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Docta spes e suas implicações éticas – a filosofia da esperança de Ernst Bloch no interior do

marxismo1

Manuel Teophil (maio de 2023)

I. Introdução – “Pode a esperança ser frustrada?”

“A esperança pode ser frustrada?” – essa pergunta foi o título da primeira palestra que Ernst Bloch
proferiu após chegar à cidade de Tübingen, na Alemanha Ocidental, em 1961. Nessa época o filósofo
já tinha 76 anos; acabara de deixar a República Democrática Alemã devido a uma relação cada vez
mais conturbada com as autoridades – Bloch não estava seguindo a doutrina marxista-leninista oficial
do Estado. Garantir a Bloch um lugar na Universidade de Tübingen não foi uma tarefa fácil porque
muitos dos colegas do departamento de filosofia se opuseram às ideias de Bloch. Mas, graças ao
esforço do reitor da universidade, um homem chamado Theodor Eschenburg, Bloch conseguiu o
cargo de professor visitante (cf. Zudeick 1985, 255 p.). E quando foi anunciado o título da primeira
palestra de Bloch – “A esperança pode ser frustrada?”2 – alguns ouvintes poderiam esperar uma
correção ou mesmo uma revisão do “filósofo da esperança” – mas essas expectativas não foram
atendidas.

Bloch foi muito claro em sua resposta sobre se a esperança pode ser frustrada: claro que pode,
porque, caso contrário, não seria esperança, mas confiança ou mesmo certeza. Segundo Bloch, a vida
de todos e de toda sociedade está repleta de sonhos que não foram realizados; e o fato de que os
sonhos podem explodir não é verdade apenas para o desejo cego, mas também para o que Bloch
chamou de uma esperança instruída, bem informada (em latim: docta spes). Essa característica, porém,
não é motivo para que Bloch abandone a esperança. Ao contrário, uma docta spes precisa aprender
com essas decepções, precisa se corrigir e ao mesmo tempo manter-se fiel à sua direção geral – que
é a direção do que Bloch chamou de humanismo real (Bloch 1985, vol. 9, 389). Em suma, Bloch
defendeu a esperança como um princípio, como algo que oferece um espaço para a ação humana
mudar as coisas para melhor. Mas o que exatamente permitiu a Bloch defender a esperança dessa
maneira? Quais elementos de sua filosofia o fizeram manter essa convicção particular? Uma
convicção fácil de se abandonar por alguém que naquela época, no início dos anos 1960, havia
vivenciado em primeira mão todas as catástrofes que o século 20 tinha a oferecer – a Primeira Guerra
Mundial, que levou Bloch ao exílio na Suíça; a queda da República de Weimar; as atrocidades e

1
Tradução para o português de Marco Schneider.
2
Traduções para o inglês do autor.
barbáries sem precedentes da Alemanha nazista, com exílios na Tchecoslováquia e nos Estados
Unidos da América; e, finalmente, o fracasso do experimento socialista no Oriente.

No entanto, Bloch permaneceu fiel à sua filosofia. A pergunta por que ele defendeu a
esperança como um princípio e as implicações éticas desse entendimento irão direcionar e estruturar
minha apresentação. Depois de mais algumas observações introdutórias sobre esperança e
pensamento utópico, particularmente sobre seu uso na linguagem cotidiana, e sobre o posicionamento
de Bloch no marxismo (II), tentarei rastrear a esperança (como princípio) dentro de uma dialética
materialista (III) e em seguida, concluir com algumas observações sobre as implicações éticas que
podem ser extraídas da filosofia de Bloch (IV).

II. 'Esperança' e 'utopia' na linguagem cotidiana e uma abordagem marxista da filosofia de


Bloch

Sem dúvida, há uma tendência de se abordar a esperança como uma mera emoção subjetiva, como
algo em que as pessoas confiam quando estão perdendo o juízo. Na língua alemã, a expressão
princípio esperança” (que é o título daquela que pode ser considerada a principal obra de Bloch) é
usada exatamente dessa forma – para descrever que alguém está agarrando o que considera a gota
d’água. A esperança, então, é a fonte de ilusões para as quais se voltam aqueles que precisam
desesperadamente de soluções – sabendo que aquela em quem confiam não é realmente uma solução.
Essa compreensão da esperança está particularmente presente no jornalismo de hoje, especialmente
no campo dos esportes: quando um time não está jogando e parece não ter ideia de como mudar as
coisas, os repórteres escrevem que estão contando com o princípio esperança. Esta noção de
esperança pode ser ligada à história da palavra utopia. Thomas More surgiu com a palavra no início
do século 16, que traduzida literalmente significa não-lugar – um lugar que não existe. Mas,
dependendo de como você pronuncia a palavra, também pode significar bom lugar. Essa ambiguidade
encontra seu reflexo no romance de Morus – Utopia é a ilha muito, muito distante, que é impossível
de alcançar e, ao mesmo tempo, é o lar de uma sociedade ideal caracterizada pela paz, igualdade e
justiça; mas Utopia é apenas o contraponto da Inglaterra do século XVI. Comentários sobre como tal
sociedade pode ser estabelecida não estão presentes no livro de More.

Isso também é verdade para outras obras utópicas do início dos tempos modernos, como A
cidade do Sol, de Tommaso Campanella, ou Nova Atlântida, de Francis Bacon. E até hoje o recurso
de retratar condições irrealistas impossíveis de se pôr em prática não abandoou – como ilustrado
acima – a palavra esperança; nem a palavra utopia. Chamar algo, uma ideia ou um plano de utópico
na linguagem cotidiana significa – pelo menos na língua alemã – na maioria dos casos que se trata de
algo irrealista e rebuscado, sem qualquer perspectiva de realização. Diante desse cenário, o fato de
Ernst Bloch falar de utopias concretas aparece à primeira vista como um oxímoro ou, para ser mais
preciso (com a terminologia da retórica), como uma contradictio in adiecto (contradição por adição):
colocar o atributo concreto diante da utopia parece viabilizar esses mesmos planos e ideias –
supostamente irrealistas. Consequentemente, para uma abordagem adequada da filosofia de Bloch,
devemos, antes de mais nada, nos despedir de uma compreensão cotidiana de esperança e utopia.

Além disso, é importante conceber que o próprio Bloch não está construindo ou conceituando
em suas obras uma utopia; em sua filosofia, ele não se ocupa em esboçar um futuro melhor. Em vez
disso, Bloch analisa as características da esperança, bem como as condições que tornam provável ou
improvável que tal futuro melhor possa acontecer. E a partir dessa análise ele tira a medida para
avaliar os sonhos na arte, na política, na ciência, na religião etc., sejam eles possíveis ou não. Aqui
você pode ver uma semelhança com Marx, que muitas vezes é visto como o filósofo de um futuro
comunista – “o velho com uma longa barba e uma bola de cristal”, por assim dizer. Esta imagem não
poderia estar mais errada: nos textos de Marx você dificilmente encontra comentários sobre o futuro;
e quando você os encontra, eles são vagos e na maioria das vezes restritos à negação do status quo –
por exemplo na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (Einführung in die Hegelsche
Rechtsphilosophie), onde Marx escreve sobre a derrubada de todas as “condições em que o homem
surge como um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível” (MEGA, 1ª div./vol. 2, 177)3
ou na Ideologia Alemã (Deutsche Ideologie) onde apresenta (com uma piscadela) um indivíduo que
pode ser caçador pela manhã, pescador ao meio-dia e crítico crítico à noite (MEGA, 1ª div./vol. 5, 34
pp.). E essas perspectivas de futuro precisam carregar características como imprecisão e incerteza,
porque o processo para um futuro diferente depende de tantas variáveis que esboçar um quadro claro
dele seria enganoso desde o início. Essa é, aliás, também uma das razões pelas quais o próprio Marx
se recusou a ser chamado de marxista. Em um congresso na França, ele certa vez observou: “Moi, je
ne suis pas Marxiste” (Traub/Wieser 1980, 100) – a convicção por trás desse comentário sendo que
o intrincado processo de uma revolução proletária não deveria ser associado a uma pessoa apenas.

O fato de que o próprio Marx negou ser marxista torna quase inevitável perguntar se Ernst
Bloch pode ser considerado como um. Houve e ainda há muito debate em torno dessa questão. Na
minha opinião (e espero conseguir transmitir isso com a apresentação de hoje), uma abordagem
marxista da filosofia de Bloch é convincente. No entanto, deve-se notar que tal abordagem é uma
entre outras. Por exemplo, há um ramo da recepção blochiana que conecta sua filosofia com o
existencialismo, focando na dimensão subjetiva da esperança. No entanto, com o marxismo, os
primeiros trabalhos de Sartre compartilham um ponto de partida antropológico que facilitou as
conexões que o próprio Sartre fez com as ideias marxistas posteriores; além disso – como Hans Heinz

3
Utilizei a tradução da Boitempo, 2005, p. 151.
Holz apontou de forma convincente –, em algum momento o existencialismo atinge a barreira se e
em que medida existem influências (ou mesmo determinações) sobre os seres humanos impostas por
seu entorno (Holz 2015, 10 pp.). Assim, esclarecer a relação entre necessidade e liberdade a partir de
uma perspectiva que se concentra principalmente no sujeito individual não é suficiente.

Outra área da filosofia de Bloch que teve bastante impacto é a teologia. Evidentemente, não é
um grande salto do pensamento utópico e da esperança para conceitos como messianismo ou
escatologia que estão fortemente entrelaçados com o campo da teologia. E, claro, o próprio Bloch
enfatizou essas conexões – não apenas no Princípio Esperança, mas principalmente em seu livro
Ateísmo no Cristianismo (Atheimsus im Christendom). Pensadores como Jürgen Moltmann (livro:
Theology of Hope) ou Johann Baptist Metz tendiam a negligenciar a postura dialética e materialista
de Bloch ao apropriar-se de suas ideias para a teologia (no entanto, eles também ainda clamavam pela
práxis humana); ao fazê-lo, abandonavam a busca de Bloch por uma terceira via entre o ateísmo e a
crença. O mesmo método foi, aliás, usado pelas autoridades da República Democrática Alemã – eles
rotularam a filosofia de Bloch como teologia para desacreditá-la, o que – como apontado no início –
acabou levando Bloch a deixar o país e se estabelecer na cidade de Tübingen. Enquanto os teólogos
queriam salvar Deus com esse tipo de raciocínio, os funcionários do regime totalitário da República
Democrática Alemã queriam salvar o governo do partido.

Nenhum deles fazia justiça à abordagem de Bloch: assim como na história da filosofia, Bloch
procurava dentro da religião ideias e conceitos que pudessem ser (como ele os chamava) “herdados”
da história em prol da mudança social no presente. E isso, novamente, pode ser relacionado com Marx
– especialmente com seus primeiros escritos, principalmente com a Introdução à Filosofia do Direito
de Hegel e suas famosas observações sobre religião. Ao contrário da percepção geral, Marx não
condenou a religião, em vez disso, ele pediu sua crítica: “A miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a
expressão da miséria real, pois é um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura
oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma”4 (MEGA, 1ª div./2º
vol., 171). Embora Deus tenha sido, por assim dizer, removido da equação (o mesmo vale para Bloch:
1985, vol. 5, 1412), há elementos dentro da religião que podem ser úteis para provocar mudanças
sociais. Esta curta citação de Marx ilustra a dialética em poucas palavras – o que é definitivamente
útil para o avanço da minha apresentação, especialmente para as seguintes passagens sobre uma
dialética materialista.

Esses poucos olhares de lado sobre existencialismo e religião (este último tendo conexões
com a Teologia da Libertação na América do Sul) ilustram quão diversa foi e ainda é a recepção da
filosofia de Bloch. E essa riqueza apenas reflete a variedade de influências da filosofia, arte, religião

4
Utilizei a tradução da Boitempo, 2005, p. 145.
etc. que tiveram impacto no pensamento de Bloch – outros exemplos (não exaustivos) sendo a estética
do classicismo alemão, a estética de Bertolt Brecht, o expressionismo, a filosofia de vida (Alemão:
Lebensphilosophie), defendida principalmente por Georg Simmel e Henri Bergson, a filosofia da
natureza de Friedrich Schelling e assim por diante. O que é importante entender é que Bloch se
apropriou de todas essas influências para seus próprios fins – e essa apropriação é, pelo menos na
minha opinião, melhor descrita sendo identificada como marxista.

III. A esperança como princípio - uma implicação de uma dialética materialista

Em geral, é preciso diferenciar entre uma dialética como um método de processos de pensamento
(para encontrar os argumentos corretos) e uma dialética aplicada ao mundo material – uma dialética
materialista ou “real” (em alemão: Realdialektik). Este último surgiu bastante tarde na história da
filosofia, o que pode ser devido ao fato de que, como Bloch aponta, uma abordagem materialista é
bastante rara entre os importantes filósofos do passado (Bloch 1985, vol. 13, 208). A razão para isso
pode ser que uma dialética materialista está em desacordo com o imperativo de identidade dentro do
raciocínio científico: para obter conhecimento sobre alguma coisa, temos que assumir que essa
(alguma) coisa é idêntica a si mesma. Mas não é assim que o mundo se apresenta a nós; pelo contrário,
está sempre mudando. Assim, estamos constantemente assumindo identidade onde há, de fato,
mudança constante, portanto não-identidade observável.

Esta é a contradição básica de uma dialética materialista (Holz 1997, 2) que é invisível
enquanto for ofuscada pela suposição de um ser absoluto. Esse ser absoluto – indiferente se é
apresentado como sagrado (por exemplo, deuses) ou profano (por exemplo, ideias de Platão) –
permite declarar a variedade visível das coisas como meros derivados do absoluto. Portanto, o que
deve ser superado é, antes de tudo, uma “compreensão estática e fechada do ser” (Bloch 1985, vol. 5,
17) e, em segundo lugar, uma orientação idealista da filosofia. Esta última demanda foi especialmente
dirigida a Hegel, que reconhecidamente descreveu o ser como algo que não é estático, mas devir; no
entanto, no final das contas Hegel encapsula esse ser dentro da ideia absoluta. Sua dialética é o
solilóquio do espírito do mundo, levando a – o que Bloch chamou em seu livro sobre Hegel – um
“idealismo inaceitável” (Bloch 1985, vol. 8, 159). De acordo com Bloch, Hegel empreende o esforço
impossível de contemplar os pensamentos de Deus antes de criar o mundo.

No entanto, essa crítica não significa que Bloch esteja rejeitando completamente a filosofia
de Hegel. Ao lidar com Hegel em particular e com a filosofia do idealismo alemão em geral, Bloch
demonstra fidelidade à dialética ao identificar aquelas ideias que podem ser frutíferas para uma
dialética materialista. E essa característica é algo que Bloch compartilha com Marx. Ele também não
estava descartando o idealismo de Hegel, mas apropriando-se dele para seu materialismo, que
significava identificar contradições sociais dentro da história. Este é um aspecto que não pode ser
subestimado: por exemplo, existe a percepção geral de que Marx se opunha estritamente ao
capitalismo e queria aboli-lo ou eliminá-lo. Mas, de fato, em alguns de seus textos, Marx mostra
reconhecimento, às vezes até admiração pelo capitalismo, em particular por sua produtividade e pelas
forças que libertou. Este mal-entendido está – presumivelmente – em muitos casos relacionado com
a palavra alemã aufheben, que Marx extraiu da dialética de Hegel. Pode significar dissolver ou
cancelar algo, mas Hegel a entendeu no sentido de que algo é mudado, mas preservado ao mesmo
tempo e então avançado para algo diferente, algo novo (tradução bem estabelecida de aufheben:
suprassumir).

Agora, o que exatamente significa quando dizemos que Marx se apropriou da dialética para o
materialismo ou – usando uma metáfora famosa – que ele virou Hegel de cabeça para cima, da cabeça
aos pés? A resposta é dupla: por um lado, há a suposição de uma dialética da natureza que não Marx,
mas Engels seguiu; e Bloch também estava lidando com esse tópico, especialmente em seu último
trabalho Experimentum Mundi, onde discute a ideia de uma natura naturans (um sujeito dentro da
natureza; alemão: Natursubjekt) em conexão com a filosofia da natureza de Schelling. Por outro lado,
e isso é definitivamente da maior importância para a história da filosofia, Marx introduz na filosofia
o ser humano trabalhador que molda seu próprio ambiente (e posteriormente a si mesmo e a história);
ou, como disse Bloch, Marx trouxe o ser humano como um Prometeu para a discussão (cf. Bloch
1985, vol. 13, 234). Em seus primeiros trabalhos sobre filosofia idealista, bem como em suas teses
sobre Feuerbach, exatamente esse aspecto era o principal ponto de crítica de Marx: nem o idealismo
que dá prioridade ontológica às ideias e pensamentos, nem um materialismo como o de Feuerbach,
que se contentava com a intuição humana, eram do ponto de vista de Marx suficientes para
compreender plenamente a realidade. A ação humana – ou: a prática – também deve ser levada em
consideração. Ao fazer isso, o processo do mundo pode ser identificado como aberto à intervenção
humana em todos os momentos por ser caracterizado pela dialética. É – para Bloch – este aspecto
que constitui a esperança como princípio. E é também este aspecto que marca uma clara diferença
entre a filosofia de Bloch e o marxismo ortodoxo com sua compreensão determinista da história
assumindo que um futuro comunista é mais ou menos inevitável.

E esse mesmo aspecto também – pelo menos na minha opinião – ilustra o quão profundamente
a filosofia de Bloch está ligada ao pensamento de Marx: ambos compartilham um ponto de partida
antropológico. Nos Manuscritos de Paris, Marx responde à questão do que significa realidade da
seguinte maneira: realidade significa “ter objetos sensoriais fora de si mesmo, ter objetos de
sensualidade. Ser sensorial significa estar aflito” (MEGA², 1ª div./2º vol., 409). Esta breve citação
pode ser lida como uma aparição precoce da noção de alienação que inclui o diagnóstico de que existe
uma lacuna não apenas entre os humanos e o mundo que os rodeia, mas também dentro dos próprios
humanos; e essa lacuna ou divisão mexe com suas emoções, afeta-os em um sentido literal. É essa
deficiência ou falta de algo que está na base da filosofia da esperança de Bloch: “Eu sou. Mas eu não
tenho a mim mesmo. É por isso que ainda estamos para nos tornar” (Bloch 1985, vol 13, 13) – com
essas frases começa a Tübinger Introduction to Philosophy, de Bloch (Tübinger Einleitung in die
Philosophie). E o Princípio Esperança também começa com a observação de que os humanos estão
constantemente sentindo que lhes falta algo – tanto no sentido literal quanto no figurado.

Compartilhando uma base antropológica, a ênfase de Marx e Bloch difere ligeiramente, o que
pode ser resumido concisamente da seguinte forma: para Marx, o mundo é uma questão aberta com
o ser humano como resposta, à qual Bloch acrescenta o ser humano como uma questão aberta com o
mundo e suas possibilidades como respostas. Assim, é justo dizer que as obras de Marx e Bloch são
de certa forma complementares. Ambos tratam da constante intermediação ou interferência entre
sujeito(s) e objeto(s). Bloch faz um grande esforço para analisar a história da filosofia com um olhar
voltado para abordagens materialistas que lidam com a matéria como algo aberto e ainda por vir. Ele
encontra esses traços no que então rotula como uma esquerda aristotélica: começando com
Aristóteles e sua compreensão da matéria como algo dinâmico e produtivo, essa tradição inclui os
filósofos árabes Ibn Sina (Avicenna) e Ibn Ruschd (Averroës), Giordano Bruno, Leibniz e Hegel, e –
não surpreendentemente – termina com Marx e sua implementação do ser humano ativo em uma
dialética materialista.

Assumir uma intermediação e influência constante entre sujeito e objeto amplia a


compreensão da matéria: para um materialismo dialético “a diferença entre entidades materiais e
imateriais torna-se obsoleta; (…) alma e espírito também são manifestações da matéria” (Holz 2012,
494). Assim, Bloch fala com bastante precisão da dinâmica entre pensamento e realidade externa
como um ser-relação. Não existe matéria em si (ou: matéria per se), mas processos e mudanças
sempre em andamento: por exemplo, os pensamentos estão mudando com a realidade externa, mas
ao mesmo tempo eles mesmos – como elementos da matéria – estão mudando esta mesma realidade.
Essa relação é de grande importância para as noções de possibilidade e utopia de Bloch. Para falar de
um sonho ou de um futuro imaginado como uma utopia concreta, a análise minuciosa do status quo
(identificando o ainda não-ser) deve se alinhar com os desejos subjetivos de um futuro melhor (o
ainda não-consciente); em outras palavras: a negação dialética (antítese, contradição) do sujeito tem
que coincidir com a negação dialética dentro do mundo exterior; o ainda-não-consciente tem que ter
um correlato na realidade para evitar que sonhos e esperanças não sejam nada mais do que um desejo
abstrato (cf. Bloch 1985, vol. 5, 168). O alinhamento aspirado entre ainda-não-consciente e ainda-
não-ser, a constante correção de um pelo outro pode levar ao que se chamou – no início da
apresentação – uma docta spes, que é uma esperança instruída, que aprendeu com os contratempos e
derrotas.

Com a diferenciação entre sujeito e objeto tornando-se um tanto nebulosa, o mesmo vale para
a relação entre teoria e praxis. Para Bloch, a verdade não é exclusivamente uma questão teórica. No
campo da teoria, você só pode determinar o que é certo; para falar da verdade, a teoria tem que estar
emaranhada com a praxis – ambas precisam se corrigir (cf. Bloch 1985, vol. 5, 310 pp.). E não só
elas precisam corrigir uma à outra, mas também a própria teoria pode ser considerada como algo
prático. É por isso que Bloch pode definir a teoria como uma “intervenção compreensiva” (Bloch
1985, vol. 15, 78). E aqui, novamente, pode ser apontada uma semelhança com Marx, que assumiu
em sua Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel que a teoria se torna uma força material
assim que se apodera das massas (cf. MEGA², 1º div./2º vol. , 177). Bloch então estende esse
pensamento da teoria para as artes e artefatos culturais em geral: textos literários, óperas, arquitetura,
religião, teatro, feiras e circos (e muito mais) podem fornecer janelas para um futuro melhor que não
é abstrato, mas viável; e, portanto, vale a pena considerar e analisar esses artefatos culturais. Bloch
chegou ao ponto de introduzir noções de estética na ontologia – por exemplo, tentando abordar o
acima mencionado 'sujeito dentro da natureza' (alemão: Natursubjekt) com os termos “alegoria” e
“símbolo” (cf. Bloch 1985, vol 15, 203 pp.). Especialmente essa abertura da filosofia de Bloch o
colocou em conflito com os marxistas ortodoxos que não estavam dispostos a discutir questões
ontológicas dessa maneira e tinham uma tendência a rotular artefatos culturais do passado como
“burgueses” ou “contra-revolucionários”, o que muitas vezes significava que eles não eram
considerados dignos de qualquer debate. Isso, claro, não estava de acordo com a busca de Bloch por
vestígios de argumentos e imagens na história cultural que pudessem ser úteis para a mudança social
no presente.

IV. Implicações éticas da filosofia da esperança

As implicações éticas da filosofia de Bloch podem ser deduzidas diretamente de suas raízes
ontológicas e epistemológicas que tentei delinear até aqui. Mais uma vez, há também neste contexto
uma clara analogia entre Bloch e Marx: ambos eram bastante céticos (Marx talvez até mais do que
Bloch) sobre argumentações éticas contra o status quo social – ou para falar mais ousadamente: contra
o capitalismo –, raciocinando que esses argumentos – em sua maioria – se acomodariam apenas com
uma compreensão superficial do sistema econômico. Consequentemente, a ética pode funcionar como
um ímpeto para a crítica, mas não como sua força orientadora. O que há para esperar e
subsequentemente fazer deriva da análise minuciosa do status quo sócio-econômico, e não de
considerações abstratas sobre “errado” e “'certo”. Bloch especifica isso com o par conceitual de
corrente quente (alemão: Wärmestrom) e corrente fria (alemão: Kältestrom): enquanto a última está
lidando com a análise de condições sócio-históricas, a primeira é identificada com (entre outras
elementos) emancipação, humanismo e ética. Para que a práxis seja eficaz, a corrente fria e a corrente
quente precisam uma da outra.

Então, a importância da práxis, do envolvimento do ser humano no processo do mundo está


definitivamente muito presente na obra de Bloch – mas tem que ser uma práxis que não se baseie em
uma compreensão determinista da história nem em uma crença cega. O que Bloch pede é uma atitude
de otimismo militante que pode ser descrita como uma atitude entre a certeza e a contemplação
pessimista (cf. Bloch 1985, vol. 5, 227 pp.). Fortemente ligado a esse tipo de otimismo está o que
Bloch chamou de caminhar ereto, significando – novamente, tanto no sentido literal quanto no
figurado – que o povo não tenha a postura de humanos oprimidos, mas assuma o controle de seu
próprio destino. Em seu livro Direito natural e dignidade humana Bloch chama de caminhar ereto
um humanismo em ação (Bloch 1985, vol. 6, 12); ele continua escrevendo “[que] nem a dignidade
humana sem a libertação econômica é possível, nem a libertação econômica (...) sem a causa dos
direitos humanos” (ibid., 13). Esta citação, mais uma vez, demonstra a abordagem dialética de Bloch
em relação à história – neste caso, a história da filosofia: ele defende que o marxismo implemente
elementos da lei natural sem adotar a ideia de direitos inatos; de acordo com Bloch, todo direito foi
adquirido ou ainda deve ser adquirido com luta (cf. ibid., 215). Até agora, os ideais das sociedades
burguesas – escritos, por exemplo, na declaração de independência americana ou na constituição dos
Estados Unidos – nada mais são para ele do que meras frases; eles são, como Bloch colocou,
“diretrizes para palavras, não para ações” (Bloch 1985, vol. 5, 195). O facto de Bloch querer que isso
mude permite traçar outro – um último – paralelo com Marx que escreveu que não há necessidade de
novos ideais mas apenas é necessário cantar às circunstâncias sociais a sua própria melodia (cf.
MEGA², 1.º div./2º vol., 173).

Como já mencionado, cultura, arte e religião desempenham um papel importante para Bloch
quando se trata dessas lutas pelos próprios direitos. Isso implica a exigência de não ser ignorante em
relação ao passado, porque quase tudo oferece algo que vale a pena herdar; ou, como Bloch escreveu
no Princípio da Esperança, pode haver muita falsa consciência em artefatos culturais do passado,
mas também há juventude eterna neles, que permite sempre novas perspectivas que esses artefatos
fornecem (cf. Bloch 1985, vol.5, 176). Além dessa consciência da história cultural, deve-se também
ter em mente o que Bloch chamou de não-sincronicidade da história. Com essa noção, ele apontou
que a história avança em ritmos diferentes, permitindo que elementos do passado sejam persistentes
no presente, dependendo do local específico que se olha. As diferenças entre cidades e áreas rurais,
bem como entre diferentes partes do o mundo tem que ser levadas em consideração. Devido à não
sincronicidade, Bloch especifica que uma dialética materialista deve ser polirrítmica (cf. Bloch 1985,
vol. 10, 618). Na minha opinião, a noção de não-sincronicidade é crucial quando se tenta aplicar a
filosofia de Bloch ao presente, porque as condições de trabalho e, consequentemente, a consciência
das pessoas são provavelmente mais diversas do que nunca – especialmente em escala global.

Finalmente, para citar uma última implicação ética da filosofia de Bloch, deve-se mencionar
que as pessoas devem ser fiéis aos sonhos de sua própria juventude – que é uma frase que Bloch
adotou do drama Don Carlos, de Friedrich Schiller; pode haver contratempos – até mesmo grandes
contratempos – mas você precisa ser leal às ideias para um amanhã melhor; e ao fazer isso você pode
confiar na esperança como um princípio. Há uma outra frase, desta vez retomada por Bloch das
Guerras Camponesas Alemãs do século XVI [de Engels], que também se encaixa bastante neste
contexto: “Voltamos para casa derrotados, nossos netos lutarão melhor”; foi principalmente por causa
de sua convicção de que a esperança é um princípio que Bloch – apesar de todas as decepções que
experimentou pessoalmente durante sua longa vida – ainda assim continuou defendendo e advogando
uma docta spes.

V. Literatura

• Bloch, Ernst, obra edição em 16 volumes, Frankfurt a. M. 1985.

• O Princípio Esperança, Vol. 5.

• Direito Natural e Dignidade Humana, Vol. 6.

• Sujeito-Objeto. Comentários sobre Hegel, Vol. 8.

• Ensaios Literários, Vol. 9.

• Ensaios Filosóficos sobre a Imaginação Objetiva, Vol. 10.

• Tübingen Introdução à Filosofia, Vol. 13.

• Experimentum Mundi, Vol. 15.

• Tendência-Latência-Utopia, suplemento vol.

• Holz, Hans Heinz, Unidade e Contradição. História do problema da dialética nos tempos
modernos, vol. 1 (A assinatura dos tempos modernos), Stuttgart/Weimar 1997.

• Wood, Hans Heinz, Liberdade e Razão. Meu caminho filosófico depois de 1945, Bielefeld 2015.
• Wood, Hans Heinz, materialismo especulativo, em: Dietschy, Beat / Zeilinger, Doris /
Zimmermann, Rainer E. (ed.), dicionário Bloch. Conceitos-chave da filosofia de Ernst Bloch,
Berlin/Boston 2012, pp. 483-508.

• MEGA²: Marx, Karl/Engels, Friedrich, edição completa (MEGA²), Berlim 1975 e seguintes.

• A ideologia alemã, I. Dept., Vol. 5.

• Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Parte I, Vol. 2.

• Manuscritos econômico-filosóficos, I. Dept., Vol. 2.

• Traub, Rainer/Wieser, Harald (eds.), Conversations with Ernst Bloch, 3ª ed., Frankfurt a. M.
1980.

• Zudeick, Peter, a bunda do diabo. Ernst Bloch - Vida e Obra, Bühl-Moos 1985.

Manuel Teophil (maio de 2023)

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