em Féminin-masculin. Le sexe de l'a rt, catálogo (Paris: Galli·
mard/Ce ntre Geo rges-Pompidou, 1995), pp. 23-47.
420
1 SECU LARI ZAÇOES 1
Ray para fotografá-lo fantasiado de Rose Sélavy (Eros Éavida): uma mulher ele-
gante, maquiada, com vestido, colar e chapéu de pele, cujo retrato figura no rótulo
do famoso frasco de perfume em Belle Haleine, Eau de toilette. Quase meio século
mais tarde, no final dos anos 1960, Pierre Molinier serve-se da fotografia e do tra-
vestismo para fazer a experiência da androginia. Ele descreve as sensações que ex-
perimentou quando da realização de uma foto onde está deitado de bruços numa
poltrona colocada diante de um espelho, com meias femininas, sapatos altos e um
vibrador no ânus: "Admiro a perspectiva do meu buraco do cu violado, empalado,
de minhas pernas cingidas e de meus pés calçados com saltos altos, espetáculo
39
que me leva à ereção". Em seguida, explica a volúpia que o invade e o orgasmo
que o surpreendeu pelo "prazer de dar e tomar no cu, prazer extraordinário que
nos faz atingir a única verdade da nossa razão de existir, resolver o problema da
androginia inicial".
No decorrer dos anos 1970, a imisção dos papéis sexuais pelo travestismo está
no centro das preocupações de artistas como Urs Lüthi, Jürgen Klauke, ou Michel
Journiac, do qual Hommage à Freud. Constat critique d'une mythologie travestie
[Homenagem a Freud. Constatação crítica de uma mitologia travestida] (1972-
1984), por exemplo, compõe-se de quatro retratos apresentados em duas fileiras
superpostas: de um lado, em cima, o "Pai: Robert Journiac travestido de Robert
Journiac", depois o "Filho: Michel Journiac travestido de Robert Journiac"; do
outro lado, embaixo, a "Mãe: Renée Journiac travestida de Renée Journiac", depois
o "Filho: Michel Journiac travestido de Renée Journiac". A confusão dos sexos e
das identidades atinge seu auge: a identidade aleatória do filho oscila entre a do
pai e a da mãe, e estes estão reduzidos (pela legenda) a simples máscaras vazias,
simulacros. A sagrada família, para Journiac, não passa de um baile à fantasia,
em que as identidades dos pais e dos filhos se misturam e se dissolvem. Não ha-
veria verdade nem do sexo nem da identidade nem da identidade sexual. Juntos,
os travestismos, as fotografias e suas legendas denunciam, aqui, a não verdade
dessa verdade da sexualidade dominante, segundo a qual a anatomia definiria a
identidade sexual - de acordo com o provérbio retomado pelo próprio Freud: "A
anatomia é o destino''.
Embora conteste a ordem sexual estabelecida, afirmando o direito à diferença,
Mapplethorpe continua prisioneiro da oposição binária homossexuais-heterosse-
-
" Pierre Molinier, L'explicarion, texte dactylograp hié (e. 1966- 1970), em Féminin-masculin , cit., p. 137.
42 1
[ A A RT E - FOT OG R AF I A 1
. - ao contrar
xua1s ' 1·0 dos travestis e transexuais, que mesclam tal estrutura bi·n ana
, .
da sexualidade dominante. Com a fotografia, Mapplethorpe afirma e reconfigura
o território da legitimidade sexual, enquanto, com a androginia, muitos artistas
do final do século X.X, ao contrário, surgem com a possibilidade de uma sexua-
lidade indecisiva, de contornos indefinidos e com itinerários múltiplos, onde a
mulher e O homem, 0 feminino e o masculino, "ela" e "ele", o homossexual e
0
heterossexual perdem a tradicional pertinência, onde infinitas passagens ligam
todos esses polos anatômica e socialmente balizados pela antiga metafísica sexual.
Em seu livro de artista A mulher e... (La Femme et ... ) , Annette Messager _ que
gosta de híbridizar os gêneros, os estilos e os materiais tanto quanto colecionar e
trucar - desenha e depois fotografa, na pele de uma mulher nua, testículos e um
sexo masculino em ereção, emergindo de um abundante tufo de pelos pubianos.
Um outro clichê mostra a mulher acariciando maliciosamente com o dedo esse
sexo masculino que decora sua barriga e que a transforma em hermafrodita. Duas
décadas mais tarde, Sophie Calle renova a situação com uma fotografia mostran-
do de frente um homem urinando, seu sexo sendo sustentado por uma mão de
mulher. "Nos meus fantasmas, sou eu o homem': ela conta. "Greg percebeu logo.
Talvez seja por isso que um dia ele me propôs a ajudá-lo a fazer pipi. Isto se tornou
um ritual entre a gente: eu me colava atrás dele, desabotoava sua calça, pegava seu
pênis e tentava colocá-lo na posição adequada, para acertar".40 Quanto às moças
com ar inocente, fotografadas pelo japonês Noritoshi Hirakawa na série Vírtue in
Vice [Virtude no vício] (1997), elas posam pacificamente em lugares públicos -
um parque, banheiros para homens, etc. - mas, com um vibrador escondido, que
as penetra sob suas saias. Em outras palavras, se essas mulheres de Messager, Calle
ou Hirakawa se deixam mais ou menos voluntariamente penetrar pelo ersatz do
falo, se elas se imaginam possuídas pelo sexo do homem, ou se dele se apossam a
mãos-cheias, é sem dúvida menos o fetichismo que as guia do que um vasto mo-
vimento de suplantação das oposições binárias e das determinações anatômicas.
A predileção assumida de ser homem e mulher ao mesmo tempo, de quebrar o
jugo das identidades imutáveis, de frustrar a tirania da anatomia, também se ex-
prime nos travestismos de Cindy Sherman, sob os traços de um menino de short
e camisa vermelha ( Untitled #112, Red Shirt, 1982), ou de Catherine Opie, que, na
-
série Being and Having (1991), desaparece sob os atributos mais caricaturais da
'° Sophie Calle, Des histoires vraies (Arles: Actes Sud, 1994) (série Le m ari: Ie divorce, 1993).
422
.....---
1 SECU L A RI Z A ÇOES 1
-
41 Ou, como diz Andy Warhol: "Os travestis são o testemunho vivo do que as mulheres gostariam de ser, do que
certas pessoas querem que elas sejam, e do que certas mulheres querem ainda ser. Os travestis são os arquivos
ambulantes da feminilidade ideal de estrela de cinema. Eles preenchem uma função documental". Cf. Andy
Warhol, Ma philosophie de A a B (Paris: Flammarion, 1977), p. 52.
423
..._
1 A A RT E • F O T OG R AF IA J
novo escândalo: Orlan prepara uma série de performances sob a forma de opera-
ções de cirurgia estética. Sete foram realizadas, todas encenadas e dirigidas pela
artista sob anestesia local. Fotografias, vídeos, imagens de síntese,· até mesmo reli-
cários, em blocos de plexiglas, contendo sua carne e seu sangue extraídos durante
as operações - a de novembro de 1993, praticada em Nova York, foi transmitida
via satélite e, ao vivo, acompanhada em Paris no Centro Georges-Pompidou. To-
das essas imagens apresentam o rosto de Orlan sendo aberto pelo bisturi, suas car-
nes abertas, sangrando e inchadas. O que, para seus adversários, é um escândalo.
E não só por isso.
Orlan é escandalosa principalmente por transgredir o novo narcisismo domi-
nante, que associa cada corpo à identidade profunda de uma pessoa. Frustrando
as infinitas atenções concedidas ao corpo-pessoa, seu corpo-máquina contradiz
a ascensão inusitada das práticas e dos cuidados corporais destinados a frear 0
envelhecimento ou atenuar os sinais da degradação física. A dietética, o esporte e,
naturalmente, a cirurgia estética fazem parte da panóplia em que se conjugam es-
forços, privações e sofrimentos para adaptar os corpos ao imperativo narcisista da
eterna juventude e da beleza-padrão. O trabalho de Orlan situa-se no oposto des-
sas atitudes. Para ela, a cirurgia estética é uma ferramenta artística, não um meio
de se dobrar às normas sociais da beleza, ou de ceder ao desejo dos homens, algo
de que as feministas já a criticaram. Seu corpo não é um objeto de cuidados mi-
nuciosos, mas um verdadeiro material artístico. Tudo nela concorre para dissolver
a identidade e o gênero, e para fragilizar seus elos com o corpo: sem prenome,
Orlan é um nome sem sexo; e, além disso, muitas vezes, provocou as feministas
com um: "Eu sou uma homem e um mulher"; finalmente, as operações tornam
suas aparências demasiadamente voláteis e transitórias, isto é, virtuais, para servir
de ancoragem a uma identidade estável. Modo de figuração - de desfiguração e de
refiguração - direta da carne, a cirurgia é também um operador de transfiguração.
Orlan é igualmente escandalosa por causa de seu (suposto) masoquismo, em-
bora ela recuse a dor, recorrendo sistematicamente à anestesia local, enquanto Les
tortures volontaires [As torturas voluntárias] (1972), de Annette Messager, tinham
mostrado com detalhes o que as mulheres aceitam suportar para ficar "belas" e
agradar aos homens. Também Le baiser de l'artiste era triplamente inaceitável:
~ e ns artificiais, criadas a partir de dados digitais registrados e tratados po r meios informáticos, podendo ser
visualizadas em uma tela. (N. T. )
424
....--
quanto à moral, fazia o elogio do prazer e de sua venalidade; quanto aos homens,
denunciava a submissão da mulher ao seu desejo; e, quanto à estética, anunciava
a "arte carnal'; isto é, a carne como material artístico, o que atualmente Orlan
reivindica.
Desde a metade dos anos 1990, nos maiores museus do mundo, Vanessa Bee-
croft organiza performances com jovens mulheres, todas empoleiradas em saltos
altos, nuas ou somente com leves roupas íntimas. Em fevereiro de 2001, na Kuns-
thalle de Viena, a performance VB 45 (a quadragésima quinta) provocou um re-
crutamento, através de classificados, de cinquenta jovens austríacas, de 18 a 35
anos, magras, entre 1,75 me 1,85 m de altura. Elas foram obrigadas a ficar em pé
durante três horas, sem falar nem cruzar olhares com os dos espectadores, que
eram convidados a observar como o cansaço afetava os corpos e modificava o
425
[ A A RT E - FO T O G RAFIA J
quadro vivo. A perfeição corporal e indumentária serve de fio condutor. "Nas per-
formances, os erros são as moças que calçam sapatos grosseiros ou usam pulôveres
feios, aquelas que são muito grandes ou muito pequenas.'' 42 É a perfeição plástica
que comanda a seleção das figurantes e a escolha dos mais célebres criadores para
os calçados e as roupas íntimas que ela utiliza - no Guggenheim, ela "simples-
mente procurou o biquíni mais caro que existia"; sua busca pela perfeição e pelo
absoluto é, ainda, o que leva a artista a despir cada vez mais seus modelos: "Meu
ideal indumentário é, de fato, o nu': ela declara. Sua concepção desencarnada da
perfeição a faz, enfim, "minimizar os aspectos sexuais da performance''. As mulhe-
res selecionadas têm corpos "neutros': seios pouco desenvolvidos: o mais andró-
ginas possível, elas são capazes de ficar "nuas sem ser sexuais': suficientemente
incorporais para que sua nudez possa paradoxalmente "esfriar" o público, e fazer,
de suas performances, antisex-shows. Vanessa Beecroft extrai da moda, da alta-cos-
tura e do luxo suas orientações estéticas, seu modo operacional e seu ideal de belo.
Ajustadas, desnudas, dessexualizadas, imobilizadas e organizadas no espaço, suas
figurantes, na realidade, são apenas ocorrências de um mesmo modelo abstrato.
Não são clones, porém já são mais mulheres humanas: seres mutantes à deriva,
longe dos limites do feminismo das décadas precedentes.
4
i Vanessa Beecro ft. numa entrevista com Munro Galloway, em Art Press, nº 265, fe v. de 200 1.
426
....
1 SECU LARI Z A Ç OE S]
felicidade e do dinheiro. Mesmo que essa harmonia seja, de fato, apenas super-
ficial e de esquecimento, ignorante ou indiferente às infelicidades bem concretas
do mundo. Não tenta, assim, a artista, conciliar os aborígines da Austrália com
0
"capitalismo global';" as virtudes do sistema de troca com as do capital? Em
nome do humanismo, de supostos valores universais e do espiritualismo, ela não
está procurando reatar elos entre a arte, a religião, a ciência e a natureza, rompi-
dos no decorrer do século XX? Em uma curiosa mescla de tecnologia futurista e
tradições culturais, de ações globais e hino às culturas locais, de fuga antecipada e
de busca do paraíso perdido. Mariko Mori quer aplainar as asperezas do mundo.
As rugosidades e aos conflitos do presente, ela prefere as evocações nostálgicas de
um passado mitificado e os horizontes lisos e apaziguados de um futuro profeti-
zado. A obra de Mariko Mori antecipa um recuo diante do mundo, fugindo dele,
situando-se alhures no espaço e no tempo, no próprio reino do idêntico, onde os
corpos, os sexos, as culturas, a natureza, a tecnologia, as divindades, o Oriente,
o Ocidente, o capitalismos, os aborígines se mesclam em harmonia universal. O
que há de mais ingênuo do que, explicitamente, visar a "fazer partilhar a essência
espiritual do mundo, desviar os homens dos confrontos políticos, religiosos ou
ideológicos que castigam o planeta Terra"?
A entrada de trabalhos como os de Vanessa Beecroft e Mariko Mori no cenário
artístico intervém quase um quarto de século após a publicação, em 1971, de Tul-
sa, por Larry Clark, e das estreias de Nan Goldin. As mudanças econômicas e so-
ciais profundas que aconteceram durante esse período foram acompanhadas por
consideráveis transformações nas tecnologias, nas mediações entre os homens e
o mundo, nas sensibilidades e nos espíritos. Em proporções análogas, mudou o
papel da fotografia na arte. Clark e Goldin, mas também Araki, Mapplethorpe,
Coplans ou Billingham, fotograficamente, delimitaram as zonas de marginalida-
de, afrontaram as normas sociais, inventaram novas visibilidades (muitas vezes
sexuais e corporais), afirmaram identidades singulares: para eles, a fotografia foi
territorializante. Atualmente, numerosos artistas, como Beecroft e Mori, colo-
cam-na, ao contrário, a serviço de projetos desterritorializantes. Uma temática do
idêntico e uma certa padronização formal sucederam à afirmação de diferenças
e de singulares identitárias. Enquanto fenômeno desterritorializante, a crescente
-
globalização da cena artística - que se traduz por uma autonomização das obras
u Mariko Mori , numa entrevista com Eleanor Heartney, em Art Press, nº 256, abr. de 2000.
427
L
1 A ARTE - FO T OGRA FI A )
diante das conjunturas locais e pelo impulso de uma comunidade artística trans-
nacional - contribui para desvalorizar a postura identitária: sexual e corporal,
tanto quanto territorial e nacional. O "eu", o gênero, o território, o aqui e até mes-
mo a nação sofrem, nas obras, concorrência dos valores do idêntico e do virtual.
Transversalidades
D!ALOG I S MOS
Após a política dos artistas, que conheceu seu apogeu com a Action Painting
(paralelamente com a política dos autores, do cinema da Nouvelle Vague) , a arte
atual enseja uma política dos espectadores. Nessa situação, a obra não é mais um
objeto acabado, preexistente a um espectador reduzido a apenas apreciá-la ou
interpretá-la; ela se inscreve em uma interação dinâmica. A obra suplanta sua
condição tradicional de imagem (ou de coisa) oferecida ao olhar, fixada nas mos-
tras das galerias e dos museus. O que é mostrado, ao contrário, não passa de um
momento de uma obra-processo, em que o espectador é convidado a participar,
diretamente ou não. "São os que olham os que fazem o quadro'; declarava de
maneira provocadora Marcel Duchamp antes de definir, em 1957, que o especta-
dor "acrescenta sua própria contribuição ao processo criativo''. 44 Esse dialogismo
imanente às obras, assim enunciado por Duchamp, reproduz as reflexões condu-
zidas, nos anos 1920, por semioticistas como Mikhai"l Bakhtine, segundo o qual
"o fato artístico, considerado em sua totalidade, não reside nem na coisa nem no
psiquismo do criador, tomado isoladamente, nem do receptor, mas contém esses
H Marcel Duchamp, Duchamp du signe, écrits, org. M ichel Sano uillet (Paris: Flam ma ri on, 1975), PP· 247 e 189 ·
4 28
[ Sc C ULA Rl 7A Ç 0l S [
. a·pectos
ires s · O fato artístico é uma forma particular e fixa, na obra de arte, de
uma relação recíproca entre o criador e os receptores".' 5
-15 Mikha"~ Bakhtine, "Le discours dans la vie et le discours dans la poésie" (1926), em TzvetanTodorov, Mikhai'[
Bakhtine, /e príncipe dialogique (Paris: Seuil, 198 1), p. 187.
• Ata Bedroom in the Middle ofNight: 011 April 2, 1993, aro1111d 13:30at /nogashira Park, Tokyo, fotografia em preto
e branco, 127 cm x 190cm, Une (in)position: humainement votre... , exposição no museu Frac Languedoc-
·Roussillon, Montpellier (França), 1993.
429
1 A ARTE - FOTOGRAF I A /
430
[ SE C ULAR I ZAÇOES [
431
[ A ARTE - FOTOG R AF IA J
47
Marc Pataut, conferência no Fórum Cultural de Blanc-Mesnil, 1997.
432
.,,":- -~ ;
e/se wants you to Say (Signos que dizem o que você quer que eles diga
eotie . . m,
50111_ . os que dizem aquilo que os outros querem que você diga 1992- 1993 )
e nao s1gn , ,
. . e a transeuntes anônimos de Londres estendendo-lhes um marcad
~" d . me
e _ para que aí coloquem seus sentimentos ou suas opiniões do momento·
0 )
'da ela os fotografa, pedindo que mostrem sua mensagem para O apa
~"gw, -
Dentro do quadro habitual da rua, isso resulta em um derramamento de
relhO,. de angústias e, sobretudo, de desespero: "Estou desesperado" deixa escapar
desejos, '
rn rapaz elegante, e a mensagem de uma senhora madura termina pela palavra
~esesperançada. Segundo Wearing, "o aspecto mais importante residia no fato de
48
abordar desconhecidos na rua, e a interação entre nós''. Exatamente O oposto da
fotografia "tirada': própria da reportagem, trata-se aqui de criar condições para
os indivíduos aceitarem passar do anonimato à confissão pública e à exposição de
• Na série Trauma (2000), Gillian Wearing dá seguimento a essa abordagem, mas
SI,
substituindo a fotografia pelo vídeo: ela filma homens e mulheres mascarados
contando, em estúdio, seus traumatismos. Como os relatos eram muito fortes e
dolorosos, publicamente inassimiláveis, todos os protagonistas do vídeo estavam
mascarados. Como se, a um certo nível de sofrimento, fosse impossível, ao mesmo
tempo, fazer-se ver e ser ouvido. Como se o dizível e o visível fossem incompatí-
veis, ou muito difíceis de assimilar simultaneamente.
Colocar a arte sob a soberania da troca e do diálogo, preparando um lugar ati-
vo para o espectador e orientando o procedimento em direção ao Outro, é, para
a arte, um modo de entrar em ressonância com o mundo, de secularizar-se e, até
mesmo, de resistir modestamente à exclusão do Outro, ao isolamento, ao indivi-
dualismo. Mas, ao mesmo tempo, solidamente, o mundo trabalha a arte além de
sua mais extrema exterioridade: a economia de mercado com seus mecanismos,
suas estruturas, seus valores e suas formas, que reinam sem restrições sobre todo
Ocidente desde o final do século XX.
Entre microrresistências e contágios, uma parte da arte é trabalhada assim, e as
obras são profundamente formatadas e estruturadas pelo consumo de massa, pela
propriedade, pela publicidade, pela mercadoria, pela moda, pela empresa. Pelos
modelos do business.
-• Gillian Wearing. Sous injluence, catálogo (Paris: Musée d' Art Moderne de la Ville de Paris, 2001 ), P· 12.
433
llli,,..,,_