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RESENHA CRÍTICA DO FILME: “A NEGAÇÃO”

O objetivo deste trabalho é analisar criticamente os aspectos


histórico-pedagógicos, sociais e culturais do filme “A Negação”, produzido
no ano de 2016 pelo diretor Mick Jackson e disponível na plataforma de
streaming Netflix. Esta análise será feita com foco nos argumentos
utilizados pelos dois personagens principais do drama histórico, a
saber: Deborah Lipstadt (professora, historiadora e especialista
americana sobre o Holocausto, representada por Rachel Weisz) e
David Irving (escritor e historiador revisionista/negacionista do Holocausto,
representado por Timothy Spall).
Ademais, também será feita uma abordagem explicativa para esclarecer o que
foi e o que representou o Holocausto judaico na História da humanidade, bem
como, qual é o papel de um historiador que busca o esclarecimento da
verdade. Deborah Lipstadt é uma renomada pesquisadora que, em seu
aclamado livro Denying the Holocaust: the growing assault on truth and
memory (1993), ataca veementemente o historiador David Irving, um
prolífico escritor de livros sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e
sobrea Alemanha nazista de Adolf Hiter (1889-1945), dizendo que
ele é "um dos porta-vozes mais perigosos da negação do Holocausto".
No ano seguinte, após a publicação do livro de Lipstadt no Reino Unido, a
historiadora realiza uma palestra para divulgar e abordar o conteúdo
de sua obra, mas é prontamente interrompida por Irving, que estava
sentado na plateia e desafia todos os ouvintes a apresentar-lhe algum
documento que comprove a existência do Holocausto. Após várias discussões
calorosas e ampla repercussão na mídia, o negacionista entrou com
um processo por difamação nos tribunais ingleses contra Lipstadt e sua
editora, a Penguin Books, no ano de 1996.Recebendo tal notificação, ela
preparou sua defesa com a ajuda de uma equipe de primeira classe de
advogados, historiadores e especialistas, e a partir desse momento um
julgamento dramático irá se desenrolar ao longo do filme.
esqueçamos, também, do antissemitismo que sempre esteve presente
por toda a Europa, em especial no Reino Unido, pois esse país –
com posse de regiões do Oriente Médio desde a assinatura do
Acordo Sykes-Picot no final da Primeira Guerra – teve de findar o Mandato
Britânico da Palestina (1920-1948) em um processo global de descolonização
afro-asiática e ceder às pressões internacionais para a criação do Estado judeu
de Israel, o que provocou um certo ressentimento dala conservadora
britânica contra o movimento sionista, que havia atingido seu ápice
após a revelação do Holocausto perpetrado pelos nazistas: 6 milhões
de judeus sem pátria que foram exterminados em campos de
concentração e de trabalhos forçados. Para enfrentar esse espécime de
pessoa com que se apresenta David Irving, é natural que surjam dois
caminhos, embora opostos, para combatê-lo: o agir racional,
representado pelos advogados de Lipstadt versus o agir emocional,
observado nas atitudes da historiadora. Dessa dicotomia, pode-se
dialogar com a noção de interdependência entre a memória, que é
subjetiva e relembrada por Lipstadt para tentar dar voz de testemunho a
alguns sobreviventes do Holocausto, e a História, que por sua vez é objetiva
assim como a linha de defesa adotada pelos advogados, que vão até o
campo de concentração Auschwitz-Birkenau na Polônia para fazer
todos os tipos de indagações bilaterais e imparciais possíveis acerca
das fontes históricas – o que se assemelha a ideia de “crítica
erudita da fonte” inaugurada por Lorenzo Valla no século XV. O
embate interno entre ela e seus defensores fica cada vez mais constante, o
que também nos permite, para subsidiar aprofundar essa questão,
relembrar as diferenças presentes entre a filosofia experimental de
Francis Bacon (1561 – 1626), em que a descoberta de fatos verdadeiros não
depende do raciocínio silogístico aristotélico, mas sim da observação e
da experimentação regulada pelo raciocínio indutivo – o que se
aproxima da linha de pensamento de Lipstadt – e a filosofia
racionalista/metódica de René Descartes (1596 – 1650), que privilegia
a razão em detrimento da experiência do mundo sensível como via de
acesso ao conhecimento, além de considerar a dedução como o método
superior de investigação filosófica – assemelhando-se à postura dos
advogados da pesquisadora.
saber histórico e a respeito da função do historiador como um
“mestre da verdade”. Para tal questionamento, o historiador e sociólogo
francês François Dosse relembra-nos sobre o surgimento do “histor” em sua
conhecida obra “A História” (2000):Com Heródoto, nasce o historiador,
pelo duplo uso do nome próprio e da terceira pessoa desde o prólogo
de sua obra que estabelece uma distância; uma objetividade em relação a
matéria narrada [...] Ele substitui as musas e os heróis como autor do
relato. O mestre da verdade não é mais o ator, mas torna-se o ausente da
história: esse é o lugar ocupado pelo historiador, cujo discurso é a própria
marca da separação, da distância atestada pelo uso do "ele" que lhe permite
desdobrar seu relato. (DOSSE, 2000, p.14-15)Para Heródoto, o verdadeiro
“mestre da verdade” é aquele que se posiciona de uma forma ausente da
História, isto é, o lugar do historiador deve ser puramente epistêmico.
Entretanto, por mais que a distância preconizada pelo “Pai da História” seja
temporal, é extremamente difícil para o historiador se manter neutro,
tanto é que em sua obra-prima de nove livros batizados como
“Histórias”, Heródoto se esforça tanto para relatar a história das
Guerras Médicas, sob a ótica e perspectiva dos povos gregos que
defendiam seu território dos invasores persas, quanto também para
viajar e investigar a realidade de povos considerados “bárbaros”, ou seja,
aquelas pessoas quenão viviam no “mundo civilizado” da pólis grega, o que lhe
custou uma série de julgamentos.Essa mesma linha de pensamento -
embora mais etnocêntrica - também é adotada pelo discípulo de
Heródoto: o ateniense Tucídides, que escreve o livro “História da
Guerra do Peloponeso” mesmo sendo um dos militares atuantes no
conflito entre Atenas e Esparta. Entretanto, diferentemente de seu
mestre, Tucídides não se preocupa somente em obter a verdade através de
uma investigação judiciária, isto é, com o uso de testemunhas
oculares, mas promove uma ruptura com Heródoto ao se preocupar
em estabelecer e sistematizar um conjunto de regras para o método de
obtenção da verdade histórica, sobre o qual o historiador François Dosse
também busca explicar em detalhes na mesma obra “A História” (2000):
Por trás do relato factual, a preocupação demonstrativa de Tucídides exige
dele fazer escolhas, evitar perder-se no turbilhão de acontecimentos, em
função das quatro regras de unidade: a unidade de lugar, o mundo grego em
sentido amplo; a unidade de tempo, a duração do conflito entre Atenas e
Esparta; a unidade decomposição com uma demonstração que contém tudo; e,
enfim, uma unidade de
problema, o da guerra. Seus encadeamentos tentam escapar da contingência
e privilegiam a parte psicológica das decisões humanas. (DOSSE, 2000,
p.24)Dessa forma, não seria diferente com os dois historiadores envolvidos no
embate da trama de Mick Jackson e, com isso, vale destacar que seria
incorreto estabelecer juízo de valor em cima dos argumentos utilizados por
ambos os lados sem antes verificar a autenticidade de suas fontes na operação
historiográfica. Em suma, conclui-se que, a partir do episódio debatido no
filme, ainda existem pessoas na História com o viés do negacionismo
histórico e discriminatório, e diversos exemplos podem comprovar
isso: a recusa da Turquia em reconhecer o genocídio armênio durante
a 1ª Guerra; os defensores da ideia de que não existiram ditaduras militares
nos países latino-americanos ao fim do século XX e, até mesmo,
negacionistas da escravidão negra. Ademais, o filme também ganha
caráter atual pois discute essa questão em uma época na qual
conceitos como “verdades alternativas”, “fake news” e “era da pós-
verdade” ganham relevância assustadora. Tanto é que David Irving,
além de manter sua posição negacionista, continua com um elevado
número de seguidores, adeptos e defensores das suas ideias, sendo esse
panorama um fenômeno crescente em escala global que pode ser
explicado, por exemplo, a partir da noção de “banalidade do mal
“proposta pela filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt (1906-1975), na
qual defende que, em resultado da massificação da sociedade proposta pelos
regimes totalitários, se criou uma multidão incapaz de fazer julgamentos
morais, razão porque aceitam e cumprem ordens sem questionar.
Portanto, cabe o bom senso e o caráter honesto em reconhecer
falhas hereditárias que podem prejudicar a sociedade como um todo.
Somente assim, aprenderemos com a História a não cometer, no
presente, os mesmos erros do passado.

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