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NIETZSCHE, ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS (ALGUNS APONTAMENTOS)

O fato é que a maioria das concepções de história à disposição no mercado


historiográfico - a despeito das possíveis confusões epistemológicas entre si - mantém
pontos de aproximação quando se trata de suas relações com certo estatuto de verdade. A
única concepção na contracorrente dessa maré historiográfica é a concepção pós-
estruturalista e/ou pós-moderna em história. É que esta última parece disposta a dialogar,
talvez mais inconscientemente que conscientemente, com um único campo
epistemológico, isto é, a filosofia da diferença, em especial nas pessoas de três filósofos
franceses contemporâneos, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e Michel Foucault, os quais,
na condição de filhos da tão propalada crise da razão - razão que, tomada em termos
amplos, não é outra coisa senão a própria metafísica ocidental - se colocam mais ou menos
como herdeiros de Nietzsche como aquele que representa o grande “ponto de viragem”
do pensamento racional no Ocidente. Vale dizer: “ponto de viragem” que fornece as bases
conceituais e ideológicas em torno da ideia de que o projeto moderno deu o que tinha que
dar, conquanto marcado pelo esgotamento ou decadentismo, tudo isto como indicativo de
que a deusa razão estava com dias contados e que o Iluminismo, na esteira do qual essa
“deusa” se tornara toda poderosa, era uma espécie de herança maldita que deveria ser
rechaçada com todas as forças, como se os iluministas e seus postulados em prol do
domínio da razão fossem culpados por todas as mazelas ou desarranjos sociais nos futuros
passados; como se os iluministas não devessem ser “dessacralizados”, pois não eram
“deuses” coisíssima alguma, mas tão só filósofos engajados num contexto dado, no qual
lutavam em nome de uma coisa chamada razão, mas que naquele contexto significava,
mais que qualquer outra coisa, apenas a vitória da emancipação humana, pensada em
termos universais, contra o que chamavam de obscurantismo e as leis de direito divino no
interior do Ancien Régime.

E que significa seguir de perto as pegadas nietzscheanas? Significa abraçar,


consciente ou inconsciente, as possibilidades abertas pela chamada crise da razão como
resultante da radicalização daquilo que se convencionou chamar “filosofia do martelo”,
ainda no último quartel do século XIX, contra o peso da racionalidade ocidental,
radicalização centrada tanto na ideia de que se trata de um padrão cultural marcado pelo
“bem e mal” - negadora, por assim dizer, da “vontade de potência”, conceito basilar de
Nietzsche para explicar a anulação humana ante normas de valor instituídas pela moral
socrática e/ou cristã - quanto de um padrão de objetividade castrador daquela que é a
dimensão humana mais que humana, sua capacidade imaginativa/criativa na produção de
sentidos para a vida, isto com base no postulado de que linguagem é arte, inventora por
excelência do mundo da vida.

É importante lembrar ainda que o “filósofo do martelo” avança em outro ponto


crucial para fins de invalidação da idéia de objetividade, a saber, o relativismo, o qual se
oferece como uma espécie de antípoda absoluto da dialética ou de qualquer uso que se
pretenda fazer da empiria, tanto em âmbito historiográfico quanto ou em quaisquer outros
âmbitos do viver humano. .Ora, defender posturas relativistas é acentuar de modo extremo
a subjetividade e suprimir pura e simplesmente qualquer possibilidade de objetividade,
desconsiderando o fato, tal como se depreende de certa lição do filósofo Paul Ricoeur, de
que objetividade e subjetividade se completam enquanto faces de uma mesma moeda, a
própria atividade humana. Para usar de maior precisão, diria que o relativismo nada mais
é que um poderoso instrumento de esvaziamento de toda referencialidade, isto é, o mundo
da vida ou aquilo que durante muitos anos, inspirados pelo marxismo, chamávamos de
“realidade objetiva” ou mesmo de “real concreto”, esta última expressão extraída do já
clássico livro Dialética do concreto, do escritor tcheko Karel Kosik. Acontece que
relativismo que é relativismo é tão só uma “retórica de tropos”, ou seja, uma retórica
centrada no “reino da doxa” (doxa ou opinião em grego). Para o relativista a coisa
funciona mais ou menos assim: a referencialidade simplesmente deixa de existir, cedendo
lugar a opiniões tão somente. Destarte, na perspectiva relativista todas as opiniões são
válidas, e são válidas a tal ponto que seguem à risca o postulado de Protágoras de Abdera
- o pai do relativo moderno -, para quem “o homem é a medida de todas as coisas”.

Ora, o esvaziamento de toda referencialidade não significa outra coisa senão a


rejeição da ideia de existência de verdades sobre o ser. Como deixa de existir o ser da
coisa - claro, só na cabeça estreita dos aficionados do relativismo -, o relativista proclama
em alto e bom som: a verdade é uma quimera, embora sem a consciência de que toda
forma de pensamento relativista esbarra em sua auto-refutação. É simples de entender: ao
afirmar que a verdade não existe, ele fica sem poder se defender da acusação de
mentiroso, pois a simples tentativa de refutação a essa adjetivação já soaria como
afirmação verdadeira. Quer dizer, uma contradição em seus próprios termos. Se
Nietzsche, que bebeu profundamente nessa fonte, é uma das referências modernas em
termos de apreensão relativista, a ponto inclusive de defender que na história não há fatos,
só interpretações, numa violenta rejeição à historicidade do mundo em termos
representacionais, outras correntes modernas foram receptivas a tais postulações de
rejeição ao ser e das verdades capazes de representá-lo, a exemplo do estruturalismo e do
pós-estruturalismo, correntes que serão objeto de reflexão abaixo.

Não bastasse o apaixonante “canto do cisne” das postulações irracionais do


“filósofo do martelo”, o mundo chega ao século XX, algumas décadas após Nietzsche,
tendo que amargar a experiência trágica de duas guerras mundiais, cujos efeitos
traumáticos deitaram por terra todas as esperanças utópicas de futuros promissores,
conforme amplamente propalados por grandes teorias de explicação do social, a exemplo
da filosofia da história hegeliana e da concepção marxista da história, esperanças utópicas
que haviam penetrado fundo no inconsciente coletivo por gerações e gerações.

Na filosofia da história de escopo hegeliano, por exemplo, o que se vê é a bela


utopia de que o mundo, marcado por dinâmico movimento de forças dialéticas em
permanente luta e contradição, conduzia uma razão poderosa e astuta no cumprimento de
seu desígnio maior, levar a humanidade à célere caminhada rumo a um grand finale,
momento em que a razão, atingindo toda sua plenitude, instituiria uma comunidade
universal de direitos. Quanto à concepção marxista da história, por exemplo, o que se
sobressai é sua defesa da história como história dos modos de produção, movidos por
contradições internas ou pela luta de classes entre os que possuem a propriedade privada
dos meios de produção e os que estão dela desprovidos, luta que, na esteira do movimento
dialético que toma a noção de mudança como superação qualitativa, aposta alto na bela
utopia de uma sociedade futura capaz de produzir um novo homem, lugar sem a
propriedade privada, sem divisão do trabalho manual e intelectual, e cuja riqueza
produzida pertenceria a todos, ainda que respeitando-se as diferenças quanto a
capacidades e necessidades.

Mas se a história moderna, à época de Nietzsche, é vista por este último, pelo
menos no plano teórico, como uma experiência que nada tem a oferecer ao homem, nem
no tempo presente nem no futuro passado - lembrando que, neste último caso, quaisquer
promessas em nível transcendental rumos a futuros mundos paradisíacos, seja em relação
ao além-túmulo ou em relação à ordem terrena, são vistas pelo filósofo como uma
quimera, um “profetismo” desprovido de sentido -, a história real, poucos anos depois da
passagem do homem do “martelo” por esse mundo, parece ter dado uma mãozinha ao
ceticismo do bigodudo alemão. Refiro-me às duas guerras mundiais, praticamente unas,
em especial naquilo que elas representaram em termos de aspectos sombrios, que são
aqueles relacionados à destruição e à ruína. Ocorre que as duas guerras mundiais, naquilo
que representaram em termos de negação absoluta da condição humana, deitaram por
terra muitas das esperanças destiladas no inconsciente coletivo ao longo de décadas, isto
para não falar da permanente ameaça atômica logo após o armistício, com a emergência
da famigerada “Guerra Fria”, a qual, uma vez deflagrada, jamais poderia ser uma guerra
localizada e sim uma guerra planetária que simplesmente destruiria a humanidade, tal
como ironicamente refletida pelo olhar do grande físico alemão Albert Einstein, presente
em certa assertiva de domínio público. Interrogado como seria a Terceira Guerra Mundial,
o físico saiu-se com essa: “não sei com que armas a III Guerra Mundial será lutada. Mas
a IV Guerra será lutada com paus e pedras”.

De modo que o contexto entre que vai do fin-de-siècle, época de Nietzsche, até o
segundo pós-guerra é marcado por profundas incertezas, cujo corolário é o desencanto
para com o moderno, e desencantar-se com o moderno significa ter que conviver com um
mundo que parecia em ruínas, e isto já a partir da Primeira Guerra Mundial com a
chamada “geração perdida”, constituída por sujeitos desencontrados, fragmentados,
completamente à deriva. Aliás, situação que tendeu a se acentuar nos anos subsequentes
até a eclosão da Segunda Guerra Mundial e suas consequências desastrosas. Pois foi
exatamente em meio a toda essa turbulência que veio à tona o estruturalismo, inicialmente
em âmbito linguístico, com Ferdinand de Saussure e as escolas linguísticas de Moscou e
Praga; na sequência em âmbito literário com a escola formalista russa; por último, no
ambiente das ciências humanas, inicialmente em âmbito antropológico, espraiando-se
depois pelos outros campos das humanidades. Ora, estruturalismo que é estruturalismo se
oferece, em qualquer de suas modalidades, como um anti-humanismo, vale dizer, como
um campo do pensamento constituído por estruturas que subsumem os sujeitos. Acontece
que tais estruturas pensantes são tomadas como auto-referentes, sem quaisquer remissões
para mundos referenciados, isto é, aqueles que formam o mundo social e histórico em que
vivemos.

Temos, no primeiro caso, uma corrente de pensamento que aposta alto numa
autonomia da linguagem em relação ao mundo social e histórico, linguagem tomada sob
a forma de um sistema com base na articulação interna entre todos os signos linguísticos,
cuja auto-referencialidade pretende um corte profundo entre palavras e coisas. A mesma
ideia é aplicada nos casos em que o objeto é o texto literário, entendido como sistema de
signos auto-referenializados, em que cada produto literário formaria um produto
autônomo, pois se literatura remete a alguma coisa remete a literatura e não a um extra-
literário ou a aspectos da vida efetiva. E a mesma ideia é válida ainda para os modelos
em Antropologia, a primeira ciência social a se render aos encantos estruturalistas.

De modo que o estruturalismo, ainda que tenha predominado para valer apenas
nos anos 1960 - espécie de década estrutural por excelência -, sua compreensão exige que
se dialogue inicialmente com suas matrizes linguístico-literárias, haja vista que foi com
esse vínculo matricial que tudo começou: de um lado, com Saussurre, para quem sistema
de linguagem basta-se a si mesmo, sem remissões ao extralinguístico, e, de outro lado,
com o Círculo Linguística de Praga, corrente que desenvolveu, por intermédio do russo
Roman Jacobson, noção de estrutura aplicada ao campo da fonética. Isto para não falar
no formalismo literário russo, uma espécie de desdobramento do corte saussurreano entre
palavras e coisas aplicado em âmbito literário, para o qual a obra literária forma um texto
autônomo, sem compromissos cognitivos de qualquer natureza para com o mundo da
vida. Só depois de um mergulho nessas novas formulações radicais em âmbito
linguístico-literário é que o caminho é aplainado para a emergência do estruturalismo no
âmbito das ciências humanas, a começar pela antropologia. No primeiro caso, temos o
estruturalismo linguístico professado por Ferdinand de Saussure e seus desdobramentos
nas escolas linguísticas de Moscou e Praga, na esteira dos quais surgiram escolas
formalistas em literatura, com destaque para os formalistas russos a partir dos anos 1920.
E, no segundo caso, temos a emergência do estruturalismo nas ciências humanas, com
destaque para a antropologia estrutural nos termos de Claude Levi-Strauss, já mencionada
acima, e do marxismo estruturalista nos termos de Louis Althusser. Trata-se, no caso de
Claude Levi-Strauss, da elaboração de certo modelo de parentesco, em que o parentesco
real praticamente desaparece, cedendo lugar a conjunto de estruturas mentais invariantes
sob a designação de estruturas elementares do parentesco. E, no caso de Louis Althusser,
da proposição de um marxismo esvaziado de toda e qualquer dimensão humana, cujo
corolário é a exigência de um marxismo liberto do chamado “Jovem Marx”, parte
perfeitamente descartável, tendo validade apenas o Marx da economia política e, por
conseguinte, do modo de produção enquanto uma totalidade sincronicamente articulada.
E, como decorrência do predomínio dos estruturalismos, eis o que temos: a) uma visível
perda do referente da linguagem e, consequentemente, um escancarado medo da história;
e b) um apagamento do sujeito, significando, com isto, não sua morte física, mas sua
desaparição enquanto sujeito de querer ou sujeito da ação, haja vista tornar-se uma
espécie de marionete em meio ao jogo das determinações estruturais.

Mas o predomínio do estruturalismo não se estendeu por toda a década de 1960.


Na verdade, o que parecia sólido começou a se desmanchar feito um castelo de areia com
a eclosão de maio de 68. Ocorre o seguinte: se a rebeldia do movimento de 68 foi ampla
o suficiente para colocar em xeque a própria razão ocidental e, por tabela, colocar na
ordem do dia a exigência de novos paradigmas de explicação do social, conforme acima
já se discorreu a respeito, também foi forte o suficiente para atacar violentamente o
estruturalismo enquanto uma concepção que promovia o apagamento do sujeito. Não à
toa ocorre um gradativo retorno do sujeito nas pegadas de 68, advindo daí uma espécie
de desforra por parte de intelectuais que haviam sido sufocados e/ou atropelados pela
onda estruturalista nos anos 1960, a exemplo de Paul Ricoeur e Jean-Paul Sartre, os quais,
cada um ao seu modo nos anos subsequentes a maio de 68, apostaram alto num lugar
muito bem definido para o sujeito.

Até mesmo os pensadores pós-estruturalistas, em que pesem palavras de ordem


em torno da idéia de desconstrução - esta última como o grande elemento de ruptura, em
que a tese da “morte do autor”, por exemplo, costuma ser tomada como uma das chaves
de explicação da problemática? – e um proclamado alinhamento com a chamada
diferença, às quais vem se somar sua pretensão de acertar contas com a metafísica
ocidental e sua representação assentada em certos regimes de verdade, reagem
positivamente à ideia de retomada de um lugar para o sujeito. Muito embora o pós-
estruturalismo carregue muitas heranças do estruturalismo, seus seguidores já não
defendem a estrutura e sua absoluta determinação sobre o sujeito. Neste sentido,
poderíamos dizer que o sujeito reaparece no pós-estruturalismo, libertando-se, por assim
dizer, da clausura estruturalista. Entretanto, como toda noção de essência ou de
objetivação se desfaz no pós-estruturalismo, haja vista seu destaque para a subjetivação
em níveis bastante elevados e adoção de uma perspectiva eminentemente linguageira, o
reaparecimento do sujeito ocorre, entre os aficionados desta última corrente, como um
sujeito fragmentado, individualizado, sem maiores relações com totalidades históricas
e/ou com dimensões estruturantes do mundo social e histórico.

Acontece que para o pós-estruturalismo a realidade, conquanto construída


linguisticamente, não existe enquanto coisa em si. Logo, não existe enquanto o objeto
externo refletido/representado na/pela linguagem, razão pela qual a noção de
representação perde força na ótica pós-estruturalista. Sendo assim, não poderia ser objeto
de conhecimento objetivo, haja vista tratar-se tão só de conversas acerca de conversas.
Em síntese, se o estruturalismo implicou na separação do signo para com o referente, e
isto desde Saussure com sua ideia de sistema de linguagem, constituído por signos em
oposição (ex.: porta é porta porque não é janela...) e não pela relação entre palavra e coisa,
o pós-estruturalismo implicou na separação entre significante e significado, cujo corolário
é o esvaziamento do significado em prol do mero jogo de significantes. A coisa se explica
nos seguintes termos: se para os estruturalistas o significado de um signo é algo estável
(ex.: o conceito de gato e sua relação com sua forma gráfica e/ou imagem acústica), para
os pós-estruturalistas tal significado muda de contexto para contexto, indicando, por
assim dizer, seu caráter fluido. Por exemplo, o significado do significante “leão”. Ora,
para o estruturalista importa que o significante “leão” é o que é por não ser “cobra”, que
esta última é “cobra” por não ser “águia” e assim sucessivamente, e não em razão de uma
possível relação desses três significantes tomados enquanto representação dos três
animais: o felino, o réptil, a ave de rapina. Com isto, se o estruturalismo separa o signo
do referente, o pós-estruturalismo, ao contrário, separa o significante do significado, uma
vez que “leão”, “cobra” ou “águia” se oferecem apenas como signos e não como
portadores de significações fixas. Para o pós-estruturalista, há que esvaziar tanto o signo
do referente quanto do significado. No exemplo citado, os três signos só existem enquanto
tais porque seus significados são múltiplos em diferentes sociedades no tempo e espaço
mundo afora, não redutíveis a felinos, répteis ou aves gigantes.

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