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Urbano Zilles

Membro da Academia Brasileira de Filosofia

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO


GRANDE DO SUL

Chanceler: Dom Altamiro Rossato


Reitor: Ir. Norberto Francisco Rauch
Conselho Editorial:
Antoninho Muza Naime FÉ E RAZÃO NO PENSAMENTO
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Jorge Alberto Franzoni
Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva 2aEDIÇÃO
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano Zilles (presidente)
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FILOSOFIA - 1

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1996
3- O PROBLEMA DA FÉ E DA RAZÃO

Durante os primeiros séculos do Cristianismo, no Ocidente,


não surgiram escolas teológicas como no Oriente. Aí formaram-se
grandes escolas em Alexandria, Cesaréia da Palestina, Cesaréia da
Capadócia e na Síria. No Ocidente, a organização de escolas junto
às grandes abadias, junto às catedrais e junto aos palácios realiza-
se, a partir do século VII, dé modo especial a partir de Carlos
Mll:gtlO. Nessasescolas desenvolve-se a "Escolástica".
O problema da relação entre fé e razão passa por uma evolu-
ção histórica.· Depois da época dos padres da Igreja, podemos dis-
cernir três momentos na evplução da filosofia medieval: a) o re-
nascimento carolíngeo e a primeira escolástica (séc. IX ao séc.
XII); h) o apogeu da escolástica (século XITI); c) a decadência da
escolástica (séc. XIV e XV).

3.1 - A primeira escolástica

()s bárbaros eram de religião politeísta, mas aos poucos as-


sumiram o Cristianismo. Na queda do império e das instituições
civis, a única organização que permaneceu de pé foi a Igreja. Cul-
. turalmente, o ingrediente germânico fundiu-se com o latino e cris-
tão. Três séculos após a invasão bárbara ainda não havia frutos si-
. gilificativos no campo das letras, nem das ciências, nem das artes.
Mas nos últimos anos do século VITI e primeira metade do século
IX, na Europa Ocidental, produz-se um grande despertar cultural.
O Renascimento carolíngeo olha para o futuro, mas sobretudo para
o passado. Seus promotores admiram os modelos antigos, que pro-
curam imitar e assimilar. Consideram-nos modelos de perfeição
literária, retórica e dialética. Os carolíngeos antecipam-se aos hu-
manistas, até certo ponto, na sua paixão de procurar e colecionar

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manuscritos antigos de autores pagãos e Santos Padres para formar fazer esta sede parcialmente com a fonte da razão. Desde a encar-
bibliotecas e fazer coleções de manuais. Guilherme Fraile diz: nação de Cristo, todavia, foi dada nova fonte ao conhecimento
humano: a revelação divina. Esta deve ser aceita na fé. Por isso
"O renascimento carolíngeo foi essencialmente gra- todo o conhecimento deve começar por um ato de fé.
matical e literário. Mas neste campo tem méritos in-
Entretanto o conhecimento deve seguir à fé, pois esta não só
discutíveis. Deve-se a ele ter estagnado a corrupção
do latim pela volta aos autores clássicos. Seus repre-
exige obras, mas a compreensão da própria verdade. A fé é apenas
sentantes rendem culto ao livro e à biblioteca. Preo- o princípio do conhecimento de Deus. -Primeiro a razão deve des-
cupam-se em recuperar códigos antigos, reproduzi- cobrir o sentido profundo das palavras da revelação. A partir de tal
los em cópias e resumi-los em florilégios. Desse tra- conhecimento, a razão pode, depois, buscar uma compreensão per-
balho beneficiaram-se não só os autores clássicos, feita das coisas. À razão deve subordinar-se, pois, à fé e à revela-
mas também os Santos Padres. O culto da antigüida- ção mas não à autoridade humana.
de estava unido a um interesse crescente pelo estudo Há alguns textos do Eriúgena que afirmam que a razão ape-
das fontes da cultura sagrada que resultou num bom nas se deve subordinar à fé e à revelação, não à autoridade huma-
número de sábios, num ambiente saturado de barbá- na: "Pois a autoridade procede da verdadeira razão, mas a razão de
rie. Mas seu fruto mais eficaz, de maior transcen-
nioâo algum procede da autoridade. Toda autoridade, com efeito,
dência, foi a organização das escolas" (História da
Filosofia, v. II, 1o, 1966, p. 285).
que não se vê aprovada pela verdadeira razão, parece débil, en-
quanto a verdadeira razão, como está assistida e se mantém firme e
1
No período do renascimento carolíngeo, queM. Grabmann imutável por seus próprios recursos, não necessita do reforço de
chamou de pré-Escolástica (Die Geschichte der scholastischen autoridade alguma. A autoridade parece-me não ser outra coisa que
Methode, Freiburg, Herder, 1911), no mínimo, houve uma semente a verdade encontrada pelo poder da razão e transmitida por escrito
de uma restauração da cultura e de investigação teológica e filosó- pelos Santos Padres para utilidade dos pósteros". (In:
FERNANDEZ, Cl. vol. II, p. 24). Conclui que, por isso, primeiro
fica.
se dev~rá usar a razão e depois a autoridade, se esta não nos der
uma interpretação falsa da revelação: "Que não te afaste, pois, ne-
3.1.1- João Escoto Eriúgena
nhuma autoridade daquilo que te ensinou a dedução racional obti-
da da reta contemplação. Pois a autêntica autoridade não se opõe à
Neste período destaca-se a figura de João Escoto Eriúgena
reta razão, nem a reta razão à autêntica autoridade porque, sem
(810-877). Entre suas preocupações domina a de harmonizar filo-
dúvida, ambas dimanam de uma mesma fonte, a saber, da sabedo-
sofia e religião. Reconhece o primado da fé. Mas como a fé prece-:-
ria divina" (In: FERNANDEZ, Cl. vol II, p. 22).
de o conhecimento, assim este deve seguir a fé, pois a razão tem a
A filosofia, segundo o Eriúgena, tem três fontes: a) a revela-
tarefa de descobrir o sentido profundo que se oculta nas palavras
ção, que está acima de qualquer discussão; b) a autoridade dos
da Escritura, aceitas pela fé. Está convencido de que a fé pode ser
Santos Padres, que às vezes pode ser discutida, porque pode estar
provada pela razão. Tenta construir os dogmas da religião a partir
em desarmonia ou com a revelação ou com a razão; c) a filosofia,
da razão. Neste sentido é racionalista.
no sentido da razão, a serviço da revelação.
Eriúgena tem um conceito claro de fé e de revelação. Admi-
A doutrina do Eriúgena foi entendida como um panteísmo
tindo que a sede de saber é uma tendência inata do gênero humano,
de emanação (apesar do termo criação), segundo o qual nada existe
diz que, antes da vinda de Cristo, os homens só conseguiram satis-
totalmente distinto do próprio Deus. Sem dúvida, Escoto foi o pen-

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sador de maior envergadura intelectual da época e um dos racio- Em segundo lugar, divide a natureza em quatro espectes:
nalistas mais audazes e perspicazes da Idade Média. Nele já encon- "Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em
tramos um esboço do que séculos mais tarde será a teologia medi- quatro espécies. A primeira é a divisão da natureza que cria e não é
eval. O princípio e o fundamento será a fé na autoridade de Deus, criada; a segunda, a que é criada e cria; a terceira, a que é criada e
que revela as verdades contidas na Sagrada Escritura. A isto acres- não cria; a quarta, a que não é criada e nem cria" (ibidem).
ce a incorporação da filosofia e a necessidade do esforço racional A colocação de Escoto Eriúgena é de nítida inspiração neo-
para explicá-la e interpretá-la. Para garantir as conclusões, recorre- platônica. Para ele, tudo tem origem em Deus, ser incriado criante
se à autoridade dos Santos Padres. Entre suas obras destacam-se: (natura creans nec creata), a partir do qual realizam-se outros es-
De divina praedestinatione (PL 122, 355-440); De divisione natu- tádios do ser: o ser criado que cria (natura creans creata), corres-
rae, escrito no período de 862-865; De divisione naturae, sob a ponde às idéias divinas (Lagos); o ser criado não criador (natura
forma de diálogo, foi condenado pela Igreja em 1225. creata nec creans), todo existente no tempo e no espaço, o mundo
No De divina praedestinatione lemos: das criaturas sensíveis; e o ser não criado não criante (natura nec
creata nec creans), o próprio Deus, enquanto fim último ao qual
"Que outra coisa significa tratar da filosofia que tudo retoma. O princípio e o fim estão interligados por uma cadeia
tratar das regras da verdadeira religião, na qual a de seres, que começa por Deus e Nele termina: tal sucessão seria a
causa mais sublime e mais nobre de todas as coisas, história, cuja finalidade é desembocar em Deus. Toda a coisa cria-
Deus, é venerado humildemente e investigado racio- da é, pois, uma teofania, uma manifestação de Deus para nós. Esta
nalmente? Segue-se daí que a verdadeira filosofia é a visão de João Escoto lembra o pensamento de S. Paulo: "para que
verdadeira religião e, vice-versa, a verdadeira religi- Deus seja tudo em todas as coisas" (1 Cor 15,28).
ão é a verdadeira filosofia" (I,l; in: FERNÁNDEZ, No Periphyseon ou De divisione naturae diz que "quando
Clemente. Los filosofas medievales: Selecion de
ouvimos, pois, que Deus faz todas as coisas, não devemos entender
textos, p. 43).
outra coisa do que Deus está em todas as coisas, isto é, que Ele é a
essência de todas as coisas. Pois só Ele é o que é por si e só Ele é
Escoto Eriúgena abole qualquer distinção entre religião e
quanto nas coisas que são se diz verdadeiramente ser, pois nada do
filosofia, pois a "verdadeira filosofia outra coisa não é do que re-
que é existe verdadeiramente por si mesmo, mas o que se entende
ligião e, inversamente, a verdadeira religião outra coisa não é do
verdadeiramente ser nele, recebe seu verdadeiro ser pela participa-
que verdadeira filosofia". Chega mesmo a declarar que ninguém
ção Dele, o único que é verdadeiramente por si mesmo" (in: Fer-
pode entrar no céu sem passar pela filosofia.
nández, Clemente. II, p. 27).
Eriúgena usa a dialética para compreender o que crê. A pa-
A rigor Deus se manifesta de quatro maneiras. Primeiro é a
lavra "dialética" indica uma maneira de aproximar-se da verdade.
origem de tudo como a natureza, que cria sem ser criada; segundo,
Consta, para Eriúgena, de dois tipos de divisões que não justifica
é me~a e fim de tudo como a natureza que não cria nem é criada;
no Periphyseon. A divisão suprema e principal de todas é a divisão
terceiro, é também o mundo das idéias que parte Dele como a na-
da natureza nas coisas que são e que não são: "Pensando eu muitas
tureza que é criada e cria; quarto, o mundo das coisas reais como a
vezes e estudando com a maior diligência que posso, a primeira e
natureza que é criada e não cria.
suprema divisão de todas as coisas, que ou estão ao alcance de
Desta maneira "Deus é criado na criatura de modo milagroso
nossa mente ou a superam, nas que são e nas que não são, vem-me
e indizível, manifestando-se como o invisível que se faz visível"
à mente como termo geral, para designá-las, o grego physis e o la-
(De div. praed III, 17). Por isso toda a criatura visível pode ser
tino natura (in: Fernández, Clemente, II, p. 4.).

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chamada teofania, ou seja, manifestação divina. Neste sentido, possa ser chamada propriamente de verdade ou seja propriamente
toda a interpretação filosófica da realidade toda é palavra sobre verdade. A apofática despoja a divindade de todos aqueles signifi-
Deus. cados com os quais a veste a catafática" (De divis. naturae, in:
Às vezes tem-se a impressão de que o Eriúgena confunde a FERNANDEZ, Clemente, vol. II, p. 18).
filosofia primeira com a teologia. A lógica aristotélica é uma ci- O Eriúgena vê Deus presente em toda parte, e ao mesmo
ên~ia geral que visa a ordenar os conceitos conforme as relações tempo a tudo transcendente, uma vez que seu conhecimento se dá
existentes entre os mesmos. Mas não se deve confundir o processo ao ritmo de afirmações e negações.
de elevação ao conceito comum de ser (filosofia primeira) pela Escoto Eriúgena fundamenta a teofania de Deus em todas as
abstração com o conceito de Deus (teologia), pensando que ambos coisas no amor: "Em primeiro lugar, pois, escuta esta definição do
conduzem ao mesmo termo. Isto é ilusão. Pelo processo abstrativo amor: o amor é a conexão e o vinculo com que a totalidade de to-
das diferenças que distinguem todos os seres chegamos ao concei- das as coisas se unem entre si com uma amizade inefável e uma
to generalíssimo de ser. Trata-se de um caminho lógico, que não unidade indissolúvel. Também se pode definir da seguinte manei-
deve ser identificado com o conceito ontológico, que é Deus. A ra: o amor é o fim e repouso do movimento natural de todas as
Deus deve chegar-se por caminhos diferentes que constituem o coisas que se encontram em movimento para além do qual já não
objeto da teologia. hánenhum movimento na criatura" (in: Femández, Clemente, II, p.
Inspirado em Dionísio Areopagita, Eriúgena distingue 28). E argumenta: "Com razão, pois, Deus é chamado amor, por-
enunciados afirmativos ou negativos sobre Deus. Em sentido me- que é a causa de todo o amor e se difunde através de todas as coi-
tafísico, podemos predicar dele quase todos os atributos das coisas sas e recolhe todas as coisas e volta a si num inefável movimento
criadas, como também as categorias. Por outro lado, todos esses de retorno e é o termo dos movimentos amorosos de toda a criatu-
atributos também podem ser negados de Deus por não se lhe apli- ra. A mesma difusão da natureza divina em todas as coisas que
carem em sentido próprio. estão nela e dela procedem, diz-se que é amor, não porque se di-
"Quando chegares a raciocinar perfeitamente, te parecerá funda em algum modo o que carece de todo o movimento e o en-
bastante claro que a afirmação e a negação, que agora te parecem che todo, mas porque difunde através de todas as coisas o olhar da
contraditórias entre si, não se opõem absolutamente uma à outra mente racional (e move, por sua vez, por ser causa da difusão e do
quando são atribuídas à natureza divina, mas, ao contrário, estão movimento da alma) para que busque e encontre e, na medida do
em mútua harmonia, completamente e sob todos os pontos de vis- possível, entenda aquele que enche todas as coisas para que exis-
ta. Para que isto fique mais claro para ti, valho-me de alguns tam e com o abraço da paz do amor universal une a todas as coisas
exemplos. Por exemplo, a catafática afirma 'é verdade', enquanto a numa unidade inseparável, que é o que é Ele mesmo, e os retém in-
apofática diz 'não é verdade'. Parece haver aqui uma certa forma de separavelmente entre si" (ibidem).
contradição, mas uma análise mais atenta não descobre nenhum Quanto ao conhecimento de Deus, Eriúgena concorda com
contraste. Com efeito, quem diz 'é verdade' não afirma que a subs- Dionísio Areopagita, ou seja, Deus é indizível, incompreensível,
tância divina seja verdade em sentido próprio, mas sim que se inacessível pela razão. Deus está acima de tudo que Dele se pode
pode chamá-la por tal nome como metáfora da criatura ao criador. dizer racionalmente. Só a experiência mística da graça permite o
E assim ela reveste com tal nome a essência divina nua e despoja- acesso a Ele.
da de um significado próprio. Já quem diz 'não é verdade', compre- João Escoto Eriúgena toma, pois, como ponto de partida de
endendo claramente que, com razão, a natureza divina é incompre- sua especulação filosófica o problema da verdade contida na reve-
ensível e inefável, não nega que ela seja verdade, mas nega que ela lação. Segundo ele, a "letra" da revelação é insuficiente para quem

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conhece a riqueza da razão, pois para captar o "espírito" da palavra tre civilização e religião, com declarada proeminência do elemento
divina é preciso usar a razão. A investigação da verdade, no texto espiritual, ou seja, da Igreja sobre o Império.
da revelação, constitui-se na "filosofia verdadeira". Por isso há
coincidência entre filosofia e religião. Filosofia é a razão a serviço 3.1.2- S. Anselmo de Cantuária
da investigação sobre Deus e a sua ciência é a religião. Mas a ra-
zão, pela sua limitação no contexto humano, não pode abarcar No século XI, na primeira Escolástica, salienta-se a obra de
uma verdade pertencente à esfera ilimitada do espírito divino. Anselmo de Cantuária ( 1033-1 109), natural de Aosta (Itália),
Pressupõe, em última análise, a fé que transcende a mera raciona- monge beneditino de Bec, na Normandia, e depois arcebispo de
lização. Cantuária, na Inglaterra. Foi o homem típico de uma época que
João Escoto Eriúgena foi o primeiro pensador medieval que desconhecia fronteiras nacionais. Lutou em defesa da Igreja e des-
conseguiu elaborar uma síntese racional e orgânica das correntes envolveu intensa atividade cultural. Escreveu obras como o Mono-
doutrinárias mais importantes da época: a doutrina agostiniana da lógion (1 076-77), um solilóquio sobre a natureza de Deus; o
iluminação, o paralelismo entre discurso mental e realidade extra- Proslógion (1 077), especialmente aplicado à existência de Deus; o
mental, que resolveu com recurso aos elementos plotinianos, a Livro apologético, destinado a defender-se contra as críticas rece-
doutrina dos predicáveis de Boécio. Conseguiu definir os limites bíâas~ o De veritate e o De libero arbitrio. Em sua História da
do panteísmo com sua notável divisão da natureza em ser e não Filosofia Cristã, Boehner e Gilson afirmam:
ser. Provavelmente não houve síntese filosófico-teológica igual
antes da aparição do sistema hegeliano nos tempos modernos. A
"Com s: Anselmo a filosofia cristã começa a con-
quistar domínios novos e a enveredar por rumos no-
aspiração mais profunda de Eriúgena é chegar ao conhecimento de
vos, mas sem renunciar em nada aos antigos. Revi-
Deus por dois caminhos: pela natureza e pela Bíblia. gora-se a velha tradição agostiniano-boeciana pela
A rigor, o Eriúgena toma a mesma atitude diante de todos os adição de novas energias. Frente a seus predecesso-
dados: Escritura ou natureza. Tanto os dados do intelecto como os res imediatos, Anselmo representa a síntese clássica
dos sentidos, cada um é uma teofania, pois procedem de Deus com da teologia e da dialética. Dentro do conjunto da
o mesmo objetivo que as palavras da Bíblia: para O manifestar. evolução que dele arranca, podemos chamar-lhe
Em outras pàlavras, Deus, criando, "cria-se", para exprimir que se com razão o ll!"~i;+Bscolást!ca" (p. 254).
manifesta. Desta forma, o mundo natural, no qual vivemos, é da
mesma ordem que a Sagrada Escritura e as coisas nele significam M. Grabmann diz que "o pai da Escolástica é S. Anselmo de
o mesmo que as profecias e os salmos. Tudo volta a Deus Cantuária, um gênio especulativo que se destaca sobre seus con-
(deificativo). Por isso, para o Eriúgena, todo o conhecimento de temporâneos, uma figura de pensador fortemente caracterizada,
Deus supõe uma teofania, uma manifestação da divindade, distinta inflamada no espírito de S. Agostinho, no qual se juntaram e com-
dela. O intelecto só percebe a Deus nos intermediários. O Deus, penetraram a fé e a ciência, a teologia e a piedade, a especulação e
que se manifesta em todas as coisas, permanece "em si" absoluta- a contemplação, o estudo dos santos padres e a dialética"
mente inacessível. (Filosofia medieval, p. 73-74).
Escoto Eriúgena, de certa forma, sintetiza todo o conheci- Perante a discussão entre dialéticos e antidialéticos afirma
mento da época. Deu uma sustentação teológico-filosófica à unifi- que o homem tem duas fontes de conhecimento: a fé e a razão,. Re-
cação do poder secular e do poder religioso. Trata-se, aqui, de uma conhece, contra os dialéticos, a primazia absoluta da fé. E um
unificação programática entre poder secular e poder religioso, en- monge medieval de fé muito firme em busca de razões. Mas, inspi-

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rado em S. Agostinho, esforça-se por harmonizar a razão com a fé. de do outro. Portanto, só resta uma hipótese inteligível, ou seja,
Expressa sua posição através da fórmula que se tornou famosa: tudo o que existe, existe em virtude de uma só causa. E esta causa
''fides quaerens íntellectum", ou seja, a fé deseja e necessita da ra- que existe por si é Deus.
zão. A atitude que adota quanto às relações entre a razão e a fé está Anselmo apresenta ainda uma terceira prova da existência
clara no Monológion, escrito a pedido de alguns monges de Bec. de Deus baseada nos graus de perfeição que as coisas possuem. No
Os monges lhe haviam solicitado algumas meditações sobre a mundo há coisas mais ou menos perfeitas. O cavalo é superim à
existência e a essência de Deus baseadas, apenas, em argumentos arvore, e o homem é superior ao cavalo. Ora, se há seres uns mais
racionais. perfeitos que os outros, é necessário admitir ou que existe uma in-
Anselmo parte do dado da fé, mas tenta compreender o que finidade de seres e que nunca se encontrará um ser tão perfeito que
crê. Não confunde fé e razão, mostrando uma confiança quase não haja outro mais perfeito ou há um número finito de seres e,
ilimitada na última. Argumentando na pura dialética, não podia portanto, um ser mais perfeito que todos os demais. Mas afirmar
tornar os mistérios em si mesmos inteligíveis mas mostrar pelas que existe uma infinidade de seres seria absurdo. Por isso, existe
chamadas "razões necessárias" que a razão humana bem conduzida necessariamente um ser que é superior aos outros sem ser inferior
pode afirmá-los. Usando a técnica filosófica disponível em sua a nenhum. Se admitir que haja várias naturezas iguais, o são por-
época, não recua perante a dificuldade de demonstrar a necessida- quetêm algo em comum. Se o que têm em comum é a sua essên-
de da Trindade e da Encarnação do Verbo (Cur Deus homo? ). cia, na realidade, apenas são uma natureza; se o que têm em co-
Anselmo dedica grande esforço à demonstração da existên- mum é algo distinto de sua essência, existe outra natureza superior,
cia de Deus. No Monológion essas provas partem de dois pressu- mais perfeita que todas. 1
postos: a) as coisas são desiguais em perfeição; b) tudo que possui Essas três provas a posteriori partem da realidade dada e
alguma perfeição em maior ou menor grau, a possui porque parti- aplicam a razão a um dos aspectos da experiência: existe o bem,
cipa dessa perfeição considerada em sua forma absoluta. Assim, existe o ser e existem os graus de perfeição. A existência de Deus
tudo que é mais ou menos justo, o é porque participa mais ou me- é a explicação necessária para esses diferentes aspectos da realida-
nos da justiça absoluta; tudo que é bom participa do bem absoluto. de. Mas, Anselmo busca uma só prova, que resuma as demais, no
Tudo que é bom o é porque e enquanto participa do bem absoluto e Proslógion. Formula aí o famoso argumento sobre a existência de
só ele é bom por si mesmo. Só este é soberanamente grande, supe- Deus, desde Kant chamado ontológico ou anselmiano. Parte da
rior a tudo que existe. Chamamo-lo Deus. idéia de que a palavra "Deus" indica um ser perfeito, o maior de
Este mesmo argumento, Anselmo aplica-o ao nível do ser. todos; mas se Deus não existisse, seria preciso supor algo que fos-
Tudo que é tem uma causa. A questão é saber se a totalidade das se ainda maior e que tivesse existência real, pois existir é uma das
coisas deriva de várias causas ou de uma só. Se o universo tem vá- perfeições; então a palavra "Deus" só pode indicar um ser realmen-
rias causas, ou se reduzem a uma só ou existem por si ou se produ- te existente. Se, desse modo, Anselmo demonstra logicamente a
zem umas as outras. Se se reduzem a uma só, esta é a causa do existência de Deus, isto não significa que, para ele, a razão se so-
universo. Se existem por si, pelo menos têm em comum esta facul- breponha à fé. É a fé que fornece a verdade divina, que torna pos-
dade de existir por si. Neste caso é esta faculdade que as faz ser e sível o uso sem equívoco da razão. Diz Anselmo:
podem ser consideradas como subordinadas à mesma causa. A hi-
pótese de que umas produzem as outras é contrária à própria ra- "O insipiente há de convir igualmente que existe, na
zão, pois isto é falso nos próprios termos de uma relação. "Amo" e sua inteligência, "o ser do qual não se pode pensar
nada maior", porque ouve e compreende essa frase; e
"escravo" são relativos um ao outro, mas nenhum existe em virtu-

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tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteli- O argumento anselmiano é chamado ontológico, porque
gência. Mas "o ser do qual não é possível pensar partir da análise da idéia de Deus, que está na mente, deduz-se
nada maior" não pode existir somente na inteligên- sua existência fora da mente.
cia. Se pois, existisse apenas na inteligência, poder- A argumentação anselmiana mostra, por um lado, que a
se-ia pensar que há outro ser existente também na existência de Deus era questionada naquele tempo. Por outro, tra-
realidade; e que seria maior. Se, portanto, "o ser do duz, em conclusões racionais, um núcleo fundamental do fato re-
qual não é possível pensar nada maior" existisse so-
ligioso da época. Mostra, outrossim, um racionalismo de indiscutí-
mente na inteligência, este mesmo ser, do qual não
vel raiz platônico-agostiniana. A argumentação anselmiana, entre-
se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual
é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que tanto, foi atacada por um contemporâneo seu, o monge Gaunilão,
certamente, é absurdo. Logo, "o ser do qual não se da abadia de Marmoutier, perto de Tours, que, no seu livro Liber
pode pensar nada maior" existe, sem dúvida, na in- pro insipiente, sustentou que de uma coisa, cuja idéia exista no
teligência e na realidade~' (Proslógion, II). pensamento, não se pode concluir sua existência real. Gaunilão
disse que se pode pensar uma ilha fabulosa, perdida no oceano,
Anselmo elaborou um argumento apriorístico, a partir da mas ninguém poderá afirmar que realmente existe pelo fato de que
própria idéia de Deus. A fé ministra-lhe a idéia de Deus sobre a tenha a idéia da ilha no pensamento. Gaunilã~i,\ifêJeítou, pois, a
qual vai raciocinar. Esta idéia é a maior que se pode pensar, e passagem do m~Hndo ideal para o mundo real. S. Anselmo logo re-
como tal deve existir na realidade, pois se só existe no pensamento bateu a Gaunilão, afirmando que a idéia de uma ilha fabulosa pode
e não na realidade, caberia pensar uma maior, que também existis- pensar-se sem concluir necessariamente sua existência, mas com a
se na realidade, porque isto implica mais que existir só no pensa- idéia de Deus é diferente. Nesta oportunidade desenvolveu a dis-
mento. Portanto, é impossível pensar que não haja Deus porque tinção entre essência e existência. Só em Deus, não nas criaturas,
sua existência responde a uma rigorosa necessidade lógica. essência e existência se confundem.
Os termos essenciais do argumento anselmiano são os se- Mais tarde Tomás de Aquino, na Suma contra os gentios,
guintes: a) Deus é "aquilo do qual nada de maior se pode pensar" retoma a objeção de Gaunilão: "mesmo que todos entendam pelo
(id quo maius cogitari nequit). E isso é pensado pelo ateu como nome deus algo acima do qual nada de maior se possa conceber,
pelo tolo ou insensato quando, no seu coração, diz: "Deus não não é necessário que exista na realidade este algo acima do qual
existe". Para negar a Deus o ateu sabe estar falando de um ser do nada de maior se possa conceber. De fato, deve haver correspon-
qual não é possível pensar nada maior. Portanto, se o ateu pensa dência entre a coisa e o nome que a define. Contudo, daquilo que o
Deus, Deus está no seu intelecto. Mas ao negar sua existência, o espírito concebe quanto ao nome de deus, só se pode concluir que
ateu afirma que Deus não existe fora do seu intelecto, ou seja, na deus existe apenas na nossa mente. Por outro lado, não é menos
realidade. Nisso Anselmo vê a contradição, pois. se ele pensa que necessário que o ser acima: do qual nada de maior se possa conce-
Deus é o ser do qual nada de maior se pode pensar e, ao mesmo ber esteja na nossa mente. Pois bem, de tudo isso não se pode
tempo, nega que Deus existe fora do seu pensamento, sugere ad- concluir que exista na natureza algo acima do qual nada de maior
mitir que seja possível algo maior do que Deus, algo que, além de se possa conceber( ... ) Mas cOmo não lhe podemos ver a essência,
existir no pensamento, exista também na realidade. Ora, se Deus é chegamos ao conhecimento do seu ser não por meio dele, mas por
o ser em relação ao qual nada pode ser maior, não se pode conside- meio dos seus efeitos" (S.c.G. I, XI, 2 e 4).
rá-lo como existente apenas no pensamento, porque nesse caso não Nos tempos modernos, o argumento ontológico foi repetido
seria o maior. por Descartes (Princip. Phil. I, 14), por Leibniz, que o reformulou

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(Monad. § 45). Hegel defendeu-o, afirmando que só no que é finito esperança que há em vós; mas fazei-o com modéstia e respeito,
a existência é diferente do conceito e que "Deus deve ser expres- tendo uma boa consciência" (1 Pd 3,15-16).
samente o que só pode ser pensado como existente, cujo conceito
implica a existência. do conceito e do ser constitui, 3.1.3- Pedro Abelardo
precisamente, o conceito de Deus" (Enciclopedia, §51).
No prólogo do Proslógion, Anselmo invoca a Deus: "Eu não No século XII ocorre uma renovação social e econômica
tento, Senhor, aprofundar-me nos teus mistérios, porque a minha com a cavalaria e o movimento comuna!; uma renovação religiosa,
inteligência não é adequada, mas desejo compreender um pouco da com as cruzadas, a reforma monástica de Cister (os cistercienses)
tua verdade, em que o meu coração já crê e ama. Eu não procuro e a fundação de muitas ordens novas; uma renovação cultural nas
compreender-te para crer, mas creio para poder compreender-te". letras, nas artes e nas ciências. É o prelúdio do grande século da
O programa de Anselmo, foi, sem dúvida, esclarecer com a razão Escolástica. Nesse período destaca-se Pedro Abelardo (1079-
aquilo que já se possui com a fé. Confia na capacidade da razão 1152), discípulo de Roscelino e Guilherme de Champeaux. Ensi-
humana de lançar luz sobre os mistérios da fé cristã e de demons- nou filosofia e teologia em Paris com grande êxito. Mas este su-
trar sua coerência, sua plausibilidade e até sua necessidade. cesso, conforme seu próprio testemunho, na História Calamitatum
Trata-se, sempre, de uma meditação racional sobre as ra- (autobio-grafia), levou-o a uma aventura amorosa com a jovem
zões da fé (fides quaerens intellectum), dentro do princípio "credo Heloísa da qual nasceu o filho Astrolabius (caído do céu). Iniciou
ut intellegam" (creio para compreender). A fé procura a inteligên- aí o drama de sua vida. Depois de castrado traiçoeiramente, ingres-
cia, ou seja, Anselmo tenta esclarecer com a razão aquilo que já se sou na abadia de S. Denis ~ Heloisa ingressou no convento de Ar-
possui com a fé. Situa a razão no interior da fé, ou seja, constitui genteuil. .
um exemplo de meditação sobre a racionalidade da fé" Pedro Abelardo situa-se no movimento iniciado com os dia-
(Monológion). léticos e com S. Anselmo. Com os dialéticos compartilha a incli-
Anselmo, de modo semelhante a João Escoto Eriúgena, pro- nação e o talento para a lógica e com Anselmo divide a preocupa-
põe-se a racionalização da verdade revelada. Também manifesta ção em elucidar os mistérios da fé por via racional. Defende uma
uma incondicional confiança na razão humana, mas, ao mesmo lógica sã como instrumento útil à teologia. Entre suas obras, po-
tempo, pressupõe o ato de fé para chegar a conhecer a verdade demos destacar: /ntroductiones parvulorum, Dialectica, Sic et non,
divina. Anselmo, entretanto, rejeita o conflito entre razão e fé, não História calamitatum e Theologia christiana.
valorizando demais a razão em detrimento da fé. Recorre à pers- Pedro Abelardo teve uma vida inquieta e atormentada. Suas
pectiva da "iluminação interior" de S. Agostinho para compreender obras revelam-no, entretanto, como "a outra vertente da Idade
o que se crê.Stm a 'tê nifõ há comp~B'SãO, para ele; Jmas não pro- Média", uma Idade Média ainda pouco explorada, inovadora e
compreender racionalmente o que se crê, é negligência. A contestadora. Depois de ver algumas de suas teses condenadas no
fórmula de S. Anselmo, "crer para compreender", dirige-se, de um concílio de Soissons, em 1121, e no concílio de Sens, em 1140,
lado, contra os dialéticos descrentes e, de outro, contra os inimigos apela ao Papa por uma avaliação mais justa. Na viagem, cansado e
da dialética. O escolástico assim satisfaz a herança grega, segundo prostrado, bate às portas do mosteiro de Cluny, onde Pedro, o ve-
a qual o filósofo trabalha com a razão, mas responde, também, ao nerável, o acolhe com carinho. Aí recolheu-se em oração, morren-
apelo da Escritura, quando diz aos crentes que sempre estejam do em 1142. Pedro, o venerável, ditou o seguinte texto para o seu
prontos "para responder a todos os que vos pedirem razão daquela túmulo:

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Abelardo visa a uma teologia dialética que possibilite o
"Sócrates da França, sumo Platão do Ocidente, mo-
derno Aristóteles, êmulo ou maior dos dialéticos de aprofundamento especulativo da fé pela aplicação dos recursos da
todos os tempos; príncipe dos estudos, famoso no lógica aristotélica. A fé deve ser razoável, ou seja, conforme a ra-
mundo, gênio multiforme, penetrante e agudo; tudo zão. Diz que é impossível haver fé sem um certo concurso da ra-
superava com o poder da razão e a arte da palavra: zão. Só esta capacita-nos a optar entre autoridades contrárias e as-
esse era Abelardo." segurar os preâmbulos da fé. Heloísa, compartilhando sua posição,
chegou a escrever-lhe dizendo que sem a razão crítica, a Bíblia se-
Abelardo foi um daqueles que mais participaram na discus- ria como um espelho colocado diante de um cego. Abelardo queria
são sobre os universais, enfrentando sobretudo o realismo de Gui- tornar o mistério cristão mais compreensível, mas não queria pro-
lherme de Champeaux, sem aderir ao nominalismo de seu mestre faná-lo. Queria, isto sim, torná-lo mais acessível à inteligência
Roscelino. Sua posição foi interpretada como a de um conceitua- humana. Desta forma, não é a razão, mas a fé a norma da vida e a
lismo ou como um realismo moderado. Abelardo representa uma fonte da salvação. Como Anselmo, Abelardo está convencido de
posição mais aristotélica que platônica. que a razão não desvirtua a fé. Entretanto, a especulação teológica
Na controvérsia em torno dos universais, problemas levan- de Abelardo orienta-se conscientemente pela lógica.
tados no início da Isagoge de Porfírio, deu a seguinte solução: -- - Abelardo é uma figura singular, seja por sua vida, seja por
a) o universal não é uma coisa; seu pensamento. Influenciou profundamente o método escolástico
b) o universal é um nome ou um "sermo" predicável a uma e a consideração da lógica aristotélica através da tradução de
\
série indefinida de indivíduos porque significa uma natureza mul- Boécio, sendo o precursor mais importante de Alberto Magno.
tiplicada e reproduzida nos indivíduos; Concorda com seu maior adversário, Bernardo de Claraval, dizen-
c) os universais formam-se por abstração, apreendidos pela do que "somos verdadeiramente dignos de ser chamados filósofos
inteligência nos particulares; quando amamos realmente a Cristo" (Theologia Christiana, li).
d) a abstração de Abelardo difere da abstração aristotélica, Com Abelardo inicia o aristotelismo medieval através de seu inte-
propondo apenas uma teoria psicológica da abstração. resse pela lógica aristotélica.
Diz-se que a universalidade convém aos nomes enquanto es- Abelardo desenvolveu um método em sua obra Sic et non,
ses exercem a função de expressões significativas (sermones); e o que renova o espírito universitário em sua época, pois "duvidando,
significado outra coisa não é senão a apreensão da realidade. Mas chegamos à investigação, investigando percebemos a verdade".
essa apreensão não é uma realidade nova. É uma representação, Estabelecida a dúvida, o questionamento e a análise crítica, trans-
um objeto do pensamento ou umfictum. Com isso Abelardo apre- formava a dialética num método de pesquisa, antepondo a pesquisa
sentou uma solução de equilíbrio que se tornou clássica até o sécu- à própria "discussão".
lo XIV. Miguel Spinelli assim resume:
Abelardo foi o dialético mais importante de sua época. A ra-
zão dialética é, para ele, razão crítica a ser aplicada a todos os "O método Sic et non (dos prós e dos contras, ou das
campos. Crê que a dúvida é um fecundo ponto de partida e que da contradições) apresenta, obviamente muitos aspectos
controvérsia surge a verdade, tal como procedeu em Sic et non. positivos e testemunha um esforço de objetividade.
Procede como um homem convencido de que a razão pode pene- É um método que sente efeito particularmente na
trar e esclarecer os mistérios revelados. Sofreu os ataques impla- análise crítica de problemas históricos. E é assim que
cáveis de S. Bernardo que o qualificou de "o segundo Aristóteles". parece ter sido concebido por Abelardo, cujo com-
portamento mental andava, em muitos aspectos, em

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vantagem a seu tempo. Noutros, apesar do vigor de ficativos da história do pensamento, pois, na Europa, até então,
seu pensamento, decisivamente racionalístico, per- predominava o platonismo.
manece ainda fechado em problemas teológicos tra-
Nesta época constituem-se não só as universidades. S. Do-
dicionais. Sua preocupação, com relação a esses
problemas, consistia numa aplicação mais decisiva mingos de Gusmão funda a Ordem dos Pregadores (1206) e S.
da lógica ou dialética, no aprofundamento racional Francisco de Assis, os Irmãos Menores (1210). As novas ordens
da fé cristã" (Spinelli, p. 110-111). religiosas peregrinavam por todos os recantos da Europa, em con-
tato com o povo, ao contrário dos monges que viviam mais retira-
Pedro Abelardo contribuiu para o triunfo de Aristóteles na dos nos mosteiros com voto de estabilidade (beneditinos). Domini-
lógica e na teoria do conhecimento em sua época; para o aperfei- canos e franciscanos ganharam prestígio e influência. Dessas duas
çoamento do método escolástico, que encontra as suas formas de- ordens saíram grandes pensadores. Em geral, os franciscanos fica-
finitivas; para o sucesso da teologia especulativa, usando a dialéti- ram mais próximos ao pensamento platônico e os dominicanos
ca na ciência sagrada. acolheram, com entusiasmo, as idéias de Aristóteles.
Na primeira Escolástica, teologia e filosofia ainda não foram As universidades tomaram-se centros de ensino, pesquisa e
distinguidas nitidamente. Só mais tarde as relações entre ambas de_discussões acadêmicas. Do ponto de vista religioso, os cruzados
são precisadas. A sistematização da teologia fazia nascer proble- tomam Constantinopla (1204) e o Ocidente todo professa a fé ca-
mas de natureza filosófica que, por sua vez, auxiliavam a compre- tólica. A Igreja católica, e nela o papado, assume lugar central.
ensão e definição dos dogmas. A tradição cristã, norma regulamen- Enquanto as ordens monásticas, aparecidas nos séculos anteriores,
tadora da investigação, dava garantia contra o erro. A filosofia, por viviam nos campos, os fra~ciscanos e dominicanos escolheram as
sua vez, era o instrumento dessa investigação, que só no século cidades, conclamando o povo a menosprezar o mundo e a viver
XIII chega a uma maturidade mais plena. uma vida austera. Preocupados com a pregação, as novas ordens
Em síntese, se se pode resumir o pensamento de S. Anselmo logo se deram conta da impmtância das universidades e conquista-
na expressão "credo ut intelligam", pode resumir-se o pensamento ram cátedras.
de Abelardo na expressão "intelligo ut credam". Embora a dialéti- Pelo fim do século XII, na Europa, tomou-se conhecimento
ca, ou seja, a lógica é uma ciência autônoma, o fim do itinerário dos textos gregos das restantes obras de Aristóteles, que foram tra-
filosófico é Deus. Como para Anselmo, também para Abelardo, a duzidas para o latim. Na tarefa da tradução destacaram-se Henri-
revelação divina oferece os conteúdos. Mas, diferentemente de que Aristipo, Bartolomeu de Mesina, Roberto Grossatesta e Gui-
Anselmo, Abelardo não crê que a razão possa dar explicações de- lherme Moerbeke. O último trabalhou a pedido expresso de Tomás
finitivas. de Aquino. Havia grandes centros de tradução, como em Toledo e
Nápoles.
3.2 - O apogeu da Escolástica A difusão do pensamento aristotélico foi dificultada pelo
fato de a obra de A vicena ter sido traduzida para o latim antes da
A Escolástica chega ao auge no fim do século XII. No co- de Aristóteles. Como Avicena era seguidor das doutrinas de Aris-
meço do século XIII ocorrem as heresias valdense e albigense, a tóteles, o pensamento deste apareceu nos centros culturais euro-
terceira (1189) e a quarta cruzadas (1203) e, com o papa Inocêncio peus mesclado de avicenismo. A vi cena não só expunha as idéias
culmina o poder temporal dos papas. A obra de Aristóteles é do estagirita, mas as interpretava com as suas próprias idéias. Com
introduzida no mundo latino, produzindo um dos giros mais signi- espírito crítico confrontaram-se as doutrinas e novas idéias surgi-
ram, produzindo um renascer da cultura.

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Para entender o alcance desse renascimento é preciso ter xandre de H ales (ca. 1170-1245), que, de algum modo, foi para S.
presente que a sociedade da época se baseava em três instituições Boaventura o que S. Alberto Magno foi para S. Tomás de Aquino,
hierárquica e harmoniosamente ordenadas: o sacerdócio, o império ou seja, o mestre.
e o studíum. As grandes questões sociais da época responsabiliza-
vam, nas suas soluções, a pessoa do papa, o poder do imperador e a) S. Boaventura
a sabedoria dos doutores das universidades, sendo orientadores
respectivamente da religião, da política e da cultura. Entre os franciscanos destaca-se S. Boaventura, cujo nome
A lenta difusão das obras de Aristóteles, física e metafísica, verdadeiro era João Fidanza (1217-1274). Fpf~discípulo de Ale-
a exemplo dos escritos lógicos, que já eram conhecidos e utiliza- xandre de Hales. Ensinou em Oxford e Paris.'Fõ'i geral de sua or-
dos, despertou para uma explicação racional do mundo e uma vi- dem, bispo de Albano e cardeal. Foi contemporâneo e amigo de
são filosófica do homem totalmente independentes das verdades Tomás de Aquino. Tornou-se conhecido como "Doctor Seraphi-
cristãs. A novidade era que agora se dispunha não só de instrumen- cus". Escreveu 65 obras. Conhecidos são seus Comentários aos
tos formais autônomos, mas também de conteúdos próprios e no- quatro livros das sentenças de Pedro Lombardo (1250-1255), o
vas perspectivas, que conduziam a filosofia para uma relativa au- Itinerarium mentis in Deum (1259), o Breviloquium (1257) é De
tonomia em relação à teologia. Cristianiza-se Aristóteles e, ao · redüctione artium ad theologiam (1257).
mesmo tempo, aristoteliza-se o Cristianismo. A relação entre razão Boaventura preocupa-se com a unidade do saber cristão. Se-
e fé, filosofia e teologia, entra em novas perspectivas. gundo ele, para um pensador cristão, a filosofia é apenas um ele-
mento na aquisição da s~bedoria integral, e não uma sabedoria
3.2.1- A escola franciscana completa. Por isso, em sua obra há uma filosofia, mas essa não
existe em estado puro. Muitas vezes resolve os problemas filosófi-
Com a autorização do papa, as chamadas ordens mendican- cos em função de sua teologia.
tes - os franciscanos e dominicanos - ingressam nas universidades. Boaventura aceitou muitos elementos do aristotelismo
'
Eles defendem a ortodoxia contra as heresias. Os dialéticos pas- como a teoria da abstração para o conhecimento sensível, mãs para
sam a ser combatidos porque, primeiro, se dedicam à especulação a questão de Deus e da alma mantém-se na posição agostiniana. O
e só depois à devoção. A causa da especulação é atribuída ao aris- fundamento do conhecimento humano, para ele, em última instân-
totelismo. cia, encontra-se no conhecimento de Deus. Sobre Deus não há
Os franciscanos, inicialmente, aceitaram o aristotelismo maior prova de sua existência que a própria idéia que Dele temos e
mas, depois, substituíram-no pelo agostinismo. Mas nem todos que, se não existisse, não poderíamos ter. Desta forma aproxima-se
adotaram as idéias da maioria dos confrades. Coisa semelhante do argumento ontológico de S. Anselmo. Compartilha a teoria da
aconteceu com os dominicanos. Por isso é difícil determinar as in- iluminação de S. Agostinho: Deus é luz e fundamento objetivo dos
fluências platônicas e aristotélicas nas duas ordens. primeiros princípios e de toda a verdade.
Cerca de 1220 os franciscanos chegaram a Paris, com o ob- Para Boaventura, o conhecimento de Deus não é um conhe-
jetivo de fazer apostolado através da pobreza e humildade, pois o cimento ao lado de outros. Ao dizer que o homem tem de Deus
fundador da ordem certamente não imaginara seus seguidores uma idéia inata, não entende que possua uma visão imediata de
como professores universitários. Quase ao natural, alguns dedica- quem seja Deus, uma intuição de Deus a modo do ontologismo.
ram-se ao estudo da teologia e da filosofia. Já em 1231, o primeiro Boaventura quer dizer que este conhecimento é a possibilidade
franciscano assume uma cátedra na Universidade de Paris: Ale- primeira na qual se realiza todo e qualquer conhecimento. Deus é a

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luz, sob cuja luminosidade todos os entes são conhecidos, e na Como em Platão e depois em Plotino, no Itinerário a filoso-
medida em que ilumina os entes é conhecido ele próprio (Luis A. fia torna-se íntima vivência de Deus, convertendo-se em mística. A
De Boni. S. Boaventura: a unidade da ciência, da fé e da vida, in: filosofia de Deus consuma-se com o estudo da Revelação, inserin-
Leopoldianum, v. 11, nO 32 (1984)p. 92). do-se nela. Todo esse mundo de conhecimentos conduz à mística
'
No Itinerário Boaventura diz: e
que os unifica a todos, numa visão de síntese conduz o todo a
uma suprema vivência do espírito. Todo o mundo da ciência, ·se-
"Não sendo a felicidade outra coisa senão a fruição gundo S. Boaventura, unifica-se num ato vivido de Amor: "O amor
do sumo bem, e estando o sumo bem acima de nós, vai muito mais longe que o conhecimento", sendo a síntese final e
ninguém pode tornar-se feliz se não subir acima de si
únicã a teovidência. Embora o universo seja espelho de Deus, des-
mesmo, não por ascensão corporal, mas de coração.
Ora não podemos elevar-nos acima de nós, senão por cobre-se a Deus por uma espécie de experiência íntima.
uma força superior que nos levante. Por mais que se Desta forma o fim último de todo o conhecimento também
disponham os degraus interiores, se o auxílio divino não se encontra na teologia que, enquanto saber racional, possui
não nos acompanha, nada se consegue" (I,l). caráter transitório. A finalidade última de toda a atividade humana
é a união com Deus, através do amor. Para Boaventura, a ciência é
Este auxílio divino acompanha os que rezam, pois "a oração apenas um degrau, uma escada, um instrumento, que conduz a
é a mão e a origem do impulso para o alto" (I,l). Para chegarmos Deus. O homem não conhecerá a Deus pelas categorias do racio-
"a contemplar o Primeiro Princípio, que é espiritualíssimo, eterno cínio, mas na pura contemi?lação. A razão conduz até as portas da
e está acima de nós, é necessário passar pelo vestígio, que é cor- mística e, então, cala para ceder lugar à graça. Penetrar neste últi-
poral, temporâneo e exterior a nós. Consiste em 'ser conduzido mo estágio da contemplação e do êxtase é tarefa fora do alcance
pelo caminho de Deus'. É também necessário entrar na nossa das forças humanas. Para isso "é preciso conceder pouco à inda-
mente, que é a imagem evitema de Deus, espiritual e interior a nós. gação intelectual e muito à piedade do coração; pouco à linguagem
Nisto consiste 'entrar na verdade de Deus'. É ainda necessário su- exterior e muitíssimo à alegria interior; pouco à palavra e tudo ao
blimar-se ao eterno, espiritualíssimo e superior a nós, fitando o dom de Deus, que é o Espírito Santo" (Itinerário, VII,5). .
Primeiro Princípio. Nisto consiste o alegrar-se no conhecimento de Boaventura dá grande importância à doutrina do exempla-
Deus, e a reverência da majestade" (1,2). rismo, ou seja, à causalidade exemplar de Deus. Parte do caráter
O conhecimento de Deus por espelho é mais imperfeito e simbólico de todas as coisas, pois todo o ser criado é imagem ou
indireto que o conhecimento em espelho. No primeiro, sobe-se dos vestígio do Criador.Cada coisa tem sua correspondente idéia
seres criados a Deus por uma espécie de escada intermediária; no exemplar no Verbo de Deus. Mas acima de todo o conhecimento
segundo, conhece-se a Deus pela sua presença e ação nas criaturas. intelectual está "a experiência mística e secretíssima, que só co-
Por isso, o conhecimento por espelho é mais remoto, extrínseco e nhece quem a recebe, e ninguém a recebe se não a deseja, e nin-
parcelado, o conhecimento em espelho é mais direto, intrínseco e guém a deseja senão aquele que foi profundamente inflamado pelo
total. Segundo este critério, no Itinerário, faz a dispeculação as- fogo do Espírito Santo" (Itinerário, VII, 4). No conhecimento
cendente de Deus em cada um dos planos: pelo vestígio, no vestí- místico progride-se por sete níveis de iluminação crescente até
gio; pela imagem, na imagem; etc. Na verdade, o Itinerário gira chegar ao sábado eterno da iluminação plena, na qual se contempla
em tomo de um conhecimento mais vivo, mais profundo e consci- Deus face a face. Desta forma sua existência é evidente. Admite,
ente da natureza de Deus, e não de sua existência. contudo, que se possa recorrer a provas para explicitar aquilo que
todos já sabem (pela fé e revelação).

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Para S. Boaventura, a filosofia só se justifica como busca do ção. Comum a Boaventura e Tomás de Aquino é uma fé, mas estão
"itinerário da alma até Deus". Nessa busca, a meta já está dada, de separados por "duas" filosofias.
antemão, pela iluminação divina, que é a fé. Resta à razão buscar,
no mundo sensível (o mundo das criaturas de Deus), vestígios, b) Rogério Bacon
imagens, sinais ou signos das idéias perfeitas, que são o próprio
conhecimento de Deus. Trata-se de conhecer não o que as coisas Em Oxford tornaram-se mais conhecidos os escritos cientí-
são, mas o que significam e representam, como imagens dessa ficos naturais de Aristóteles. Os franciscanos de Oxford continu-
imensa sabedoria divina. Por outro lado, a razão nunca chegou a am as tradições da Escola de Chârtres enxertando a tendência natu-
descobrir a verdade sobre Deus e a alma, a não ser guiada pela fé. ralista no velho tronco do misticismo platonizante. Aí a obra fran-
Defende a posição de que o homem não pode construir uma meta- ciscana começa com Roberto Grossatesta (1175-1253). Mais fa-
física adequada, se a razão não se deixar guiar pela fé. Atribui gra- moso tornou-se Rogério Bacon (1215-1294), seu discípulo. Para
ves erros aos filósofos pagãos porque privados da luz da fé. ele, as provas da experiência constituem a melhor forma de co-
Na obra De reductione artium ad theologiam, Boaventura nhecimento. Por isso Bacon é considerado um precursor da ciência
mostra que todas as ciências, as artes, de modo especial, a filoso- moderna. Transformou a sua cela do mosteiro em um verdadeiro
fia, têm necessidade da teologia como seu complemento necessá- láooratório e, além de propor a expressão scientia experimentalis,
no. preconizou a aplicação do método matemático às pesquisas cientí-
O Doctor Seraphicus, como foi chamado, diz que a alma é ficas. I
forma do corpo, mas a própria alma é constituída por matéria e O franciscano Rogério Bacon escreveu, entre outras obras,
forma. A matéria da alma é "matéria espiritual". Desta maneira ga- Opus maius, Opus minus, Opus tertium, Compendiwn studii philo-
rante a independência da alma em relação ao corpo e sua imortali- sophiae. É um pensador dos contrastes. No seu espírito encontra-
dade. se o tradicionalismo mais extremo com os mais arrojados planos
Boaventura foi um franciscano que exaltou a pobreza e a de reforma. É, ao mesmo tempo, agostiniano, aristotélico e fervo-
simplicidade e subordinou a filosofia à teologia, assumindo clara- roso cultor das ciências naturais, tendo aplicado as matemáticas à
mente a posição agostiniana na relação entre fé e razão. Começa explicação dos fenômenos naturais.
na firmeza da fé para progredir na clareza da razão. Parte do fato Para Bacon, a filosofia, considerada em si, não tem valor. Só
da existência concreta do pensador, que é simultaneamente cristão. adquire sentido quando orientada para o objeto da teologia, pois "a
Tal pensador não pode fazer filosofia como os pagãos a fizeram, filosofia não é outra coisa que a explicação da sabedoria divina?
abstraindo da encarnação e da redenção em Cristo. Boaventura não (Opus maius, II, 18). Por si só, o homem todavia nunca atingirá a
nega o valor da filosofia, mas não aceita que um cristão nela se verdade dos filósofos. Por isso é necessário que essa seja revelada
detenha como se não existisse a revelação. ao homem desde o começo (Opus maius, II, 6). A revelação está,
Enquanto Tomás de Aquino é capaz de escrever tratados de pois, na própria origem da filosofia. A sabedoria perfeita encontra-
filosofia, Boaventura permanece sempre teólogo. Sua filosofia, só se nas Sagradas Escrituras. Nessas deve orientar-se a filosofia: "O
artificialmente, pode ser separada de sua teologia. Enquanto o poder de toda a filosofia está contido nas Sagradas Escrituras"
Aquinate compõe um hino de louvor à razão, Boaventura aponta- (Opus minus, II, 8). Sua tarefa é "fornecer argumentos para a fé
lhe os limites, vendo nela até um risco ou uma ameaça para a fé, cristã" (Opus maius, II, 16). A filosofia é, pois, para Bacon, serva
pois quem pretende ficar na filosofia, acaba caindo em trevas ou da teologia.
erros. Manteve o âmbito da razão sempre submisso ao da revela-

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Para Bacon, há dois modos para chegar ao conhecimento: x4ece-se a realidade sensível e, a p~~tir del_a, a supra-se~~ível. Mas
por argumentação e por experimento. A argumentação conclui, esta só se consegue conhecer por concettos obscuros ou serve
mas não nos oferece segurança por não afastar a dúvida. Por isso, a como apoio para aquilo que previamente já sabemos da revelação.
verdade deve ser buscada pelo caminho da experiência, seja exter- O que sabemos pela revelação sabemos com certeza, mas por ilu-
na ou interna, pois só a experiência confirma, verifica e solidifica a minação e gratuidade divinas, não por capacidade da razão. Em
demonstração. A experiência externa é a que realizamos através outras palavras, segundo Escoto, as verdades fundamentais da. fé
dos sentidos; a interna identifica-se com a iluminação divina de S. (Trindade, Encarnação, etc.) são objetos da fé e não demonstrá-
Agostinho. Através da primeira chegamos às verdades naturais e veis.
através da segunda às verdades sobrenaturais. Com a iluminação Duns Escoto tinha objetivos fundamentalmente religiosos,
interior de Deus, segundo ele, a experiência científica é completa- não propriamente filosóficos. Para ele, a fé, o amor e a ação são
da pela experiência mística. Com Alberto Magno e Roberto Gros- mais importantes para a salvação do que a ciência. A verdade da
satesta, Roger Bacon está no início de uma corrente matemática e fé, segundo ele, encontra-se na revelação bíblica interpretada pela
experimentalista dentro da filosofia Escolástica. Reunindo teoria e tradição da Igreja.
prática, começa um pensamento que conduzirá à ciência moderna Enquanto, para Tomás de Aquino, o conhecimento· só se
e, ao mesmo tempo, à dissolução da concepção tradicional do poâe~ dar no campo das essências universais, Duns Escoto afirma
mundo, tornando-o uma das figuras mais significativas da Esco- que o universal e o individual estão contidos indiferentemente na
lástica tardia e um precursor do empirismo moderno. essência. Isso significa, de um lado, que o real não é para a univer-
Embora entusiasta da experimentação, Bacon sempre procu- salidade que se fragmenta rl.os diferentes indivíduos; de outro, que
rou harmonizar fé e ciência, sem hostilizar a metafísica. Aderiu à as essências não são apenas universais, mas também individuais.
tradição agostiniana de sua ordem, ou seja, à teoria da iluminação. Isso Escoto formula no conceito original de hfltX;f§iJ.as (estidade).
Com este conceito reconhece estatuto de ciência ao individual, o
c) João Duns Escoto que lhe permite valorizar a experiência. A "estidade", que é o
princípio de individuação, não se pode conhecer diretamente por
Na chamada "Escola franciscana posterior" destaca-se João ser objeto de intuição intelectual. O inteligível ou as essências só
Duns Escoto (1266-1308). Foi, em sua época, não só o inspirador se podem conhecer por abstração.
da escola franciscana, mas um dos pensadores mais agudos e in- Para Escoto, só o indivíduo existe, e tudo que existe no in-
fluentes da Escolástica. Chamado Doutor sutil, tentou conciliar divíduo existe individualmente ou individualizado. A natureza co-
numa síntese filosófica o que havia de válido no aristotelismo e no mum não existe como comum no indivíduo, apesar de real, mas
agostinianismo. Entre suas obras podem citar-se: Tractatus de apenas no indivíduo. Por isso sua realidade não se exaure por um
primo rerum omnium principio, Opus oxoniense (comentário às indivíduo, mas existe individualmente em outros, diferente da na-
sentenças), Quaestiones in Metaphysicam. tureza individual que só existe em um indivíduo. Portanto, deverá
Duns Escoto opôs-se ao tomismo adotando parâmetros bási- distinguir-se entre o que existe individualmente e o que é indivi-
cos da tradição agostiniana e anselmiana. Mas conhece a filosofia dual. Todo o individual existe individualmente enquanto nem tudo
de Aristóteles a fundo e aceita alguns de seus elementos. Discorda o que existe individualmente no indivíduo é individual, porque
de Tomás de Aquino quanto às relações entre a razão e a fé. En- algo pode ser comum (natureza comum), e enquanto comum não é
quanto para o Aquinate ambos eram perfeitamente harmonizáveis, individual, embora exista individualmente. A natureza comum,
para Escoto os dois saberes têm pouco a ver um com outro. Co- embora não exista como comum, é real. Isto significa que há uma

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diferença entre existente e real, pois todo o existente é real, mas d) Raimundo Lúlio
nem todo o real é existente. No caso da natureza comum, ela é
abstrata, e o que existe é só concreto. Na escola franciscana deve salientar-se como figura signifi-
Para o "doutor sutil", a metafísica é o fundamento de todas cativa, ao lado de Duns Escoto, Raimundo Lúlio (1233-1316).
as ciências, pois todo o conhecimento é um conhecimento do ser Natural de Maiorca, gostava de viajar. De vida galante, converteu-
diversamente modificado ou diferenciado. O ser divide-se em se e dedicou-se ao apostolado entre os muçulmanos. Escrev<?u a
mental ou de razão e real: o ser mental ou de razão, que propria- novela religiosa Blanquerna, sendo poeta e místico. Tornou-se co-
mente é o universal como tal, só existe no entendimento, sendo o nhecido como Doutor iluminado.
objeto próprio da lógica. Todas as demais ciências tratam do ser Com 22 anos casou-se com Blanca Picany da qual teve dois
real em seus diversos graus de abstração. O ser real, enquanto es- filhos: Domingos e Madalena. Após sua conversão, em 1262, con-
sencial ou "quiditativo", ao contrário do ser existencial ou físico, é sagrou-se totalmente a Cristo e à conversão dos maometanos. Tor-
objeto da metafísica. Por isso, a teologia, enquanto ciência huma- nou-se terciário franciscano.
na, está condicionada pela metafísica. Em 1275, depois de uma experiência mística, da qual saiu
Para Escoto, a teologia, enquanto ciência divina, dispensa com o duplo propósito de preparar-se para o magistério e dedicar-
qualquer fundamentação racional, pois deve basear-se exclusiva- . se à· conversão dos infiéis, e em vista das insistentes queixas de sua
mente na revelação. É uma disciplina prática que fornece, ao cris- esposa, abandonou definitivamente a fanu1ia. É venerado como
tão, normas reguladoras para seu comportamento. Por outro lado, a beato na Catalunha e na ordem dos franciscanos menores.
filosofia é autônoma, ocupando-se do ente enquanto tal e de tudo Eusebi Colomer, em seu estudo sobre Raimundo Lúlio, ca-
que dele se pode deduzir; a teologia trata dos artigos da fé. A filo- racteriza-o da seguinte maneira:
sofia obedece ao procedimento demonstrativo; a teologia, ao pro-
cedimento persuasivo. A filosofia move-se na "lógica do natural"; "Poucos autores oferecem-nos uma imagem tão viva,
variada e colorida do mundo humano e cultural da
a teologia, na "lógica do sobrenatural". Enfim, contra a absorção
Idade Média (... ). Escolástico popular, lógico sutil,
agostiniana da filosofia pela teologia e contra o concordismo to-
polemista religioso, novelista enciclopédico, poeta e
mista entre filosofia e teologia, Escoto propõe a clara distinção místico, o escritor catalão recolhe em sua vasta obra
entre ambos os campos. O "doutor sutil" distingue claramente o quase todos os àspectos daquela época (... ). Lúlio
objeto da razão e o da fé, o método que corresponde à filosofia e o sustenta, em fins do século XIII, idéias e posturas
da teologia. que nos conduzem à metade do século XII. Por ve-
Duns Escoto não afirma que razão e fé se opõem ou contra- zes, certos aspectos chocantes e originais de seu pen-
dizem ou que haja duas verdades. Diz apenas que no terreno da fé, samento não passam, no fundo, de ingênuos anacro-
a razão não tem competência. Por isso não considera as provas da nismos. Suas próprias utopias do futuro, às vezes,
existência de Deus como demonstração no sentido rigoroso da pa- ocultam projeções do passado. Por outro lado, Lúlio
não é um homem alheio a seu tempo. Ao contrário,
lavra. Para ele, demonstrar é deduzir da causa o efeito. As chama-
conhece-o como poucos e o descreve em suas obras
das "provas da existência de Deus" só se referem a Deus enquanto com traços concretos e realistas. Daí a curiosa mes-
ser e não enquanto Deus. O Deus vivo e pessoal da fé está fora do cla de idealidàde e realidade, utopia e concretude,
alcance da razão. Por isso a razão deve abandonar a presunção de velhos anacronismos e antecipações futuristas, que
desvendar os mistérios de Deus, que são objetos da fé. constituem os encantos da obra luliana" (De la Edad
Media al Renacimiento p. 44).

108 109
Lúlio tornou-se conhecido por sua obra Ars Magna. Nesta da. Exemplifiquemos com o último pensamento: "Dize, louco de
obra tenta expressar, em equações e figuras matemáticas, as pro- amor: Que coisa é este mundo?- Cárcere dos que amam, dos ~ue
posições da filosofia e da teologia com o objetivo de converter os servem o meu Amado.- E quem os põe na prisão?- Sua conscien-
muçulmanos à fé cristã. cia, seu amor, seu temor, sua renúncia, sua contrição _e a compa-
Segundo a Ars Magna, cada ciência possui os seus princípi- nhia de gente má. Este mundo é trabalho sem galardao, lugar de
os particulares, diferentes dos das outras ciências. Por isso o inte- reparação" (p. 129). , .
lecto requer e deseja que exista uma ciência geral para todas as ci- A concepção de Lúlio parte de uma metaflSlca descendente,
ências, com os seus princípios gerais em que os princípios das ci- vinculada ao plátonismo cristão. Esse tipo de pensamento move-se
ências particulares estejam envolvidos e contidos, como o particu- de cima para baixo. Em cima está Deus com suas razões, que tudo
lar no universal. A Ars Magna pretende, pois, realizar a unidade do criou. Em baixo está o universo, criado por Deus. Nele encontram-
saber. Para Lúlio, o mundo é, para os que sabem ler, um livro no se a ordem do ser e do pensar. . .
qual se aprende a conhecer o Amado. Parece pressupor a idéia de No pensamento de Lúlio, Deus é a realidade pn~err~. e
que a catolicidade constitui uma religião universal apoiada num originária. É a medida suprema do ser e _d? conhecer, pnnc1p10,
método de pensar igualmente universal. meio e fim de toda a filosofia. O mundo so e compreensivel a par-
A Ars Magna é a base de todo o seu sistema filosófico e teo- ··· tir de Deus. Portanto, fundamentalmente, o pensamento de Lúlio é
lógico, objetivando um método universal para todas as ciências. descendente. Pergunta-se, então: pode a razão humana ascender até
Nessa obra, Lúlio reduz todos os conhecimentos humanos a pou- Deus?
cos princípios, mostrando todas as relações possíveis que se po- Sem dúvida, o problema do conhecimento racional de Deus,
dem dar entre as idéias, mediante uma combinatória sustentada em em Lúlío, não ocupa lugar de tanto destaque como em outros pe~­
figuras geométricas. É um esforço para resolver o problema do co- sadores medievais. Lúlio parte do conceito de Deus comum as tres
nhecimento humano, com preocupações não apenas lógicas mas grandes religiões mediterrâneas: Cristianism?, Ju~aísmo_ e Isla-
metafísicas, visando à obtenção de um conhecimento unitário da mismo. Deus é, a rigor, pressuposto em sua filosofia. Assim mes-
realidade. Por causa dessa obra, Lúlio pode ser visto como um pre- mo busca um caminho próprio de ascensão racional até Deus com
cursor longínquo da lógica moderna. uma série de argumentos para demonstrar sua existência.
A maioria das mais de 500 obras atribuídas a Lúlio tem um Lúlio parte do ponto de vista de que toda a faculdade c?g-
interesse literário e histórico. Foi o primeiro, no Ocidente, a escre- noscitiva em virtude de sua estrutura formal, só alcança parcial-
ver uma novela biográfica intitulada Blanquerna. Nela inseriu o li- mente a ~ealídade objetiva, tendendo a negar tudo que es~á para
vro do amigo e do amado, que consiste numa coleção de pensa- além. Mas toda a faculdade superior transcende o conhecimento
mentos, um para cada dia do ano. Trata-se de pensamentos densos pela inferior. Assim a imaginação transcende o percebi~o pelos
e breves. sentidos e a inteligência transcende, por sua vez, o apreen?Ido pela
O livro do amigo e do amado, como tem autonomia, cedo imaginação. Nesta perspectiva, o conh~~imen~o ~os s~ntld?s e da
começou a circular com independência do Blanquerna. É uma obra imaginação jamais poderá dar base suficiente a filosofia e a teolo-
mística, na qual o cristão fervoroso (amigo) é o autor e o amado é gia.
Jesus Cristo. Exprime a união com Deus em termos de apego afe- A filosofia e a teologia têm como objeto o inteligível, que
tivo e da comunicação amorosa entre a criatura e o Criador. Lúlio está além do sensível e imaginável. Num primeiro transcenso, a
pretende que o homem se eleve até Deus a partir da realidade cria- inteligência apreende o objeto em virtude de si me~ma. Nu~ s~­
gundo transcenso, em virtude do próprio objeto. Por 1sso, o pnmei-

110
111
ro ·transcenso é natural; o segundo, ao contrário, relaciona-se com ro; 3) o congruente é necessário. Aplicando esta lógica ao proble-
a ordem sobrenatural da fé e da graça. O primeiro leva-nos à filo- ma de Deus, estabelecem-se as seguintes argumentações: 1) não há
sofia e o segundo à teologia. nenhuma utilidade em negar Deus; 2) nenhum ser é mais afirmati-
Lúlio reconhece, pois, três ordens da realidade: a sensível e vo que Q,eus. Trata-se, portanto, de uma gnosiologia de caráter
imaginável, a espiritual inteligível e a divino-transcendente. Por platônico(pois, em seu realismo ontológico não separa a idéia e o
isso justifica uma tríplice graduação objetiva de comparação na ser.
linguagem: positivo, comparativo e superlativo. Se os objetos do A edição das obras de Lúlio, em catalão, iniciada e publica-
mundo são grandes e bons, os do mundo inteligível são maiores e da em Maiorca entre 1906-1950, compreende 21 tomos e atual-
melhores. Deus, por sua vez, é absolutamente máximo e ótimo. mente está para ser retomada. O Raimundus Lullius lnstitut da Al-
Os caminhos apontados por Lúlio, para a ascensão a Deus, bert Ludwigs Universitat de Freiburg i. Br. possui o fundo de do-
movem-se no horizonte da fé cristã, de acordo com o axioma an- cumentação para realizar a edição das Raimundi Lulli Opera Lati-
selmiano: fides quaerens intellectum. São formulados num hori- na. Um novo e definitivo catálogo luliano está sendo elaborado por
zonte gnoseológico em que lógica e ontologia coincidem. Dentro Anthony Bonner, em Princeton.
desses pressupostos metodológicos, apresenta o ascenso racional Lúlio, de um lado, exalta o valor da razão; de outro, é um
até a existência de Deus. Uma vez alcançada a presença de Deus, o ·· místico ôe inspiração neoplatônica.
conhecimento cede lugar ao amor e o dialético e polemista cede
lugar ao crente e amante. Por isso, de acordo com a interpretação 3.2.2- A escola dmninicana
do jesuíta Eusebi Colomer (p. 62 ss.), os pressupostos gnosiológi- I

cos lulianos são os seguintes: Os dominicanos obtiveram duas cátedras na Universidade de


a) A fé cristã é o horizonte das provas de acordo com o axi- Paris: a primeira em 1229, ocupada por Rolando de Cremona e a
oma anselmiano: fides quaerens intellectum, pois o segundo trans- segunda, em 1231, por Juan de São Egídio. Entre os dominicanos
censo só se realiza mediante o auxílio da fé. Este pressuposto não destacaram-se Alberto- Magno (1193-1280) e Tomás de Aquino
sig11ifica um desprezo da razão, mas antes o apreço à fé cristã. (1221-1274).
Como o instrumento é um mediador entre o agente e sua obra, as-
sim a fé é mediadora entre o entendimento de Deus, quem dá a fé
a) Alberto Magno
ao sujeito.
Lúlio insiste na colaboração entre fé e razão, não na substi-
Alberto Magno (1193-1280), mestre de Tomás de Aquíno,
tuição da razão pela fé ou vice-versa. Ambos conduzem à sabedo-
conhecia bem o pensamento de Aristóteles, a tradição agostiniana
ria cristã, quando usadas em conjunto.
e, da mesma forma, os autores árabes e judeus. Um de seus maio-
b) Uma lógica realista e otimista no sentido de coincidência
res méritos foi ter inserido o aristotelismo no pensamento cristão.
da lógica e da ontologia. Dessa maneira os princípios da Ars Mag-
Mas em sua obra não está ausente o elemento platônico, pois seus
na de Lúlio não dizem respeito apenas ao nosso pensar, mas tam-
grandes mestres são Aristóteles e Agostinho. Foi chamado doctor
bém ao ser das coisas.
universalis por ter-se caracterizado pelo universalismo no conhe-
Seu otimismo está formulado na máxima: "Quanto omne ens
cimento das fontes, assumindo um enorme arsenal de idéias de
est nobilius, tanto est affirmabilius" (Liber propositionum artis
autores aristotélicos, árabes, judeus, neoplatônicos e patrísticos,
demonstrativae, dist IV). Esta máxima pode formular-se em três
abrangendo um amplo horizonte de toda a filosofia da época, da
principais características: 1) o ideal é real; 2) o melhor é verdadei-
teologia especulativa, da exegese e das ciências naturais.

112 113
Alberto Magno compreendeu que a invasão maciça do pen- averroístas e com os agostinianos. Sua obra nasce no conflito rei-
samento pagão modificaria completamente a situação da cristan- nante em Paris entre a liberdade, que é exigência da razão, e a des-
dade. Seria necessário reorganizar os estudos sobre uma base mais confiança, que a fé e o dogma impõem. Propõe-se conCiliar criti-
ampla, reconhecendo um lugar devido ao saber profano com seus camente a fé e a razão, escolhendo como instrumento o aristote-
métodos próprios e sua relativa autonomia. Julgou que não deveria lismo, por mais suspeito que fosse. Deixou-nos uma vasta obra de
ficar passivo diante da gigantesca obra de Aristóteles. Não a acei- mais de sessenta títulos. Nesses escritos, seu estilo é rigorosamente
tou, nem a rejeitou simplesmente. Tentou enriquecer o pensamento escolástico: primeiro expõe um problema; em seguida, uma solu-
cristão com o que de melhor havia produzido a antiga Grécia, ção possível e objeções a ela; depois a resolução definitiva e res-
apresentando um aristotelismo neoplatonizante. postas a cada uma das objeções. Dentre as obras cabe destacar a
S. Alberto Magno foi destacado naturalista, o maior zoólogo Suma teológica (1266-73); a Suma contra os gentios (1259-64); O
e botânico de seu tempo, renomado astrônomo e, com Rogério Ba- ente e a essência (1254); Questões discutidas sobre a Verdade
con, situa-se na vanguarda da investigação da natureza. Tudo isto (1256-59).
colaborou para que o aristotelismo adquirisse uma cidadania no As graDdes fontes da filosofia do Aquinate são a obra de
mundo cristão. Mas, Alberto Magno assumiu Aristóteles com um Aristóteles, através da tradução feita diretamente do grego para o
espírito crítico e com prudência, não sendo um seguidor cego ou latim -por Guilherme de Moerbeke e a longa tradição neoplatônica,
repetidor mecânico. Seus enfoques foram ampliados e aperfeiçoa- haurida através das obras dos Santos Padres, de Agostinho e do
dos por seu discípulo Tomás. Pseudo-Diànísio. Além dessas fontes, recebe contribuição de filó-
Alberto Magno apresenta uma série de diferenças entre o sofos árabes e judeus, de Avicena e Averróis, A vicebrón e Mai-
conhecimento filosófico e o conhecimento teológico de Deus. No mônides e dos escolásticos anteriores, de modo especial de seu
conhecimento filosófico usa-se somente a razão; no teológico, a fé mestre Alberto Magno.
ultrapassa a razão. A filosofia parte de premissas evidentes, ao O problema fundamental para os filósofos cristãos, no sécu-
passo que na fé há uma luz infusa. A filosofia parte da experiência lo XIII, como para os árabes e judeus, era superar as antinomias
das coisas criadas e a fé parte do Deus que êe revela. A razão não entre aristotelismo e platonismo. 'Tomás de Aquino "cristianizou"
nos diz o que é Deus (quid sit), mas a fé o diz dentro de certos Aristóteles. Interpreta-o com princípios hauridos da tradição me-
limites. A filosofia é um procedimento teótko, enquanto a fé com- tafísica cristã, de modo e·speeial em acordo com S. Agostinho.
porta um processo intelectivo-afetivo, envolvendo o homem no Realizou uma síntese coerente e harmônica entre a filosofia de
amor de Deus. Enfim, segundo Alberto Magno, a filosofia d1z o Aristóteles e a tradição platônica, criando uma filosofia que se
que pode ser dito "com base no raciocínio" e a teologia baseia-se pode thamar verdadeiramente original. Fernando Arruda Campos
na revelação e na inspiração, não na razão. observa ·que "ria: verdade, o esforço de integração do aristotelismo
e do pensamento tradicional, realizado através das grandes sínteses
b) Tomás de Aquino do Medievo, entre as quais .se sobressaem as de S. Boaventura e
Duns Escoto, não surtiu êxito pleno, como já se disse, qual síntese
Tomás de Aquino (1221-1274), natural de Roccasecca, no superior, coerente, harmônica e profunda do aristotelismo e da
do Lácio, depois de graduado em Paris, solicitou ao dominica- tradição cristã" (p. 17-18). Fernando Arruda Campos observa que a
no Guilherme de Moerbeke a tradução direta do grego dos livros síntese tomista, diversamente de outras da época, se reveste das ca-
de Aristóteles. Gozava, nessa época, de grande autoridade em racterísticas de equilíbrio, coesão e harmonia.
Roma. Depois de assumir a cátedra em Paris, polemizou com os

114 115
O Aquinate realiza sua síntese pessoal a partir de um prin-
feito, deveria ter como um de seus atributos perfeitos o da exis-
cípio fundamental de natureza metafísica: a inteligíbilidade radical
tência.
do ser a partir do qual tudo se torna inteligível e no qual tudo en-
Tomás de Aquino reconhece à razão um campo próprio em
contra sua radical explicação. O ser é, para Tomás, como para
relação às coisas divinas no qual pode atuar, pois "que Deus existe
Aristóteles, um conceito análogo, realizando-se em ato e potência.
e coisas semelhantes" pode "tornar-se conhecido pela luz natural
Mas o Aquinate vai mais longe. Vê no ser não apenas uma simples
da razão". Este campo não é bem delimitado. Entretanto a pura ra-
relação entre potência e ato, mas a relação transcendental entre es-
zão não leva à uma compreensão plena de Deus. A partir dos efei-
sência e existência. Esta é, em primeiro lugar, ato de todos os atos.
tos pode demonstrar-se que Deus é, mas não o podemos conhecer
Desta forma, Deus é, para o Aquinate, não apenas ato puro, mas o
segundo sua natureza. O motivo é que, pela luz natural da razão, o
ato de existir subsistente e a criatura o ato de existir, participado
homem só chega a Deus a partir das criaturas. Por isso é necessário
por uma essência finita, tudo centrado no actus essendi (ato exis-
um conhecimento superior, a divina revelação. A fé pode aprender
tencial).
aquilo que a razão não consegue, pois a verdade da fé cristã ultra-
Para Tomás de Aquino, no âmbito do criado, há uma plura-
passa a capacidade da razão humana (ScG, I, 5). "Foi, pois, ~on­
lidade de atos existenciais, finitos e participados. Sem o ato exis-
veniente que pela via da fé se apresentassem aos homens a firme
tencial nada existe e nada opera. Para o ser finito, participar do ser,
certeza e a pura verdade das coisas divinas" (ScG, I, 4,26).
existír qual ser participado, significa, na finitude de um ato exis-
Assim, para Tomás de Aquino, há um duplo acesso ao co-
tencial participado e finito, comungar no ato de existir subsistente.
.' nhecimento de Deus: "Há com efeito, duas ordens de verdades que
O ser participante manifesta-se como causa eficiente do ser parti-
' afirmamos de Deus. Algurhas são verdades referentes a Deus e que
cipado: causa do ser. Deus age em virtude da causalidade direta
excedem toda capacidade da razão humana, como, por exemplo,
sobre o esse. Assim o ato puro de existir no plano da causalidade
Deus ser trino e uno. Outras são aquelas as quais a razão pode
mostra-se transcendente e, ao mesmo tempo, imanente a todo o ato
admitir, como, por exemplo, Deus ser, Deus ser uno e outros seme-
de existir criado. O infinito é presença no finito.
lhantes. Estas os filósofos, conduzidos pela luz da razão natural,
Pode dizer-se que a doutrina da participação é a medula dor-
provaram por via demonstrativa, poderem ser r~al_me~te atrib~ídas
sal de toda a metafísica tomista e o conceito do ato de existir é o
a Deus" (ScG, I, 3,14). De acordo com essa d1stmçao, Tomas de
núcleo central da doutrina do ser. A partir desse núcleo central es-
Aquino delimita o campo da teologia e da filosofia: "Como ~ tra-
truturam-se as teses fundamentais do Aquinate: as propriedades
balho especulativo de toda a filosofia dirige-se para o conhec~n:en­
transcendentais do ser; a divisão do ser em substância e acidente, o
to de Deus, a metafísica- que tem por objetivo as verdades dtvmas
conceito de suposto, hipóstase e pessoa, a teoria da causalidade, na
- deve ser a última parte da filosofia a ser conhecida" (ScG, I, 4,
ontologia; a composição de matéria e forma, princípios intrínsecos
23). Diz que a filosofia, enquanto tem como objeto a J?eus e o
de todo o ser corpóreo; a teoria da alma espiritual como forma
mundo, não se distingue da teologia. Ao mesmo tempo afirma que
substancial do corpo; a contribuição do conhecimento sensível e
se distinguem segundo a espécie. Em que consiste a. diferen?a? .
da inteligência humana na constituição do conhecimento; a doutri-
O Aquinate vê a diferença no ponto de partida. A fllosofla
na da liberdade como característica dos entes racionais, a realidade
parte das criaturas para chegar a Deus; a fé parte de Deus para
divina como fim último do homem.
chegar às criaturas. A filosofia parte, pois, de certos press~pos~os,
Para Tomás de Aquino, a fé e a razão não se conflitam. Crê
os primeiros princípios. Como objetos do intelecto, esses pnme1ros
que não é impossível demonstrar a existência de Deus. Mas recusa
princípios são conhecidos imediatamente (S. Th. II-II, q. 8 a. 1 ad
a solução apriorística de S. Anselmo, para quem Deus, sendo per-

116
117
1). Em sua existência imediata constituem o ponto de partida para 1 Para Tomás, os argumentos da existência de Deus são
todo o processo da razão. ap6steriorísticos. O ponto de partida das famosas cinco vias
Em que se funda a certeza evidente dos princípios? (quinque viae) é o mundo sensível, cuja existência é dada pelos
Tomás não coloca esta questão, pois "são conhecidos natu- sentidos, que expõe na Suma teológica (I, q. 2, a. 3) e na Suma
ralmente" (S. Th., II-II, q. 47,6). Pertencem, em outras palavras, à contra os gentios (I, 13). São as seguintes:
própria constituição do ser. É "certa participação na luz divina" a) Via do movimento: Tudo que se move é movido por ou-
(S.Th. I, q. 12, a. 11), uma iluminação de Deus (S. Th., I-II, q. 109, tro; deve haver um ser que seja a fonte primeira do movimento,
a. 1); "Ora, o conhecimento dos princípios naturalmente evidentes mas em si mesmo imóvel, "um primeiro motor que não seja movi-
é infundido em nós por Deus, pois Deus é o Autor da natureza. Por do por outro, e este primeiro motor é o que todo mundo chama
conseguinte, esses princípios estão também contidos na sabedoria Deus" (S. Th. I, q. 2, a 3).
divina. Assim também, tudo que é contrário a eles contraria a sa- b) Via da causalidade ou causa eficiente: Todo o efeito tem
bedoria divina e não pode estar em Deus. Logo, as verdades rece- uma causa; deve haver uma causa incausada, "uma primeira causa
bidas pela revelação divina não podem ser contrárias ao conheci- eficiente, e esta é o que todo mundo chama Deus" (ibidem).
mento natural" (ScG, I, 7, 44). A certeza evidente dos primeiros c) Via da necessidade ou da contingência: Todos os seres
princípios tem, em última análise, um fundamento teológico. A ··são contingentes, isto é, não têm em si a razão de sua existência; se
certeza filosófica tem caráter de criatura. apenas houvesse entes contingentes, não haveria nada. Por isso
Como a luz natural e os primeiros princípios, que dela ema- deve haver um ser necessário, "que seja a causa necessária ares-
nam, são criados por Deus, Tomás de Aquino pode ver uma distin- peito dos demais, e este ser é o que todo mundo chama Deus"
ção, mas não oposição entre filosofia e teologia.-8e, na filosofia, se (ibidem).
encontrar algo contra a fé, será mau uso da razão. A concordância d) Via dos graus do ser ou graus de peifeição: A existência
entre os dois modos de conhecer funda-se na origem comum em de diversos graus de perfeição exige a existência de um ser perfei-
Deus, que simultaneamente é o Criador e o Redentor, sendo ele to, espécie de sistema de referência de todos os graus e valores;
mesmo a "verdade plena" e o "critério de toda a verdade" (ScG, I, "existe, pois, algo que é causa daquilo que há de ser, bondade e
62, 519). perfeição em todos os entes, e isto é o que chamamos Deus"
Com isso Tomás de Aquino não afirma que teologia e filo- (ibidem).
sofia se encontram no mesmo plano. O conhecimento natural de e) Via da finalidade ou ordem do mundo ou prova teleológi-
Deus relaciona-se com a fé como "preâmbulo". A fé pressupõe o ca: Há uma ordem no universo que exige um ordenador; os seres
conhecimento natural da mesma forma como a natureza pressupõe desprovidos de inteligência estão ordenados para um fim; logo
a graça (S. Th., I, q. 2, a 2 ad 1). Por isso a doutrina dá fé, partindo deve "existir um ser inteligente, que conduz todas as coisas natu-
de Deus, que se revela aos homens, é mais perfeita que qualquer rais a um fim: e a este o chamamos Deus" (ibidem).
outra ciência, pois parte de princípios mais elevados. O Aquinate As primeiras três vias, muitas vezes chamadas cosmológi-
entende a relação entre a graça e a natureza de maneira hierárqui- cas, são de raiz aristotélica; a quarta, chamada henológica, recorda
ca, presumindo o conhecimento pela fé o conhecimento natural a teoria da participação platônica e plotiniana; a quinta já foi pre-
como "a perfeição pressupõe o capaz da perfeição". A teologia parada pelos estóicos. Maimônides havia trabalhado um pouco so-
deve servir-se da razão humana:· "A graça não destrói a natureza bre todas essas vias.
mas a aperfeiçoa" (S. Th., I, q. 1 a. 8 ad 2). Mas a razão, até certo Para Tomás de Aquino, há um domínio comum à razão e à
ponto, está subordinada à fé. fé. É preciso delimitar o campo, impedindo que a razão ultrapasse

118 119
seu campo ou renuncie à sua competência. O domínio da razão é o ando: "Digne-se a Santa Sé Romana considerar que a doutrina de
do ser, que é, em primeiro lugar, a realidade do mundo sensível. A ambas as ordens está atualmente em oposição quase completa so-
razão pode conhecer esta realidade como o prova Aristóteles. bre todas as questões em que é permitido discutir; a doutrina duma
A doutrina de Tomás de Aquino sobre as relações entre fé e destas ordens (a dominicana) abandona e, até certo ponto, despreza
razão pode resumir-se nas seguintes proposições. as sentenças dos santos, e funda-se quase exclusivamente nas posi-
1) Fé e razão são modos diferentes de conhecer: "Cumpre ções dos filósofos, de sorte que os ídolos invadiram a casa do Se-
saber que há dois gêneros de ciências. Umas partem de princípios nhor" (citado por P. Vignaux, p. 148). Nessa acusação transparece
conhecidos à luz natural do intelecto, como a aritmética, a geome- claro o aspecto filosófico em prejuízo da doutrina dos santos pa-
tria e semelhantes. Outras provêm de princípios conhecidos por ci- dres.
ência superior, como a teologia" (S. Th. l, q. 1, a. 2).
2) Fé e razão, filosofia e teologia, não se podem contradizer 3.3 - A Escolástica decadente
porque Deus é o autor comum de ambas: "Se se encontra, portanto,
alguma coisa contrária à fé nas afirmações dos filósofos, não se No século XII, com Tomás de Aquino, a Escolástica atingiu
deve atribuir isso à filosofia, mas a um mau uso da filosofia devido seu apogeu. O grandioso ideal da "cristandade" concebida como
a alguma falha da razão" (Boethii de Trinitate, 1, a. 7). - um agrupamento de po~os sob a autoridade temporal do imperador
3) Embora a razão seja suficiente para conhecer as verdades e a espiritual do papa, começado com Carlos Magno, parecia con-
fundamentais de ordem natural e seja autônoma no estudo das coi- sumado. Mas essa harmonia entre os dois poderes começa a rom-
sas naturais, é incapaz, por si só, de penetrar nos mistérios de per-se no século XIV, pois' os povos cristãos constituem-se em na-
Deus. Por isso Deus veio bondosamente ao encontro do homem ções e surgem os conflitos entre reis e papas.
com sua Revelação. Essa orienta o filósofo em suas pesquisas. A Escolástica dos séculos XIV e XV não é apenas uma de-
4) Mas a razão pode prestar um grande serviço à fé, seja cadência filosófica. Para delinear um· quadro exato ainda faltam
para demonstrar aquelas coisas que são preâmbulos da fé; seja para estudos mais aprofundados dos manuscritos da época. Mas já se
ilustrar, por meio de semelhanças e dissemelhanças, as coisas que pode afirmar que não faltaram cérebros pensantes. Se havia passa-
pertencem à fé; seja para opor-se às coisas que são ditas contra a do o tempo das grandes sínteses filosóficas e teológicas, o pensa-
fé. mento voltou-se mais a problemas da lógica e da lógica da lingua-
Fernando Arruda Campos afirma que "colocando o Absoluto gem. Passa a cultivar-se mais o sentido das ciências da natureza.
como centro de suas reflexões, o tomismo contemporâneo encon- Depois da morte de Duns Escoto, a Escolástica sofre uma
tra-se plenamente apto a realizar a harmonia e a reconciliação en- desagregação, entrando em decadência. De um lado há uma reação
tre razão e fé, entre o saber filosófico e o teológico, ambos expres- profunda aos sistemas escolásticos e, de outro, uma não menos fe-
sões de uma idêntica verdade, a qual nos é dada não na plenitude cunda preparação para o que segue. É a época de Dante Aleghieri,
de sua essência, na evidência total e plena de si mesma, mas na Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), insignes poetas e
obscuridade e no mistério" (p. 367). amantes da antigüidade clássica. A Petrarca deve-se a tradução di-
Tomás de Aquino criou escola. Apesar disso, ou justamente reta ao latim de grande parte da obra de Platão. Nessa época, con-
por isso, uma vintena de proposições de sua doutrina foram conde- tinua a questão dos universais e do nominalismo e surgem grandes
nadas em Paris, a 7 de março de 1277. O arcebispo de Cantuária, o místicos.
franciscano Peckham, renova esta condenação em 1284. Em janei-
ro de 1285, o arcebispo de Cantuária dirigiu-se a Roma denunci-

120 121
a) Guilherme de Ockam meça o conhecimento experimental, porque em geral, aquele que
pode ter a experiência de alguma verdade contingente e, mediante
Nascido na Inglaterra por volta de 1285, Guilherme de ela, de uma verdade necessária, tem algum conhecimento incom-
Ockam foi uma personalidade de caráter independente, cujo pen- plexo de algum termo ou coisa, que não possui quem não pode ter
samento segue com lógica implacável, sem medo de soluções radi- tal experiência" (Os pensadores, p. 118-119).
cais. Entre suas obras filosóficas podemos citar Ordinatio Segundo Aristóteles, o intelecto possui conhecimento ape-
(comentário do primeiro livro das Sentenças), Reportatio (questões nas do universal e não do singular. Ockam afirma que nosso co-
sobre o segundo, terceiro e quarto livro das Sentenças), Quodlibeta nhecimento intelectual se baseia no singular, pois só o conheci-
VII, Summa Logicae, Expositio aurea e Summulae in libros Physi- mento intuitivo pode fundamentar nossa cultura científica.
corum. Morreu em 1349. É sabida a posição crítica de Ockam em relação à natureza e
Na filosOfia, sua característica é a crítica. Só aceita como o valor do conceito universal. Para ele, a coisa real é essencialmen-
conhecimento seguro aquele que é percebido com evidência ou te individual, pois nas coisas não há nenhuma espécie de universa-
deduzido de verdades imediatamente evidentes. Mostra um domí- lidade correspondente aos conceitos universais. Estes são íntelec-
nio extraordinário da lógica e uma predileção clara pela coisa in- ções das coisas individuais.
dividual, pela experiência e pela observação. Para Ockam não existe o universal platônico, nem o aristo-
Possuímos um saber evidente quando a evidência de um juí- télico. Simplesmente não existe universal fora da coisa, nem na
zo decorre mediata ou imediatamente do conhecimento dos termos coisa, razão pela qual não pode ser abstraído dela. Só tem realida-
que o compõem: "Mostrarei que nosso intelecto, até nesta vida, de o particular, que em nossa mente se reflete em imagens. O uni-
pode ter a respeito do mesmo objeto e sob o mesmo aspecto dois versal é apenas um flatus voeis. Para Ockam, os universais estão
conhecimentos incomplexos especificamente distintos, sendo que na mente, de alguma maneira. Desta forma sua posição é concei-
um se pode chamar intuitivo e outro abstrativo" ("Os pensadores", tualista.
1989. p.116). O conhecimento racional, segundo ele, não tem acesso às
Ockam defende a base empírica do conhecimento intuitivo e coisas. E isso aplica-se também à questão da existência de- Deus.
abstrativo, com primazia do singular. Por conhecimento abstrativo A verdade revelada é inacessível à razão. Com isso rebaixa o co-
não entende aquele que não necessariamente se realiza por meio de nhecimento racional, afirmando a supremacia da fé sobre a razão.
conceitos universais, mas como simples saber a respeito de um Mas, a glorificação da fé em detrimento da razão é ambígua. Além
objeto qualquer: "O conhecimento abstrativo, porém, é aquele em disso, separadas radicalmente da fé, a razão e a filosofia libertam-
virtude do qual não se pode conhecer com evidência se uma coisa se da condição de servos da teologia. Assim a Escolástica e o pen-
contingente existe ou não" (Os pensadores, p. 118). O saber intui- samento medievais chegam ao seu limite: a razão, com suas debili-
tivo, ao contrário, dá-nos um conhecimento imediato do objeto, dades ou não, volta novamente a caminhar por sua conta e seu
fundamentando, de-sta forma, um juízo evidente: "É certo que es- próprio risco.
sas verdades podem ser conhecidas com evidência. E todo conhe- Dois princípios alicerçam e estruturam o ocamismo, tanto na
cimento complexo dos termos ou das coisas significadas reduz-se, teologia como na filosofia. O primeiro formula da seguinte manei-
em última instância, ao conhecimento dos termos incomplexos. ra: "Deus pode fazer tudo que, ao ser feito, não inclui contradi-
Logo, esses termos ou coisas podem conhecer-se por outro que ção". Ockam tira todas as conclusões. Diz que se trata do primeiro
aquele em virtude do qual não se podem conhecer tais verdades artigo do Credo: "Creio em Deus, Pai todo-poderoso"- Não se po-
contingentes, a saber, o conhecimento intuitivo. E é dele que co- dem estabelecer distinções ou diferenças em Deus. Em Deus, filo-

122 123
soficamente, sabedoria, vontade, bondade ou qualquer dos atribu- "A atividade filosófica de Guilherme de Ockam es-
tos se identificam. Filosoficamente de Deus não sabemos muito: tende-se da lógica à filosofia da natureza. Reage
nem se existe um só. Seus desígnios permanecem impenetráveis. contra o realismo epistemológico comum a Duns Es-
Outro princípio da filosofia de Ockam reza: "não se devem coto e ao mestre dominicano e restaura o nominalis-
multiplicar os entes sem necessidade". Sendo a experiência, para mo na teoria do conhecimento. É aqui que o vene-
ele, a única garantia da existência das coisas, devem eliminar-se rabilis inceptor exerceu influxo profundo na história
essências ou causas metafísicas imaginárias. Tudo que ultrapassa a da filosofia. A crítica do doctor subtilis ao poder da
razão exacerba-se em Ockam; o nominalismo oca-
experiência é imaginário. Assim os dois princípios conduzem ao
mista, aliado ao rigor lógico, conduz a uma limitação
centro de sua doutrina: só existe o concreto individual, e dentro do extrema das possibilidades demonstrativas da razão
individual e do concreto não podemos estabelecer distinção de ne- na metafísica e na teologia. Abre-se o abismo que
nhuma índole. separa a razão da fé, a filosofia da teologia" (in:
Para Ockam, a teologia não é ciência, não havendo nenhuma VÁRIOS, Pensamento Medieval, p. 31.).
possibilidade de conciliação entre a razão e a fé. Por isso o nomi-
nalismo triunfou rapidamente e durante um século e meio dominou O nominalismo de Ockam tinha conseqüências práticas da
em quase todas as universidades. Segundo Ockam, não podemos maior relevância na história das idéias. Por um lado, toda a ciência
ter nenhuma notícia intuitiva de Deus, nem pelos sentidos, nem era reduzida ao conhecimento empírico dos singulares, que, se-
pela inteligência. Portanto, se o conhecimento abstrativo pressupõe gundo ele, constituem toda a realidade da experiência. Por outro, o
o intuitivo, é impossível conhecer a Deus por meios naturais. Por nominalismo criou um abismo entre o conhecimento científico
isso Ockam encontra um subterfúgio. De Deus não podemos ter (dos seres individuais, concretos) e os domínios do pensamento
nenhum conhecimento direto e intuitivo. Mas Deus pode infundir- religioso. A fé, segundo Ockam, não encontra qualquer apoio na
nos um conhecimento abstrativo de si mesmo, ou seja, Deus pode razão, porque se trata de campos indiferentes e alheios um ao ou-
causar na alma uma noção a:bstrativa da divindade, um conceito. tro. Portanto, a teologia não é uma ciência racional e Deus não tem
Podemos receber, assim, um conceito sem saber se existe a reali- interesse para a filosofia. Ciência e fé são dois caminhos paralelos,
dade correspondente. independentes um do outro. Para ele, o verdadeiro conhecimento é
Diante destas afirmações, não há nenhuma prova da exis- o imediato e o intuitivo. Na Ordinatio afirma que "não podemos
tência de Deus. Esta é objeto da fé e não objeto de demonstração. conhecer Deus intuitivamente de maneira puramente natural"
Não se pode provar a existência de Deus pelo princípio de causali- (3,2). Por isso não há conhecimento evidente da existência de
dade, porque não se pode provar que o processo das causas não Deus. A existência e a perfeição de Deus são conhecidas pela fé,
seja infinito dentro de cada ordem. Sabemos da existência de um que nos esclarece até sobre a onipotência divina. A fé é o único re-
só Deus apenas pela fé. Desta forma, Ockam estabelece a separa- fúgio da certeza religiosa. Assim, no fim da Idade Média, percebe-
ção radical entre a ordem da fé e a ordem da filosofia. se uma certa desconfiança contra a razão. E aqui encontramos os
No plano do pensamento, tanto na filosofia como na teoria pressupostos históricos para a Reforma de Martinho Lutero.
política, Ockam sinaliza o fim da Idade Média e a abertura para
uma nova época, em que a razão retoma a sua autonomia frente à b) Os místicos
fé, e a vida dos homens torna-se cada vez mais independente dos
preceitos religiosos. Celestino Pires afirma em Pensamento Medie- Paralelamente ao nominalismo desenvolveu-se uma forte
val: tendência mística, proveniente do Pseudo-Dionísio, de S. Bernardo

' 124 125


de Claraval e de João Escoto Eriúgena. Até certo ponto, trata-se de suas obras é bastante difícil, pois mostra a insuficiência da lingua-
rima atitude de reação contra o nominalismo. Por outro lado, tam- gem para exprimir as últimas profundezas da experiência mística.
bém se pode dizer que se trata de uma conseqüência do nomina- Gosta de fórmulas ambíguas como> "O ser é Deus", "Desde que
lismo, com sua separação radical entre fé e razão. Boehner e sou, Deus não pode ser sem mim", "a Deus não compete o ser ... é
Gilson, em sua História da Filosofia Cristã, afirmam: algo superior ao ente". Acusado de heresia, em 1326, foi submeti-
do a processo que chegou ao fim anos após sua morte.
"Seria errado ver neste fato (mística) uma simples Para Eckhart, a alma, que é material, tem como atividade
reação contra o escolasticismo da época; uma oposi-
mais elevada o conhecimento ou a razão. Distingue três tipos de
ção consciente deste gênero só a encontraremos em
Nicolau de Cusa. Antes pelo contrário: a chamada
conhecimento: sensível, racional e supraracional. Só o último; que
mística alemã, pelo menos no que tange ao seu re- é extraordinário, atinge a verdade completa.
presentante mais típico, Mestre Eckhart, guarda um Como o mais importante para a alma é a razão ou a inteli-
contato íntimo com a filosofia e a teologia escolásti- gência, em Deus o entender também é o mais elevado, embora
ca, e particularmente com a doutrina de São Tomás e Nele ser e conhecer se identificam. O intelecto ou conhecimento
de Alberto Magno" (p. 521). ocupa o primeiro lugar na ordem das perfeições divinas; o ser vem
dep-ois. Deus é porque conhece. A partir de sua doutrina sobre a
A Escolástica, em seu crepúsculo, depois de minada a confi- primazia do entendimento, Eckhart ensina que o conhecimento
ança de que a razão poderia alcançar, pelo menos, os preâmbulos humano é um fazer de Deus em nós, uma tese semelhante à teoria
I
da fé, colocou a seguinte questão: como restabelecer o contato en- agostiniana da iluminação, superando-a, pois S .Agostinho nunca
tre o homem e Deus? teria ousado afirmar que a iluminação de Deus tem significação
Como a fé não encontrava apoio na razão, não sendo de- ontol6gica. Para Eckhart, Deus faz a alma humana, ao mesmo
monstrável, o único caminho restante era o da mística. Neste con- tempo, ser e entender. Por isso a iluminação é o divino na alma e a
texto a mística especulativa alemã insiste no fato de que Deus está causa de nossa existência.
além de toda a nossa possibilidade conceitual e afirma que o ho- Em Questões parisienses, Eckhart escreve: "Alguns dizem,
mem, afastado de Deus, não é nada. A mística alemã é chamada sem dúvida, que o ser, o viver e o entender se prestam a uma dupla
"especulativa" por estar entremeada de filosofia, alimentando-se, consideração: uma, em si mesmos, e assim, o primeiro é o ser; em
sobretudo, com as doutrinas neoplatônicas de Proclo e do Pseudo- segundo lugar, o viver; em terceiro lugar, o entender; a outra, em
Dionísio. relação ao que participa deles, e assim, primeiro é o entender, se-
Entre os místicos destaca-se João Eckhart (1260-1327). gundo o viver e terceiro, o ser. Mas eu creio tudo ao contrário.
Tornou-se dominicano, discípulo de Alberto Magno em Koln e Pois no· princípio era o Verbo, o qual pertence por completo ao
Paris, tendo recebido o título de mestre. Por isso costuma ser cha- entendimento, de sorte que o entender ocupa o primeiro grau nas
mado simplesmente Mestre Eckhart. perfeições, depois o ente ou o ser" (in: Fernández, Clemente, p.
Entre as obras deste grande místico alemão citamos: Opus 993).
tripartitum, Quaestiones parisienses, Obra apologética. Deixou Tomás de Aquino havia distinguido entre o ente e a essên-
também alguns sermões em língua alemã, pois era um pregador cia. Mestre Eckhart, em sua análise, distingue o ente do esse,
muito apreciado. Em seus escritos manifesta, ao mesmo tempo, mantendo uma relação entre ambos, uma relação análoga àquela
influência escolástica e neoplatônica, elaborando uma síntese nova que se pode estabelecer entre bondade e bem.
com profundeza afetiva e ardor especulativo. A interpretação de

126 127
Eckhart conhece certa expenencia como pressuposto de parando fé e razão. A mística foi a expressão mais alta das fases
possibilidade para o conhecimento de Deus. A experiência tem finais da Escolástica.
certo caráter de descensão, não de ascensão. Consiste numa re- Em resumo, de uma harmonia entre fé e razão chegamos a
núncia (Abgeschiedenheit) global à toda a realidade mundana. uma separação radical, com autonomia da razão em relação à fé e,
Primeiro deve prescindir-se de toda a realidade exterior. O liomem porque não dizer, ao domínio da razão sobre a fé. Com esses pres-
deve estar vazio de toda a criatura; deve desprender-se de si mes- supostos acontece não só a Refonna de Lutero, mas abre-se defi-
mo, numa pobreza de espírito como um homem que nada quer, que nitivamente o caminho parà o pensamento moderno.
nada sabe e nada tem, que ousou o aniquilamento. Este possibilita-
lhe o acesso ao fundamento de seu ser: a luz do espírito, a faísca
(centelha) da alma. Deus está oculto na própria alma. Aí a alma
pode encontrá-lo. Quem quer penetrar na profundidade de Deus
deve penetrar na própria profundidade para unir-se a Ele. Eckhart
não se cansa de acentuar esta união total da profundidade da alma
com Deus: "A proximidade de Deus e da alma, na verdade não tem
diferença", pois não há união mais perfeita. No desaparecimento
total do próprio eu pode realizar-se o nascimento de Deus na alma.
A partir dessa experiência mística pode especular-se sobre
Deus. Primeiro diz-se Dele que é o Ser: "O ser é Deus". Deus é o
ser em sentido próprio, só Ele é o ser no sentido absoluto.
Dizer que Deus é o ser absoluto significa que é origem de
todas as coisas. Deus não só é criador de todas as coisas, mas o ser
nos entes. Todas as coisas são pela graça do ser de Deus. Ele é a
luz das luzes, a vida dos viventes. Por isso Deus é inseparável de
todas as coisas, pois lhes é mais interior que elas próprias a si
mesmas. Dessa maneira compreende toda a realidade como orien-
tada para Deus. E o homem em Deus é Deus. Entretanto, o ser em
Deus, segundo nosso místico, não deve ser entendido no sentido
em que são as coisas criadas.
Eckhart mais desenvolve uma teologia negativa. Deus é
mais o que Dele não se diz do que aquilo que se diz.
Entre os discípulos de Eckhart podem citar-se pensadores
como o dominicano João Tauler (1300-1361), Henrique Suso
(1300-1366) e outros. Entre os místicos deve citar-se também Ni-
colau de Cusa (1401-1464) situado no limite entre a Escolástica e
o Renascimento, um elo de união entre Idade Média e Tempos
Modernos. De certa fonna é uma síntese do pensamento medieval
e, ao mesmo tempo, uma antecipação do pensamento moderno, se-

128 129
4 - NICOLAU DE CUSA: CONFLUÊNCIA DE
TRADIÇÃO E MODERNIDADE

No final da Idade Média, surge uma situação de sonolência


tanto na filosofia como na teologia. Na última predomina o argu-
mento lógico de uma filosofia sistematizada com fórmulas abstra-
tas, de um lado, distantes dos problemas do tempo e da vida con-
creta e, de outro, distantes do texto bíblico. Nesta situação de mar
- calmo surge uma última grande figura de pensador que, sob diver-
sos aspectos, ocupa uma posição singular de confluência do pen-
samento medieval e da modernidade. É Nicolau de Cusa, o maior
pensador do século XV, no Ocidente.
No século XV vivem personagens contraditórios como Joa-
na D'Arc, João Gutenberg, Tomás de Kempis, Nicolau Maquiavel,
Jerônimo Savonarolla, Lourenço de Médicis, Inácio de Loyola e
Martinho Lutero. De um lado, ocorre a queda de Constantinopla;
de outro, é descoberta a América. Na Europa cai o império, mas
erguem-se os Estados nacionais. A Escolástica é sucedida pela
mística e pelo nominalismo com todas as suas conseqüências.
Pode caracterizar-se esta época como de tensão dos contrá-
rios ou opostos. Nicolau de Cusa reflete esta situação. De um lado,
coleciona manuscritos antigos e medievais e, de outro, interessa-se
por novos caminhos nas matemáticas, na física e na astronomia.
Está profundamente arraigado no catolicismo medieval. Como sa- .
cerdote, bispo e cardeal dedica-se a serviço da 1greja de Roma e,
ao mesmo tempo, antecipa perspectivas modernas. Tem a capaci-
dade de unir o mundo medieval e o moderno na "coincidência dos
opostos".
Nicolau de Cusa é "um homem que vive na fronteira de dois
mundos" (E. Colomer, p. 119). É um germânico oriundo do norte
gótico, mas vive grande parte de sua vida e atuação no sul latino e

131
renascentista. Karl Jaspers definiu-o como "um alemão que muito 4.1 - Dados biográficos
cedo sé converteu em europeu, encontrou seu centro em Roma,
mas nunca esqueceu sua origem" (Nikolaus Cusanus. Munique, Nicolau Chryphs ou Krebs nasceu, em 1401, em Bernkastel
1964, p. 16). Cronologicamente vive no outono da Idade Média, - Kues (em latim: Cusa) junto ao rio Mosela, na Alemanha. Por
tornando-se um elo de união ou de passagem para a primavera do esta razão é chamado Nicolau de Cusa ou Cusano. A rigor, seu
mundo moderno, antecipando idéias fundamentais da filosofia mo- nome de família é Nicolau Krebs, pois o nome de família de seu
derna. pai é Krebs. Este era vinhateiro e também barqueiro no Mosela.
A obra·de Nicolau de Cusa ainda é pouco conhecida não só Nicolau estudou com os Irmãos da Congregação da Vida
no Brasil, mas também pelos próprios historiadores da Filosofia. Comunitária em Deventer (Holanda) de 1413-1416. Aí lhe foi in-
Assim, para dar um exemplo, Bertrand Russell, em sua História da cutido um grande amor pelos livros, grande interesse pelas línguas
filosofia ocidental (S. Paulo. Cia. Editora Nacional, 1969.) sequer antigas, a idéia de um Cristianismo vivificante em todas as ativi-
registra seu nome. Em parte deve-se este silêncio ao fato de a cole- dades humanas e uma profunda vivência mística.
ção das Opera omnia iussu et auctoritate Academiae Litterarum Em 1416, Nicolau dirigiu-se a Heidelberg para prosseguir
Heidelbergensis ter sido interrompida pela segunda guerra mundi- nos estudos, matriculando-se em Direito. Parece que não gostou do
al. Um bombardeio, em 1944, arruinou completamente o material occã:ínismo reinante e, por isso, abandonou aquela universidade.
que estava em preparação para lançamentos subseqüentes. Em Em 1417, foi a Pádua, onde completou seus estudos de Direito.
1964, a Editora Herder de Viena lançou uma edição bilíngüe (latim Freqüentou, outrossim, cursos de Ciência Natural, Matemática e
e alemão), em três volumes, de suas obras filosófico-teológicas Filosofia. A universidade de Pádua, nessa época, estava florescen-
para comemorar o 5° centenário de sua morte (1464-1964). Esta te contando com professores vindos da Grécia. Através deles, Ni-
·edição foi reimpressa em 1989. colau entra em contato íntimo com o mundo greco-romano e, de-
No Brasil foram publicados alguns estudos da obra do Cu- pois de seis anos de estudo, retornou à sua terra natal com boa
sano, que não tiveram a merecida repercussão nos meios filosófi- formação clássica. Em Pádua conheceu o cardeal-legado Cesarini,
cos. Em 1951, o professor de História da Filosofia da USP, Lívio seu futuro amigo e protetor, e o físico Paolo Toscanelli.
Teixeira, publicou extenso artigo sobre "Nicolau de Cusa, estudo Depois de obter o grau de Doutor em Direito, em 1423, re-
dos quadros históricos em que se desenvolveu seu pensamento e tornou à Alemanha. Passou breve tempo em Mainz, estabelecendo-
análise dos livros I e II do De docta ignorantia" na Revista de se depois na cidade de Colônia. Aí sentiu-se chamado à carreira
'História (S. Paulo, jan./mar. de 1951. p. 17-41 e jul./set. 1951 p. eclesiástica e ao sacerdócio. Estuda Teologia em Colônia, com
71-84). Em 1986, o Prof. José Francisco Simões, da Universidade Heymericus de Campo o qual o familiariza com a obra racional -
de Juiz de Fora, publicou um longo artigo sobre "Nicolau de Cusa, mística de Raimundo Lúlio.
uma confluência da história da filosofia" na revista Estudos Leo- . Em 1427 (?)foi ordenado sacerdote em Colônia. Desta for-
poldenses (São Leopoldo, v. 22, n° 94, p. 15-85). A Fundação ma p~de participar mais ativamente na problemática religiosa e
Calouste Gulbenkian (Portugal) publicou a tradução portuguesa d~ teológica de seu tempo. Em 1432 já participa do concílio em Basi-
A Visão de Deus, com um longo prefácio de Miguel Batista Pereira léia, colocando-se, no começo, do lado dos conciliaristas. Mas, em
(p. 78) e uma introdução de João Maria André (p.50). 1437, adere à facção do papa contra a pretendida hegemonia ecle-
siástica dos alemães. Em 1435 renunciou ao convite para assumir
uma cátedra na então recém-fundada universidade de Lovaina.

132 133
Em 1437, Nicolau de Cusa foi enviado pelo papa Eugênio seu coração foi enviado à Alemanha, a Cusa, onde descansa na ca-
IV a Constantinopla para acompanhar ao concílio de Florença os pela do hospital por ele fundado e onde também se encontra sua
membros da Igreja grega com o objetivo de negociar a favor da seleta biblioteca particular.
união. Já naquele tempo seu lema era: "unidade na fé e diversidade O que havia em sua biblioteca?
nos ritos", aplicando assim à vida prática sua filosofia da unidade Em lugar de destaque acham-se as traduções latinas de Pla-
dialética entre o uno e o múltiplo. Da visão da "coincidência dos tão e de Proclo; junto a elas, o comentário de Bertoldo de Mosburg
opostos" no infinito origina-se sua primeira obra filosófica, a sobre o pensamento teológico procliano: Expositio in Elementatio-
Docta ignorantia. Esta apresenta a idéia da conciliação dos con- nem Theologicam Procli. Na mesma biblioteca encontram-se ainda
trários no infinito, suprema unidade dialética entre o uno e o múl- as obras de Dionísio Aeropagita e os comentários de S. Alberto
tiplo. A "coincidência dos opostos" toma-se a coluna vertebral de Magno, especialmente o dedicado ao tratado De divinis nomini-
seu pensamento filosófico. Ele próprio, no final da Docta igno- bus; contam-se ainda obras de mestre Eckhart, como o Sermão so-
rantia, refere-se a esta conciliação: bre a unidade de Deus e quase todas as obras de Raimundo Lúlio.
Com esses breves dados podemos perceber algumas fontes do pen-
"Recebe, agora, Pai respeitado, o que há muito tem- samento de Nicolau de Cusa, como mais adiante veremos. Nessas
po desejei alcançar por vários caminhos das doutri- - fontes predomina o neoplatonismo.
nas, até que, à volta de viagem, pelo caminho do mar
da Grécia (creio que por um supremo dom do Pai
o
das luzes; do qual tudo que provém é bom), fui le- 4.2- Obra
vado a compreender as coisas incompreensíveis de
modo incompreensível na douta ignorância, trans- A obra literária do Cusano pode ser dividida em diferentes
cendendo às verdades incorruptíveis cognoscíveis grupos, de acordo com seu conteúdo e método.
humanamente" (p. 235). a) Produção filosófica. Oferece um esboço completo no
Docta ignorantia e De coniecturis. Em Docta ignorantia o Cusa-
Nos seguintes anos exerce a função de legado pontifício nas no persegue a sabedoria numa busca tríplice: em Deus, no mundo e
dietas de Mogúncia, Nuerenberg e Frankfurt. Em 1448 foi nomea- no homem. Caracteriza-se pela maneira de proceder e formular os
do cardeal e, em 1450, bispo de Bréscia, Visitador e Reformador problemas. Divide a obra em três livros. O primeiro trata do má-
dos conventos alemães. Colocando em prática seus ideais de per- ximo absoluto (Deus); o segundo do máximo contrato (o mundo
feição, entrou em choque com o duque do Tirol, Sigismundo, que criado) e o terceiro trata do máximo contrato e absoluto (Jesus
chegou a encarcerá-lo durante algum tempo. Cristo). A douta ignorância mostra que o conhecimento do "o que"
No período de 1450 a 1458 tem relações intensas com os está vinculado ao "como" do conhecer e vice-versa. Sob este as-
beneditinos de Tegemsee, aos quais visitou diversas vezes. A eles pecto, sua filosofia é uma filosofia transcendental realista. Ao
dedica sua obra De visione Dei, uma obra de profunda reflexão fi- contrário de Kant, indaga não só o "como" mas também o porque e
losófica e religiosa. o donde do conhecimento.
Nicolau de Cusa morre em Todi, na Umbria, em 1464, Em De coniecturis não cita fontes, mas as influências de
quando se encontrava a serviço da Cruzada contra os turcos, pro- Proclo e Escoto Eriúgena (De divisione naturae) são evidentes.
clamada por Pio ll contra a sua vontade. Foi sepultado na Igreja Por outro lado, antecipa muitas idéias modernas e contemporâneas.
romana de S. Pedro ad vincula frente ao Moisés de Michelangelo, Está dividido em duas partes. O método resolutivo, exposto na se-
mas de acordo com seu desejo pessoal, manifesto no testamento, gunda parte (11,3), pode ser comparado com o método resolutivo e

134 135
constitutivo de Galileu; a problemática da conclusão silogística Na trilogia, Idiota de sapientia, Idiota de staticis experi-
(II,l) antecipa a crítica que Descartes fez à Escolástica; a dialética mentis e Idiota de mente, apresenta o néscio como o verdadeiro
de Hegel encontra precedente na primeira parte (1,9) como a dou- sábio que busca a verdadeira sabedoria não nos livros dos homens,
trina hegeliana sobre a "proposição especulativa" (II, 17); a doutri- mas no grande livro de Deus. Numa reflexão socrática, unida à in-
na dos estádios kierkegaardianos (II,15); o horizonte husserliano terioridade cristã, leva-nos a reconhecer a imagem de Deus em nós
(I,14;II,l) como o "mostrar-se lógico" de Wittgenstein (!,2). Con- mesmos.
cebe a idéia de conjectura de maneira transcendental. A obra Idiota de sapientia compõe-se de dois livros, em
No Apologia doctae ignorantiae, o cusano defendeu a forma de um diálogo entre um leigo (idiota) e um orador. Ponto de
"douta ignorância" contra os ataques do professor J. Wenck, de partida dos diálogos é o problema do "verdadeiro saber". Na hu-
Heidelberg. Faz interessantes comentários ao De docta ignorantia. mildade desse saber, o filósofo torna-se néscio, iníciante. Apesar
Afirma que em Deus os opostos coincidem, pois ele está além do de todos os conhecimentos adquiridos, só fala o que compreende a
mundo e de suas manifestações: "E ver a Deus assim significa ver partir da situação e do momento. Rejeita a ditadura do sistema
tudo como Deus e Deus como tudo, assim como sabemos, através doutrinário pronto por sacrificar a liberdade humana.
da douta ignorância que Ele não pode ser visto por nós" (Die phi- A sabedoria absoluta, que é Deus, no presente só pode ser
losohisch-theologischen Schriften, I, p.537). dtta no automovimento do espírito como o "sempre maior que".
Se na primeira obra concebeu a Deus intelectualmente como Como este processo de compreensão se dá na forma de pergunta e
coincidência dos contrários, na última o concebe divinaliter como resposta, conclui-se, no fim, que a pergunta sobre Deus é de tal
estando acima dessa coincidência. Se na primeira desenvolve uma natureza que nela pergutita e resposta coincidem. No fim faz a
grande visão metafísica, aliada a uma reflexão socrática e aos limi- transição de "conceito de conceito" para o "espírito que compreen-
tes do saber humano e à ciência da ignorância, no segundo acres- de" como participação no sentido universal.
centa uma teoria do conhecimento. No Idiota de mente, o espírito é a origem do limite da medi-
Em três obras mais breves, De Deo abscondito, De quae- da de todas as coisas. Atribui à mente a atividade fundamental de
rendo Deum e De filiatione Dei, expõe a busca intelectual de medir. De um lado, essa atividade se realiza no âmbito do sensível,
Deus. Nelas, por um lado, remete-nos à mística alemã e, por outro, do sinal e da linguagem. De outro, conduz à origem do espírito e
ao idealismo alemão do século XIX. de todo o ser. O espírito é imagem viva de Deus e não apenas ex-
De Deo abscondito é um diálogo entre um cristão e um pa- plicação. O fato de o espírito representar a força que tudo mede,
gão sobre o conhecimento de Deus como problema prático. O diá- significa não só que, em sua atividade criadora e em sua constitui-
logo gira em torno da essência da adoração que abrange fé, espe- ção trinitária, é semelhança de Deus, mas também é o ápice de
rança, amor e conhecimento, evidenciando que a douta ignorância uma doutrina do espírito e do mundo.
só pode ser concebida de maneira pessoal. O homem encontra a No Idiota de staticis experimentis quer mostrar que a idéia
essência própria de sua personalidade quando penetra na dimensão da medida tem lugar não só no campo filosófico mas também na
da adoração. prática da vida cotidiana. Nesta obra abre o caminho para a poste-
No De quaerendo Deum, o Cusano desenvolve a problemá- rior ciência da natureza.
tica que introduzira no De docta ignorantia sobre o Deus escondi- Na linha filosófica podem situar-se ainda Coniectura de ul-
do. É a questão permanente entre homem e Deus concebida como timis diebus, De visione Dei, De Beryllo, De principio, De non
filiação divina que desenvolve no De filiatione Dei. aliud, De venatione sapientiae e De ludo globi.

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O livro De venatione sapientiae foi motivado pela leitura da origem do conhecimento; no segundo, parte do conceito possest
obra de Diógenes Laércio. De certa forma é uma síntese de toda a (posse-est) para designar o aspecto formal da transcendência e, ao
sua obra anterior e, ao mesmo tempo, um esforço para superá-la na mesmo tempo, a determinação interna do pressuposto e fundamen-
busca da verdade e da sabedoria. Também nesta obra o ponto de to com os momentos concretos da experiência (movimento, pensar
partida é a situação humana global. Em princípio está aberta em como atividade, saber como felicidade suprema, etc.) no horizonte
três planos: eternidade, em perfeita semelhança e no fluxo tempo- da perfeição. De apice theoriae coloca a questão do pressuposto,
ral da semelhança. No plano lógico-ontológico reduz a questão à tanto a partir da pergunta- cada pergunta de certa forma já implica
fórmula que "tudo que veio a ser pôde vir a ser". "Principium et sua resposta - como a partir do sujeito, ou seja, a partir da possibi-
terminus posse fieri est posse facere. Posse factum per posse face- lidade do espírito. Nicolau de Cusa não pergunta o que é indubitá-
re de possefieri est factum" (De venatione, XXXIX). Aplica este vel (Descartes), mas: o que pressupõe toda a dúvida?
princípio a dez campos: a douta ignorância, possest, non aliud, a b) Escritos científicos. Trata-se de um conjunto de obras
luz, o louvor, a unidade, a igualdade, o nexo, o termo e a ordem. quase todas matemáticas. São as seguintes: De geometricis-
Todo este caminho conduz ao lugar determinado pelo tempo e pela transmutationibus, De aritmeticis complementis, De quadratura
duração do homem. circuli, De mathematica perfectione.
De beryllo foi escrito para introduzir os monges de Tegem- c) Obras de caráter religioso e ecumênico. O tema geral
see em sua filosofia. Há mais tempo já haviam sido familiarizados dessas é o diálogo de cristãos e não-cristãos em busca da unidade
com as idéias do De docta ignorantia através do prior Bemhard na fé. Famoso é seu tratado De pace fidei. Na mesma linha situa-se
von Waging. Esta obra se tomou atual depois de já terem recebido De cribratione Alchorani e outros.
o De visione Dei como livro de meditação. O berilo (lupa) é um d) Sermões e cartas. Nicolau de Cusa foi um grande orador
meio através do qual o normalmente invisível se toma visível. Esta sacro. Deixou cerca de trezentos sermões e cartas para a posterida-
"lupa" filosófica é a idéia da coincidência dos opostos como apa- de, escritos que revelam bem sua gênese espiritual e religiosa.
rece no processo teórico-prático da douta ignorância. No movi- Para proporcionar uma visão de conjunto da produção inte-
mento de todas as coisas semelhantes em direção à verdade da lectual do Cusano apresentamos um quadro cronológico de suas
alma descobre nela mesma a idéia do simultaneamente máximo e obras:
mínimo, ou seja, o berilo, tomando-se o lugar da mediação. Em 1433- De concordantia catholica
nova perspectiva, o homem toma-se "a medida de todas as coisas". 1436- De auctoritate praesidendi in Concilio Generali
De visione Dei foi escrito como livro de meditação para os 1437- Reparatip Calendaríi
monges de Tegemsee. Através de exemplos de reflexão, o Cusano 1440- De docta ignorantia
quer conduzir os que procuram através da experiência própria, ca- 1441- De coniecturis
racterizada pelo saber e pela doação, àquela escuridão que é a luz. 1442- Auslegung des Vater Unser
Quer mostrar que o conhecimento pleno da diferença entre o "olho 1444- De Deo abscondito
físico" e o "olho do espírito" faz a noite mística ser o que é. Ilustra Epístola ad Rodericum
essas idéias com a imagem e o olho que tudo vê. 1445- De quaerendo Deum
A dimensão do sentido e da verdade, que o espírito humano De fíliatione Dei
atinge na filosofia, é tematizada no campo do posse-est e desen- 1446- De dato Patris luminum
volvida nos escritos De princípio, De possest e De apice theoriae. 1447- De Genesi
No primeiro, passa da indagação pelo conhecimento da origem à 1449- Apologia doctae ignorantiae

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1450- Idiota de sapientia mática. O objetivo fundamental e o impulso que determinam toda
Transmutationes geometricae a sua obra é o homem. É o homem que luta pela vida porque
De arithmeticis complementis acredita que ela tem sentido.
De quadratura circuli Séculos antes de Descartes, o homem toma-se o apoio ar-
1452- Coniectura de ultimis diebus quimédico do mundo na obra do Cusano. Seu pensamento centra-
1453- Epistolae ad Aindorffer et Waging se em dois temas fundamentais: a douta ignorância e a conjectura
De visione Dei fundada na essência criadora do homem. Este homem, com o olhar
De mathematicis complementis ainda voltado para Deus, olha o mundo na perspectiva do absoluto
De pace fidei e, nesse mundo, experimenta o infinito. Essa experiência tem
1457- De Caesarea circuli quadratura como resultado o sabido no horizonte de um não-sabido, de modo
De usu communionis que a experiência se manifesta, em sua essência, como douta igno-
1458- De Beryllo rância. Desta forma a reflexão do Cusano não se refere apenas aos
De mathematicapeifectione objetos da percepção sensível mas ao próprio pensamento. Pensa-
1459- De mathematicis aurea propositio mento e experiência apresentam-se inseparáveis.
De principio Na experiência do todo, o Cusano não isola o saber. Ao sa-
De aequalitate ber fundado no interior da experiência cabe a tarefa de buscar o
1460- De possest sentido, refletindo sobre si mesmo e atingir o limite do próprio co-
1
1461- De cribratione Alchorani nhecimento.
1462- Tetralogus de non aliud
1463- De ludo globi 4.3.1- O conhecimento
De venatione sapientiae
1464- Compendium Parece que a porta de entrada ao pensamento de Nicolau de
De apice Theoriae Cusa é a gnoseologia ou teoria do cGnhecimento. Parte de uma
concepção própria do conhecimento que, por sua vez, apóia numa
A partir de 1932, a Academia de Letras de Heidelberg pu- concepção metafísica: o conceito inicial de Deus determina o
blica uma edição crítica das "obras cbmpletas", planejada em 16 âmbito da cognoscibilidade humana. Analisa as condições de pos-
volumes, dos quais alguns ainda estão sendo preparados. sibilidade do conhecimento com o objetivo de mostrar como é
possível o conhecimento de Deus. Estuda o espírito humano para
4.3 - O pensamento filosófico nele encontrar a imagem de Deus. Para ele, a mente é a imagem
viva da verdade infinita.
Nicolau de Cusa foi jurista e Clérigo, pastor e bispo, enfim, .O Cusano atribui ao homem como uma atividade caracterís-
antes de tudo foi um homem da Igreja. Sua vida oscila entre ativi- tica sua o discernimento. Mas diz que ele só é capaz de discernir
dade e contemplação, entre a fé e a especulação filosófica. Nesta mediante a idéia de unidade. Ora, a idéia de unidade não ocorre de
tensão nasceu sua grande obra de pensador cristão. maneira pura e absoluta, nem no mundo sensível, nem no mundo
A filosofia do Cusano carateriza-se por uma radicalidade espiritual presente. Toda a unidade é maior ou menor aproxima-
originária que indaga pelo todo para abranger igualmente o máxi- ção da unidade absoluta. O que aqui encontramos é a multiplicida-
mo e o mínimo. Transforma a própria indagação em método e te- de.

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Como em nosso conhecimento comum não atingimos a uni- milde. Neste ponto talvez eu seja mais sábio que tu" (Die Philoso-
dade pura, recorremos à comparação em relação a um máximo phisch-theologischen Schriften. ITI, p. 423).
(mínimo) uno verdadeiro no sentido pleno. Mas tal ponto de refe- A Docta ignorantia é um conceito básico na gnosiologia do
rência é um pressuposto, não algo diretamente conhecido. Tudo Cusano. Trata-se de um conceito muito complexo, dentro da ten-
que conhecemos como certo e verdadeiro conhecemos mediante tal dência socrática de que "só sei que não sei nada". Como Sócrates,
pressuposto. Por isso somos, ao mesmo tempo, doutos e ignoran- Nicolau de Cusa censura aos que crêem saber muitas coisas que na
tes. Assim o começo de todo o conhecimento filosófico é a douta realidade não sabem. O primeiro passo para chegar a uma verda-
ignorância. . deira sabedoria é o saber-se e confessar-se ignorante, pois o co-
nhecimento humano é um caminho infinito em direção à verdade,
a) A douta ignorância da qual nos aproximamos mais ou menos, mas nunca a atingimos
em absoluto. A douta ignorância vale, de modo especial, do co-
Nicolau de Cusa parte conscientemente do ponto de vista nhecimento de Deus que, por causa de sua infinitude está acima de
socrático de que o verdadeiro sábio é aquele que "sabe que não toda a comparação e, por isso, para nós sempre é um Deus desco-
sabe". Só conseguimos aproximar-nos da verdade enquanto dou- nhecido. Podemos aproximar-nos dele apenas a partir de símbolos
tos em nossa ignorância. Para explicar suas idéias, recorre a ima- - matemáticos, por uma visão intelectual, pela qual compreendemos
gens de geometria. Diz que nosso conhecimento se relaciona com incompreensivelmente que, no oceano de seu ser infinito, as dife-
a verdade pura como o polígono com o círculo. Por mais que mul- renças e oposições ao nívyl das criaturas se harmonizam na unida-
tipliquemos os ângulos do polígono, este apenas- se aproxima do de.
círculo. Por outro lado, como todos os polígonos se inscrevem no Nicolau de Cusa escreve:
círculo, todos os nossos conhecimentos se inscrevem na verdade,
ou seja, na unidade máxima. Como o círculo que abrange toda a "O entendimento perfeito e livre conhece a verdade
forma inferior está acima de todas elas também na verdade, como apreendida, como por um abraço amoroso, sem du-
máximo e uno, não ocorre o mais e o menos. O Cusano afirma: vidar que seja absolutamente verdadeiro aquilo de
que nenhuma mente perfeita pode duvidar. Mas, to-
"O entendimento está para a verdade, assim como o dos os que investigam mediante a comparação com
polígono está para o círculo: quanto maior for o nú- algo pressuposto como certo, julgam, proporcional-
mero de ângulos inscritos no polígono, tanto mais mente, o incerto.
semelhante ele será ao círculo; nunca, porém, chega- É, portanto, comparativa toda inquisição que se rea-
rá a ser igual a ele, mesmo que se lhe multiplicassem liza pelo modo de uma comparação, de tal forma que
os ângulos ao infinito - a não ser que coincida com o quando as coisas que se buscam podem ser compa-
círculo" (Docta ignorantia, I, 3). radas com algo pressuposto mediante uma redução
proporcional próxima, a apreensão do juízo resulta
· fácil, enquanto que, se temos necessidade de muitos
No livro I do Idiota de sapientia, Nicolau de Cusa apresen-
meios, a dificuldade e o trabalho logo aparecem(... ).
ta-nos um diálogo entre um homem ignorante do povo (idiota) que
Toda inquisição, portanto, ocorre em uma compara-
ensina a um erudito orador a "ciência da ignorância", discemindo ção ou proporção comparativa, fácil ou difícil, se-
o saber humilde e a ignorância soberba: "Esta é talvez a diferença gundo algo pressuposto infinito, uma vez que o in-
entre mim e ti. Tu te julgas um sábio, embora não o sejas. Por isso finito (enquanto escapa a qualquer proporção) é des-
te ensoberbeces. Eu me reconheço ignorante e isso me toma hu- conhecido. Mesmo assim, a proporção, como indica

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a conveniência com algo único e, ao mesmo tempo, pelo Pseudo-Dionísio e por seu conceito de Deus como o superes-
indica alteridade, não pode ser entendida sem o nú- sencial. Mas Nicolau de Cusa aponta a união do positivo com o
mero" (Docta ignorantia, I, 1). · negativo. Se, com efeito, sabemos não-saber de Deus é porque
também sabemos algo do infinito que é Deus. Nesta atitude há,
Quando procuramos conhecer a verdade das várias coisas, pois, dois aspectos: a posse de conhecimento e o saber de que este
em geral, procedemos por comparação. Comparamos o certo e o conhecimento nos deixa distantes daquilo que é a realidade.
incerto, o desconhecido e o conhecido. E isso, no âmbito das coi-
sas finitas, é fácil ou difícil, mas, de qualquer modo, é_possível. b) A coincidência dos opostos
Quando, todavia, se indaga do infinito, a coisa é bem diferente,
pois o infinito escapa a toda a proporção, permanecendo desco- Podemos dizer que o centro de toda a doutrina do Cusano é
nhecido. Essa é a causa de nosso não saber em relação ao infinito, a teoria da "coincidência dos opostos". A verdade máxima é única.
pois ele não tem proporção em relação às coisas finitas. A "douta É o próprio Deus. Assim Deus é a "complicação" unitária do múl-
ignorância" é a consciência dessa desproporção estrutural entre a tiplo, que é a sua "explicação". Como imagem, o círculo é a
mente humana (finita) e o infinito, ao qual ela contudo tende e complicação unitária de todas as formas que são sua explicação.
busca. Deus,· máxima complicação, verdade, unidade, reúne em si como
Com efeito, a douta ignorância é, ao mesmo tempo, uma implicações, todos os seres, que são sua explicação.
fórmula de teologia negativa: fundamentalmente Deus não pode Nicolau de Cusa expressa a relação entre Deus e o universo
ser alcançado pelo nosso entendimento. Trata-se de justificar criti- através de três conceitos básicos: a) o conceito de "complicação";
camente a transcendência, que também se dá nos seres vivos e b) o conceito de "explicação"; c) o conceito de "contração".
inanimados, uma vez que não conseguimos apreender a todo esse a) Como máximo de todos os máximos, Deus contém em si
mundo em sua essência. Diante desse fato, a atitude prudente é a todas as coisas. Pode dizer-se, então, que Deus "complica" ou
douta ignorância que nada tem a ver com o ceticismo, porque en- implica ou inclui todas as coisas. Da mesma forma o ponto é a
cerra essencialmente uma atitude dinâmica. "complicação" de todas as figuras geométricas, uma vez que a li-
A douta ignorância delineia-nos um caminho infinito no nha outra coisa não é que o ponto que se explica, etc.
conhecimento. Quando o Cusano fala da impotência do conheci- b) Quando se considera Deus como "explicação", quer di-
mento humano, quando coloca a missão da filosofia na consciência zer-se que Deus é, em todas as coisas, aquilo que elas são. Enquan-
desta impotência e quando define a autêntica sabedoria como igno- to explicação, Deus "é como a verdade na sua imagem". Dizer,
rância, que se compreende como tal, esta ignorância de modo al- então, que o universo é explicação de Deus significa dizer que ele
gum é pura carência de conhecimento. Para ele, o processo de é "imagem" do absoluto.
conhecer é um caminho infinito, um caminho de conjeturas. Esta c) O conceito de "contração" é uma conseqüência para ex-
certa transcendência das essências das coisas não exclui a possibi- pressar a manifestação de Deus. Deus está contraído no universo
lidade de conhecê-las. Apenas nos impede de conhecê-las de todo. como a unidade está contraída na pluralidade, a simplicidade na
Podemos aproximar-nos sempre mais do todo. O pensamento é, em composição, a quietude no movimento, etc. Desta maneira, Nico-
si mesmo, um conato de abranger o ser de pontos de vista sempre lau de Cusa pode dizer que cada ser é "contração" do universo e
novos. A verdade só se desvela aos poucos. este, por sua vez, é contração de Deus. Isso significa que cada ser
A teologia negativa já havia dito isso de nosso conhecimen- resume o universo inteiro e Deus.
to de Deus. Nicolau de Cusa certamente foi muito influenciado

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A base de sua gnosiologia é a contradição. Em Deus o con- Espírito Divino, que contém tudo em sua absoluta unidade como
traditório adquire a harmonia da unidade. A ciência humana de- simplificado em si: é a complicatío: "Deus é, portanto, quem
tém-se perante este umbral a partir do qual só nos resta o recurso à complica todas as coisas, porque todas as coisas estão nele e é ele
douta ignorância. Um dos caminhos para chegar a conhecer a que explica todas as coisas, porque ele mesmo está em todas as
Deus - dirá no opúsculo De quaerendo Deum - é ir-se despojando coisas" (Docta ignorantia, II, 3). A multiplicidade das coisas é a
de tudo que é nosso e mundano, que não é Deus. De outro ~ado, o explicatio de Deus.
universo é uma contração da unidade de Deus, havendo diversos O sentido é a base do conhecimento. No entanto o espírito é
graus de contração que explicam ou explicita~ a unid~de máxima o critério e o juízo que se aplica ao dado sensível. Há um aprioris-
absoluta: o máximo contrato é a unidade própna do umverso; o se- mo da idéia. Graças à participação que, de alguma forma, se reali-
gundo contrato são as categorias; o terceiro contrato são os indiví- za no espírito e nas coisas, o conhecimento resulta autêntico. A
duos existentes em ato. alma humana vem a ser uma unidade contrata que contém todas as
Com este esquema, Nicolau de Cusa pode estabelecer um coisas em estado de "complicação". Porém o conhecimento, atuali-
nexo entre a filosofia e a teologia, sobretudo, através da Trindade. zando seus poderes, a explica. Assim sempre temos um duplo mo-
A Trindade do ser absoluto, com efeito, contrai-se no universo. O vimento em nós, ambos de sinal inverso, mas complementares en-
que distinguimos humanamente no ser absoluto como Pai, Fi!ho e tte si, mediante os quais se opera o regresso do múltiplo ao uno.
Espírito Santo tem seu paralelo no universo contrato: a capacidade Deus é a complicação ou o resumo de tudo e o mundo é sua
de contração, o poder contraente e o nexo entre ambos. correspondente explicação.
Sua teoria do conhecimento expõe-na mais sistematicamente Ora, se tudo deriva lio uno, todos os opostos devem coinci-
em o Idiota. Partindo do exemplo prático do que acontece em toda dir no infinito e só nos múltiplos mostram-se os opostos como tais.
classe de operações com os números ou a quantidade.- m~dir, ~e­ Isto leva o Cusano a formular sua idéia da coincidentia opposito-
sar, contar, etc. - afirma que o princípio de todas as coisas e aqmlo rum, a chave de sua filosofia. Essa coincidência é basicamente um
em virtude do qual e a partir do qual tudo é derivado; e isso que princípio ontológico. De fato, em Deus, tudo é uno e coincidente e
não se pode conceber como algo posterior, a não ser, pelo contrá- só fora dele se opõe e se confronta a multiplicidade. Deus é a co-
rio, é aquilo que dá sentido e inteligibilidade ao todo, como ocorre incidência dos opostos (De docta ign. I e II). No De coniecturis já
nos números com a unidade. concebe divinaliter a Deus como estando acima da coincidência
A gnosiologia de Nicolau de Cusa recorre ao fundament? dos opostos.
metafísico para resolver o problema. No que concerne o conheci- Posteriormente o Cusano deu um aspecto lógico à coinci-
mento de Deus e da essência das coisas, a teoria das idéias é os dência dos opostos. Também o nosso entendimento, com suas
conceitos neoplatônicos da participação lhe permitem uma decid~­ múltiplas regras e sua atomização conceitual do juízo é como uma
da crítica e um estudo dos limites e realidades de nosso conheci- derivação de uma unidade infinita, a razão. As regras lógicas feitas
mento evitando todo o tipo de ceticismo. Neste sentido o Cusano só para o pensar do entendimento são superadas pela razão. Aqui
super;u a Escolástica, que assimilou mui rapidamente a species encontramos, em forma embrionária, o princípio da moderna filo-
aristotélica. sofia alemã: um esboço da teoria do espírito. como unidade sintéti-
O "apriori" do Cusano é o uno. É algo que possuímos ante- ca, fator criador de todo o nosso conhecer.
riormente a todo o conhecimento. Este é o tema do diálogo com Enfim, a idéia geradora da metafísica e da gnosiologia de
que se inicia o Idiota de Sapientia. O uno não se deduz da experi- Nicolau de Cusa vem de Plútino, sobretudo através de Proclo. A
ência, mas tudo procede dele. Nosso espírito, feito à imagem do base do neoplatonismo, na metafísica, era a hierarquia de hípósta-

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ses entre os seres múltiplos .e o uno, entre a matéria dispersa e a nossa mente sujeita a realidade a sua própria medida. Como Deus
suprema unidade. Cada uma dessas. hipóstases contém, em sua criou o mundo real, o homem cria os entes racionais e as formas
medida, toda a realidade das coisas. Indistintas no Uno - coinci- artificiais. Enquanto Deus, ao conhecer, produz a realiqade, o ho-
dência dos opostos - apreendidas na inteligência por intuição - a mem só a reproduz.
intuição as vê todas em cada uma - unidas na alma pelos laços da
razão discursiva, exteriores umas às outras no mundo sensível. 4.3.2 - O conhecimento de Deus
Esta é a estrutura metafísica que rege o todo. O progresso crescen-
te de uma hipóstase à outra por conversão é, mais que um passo de A teoria do conhecimento do Cusano inicia com a douta ig-
uma ordem de realidade à outra ordem, uma visão cada vez mais norância. Caracteriza a filosofia como uma ignorância consciente.
una e adequada de um universo em todas as partes idêntico a si Deste modo a função do filósofo consiste em mostrar a inadequa-
mesmo. ção entre o conceito e a realidade. Tal inadequação funda-se, por
Esta é a visão que Nicolau de Cusa propõe. Em vez de con- um lado, na essência da verdade; por outro, na própria natureza do
tentar-se, como os aristotélicos, com o conhecimento racional que conhecimento. A verdade tem caráter absoluto, consistindo numa
constrói o real a partir da sensação, encerrando-o em conceitos igualdade e identidade indivisível. Nosso conhecimento, por sua
abstratos segundo as normas presididas pelo princípio de contradi- vez, parte do conhecido para chegar ao desconhecido, sendo es-
ção, nosso autor quer elevar-se a um plano superior em que as coi- sencialmente comparativo. Desta forma conhecer uma coisa é
sas são vistas não racionalmente mas intelectualmente, graças a compará-la com outras e çomparar significa medir uma coisa com
uma intuição intelectual que transcende o princípio de contradição outra. A mente tem a função essencial de medir.
e apreende, em visão sintética, a união e coincidência de opostos e O verdadeiro conhecimento humano realiza-se num proces-
contraditórios, que a razão crê irredutíveis e inteiramente exclusi- so ilimitado, problema que o Cusano desenvolve em De coniectu-
vos. ris, pois conjetura (Mut-massung) significa medir com a mente,
O conhecimento intelectual tende para o irracional como seu isto é, comparar. E o cardeal deriva a palavra "mente" de
limite. E este irracional, que é propriamente o intelectual e que se "mensurar" (Idiota de mente, I). Esta é sua maneira de ser ;o meio
deveria chamar de supra-racional, leva-nos à coincidência dos finito e participar do infinito. Por isso, o espírito humano lança-se
opostos, à unidade primordial que é, no platonismo puro, o prin- às coisas para dar-lhes sua própria medida. Conhecendo o outro,
cípio do ser e do conhecer. conhece-se a si mesmo. Não encontrando sua própria medida no
Em síntese, Nicolau de Cusa analisa a estrutura da mente finito, busca-a no infinito:
humana para descobrir as condições que possibilitam o conheci-
mento e mostram os seus limites. Elabora uma concepção ativa, "Por ser o conhecer um assimilar, a mente encontra-
pois conhecer não é copiar ou simplesmente representar, mas ati- o todo em si mesma como em seu espelho vivo e re-
tude criadora do espírito. Na mente, o homem encontra a semente pleto de vida intelectual e, olhando reflexamente
divina que contém os germes de todas as coisas. Ao olhar ao seu para si, vê-o todo assimilado em si mesma. Esta as-
derredor, a mente humana contempla sua própria imagem. Sob este similação é uma imagem viva e intelectual de Deus,
aspecto encontramos, na obra do Cusano, proximidade ao moderno de um Deus que não é outro em relação a qualquer
idealismo transcendental de Kant. O mundo sensível é ocasião e um. Por isso, contempla-o em si mesma, quando, ao
ponto de partida para a atividade do espírito, cujo termo não é a entrar dentro de si, se reconhece uma imagem pro-
porcionada de seu exemplar. E conhece, assim, sem
coisa em si, mas seu símbolo ou semelhança mental. Ao conhecer,
dúvida alguma, como a seu Deus aquele do qual é

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uma semelhança" (Die philosophisch-theologischen A teoria da inadequação entre conceito e realidade aplicada
Schriften I,.p. 79). ao conhecimento de Deus e ao conhecimento do mundo, tem con-
seqüências críticas. Se conhecer é comparar, como será possível
Desta forma o cardeal germânico deu um sentido novo a conhecer aquele que, peío próprio conceito, está acima de toda a
velha frase de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coi- comparação? Por natureza, o infinito transcende toda a compara-
sas". ção, por se tratar da ordem do absoluto máximo. Por isso o infinito
A comparação diz, ao mesmo tempo, semelhança e diferen- enquanto infinito é nos desconhecido (Docta ignorantia, I, 1). O
ça. que então podemos dizer de Deus?
O Cusano afirma: Com certeza apenas podemos dizer que Deus não é como o
mundo. "Eu sei que tudo que eu sei não é Deus e que tudo que
"Sendo evidente que não há proporção entre o infini- concebo não se assemelha a ele, mas o supera", diz Nicolau de Cu-
to e o finito, é igualmente evidente que ali onde se
sano De Deo abscondito (Die philosophisch-theologischen Schrif-
encontra um mais ou um menos, não se chega ao
simplesmente máximo, pois que as coisas suscetí-
ten, I, p. 305). O infinito, enquanto infinito, permanece desconhe-
veis de um mais ou de um menos são finitas, ao pas- cido para nós. Mas, se a mente humana é imagem viva de Deus,
so que, o máximo é necessariamente infinito. Dando- não pode deixar de buscar a verdade daquilo de que é imagem: "A
se, portanto, qualquer coisa que não seja o próprio imagem não se acomoda a não ser naquele ser do qual é imagem,
máximo simples, é manifesto que se possa dar outra do qual tem origem, meio e fim. Uma imagem viva move-se por
maior" (Docta ignorantia, I, 3). sua própria vida até o ex~mplar no qual encontra repouso. A vida
da imagem não pode descansar em si mesma, pois é a vida da ver-
No Idiota de sapientia, Nicolau de Cusa coloca Deus além dade da vida e não vida própria. Por isso tende ao exemplar como
da afirmação e da negação: a verdade de seu ser. Se o exemplar é eterno, e a imagem tem uma
vida na qual tem o pregosto do exemplar e assim, pelo desejo se
"Mas existe ainda uma maneira de considerar Deus, move até ele - e este movimento só pode repousar na vida infinita,
pela qual nem lhe convém afirmar nem negar a afir- que é a sabedoria eterna - então aquele movimento do espírito não
mação, mas está acima de toda afirmação e negação. pode cessar, uma vez que nunca alcança a vida infinita de maneira
Neste caso a resposta nega a afirmação, a negação e
infinita" (Die philosophisch-theologischen Schriften, III, p. 439-
a síntese. Com efeito: à questão da existência de
Deus, a resposta afirmativa, a partir do pressuposto,
441). Em outras palavras, a natureza intelectual é capaz de Deus
é que Deus é o ser absoluto, que pressupõe a própria porque nela há potência infinita para entender sempre mais. De
questão. A resposta negativa é que Deus não é ser, modo semelhante ocorre em nosso conhecimento do mundo, por-
pois que, segundo este modo, ninguém pode atribuir quanto na comparação nunca conseguimos atingir a igualdade ab-
a ele tudo aquilo que é dito dele mesmo. A resposta, soluta. O que está acima da comparação não é deste mundo, por-
enfim, que sobrepassa a afirmação e a negação, con- que é unicamente o máximo absoluto. Tudo que não é este máximo
siste em dizer que Deus nem é o ser absoluto, nem o absoluto, é perfectível. Por isso, "é claro que é impossível encon-
não-ser, nem os dois simultaneamente, mas que está trar duas ou mais coisas semelhantes ou iguais que não possam ser
acima da própria disjunção" (Die Philosophisch-
infinitamente mais semelhantes" (Docta ignorantía, I, 3). No Idio-
theologischen Schriften. III, p~ 461).
ta de sapientia, escreve: "Neste mundo não existe, pois, precisão,
nem retidão, nem verdade, nem justiça, nem bondade, uma vez que

150 151
experimentamos que uma coisa é mais precisa que a outra, como claramente os limites do conhecimento humano. Portanto, a douta
uma imagem é mais precisa que a outra. Da mesma forma é com a ignorância é também um verdadeiro conhecimento, pois é um co-
retidão, pois uma coisa é mais reta que a outra e uma coisa é mais nhecimento fundamental dos limites do próprio conhecimento. Por
verdadeira que a outra, uma mais justa que a outra e uma melhor isso, o Cusano reconheceu os limites das duas vias clássicas nas
que a outra" (Die philosophisch-theologischen Schriften, III, p. especulações teológicas sobre Deus: a afirmativa e a negativa. Para
467). O Cusano radicaliza sua posição: "Segundo isto a inteligên- ele, Deus, sem deixar de ser Deus, é também mundo enquanto é
cia finita não pode conhecer a verdade das coisas com verdadeira homem verdadeiro. Ele é um Deus conosco, epifânico. O mundo,
exatidão. Pois a verdade não é nem mais nem menos, é algo indi- de modo especial o homem, participa da própria vida divina, pois
visível... Só sabemos da verdade tal como é em si que não a pode- em sua reflexão mística, assume Deus e mundo, perfazendo o reino
mos apreender exatamente, pois a verdade é a necessidade absolu- da graça e o reino da natureza uma síntese. O universo é, de ma-
ta, que não pode ser mais nem menos como é; em contrapartida, neira "contraída", o que Deus é absolutamente. No universo, a uni-
nosso entendimento é mera possibilidade. Portanto, a essência das dade é contraída na multiplicidade, a simplicidade na composição,
coisas, que é a verdade dos entes, é inalcançável em sua pureza, o infinito no finito, o eterno no tempo.
investigada por todos os filósofos, mas por nenhum encontrada Em síntese, para o Cusano, é impossível o conhecimento de
como é em si mesma; quanto mais profundamente estivermos en- Deus pela razão conceitual e discursiva, mas admite seja possível
sinados nesta ignorância, tanto mais nos aproximamos da verdade" pelo intelecto intuitivo. Este conhecimento é mais negativo que
(Docta ignorantia, I, 3). positivo, razão pela qual o chama "douta ignorância". Deus está
Para o Cusano, Deus é o pressuposto absoluto de tudo o que além da dialética de unidade e diversidade, além do intelecto e da
de qualquer modo se pressupõe: "Todo o espírito, ao investigar e razão. Na coincidência dos opostos conhecêmo-lo intellectualiter
buscar, investiga somente no interior desta luz e não pode haver mas não divinaliter. Assim, a douta ignorância e a coincidência
pergunta que ela não suponha. A pergunta sobre se algo é, não dos opostos apenas são a porta de entrada para a adoração mística.
pressupõe a essência? A pergunta sobre o porque algo é, não pres-
supõe a causa? A pergunta sobre o para que algo é, não pressupõe 4.4 - Fé e razão
o fim? Aquilo que se pressupõe em toda a dúvida deve ser absolu-
tamente certo. Portanto, a unidade absoluta não pode ser posta em Desde a Patrística, a relação entre fé e razão foi pensada em
dúvida, pois ela é que dá o ser em todo o ente, a forma em toda es- três formulações: credo ut intelligam; intelligo ut credam; credo
sência, causa em toda a causa e é pretendida em todo o fim. Só de- quia absurdum. Diante dessas concepções tradicionais, Nicolau de
pois desta certeza começa a série das dúvidas" (Die philosophisch- Cusa assume posição própria.
theologischen Scchriften, II, p.21). Em outras palavras, a existên- O Cusano concebe a relação entre fé e razão não de maneira
cia de Deus, como necessidade absoluta, está no fundo de toda a dialética, mas de maneira integradora, não opondo fé pura (sola fi-
pergunta e de toda a afirmação. Na ordem gnosiológica, Deus é o des) e razão absoluta. Entende a fé como um todo abrangente,
apríori que condiciona toda a compreensão. A questão, para o Cu- como início da própria compreensão. A fé precede e acompanha o
sano, não é a existência de Deus mas seu conhecimento. saber, aumentando sua capacidade, mas não substituí a razão, uma
Existe um autêntico conhecimento do mundo, segundo o vez que esta se ordena propriamente à ciência e não à fé. A fé é a
Cusano, mas este é sempre perfectível por causa da sua índole luz que vem do alto e ilumina nossa inteligência como o raio do
comparativa. Toda a afirmação, por mais exata que seja, poderá ser sol ilumina a atmosfera, possibilitando nossa visão das coisas, sua
superada por outra ainda mais exata. Desta maneira, reconhece cor e suas formas. Graças à fé, o crente conhece mais a Deus que o

152 153
descrente. Crer e saber são dois movimentos do nosso espírito. Por ção com outros, só atingiu o tamanho do grão de
isso, não só a fé ajuda a inteligência, mas esta também ajuda a fé. mostarda, torna-se de uma força tão imensa que até
os montes lhe obedecem quando lhes ordenar na
Nesse sentido amplo, todo aquele que quiser c~egar à ciência deve,
força da palavra de Deus, unido a ela, enquanto de-
no mínimo, crer nela. A fé é, pois, o mais abrangente que inclui pende dele, na fé mais profunda. Nada poderá resis-
todo o racional. E o pensamento racional é a explicação da fé. Es- tir-lhe" (Docta ignorantia, III, 11).
creve:
Dessa maneira, fé e razão encontram-se na douta ignorân-
"Todos os nossos antepassados foram unânimes em cia como o todo, cuja estrutura é o sentido como relação real e
testemunhar que a fé é o começo do intelecto. Em
concreta entre fé e razão, sem que uma esteja subordinada à outra.
toda a faculdade pressupõe certas coisas como pri-
meiros princípios que só podem ser apreendidas pela Na coincidência dos opostos, também fé e razão convergem em
fé; delas adquire-se a inteligência daquilo que se Deus. Para isso Deus deve ser concebido como trindade pessoal.
trata. Todo aquele que quiser progredir no conheci- A relação entre fé e razão apresenta-se como relação origi-
mento, necessariamente deve crer naquilo que lhe nária entre teoria e práxis, entre sentido e ordem no seio da plura-
possibilita o progresso. Por isso a fé inclui, em si, lildade do ser e das coisas. O lugar para a maior concretude da re-
tudo que é· inteligível. O intelecto, porém, é a expli- lação entre fé e razão é o homem. A'fé no homem, que é imagem
cação da fé. Orienta-se pela fé e esta expressa-se de Deus e em cuja essência se repete a origem de Deus como das
pela razão. Onde não houver fé sadia também não coisas, o princípio próprio da filosofia é aquele que prepara o ca-
haverá verdadeiro conhecimento. É manifesto a que
minho do Evangelho.
conseqüências o erro nos princípios e a debilidade
Pode caracterizar-se o pensamento de Nicolau de Cusa como
no fundamento conduzem. Mas nenhuma fé é mais
perfeita que a própria verdade, Jesus Cristo" (Docta uma "metafísica descendente", pois seu pensamento move-se do
ignorantia, III, 11). alto para baixo. Deus é o primeiro e supremo princípio de seu pen-
samento porque princípio do ser e da verdade, a pedra angular de
Para o Cusano, fé e razão não se opõem, nem se excluem todo o sistema de sua filosofia. Fundamenta todo o sistema na
mutuamente, mas antes se incluem. Enquanto o intelecto, como doutrina da participação e no exemplarismo. Com a distinção entre
manifestação finita, pode crescer ou diminuir, nele encontram-se o "ratio" e "intellectus" pode fazer coincidir em Deus aqueles con-
máximo e o mínimo como intelecto absoluto e como fé absoluta. ceitos que no nível meramente racional parecem opostos. Desta
Como o máximo e o mínimo coincidem, também fé e razão coinci- forma limita a validade do princípio de contradição do plano raci-
onal do conhecimento e estabelece o princípio de que Deus deve
dem:
ser pensado como coincidência dos opostos.
"Esta é a fé forte, que é a maior, de tal modo que Aqui está o testamento do Cusano. Concebendo o homem
também é a menor e que reúne nele, que é a verdade, como pessoa e a filosofia de maneira humana, abriu o horizonte no
tudo que se pode crer. Embora a igualdade total seja qual chegamos à liberdade do pensamento, desenvolvemos a pleni-
impossível porque a fé de um não atinge o grau do tude da fé e atingimos a verdade do todo.
outro - da mesma forma como um objeto visível não O pensamento de Nicolau de Cusa situa-se, pois, na transi-
é visto de igual maneira por diversos - contudo é ne- ção entre o ocaso da Escolástica e o Renascimento. Compendia em
cessário que cada qual, enquanto depende dele , te-
si traços profundos da visão medieval cristã da realidade e ao
nha a maior fé. Então a fé daquele que, em compara- '
mesmo tempo, antecipa características da época renascentista e

154 155
moderna. Na sua obra percebe-se a influência da mística alemã, de vê, na unidade psíquico-espiritual do homem , uma imagem viva
modo especial do Mestre Eckhart, do naturalismo físico- de Deus e, na unidade físico-espiritual, o mundo em miniatura; e
matemático do renascimento italiano como era cultivado em Pá- em Jesus Cristo vê o princípio da plenitude do homem e do cosmo
dua, de Alberto Magno e Raimundo Lúlio. Da tradição mística no homem. A vida sensível chega à plenitude no espírito humano e
decorre a tônica colocada no "infinito" como caráter essencial de este chega ao máximo na união com Deus no qual os opostos co-
Deus. Por outro lado, é forte a presença do neoplatonismo e do incidem.
platonismo cristão em toda a sua obra. Os grandes temas medievais recebem novos acentos na obra
O professor José Francisco Simões afirma, em seu estudo da do Cus~no que se torna moderno pela sua singular concepção do
obra de Nicolau de Cusa: "Se convertermos a apreciação do pen- conhecimento. Por vezes nele encontramos inícios da auto-reflexão
samento e da posição de Nicolau de Cusa, de simples transição em crítica da filosofia moderna. A humildade intelectual e a atitude de
confluência de teorias filosóficas anteriores e posteriores, alcança- reconhecimento da finitude do conhecer humano com sua dupla
remos a compreensão da própria história da Filosofia" (Estudos significação de ignorar conscienté a respeito do conhecimento de
Leopoldenses, v. 22, n. 94, 1986, p.20). O professor Simões carac- Deus e de saber ignorante a respeito do conhecimento da realidade
teriza o pensamento do Cusano, com adequação, como "a conflu- empírica situam-no na modernidade. É moderno por sua concepção
ência das teorias filosóficas", ou como "síntese das tendências an- de mundo e de homem. O homem é a medida de todas as coisas
teriores e posteriores". mas a unidade de medida está em Deus. O espírito finito está ar~
Nicolau de Cusa situa-se entre o passado medieval e o futu- raigado no espírito infinito como condição última de possibilidade.
ro moderno. Seu pensamento é, sob muitos aspectos, medieval. É Sua singular teoria do espírito, acentuando o caráter criador e es-
medieval quanto às fontes que usa, por seu horizonte especifica- pontâneo do conhecimento humano, antecipam aspectos funda-
mente cristão. Sua atitude expressa-se no princípio agostiniano mentais da modernidade, sem excessos de subjetivismo. Esta mo-
crede ut intelligas e pelo axioma anselmiano fides quaerens intel- dernidade explícita-se, de modo particular, em sua concepção do
lectum. É medieval ainda quanto ao teocentrismo, pois em sua fi- espírito humano como imagem de Deus. Se, para o Cusano, Deus é
losofia Deus está no começo e no fim. Sua visão teocênctrica é a infinita unidade originária e o mundo sua expressão finita, a
uma tentativa gigantesca de pensar Deus e ver toda a realidade a mente do homem é a explicação concreta da unidade e imagem de
partir Dele. sua complicação criadora. A verdade das coisas manifesta-se na
O Cusano ainda não elabora uma filosofia crítica autônoma. mente humana. Esta torna-se o novo lugar da metafísica. O espírito
Sua ignorância sedenta na busca incansável da verdade orienta-se humano converte-se no centro a partir do qual abrange o universo
para o fundamento do ser todo e de toda a ordem de conhecimento, dos entes, mas só na sua condição de imagem de Deus. O espírito
para a realidade originária de Deus. Seu pensamento transcende finito, todavia, em sua condição de possibilidade, está fundado no
para um infinito absoluto. Os opostos no mundo e em nossa esfera espírito infinito. Nisto o pensamento do Cusano significa uma
lógico-racional coincidem em Deus. Por isso, a douta ignorância síntese do medievo e da modernidade, herança e, ao mesmo tempo,
completa-se na visão do Deus uno e trino. No caminho, para che- projeto. Enfim, na história da filosofia, o pensamento de Nicolau
gar até lá, todo o conhecimento humano tem caráter conjetura!. A de Cusa significa uma linha divisória que separa e, ao mesmo
plenitude do ser divino desenvolve-se e contrai-se no universo em tempo, une duas grandes etapas do pensamento ocidental.
espécies e indivíduos. Deus é o centro indivisível de tudo e em
tudo (mínimo absoluto) e, ao mesmo tempo, abrange tudo
(máxi~o absoluto) além da categoria do espaço. Nicolau de Cusa

156 157
CONCLUSÃO
A filosofia medieval pressupõe a filosofia grega, sem com
ela se identificar, e produziu a Escolástica com sua expressão mais
duradoura: o tomismo. Desde a Patrística até fins do século XIV, a
filosofia gira em tomo da questão da relação entre razão natural e
fé. Este tema está presente nos pensadores medievais desde Escoto
Eriúgena até Duns Escoto. No começo aceita-se o dogma como um
fato com o qual a razão tenta medir-se.
As soluções apresentadas situam-se entre dois extremos: se-
paração radical ou confusão total. Em outras palavras, ou se adere
à revelação e nada mais é necessário; ou admite-se que razão e fé
se sobreponham. Neste caso, sempre se poderia chegar a compre-
ender o que se crê. Grandes pensadores medievais entretanto esco-
lheram um caminho intermediário.
Por que os escolásticos não deixaram os dogmas simples-
mente de lado? Por que tentaram fundamentá-los racionalmente?
Por que essa preocupação com os preâmbulos da fé?
A filosofia sempre apareceu como instrumento e· esforço
para interpretar racionalmente o universo. O universo da época é o
universo cristão. No Ocidente, a história da Idade Média identifi-
ca-se com a história do Cristianismo. Este é o mundo dado aos
pensadores. Como os filósofos hoje se defrontam com o mundo da
ciência e da técnica, com o mundo da vida, naquele tempo o mun-
do imediatamente dado era o da fé; a realidade diretamente senti-
da e pensada era a realidade religiosa.
Em que sentido este pensamento chega até nós?
Para alguns, a filosofia do século XIII merece toda a admi-
ração; para outros é digna de abominação. Apesar disso, o pensa-
mento do século XIII ainda continua vivo. Primeiro vive no cato-
licismo, pois os problemas colocados e resolvidos pela ciência de
hoje não são os grandes problemas da religião. No campo da reli-
gião somos herdeiros da Idade Média. E isso não vale só para ca-

159
tólicos, mas também para anglicanos, calvinistas e luteranos, no
campo da teologia. BffiLIOGRAFIA
Entretanto a Idade Média não só deixou teologias, pois até
essas estavam fundamentadas racionalmente, ou seja, filosofica- 1) Fontes
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cida pela teologia, da mesma forma como hoje se pode discutir se ABELARDO. História calamitatum. Texto crítico com uma intro-
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são igualmente filosóficos. Isso Descartes reconhece quando afir- _ _ _. Monológio, Pro,slógio, A Verdade, O Gramático (textos
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livre da autoridade, inclusive da autoridade humana. É, pois, in- ___ . Obras de San Buenaventura (edição bilíngüe). Madri,
genuidade querer fundar o Renascimento e o Humanismo contra B.A.C., 1945, 5 vol.
ou sem a Idade Média. O problema central do pensamento medie- BOECIO. Opera. Migne, PL 165.
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