Você está na página 1de 4

Filosofias substantivas da história: motivos e

implicações teológicas
Prof. Walderez Ramalho (DH/FAED/UDESC)

Entende-se por filosofias substantivas da história as investigações e especulações sobre a história como um
todo (isto é, a realidade temporal da vida humana compreendendo passado, presente e futuro) e que
buscavam descobrir o sentido da totalidade da história. O primeiro a empregar o termo foi Voltaire, em
1765, em seu Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações. Quanto à expressão: “filosofias
substantivas da história”, esta surgiu na segunda metade do século XX, no contexto da filosofia analítica
anglo-saxã. Esse qualitativo nasceu como uma tentativa de resposta à crise de legitimidade da filosofia da
história como campo de saber, no intuito de delimitar de forma mais precisa os seus limites e o campo de
objetos que lhe fosse mais próprio. Nesse sentido, William Walsh propôs inicialmente, durante a década de
1950, diferenciar as “filosofias especulativas da história”, que tentaram descobrir o sentido da história
como um todo, e as “filosofias críticas da história”, que se ocuparia em identificar os princípios e regras
epistemológicas básicas que pudessem garantir a obtenção de um conhecimento seguro sobre o passado.
Em 1962, Arthur Danto atualiza essa divisão proposta por Walsh, porém, adotando dois qualitativos
diferentes: as filosofias substantivas da história (correspondentes, grosso modo, ao tipo especulativo do
modelo de Walsh) e as filosofias analíticas da história (correspondentes, grosso modo, ao tipo crítico).

Seria enganoso concluir a partir dessa breve recapitulação inicial que a consciência dos limites e problemas
das filosofias substantivas da história (como empreendimento intelectual) teria surgido apenas no pós-
guerra. Bastaria lembrar aqui a tensão que Leopold von Ranke colocava contra a pretensão de se descobrir
a priori o sentido do todo da história universal, e sua defesa das singularidades históricas e da “igualdade
de todas as épocas perante Deus”. De forma mais eloquente, Fustel de Coulanges afirmou que “há filosofia
e há história, mas não há uma filosofia da história” – uma frase repetida por Lucien Febvre e, mais tarde,
também por Jacques Le Goff.

Não resta dúvida, no entanto, que o impacto das guerras mundiais foi um fator decisivo para que o
empreendimento intelectual da filosofia da história fosse colocado em questão. A tragédia da guerra
estimulou uma nova reflexão crítica sobre os fundamentos que sustentavam o projeto de mundo e de
humanidade encampados pela era moderna. A filosofia da história foi colocada no centro desse debate
justamente porque ela foi um dos principais discursos de legitimação que a era moderna articulou para si.
Nesse sentido, a crítica da filosofia da história se desenvolveu ao mesmo tempo como uma crítica do
projeto moderno. Nesse debate, foi decisiva a questão sobre as origens e implicações teológicas presentes
nas modernas filosofias da história. Para tecer um panorama sobre como essa discussão se desenvolveu no
contexto do pós-guerra, o texto apresenta de forma sintética a posição de três eminentes intelectuais: Karl
Löwith e a sua tese da secularização exposta em O sentido da história (1949); a resposta de Hans
Blumenberg elaborada em A legitimação da era moderna (1966); e a contribuição original de Odo
Marquard apresentada em Dificuldades com a filosofia da história (1973).

***

Iniciemos com o argumento de Karl Löwith. A tese da secularização, defendida pelo autor, postula que as
filosofias da história são a forma secularizada da escatologia judaico-cristã. Esta última permaneceu como
esquema explicativo do mundo dominante mesmo em uma era que se pretendia ter se livrado da influência
da religião. Para Löwith, a busca pelo sentido da história universal somente é pensável em uma perspectiva
teleológica. Afirmar que a história tem um sentido fundamental implica um objetivo ou meta finais que
deve transcender os eventos concretos. O horizonte temporal básico que possibilita essa noção teleológica
do sentido histórico tem origem, de acordo com Löwith, do esquema escatológico herdado pela
modernidade ocidental das tradições hebraica e cristã. A tese da secularização de Löwith afirma que a
motivação escatológica da teologia judaica-cristã foi mantida pelas filosofias substantivas da história a
despeito da sua linguagem laica. Para o autor de O sentido da história, o conceito histórico-filosófico de
progresso é a versão secularizada do eschatos (o tempo do fim do mundo).

Ao destacar as origens e implicações teológicas das filosofias substantivas da história, Löwith pretende
apontar para a dependência que a modernidade mantém com relação a modelos e esquemas de explicação
do mundo que ela mesma não teria formulado. Na conclusão do seu influente livro, Löwith caracteriza a
modernidade é meio grega (pela ênfase na razão) e meio judeu-cristã (por manter o padrão escatologia na
compreensão de mundo), e a existência de tal ambiguidade ou indecisão seria a raiz filosófica (de fundo
teológico) da crise que culminara com a experiência das guerras mundiais.

A consequência fundamental da tese da secularização de Karl Löwith é a negação da legitimidade do


projeto moderno, pois o discurso que a consciência moderna elaborou para sustentar a sua legitimação –
as filosofias substantivas da história – não são mais do que apropriações de esquemas explicativos
herdados da tradição cristã que a era moderna alegadamente havia rompido. A consciência moderna,
formulada pelos filósofos da história, se revela assim como uma falsa consciência. As filosofias substantivas
da história procuraram estabelecer o sentido da história universal no plano imanente, afastando as
intervenções da divina Providência; contudo, segundo Löwith, ela mantém o mesmo padrão escatológico
de concepção de homem e de mundo. A secularização da escatologia cristã apenas mascara, mas não
rompe com a concepção de mundo importada da concepção teológica. A função da filosofia da história é
mascarar essas origens teológicas da consciência moderna, sendo também o seu revelador.

***

Um importante contra-argumento à tese da secularização de Löwtih foi formulado por Hans Blumenberg,
mais notavelmente em seu livro de 1966 A legitimação da era moderna. Blumenberg lembra as raízes
etimológicas do conceito de secularização: o termo surgiu no âmbito jurídico para designar a expropriação
indevida e ilegítima das terras da Igreja. Ao lembrar dessas origens semânticas do conceito, Blumenberg
quer apontar que a noção de secularização implica afirmar que o projeto moderno é ilegítimo. Porém, uma
tal posição somente se sustentaria caso se acredite que um mesmo esquema de ideias permanece
substancialmente o mesmo a despeito das mudanças históricas.

Blumenberg se opõe a essa perspectiva, propondo em seu lugar o modelo funcional da história. Através
dessa noção, Blumenberg procura matizar a ideia de continuidade entre a era moderna e o cristianismo
medieval, argumentando que tal continuidade seria de funções, mas não de substância. Isso significa que
certos conceitos próprios da modernidade, em si mesmo dotados de legitimidade, acabaram ocupando
determinadas posições ou funções que foram deixadas em aberto após a derrocada da concepção de
mundo anterior (especialmente o cristianismo medieval). Assim, conceitos novos foram usados para
responder a questões antigas, as quais a idade moderna ainda se viu na necessidade de responder. Esse
processo não implica, porém, que os conceitos legítimos da modernidade – a exemplo de “progresso” –
sejam substancialmente os mesmos que nas concepções de mundo precedentes – no caso, a escatologia
religiosa. Que a ideia moderna de um progresso possível tenha ocupado certas posições herdadas do
quadro de questões religiosas não invalida a sua legitimidade. É em função dessa necessidade de responder
às questões legadas pela concepção escatológica que a noção de um progresso possível, finito, que
Blumenberg defende ser legítimo, se transmuta em um progresso inevitável, universal e direcionado a um
télos único, o qual efetivamente extrapola os seus legítimos limites. A aparência de ilegitidade da era
moderna se deve à permanência dessas velhas questões; mas trata-se justamente disso: uma aparência.

Assim, a posição de Blumenberg refuta a tese da secularização e, pari passu, se assenta numa resoluta
defesa da legitimidade do projeto moderno. Central para o seu argumento é a noção de “afirmação do eu”,
que demarca a novidade e originalidade da era moderna com relação às épocas anteriores. A afirmação do
eu significa um programa existencial (o autor remonta a sua origem em Descartes) no qual o homem coloca
a sua existência em uma situação histórica e colocando sobre os seus ombros a responsabilidade de decidir
como agir e pensar. Esse programa existencial expressa, em última instância, o desejo de centrar as
esperanças de futuro nas próprias mãos do homem. No entender de Blumenberg, esse projeto é legítimo e
original, e está articulado à concepção de um progresso possível – finito e não absoluto. É significativo o
fato de Blumenberg realçar a diferença entre progresso e escatologia, ao contrário de Löwith que tende a
vê-los como possuindo a mesma raiz ou substância. Como lembra Blumenberg, enquanto a escatologia
pressupõe Deus como o agente do fim do mundo, o progresso pressupõe como agente o próprio homem. A
diferença incide justamente na noção de afirmação do eu, que singulariza a época moderna e justifica o seu
projeto existencial.

***

O tema das origens religiosas da filosofia da história foi retomado de forma original por Odo Marquard,
especialmente em seu livro Dificuldades com a filosofia da história, publicado em 1973. Para Marquard,
não foi por acaso que as filosofias substantivas da história surgiram em meados do século XVIII, um período
caracterizado, segundo o autor, pela percepção crescente da presença do mal no mundo, bem como o
crescente fracasso das explicações teológicas para esse mal. Foi justamente essa combinação que deu luz à
filosofia substantiva da história.

Segundo Marquard, a emergência da filosofia da história está intimamente conectada com a tese idealista
da autonomia humana. Esse tema está no cerne do problema da teodiceia, cujo grande formulador na
modernidade foi Leibiniz, e que consistia em compatibilizar a existência de um Deus essencialmente bom
com a existência do mal no mundo. Do ponto de vista da teodiceia de Leibiniz, somente a autonomia do
homem torna plausível a existência do mal, pois do contrário teríamos de atribuí-lo a Deus. Assim,
Marquard afirma que a teodiceia somente se afirma integralmente no idealismo alemão, com sua tese da
liberdade radical do homem. Em outras palavras, o idealismo “salva” Deus da responsabilidade do mal no
mundo, colocando esse fardo sob os ombros do homem que, no processo, se torna sujeito e ator da
história – assumindo prerrogativas e direitos que, de Agostinho a Bossuet, eram ocupados por Deus.

A resposta otimista de Leibniz (Deus criou o melhor dos mundos possíveis) foi posto em questão ao longo
da segunda metade do século XVIII. Marquard menciona o impacto de certos acontecimentos que
contribuíram para a crise desse otimismo, incluindo o grande terremoto de Lisboa da década de 1750. O
sistema da teodiceia foi posto em questão: dado a existência inequívoca do mal no mundo, então ou Deus
é mal, ou ele não existe. A única forma de “salvar” Deus da responsabilidade pelo mal, e de manter a
crença em sua existência, consistia em “expulsar” Deus dos assuntos humanos. É nesse sentido que
Marquard caracterizou a resposta idealista ao problema da teodiceia como implicando um “ateísmo para a
maior glória de Deus”.

Se não é Deus o responsável pelo mal no mundo, então essa responsabilidade cabe ao homem. Contudo,
faz-se necessário demonstrar essa autonomia radical do homem, e a forma concreta de elaborar essa
demonstração foi o surgimento da filosofia da história, já que, como Vico já havia afirmado na Ciência
Nova, não cabe dúvidas de que a história é a parte da realidade feita pelos homens. Assim, a filosofia da
história foi erigida um discurso central da modernidade quando, sob a pressão da experiência radicalizada
do mal no mundo, a teodiceia somente é possível por meio de um ateísmo ad maiorem Dei gloriam e, por
extensão, a posição da autonomia radical do homem (a tese central do idealismo alemão) se torna
inevitável.

Assim, Marquard compreende a filosofia da história como uma consequência das falhas internas da
teologia cristã para responder ao problema da existência do mal no mundo. Porém, ao afirmar que os
humanos (e não Deus) fazem a sua própria história, a filosofia da história idealista também torna o humano
o perpetrador da história, isto é, responsável pelo mal e pela injustiça. A humanidade herda a posição do
acusado no tribunal filosófico sobre a existência do mal no mundo – precisamente a posição da qual Deus
teve de ser resgatado. Para Marquard, isso explica porque, desde suas origens, as filosofias da história
seculares desenvolveram “motivos teodiceicos” que funcionam como mecanismos exculpatórios para
ajudar a humanidade a se libertar do fardo de suas responsabilidades históricas recém herdadas. Marquard
se refere a esses motivos como “a arte de não ter sido”.

Os mais importantes desses motivos teodiceicos são, para Marquard, a noção de um antagonismo de
princípio, de um lado, e de uma lógica temporal específica, de outro. Por meio do primeiro mecanismo,
trata-se de encontrar no mundo imanente um conjunto de sujeitos sobre os quais dever-se-ia recair a
responsabilidade pelo mal, como forma de redimir outra parte da humanidade de tal fardo. A figura do
adversário histórico pode assumir diversas formas, como a aristocracia ou a burguesia, ou seja, posições de
sujeito que ocupam na história funções de dominadores. Isso explica a presença recorrente de divisões
maniqueístas de tipo vítimas/oprimidos absolutos e perpetradores/opressores absolutos, presentes em
diversas filosofias da história. Já o segundo mecanismo se materializa na noção-chave de progresso, por
meio do qual se tornou possível resguardar um raio de esperança em uma história na qual o passado e o
presente são dominados pelo mal, em contraste com o futuro essencialmente bom. Ambos os mecanismos
são vistos por Marquard como duvidosos e insustentáveis.

Aqui reside o elemento irracional das filosofias da história segundo Marquard: elas surgiram para reafirmar
a tese da autonomia humana; mas ao fazê-lo, e diante do enorme fardo implicado por essa tese, a filosofia
da história desenvolveu mecanismos exculpatórios (motivos teodiceicos) para encontrar um “outro ator”
da história: não a humanidade como um todo, mas apenas uma parte dela (os dominadores de ontem e de
hoje). Na filosofia da história, a tese da autonomia se converte em seu contrário, isto é, na tese da
heteronomia – donde a irracionalidade intrínseca à filosofia da história.

***

A crise da filosofia da história como empreendimento intelectual se radicalizou com o impacto das guerras
mundiais. A tese da secularização, aqui representada por Karl Löwith, profere um ataque decisivo contra a
viabilidade de uma filosofia da história, ao apontar para as suas raízes e implicações eminentemente
teológicas. A resposta de Blumenberg à tese da secularização, resumida na tese do modelo funcional da
história, visa defender a legitimidade do projeto moderno, mas sim que isso implique uma defesa direta da
filosofia da história enquanto tal. Assim, Blumenberg reconhece as extrapolações indevidas das filosofias da
história que propõem uma noção de progresso infinito e absoluto, em vez de finito e setorial. A intervenção
de Marquard nesse debate se aproxima em muitos aspectos da posição de Blumenberg. Para Marquard,
haveria uma relação direta entre teodiceia e filosofia da história, o que não implica que exista uma
identidade de substância entre elas. A originalidade da era moderna não se desfaz com a demonstração das
contradições inerentes à filosofia da história, tendo em vista que, para Marquard a filosofia da história não
se define por sua modernidade; ao contrário, ela é a antimodernidade.

Você também pode gostar