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, PSICOLOGIA DA CULTURA ,

I~s fontes explícitas da obra antropológica de Freud*

~ MONIQUE AUGRAS**

1 A autora analisa as referências bibliográficas da obra antropológica de Freud, principalmente, de


Totem e tabu, O estudo sistemático dos autores citados permite evidenciar os aspectos que
fazem de Freud um homem do seu tempo e, particularmente, a adesão irrestrita à ideologia
,i
evolucionista. No entanto, Freud utiliza as fontes de maneira muito pessoal, criando mais do
que interpreta. Conclui a autora que essa vertente da obra freudiana, hóje desprovida de vali·
dade frente à antropologia contemporânea, apresenta relevante valor psicológico, expresso na
criação de um grande mito trágico.

No término do estudo dediCado aos grandes pioneiros da antropologia cultural, Kardiner &
Preble (l966) afrrmam que Freud desempenhou um papel primordial na história das ciências
l;ociais, não apenas pelo advento da psicanálise propriamente dita, mas também pela publicação
1e cinco obras fundamentais: Totem e tabu, em 1913, Psicologia das massas e análise do eu, em
1921, OFuturo de uma ilusão, ·em 1928, Mal-estar na civilização, em 1930, e Moisés e o
rnonoteísmo, em 1939.
Essas obras seguem uma linha constante. Os supostos de Totem e tabu são endossados
com firmeza e reiterados pelo Freud de Moisés e o monoteismo.
Na Psicologia das massas, Freud, além de apoiar-se em Tarde no que diz respeito às
interpretações de cunho sociológico e em Mc Dougall para a teoria dos instintos, cita constante-
-mente Totem e tabu como fonte principal. O Futuro de uma ilusão, que trata da "possível
colaboração da psicanálise na solução do problema religioso" (1973, p. 2.972), não cita fonte
alguma, a não ser Totem e tabu. Em Mal-estar na civilização, Freud incorpora grande número de
referências tiradas da jovem geração dos psicanalistas seus discípulos, tais como Ferenczi, Ale~
xander, Reik, M. Klein;. mas quando se pretende apoiar em material antropológico, cita exclu-
sivamente o Futuro de uma ilusão e Totem e tabu. O mesmo acontece no Moisés, com a
novidade da inclusão de referências a autores ingleses e alemães que trataram da história do
Egito antigo e do judaísmo; mas o autor mais citado, com maior ênfase, é Sir James Frazer,
cujos trabalhos já constituíam o referencial quase absoluto de Totem e tab~.
Procurar esclarecer as fontes da obra antropológica de Freud requer portanto que se
dedique atenção a tudo aquilo que faz o embasamento de Totem e tabu.
Freud publicou a série de quatro ensaios, que depois reuniu sob esse título, na revista
[mago, estimulado - segundo diz - pelos trabalhos da "escola de Zurique" (leia-se Jung) e pela
obra de Wundt .

• Trabalho recebido pela Redação em 1.8.8i.


•• Psicóloga do ISOP; professora nos cursos de pós-graduação em psicologia da Fundação Getulio Vargas e na
PUCRJ. (Endereço da autora: Rua Candelária. 6 - 3.° ando - Rio de Janeiro, RJ.)
o que Freud chama de estímulo poderia ser mais adequadamente designado como "fO!
mação reativa". pois ele tem consciência de opor-se na realidade a ambas as correntes.
Wundt quer explicar a psicologia social pela psicologia individual (não analítica), e Jun
pretende fazer o contrário, aplicando material derivado da psicologia social aos problemas d
psicologia individual. Freud tenciona oferecer aos antropólogos um caminho para superar dü. _ _
sensões, por meio de uma hipótese psicanalítica que permita unificar as informações contraditó-
rias e até mesmo abrir novos rumos de compreensão do homem. Após passar em revista as
hipóteses antagônicas dos autores da época. ressaltando-lhes as contradições, oferece, generoso,
a solução: "Somente a psicanálise projeta alguma luz nessas trevas" (1973 , p. 1.828).
Sabe-se hoje que os antropólogos não reagiram com igual entusiasmo. Logo depois do.
publicada, a teoria da "horda primitiva" foi recusada. O próprio Freud ~entou temperar J
reação, qualificando sua obra de uromance psicanalítico". No entanto , não resistiu à tentação
de interpretar as resistências dos antropólogos, no sentido do horror inconsciente perante a
revelação do assassinato do pai, como bem mostra seu comentário a E. Jones : na Interpretação
de sonhos , "descrevi o desejo de matar o pai e agora descrevi o próprio assassinato; apesar dtl
tudo, há uma grande diferença entre um desejo e um fato!" (Jones, 1960, p. 373). Além do /
mais, a interpretação posterior da figura de Moisés e do mito de Javê nos mesmos termos do
assassinato do pai mostra o quanto Freud em realidade acreditava na verdade psicológica -
senão histórica - dos seus supostos.
J! curioso observar quantos esforços foram feitos, tanto por antropólogos' quanto por
psicanalistas, para, ao mesmo tempo, considerar Totem e tabu mera fábula, e resgatar contudo
todas as suas proposições.
O antropólogo Kroeber. que em 1920 o condenara por ser pouco cientifico, 20 anos
depois se acusava de excessivo rigor, e se propunha ver na teoria de Freud um modelo genérico
<C

e intemporal de atitudes psicológicas em fenômenos ou instituições que se repetem, tais como o


totemismo e os tabus" (apud Lévi-Strauss, 1975, p. 75).
Ocorre, no entanto, que a maioria dos antropólogos contemporâneos duvida da existência
de "modelos genéricos e intemporais". Além do mais, tabus e totemismo não são tão universais
como se pensava na época de Freud. Lévi·Strauss, que confessa ter "endurecido" sua posição
para com Freud no decorrer dos anos, inicia o ensaio Totemismo hoje, observando que "sucede
ao totemismo o que sucede à histeria" (1975, p. 13). Ambos saíram de moda. Triste sina a de
Freud, que partiu da histeria para elaborar a teoria psicanalítica das neuroses, e que acreditou
na universalidade do totemismo para propor o seu modelo antropológico!
Kestemberg & Lebovici (1975), que, sendo psicanalistas, optaram pelo resgate, afirmam
que Totem e tabu, assim como o Moisés, são obras fundamentais para compreender Freud. e
que a propalada fragilidade de sua fundamentação não importa . "Tais referências etnográficas
seIVem apenas para ilustrar ('"imager"), numa construção programada, a raiz de nossas fantasias ,-
Importava para ele, e para a coerência de sua obra, lembrar que a história de cada um de nós é
apenas infinita repetição, ao longo das gerações, do peso estruturante de nossa culpabilidade.
Daí, não interessa saber se as teorias de Frazer são controvertidas pelos trabalhos atuais da
etnografia" (p. 32).
Singular raciocínio este. Como ao mesmo tempo respeitar a contribuição de Freud e
desprezar a própria gênese da elaboração de sua teoria? Afirmar que não interessa avaliar (nem
conhecer, pergunta·se?) trabalhos cuja leitura provocou em Freud um remanejamento de sua
teoria equivale a situá·lo como ser' intemporal, a-histórico, mítico por assim dizer.
Será tão frágil o edifício da psicanálise que o estudo de alguns dos seus fundamentos vá
abalá-lo? A crítica é tabu por que Freud virou Totem? Trata-se, por certo, de estranha

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comprovação factual da teoria do endeusamento do pai morto. Chasseguet-Smirgel não vacila

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em descobrir no meio dos psicanalistas a "ressurreição da horda primitiva", e suspeitar que a
"sacralização" de Freud, além de anticientífica, seja biombo de sentimentos inconfessáveis:
í "Embalsamar não é manter vivo. A única maneira de fazer com que Freud viva entre ~ós é
li desenvolver sua descoberta, discutir os aspectos precários, aprofundar certos pontos por meio
do método que nos legou" (1975, p. 162).
I É portanto válido procurar no estudo das fontes de Freud meios de entender melhor o
caminho do seu pensamento. A atitude ambígua frente à vertente antropológica da sua obra não
leva a parte alguma. Endeusar ou condenar não interessa. O que se propõe aqui é, pelo exame
das fontes explícitas de Freud em Totem e tabu, obra de referência constante para os posiciona-
mentos ulteriores do próprio autor, situá-lo melhor em meio à ideologia do seu tempo e avaliar,
inclusive, sua originalidade.
Totem e tabu começa com a afirmação de que é possível conhecer o homem da pré-histó-
ria, pelas marcas que deixou, e sobretudo pela semelhança que povos contemporâneos, "selva-
gens ou semi-selvagens", oferecem com os primitivos, a ponto de representar "uma fase ante-
rior, bem-conservada, de nosso próprio desenvolvimento".
"Partindo desse ponto de vista, e estabelecendo uma comparação entre a psicologia dos
povos primitivos, tal como a etnologia nos ensina, e a psicologia do neurótico, tal como surge a
partir das investigações psicanalíticas, descobriremos entre ambas numerosos traços comuns, e
poderemos ver sob nova luz aquilo que já conhecemos delas" (Freud, 1973, p. 1.747).
Duas premissas são claramente assumidas nessas palavras introdutórias: o evolucionismo,
que afirma a semelhança do selvagem atual com o primitivo desaparecido; e a crença na analogia
entre primitivo e neurótico.
Essa equação, selvagem=primitivo=neurótico, constitui a base de toda a demonstração de
- Freud. O primeiro autor a ser citado, é Frazer, pela sua obra de 1910, Totemism and exogamy,
que será constantemente referida ao longo do livro, como veremos adiante.
Em seguida, Freud rende homenagem· ao pioneiro Mc Lennan, que primeiro "reconheceu
a importância do totemismo". Freud vai citá-lo repetidamente em seguida pela sua "descoberta
da exogamia".
Mc Lennan (1827-1881) era um advogado escocês, que se dedicou principalmente ao
estudo das instituições, buscando o significado das mesmas na evolução histórica: "Sempre que
observamos formas simbólicas, temos motivos para afirmar que, no passado do povo que as usa,
correspondiam à realidade" (apud Lowie, 1971, p. 45). Os usos e oostumes são portanto consi-
derados corno sobrevivências. Baseando-se em fontes secundárias, o erudito Mc Lennan observa
que todos os povos conhecidos seguem uma ou outra das regras exclusivas de casamento;
proibição de casar dentro da tribo, que Mc Lennan batiza de exogamia, ou proibição de casar
fora da tribo, a endogamia. Esses termos obtiveram um sucesso bem superior ao da teoria do
jurista escocês como um todo. Até hoje estãf) no uso comum. A fragilidade das teses de Mc
Lennan deve-se, antes de mais nada, à pura especulação que as apóia. O autor elege como causa
primordial da exogamia uma hipotética carência de mulheres nas sociedades primitivas. Por
serem "naturalmente" mais fracas, as meninas seriam mortas para aliviar os problemas de
sobrevivência da tribo, resultando uma escassez de mulheres na idade adulta; as mesmas seriam
_ então um bem extremamente valorizado, e diversos costumes, como o rapto da noiva, que Mc
Lennan julgava ser universal, decorreriam da necessidade de apoderar-se desses bens pela violên-
cia. Daí viria a necessidade de garantir a sobrevivência do grupo, institucionalizando' a procura
(violenta) das mulheres fora dele.

Fontes da obra de Freud 5


Observa-se de passagem o quanto a teoria de Mc Lennan expressa a visão ambivalente que
a era vitoriana tinha das mulheres, objetos altamente desejáveis mas causadores de conflitos
violentos, por culpa intrínseca de sua "inferioridade biológica". Não há motivos para supor que
Freud se teria oposto a esse enfoque, mas o maior valor que atribuí a esse autor deve-se à
afirmação da universalidade do totemismo. Mc Lennan considerava que todas as civilizações
teriam passado necessariamente por uma fase totêmica. Fiel a seu suposto básico - todo
-
símbolo é sobrevivência de uma realidade esquecida - hipotetizava a existência arcaica de culto
das plantas e dos animais, que paulatinamente teria evoluído para formas religiosas "superio-
res", deixando como marcas o uso de símbolos. Embora Tylor tenha mostrado mais tarde que o
totemismo não se ligava necessariamente a tais cultos animais, Freud adota a posição de Mc
Lennan: "Determinadas marcas e sobrevivências difíceis de interpretar permitem supor que o
totemismo existiu igualmente entre os povos arianos e semitas primitivos da Europa e da Ásia,
de maneira que os sábios se inclinam a ver nele uma fase necessária e universal do desenvolvi-
mento humano" (1973, p. 1.748, nota 1.080).
O totemismo é portanto um fato, uma fase necessária e universal. Logo, será fácil apoiar
uma teoria das motivações primitivas do homem em base tão segura.
É verdade que as origens do totemismo fazem objeto de discussões etnológicas: Freud
aconselha a leitura de Wundt para ter-se uma opinião a respeito. Além do mais, com muito bom
senso, Freud observa que os povos "primitivos" também têm sua história, embora nos seja
desconhecida, e que muitas formas contemporâneas são igualmente sobrevivências de etapas
anteriores. A escolha de Wundt, no entanto, é significativa. Em seu vasto estudo A Psicologia
dos povos, de 1906, o pai da psicologia científica entrega-se, como os demais contemporâneos,
à especulação evolucionista fundamentada em explicações psicológicas. A origem das religiões e
das crenças começa pela projeção dos sentimentos pessoais no meio-ambiente. O homem primi-
tivo atribui poder a forças desconhec.idas, projetando seus medos em agentes fantásticos. A _
crença na magia e nos demônios alimenta o culto dos animais, que se transforma em totemismo;
o culto do totem é substituído pelo de um ancestral humano que lhe foi relacionado; o culto do
antepassado é projetado em figuras heróicas; do culto do herói chega-se finalmente ao culto dos
deuses que, nesse processo, parecem corresponder à imagem transfigurada do próprio homem,
recuperando assim o poder que a precariedade das condições da vida primitiva lhe havia negado.
São portanto motivações individuais que fornecem o modelo para a explicação da gênese
das religiões. Observa-se que a leitura de Wundt sem dúvida vai ajudar Freud a fazer do Grande
Ancestral a figura central de sua interpretação, desde Totem e tabu até Moisés e o monoteísmo.
Em Wundt verifica-se a mesma preocupação genética e a interpretação unificadora que apare-
ciam em Mc Lennan e que o próprio Freud parece assumir com igual firmeza.
Outra contribuição relevante de Wundt será desenvolvida mais adiante, a propósito do
tabu: o conceito de projeção, que para Wundt era necessariamente ligado a sentimentos negati-
vos de medo e de perigo, e que Freud amplia para afirmar-lhe a ambivalência. A característica
do tabu é precisamente designar um objeto como sendo, ao mesmo tempo, temido e desejável.
Partindo de Wundt, Freud opõe-se a certas concepções do mestre de Leipzig, para logo depois,
em vigorosa síntese, recuperar o conceito de projeção, estabelecendo a analogia entre o processo
social e os mecanismos de defesa individual. Introduzindo o desejo como elemento formador do
tabu, Freud, no entanto, dá outra dimensão à projeção wundtiana, com a incorporação da
motivação sexual.
Em relação ao totemismo, o que lhe chama a atenção é sobretudo a associação rigorosa do
sistema totêmico com a lei da exogamia: "Os membros de um só e mesmo totem não devem ter
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relações sexuais, e portanto, não devem casar entre si" (1973, p. 1.769). A proibição leva a

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\ oonsiderar como incesto qualquer transgressão dessa lei. A famt1ia "verdadeira" (conforme
Freud) é substituída pelo grupo totêmico. As relações de parentesco não são mais naturais, mas
J sim culturais. Uma ilustração é fornecida pelo livro de Spencer & Gillen, TIle Native tribes of

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central Austrália, publicado em 1899.
Esses autores estudaram os aborígines australianos. Verificaram no campo a ligação entre
totemismo e exogamia, já hipotetizada por Mc l.ennan. Para Freud, é mais uma prova de que os
selvagens tendem a multiplicar os meios de evitar cair nas "tentações" (sic) incestuosas, elabo-
rando para tanto sistemas complexos de leis matrimoniais.
Freud alude também à contribuição de l.ewis H. Morgan (1818-1881) que foi o pioneiro
das classificações de sistemas de parentesco que tanta importância viriam desempenhar no
discurso da antropologia cultural. A referência explícita a esse autor é rápida, mas, em vários
momentos de Totem e tabu, Freud utiliza a linguagem de Morgan.! Foi ele que estabeleceu os
três níveis de evolução da humanidade (selvageria, barbárie, civilização), que se encontram sob
outra forma em Auguste Comte e, para voltar ao autor mais citado por Freud, em Frazer, com
sua teoria dos estágios da humanidade: magia, religião, ciência.
Totem e tabu é constantemente entremeado de referências a Frazer. É nele que Freud
busca o apoio etnológico fundamental. A maior parte das referências a outros autores é feita
por Freud por intermédio de Frazer. É fato que esse autor representou uma figura de suma
importância para a antropologi!l social do fim do século passado. O destaque que ganha no livro
de Freud só faz restituir a liderança de que gozava entre os "&'ntemporâneos. Membro da
Universidade de Cambridge, formaao em literatura, filosofia, direito, acumulando ao longo dos
anos uma erudição esm.agadora, Sir James Frazer (l854-1941) veio a in.teressar-se sistematica-
mente pelos temas do tabu e do .totemismo quando foi convidado por Robertson Smith a
redigir os verbetes correspondentes para a Enciclopédia Britânica. Na verdade, o seu interesse
- pela antropologia cultural fundamentava-se, antes, na preocupação em entender alguma coisa do
homem e da civilização contemporânea: "A civilização é extremamente complexa; o estado
selvagem é relativamente simples. Não há dúvida que é a origem de toda a civilização, que ele
produziu ao longo de lenta evolução. Parecia-me que, para entender esse resultado complexo,
deveríamos oomeçar por estudar os elementos simples que foram sua causa. Em outras palavras,
deveríamos tentar a compreensão do estado selvagem antes de esperar compreender plenamente
a civilização" (apud Kardiner & Preble; 1966, p. 110).
Esse esclarecimento de Frazer constitui numa verdadeira profissão de fé evolucionista. A
ciência recomenda que se vá do mais simples para o mais complexo. Ao "estado selvagem" é
atribuída a característica de simplicidade. O estudo da vida do'selvagem por si só não interessa.
Atrai porém a atenção na medida em que permite identificar nas instituições primitivas formas
primordiais, pré-ensaios civilizatórios, cuja análise leva a decifrar as causas primeiras.
Daí a preocupação em acumular o maior número possível de dados sobre costumes
selvagens. Explica-se, também, a total liberdade que toma Frazer, ao organizar verdadeiras listas
de costumes estranhos, totalmente isolados do respectivo contexto cultural. Se a vida "seiva-
gem" apresenta informações que só se justificam na qualidade de causas primeiras dos costumes
"civilizados", não há sentido em buscar, como se faz hoje, a possível especificidade de cada

- cultura. Não foi Frazer o único a usar e abusar do "método ladainha" (litany method) que

1e importante assinalar a influência de Morgan sobre o pensamento de Marx e Engels. Grande parte do
eDlbasamento da Origem da famnüz, da propriedade privada e do Estado fundamenta-se na visão evolucionista
desse autor. Oulra influência ponderável provém da obra de Bachofen, autor caro a Jung, se não a Freud.

Fontes da obra de Freud 7


Malinowski tão bem satirizou,2 mas ele foi o mais brilhante. Ler Frazer é um encanto. Muitas
vocações de antropólogos culturais (e de psicólogos da cultura, confessaríamos em nome pró-
prio) foram desencadeadas pela leitura do Golden bough Lowie, bastante severo em relação à
contribuição científica de Frazer,3 não deixa contudo de ressaltar-lhe as qualidades literárias:
"Na minha opinião, o lugar que lhe cabe situa-se na história da literatura inglesa e do pensamen- -
to intelectual europeu. Seu estilo, que alguns julgam por demais floreado, é sem dúvida uma
maravilha do gênero" (1971, p. 96). Páginas inteiras de Totem e tabu incorporam o "álbum de
recortes,,4 de Frazer. Por exemplo, em apenas três páginas (1.753 a 1.755) passa-se em revista
os costumes de Melanésia, Novas Hébridas, Nova Caledônia, Nova Bretanha, Novo Mecklem-
burgo, Ilhas Fidji, Sumatra, Delansoa (África), África Oriental, Austrália, fihas Bango, Port
Patterson, Ilhas Salomão, Zululândia, e região das fontes do Nilo. ~ muita viagem para pouca
proibição, pois toda essa erudição, creditada pelo próprio Freud ao segundo volume de To-
memism and exogamy, visa apenas descrever diversas modalidades de evitar o incesto. Essa obra
de Frazer, por sua vez, apóia-se em Morgan, que hipotetizava, nas origens da sociedade, um
estado primordial de "promiscuidade primitiva". A exogamia teria sido o recurso elaborado
como defesa contra tal promiscuidade, pois o primitivo (promovido abruptamente de promís-
cuo a puritano) tem horror ao incesto. Observa-se mais uma vez a projeção (maiS no sentido
freudiano do que wundtiano, é claro) do sistema de valores vitoriano. A promiscuidade sexual
jamais tinha sido observada no campo. Por que inventá-la, senão para mostrar logo em seguida
que até mesmo o selvagem controla a sexualidade?
Freuc, que em outras páginas impressiona pelo senso crítico, nem discute: "Este horror
dos selvagens pelo incesto é conhecido há muito tempo e dispensa interpretação ulterior, razão
pela qual não nos deu muita oportunidade de mostrar que a aplicação dos métodos psicanalíti-
cos joga nova luz sobre os fatos da psicologia dos povos. Tudo o que podemos acrescentar à
teoria reinante é que o temor ao incesto constitui um traço essencialmente infantil e vai _
notavelmente de acordo com aquilo que sabemos da vida psíquica dos neuróticos" (1973,
p. 1.757). Por que haveria Freud de duvidar de uma teoria que lhe permite tão facilmente
comprovar, apoiado no método comparativo, a teoria sexual das neuroses?
Vê-se o quanto a ideologia puritana, que tanto se assustou com as teorias de Freud, está
na realidade entranhada no próprio âmago de suas concepções.
Os demais autores citados em Totem e tabu enquadram-se no mesmo referencial, embora
professem opiniões freqüentemente opostas. Crawley, cuja obra "The Mystic rose", de 1902,
representa no dizer de Evans-Pritchard um dos mais perfeitos exemplos de amontoado esdrú-
xulo de dados, reforça a opinião de Freud conforme a qual o selvagem sacraliza o que é
importante para a vida. Comer, ter relações sexuais são atos imprescindíveis· para a sobrevivência
da tribo. Por isso sua realização desperta o medo e deverá cercar-se de tabus, para maior
segurança.

2 "Quando um Brodiag encontra um urso polar, ele corre e às vezes o urso corre atrás; na antiga Caledônia,

quando um nativo por acaso encontra uma garrafa de uísque na beira da estrada, ele a esvazia de um só gole,
após·o que começa imediatamente a procurar outra" (Malinowski, 1951, p. 126).
, "f. um erudito e não um pensador" (Lowie, 1971, p. 95).
4 A expressão é de Evans-Pritchard, para designar a compilação típica de Frazer e dos contemporâneos. "O

processo consiste, no que interessa ao nosso assunto, na utilização de recortes acerca dos povos primitivos e
de todas as partes do mundo, reunindo-os de qualquer maneira, ·fosse como fosse, retirando ainda mais os ...
elementos dos seus contextos reais, para aproveitar apenas o que se referisse ao estranho, sobrenatural,
místico, supersticioso - usemos quaisquer palavras - num mosaico monstruoso que pretendia retratar a men-
te do homem primitivo" (1978, p. 23).

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Bastian (1826-1905) entra apenas como fonte de dados utilizados por Frazer. Wester-
marck (1862-1939) não deu bastante importância ao tabu, na opinião de Freud, mas ressalta a
ambivalência dos sentimentos dos selvagens em relação aos seus mortos. A transfonnação dos
entes queridos em espíritos hostis proviria da projeção do medo da morte. 5 Esse dado pennite
- portanto ultrapassar a hipótese projetiva de Wundt, pois, para Freud, a característica do tabu é
a sua ambivalência. A transgressão do mesmo, ainda que involuntária, acarreta a culpa e o
castigo.
Os antropólogos do flm do século XIX permitiram que Freud relacionasse o horror ao
incesto com o totemismo, e a ambivalência com o tabu. Falta ainda mostrar como a magia e o
animismo se encontram no homem neurótico contemporâneo. Cansado - tal como nós agora -
de tantas referências esmiuçadas, Freud homenageia em bloco os autores em que se apóia:
Herbert Spencer, J. G. Frazer, A. Lang, E. B. Tylor e W. Wundt (1973, p. 1.795, nota 1.149).
De Wundt e de Frazer, não· tira grandes novidades. Esse último postula que a magia
consiste essencialmente em dois tipos de ação sobre o mundo: por imitação (representando, isto
é, reproduzindo simbolicamente aquilo que se deseja) e por contágio (atribuindo por antigüida-
de as qualidades desejadas). Esses dois aspectos - que a retórica lacaniana redescobrirá meio
século depois sob o nome de metáfora e metonímia - atendem a uma necessidade básica do
homem, que é substituir a realidade pelo desejo.
Antes de Frazer, Tylor já defmira a magia como troca de uma relação real por uma
relação ideal. 6 Edward Burnett Tylor (1832-1917) merece o reparo. Destaca-se em meio aos
demais estudiosos da época pela sua preocupação em abarcar os aspectos práticos da vida dos
selvagens. Não é um exclusivo homem de gabinete como Frazer, Crawley e tantos outros. Visita
o México em 1856 em companhia de um arqueólogo, despertando seu interesse antropológico.

- Não aceita sem crítica a massa de dados recolhidos pelos viajantes. Kardiner e Pr~ble conside-
ram o seu livro, publicado em 1871, Primitive cu/ture, como um "verdadeiro clássico da antro-
pologia, que marca o início do estudo científlco da sociedade" (1966, p.87). Nele, Tylor
desenvolve, além de nossa já conhecida teoria das sobrevivências, a teoria do animismo, que
constitui a sua grande contribuição. Postula que os mitos são tentativas de explicação do
mundo. Compõem urna "fllosofla primitiva", grosseira ainda, mas cujo deciframento pode
permitir maior compreensão do homem contemporâneo. Posição essa plenámente compartilha-
da por Freud. Tylor explica as religiões pela evolução do animismo primitivo: na experiência do
sonho, o homem sente que parte do seu ser é irreal; daí provém a idéia da alma e, por extensão,
a dos espíritos; aplicando essa qualidade à natureza, o homem passa a atribuir "almas" a todos
os seres que a compõem; no decorrer da evolução, as "almas" da natureza tornam-se mais
complexas, e se transformam em deuses; por flm, as grandes religiões criam o conceito mais
complexo de um deus único. Evolucionistá e racionalista, Tylor tem de agradar a Freud.
Propõe-se constantemente explicar o irracional pela lógica, e buscar a lei que penniie uniflcar a
explicação. 7

5 Freud cita também a esse respeito a contribuição de R. KIeinpaul, autor ao qual não tivemos acesso. ~
surpreendente verificar, m~ uma vez, a tranqüilidade de Freud ao transcrever afirmações singularmente

-
fantasiosas, desde que venham alimentar a demoostração: "Primitivamente -:- pensa KIeinpaul - todos os
mortos eram vampiros e todos, cheios de ira, perseguiam os vivos, sem pensar senão em prejudicá-los e
mam.los. ~ o cadáver que sempre sugeriu a primeira noção de um espírito maléfico" (1973, p. 1. 785).
6 "Mistaking an ideal connexion for a real one" (apud Freud, 1973, p. 1.797). Freud afasta sabiamente a
conotação racionalista do erro (mistake).
7 "Se em algum lugar há leis, estas devem existir em toda parte" (apud Da Matta, .1981, p. 91).

Fon~es da obra de Freud 9


Outro aspecto do pensamento de Tylor está próximo da posição de Freud: é sua grande
desconfiança acerca das religiões contemporâneas. Como ressaltou Evans-Pritchard (1978), os
autores ingleses do fim do século passado tinham segundas intenções ao descrever os pormeno-
res do comportamento religioso "primitivo". Muitas vezes, o interesse em apontar o irracionalis-
mo de certas práticas e a estranheza dos ritos servia ao objetivo de denunciar o irracionalismo e
o primitivismo dos costumes religiosos contemporâneos. Vê-se a dupla utilidade da teoria das
-
sobrevivências; no primeito tempo, manifesto, explicar comportamentos contemporâneos pela
sobrevivência de costumes arcaicos; no segundo momento, nem sempre encoberto, insinuar que
as práticas religiosas contemporâneas são dignas dos selvagens, logo, indignas do homem da
revolução industrial. Tylor não disfarça sua posição. Kardiner & Preble (1966, p. 70) creditam-
lhe a autoria desses versinhos, de qualidade poética duvidosa, mas sem ambigÜidade ideológica:

"Desmascarar todos os teólogos


Eis a missão do homem primitivo."

Como se sabe, a lição de Tylor encontrará maior eco no Futuro de uma ilusão, onde, pelo
viés da equação primitivo-neurótico, a religião acabará sendo considerada como o equivalente
social de uma neurose individual. 8
Por enquanto Totem e tabu estabelece o parentesco entre a ação mágica sobre o mundo e
aquilo que um neurótico obsessivo cliente de Freud qualificara de "onipotência das idéias, ou
seja, o predomínio concedido aos processos psíquicos sobre os fatos da vida real" (1973,
p. 1.802). Tal definição concorda claramente com a fórmula de Tylor, conforme a qual a magia
consiste em substituir uma relação real por uma irreal. O neurótico é um mágico fracassado.
Entre os contemporâneos, somente os artistas têm o privilégio de viver em mundo mágico e no
entanto real. Pois o seu objetivo confesso é submeter o mundo às leis do espírito, não às da
natureza. A diferença com os primitivos é que os artistas restringem sua atuação a uma só classe
de objetos, ao passo que o sistema animista dos primeiros abarca a totalidade do mundo.
-
Freud apóia sua descrição do animismo nos trabalhos de Marett, o que não deixa de ser
curioso.
Com efeito, esse autor inglês, sucessor de Tylor, na sua cátedra de Oxford, parece operar
uma ruptura em relação aos sistemas dos seus predecessores. R. R. Marett (1866-1943) foi
saudado por Lowie (1971) como um dos primeiros autores a introduzirem o bOD\ senso numa
área dominada pela especulação desenfreada. Em particular, Marett distingue-se por rechaçar
claramente as analogias entre louco, místico e primitivo, e por opor-se às generalizações brilhan-
tes a partir de um fato exótico isolado: "O selvagem é tudo menos lunático, particularmente
naquilo que interessa diretamente à luta cotidiana pela vida ( ... ) o senso comum não é o
privilégio da civilização" (apud Lowie, 1971, p. 103). Marett reduziu o alcance do "animismo
primitivo", recusando-se a interpretar de um ponto de vista unitário a multiplicidade das cren-
ças humanas. Nesse aspecto, no dizer de Lowie, parece antecipar muitas posições da escola
funcionalista.
:e portanto estranho ver Freud iniciar sob a égide de Marett um capítulo que vai estabele-
cer uma estreita ligação entre a projeção das tendências afetivas dos selvagens e o delírio
paranóico de Schreber; e reafirmar que "o animismo é um sistema intelectual e a primeira teoria
completa do mundo" (1973, p ..1.807), quando Marett se destacou dos contemporâneos pela ..

• "Assim, a religião seria a neurose obsessiva úniversal da humanidade; tal como a neurose obsessiva das
crianças, ela surgiu do complexo de ~dipo, do relacionamento com o pai" (1973, p. 2.985).

10 A.B.P.2/82
sua oposição à interpretação intelectualista da magia e da religião. Deixamos para autores mais
versados em Marett e em Freud a tarefa de interpretar essa discrepância.
Na quarta e última parte do livro, Freud volta ao tema do totemismo, e com ele ao autor

- favorito, Frazer. Não deixa· contudo dtl assinalar a variedade de interpretações que os diversos
autores têm dado à função do totemismo na vida do grupo primitivo. Didaticamente expõe, na
linha de Mc Lennan, pai da criança - como já vimos - três tipos de teorias: as nominalistas, as
sociológicas e as psicológicas.
Autores típicos da linha nominalista são Max Müller - que considerava os mitos como
"doenças da linguagem,,9 - Herbert Spencer - que atribuía uma origem racional, conceituai,
dir-se-ia, a todas as religiões - e Andrew Lang. Por ser autor do livro The Secret of the totem,
de 1905, Lang (1844-1912) aparece repetidas vezes ao longo de Totem e tabu. Em certo
sentido, opõe-se à teoria de Tylor, na medida em que considerava o animismo como uma
degradação. Ao contrário da maioria dos contemporâneos, o seu transformismo focalizava a
involução das crenças primitivas. Acreditava Lang que houvesse reinado o monoteísmo no
início da humanidade, e que percalços históricos tivessem levado certos povos a abandoná-lo,
caindo aos poucos em sistemas animistas. Nessa perspectiva, o uso de nomes de animais, por
certos clãs, teria conduzido os mesmos 'a "inventarem" a posteriori urna fIliação em relação aos
animais, com a finalidade de justificar tal associação, cuja origem fora esquecida. O totemismo
seria portanto uma construção lógica, elaborada pelo grupo na tentativa de atribuir significado à·
sua história. Nesse sentido, a teoria de Lang, embora ligada ao nominalismo, parece apresentar
algum parentesco com as posições sociológicas, e particularmente com a linha de DUrkheim
. (1858-1917). Com efeito, o sociólogo francês considerava que todo sistema religioso correspon-
deria a uma transposição, no plano mítico, da própria estrutura e dos valores do corpo social.

-
Os mitos serviriam portanto para legitimar tais valores. Freud cita explicitamente a posição de
Durkheim, mas não se detém nela, embora, a nosso ver, o uso que fez Durkheim do conceito de
projeção (atribuiçãO de determinado valor a um objeto, que o transforma em símbolo) poderia
ter contribuído para a reelaboração que Freud opera a partir de Wundt, como se viu anterior-
mente. No entanto, a exposição daquilo que chama de teorias sociológicas do totemismo é mais
uma vez baseada em Frazer, cuja contribuição é analisada minuciosamente, evidenciando as suas
fraquezas e contradições. Deste modo, Freud prepara o terreno para propor a sua própria
interpretação.
Voltando a Mc Lennan, afirma que a associação entre exogamia e totemismo não é
fortuita. Todos os autores acordam em ressaltar a "f<1bia do incesto", comum a todos os
.primitivos. Mas poucos se preocupam em evitlenciar-Ihe as causas. Westermarck é novamente
citado por ter afirmado a instintiva aversão do homem primitivo às relações sexuais com pessoas
próximas. Opondo-se à tese da "promiscuidade primitiva", esse autor finlandês partiu do pressu-
posto de que, send0 a consangüinidade prejudicial a nível biológico, haveria uma espécie de
"instinto" natura,l, ~sando à preservação da espécie. Na verdade, Freud cita Westermarck ape-
nas para refutá"lo, apoiando-se mais uma vez em Frazer, para afirmar que a proibição do incesto
atende a determinações sociais, não a uma programação biológica. Na linha biológica, o autor
que goza da confiança de Freud é Charles Robert Darwin (1809-1882).
Interpreta as proibições sexuais como conseqüências da evolução dos costumes dos maca-

- cos superiores. Vivendo como eles em pequenas hordas, os homens primitivos foram repetindo e
aperfeiçoando os comportamentos que já permitiam aos macacos garantirem a "seleção sexual".

, Veja a exposição da teoria de Max Muller em: Augras, M. A Dimensão simbólica. Petrópolis, Vozes, 1980.
p. 12 e sego

Fontes da obra de Freud 11


Lutando pela posse das fêmeas, os machos desenvolvem as características que lhes dão melhores
condições para ganhar a competição. "Os jovens machos assim eliminados, errantes, fariam
questão, ao conseguirem finalmente conquistar uma fêmea, de impedir as uniões por demais
consangüíneas entre membros de uma mesma faml1ia." 1 o
O palco já está montado, o cenário delineado. Graças a Darwin, entrou em cena a horda
·primitiva. Só falta agora a dinâmica do drama. Como se vê, a longa, e por vezes enfadonha,
-
enumeração das diversas fontes antropológicas tem por principal objeto pinçar, entre as teorias
disponíveis, os elementos que mais se ajustam para provocar a explicação psicanalítica. Até
mesmo Frazer, o autor favorito, parece ser utilizado menos como fonte de dados do que como
exemplo das inúmeras contradições em que se debate a antropologia no fim do século XIX.
Tudo para chegar à conclusão: "Somente a psicanálise projeta alguma luz nessas trevas."
Cabe a Freud, portanto, iluminar o palco. A história que vai fornecer a chave da interpre-
tação não é lenda australiana, nem mito indígena: é a neurose fóbica do pequeno Hans. O terror
e o amor do totem encontram seu exato paralelo na zoofobia de um garotinho austríaco de
cinco anos de idade.
O salto indutivo operado repentinamente por Freud, embora possa à primeira vista pare-
cer assustador, está contudo na lógica do sistema ideológico em que se vem apoiando. Corres-
ponde perfeitamente à postura evolucionista, que é a marca de todos os autores citados.
Em trabalho recente.., R. da Matta (1981) sintetiza com elegância as, idéias gerais do
evolucionismo, ressaltando-lhe o historicismo unificante. "O modo típico de pensar as diferen-
ças na posição evolucionista é pela redução da diferença espacial, dada pela contemporaneidade
de formas sociais diferenciadas, dentro de uIpa unidade temporal postulada, posto que inexis-
tente ou conjectural" (p.98). A diferença de costumes e de crenças é explicada mediante a
transposição temporal. A doutrina das sobrevivências ilustra claramente essa redução. Os fatos
estranhos, contemporâneos, são explicados, remetendo a um hipotético passado, que os integra
assim à tradição da cultura ocidental, único paradigma da civilização. Todos os autores citados
por Freud possuem em comum a fé evolucionista e a boa consciência colonialista. Colonizar os
-
selvagens é promover a ascensão do primitivo - sobrevivente exótico do nosso próprio passado
- ao nível invejável do civilizado. É acelerar o tempo.
Do mesmo mOdo que o primitivo, o neurótico parou no tempo. Ficou preso a um
momento arcaico dQ seu desenvolvimento, ou regrediu. Em todo caso, a interpretação da
neurose é buscada na história do indivíduo. Cada pessoa é um microcosmo, que repete e
percorre as mesmas etapas da humanidade em busca da realização dos seus desejos.
É nos dramas individuais que se fomenta o mito, que, num segundo tempo, se torna
formador da história do homem. Édipo, testemunha da universalidade do drama, e os cavalos
que ameaçam o pequeno Hans são avatares das grandes figuras totêmicas.
Assim Freud assume totalmente o "historicismo unificante". O mito (grego) esclarece a
neurose individual (austríaca) que explica a estreita união do totem (canadense) com o tabu
(polinésio). É a universalidade dos desejos que justifica o poder da lei.
Resta mostrar como adveio esse domínio. Para Freud, como sabemos, a lei, o mito e a
cultura são antes de mais nada filhos do parricídio.
Desta vez, é um professor de árabe em Cambridge que fornece o elemento que faltava a
Freud para arrematar sua demonstração. W. Robertson Smith (1846-1894) propunha a hipótese
de que as sociedades semíticas tivessem sido originalmente compostas por clãs matrilineares,
organizados em torno da devoção a um animal sagrado. O processo de afiliação ao totem
..
10 The Descent o[ rruzn. 1871. t. 2, p. 362. Apud Ricoeur, 1965, p. 204.

12 A.B.P.2/82
ter-se-ia cristalizado em torno do sacrifício desse animal, devorado por toda a comunidade,
assim unida por laços de sangue. 11
Ao avaliar a contribuição de Robertson Smith, Evans-Pritchard (1978) pondera que ja-

.- mais antropólogo algum pôde observar algo parecido na realidade, e que tampouco os historia-
dores encontraram descrição de cerimônia semelhante. Concluí tratar-se de pura especulação
sobre época desconhecida.
Freud concorda com o caráter arriscado da hipótese de Robertson Smith, "mas soube
contudo dar-lhe um alto grau de verossimilhança" (1973, p. 1.832). Seis páginas inteiras de
Totem e tabu são dedicadas à descrição do festim totêmico segundo Smith. Por mais discutida
que fosse a sua tese, até mesmo pelos contemporâneos, vinha encaixar-se nos supostos de Freud,
bem demais para ser rejeitada: "As objeções propostas por alguns autores (Marillier, Hubert,
Mauss e outros) contra esta teoria do sacrifício não me são desconhecidas, mas não modificam
em nada minha atitude em relação às idéias de Robertson Smith" (1973, p. 1.837, nota 1.251).
Observa-se que entre os opositores estão Hubert e Mauss, autores de um ensaio, já publica-
do na época de Freud, sobre a Natureza e função do sacrifício. Esses autores representam a
segunda geração dos antropólogos culturais, que já exercem uma reflexão crítica sobre os escri-
tores do século precedente, valorizam o trabalho de campo (embora sem praticá-lo, muitas
vezes), e sobretudo condenam as interpretações psicologizantes. 12
A escolha de Freud é portanto significativa. As teses evolucionistas e especulativas sedu-
zem-no, e pudemos observar ao longo deste ensaio o quanto ele se identifica com a ideologia da
segunda metade do século XIX. Ele mesmo confessa que "a personalidade do autor afirma-se na
seleção dos materiais e nas opiniões que estes lhe sugerem" (1973, p. 1.795, nota 1.149). Nesse
ponto, não parece haver dúvida de que Freud, apesar de ter aberto o nosso século de maneira
_ revolucionária com a publicação da Interpretação de sonhos), permanece, intrinsecamente, um
homem do século XIX. Compartilha da vocação universalista da burguesia ocidental que domina
o mundo pela técnica e tudo mede pelo seu próprio sistema. Encarna também suas contradi-
ções. É o puritano que elabora a teoria sexual das neuroses, o evolucionista que insinua uma
saudade do mundo primitivo, "puro desejo", e que se diverte em apontar semelhanças entre
certos comportamentos contemporâneos e o pensamento mágico arcaico.
Ao mesmo tempo, contudo, rompe com o otimismo positivista. Totem tabu copstrói e
um mito trágico. Mais de 20 autores são citados, triturados, opostos e sintetizados para, no fmal
do livro, afirmar-se O gênio do único Freud, criador de mitos. ''Por esse novo mito trágico,
interpreta toda história (da humanidade) como herdeira do crime" (Ricoeur, 1965, p. 207).
As demais obras antropológicas de· Freud vão retomar e desenvolver esse pessimismo.
Toda a história do homem resume-se na luta sempre recomeçada contra a maldade do mundo. A
natureza é má, afirma em O Futuro de uma ilusão. "A principal missão da civilização, sua raison
d'être real, é nos defender contra a natureza" (1973, p. 2.967). Mas a civilização, tO'da ela, é fi:
lha do parricidio. A natureza permanece indomada,. e cada homem deve por sua vez reconstituir
o processo civilizatório, sob pena de cair na neurose ou na perversão, pois, "entre os desejos
instintuaisencontram-seo incesto, o canibalismo e a ânsia de matar" (1973: p. 2.964). A nature-

... 11 Essa interpretação totêmica do sacQfício e da comunhão foi considerada ousada demais pelos teólogos
contemporâneos, que levaram Robertson Smith aos tribunais. Sua brilhante defesa no processo parece ter
contribuído bastante para a difusão de suas idéias.
12 Nesse particular, Mauss (1968, v. 2) distingue-se pela violenta crítica da Volkerp'ychologie de Wundt.

Fonte' da obra de Freud 13


za é má no homem também, e a salvação está na repressão, já que somente a minoria consegue
alcançar a sublimação. 1 3
Apesar do seu título depressivo, Mal-estar na civilização é um pouco menos pessimista do
que o ensaio precedente. Freud afirma novamente a maldade intrínseca do homem - "besta
selvagem" (1973, p. 3.046), mas consegue, mediante o retorno a Totem e tabu, introduzir um _
e
novo elemento na dialética do desejo e do mundo. o sentimento de culpa "o mais importante
problema no desenvolvimento da civilização" (ibid p. 3.060), anterior ao superego, e até mesmo
à consciência (ibid p.3.062). Oriundo diretamente do parricídio mítico, é o sentimento de
culpa que permite ao homem assegurar o equilíbrio entre o desejo (Eros) e a necessidade
(Anankê). Se a história é a ftlha do crime, a pOSSibilidade de convivência entre os homens é filha
da culpa.
Mal-estar na civilização só apresenta referências psicanalíticas. Os antropólogos não são
mais citados, e Totem e tabu afirma-se como a grande obra da qual saiu o mito unificador, que
apresenta cada vez mais semelhanças com o mito cristão do pecado original. A junção com o
modelo judeu (se não cristão) será operada eom Moisés e o monotefsmo, em que o parricídio
será finalmente incorporado como o mito fundador do pensamento judaico e dele próprio,
Sigmund Freud.
A análise que tentamos levar a cabo das fontes da obra essencial, acaba levando-nos à
seguinte conclusão: além do Zeitgeist, da ideologia própria da segunda metade do século XIX,
do folclore evolucionista, as fontes reais de Totem e tabu, e de toda a obra antropológica de
Freud, n[o residem na leitura dos tratados ingleses e alemães. Bem mais relevantes, e sem dúvida
mais verdadeiras, são as fontes implícitas: a angústia de Freud, Seu mal-estar no mundo, seu
talento e seu gênio.

Summary -
Discusses the bibliographical references in Freud's anthropological works, especia,lly in Totem
and taboo. A systematic analysis of quotations allpws to elicite how Freud depends on contem-
porary ideology, i.e., evolutionism. However, Freud's uses of anthropological data are very
personal, as he creates more than interprets. The author concludes that freudian antliropo-
logical works do not show any validity in regard to modem anthropology, but they present
important psychological value in the aspect in wich they express a great tragic myth.

Referências bibliográf,icas

Chasseguet-Smirgel, J. Freud mis a nu par ses disciples mêmes. Revue Française de Psychanalyse, Paris,
39 (1-2): 147-92, 1975.
Evans-Pritchard, E. E. Antropologia social da religião. Rio de Janeiro, Campos, 1978.
Frazer, J. G. La Rama dorada: magia y religión. MéXico, Fondo de Cultura Económica, 1969.
Freud, S. Obras completas. Madrid, Biblioteca Nueva, 1973. 3 v.

13 "O domínio da massa por uma minoria continuará mostrando-se tão imprescindível quanto a imposição
..
coercitiva do trabalho cultural, pois as massas são grosseiras e ignorantes, e não admitem de bom grado a
renúncia ao instinto" (1973, p. 2.963).

14 A.B.P.2/82
Jones, E. Vida y obra de Sigmund Freud. Buenos Aires, Nova, 1960.
Kardiner, A. & Preble, E. lntroduction à l'ethnologie. Paris, Gallimard, 1966.

-
Kestemberg, E. & Lebovici, S. Rétlexions sur le devenir de la psychanalyse. Revue Française de Psychanalyse,
Paris, 39 (1-2): 27-58, 1975.
Lévi-Strauss, C. Totemismo hoje. Petrópolis, Vozes, 1975.
Lowie, R. Histoire de l'ethnologie clllssique. Paris, Payot, 1971.
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Mauss, M. Oeuvres. Paris, Minuit, 1968. 3 v.
Ricoeur, P. De l'lnterprétation - essai sur Freud. Paris, Le Seuil, 1965.

NOTA

A Redação informa que o Prof. Athayde Ribeiro da Silva é o autor da

- resenha do livro Psicoterapía dinámica en la delincuencia juvenil, de


Manuel Sanchez Chamoro, publicada no n. o 1/82 desta revista.

Fontes da obra de Freud 15

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