Você está na página 1de 5

Sobre os motivos teológicos no materialismo histórico benjaminiano

Cicero Lourenço da Silva

No intrigante livro de ensaios E se Obama fosse africano, o escritor angolano Mia Couto,
falando sobre as tentativas de inserção tecnológica com propósito de educação ambiental em
países africanos, relata:

“Em 1989, fazia pesquisa na Ilha da Inhaca quando desembarcou nessa ilha uma equipa de técnicos das Nações
Unidas. Vinham fazer aquilo que se costuma chamar de “educação ambiental”. Não quero comentar aqui como esse
conceito de educação ambiental esconde muitas vezes uma arrogância messiânica. 1”

Entendamos bem: acreditar-se portador de um bem universal, e leva-lo a outras paragens com o
intuito de ali também estender conhecidos benefícios, é uma forma de messianismo. Poderíamos
dizer ainda salvacionismo. Mas essa é uma leitura contemporânea, diríamos até, que está na
moda. É, porém, precisamente esse conceito de messianismo que vem se consolidando,
sobretudo nas críticas de direita, que enxergam o avanço de valores progressistas como
supressores da liberdade. Não obstante, a operação semântica empreendida no conceito
distancia-o expressivamente do circulo hermenêutico que o viu nascer. No Judaísmo antigo,
como nos informa Mowinckel, antes que o Cristianismo primitivo personificasse o Messias em
Jesus, o conceito referia-se originariamente “a uma figura política”, um “ungido de Yaweh”, que
“reinaria sobre Seu povo”2. Tentaremos no breve espaço destas linhas resgatar o significado do
messianismo judaico, mas a partir do pensamento de Walter Benjamin.

O primeiro problema a desafiar o intérprete é a inserção do conceito de messianismo,


precipuamente uma noção teológica, num referencial benjaminiano, cuja tônica é o materialismo
e a política, ainda que, como sublinha Jeanne-Marie Gagnebin, “antideterminista e
antitotalitarista”3. Uma abordagem que utilizasse de categorias reconhecidamente teológicas para
uma compreensão do mundo contemporâneo, sobretudo se colocasse seus valores em dúvida,
decerto esbarraria nos muitos empecilhos a assombrar o mundo cada vez mais secularizado. O
século vinte é herdeiro das mais agressivas investidas contra a esfera teológica. Os ecos de
Darwin, Nietzsche, Freud e Marx nunca mais abandonaram o Ocidente. Num âmbito
sociologico, é conhecida a formulação weberiana que diagnostica no mundo um processo de
“desencantamento”. O teólogo Harvey Cox, cuja obra é importante na dialetização desses ecos,
1
COUTO, Mia, Se Obama fosse africano, p.
2
MOWINKEL, Sigmund, He that cometh, p. 4
3
GAGNEBIN, Jeanne-Marie, “Teologia e messianismo em Benjamin”.

1
prefere falar em “secularismo”, que entende como uma posição hostil ante quaisquer alusões a
uma realidade transcendente. Já a inserção do homem urbano na modernidade industrial e a
subsequente mobilidade com reflexos psicossociais, Cox prefere chamar de “secularização”,
termo para ele esvaziado de virulência contra a teologia. Em sua A cidade secular, Cox
pioneiramente sublinha os aspectos progressistas dessa secularização. O quadro, ainda assim, é
bastante perigoso para os pensadores que tentem salvaguardar os valores teológicos. Foge ao
nosso trabalho uma análise exaustiva dos filósofos e teólogos que abordaram a questão no século
vinte. Mas à guisa de ilustração, vejamos uma pequena demonstração do mal-estar.

O pensamento “Se Deus não existe, tudo é permitido”, tomado de Os Irmãos Karamazov de
Dostoievski (a ideia como consta no romance é essa mesma, mas formulada de forma um pouco
diferente). Dele se infere que uma moral sem ancoragem num Ente Supremo e doador de
sentido, não teria força para moldar um caráter comprometido com o “bem”. Jacques Lacan
inverte o axioma: “Se Deus existe, tudo é permitido”. Comentando a inversão, Slavoj Zizek
acrescenta:

“(…) atualmente, é àqueles que se referem à Deus de maneira mais brutalmente direta, percebendo-se como
instrumentos da vontade de Deus, a quem tudo é permitido. Os chamados fundamentalistas que praticam uma versão
perversa do que Kierkegaard chamou de suspensão religiosa da ética: numa missão divina, o indivíduo tem
permissão de matar milhares de inocentes...” 4.

É esse tipo inserção teológica no campo do profano que nos dá calafrios e, convenhamos,
divorciada de um pensamento dialético, o risco de sua emergência é bastante real.

Neste sentido, a obra de Walter Benjamin é particularmente fulgurante. Munido de categorias


teológicas, ele se aproxima do universo profano sem cair no irracionalismo. Suas referências ao
universo teológico não implicam adesismos inegociáveis, mas ostentam um pensamento dialético
bastante capaz de restaurar o lugar do messianismo no pensamento contemporâneo. Em 1937,
em carta enviada a Max Horkheimer, Benjamin sublinha o sentido solidário da história. “Em
última instância, sua afirmação é teológica”, é o que lhe replica Horkheimer. 5 Esse aspecto
teológico na obra de Benjamin é persistente, e já dividiu muito os comentadores. Segundo
Michel Löwy, o leitor de Walter Benjamin precisa saber que três linhas principais de
interpretação surgem na fortuna crítica benjaminiana. Uma delas enfatiza o papel da teologia
judaica em Benjamin, dando à suas análises materialistas um caráter quase coadjuvante. Essa
leitura é de Gershom Scholem. Uma segunda corrente, veiculada por Brecht, vê em Benjamin o
4
ZIZEK, Slavoj, God in Pain, p. 45
5
Cf. QUEIRUGA, Andrés Torres, Um Deus para hoje, p. 24

2
grande materialista histórico, reduzindo as categorias judaico-teológicas a recursos metafóricos.
Uma terceira corrente, encabeçada por Habermas e Tieldeman, salienta a tensão dialética entre as
duas correntes, que para eles Benjamin não lograra unificar.6 Diante dessas possibilidades, como
entender o papel que Benjamin assinala à teologia? Analisemos uma passagem do seu último
texto redigido, as Teses sobre o conceito de história. Na tese 1, Benjamin evoca a história do
célebre enxadrista de Maelzel. Tratava-se na verdade de um boneco controlado por um anão
exímio no jogo de xadrez, escondido dentro da caixa da qual saía o parte de cima do boneco, que
“ganhava sempre”. A este anão invencível Benjamin comparará a teologia, “pequena e feia”,
oculta, e não obstante, a responsável pelos passos que conduzirão à vitória.7 Para Löwy,
Benjamin atribui aqui a capacidade de transcender-se o mundo burguês ao papel da teologia, sem
cuja influência o materialismo histórico não teria como triunfar. O materialismo histórico
reveste-se de elementos messiânicos.8 É importante destacar, porém, a necessidade de manter
aberto o jogo dialético entre os dois domínios presentes em Benjamin. A leitura puramente
teológica obscurece a contribuição do filósofo ao estudo do materialismo histórico. Da mesma
forma, o reducionismo que baseia a obra benjaminiana exclusivamente no materialismo
histórico, mutila os motivos teológicos essenciais na constelação conceitual do filósofo. (Franz
Rosenzweig, um dos filósofos importantes a influenciar o pensamento benjaminiano, é menos
ambíguo neste aspecto. Embora conceba o seu messianismo num “judaísmo metahistórico” 9,
tecido com o tempo simbólico, em contraste com o tempo histórico, reconhecera que “o
socialismo ocidental, mesmo na sua forma ateística, contribui mais para o estabelecimento do
Reino de Deus do que as instituições religiosas e seus adeptos”. 10) De fato, uma síntese entre
marxismo e teologia era desafiadora, contudo, começaria a concretizar-se com mais precisão no
seio do Cristianismo liberal que ganha força na segunda metade do século vinte. Ressaltemos
que o adjetivo “liberal”, quando aplicado à economia ou a um dado projeto político, tem acepção
bem diversa daquela assumida na esfera teológica. A teologia liberal é uma teologia que destaca
a liberdade de análise e crítica de dogmas e sectarismos que a modernidade faz ruir, criando a
necessidade de uma revisão dos parâmetros e fundamentos teológicos. Iniciada por
Schleirmacher (1768- 1834), essa corrente impediu o total eclipse da teologia no mundo que
começava a se secularizar. Esse exame livre das escrituras foi essencial na apropriação de

6
LÖWY, Michael, Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 36
7
Cf. BENJAMIN, Walter, Sobre o conceito de história, in Obras Escolhidas, p. 222
8
Cf. LÖWY, opus cit. p. 54
9
ROSENZWEIG, Franz, GLATZER N. Nahum, Franz Rosenzweig; His life and thought, Schocken
Books, Inc, New York, 1961, 2nd Revised Edition, p. xxii, introduction.
10
Idem, p. XXXII

3
categorias marxistas para a teologia. A síntese, ou pelo menos um diálogo bastante frutífero,
começou a vislumbrar a sua aurora.11

A despeito da fascinante riqueza filosófica dessas elaborações, é importante não perdermos de


vista as ocasiões que as ensejaram. São diagnósticos de uma barbárie crescente e tenaz, cujo
saldo macabro não parou ainda de crescer. Grande parte da barbárie que Benjamin denuncia em
sua obra ainda se encontra entre nós. Guerras e sistemas totalitários estão longe de ser raridade
no mundo. Se veremos a servidão ceder de uma vez ou paulatinamente, é tema a ser ainda muito
disputado. O que parece inegável é a necessidade de se manter o messianismo pulsante, aberto,
renovável, quiçá até sem o Messias, como queria Derrida12. É ainda em nome daqueles sem
esperança, que essa necessidade continua a clamar.

11
É importante relembrar o papel do filósofo e teólogo luterano Paul Tilich na reflexão Cristianismo-
Marxismo. Para um aprofundamento em estudos contemporâneos sobre essa questão, recomendamos o
trabalho dos seguintes pensadores religiosos: Andrés Torres Queiruga, Jon Sobrino, Leonardo Boff, Frei
Betto, John Shelby Spong. Cada um deles elabora encima da conciliação (ou reconciliação) com o
sagrado como algo que passa pela, necessariamente, pela conciliação com os homens, na luta por um
mundo de justiça.
12
DERRIDA, Jacques, “Specters of Marx, APUD, Khatib, Sami, in “The messianic without messianism;
Walter Benjamin´s Materialist Theology”. Anthropoly & Materialism, 1, 2013. Disponível em
http://am.revues.org/159 (Acesso em 23/07/2016)

4
Referências

COUTO, Mia, Se Obama Fosse Africano, Cia. Das Letras, São Paulo, 2010

GAGNEBIN, Jeanne-Marie, “Teologia e Messianismo no pensamento de W.


Benjamin”, Estud. av. v.13 n.37 São Paulo set./dez. 1999

LÖWY, Michael, Aviso de Incêndio: uma leitura das Teses sobre o conceito de
história. Boitempo Editorial, São Paulo, 2005

MOWINCKEL, Sigmund, He that cometh, Abingdon Press, 1954, New York -


Nashville

QUEIRUGA, Andrés Torres, Um Deus para Hoje, Paulus, São Paulo, 2006

ROSENZWEIG, Franz, GLATZER N. Nahum, Franz Rosenzweig; His life and


thought, Schocken Books, Inc, New York, 1961, 2nd Revised Edition

SAMI Khatib, “The messianic without messianism; Walter Benjamin´s Materialist


Theology”. Anthropoly & Materialism, 1, 2013. Disponível em
http://am.revues.org/159 (Acesso em 23/07/2016)

ŽIŽEK, Slavoj, GUNJEVIĆ , Boris, God in Pain, Seven Stories Press, New York, 2012

Você também pode gostar