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A causa primeira
Onde situar a fronteira que permite declarar o fato
constituído como tal, em sua auto-suficiência, e considerar
todo nexo suplementar como uma interpretação extrínseca?
Se a polêmica sobre a excepcionalidade do Holocausto judeu
parece interminável, é porque duas exigências contraditórias
se defrontam aqui. Para que o Holocausto seja reconhecido
como um fato indiscutível, é preciso que seja isolado em sua
brutalidade factual, fora de todo o debate interpretativo sobre
as razões que o puseram na ordem do dia nazista. Mas, para
que seja reconhecido como realidade de Holocausto
antijudeu, é preciso inversamente que a interpretação
remonte a uma causa primeira, a uma razão necessária e
suficiente, que assegure que foi de fato uma vontade original
de extermínio dos judeus que foi posta em aplicação nos
campos da morte. Mas onde fixar essa causa primeira? O
delírio único de um chefe de Estado ou de um grupo fanático
não constitui uma razão necessária. Esta é identificada então
pelos teóricos da singularidade radical do Holocausto ao
velho ódio dos gentios contra os judeus. A realidade do
Holocausto é posta assim como indissociável de uma
determinada interpretação. Mas aqui retorna o argumento:
por que esse ódio antigo e universal assumiu somente nesse
país e nesse momento essa forma específica sobre a qual
sabemos, aliás, que também foi aplicada a outras categorias
de "degenerados": doentes mentais e ciganos? A dialética do
fato e da "intenção" ameaça então desdobrar-se ao infinito,
pondo em xeque a intenção própria daquele que se detém em
tal ou qual ponto da cadeia de nexos. O livro de Finkelstein
denuncia assim, na tese do ódio imemorável, uma submissão
dos fatos a uma interpretação interessada. Vincular o
Holocausto a uma vontade exterminadora impossível de
erradicar é para ele justificar, em todos os aspectos, a política
de autoconservação do Estado israelense e a política de
apoio americano. Mas o que ele opõe ao cenário do
Holocausto que denuncia não é a simples nudez dos fatos; é
um outro cenário interpretativo, o cenário clássico da
suspeita, que se indaga a razão oculta pela qual se fala tanto
de tal fato e de tal sofrimento e que conclui invariavelmente
que é para ocultar outros fatos. O "Holocausto" vira assim,
em seu discurso, a cobertura ao abrigo da qual Israel
perpetua a espoliação dos palestinos, enquanto os EUA
podem esquecer os massacres e as injustiças que marcaram
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05/09/2020 Folha de S.Paulo - + autores: A nova querela do Holocausto - 08/04/2001
Tradição interpretativa
Mas tão logo o problema é posto, tem início uma troca de
argumentos inverificáveis entre partidários de Israel ou da
Palestina. Essa interiorização da querela do negacionismo
remete a dois fenômenos intelectuais mais profundos. Trata-
se primeiro do desdobramento de nossa idéia de realidade. A
prova do real se faz duplamente: pela inserção dos
fenômenos num encadeamento de causas e efeitos e, ao
contrário, pelo seu caráter bruto, sem razão.
Se essa dualidade está no coração do conflito teórico sobre o
Holocausto, é, claro, porque o processo mesmo de
extermínio e o apagar programado dos vestígios reclamaram
o longo desvio da reconstrução argumentativa para impor a
realidade dos fatos. E é também porque a impossibilidade de
atribuir uma relação necessária e suficiente põe em questão a
racionalidade dos fenômenos políticos e sociais.
É evidentemente sintomático que os ataques presentes contra
a "indústria do Holocausto" venham de um judeu marxista
norte-americano. Este se apresenta como uma espécie de
último dos moicanos, alguém que permaneceu fiel à tradição
progressista que foi, nos Estados Unidos, a dos imigrantes
judeus. Mas não é somente uma tradição política que ele
reivindica. É antes uma tradição de interpretação: aquela que
liga os fenômenos políticos e ideológicos a suas causas
sociais e os fatos locais, qualquer que seja a singularidade ou
enormidade, ao emaranhado global de causas e interesses. A
querela sobre o Holocausto põe em xeque a validade das
explicações globalistas de tipo econômico-social, às quais se
vê oposto um irracional irredutível: seja aquele dos fatos
brutos, seja aquele do ódio primordial que lhe dá causa. O
que há no pano de fundo do furor de um marxista judeu
norte-americano contra seus pares é essa situação ideológica
singular, na qual as novas formas radicais da dominação
mundial são acompanhadas de um interdito pronunciado
sobre as formas de explicação globais que com elas se
pretendem medir.
A partir disso, é possível compreender a temporalidade
singular do fato consumado, segundo a qual o fato do
Holocausto se impôs como ruptura histórica. Novick e
Finkelstein lembram como o Holocausto estava pouco
presente na consciência ocidental depois de 1945 e atribuem
à guerra árabe-israelense e à vitória israelense de 1967 a
reviravolta do espíritos. Porém foi ainda mais nos anos 90
que se impôs a visão do Holocausto como divisor de águas
da história do mundo. Claramente essa ruptura retrospectiva
marcava o luto de uma outra ruptura da história do mundo,
esta chamada revolução, e cujos últimos avatares ruíram na
queda do império soviético e na esperança frustrada de ver
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