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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: A nova querela do Holocausto - 08/04/2001

São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

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A nova querela do Holocausto


Jacques Rancière

É evidentemente sintomático que os ataques presentes


contra a "indústria do Holocausto" venham de um judeu
marxista americano, que se apresenta como uma espécie
de último dos moicanos, alguém que permaneceu fiel à
tradição progressista que foi, nos Estados Unidos, a dos
imigrantes judeus

A nova querela do Holocausto


Uma atmosfera de escândalo paira sobre as recentes obras de
Peter Novick ("The Holocaust in American Life", O
Holocausto na Vida Americana, ed. Houghton Mifflin Co.,
EUA) e de Norman Finkelstein ("A Indústria do
Holocausto", ed. Record). A segunda, em particular, já
desencadeou nos Estados Unidos e na Inglaterra, e depois na
Alemanha e na França, uma violenta polêmica. Eis aqui um
judeu, filho de sobreviventes de Auschwitz, que denuncia,
com a mais extrema violência, a exploração política,
ideológica e financeira do Holocausto pelas grandes
organizações judaicas. A essa virulência respondeu uma
reação veemente de rejeição, e o autor foi acusado de
negacionismo. Acusação caluniosa, retruca ele: um
negacionista é alguém que nega a existência do Holocausto.
Ora, de sua parte, ele afirma resolutamente a existência do
holocausto, com h minúsculo, como fato histórico.
Denuncia, em compensação, o Holocausto com h maiúsculo,
seja a elaboração ideológica do Holocausto como
acontecimento único, incomparável a nenhuma outra forma
histórica de massacre ou de genocídio, especificamente
ligado ao ódio ancestral dos gentios contra os judeus, seja
como justificativa de um apoio incondicional ao Estado de
Israel e à sua política -isto é, também ao Estado federal
norte-americano, purificado, com esse apoio, de toda mácula
em relação a índios ou negros da América, tal como a
crianças vietnamitas queimadas com napalm ou crianças
iraquianas esfaimadas. Se essa resposta pouco satisfez aos
contraditores, é porque precisamente a questão negacionista
pôs a descoberto o que há de problemático na simples
distinção entre os fatos e as interpretações dos fatos. Um fato
histórico é constituído como tal pela interpretação que liga
de uns aos outros uma multiplicidade de fatos materiais. Um
dos pioneiros do negacionismo, o francês Paul Rassinier, ele
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próprio sobrevivente do campo de Buchenwald, fornecera,


nos anos 50, a primeira demonstração disso. Ele não negava
as seleções regulares nos campos nem a presença das
câmaras de gás. Apenas punha em dúvida o nexo entre esses
dois fatos. Estava mesmo disposto a aceitar a idéia de que
houve, efetivamente, mortes por asfixia. Apenas punha em
dúvida a dependência delas a uma vontade planificadora
global. Podemos dizer que os documentos reunidos desde
então fizeram jus a essas argúcias. Mas, se o negacionismo
ainda perdura e se podemos hoje acusar de negacionismo
mesmo alguém que reconhece a realidade do extermínio
nazista dos judeus da Europa, é porque o traçado da fronteira
entre os "fatos" e as "interpretações" é infinitamente mais
sinuoso do que parece à primeira vista.

A causa primeira
Onde situar a fronteira que permite declarar o fato
constituído como tal, em sua auto-suficiência, e considerar
todo nexo suplementar como uma interpretação extrínseca?
Se a polêmica sobre a excepcionalidade do Holocausto judeu
parece interminável, é porque duas exigências contraditórias
se defrontam aqui. Para que o Holocausto seja reconhecido
como um fato indiscutível, é preciso que seja isolado em sua
brutalidade factual, fora de todo o debate interpretativo sobre
as razões que o puseram na ordem do dia nazista. Mas, para
que seja reconhecido como realidade de Holocausto
antijudeu, é preciso inversamente que a interpretação
remonte a uma causa primeira, a uma razão necessária e
suficiente, que assegure que foi de fato uma vontade original
de extermínio dos judeus que foi posta em aplicação nos
campos da morte. Mas onde fixar essa causa primeira? O
delírio único de um chefe de Estado ou de um grupo fanático
não constitui uma razão necessária. Esta é identificada então
pelos teóricos da singularidade radical do Holocausto ao
velho ódio dos gentios contra os judeus. A realidade do
Holocausto é posta assim como indissociável de uma
determinada interpretação. Mas aqui retorna o argumento:
por que esse ódio antigo e universal assumiu somente nesse
país e nesse momento essa forma específica sobre a qual
sabemos, aliás, que também foi aplicada a outras categorias
de "degenerados": doentes mentais e ciganos? A dialética do
fato e da "intenção" ameaça então desdobrar-se ao infinito,
pondo em xeque a intenção própria daquele que se detém em
tal ou qual ponto da cadeia de nexos. O livro de Finkelstein
denuncia assim, na tese do ódio imemorável, uma submissão
dos fatos a uma interpretação interessada. Vincular o
Holocausto a uma vontade exterminadora impossível de
erradicar é para ele justificar, em todos os aspectos, a política
de autoconservação do Estado israelense e a política de
apoio americano. Mas o que ele opõe ao cenário do
Holocausto que denuncia não é a simples nudez dos fatos; é
um outro cenário interpretativo, o cenário clássico da
suspeita, que se indaga a razão oculta pela qual se fala tanto
de tal fato e de tal sofrimento e que conclui invariavelmente
que é para ocultar outros fatos. O "Holocausto" vira assim,
em seu discurso, a cobertura ao abrigo da qual Israel
perpetua a espoliação dos palestinos, enquanto os EUA
podem esquecer os massacres e as injustiças que marcaram
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sua história. Mas a suspeita sobre a "intenção" logo se volta


contra ele: pôr em relação os mortos do Holocausto não mais
com as causas do massacre, mas com os índios americanos
exterminados ou os vietnamitas bombardeados é submeter os
fatos a um cenário de comparação que os dissolve na longa
história das atrocidades humanas, na qual tudo se equilibra e
se equivale. E, no coração desse cenário, o que se manifesta
é a intenção de enfraquecer a posição moral de Israel diante
dos palestinos.

Tradição interpretativa
Mas tão logo o problema é posto, tem início uma troca de
argumentos inverificáveis entre partidários de Israel ou da
Palestina. Essa interiorização da querela do negacionismo
remete a dois fenômenos intelectuais mais profundos. Trata-
se primeiro do desdobramento de nossa idéia de realidade. A
prova do real se faz duplamente: pela inserção dos
fenômenos num encadeamento de causas e efeitos e, ao
contrário, pelo seu caráter bruto, sem razão.
Se essa dualidade está no coração do conflito teórico sobre o
Holocausto, é, claro, porque o processo mesmo de
extermínio e o apagar programado dos vestígios reclamaram
o longo desvio da reconstrução argumentativa para impor a
realidade dos fatos. E é também porque a impossibilidade de
atribuir uma relação necessária e suficiente põe em questão a
racionalidade dos fenômenos políticos e sociais.
É evidentemente sintomático que os ataques presentes contra
a "indústria do Holocausto" venham de um judeu marxista
norte-americano. Este se apresenta como uma espécie de
último dos moicanos, alguém que permaneceu fiel à tradição
progressista que foi, nos Estados Unidos, a dos imigrantes
judeus. Mas não é somente uma tradição política que ele
reivindica. É antes uma tradição de interpretação: aquela que
liga os fenômenos políticos e ideológicos a suas causas
sociais e os fatos locais, qualquer que seja a singularidade ou
enormidade, ao emaranhado global de causas e interesses. A
querela sobre o Holocausto põe em xeque a validade das
explicações globalistas de tipo econômico-social, às quais se
vê oposto um irracional irredutível: seja aquele dos fatos
brutos, seja aquele do ódio primordial que lhe dá causa. O
que há no pano de fundo do furor de um marxista judeu
norte-americano contra seus pares é essa situação ideológica
singular, na qual as novas formas radicais da dominação
mundial são acompanhadas de um interdito pronunciado
sobre as formas de explicação globais que com elas se
pretendem medir.
A partir disso, é possível compreender a temporalidade
singular do fato consumado, segundo a qual o fato do
Holocausto se impôs como ruptura histórica. Novick e
Finkelstein lembram como o Holocausto estava pouco
presente na consciência ocidental depois de 1945 e atribuem
à guerra árabe-israelense e à vitória israelense de 1967 a
reviravolta do espíritos. Porém foi ainda mais nos anos 90
que se impôs a visão do Holocausto como divisor de águas
da história do mundo. Claramente essa ruptura retrospectiva
marcava o luto de uma outra ruptura da história do mundo,
esta chamada revolução, e cujos últimos avatares ruíram na
queda do império soviético e na esperança frustrada de ver
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nascer de suas ruínas uma democracia regenerada.


É nesse contexto que a irredutibilidade do Holocausto se
tornou a recusa emblemática do pensamento marxista da
história: da história como racionalidade global dos fatos
históricos e como temporalidade orientada por uma
promessa de emancipação. A invocação do "imemorável"
ódio dos gentios contra os judeus e da impossibilidade,
depois de Auschwitz, de pensar e viver como antes, é coisa
totalmente diversa do argumento interessado denunciado por
Finkelstein. Ela opera uma reviravolta emblemática da
direção do tempo, opondo às promessas do futuro que guiava
os pensamentos da emancipação a hipótese de um passado
imemorial, que não acaba de passar.
Se a explicação entre os partidários da excepcionalidade do
Holocausto judeu e aqueles que querem integrá-lo no grande
entrelaçamento histórico e mundial de causas é tão violenta,
é porque ela põe frente a frente dois avatares de certezas
militantes e da expectativa histórica de ontem. Ela opõe
aqueles que devolveram a grande promessa na forma de um
passado imemorial e aqueles que querem mantê-la em vigor
mesmo que ela seja de simples furor argumentativo. A
querela sobre o Holocausto é também um luto do
pensamento revolucionário. Eis por que o simples
conhecimento dos fatos sem dúvida está longe de liquidar a
querela das intenções.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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