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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: A moral da memória - 13/02/2005

São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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+ autores

Modos opostos e complementares de representação do


Holocausto em filmes como "Shoah" ou no recente "O
Declínio" escancaram a contradição entre as maneiras
"certa" ou "errada" de mostrar a história

A moral da memória
JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

Sexagésimo aniversário da entrada das tropas aliadas em


Auschwitz [em 27 de janeiro], lançamento do filme "O
Declínio" ["Der Untergang", 2004, de Oliver Hirschbiegel],
que conta os últimos dias de Adolf Hitler [1889-1945] em
seu "bunker" -a atualidade da história e do cinema faz
novamente uma pergunta lancinante: o que se deve ou não se
deve mostrar da grande empreitada nazista e de sua
concretização, o extermínio dos judeus da Europa?
Esse problema evidentemente contém dois. O primeiro é o da
ficção histórica em geral: como conciliar os requisitos da
ficção com os da história? Antes da era das revoluções
modernas, simplesmente não se fazia essa pergunta: os
historiadores contavam os grandes fatos dos príncipes e dos
generais; a grande poesia narrava os pensamentos,
sentimentos e atos dos personagens situados acima do
comum. Mas nos últimos dois séculos as cartas do fictício e
do histórico foram embaralhadas, assim como as do grande e
do pequeno. A ficção decretou a igualdade de todos diante de
sua lei, a história viu-se dividida entre as decisões dos
Estados e a vida lenta e obscura das multidões.
A ficção histórica tornou-se o entrelaçamento de duas
lógicas. Ela nos mostra os grandes fatos da história por meio
do olhar das pessoas comuns e da convulsão das vidas
privadas. Assim, "O Declínio" é construído a partir de um
livro de um historiador sobre os últimos dias de Hitler e do
testemunho de uma ex-secretária do Führer.
[O cineasta alemão] Wim Wenders [1945] criticou vivamente
o diretor [em texto publicado no Mais! em 12/12/2004] por
essa mistura que permite ao autor eximir-se de um ponto de
vista próprio. Mas ele poderia ter feito a mesma censura a
[Victor] Hugo [1802-85] ou a [Leon] Tolstói [1828-1910]:
"Os Miseráveis" assim como "Guerra e Paz" são construídos
sobre essa oscilação de que Tolstói fez teoria e cuja fórmula
foi retomada por inúmeros romancistas ou cineastas.

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A forma do inaceitável
A crítica, portanto, não tem nenhuma importância em si. Ela
encobre na verdade um problema muito diferente. Ao
misturar as verossimilhanças da ficção com a familiaridade
das personagens encarnadas, os feitos dos homens célebres
são trazidos para perto de nós, relacionados a corpos aos
quais somos sensíveis, a sistemas de explicação que os
justificam. A ficção deve ser aceita, e pode sê-lo sem tornar
aceitável o que ela mostra -no caso, a loucura assassina de
um sistema? Pedir que o autor tenha um ponto de vista
próprio é pedir-lhe para contrariar essa lógica natural da
ficção, para introduzir o inaceitável no aceitável.
Que forma esse inaceitável deve tomar? "O Declínio" não
pára de nos fazer escutar o propósito monstruoso de Hitler ou
de seus seguidores e de nos mostrar espetáculos
insuportáveis: corpos mutilados, cérebros explodidos com
um revólver, cerimonial glacial da senhora Goebbels
envenenando seus seis filhos um após outro. Mas os
propósitos monstruosos são os de um homem desgastado,
encerrado em seu "bunker" e em seu delírio, semelhante a
um desses reis loucos que o teatro nos mostra. A monstruosa
meticulosidade da senhora Goebbels desperta lembranças de
antigos heróis subtraindo da servidão a si mesmos e suas
famílias. Todos esses corpos ensangüentados pertencem a um
povo de vencidos, e sempre há comiseração pelos vencidos.
Se o cotidiano comum do "bunker" trata o crime nazista por
meio da banalização, o caráter extraordinário das palavras e
dos atos monstruosos o faz cair no terror trágico.
Poderíamos dizer que o caso é problemático desde o início: o
que é representado é a derrota do nazismo. Mas o que deve
ser julgado não é sua derrota, e sim suas "vitórias" anteriores,
a ordem monstruosa que ele havia instaurado. O que falta
nesse filme são suas verdadeiras vítimas: não os generais que
estouram os próprios cérebros, mas primeiramente os 6
milhões de mortos nos campos de extermínio.
Infelizmente, o mesmo problema se coloca por esse lado. E a
escolha dos filmes apresentados pelas televisões para
comemorar Auschwitz pôs em cena novamente a questão de
como mostrar os campos.
Evidentemente não com imagens reais: estas são ausentes
pela própria lógica do processo, que apagou seus vestígios.
Então pela ficção, à maneira de "Holocausto" [série de
quatro episódios exibida na TV americana em 1978 e
assistida por mais de 120 milhões de pessoas em todo o
mundo], isto é, por meio do destino de alguns indivíduos
envolvidos no processo, do lado dos carrascos ou das
vítimas?
Mas nossa empatia pelo destino trágico da família Weiss é
igualmente suspeito: compartilhar a infelicidade de uma
família sofredora não é esquecer o que essa família deveria
encarnar, o destino dado a um povo inteiro? A comiseração
que experimentamos por aqueles que vão entrar na câmara
de gás e até nossa identificação com os combatentes do gueto
não têm um efeito contrário? Elas tornam presentes aqueles
cuja existência, e mesmo seus vestígios, o plano nazista
pretendia suprimir. Elas nos impedem, portanto, de
considerar friamente a monstruosidade do plano global de
extermínio de uma coletividade e o silêncio em que esse
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processo se efetuou.
O segundo problema, portanto, seria formulado assim: como
dar forma fictícia ao crime excepcional do extermínio? À
banalização sentimental de "Holocausto" é comum se
contrapor o rigor de "Shoah" [1985]. O filme de Claude
Lanzmann realmente recusa ao mesmo tempo qualquer
imagem histórica e qualquer ficcionalização da história. Ele
quer que o passado esteja presente somente por meio da
palavra dos sobreviventes, confrontada com o silêncio dos
locais de extermínio. Ele pretende, assim, evitar duas formas
de banalização: a da ficção que apaga o extermínio, tornando
presentes os corpos e a do documento histórico que encontra
razões para ele, remetendo a um encadeamento mais amplo
e, finalmente, interminável de causas e efeitos.
A boa representação do extermínio seria, assim, a que separa
o horror do crime de qualquer imagem que o aproxime de
nossa sensibilidade, de qualquer explicação que lhe dê uma
razão aceitável para nossa inteligência. Seria a representação
do irrepresentável. Mas imediatamente se coloca a pergunta:
então, essa boa representação é boa para quê? A resposta está
certamente pronta na forma de uma fórmula repetida: os que
ignoram seu passado estão condenados a revivê-lo. Portanto,
dizemos, é preciso observar o "dever de memória" e olhar
bem para o passado para evitar que ele se repita. Mas o que
entendemos por isso, exatamente?

A boa representa-ção não tem um


efeito mais garantido que a má

A fórmula pode querer dizer duas coisas: é preciso mostrar o


horror em sua realidade sensível para provocar a sensação de
insuportável que leva a recusar as idéias que engendraram o
horror; ou é preciso mostrar como essas próprias idéias
foram engendradas para que o conhecimento do processo
provoque o conhecimento dos meios para impedir que ele se
reproduza.
Mas o purismo da boa representação torna ambas as
deduções caducas. Colocar em imagens corpos que sofrem o
intolerável é oferecê-los à comiseração sentimental ou ao
voyeurismo perverso. Dar razões para o extermínio é
conferir-lhe uma justificativa. O horror do extermínio deve
ser deixado sem outra causa além da monstruosidade de seu
próprio projeto. Mas então não se deve esperar nenhum
efeito do conhecimento do passado para evitar que ele se
reproduza. A política da memória se contradiz. E a boa
representação não tem um efeito mais garantido que a má.

Normas de aceitabilidade
Aí está o fundo da coisa. A comparação entre as boas e as
más maneiras de representar a história confunde dois
problemas. De um lado, define normas de aceitabilidade. Ela
quer, por exemplo, que evitemos representações que
transformam os criminosos em homens iguais aos outros. Ela
supõe que seremos menos sensíveis à barbárie hitlerista se

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virmos o ditador enternecido por seu cão ou afetuoso com


sua secretária. Mas ela também quer que essas normas de
aceitabilidade sejam princípios de utilidade.
Ora, como a representação de um Hitler batendo em seu cão
ou em sua secretária seria mais útil à causa do combate ao
nazismo? E como a representação do extermínio como
mecânica desencarnada é mais adequada para alimentar o
ódio ao anti-semitismo do que a representação dos
sofrimentos das vítimas ou do estado de espírito dos
carrascos?
Podemos sempre estabelecer critérios para dizer que "Shoah"
é mais adequado que "Holocausto" para traduzir a
monstruosidade do genocídio e respeitar a memória de suas
vítimas. Outra coisa é deduzir disso sua capacidade de
proibir no futuro formas equivalentes de monstruosidade.
Entre a boa maneira de falar do horror passado e a maneira
útil de evitar o horror no futuro, não há nenhuma ligação
necessária. O pensamento edificante que quer utilizar o
conhecimento do passado para garantir o futuro talvez tenha
ficado no tempo dos príncipes e dos preceptores que lhes
ensinavam os exemplos a ser imitados para ganhar batalhas e
governar povos.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" (ed. 34). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

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