Você está na página 1de 522

FLÁVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS - DOLORES GALINDO

or
PEDRO PAULO GASTALHO DE BICALHO
LEANDRO PASSARINHO REIS JÚNIOR

V
PAULO DE TARSO RIBEIRO DE OLIVEIRA

aut
JOSÉ DE ARIMATÉIA RODRIGUES REIS - VÁLBER LUIZ FARIAS SAMPAIO
MICHELLE RIBEIRO CORRÊA - MÁRCIA ROBERTA DE OLIVEIRA CARDOSO

CR Organizadores

do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
ra
i
rev
to

SUBJETIVIDADES
ara
ver di

E DEMOCRACIAS
op

escritas transdisciplinares
E

Flávia Lemos - 21982.indd 1 28/02/2020 13:12:43


Flávia Lemos - 21982.indd 2
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:43
Flávia Cristina Silveira Lemos
Dolores Galindo
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Leandro Passarinho Reis Júnior

or
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
José de Arimatéia Rodrigues Reis

V
Válber Luiz Farias Sampaio

aut
Michelle Ribeiro Corrêa
Márcia Roberta de Oliveira Cardoso

CR (Organizadores)

do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
ra
i
SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS:
rev

escritas transdisciplinares
to
ara

Coleção Transversalidade e Criação – Ética, Estética e


Política. Volume 9
ver di
op
E

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2019

Flávia Lemos - 21982.indd 3 28/02/2020 13:12:43


Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
Revisão: Os Autores

or
V
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE

aut
Su941

CR
Subjetividade e democracias: escritas transdisciplinares / Flávia Cristina Silveira Lemos,
Dolores Galindo, Pedro Paulo G. de Bicalho, Leandro Passarinho Reis Júnior, Paulo de Tarso R.

do
de Oliveira, José de Arimatéia R. Reis, Valber Luiz F. Sampaio, Michele R. Corrêa, Marcia Roberta
de Oliveira Cardoso (organizadores) – Curitiba : CRV, 2019.
522 p. (Coleção: Transversalidade e Criação - Ética, Estética e Política. v. 9)

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Bibliografia
são
ISBN COLEÇÃO 978-85-444-1750-8
ISBN VOLUME 978-85-444-4048-3
ra
DOI 10.24824/978854444048.3
i
1. Psicologia 2. História 3. Filosofia e educação I. Lemos, Flávia Cristina S. org. II. Galindo,
rev

Dolores. org. III. Bicalho, Pedro Paulo Gastalho de. org. IV. Oliveira, Paulo de Tarso R. de org.
V. Reis, José de Arimatéia R. org. VI. Sampaio, Válber Luiz F. org. VII. Correa, Michele R. org.
to

VIII. Reis Junior, Leandro P. org. IX. Cardoso, Marcia Roberta de Oliveira. org. X. Título XI.
Transversalidade e Criação - Ética, Estética e Política. n. 9.
ara

CDU 15 CDD 150


Índice para catálogo sistemático
ver di

1. Psicologia 150
op

ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL


EM FORMATO DIGITAL.
E

CONHEÇA E BAIXE NOSSO APLICATIVO!


2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br

Flávia Lemos - 21982.indd 4 28/02/2020 13:12:43


Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Alexsandro Eleotério Pereira de Souza (UEL)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Luciene Alcinda de Medeiros (PUC-RJ)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Maria Regina de Avila Moreira (UFRN)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Patrícia Krieger Grossi (PUC-RS)

or
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Regina Sueli de Sousa (UFG)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Solange Conceição Albuquerque

V
Carmen Tereza Velanga (UNIR) de Cristo (UNIFESSPA)

aut
Celso Conti (UFSCar) Thaísa Teixeira Closs (PUC-RS)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Vinícius Ferreira Baptista (UFRRJ)
Três de Febrero – Argentina)

CR
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB)

do
Élsio José Corá (UFFS)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR)
Gloria Fariñas León (Universidade
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são de La Havana – Cuba)


Guillermo Arias Beatón (Universidade
de La Havana – Cuba)
ra
Helmuth Krüger (UCP)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
i
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
rev

Josania Portela (UFPI)


Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
to

Lourdes Helena da Silva (UFV)


Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
ara

Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)


Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
ver di

Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)


Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
op

Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)


Simone Rodrigues Pinto (UNB)
E

Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)


Sydione Santos (UEPG)

Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)


Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.

Flávia Lemos - 21982.indd 5 28/02/2020 13:12:43


Flávia Lemos - 21982.indd 6
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:43
or
V
aut
CR
do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
ra
i
rev
to
ara
ver di
op
E

A todos e todas que atuam em políticas públicas,


especialmente, psicólogas e psicólogos.

Flávia Lemos - 21982.indd 7 28/02/2020 13:12:43


Flávia Lemos - 21982.indd 8
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:43
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos e todas que participaram desta coletânea e contri-
buíram para divulgação e produção de saberes, na universidade e em outras

or
políticas de trabalho. O cuidado pode ser a síntese desta coletânea que reúne

V
inúmeras universidades e pesquisadores.

aut
CR
do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
ra
i
rev
to
ara
ver di
op
E

Flávia Lemos - 21982.indd 9 28/02/2020 13:12:43


Flávia Lemos - 21982.indd 10
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:43
or
V
aut
CR
do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
ra
i
rev
to
ara
ver di
op
E

Das Utopias

Se as coisas são inatingíveis… ora!


Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

Mário Quintana

Flávia Lemos - 21982.indd 11 28/02/2020 13:12:43


Flávia Lemos - 21982.indd 12
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:43
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO������������������������������������������������������������������������������������������ 17

or
REPENSANDO OS RACISMOS E A PSICOLOGIA NO BRASIL:
considerações sobre os efeitos da lógica colonial������������������������������������������ 23

V
Juan Telles

aut
Maria Helena Zamora
Camila Câmara

CR
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA, RACIONALIDADES BIO-
NECROPOLÍTICO-ECONÔMICAS E PROCESSOS

do
DE SUBJETIVAÇÃO�������������������������������������������������������������������������������������� 43
Micael Jayme Casarin Castagna
Roberta Brasilino Barbosa
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: experiências formativas
do Vieses-UFC������������������������������������������������������������������������������������������������ 61
ra
Clara Oliveira Barreto Cavalcante
João Paulo Pereira Barros
i
Ingrid Sampaio de Sousa
rev

Larissa Ferreira Nunes


Ivne Alencar Farias
to

Vanessa Amarante de Souza

EL PROYECTO DE CIUDAD CREATIVA Y EL ENTORNO SOCIAL


ara

DEL PARQUE MORELOS DE GUADALAJARA������������������������������������������ 77


Bernardo Jiménez-Domínguez
ver di

TENSÕES NO COTIDIANO DO BAIXO SÃO FRANCISCO: indicações


op

de análise da vida ribeirinha através do dispêndio����������������������������������������� 89


Beatriz Vilar Lessa
E

Marcelo de Almeida Ferreri


O TEMPO, A JUVENTUDE E O PRECÁRIO – REFLEXÕES SOBRE


AS (IM)POSSIBILIDADES DE UMA VIDA LIVRE, ÉTICA E BELA���������� 101
Iolete Ribeiro da Silva
Enio de Souza Tavares

TENDÊNCIAS PARA A ADESÃO AO AUTORITARISMO: um olhar


sobre a personalidade����������������������������������������������������������������������������������� 117
Louine Costa Lima Cruvinel
Cristiane Souza Borzuk
Andressa Cabral Domingues

Flávia Lemos - 21982.indd 13 28/02/2020 13:12:44


AUTORITARISMO E GUERRA ÀS DROGAS NO BRASIL���������������������� 127
José Araújo de Brito Neto
Flávia Cristina Silveira Lemos
Luanna Tomaz de Souza

or
TRAMAS DE UMA REDE: processo de desmonte dos serviços da rede
de atenção às pessoas que fazem uso de drogas���������������������������������������� 147

V
Morgana Moura

aut
Dolores Galindo
Ricardo Pimentel Méllo
Tatiana Bichara

CR
MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE: repensando a

do
atuação em psicologia escolar���������������������������������������������������������������������� 165
Vânia Aparecida Calado
Marilene Proença Rebello de Souza

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


PROCESSOS DE MEDICALIZAÇÃO E AS LACUNAS DA
são
EFETIVAÇÃO DA EQUIDADE NO SUS: alguns apontamentos���������������� 183
Flávia Cristina Silveira Lemos
ra
Dolores Galindo
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
i
Geise do Socorro Lima Gomes
rev

Renata Vilela Rodrigues

CURRÍCULO, FOUCAULT E A MEDICALIZAÇÃO DAS


to

SUBJETIVIDADES: resistências e campo de tensão���������������������������������� 199


Geise do Socorro Lima Gomes
ara

Flávia Cristina Silveira Lemos


Ataualpa Maciel Sampaio
ver di

POLÍTICAS PÚBLICAS E SAÚDE MENTAL: processo de trabalho no


op

cuidado psicossocial à crise�������������������������������������������������������������������������� 211


Herbert Tadeu Pereira de Matos Junior
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
E

Breno Ferreira Pena


O ESVAZIAMENTO DA FUNÇÃO DOCENTE NOS PROJETOS DE


CORREÇÃO DE FLUXO ESCOLAR���������������������������������������������������������� 231
Marli Lucia Tonatto Zibetti
Élida Furtado do Nascimento
Patrícia Guedes Nogueira

GÊNERO, DIREITOS HUMANOS E FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA:


há possibilidades de diálogo em tempos precários?������������������������������������� 251
Eliz Marine Wiggers

Flávia Lemos - 21982.indd 14 28/02/2020 13:12:44


PSICOLOGIA CLÍNICA, POLÍTICAS PÚBLICAS E VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER – UM DIÁLOGO A PARTIR DO
PLANTÃO PSICOLÓGICO������������������������������������������������������������������������� 263
Adriana Alcântara dos Reis
Emanuel Meireles Vieira

or
PERCEPÇÃO DE PROFISSIONAIS DA ATENÇÃO BÁSICA EM

V
SAÚDE DE UMA METRÓPOLE DA AMAZÔNIA BRASILEIRA SOBRE

aut
VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES�������������������������� 279
Milene Maria Xavier Veloso

CR
Celina Maria Colino Magalhães
Isabel Rosa Cabral

do
AS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DE
JURUTI (PA) A PARTIR DA IMPLANTAÇÃO DO PROJETO ALCOA������ 301
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Marilene Maria Aquino Castro de Barros


são
Genylton Odilon Rêgo da Rocha
ra
“A CULPA DEVE SER DO SOL” – BIOPOLÍTICA DA EXCLUSÃO
DA JUVENTUDE E ESVAZIAMENTO ESCOLAR EM BELÉM-PA
i
(2000-2017)�������������������������������������������������������������������������������������������������� 319
rev

Carlos Jorge Paixão


Letícia Carneiro da Conceição
to

PSICOLOGIA E POLÍTICAS EDUCACIONAIS EM DISSERTAÇÕES


ara

E TESES NO BRASIL: uma revisão sistemática����������������������������������������� 335


Leilanir de Sousa Carvalho
Fauston Negreiros
ver di

CONTROVÉRSIAS HISTORIOGRÁFICAS EM TORNO DO


op

INSTITUTO DAS ELEIÇÕES DIRETAS NAS ESCOLAS������������������������� 355


Glaybe Antônio Sousa Pimentel
E

Luiz Miguel Galvão Queiroz


Paulo Sérgio de Almeida Corrêa

AS INTERFACES ENTRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O CAMPO


DA SAÚDE DO TRABALHADOR: ressonâncias no presente�������������������� 371
Anaclan Pereira Lopes da Silva
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Laura Soares Martins Nogueira
Ana Carolina Secco de Andrade Mélou

Flávia Lemos - 21982.indd 15 28/02/2020 13:12:44


ATENÇÃO À SAÚDE DO IDOSO (A) INSTITUCIONALIZADO: perdas,
ganhos e necessidades ocupacionais����������������������������������������������������������� 389
Mara Daniele de Sousa Sarmento
Karla Maria Siqueira Coelho
Airle Miranda de Souza

or
Victor Augusto Cavaleiro Corrêa

V
CARACTERÍSTICAS DEMOGRÁFICAS DE FAMÍLIAS POBRES DE

aut
UMA METRÓPOLE DA AMAZÔNIA����������������������������������������������������������� 409
Thamyris Maués dos Santos
Edson Marcos Leal Soares Ramos
Fernando Augusto Ramos Pontes
Simone Souza da Costa Silva

CR
do
RELAÇÕES DE GÊNERO E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL:
lutas feministas em debate���������������������������������������������������������������������������� 428
Rafaele Habib Souza Aquime

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Fernanda Teixeira de Barros Neta
Maria Lúcia Chaves Lima
são
ra
SEM MUROS E SEM BARREIRAS NA AMAZÔNIA: programa asas da
i
florestania infantil������������������������������������������������������������������������������������������ 441
rev

Kelly Cristina Costa Albuquerque


Maria Ivonete Barbosa Tamboril
to

A REVOLUÇÃO CABANA A PARTIR DOS CONCEITOS DA


ANÁLISE INSTITUCIONAL������������������������������������������������������������������������� 465
ara

Evelyn Tarcilda Almeida Ferreira


Lilian Lameira Silva
ver di

Luciano Imar Palheta Trindade


Merediane Barreto Gonçalves
Rafael Ventimiglia dos Santos
op

Yana Wanzeller Granhen


E

A LEI 10.639/03 E SEUS DESDOBRAMENTOS SOBRE A CULTURA E


IDEOLOGIA NO QUILOMBO DE NOVA JUTAI BREU BRANCO-PA��������� 481

Oberdan da Silva Medeiros

SOBRE OS AUTORES�������������������������������������������������������������������������������� 499

Flávia Lemos - 21982.indd 16 28/02/2020 13:12:44


APRESENTAÇÃO
Este livro é uma coletânea internacional e conta com a participação de
textos de pesquisadores e pesquisadores de muitas universidades e programas

or
de pós-graduação. Os capítulos trazem resultados de estudos consistentes,

V
fruto de trabalhos rigorosos e críticos, materializados nestas páginas de forma

aut
brilhante pelos autores e pelas autoras, cujos textos deram vida a este livro.
Neste livro, é possível identificar a participação das seguintes universi-
dades: UFPI, UFPA, UFC, UFG, PUC-SP, UFMT, UFRGS, UFAM, UNIR,

CR
PUC-RJ, UFF, UFS, UFMA, Escola Bahianas de Saúde Pública, UNAMA,
UNINASSAU, UNIFAMAZ, Fundacentro, IAEN-Equador e da Universidad

do
de Guadalajara-México.
O capítulo um, intitulado: “Repensando os racismos e a Psicologia no
Brasil: considerações sobre os efeitos da lógica colonial”, escrito por Juan
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
Telles, Maria Helena Zamora e Camila Câmara propõe pensar o racismo
estrutural presente na sociedade brasileira e como ele produz subjetividades
ra
e atravessa as instituições, materializando efeitos coloniais ainda no presente.
O capítulo dois, cujo título é: “Políticas públicas de segurança, racionali-
i
dades bio-necropolítico-econômicas e processos de subjetivação”, cuja autoria
rev

é de Micael Jayme Casarin Castagna, Roberta Brasilino Barbosa e Pedro Paulo


Gastalho de Bicalho visa interrogar as práticas securitárias da atualidade, em
to

uma sociedade de governamentalidade neoliberal por meio de uma refinada


análise, ancorada nos conceitos de necropolítica, biopolítica e subjetivação.
ara

O capítulo três, intitulado: “Psicologia e Políticas Públicas – experiências


ver di

formativas do Vieses-UFC”, escrito por Clara Oliveira Barreto Cavalcante,


João Paulo Pereira Barros, Ingrid Sampaio de Sousa, Larissa Ferreira Nunes,
op

Ivne Alencar Farias e Vanessa Amarante de Souza aborda um relato de vivên-


cia do grupo de pesquisa, ensino e extensão Vieses, na Universidade Federal
E

do Ceará e a importância desta prática formativa na área de Psicologia quanto


ao campo das Políticas Públicas.

O capítulo quatro, cujo título é: “El projecto del ciudad creativa y el


entorno social del parque Morelos de Guadajara” aborda uma perspectiva
transdisciplinar da cidade, sobretudo com um olhar histórico-geográfico e
das ciências sociais face à dinâmica das relações sociais no espaço e diante
das disputas na economia política atual.
O capítulo cinco, intitulado: “Tensões no cotidiano do baixo São Fran-
cisco – indicações de análise da vida ribeirinha através do dispêndio” de
autoria de Beatriz Vilar Lessa e Marcelo de Almeida Ferreri ressalta que

Flávia Lemos - 21982.indd 17 28/02/2020 13:12:44


18

os modos de vida ribeirinho têm se materializado por meio das práticas de


resistência em meio às situações de violações de direitos vividas.
O capítulo seis, cujo título é: “O tempo, a juventude e o precário –
reflexões sobre as (im)possibilidades de uma vida livre, ética e bela”, escrito
por Iolete Ribeiro da Silva e Enio de Souza Tavares apresenta resultados de
pesquisa com destaca para a política voltada à juventude, no presente e os

or
efeitos da mesma.
O capítulo sete, intitulado de: “Tendências para a adesão ao autorita-

od V
rismo: um olha sobre a personalidade”, cuja a autoria é de Louine Costa Lima

aut
Cruvinel, Cristiane Souza Borzuk e Andressa Cabral Domingues aborda, a
partir da Teoria Crítica em Adorno uma problematização da produção da
subjetividade autoritária.
R
O capítulo oito, cujo título é: “Autoritarismo e guerra às drogas no Bra-

o
sil”, escrito por José Araújo de Brito Neto, Flávia Cristina Silveira Lemos
aC
e Luanna Tomaz de Souza assinala os efeitos de uma política denominada

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de combate às drogas, à qual produz extermínio de grupos vulneráveis, em
especial, de jovens negros pobres de baixa escolaridade. O texto também
aponta os mecanismos de seletividade penal em jogo na chamada guerra às
visã
drogas e como operam por meio das instituições.
O capítulo nono, intitulado: “Tramas de uma rede – processo de desmonte
dos serviços da rede de atenção às pessoas que fazem uso de drogas”, cuja
itor

autoria é de Morgana Moura, Dolores Galindo, Ricardo Pimentel Mello e


a re

Tatiana Bichara apresenta uma análise refinada e atenta, crítica e materialista


da construção complexa de um processo de precarização das políticas públicas
de desestruturação do Sistema Único de Saúde, sobretudo, de uma política
nacional de redução de danos no atendimento às pessoas usuárias de drogas.
par

O capítulo dez, cujo título é: “Medicalização da educação e da sociedade


– repensando a atuação em Psicologia escolar”, escrito por Vânia Aparecida
Ed

Calado e Marilene Proença Rebello de Souza salienta importantes resultados


de pesquisa sobre as práticas de patologização e medicalização dos processos
de escolarização, considerando especificamente as práticas da Psicologia
ão

Escolar e Educacional.
O capítulo onze, intitulado de: “Processos de medicalização e as lacunas
s

de efetivação da equidade no SUS – alguns apontamentos”, cuja autoria é de


Flávia Cristina Silveira Lemos, Dolores Galindo, Paulo de Tarso Ribeiro de
ver

Oliveira, Geise do Socorro Lima Gomes e Renata Vilela Rodrigues destaca


por meio de um ensaio o campo tenso de execução do princípio de equidade
no Sistema Único de Saúde (SUS), explicitando as dificuldades e resistências
a um trabalho de singularização e cuidado baseado na integralidade do SUS.

Flávia Lemos - 21982.indd 18 28/02/2020 13:12:44


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 19

O capítulo doze, cujo título é: “Currículo, Foucault e a medicalização


das subjetividades – resistências e campos de tensão”, escrito por Geise do
Socorro Lima Gomes, Flávia Cristina Silveira Lemos e Ataualpa Maciel
Sampaio ressalta, a partir de resultados de pesquisa, os atravessamentos de
forças medicalizantes das existências face à formação por meio do currículo
no ensino superior.

or
O capítulo dez, intitulado: “Políticas públicas de saúde mental – processo
de trabalho no cuidado psicossocial à saúde”, Herbert Tadeu Pereira de Matos

od V
Júnior, Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira e Breno Ferreira Pena aborda a

aut
relevância da atenção em saúde mental de cunho psicossocial, a partir dos
resultados de uma pesquisa de mestrado em Psicologia.

R
O capítulo onze, cujo título é: “O esvaziamento da função docente nos
projetos de correção de fluxo escolar”, cujos autores são Marli Lucia Tonatto

o
Zibetti, Élida Furtado do Nascimento e Patrícia Guedes Nogueira apresenta
aC
uma descrição e cuidadosa analítica de uma empiria relativa à precarização
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

do trabalho docente na atuação escolar diante das práticas de correção dos


fluxos de ensino.
O capítulo doze, intitulado: “Gênero, direitos humanos e formação em
visã
Psicologia – há possibilidades diálogo em tempos precários?” de autoria de
Eliz Marine Wiggers destaca a importância do trabalho com a perspectiva
de gênero na formação em direitos humanos para o curso de Psicologia,
itor

sobretudo, na atualidade, ao ganhar extrema relevância diante dos alarmantes


a re

indicadores de violações dos direitos e do aumento expressivo da violência


de gênero e feminicídios.
O capítulo treze, cujo título: “Psicologia clínica, políticas públicas e
violência contra a mulher – um diálogo a partir do plantão psicológico”,
par

escrito por Adriana Alcântara dos Reis e Emanuel Meireles Vieira aborda os
fazeres cotidianos da Psicologia na atenção à saúde por meio do dispositivo
Ed

plantão psicológico, sobretudo, no que tange ao cuidado de mulheres, vítimas


de violência.
O capítulo quatorze, intitulado: “Percepção de profissionais da atenção
ão

básica em saúde de uma metrópole da Amazônia brasileira sobre violência


contra crianças e adolescentes, escrita Milene Maria Xavier Veloso, Celina
s

Maria Colino Magalhães e Isabel Rosa Cabral delineia uma instigante proble-
matização das práticas de profissionais de saúde, na atenção básica focadas
ver

no cuidado de crianças e adolescentes vítimas de violência, em estudo por-


menorizado e denso em uma cidade grande, no contexto amazônico.
O capítulo quinze, cujo título: “As ações de enfrentamento da exploração
sexual contra crianças e adolescentes no município de Juriti (PA) a partir da

Flávia Lemos - 21982.indd 19 28/02/2020 13:12:44


20

implantação da ALCOA, cujos autores são: Marilene Maria Castro de Barros


e Genylton Odilon Rêgo da Rocha traz uma intrigante e consistente interroga-
ção das ações de enfrentamento à exploração sexual, em uma pesquisa sobre
crianças e adolescentes, no Pará, após a implantação de uma mineradora.
O capítulo dezesseis, intitulado: “A culpa deve ser do sol – biopolítica
da exclusão da juventude e esvaziamento escolar em Belém-PA (2000-2017),

or
escrito por Carlos Jorge Paixão e Letícia Carneiro da Conceição salienta como
há processos de exclusão, desfiliação e bloqueio escolar articulados à gestão

od V
da vida de jovens, na capital paraense.

aut
O capítulo dezoito, cujo título é: “Psicologia e políticas educacionais
em dissertações e teses no Brasil – uma revisão sistemática”, cuja autoria é

R
de Leilanir Souza Carvalho e Fausto Negreiros aborda a literatura produzida
na pesquisa stricto sensu em educação a respeito das tramas entre Psicologia

o
e políticas públicas no campo da escolarização.
aC
O capítulo dezenove, intitulado: “Controvérsias historiográficas em torno

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do instituto das eleições diretas nas escolas”, escrito por: Glaybe Antônio
Sousa Pimentel, Luiz Miguel Galvão Queiroz, Paulo Sérgio de Almeida Corrêa
apresenta uma empiria documental, analisada detalhadamente com profícuo
visã
estudo histórico a respeito da eleição para gestão escolar, na educação básica.
O capítulo vinte, cujo título é: “As interfaces entre as políticas públicas
e o campo da saúde do trabalhador – ressonâncias no presente”, de autoria de
itor

Anaclan Pereira Lopes da Silva, Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira, Laura


a re

Soares Martins Nogueira e Ana Carolina Secco de Andrade Mélou ressalta


a construção da política de saúde do trabalhador no presente, sobretudo, nas
conversações e diálogos intersetoriais da política.
O capítulo vinte e um, intitulado: “Atenção à saúde do idoso institucio-
par

nalizado – perdas, ganhos e necessidades ocupacionais”, escrito por Mara


Daniele de Sousa Sarmento, Karla Maria Siqueira Coelho, Airle Miranda de
Ed

Souza e Victor Augusto Cavaleiro Corrêa ressalta a preocupação com a saúde


do idoso em condições de institucionalização. O trabalho é fruto de pesquisa
em saúde mental e na atenção preventiva, buscando interrogar quais são os
ão

limites e desafios ocupacionais neste campo tenso de intervenção.


O capítulo vinte e dois, cujo título é: “Características demográficas de
s

famílias pobres de uma metrópole na Amazônia”, de autoria de Thamyris


Mauês dos Santos, Edson Marcos Leal Soares Ramos, Fernando Augusto
ver

Ramos Pontes e Simone Souza da Costa Silva delineia um relevante e atual


estudo de pós-graduação a respeito das famílias amazônidas, em uma grande
cidade, delimitando as características da mesma no que tange à dimensão
demográfica e os seus impactos.

Flávia Lemos - 21982.indd 20 28/02/2020 13:12:45


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 21

O capítulo vinte e três, intitulado de: “Relações de gênero e as lutas de


assistência social – lutas feministas em debate”, escrito por Rafaele Habib
Souza Aquime e Fernanda Teixeira Barros Neta aponta como as questões de
gênero são importantes no trabalho da política nacional de assistência social,
em especial, a partir dos ganhos obtidos pelas lutas dos diversos movimen-
tos feministas.

or
O capítulo vinte e quatro, cujo título é: “Sem muros e sem barreiras
na Amazônia – programa Asas da florestania infantil”, de autoria de Kelly

od V
Cristina Costa Albuquerque e Maria Ivonete Barbosa Tamboril aborda o coti-

aut
diano de uma política de proteção das crianças, na Amazônia, em que foram
utilizados elementos da floresta no currículo de um programa voltado para o

R
público infantil em situação de vulnerabilidade.
O capítulo vinte e cinco, intitulado: “A revolução cabana a partir dos

o
conceitos da análise institucional”, escrito por: Evelyn Tarcilda Almeida Fer-
aC
reira, Lilian Lameira Silva, Luciano Imar Palheta Trindade, Merediane Barreto
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Gonçalves, Rafael Ventimiglia dos Santos e Yana Wanzeller Grahen sinaliza


aspectos da revolução cabana, tecendo intrigante interrogação materialista por
meio dos operadores analíticos do movimento institucionalista.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 21 28/02/2020 13:12:45


Flávia Lemos - 21982.indd 22
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:45
REPENSANDO OS RACISMOS E A
PSICOLOGIA NO BRASIL: considerações
sobre os efeitos da lógica colonial

or
V
Juan Telles

aut
Maria Helena Zamora
Camila Câmara

1. Introdução
CR
do
A noção de raça, apesar de ser uma construção social sem base con-
creta (MUNANGA, 2004; MAIA; ZAMORA, 2018), ainda tem produ-
zido numerosos efeitos sobre a população negra, inclusive na produção
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
de subjetividade hegemônica. O racismo é o principal motor e catalisa-
dor das outras opressões e violências vivenciadas cotidianamente na rea-
ra
lidade brasileira (SAMPAIO, 2018; OLIVEIRA; NASCIMENTO; 2018;
NASCIMENTO, 2017; CARDOSO, 2014, SCHUCMAN, 2010; NASCI-
i
rev

MENTO, 2005; MUNANGA, 2004), de muitas maneiras ainda regida pela


lógica colonial (VEIGA, 2017; CESÁIRE, 2010; FANON, 2005).
O estudo do racismo e da ideia de raça é o foco central desta pesquisa teó-
to

rica, buscando demonstrar a permanência e os efeitos do pensamento colonial,


inclusive nas práticas psis. Compreendemos a necessidade de aprofundamento
ara

no tema, visto que a produção na área ainda é escassa (CFP, 2017). E, por
fim, apresentaremos brevemente a Psicologia Preta como uma ferramenta
ver di

possível de mudança social, política e psicológica da população negro-africana


em diáspora, para além da vigente como o “saber único” (ADICHIE, 2010).
op

Embora o impacto dos efeitos do racismo seja pouco perceptível, é


“sentido e percebido cotidianamente pela maioria da população afrodescen-
E

dente que vivencia, sente e sofre consequências psicológicas decorrentes


do racismo, que influencia, de modo desfavorável, a formação do aparelho


psíquico” (SANTOS, 2018, p. 150). Segundo a autora, reconhecer o racismo
como causador de adoecimento físico e mental é fundamental para produção
de práticas que contribuam para as reparações dos danos ocasionados, promo-
vendo saúde nos sujeitos negros e negras. Além disso, o estudo da temática
promove uma reflexão crítica sobre o silenciamento do racismo na Psicologia
e visibiliza o racismo estruturante das injustiças sociais que vivemos.
Sampaio (2018) assinala que diversos campos do conhecimento ainda
ignoram o assunto. Neste sentido, a Psicologia ainda não se integrou à luta da
população negra e muitos profissionais tampouco estão aptos para compreender

Flávia Lemos - 21982.indd 23 28/02/2020 13:12:45


24

a sofisticada capilaridade do racismo na sociedade, sua sistemática negação e


também de que maneira as subjetividades são (profundamente) impactadas.
A maioria das teorias ensinadas fornecem bases para uma atuação do
ponto de vista europeu, da episteme europeia, que sempre se reproduz, ou
seja, tende a propor uma universalização eurocêntrica do humano e exclui e/
ou desumaniza o legado cultural dos outros povos, sobretudo os povos africa-
nos, o que é ainda um padrão de dominação da colonização. Ressaltamos que

or
as formas de subjetivação da população negra foram vistas por essas teorias

od V
eurocêntricas como patológicas, perigosas, exóticas (no sentido do estranho,

aut
do bizarro) e as expressões e os comportamentos como erros e inadequações.
Santos (2018) destaca que basicamente é preciso que os profissionais

R
da Psicologia entendam que o racismo existe e afeta de forma decisiva nossa
forma de compreender o mundo. Portanto, é fundamental para o profissional

o
entender como o racismo também atravessa a sua compreensão de mundo,
assim como o racismo atravessa a subjetividade da pessoa atendida para uma
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


prática antirracista e não discriminatória. Arraes (2015) ressalta que ainda há
um grande desconhecimento por parte da categoria dos efeitos do racismo
operante enquanto vetor de sofrimento e, por conseguinte, temos a omissão (ou
visã
mesmo a expulsão) do tema do racismo das discussões psicológicas. Portanto,
enquanto produtores de saber, cabe problematizarmos, questionarmos e até
mesmo abolirmos esses pressupostos e lugares estabelecidos por esta lógica
itor

racista, que tem suas bases atualizadas nas universidades. Como insistimos,
a re

isso historicamente só tem servido para dar continuidade ao projeto coloni-


zador e estabelecer a suposta superioridade branca em relação ao povo negro.
Carone e Bento (2014) e Cardoso (2014) afirmam que os corpos bran-
cos continuam insensíveis diante deste quadro, em virtude dos privilégios e
vantagens que possuem devido a sua branquitude. Mas, como aponta Veiga
par

(2017), o processo de reparação e superação deste cenário passa pela res-


ponsabilização dos sujeitos brancos, que são direta e indiretamente benefi-
Ed

ciados pela lógica racial racista inventada e mantida por eles. No esforço de
promover uma compreensão não colonial, intelectuais e psicólogos negros
ão

inauguram nos anos 80, o que chamamos hoje de Psicologia Preta. Não se
trata de uma nova psicologia, mas partindo do referencial e da experiência
negro-africana, da proposta de possibilitar a libertação do povo negro frente à
s

hegemonia branca, promovendo um encontro com os valores africanos e saúde


ver

psíquica (MORAES; NASCIMENTO; ROSA, 2018). O estudo destas questões


é fundamental para abrimos espaços para outros saberes e criarmos outros
fundamentos teóricos. Mas é principalmente para destronarmos as teorias de
bases e origens racistas e seus ideais coloniais ainda vigentes na academia,
que ao longo da história, só produziu anomalias, patologias e deformidades.

Flávia Lemos - 21982.indd 24 28/02/2020 13:12:45


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 25

2. Dimensões históricas e conceituais da temática racial


Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) de 2014, o Brasil é um país com mais da metade da população autode-
clarada parda e preta, formando a categoria negra. Contudo os índices sociais
nos revelam que a população negra ainda está em condições muito inferiores
em relação à população branca. Vejamos o mais simples dos direitos: o direito

or
à vida. O Brasil é o país que mais mata gente no mundo, superando os países

od V
em guerra (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015; ATLAS DA VIOLÊN-

aut
CIA, 2019). Contudo, a grande maioria das vítimas tem idade e cor. O Mapa
da Violência (2016) revelou que a principal vítima da violência homicida no
Brasil é a juventude entre 15 e 29 anos. Esse dado não é novidade, pois desde

R
o primeiro mapa divulgado em 1998; a cada 23 minutos um jovem negro é
assassinado (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015).

o
Esses dados de morte matada não são estáveis. Aumentou a taxa de assas-
aC
sinato de homens e mulheres negras, com um declínio na taxa de homicídio
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de homens e mulheres brancos e a diminuição também de sua vitimização


em outras violências (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019). Os dados e as esta-
tísticas revelam que há uma linha de continuidade daquilo que Abdias do
visã
Nascimento, em seu livro, “O genocídio do negro brasileiro” (2017), escrito
em 1978, chamou de eliminação da “mancha negra”.
Ser negro em um país anti-negro como o Brasil, segundo Nascimento
itor

(2017), significa ter sua produção subjetiva forjada em processos e lógicas,


que subjugam, animalizam e exterminam essas vidas. Sobretudo, em um
a re

país marcado por um dos processos de escravização mais longos da história,


pela abolição formal tardia, pela importação de teorias europeias eugenistas
que fundaram políticas de governos, pelas políticas e lógicas de embran-
quecimento colocadas em lei, práticas e norma, criadas para embranquecer
par

a população e tão marcada pelo já mencionado mito da democracia racial


(SCHUCMAN, 2010).
Ed

A sociedade brasileira se constituiu a partir de uma hierarquia social


colorista, no qual as pessoas com fenótipos do grupo racial branco usufruem
de privilégios e vantagens em detrimento dos não brancos (CARDOSO, 2014;
ão

SCHUCMAN; MARTINS, 2017), principalmente pessoas negras. Assim, o


branco ocupa o lugar do modelo universal, do ideal, do humano, do normal, do
belo (CARONE; BENTO, 2014; CARDOSO, 2014). Portanto, aquele grupo
s

que vai definir os que são os diferentes, os que estão em falta. Configuram-
ver

se então como o grupo padrão de referência para todos e todas. Essa identi-
dade racial, marcada por privilégios e vantagens, chamamos de branquitude
(CARDOSO, 2014).
Desta forma, temos lugares sociais, espaciais, psicológicos e simbólicos
muito definidos e distanciados. Para que essa hierarquização seja reforçada e

Flávia Lemos - 21982.indd 25 28/02/2020 13:12:45


26

esses lugares permaneçam intactos, o racismo é quem opera engendrando e


estruturando essa lógica genocida, definindo quem continuará tendo o direito
de viver e quem merece morrer.
Segundo Nascimento (2005), a ideia de raça se deu por volta do século
XVI, mas sem a marca biológica. Era uma noção de raça utilizada pela fé
cristã, que separava os homens em fiéis e infiéis, sendo considerado inferior
àquele que não compartilhasse de tais ideias. E assim foi com o passar do

or
tempo, talvez como sendo a única maneira de agrupar pessoas segundo suas

od V
semelhanças e diferenças, embora os critérios tenham se modificado, chegando

aut
ao racismo de base “científica”.
Segundo Munanga (2004), podemos dizer que nos dias de hoje, as supos-
tas diferenças podem vir acompanhadas de um sentimento de desprezo pelo

R
grupo apontado como diferente do nosso. Neste sentido, percebemos que tais
concepções são manifestações bem antigas e tem a ver com a maneira que os

o
homens perceberam as suas diferenças; afinal eles sempre souberam que eram
aC
diferentes, mas no século XVIII, a cor da pele foi considerada um fator pri-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mordial e um divisor de águas entre as chamadas raças. Mas, segundo Zamora
e Maia (2018) e Schucman (2010), só no século XIX, com as teorias raciais
baseadas na biologia, começaram a explicar e a qualificar essas diferenças,
visã
introduzindo o conceito de raça. Este conceito está vinculado à crença na
transmissão de caracteres físicos próprios a cada grupo humano combinados
com atributos morais. Com status científico, a Eugenia disseminava ideias
itor

distorcidas de que cada raça tinha características próprias, seriam portadoras


a re

de uma essência; uma natureza biológica permanente. A partir do século XIX,


passou-se a acreditar que as características dos diferentes grupos humanos
eram biologicamente determinadas (NASCIMENTO, 2005).
Munanga (2004) faz referência ao racismo vigente como uma doutrina
que se apoia na ciência, a qual, além de diferenciar os humanos, os hie-
par

rarquizou, justificando assim a dominação de um sobre os outros. Segundo


Ed

Schucman (2010), a supremacia do discurso biológico das raças na ciência


consubstanciou o racismo que vai ganhando corpo, ancorado em teorias racia-
listas. Para Nascimento (2005), os estudos de Darwin têm grande influência
ão

nas novas conceituações de raça. Darwin não estudou grupos e sociedades


humanos, mas suas ideias básicas foram atreladas ao pensamento evolucionista
anterior a ele, combinadas com as questões sociais da época, sob a égide do
s

imperialismo colonial, e com o paradigma biológico dominante, produzi-


ver

ram “verdades” sobre o domínio do mais forte sobre o mais fraco, do mais
adaptado ao menos adaptado. Para a mesma autora, tais teorizações foram
incorporadas pelas outras áreas emergentes do conhecimento, como a Socio-
logia e a Antropologia. A ciência engendrava e confirmava o colonialismo e
o imperialismo dos governos.

Flávia Lemos - 21982.indd 26 28/02/2020 13:12:45


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 27

Quando indivíduos são agrupados a partir de suas semelhanças (racia-


lismo), a noção de raça opera, pois explica-se as ações e supostas tendências
dos sujeitos a partir das características que lhes são atribuídas. O racismo
também agrupa indivíduos segundo as características em comum que lhes são
atribuídas, porém, conferindo supostos valores e categorizando esses grupos
em superiores e inferiores, configurando-se como uma forma de exclusão e
marginalização de um grupo em detrimento do outro. Nascimento (2005)

or
convoca a refletir sobre a utilização do constructo raça e a contínua operação

od V
do racismo nas relações, que ganha novas feições no mundo globalizado.

aut
Embora como categoria científica, a ideia de “raça” tenha sido abolida, vale
destacar que, enquanto categoria política, ela ainda é usada pelos movimentos
negros e é a partir dela que a luta antirracista se articula (SCHUCMAN, 2010).

R
Para ela, as teorias racialistas e o racismo que se seguiu foram se combinando
perfeitamente em um mundo que buscava o “progresso”. Com a anulação

o
na noção científica de raça, a lógica subjacente continua operando. Com o
aC
capitalismo, além de ganhar novas formas, o racismo contribuiu para sua
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

manutenção, já que “justificava”, em grande medida, a exploração.


Todo esse movimento continua produzindo realidade, ou seja, as pes-
soas continuam sendo racializadas, o que passa a ser naturalizado, pois desde
visã
o nascimento nos são atribuídos significados ligados à categoria racial que
pertencemos, como se isso não fosse uma conveniente invenção humana,
em um determinado momento da história. Segundo Maia e Zamora (2018),
itor

o debate inicial sobre a temática racial surge a partir de uma problemática


a re

instaurada no campo científico: o negro como objeto da ciência. Na literatura


sobre a questão racial brasileira, comumente aparece como início dos estudos
médicos-psicológicos sobre o tema a obra de Raimundo Nina Rodrigues. Seus
trabalhos tinham como principal questão compreender o papel da população
negra, africana ou afro-brasileira na constituição da sociedade.
par

Ainda segundo as autoras, estes trabalhos nomeavam e descreviam as


Ed

“deficiências” do negro brasileiro. O que logo provocou o reconhecimento das


consequências sociais perversas que o convívio com esta raça poderia trazer.
Esses pressupostos tiveram continuidade nos estudos de Ramos e Peixoto.
ão

Suas teorias definiram o sujeito negro como portador de patologias, o que


justificou fazê-lo, então, o objeto da ciência (Schucman e Martins, 2017).
Schucman e Martins (2017) e Maia e Zamora (2018) destacam a influência
s

direta dos estudos de Nina Rodrigues e de sua escola no desenvolvimento de


ver

diversas áreas do saber, como a Psiquiatria, a Medicina Legal, a Psicanálise e


a Antropologia – disciplinas fundamentais na constituição da academia. Além
de contribuírem para a disseminação de certas temáticas ligadas ao racismo
científico e de produção de verdades que definiram hierarquias sociais, insti-
tuições, códigos legais, políticas públicas.

Flávia Lemos - 21982.indd 27 28/02/2020 13:12:46


28

Rodrigues definia a priori um padrão normativo da sociedade, no caso,


o de manutenção das hierarquias. Em seguida, ele foi substituído pelo modelo
de mestiçagem, menos pessimista e mais possível para um país obviamente
mestiço e ainda em construção. Portanto, ocorreu uma passagem do modelo
racial para um modelo cultural, no qual Arthur Ramos, partindo do seu pro-
jeto culturalista, atualiza o discurso de Nina Rodrigues. Ainda conforme os
autores, a década de 1930 e as seguintes foram caracterizadas pela difusão

or
do modelo sociocultural freyriano (SCHUCMAN; MARTINS, 2017). Neste

od V
período também houve algumas tentativas de formalização da Psicologia

aut
como disciplina independente no ensino superior. Os intelectuais também
começaram a criticar o modelo do determinismo racial postulado e a propor
novas alternativas para pensar o Brasil e suas problemáticas.

R
A nova ordem republicana de Vargas, o período denominado de Estado
Novo, é profundamente racista sem, contudo, promover perseguições abertas

o
contra os negros. Contudo, nesta época em especial, a miscigenação, por pro-
aC
mover o branqueamento, é vista como sendo uma solução bastante positiva. A

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


discussão da identidade racial do povo de “nacionalidade morena”, atrelada
ao futuro da nação, são temas recorrentes. Na década de 50, surgem estudos
se contrapondo a ideia de democracia racial, imprimindo outra forma de
visã
compreensão das relações raciais, nomeando essa problemática de racismo à
brasileira ao invés de “democracia racial”, como apontava Freyre. Esta inicia-
tiva teve a participação de Virginia Leone Bicudo, a primeira mulher a fazer
itor

psicanálise na América Latina, a primeira a redigir uma tese sobre relações


a re

raciais no Brasil e também a primeira psicanalista não médica no Brasil. Por


ser uma mulher negra, teve sua história e estudos invisibilizados.
A década de 70 é marcada por grandes efervescências políticas em busca
da resistência à ditadura iniciada em 1964. Neste contexto, a partir de Hasen-
balg, os estudos de raça e racismo mudam radicalmente, desconstruindo enfim
par

a falácia de democracia racial e apontando as desigualdades como mecanismos


Ed

articulados de produção de uma sociedade racista e discriminatória para além


das noções de estruturas e privilégios de classe. Schucman e Martins (2017)
ressaltam que, sem sustentações teóricas consistentes, o conceito biológico
ão

de raça perde forças a partir dos estudos de Hasenbalg. Assim, a categoria


raça passar a ser compreendida como constructo social, excluindo postulações
biológicas e essencialistas das populações racializadas.
s

Sendo assim, os estudos no campo da Psicologia também passam a


ver

entender a raça como categoria política, social, que diferencia, hierarquiza


e localiza os sujeitos em nossa sociedade. Esta, segundo os autores acima,
foi uma mudança importante na Psicologia, pois passa a pensar o racismo do
ponto de vista psicossocial. Assim, não culpabiliza o sujeito que vivencia as
discriminações racistas cotidianas, mas as localizam nas relações de poder

Flávia Lemos - 21982.indd 28 28/02/2020 13:12:46


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 29

entre os diferentes grupos, evidenciando ainda a força dessa categoria na


diferenciação e hierarquização social.
Na década de 80, após tais mudanças, a Psicologia é convocada a dar
respostas ao problema do racismo e, principalmente, a romper o silenciamento
e a fechar as lacunas deixadas por ela mesma no que se refere à produção,
discussão e reflexão das questões raciais, do racismo e seus efeitos. Em 1983,
a psicóloga e psicanalista Neusa Santos Souza, mulher negra, professora e

or
escritora, com seu livro “Tornar-se negro: As Vicissitudes da Identidade do

od V
Negro Brasileiro em Ascensão social”, analisa a ideologia do embranqueci-

aut
mento e o racismo na construção das subjetividades dos negros. O racismo
passa a ser compreendido como uma violência não só na subjetividade, mas
também no corpo. No final desta década, surgem também instituições pionei-

R
ras, como o CEERT e o Instituto AMMA Psique e Negritude, que nos últimos
anos têm sido grandes interlocutores entre o movimento social e a categoria,

o
que trabalham para além da via política na desmantelação do racismo e na
aC
desconstrução de seus efeitos.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ainda que passadas algumas décadas, em 2002 é lançado o livro “Psi-


cologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no
Brasil”, organizado pelas psicólogas Iray Carone e Maria Aparecida Silva
visã
Bento. Neste livro, o conceito de branquitude é trazido para compreensão das
desigualdades raciais e demonstra os privilégios simbólicos e materiais obtidos
pelas pessoas brancas na sociedade brasileira estruturada pelo racismo. A partir
itor

de então, os sistemas conselhos são pressionados a se posicionar politicamente


a re

com a luta antirracista dando origem, em 2002, às normas de atuação para


orientar os psicólogos em relação ao preconceito e a discriminação racial,
que em seguida se tornou na Resolução nº 018/2002. Cabe ressaltarmos que
juntamente com a participação e pressão dos movimentos negros, foi possível
todo esse reordenamento, fundamentais para a mudança, ainda que inicial, do
par

olhar da Psicologia sobre as relações raciais.


Ed

2.1 Raça e racismo à brasileira: do escravismo ao mito da


democracia racial
ão

Franz Fanon, nascido em 1925, na Ilha de Martinica, colônia francesa


desde o século XVII, povoada majoritariamente por descendentes de africa-
s

nos escravizados, foi um dos principais intelectuais e ativistas do século XX.


ver

Seus estudos versavam sobre as consequências psicológicas da colonização e


sobre o processo de descolonização, considerando os mais diferentes aspec-
tos. Inspirado nas lutas dos movimentos de libertação negra e anti-coloniais
de que fazia parte, lançou duas grandes obras, “Pele Negra, Máscaras Bran-
cas”, em 1952 – que escreveu inicialmente como tese para habilitar-se em

Flávia Lemos - 21982.indd 29 28/02/2020 13:12:46


30

Psiquiatria, mas foi recusado –, e “Os condenados da Terra” em 1961. Para


ele a superação do racismo se articula diretamente com o processo de desco-
lonização. Fanon (2008) inicia seus escritos, relatando como é ser objetificado
e desumanizado por ser negro. Descrevendo o sentimento de ser impossibi-
litado de ser no mundo, sem passar pela tutela normativa branca, que define,
regula, controla, domina o outro. Para ele, o olhar do branco aos não brancos,
sobretudo, aos negros, os “autorizou” a cometer as mais perversas atrocidades

or
ao longo de todo o processo de escravização até os dias de hoje, entretanto,

od V
de outras formas.

aut
Marimba Ani (1994), antropóloga norte americana, estudiosa dos estudos
negro-africanos e crítica da cultura e do pensamento europeu, mais conhe-

R
cida por sua obra “Yuguru”, que examina por uma perspectiva africana, a
supremacia da cultura europeia através do colonialismo e do imperialismo,

o
afirma que o pensamento europeu acredita em sua própria superioridade. Ela
traz a noção de asili para pensarmos os processos de desumanização, exter-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mínio e genocídio da população negra impetrados pelo branco colonizador.
Segundo ela, o asili é “o germe/semente de desenvolvimento de uma cultura.
É a essência cultural, o núcleo ideológico, a matriz de uma entidade cultural
visã
que deve ser identificada a fim de fazer sentido das criações coletivas de seus
membros” (p. 54).
Ani (1994) ainda afirma que o logos cultural do europeu é estruturado
itor

sobretudo na dominação dos outros povos e sua própria história denuncia isso.
a re

Por isso, todo o contato com os povos não europeus foi marcado por uma rela-
ção intensa de domínio e captura. Esses fenômenos impactavam diretamente
as subjetividades daquelas pessoas que eram submetidas a lógicas perversas
impostas pelos europeus. No Brasil, o encontro resultou no extermínio e
escravização de povos originários e africanos. Abdias do Nascimento (2017)
par

relata que com a chegada dos europeus em 1500, concomitantemente com a


exploração da nova terra, apareceu o que eles denominaram de “raça negra”,
Ed

que “fertilizaram o solo brasileiro com suas lágrimas, com seu sangue, seu
suor, seu martírio na escravidão” (p. 57). Trinta anos depois da chegada, os
ão

negros-africanos sequestrados e trazidos acorrentados, já estavam sendo usa-


dos como força de trabalho. Em apenas cinco anos, já tinha sido instaurado
e estruturado o comércio escravocrata.
s

Incontestavelmente, o sequestro, a travessia do Atlântico e as imensurá-


ver

veis violências sofridas, provocaram uma cisão psicológica, que devastaram


suas subjetividades, pois na condição de escravizados sofreram efeito de
desterro e de perda de referências tão fortes que suas identidades e consciên-
cia corporal se desintegraram, ficando, como diz Fanon (2008), na zona do
“não ser”.

Flávia Lemos - 21982.indd 30 28/02/2020 13:12:46


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 31

Porém, do início ao fim, os negro-africanos resistiram bravamente ao


regime escravocrata. Variadas foram as formas de enfrentamento e insurrei-
ções africanas espalhadas por todo o território, que permaneceram combati-
vas até as vésperas da “abolição” de 1888. Portanto destacamos que foram
as pessoas negras que sempre atuaram na luta pela liberdade de seu próprio
povo e sempre contestaram a versão hegemônica contada sobre esse período
(NASCIMENTO, 2017). Em 1888, após mais de 300 anos de martírio, muito

or
embate dos africanos livres e da massa escravizada, além da pressão política

od V
e social vinda do exterior e das organizações contrárias ao regime existentes,

aut
o Brasil – o único país das Américas que ainda escravizava – formaliza a
abolição da escravatura, com a assinatura da Lei Áurea.
Nascimento (2017) narra que nas últimas décadas de escravismo, a elite

R
nacional, atemorizada com o povo negro, começou a se organizar em outras
estratégias articuladas de controle e, novamente, de domínio desse contingente.

o
Com a importação e a adaptação de teorias eugenistas e a imigração maciça
aC
de brancos europeus como uma estratégia de branqueamento e com políticas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de embranquecimento sociocultural, constituiu-se “a sintomática que carac-


teriza a neurose cultural brasileira” (GONZALES, 1983, p. 224). E com a
“Abolição”, os negro-africanos foram jogados na rua, lutando como puderam
visã
para sobreviver, restando a eles a “lata de lixo da sociedade brasileira, pois
assim o determina a lógica da dominação” (GONZALES, 1983, p. 225), sem
nenhum tipo de apoio social.
itor

Segundo Maia e Zamora (2018) o Evolucionismo Social postulado por


a re

Herbert Spencer, a Eugenia apoiada por Francis Galton, a Teoria da Degeneres-


cência fervorosamente defendida por August Morel, a Craniologia de Cesare
Lombroso, entre outras teorias que surgiram ou dialogaram com estas, forma-
ram o pensamento social brasileiro e também foram utilizadas nas argumen-
tações de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e Oliveira Viana. Tais pensadores
par

são os “responsáveis pela produção de conhecimento do racismo científico


Ed

e produtores de práticas, políticas e discursos raciais e discriminatórios.” (p.


272). De acordo com Nascimento (2017), ao perceberem que os negros não
tinham sido eliminados, apenas clareados, começaram a disseminar, a partir
ão

das estratégias de embranquecimento, a ideia de uma convivência harmoniosa


entre as “raças”, assegurando seus privilégios e vantagens (CARDOSO, 2014;
CARONE; BENTO, 2014). Logo os grupos brancos buscaram estratégias para
s

lidar com o terror de se afirmar como nação com uma população majoritaria-
ver

mente negra e mestiça, uma vez que, os intelectuais brasileiros e europeus já


tinham sinalizado como um grande problema a mistura das raças que aqui se
efetivava (MAIA; ZAMORA, 2018).
Como no Brasil não houve segregação espacial direta ou institucionali-
zada, como nos EUA e na África do Sul, a produção do discurso de que aqui

Flávia Lemos - 21982.indd 31 28/02/2020 13:12:47


32

indígenas, negros e brancos viviam harmoniosamente começou a ganhar força


e a mestiçagem a ser positivada, ocultando assim as desigualdades raciais e
os efeitos do racismo. Segundo Gonzales (1983), a questão da mestiçagem é
fundamentada na exploração sexual da mulher negra e utilizada para negação
do racismo e para camuflar a supremacia branca. Contudo, a imagem racial
projetada é outra. A elite branca disseminou a ideia de que fomos fundados a
partir da mistura de várias raças, mascarando assim a realidade racial. Entre-

or
tanto, a história contada foi somente a dos imperiosos dominadores, porém

od V
“a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se

aut
vem perpetrando contra o afro-brasileiro” (NASCIMENTO, 2017, p. 111).
A partir desses artifícios políticos-ideológicos é que foi formulada a
ideia de “democracia racial brasileira” (GONZALES, 1983), exaltada pelos

R
intelectuais da época, principalmente por Gilberto Freyre. Esses termos sur-
giram durante o Estado Novo, período ditatorial de Getúlio Vargas. Assim,

o
a elite branca mais uma vez assegura a manutenção do privilégio branco
aC
(CARDOSO, 2014) e a submissão dos não brancos, principalmente evitando a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


utilização da raça enquanto identidade coletiva e política (SCHUCMAN, 2019;
NASCIMENTO, 2017; GONZALES, 1983) e estimulando o branqueamento.
Segundo Carone e Bento (2014), o branqueamento passa a atuar na ideologia
visã
racial dominante e a conduzir as relações sociais, impondo-se a toda popula-
ção através dos mecanismos mais sutis aos mais concretos de sua efetivação.
Por fim, a concepção do negro como inferior foi primordial para a manu-
itor

tenção do racismo estrutural e estruturante e como justificativa para a sua


a re

escravização. Ainda que o racismo não tenha ganhado forma de lei, nem
Estado, se enraizou no cotidiano, bem como as teorias raciais e continuam
produzindo efeitos na realidade, principalmente reforçando o lugar subalterno
das pessoas negras idealizado pela lógica colonial.
par

3. O pensamento colonial, a Psicologia e


Ed

o problema do racismo no Brasil

Segundo Veiga (2017), a colonização do pensamento e do inconsciente


ão

que os mais de 380 anos de escravização e colonialismo produziram foi um


dos principais motivos para a sustentação e permanência da lógica colonial nos
dias de hoje. O pensamento colonial é aquele forjado a imagem e semelhança
s

do próprio colonizador, que passa a produzir conhecimentos e “verdades”


ver

sobre as coisas. Portanto, fica identificado como bom, tudo o que é branco e
europeu. Assim, o que se assemelha a ele é valorizado, e o que não, tampouco
é reconhecido.
Segundo Césarie (2010), foi em nome de um suposto “processo de civi-
lização”, que levaria melhores condições de vida para os colonizados, que os

Flávia Lemos - 21982.indd 32 28/02/2020 13:12:47


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 33

colonizadores conseguiram todo esse domínio e justificaram toda a barbárie


perpetrada. Dado que, ninguém coloniza o outro ingenuamente, há sempre
um argumento para subjugar. Para o autor, isso é consequência das investidas
narcísicas do povo europeu, que são dogmaticamente conduzidos por seus
próprios ideais, convictos da ideia de civilização e progresso, difundindo o
“ethos” da colonização, que perpassa as práticas cotidianas até a produção
de epistemologias.

or
Compreendemos os currículos dos cursos de Psicologia das universida-

od V
des brasileiras como sendo impregnados de colonialismo. Os autores mais

aut
estudados nesse campo remontam à figura de poder do colonizador: são quase
sempre homens brancos europeus. Estes autores produziram conceituações
universalizantes para manejar subjetividades em sofrimento psíquico produzi-

R
das no cenário europeu. Assim, desconsiderando a singularidade dos processos
de subjetivação de pessoas não-brancas, principalmente negras, impondo uma

o
nosologia incompatível com o seu pertencimento social e racial. Mas tais
aC
saberes são quase que incontestáveis na história da psicologia como ciência.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Césaire (2010) relata que psicólogos e sociólogos, com base na concepção


“científica de primitivismo” forjada pela ciência ocidental, assistiu a muitos
povos serem dizimados, subjugados e seus saberes extirpados. Sendo assim, se
visã
os europeus aniquilaram subjetividades com a cooperação de psicólogos, havia
uma Psicologia colonial, comprometida com tal projeto. Atualmente, como
efeito dessa problemática, temos pacientes negros sendo vítimas de racismo
itor

ou não sendo compreendidos em seu sofrimento pelos próprios profissionais,


a re

que não escutam e não acolhem o paciente como pertencente a um povo que
conta apenas pouco mais de cem anos de “liberdade”, além de endossar, com
sua distância e incompreensão, a reprodução e produção de saberes distorcidos
acerca das destes povos, como temos visto (ARRAES, 2015) .
O termo subjetividade aqui se refere à “produção de modos de ser, estar,
par

sentir e perceber o mundo” (VEIGA, 2018, p. 79). Nas subjetividades negras,


Ed

o racismo é um vetor que incide diretamente, produzindo uma configura-


ção existencial específica. Assim, como o pensamento colonial produziu um
senso de humanidade à sua semelhança, ser negro, é não ser humano. Isso
ão

também chamamos de afeto-diáspora, que seria a sensação de não pertencer


ao ambiente onde se vive, além do não acolhimento e incorporação destes
corpos igualmente aos demais nas dinâmicas sociais (VEIGA, 2018).
s

Ainda segundo Veiga (2018) a experiência da negritude é marcada por


ver

forte aversão e repulsa que a branquitude projeta sobre as vidas negras desde a
escravização até hoje e esses sentimentos são projetados constantemente pelos
brancos na relação com tudo aquilo que não é espelho. Esse ódio é introje-
tado nas subjetividades negras revertendo-se em um processo extremamente
doloroso de auto-ódio (NOBLES, 2019). Esse mecanismo de introjeção do

Flávia Lemos - 21982.indd 33 28/02/2020 13:12:47


34

afeto do outro como sendo seu, ocorre nas mais diversas situações de violên-
cia, fazendo da pessoa vitimada, “réu”, ficando ela com o afeto de culpa, por
conta dos mecanismos de opressão, engendrados historicamente, quando este
deveria ficar com o autor da violência.
Segundo Fanon (2009) os inúmeros abusos do racismo sobre os corpos
e as subjetividades negras têm então como um de seus efeitos a culpa e o
auto-ódio. A culpa por sua condição precária, em que se encontra a maior

or
parcela da população negra, e o auto-ódio, por sentir-se inferior diante das

od V
vantagens e privilégios que as pessoas brancas têm e por toda raça negra, por

aut
assim como ele, carregarem o estigma da cor.
Munanga (2014) faz uso da metáfora do iceberg para explicitar ainda
mais o racismo. Para ele, o racismo tem uma parte visível, que diz respeito às

R
diversas violências direcionadas a população negra, e a parte invisível, aquela
que não reconhecemos com facilidade, mas que é a base de sustentação das

o
práticas coloniais vigentes. Segundo Fanon (2005), o racismo se configurou
aC
como uma das maiores estratégias de permanência da lógica e do pensamento

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


colonial. Os mundos colonizado e colonizador são antagônicos e ocupados
por espécies diferentes. O colonizador, além de delimitar o espaço do povo
colonizado, define-o como sendo sem importância, sem moral, sem inteligên-
visã
cia, para não permitir sua existência ou expansão.

4. Apresentando a Psicologia Preta


itor
a re

Segundo Nobles (2009) necessitamos resgatar o senso de ser africano,


pois o colonizador nos esvaziou desse sentido, porém, ainda não destruiu o
africano dentro de nós. Sua aposta está na busca coletiva da percepção e da
crença deste ser, que sofre diversos ataques ao longo da história. Para ele, a
par

“psicologia deveria funcionar como ferramenta fundamental em termos de


compreensão e utilidade” (p. 278). Mas como um instrumento ocidental, ela
Ed

possui limites de entendimento das experiências negro-africanas.


Segundo Veiga (2017) nos anos 80, inicialmente nos Estados Unidos,
com base nas produções dos psicólogos negros Wade Nobles e Naim Akbar,
ão

ganha destaque o que hoje chamamos de Psicologia Preta, um constructo


teórico-prático em psicologia clínica tendo como referência as subjetividades
negras, comprometida com as “consequências psicológicas negativas de ser
s

africano em uma realidade antiafricana” (NOBLES, 2009, p. 277).


ver

Para Moraes, Nascimento e Rosa (2018) foi em meio às lutas por direitos
civis da população negra nos Estados Unidos na década de 60, no auge do
grupo supremacista branco Ku Klux Klan, que nasce a Psicologia Preta ou
Psicologia Africana, pois se fez necessário à construção de uma psicologia
que compreendesse as dinâmicas sociais que causavam sérias consequências

Flávia Lemos - 21982.indd 34 28/02/2020 13:12:47


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 35

psicológicas nos sujeitos negros e negras, se configurando como pensamento,


prática e perspetiva que possui um olhar ampliado sobre os processos sub-
jetivos das pessoas negras, e principalmente, os consideram como sujeitos e
agentes de suas próprias histórias.
Salientamos que o desconhecimento destes pensadores é mais um ele-
mento operante da política de embranquecimento vigente, que endossa práticas
genocidas do Estado brasileiro e de seus tentáculos, que nas favelas e periferias

or
abatem corpos e nas academias, por vezes, se dedicam a exterminar outras

od V
epistemologias e cosmovisões que não as eurocêntricas.

aut
Conforme Ani (1994), podemos reiterar que o saber europeu se instituiu
como saber dominante e ditou o modelo de ciência. Portanto, a psicologia
ocidental forjada nesse contexto, não dialoga com outras culturas. As teorias

R
e abordagens levam em conta apenas o modelo eurocêntrico e negam tudo o
que não o é, principalmente, o contexto brasileiro, que tem depois de África

o
o maior contingente de pessoas negras no mundo.
aC
Segundo Nobles “a razão de ser da psicologia ocidental como disciplina
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

se resume em grande medida a alimentar e a sancionar o regime imperialista e


racista que ela inventou” (2009, p. 278). Assim, além de estar a serviço dessa
lógica vigente, é despreocupada com a saúde mental da população negra e,
visã
por vezes, reforça os processos de desumanização e genocídio dela, engen-
drando um sistema industrial de saúde mental que não consegue promover
“explicações, fundamentos lógicos ou práticas preventivas e curativas para o
itor

próprio povo que ela se destina a oprimir” (2009, p. 279).


a re

O que Nobles (2009) propõe em seus estudos não é uma reformulação


do pensamento europeu ou um enegrecimento dele, mas a construção de
outro saber, de outra epistemologia que possibilite não só a compreensão do
ser africano, que seria compreendê-lo, sobretudo, como humano, em todas as
expressões históricas e desdobramentos no hoje, mas que também se instaurem
par

processos de cura dos afro-brasileiros com base em suas próprias origens.


Ed

Moraes, Nascimento e Rosa (2018) alegam que a Psicologia Africana está


alicerçada no paradigma da afrocentricidade, uma “escola de pensamento”
criada por Molefe Asante, que postula que os negros-africanos precisam ser
ão

protagonistas da sua própria história e em busca de seus interesses humanos.


Essa Psicologia se pauta nos valores dos povos africanos para seu fazer. e estar
comprometida com uma nova narrativa da história da África e com a defesa
s

dos elementos culturais africanos, que historicamente foram demonizados,


ver

expropriados, roubados, etc.


Ainda segundo as autoras, esta Psicologia se constrói a partir do referen-
cial e da experiência negro-africana, principalmente a diaspórica, em busca de
um novo marco civilizatório, de uma reordenação identitária para a libertação
do povo negro frente à hegemonia branca. Não se tratando de trazer grandes

Flávia Lemos - 21982.indd 35 28/02/2020 13:12:47


36

novidades, mas de um retorno às origens, a herança imaterial deixada pelos


negro-africanos, a fim de vislumbrarmos a liberdade no futuro.
Para Veiga (2017), a Psicologia Preta resgata valores e tradições africa-
nas, oferecendo uma dupla escuta – da singularidade do paciente e também
do povo ao qual ele pertence – objetivando fazer da terapia um espaço de
pertencimento e proteção, assim como eram os quilombos. Ele destaca que a
Psicologia Preta só é feita por psicólogos pretos. Isso não quer dizer que os

or
brancos não devam conhecer e se referenciarem para promoção de ações e

od V
práticas que ofereçam saúde para subjetividades negras, pelo contrário, mas

aut
há uma dimensão da subjetividade preta que só outro preto pode acolher. É
inegável que a escuta clínica de psicólogos brancos que tiveram contato com

R
esta teoria pode ser mais sensível e ampliada, porém, a clínica com pessoas
negras não é só de escuta, mas também de corpo, de marcas e de pele. Por-

o
tanto, a brancura e a branquitude trazem consigo uma série de simbolismos,
privilégios e vantagens (CARONE; BENTO, 2014; CARDOSO, 2014,) que
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


se tornam muitas vezes em um fator impeditivo dos psicólogos brancos aces-
sarem a fundo a singularidade da negritude.
Outra questão a ser problematizada, é a crença no princípio da neutrali-
visã
dade ou do distanciamento entre o paciente e o terapeuta como condição para
uma boa análise, o que para os autores da Psicologia preta é equivocado, pois
o psicólogo branco não tira a sua pele, nem suas marcas para realização do
itor

trabalho clínico, mas carrega consigo a brancura e tudo o que ela representa
a re

na sociedade em que o branco é o ideal (CARONE; BENTO, 2014).


Na Psicologia Preta não é o distanciamento que balizará o processo, mas
a aproximação, o vivenciar juntos, se dá na “possibilidade real de acessar,
sentir e compreender o afeto do outro que está em questão” (VEIGA, 2017,
pág.4). Quando isso ocorre, a experiência de ser acolhido naquilo que mais
par

fere, ao olhar para o espelho e se sentir pertencente, movimentos tão precio-


sos, mas pouco sentidos, produz atravessamentos reais que logo são sentidos
Ed

pelos pacientes e isto por si só promove saúde (VEIGA, 2018).


Ressaltamos que nem todo psicólogo preto faz Psicologia preta. Para
ão

tanto, é necessário que ele se conecte com a própria negritude e se aprofunde


na compreensão do processo de subjetivação negro. Clínica e política são
inseparáveis na Psicologia Preta, pois se entende que o sofrimento é produzido
s

e mantido social e historicamente através de inúmeros dispositivos políticos,


ver

criados desde os processos escravagistas para o genocídio da população negra,


principalmente após a abolição. A angústia dos pacientes deve ser entendida
para além de algo da ordem psíquica, mas sobretudo como um problema de
ordem política e social. Logo, o sofrimento não se caracteriza como uma
produção individual, da ordem da neurose e do privado.

Flávia Lemos - 21982.indd 36 28/02/2020 13:12:47


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 37

Para Veiga (2017, 2018), em relação ao tratamento, umas das direções


para a cura dos afetos que deteriorizam a subjetividade negra está na devolução
deles para a branquitude, ou seja, responsabilizá-los pelas violências geradas
pelo racismo, saindo da posição de auto-ódio para a posição de empodera-
mento, passando pela experimentação da raiva. O “afeto de raiva como sendo
o trilho através do qual o que ficou represado e introjetado na subjetividade
negra culpando-a pela condição em que se encontra e fazendo-a sentir-se infe-

or
rior possa escoar por toda malha subjetiva do tecido social” (VEIGA, 2017,
p. 4). Esse movimento de libertação é extremamente importante para subje-

od V
tividade negra, pois ela abre espaço para outras possíveis relações consigo e

aut
com o mundo. Assim, aquilo que antes paralisava, torna-se em novas possi-
bilidades singulares de (re)criação de sua própria existência, ou seja, novos
modos de ser no mundo.
R
o
5. Conclusão
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Constata-se a urgência de um aprofundamento na temática em questão


para compreensão das especificidades do racismo na realidade brasileira,
principalmente na área de Psicologia, considerando a influência deste fenô-
visã
meno na sua constituição enquanto ciência. Além da literatura recente na
área reconhecer que a produção é escassa e o fato do desconhecimento de
outras formas possíveis de se fazer psi, não coloniais e racistas. A Psicologia
itor

tem a oportunidade de contribuir para uma compreensão mais abrangente do


racismo e de seus efeitos, a fim de, desvelar este fenômeno, promovendo uma
a re

atuação comprometida com a superação desta e de outras causas de grandes


desigualdades no país.
A suposta inferioridade do negro, primeiro legitimada pela Igreja e depois
pela ciência do século XIX foi primordial para a manutenção do racismo
par

estrutural e estruturante das relações, das instituições e das práticas sociais,


e até mesmo serviu como justificativa para sua escravização. Reiteramos que
Ed

até os dias de hoje o racismo permanece operando e construindo realidades.


Ainda que não tenha ganhado forma de lei, nem Estado, o racismo se
enraizou e se capilarizou no cotidiano, assim como com a abolição da escra-
ão

vatura, a lógica escravagista não se findou. Desta maneira também, apesar


da noção de raça biológica ter sido anulada pela ciência e ter sido apropriada
como constructo político pela luta antirracista, o viés biologizante perma-
s

nece vivo, engendrando, a partir de novas configurações e lógicas, práticas


ver

racistas. O processo de colonização ainda produz efeitos significativos e seu


ethos permanece nas práticas sustentadas pela lógica racista em que estamos
inseridos, logo, podemos dizer que, psicólogos que nem se quer questionam
as origens ontológicas de suas concepções epistemológicas, estão promovendo
uma psicologia colonial.

Flávia Lemos - 21982.indd 37 28/02/2020 13:12:48


38

A Psicologia Preta apresenta-se como um resgate, como uma prática


indicada para uma possível cura aos danos causados pela diáspora. Atuando
como uma ferramenta de mudança social e de alteração de realidade de pes-
soas negro-africanas, uma vez que as demandas do negro-africano não são
vistas como fenômenos individuais, mas de natureza política, produzidos
socialmente. Desta forma, o enfrentamento precisa ser feito nessa esfera, pro-
duzindo atravessamentos concretos na realidade. Essa Psicologia esforça-se

or
em visibilizar o que foi ocultado pela ocidentalidade colonialista racista, ou

od V
seja, a humanidade dos povos negro-africanos espalhados pela diáspora. Este,

aut
por si só, não é um movimento novo, mas a possibilidade de tornar possível
essa realidade nos dias de hoje.
A superação das lógicas coloniais racistas deve ser uma responsabilidade

R
de todos, principalmente das pessoas brancas, pois estas são beneficiadas
direta e indiretamente por elas. Se não intervirem, são também responsáveis

o
pelas múltiplas violências a que as pessoas negras são submetidas todos os
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dias. Portanto, devem se implicar na luta antirracista e promover políticas e
ações de reparações, e mudanças sociais para a população negra.
visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 38 28/02/2020 13:12:48


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 39

REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda. O perigo da história única, 2010. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-his-
toria/>. Acesso em: 19 jun.

or
ANI, Marimba. Yuguru: An African-centred critique of European cultural
thought and behavior. Trenton, NJ: Africa World Press, 1994. v. 213.

od V
aut
ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho!: homicídios come-
tidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro, 2015. Disponível

R
em: <https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/>. Acesso em: 18
nov. 2018.

o
aC
ARRAES, Jarid. Meu psicólogo disse que racismo não existe, 2015. Dis-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ponível em: <https://www.geledes.org.br/meu-psicologo-disse-que-racismo-


nao-existe/>. Acesso em: 19 de jun.
visã
ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019. Disponível em: <http://www.forumsegu-
ranca.org.br/ publicacoes/atlas-da-violencia-2019/>. Acesso em: 10 de abr.
itor

BENTO, Maria Aparecida; CARONE Iray. Psicologia Social do racismo –


a re

Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 6. ed. Petropolis,


RJ: Vozes, 2014.

CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre


a branquitude no Brasil, tese de doutorado, Faculdade de Ciências e Letras
par

da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo, 2014.


Ed

CESÁIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Santa Catarina: Letras


Contemporâneas, 2010.
ão

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações Raciais: Referências


Técnicas para atuação de psicólogas/os. Brasília: CFP, 2017. Disponível em:
s

<https://site.cfp.org.br/ wp-content/uploads/2017/09/relacoes_raciais_baixa.
ver

pdf>. Acesso em: 10 set. 2018.

FANON, Fanon. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

______. Pele negra, máscaras brancas. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2008.

Flávia Lemos - 21982.indd 39 28/02/2020 13:12:48


40

GONZALEZ, Lélia. E a trabalhadora negra, cumé que fica? Jornal Mulherio,


São Paulo, ano 2, n. 7, 1982.

______. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, São


Paulo, v. 2, p. 223-44, 1983.

MAIA, Kenia Soares; ZAMORA, Maria Helena. O Brasil e a Lógica

or
Racial: Do branqueamento à produção de subjetividade do racismo. Psicol.
clin. [online]. v. 30, n. 2, p. 265-286, 2018. ISSN 1980-5438. Disponível em:

od V
<http://pepsic.bvsalud.org/ pdf/pc/v30n2/05.pdf> Acesso em: 12 out. 2018.

aut
MORAES, Viviane Mendes de et al. A psicologia africana como ferramenta

R
de mudança social da população negra-africana. In: VII CONGRESSO
ALFEPSI, 2018, Rio de Janeiro. Formação em psicologia para a transfor-

o
mação psicossocial na América Latina. Anais... Rio de Janeiro: Alfepsi,. v.
1, p. 117-134, 2018.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça,
racismo, identidade e etnia. In BRANDÃO, A. A. P. (Org.). Programa de
educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói, RJ: EDUFF, 2004.
visã

______. Prefácio. In: CARONE, I.; BENTO, M. A. S. (Orgs.). Psicologia


social do racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil 6.
itor

ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.


a re

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do negro brasileiro: processo de


um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 2017.

NASCIMENTO, Maria da Conceição. Considerações sobre o Racismo e


par

Subjetividade: Problematizando Práticas. Desnaturalizando Sujeitos e Luga-


res. 2005. 112 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Fluninense,
Ed

Niterói, 2005.

NOBLES, Wade W. Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psico-


ão

lógico afrocentrado. In: NASCIMENTO, E. (Org.). Afrocentricidade: uma


abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
s

OLIVEIRA, Regina Marques de Souza; NASCIMENTO, Maria da Conceição.


ver

Psicologia e relações raciais: sobre apagamentos e visibilidades. Revista da


Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v.
10, n. 24, p. 216-240, fev. 2018. ISSN 2177-2770. Disponível em: <http://
www.abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/ article/view/582>.
Acesso em: 17 jun. 2019.

Flávia Lemos - 21982.indd 40 28/02/2020 13:12:48


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 41

SAMPAIO, Adriana Soares. Corpo, raça epsicologia: repensando o silência


dos justos. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/
as (ABPN), [S.l.], v. 10, n. 24, p. 198-215, fev. 2018. ISSN 2177-2770. Dis-
ponível em: <http://abpnrevista.org.br/ revista/index.php/revistaabpn1/article/
view/581>. Acesso em: 17 jun. 2019.

SANTOS, Juciara Alves dos. Sofrimento psíquico gerado pelas atrocidades

or
do racismo. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/

od V
as (ABPN), [S.l.], v. 10, n. 24, p. 148-165, fev. 2018. ISSN 2177-2770. Dis-

aut
ponível em: <http://www.abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/
article/view/578>.

R
SCHUCMAN, Lia Vainer. Racismo e antirracismo: a categoria raça em ques-
tão. Rev. psicol. polít. [online]. v. 10, n. 19, p. 41-55, 2010. ISSN 1519-549X.

o
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v10n19/v10n19a05.pdf>.
aC
Acesso em: 20 jun. 2019.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

SCHUCMAN, Lia Vainer; VIEIRA, Martins Hidelberto. A Psicologia e o


discurso racial sobre o negro: do “objeto da ciência” ao sujeito político. Psi-
visã
cologia: Ciência e Profissão, v. 37, n. spe, p.172-185, 2017. Disponível em:
< https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017>.
itor

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do


a re

negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, – Coleções


Tendências; 1983. v. 4.

VEIGA, Lucas. As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no bra-
sil. Revista Tabuleiro das Letras, PPGEL – Salvador, v. 12, n. 1, 2018.
par

ISSN:2176-5782. Disponível em: <http://www.revistas.uneb.br/index.php/


Ed

tabuleirodeletras/article/view/5176>. Acesso em: 6 jun. 2019.

______. Descolonizar a Psicologia: Considerações a uma Psicologia Preta.


ão

CEERT, 2017. Disponível em: <https://ceert.org.br/noticias/direitoshuma-


nos/20238/descolonizar-a- psicologia-consideracoes-a-uma-psicologia-preta>.
Acesso em: 3 maio 2019.
s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 41 28/02/2020 13:12:48


Flávia Lemos - 21982.indd 42
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:48
POLÍTICAS PÚBLICAS DE
SEGURANÇA, RACIONALIDADES
BIO-NECROPOLÍTICO-ECONÔMICAS

or
E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

V
aut
Micael Jayme Casarin Castagna
Roberta Brasilino Barbosa

CR Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

do
1. Introdução

Como surgem as regras, as leis? Como formam-se modos de subjetiva-


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
ção? Como os governos nos governam? Como configuram-se as ideias de Lei
e Ordem que nos circundam? Como elas nos produzem? O que há de coletivo
ra
em práticas “individuais”? Como uma ordem é um limite? E como os limites
se mantêm atuais?
i
Através da análise das relações políticas ocidentais desde o século XIII,
rev

traça-se um panorama que articula o fortalecimento da burguesia, os surgi-


mentos das cidades e a acumulação de capital até o século XVIII ao efeito
to

de engendramento de uma massa de pessoas pobres a ser disciplinada para


a produção. Nos próximos dois séculos, contrários à arbitrariedade do poder
ara

penal absolutista, criam-se os discursos de igualdade e de contrato social, sob


os quais o poder sancionador do Estado é regulado pelo positivismo jurídico e
ver di

pelas proposições teóricas do Direito Penal. Tais discursos surgem na composi-


ção de eixos de racionalidades de um Estado que, em função da acumulação do
op

capital, organiza um regime de verdades apoiado em tecnologias de controle


(Batista, 2007). Pelo viés da criminologia positivista, nestas tecnologias está
E

pressuposta uma ordem instaurada como natural, individualizando os episó-


dios criminais em sujeitos desviantes (pertencentes quase exclusivamente


a uma massa pobre, negra e periférica que compõe uma classe à qual não é
participada a possibilidade da circulação do poder público).
É fundamental que percebamos este “desenvolvimento histórico ociden-
tal” como eurocentrado, segundo o qual o Brasil é apresentado histórica e
politicamente como colônia por quase quatro séculos, e que tal lógica colonial
pode ser ainda hoje percebida nos regimes de verdade do ocidente e mais além.
Mbembe (2016) diz da “ocupação colonial” como demarcação e afirmação de
um controle físico e geográfico, sob as quais se imprime um novo conjunto
de relações sociais e espaciais, fundamentais para o exercício da soberania.

Flávia Lemos - 21982.indd 43 28/02/2020 13:12:48


44

Um contexto no qual o colonizado ocupa uma terceira zona entre o status


de sujeito e objeto. Os vieses das tecnologias de controle e da criminologia
positivista se dão intimamente em composição com certo paradigma europeu
dominante de soberania; um paradigma no qual, para Mbembe (2016),

[...] a razão é a verdade do sujeito, e a política é o exercício da razão na


esfera pública. O exercício da razão equivale ao exercício da liberdade,

or
um elemento-chave para a autonomia individual. Nesse caso, o romance
da soberania baseia-se na crença de que o sujeito é o principal autor con-

od V
trolador do seu próprio significado ( p. 3).

aut
Tal concepção, ainda que se fundamente em um ser humano modelar

R
homem-cisgênero-branco-heterossexual e pertencente a uma elite, não se per-
cebe por estas mesmas limitações inerentes à sua lógica. De fato, tal produção

o
de verdade calcada em dominação é exposta quando Mbembe (2016) discorre
aC
sobre a condição do escravo, colocando-a como uma tripla perda: “perda de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


um ‘lar’, perda de direitos sobre seu corpo e perda de status político” (p. 10).
O indivíduo escravo está apartado não só do que é entendido como sociedade,
mas mesmo pelo que se entende por humanidade ao percebermo-lo a partir de
visã
uma dominação absoluta, que envolve desde uma alienação em seu nascimento
à sua morte social. Analisando a fazenda como estrutura político-jurídica, o
autor evidencia a relação de posse do escravo pelo mestre, distanciando-a da
itor

noção comunitária por negar ao escravo o exercício do poder de expressão


e pensamento. O escravo, seja ele ou ela, é objetificado como ferramenta de
a re

produção à qual, se não lhe é possível cumprir sua função de produção, lhe é
negada a existência, simbólica e materialmente. Esta negação se faz atrelada
ao que faz dominantes as forças que ali se impõe enquanto promotoras da
pretensa “ordem natural” (Mbembe, 2016).
par

Torna-se potente articularmos tais leituras ao controle social, o qual opera


como estratégia estrutural que naturaliza certa ordem social construída por
Ed

forças dominantes.

[...] não se trata de uma classe social que seria dominante em relação à
ão

outra, mas relações de força, vetores de dominação política (que podem


estar localizados na diferentes classes sociais e por todo corpo social) que
buscam estratégias para manter e reproduzir relações sociais que desejam
s

impor como naturais e normais (Reishoffer & Bicalho, 2009, p. 4).


ver

Em olhar crítico à criminologia positivista, evidencia-se a gestão social


seletiva que impõe uma determinada noção de ‘ordem social desejável de
ser defendida’, a qual produz seus criminosos e seus crimes a partir de uma
perigosa “naturalização do conceito de controle social que se tornando

Flávia Lemos - 21982.indd 44 28/02/2020 13:12:48


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 45

aparentemente neutro, vem justificar como normal e natural a desigualdade


social, a limitação da liberdade e da autonomia, além da própria seletividade
do sistema” (Dornelles, 2003, p. 24). É importante que não localizemos a
dominação simplesmente num discurso ou conteúdo, como sob a forma de
uma determinada classe social, mas num movimento, em racionalidades que a
afirmam e reconstroem constantemente em uma articulação móvel e complexa.
Para entendermos então qual a ‘ordem social desejável’ que vige no Brasil

or
contemporâneo, mantida e reproduzida pelas lógicas atuais de controle social,

od V
precisamos analisar o contexto histórico global das últimas décadas. De acordo

aut
com Reishoffer & Bicalho (2009), a análise da proposta de uma determinada
ordem social [desejável] deve se dar intimamente ligada à análise histórica
dos saberes que se propuseram a gerir o controle social daquele contexto.

R
Sem nos articularmos a essa segunda análise, corremos o risco de fazer coro
à defesa de uma ordem social contra qualquer força que se lhe faça opositora,

o
colocando tal ordem como natural e qualquer insurgência de mecanismos de
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

contra-poder e resistência como desviantes/marginais e passíveis de legítimas


repreensão e neutralização.
Os autores recorrem, então, ao pensamento de Michel Foucault para
instrumentalizar essa segunda análise para além do exercício de poder estatal
visã
formalizado por leis. É preciso evidenciar outros exercícios de poder que, a
nível micropolítico, produzem e reproduzem objetividades e subjetividades
por todo o corpo social em determinados contextos históricos, constituídos
itor

na operação de estratégias específicas (Reishoffer & Bicalho, 2009). Foucault


a re

(2007) identifica na sociedade moderna a emergência de um conjunto de


estratégias de poder que se constituem num controle minucioso das operações
do corpo articulado a uma docilidade-utilidade: a sociedade disciplinar. Nesta
análise, a sujeição constante de forças dos corpos diminuiria inconvenientes
par

políticos, neutralizando resistências em confluência com o adestramento dos


corpos – o qual teria como finalidade o aumento de força econômica. O próprio
Ed

indivíduo não pode ser considerado como um elemento externo às práticas


de poder, mas sim como:
ão

[...] realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se


chama disciplina [...] Na verdade o poder produz; ele produz realidade, pro-
duz campos de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento
s

que dele se poder ter se originam nessa produção (Foucault, 1997, p. 161).
ver

A noção de sociedade disciplinar, porém, ainda aponta para modelos de


encarceramento institucionais, algo que para se manter atual na contempo-
raneidade precisa articular-se à noção de sociedade de controle, que dirá de
um controle aberto e contínuo. A pulverização da disciplina, que já aparece

Flávia Lemos - 21982.indd 45 28/02/2020 13:12:49


46

na sociedade disciplinar, acentua-se na sociedade de controle a partir de


identidades sempre móveis e inacabadas, um controle invisível e nômade.
Tais tipos de controle articulam-se a partir de um mesmo plano de produção
de realidades, de relações de poder. Portanto, para analisar nossos crimes e
políticas criminais precisamos entendê-los como produzidos a partir de um
mesmo plano de imanência, no qual relações de poder/saber produzem modos
de entender o que é crime, quais são os criminosos e que ordem social deverá

or
ser produzida/defendida no contexto brasileiro (Reishoffer & Bicalho, 2009).

od V
Entre as disciplinas e o controle sob os quais vivemos, quais vetores

aut
podemos identificar na composição da “ordem social desejável” brasileira?
Quais delineamentos entre o que se dá como ordem e como desordem no
Brasil podemos elencar para análise? E como escolher os vetores para que

R
esta análise se faça de maneira crítica, pragmática e pertinente?

o
2. (In)segurança pública, racismo e necropolítica
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Desde a década de 1980 o Brasil vem se constituindo num processo de
redemocratização, tendo esse processo dois marcos exponenciais: o fim da
ditadura civil-militar e a promulgação da Constituição Brasileira de 1988.
visã
Porém, podemos acompanhar no trabalho de Reishoffer & Bicalho (2009)
análises de que tais avanços na elaboração das políticas públicas pouco muda-
ram as práticas de Segurança Pública herdadas do governo ditatorial. Foram
itor

mantidas práticas de controle social e da lógica do “inimigo interno” – per-


a re

sonagem cuja produção no momento atual está diretamente relacionada às


políticas proibicionistas sobre drogas, conforme apontado por Coimbra (2001)
–, algo que pode ser percebido, por exemplo, pela manutenção do desenho do
regime militar acerca do quadro institucional das polícias e das suas divisões
par

de competências, além da localização desses setores ter permanecido no pacto


federativo (Muniz & Zacchi, 2004). De acordo com o Instituto Brasileiro
Ed

de Geografia e Estatística (IBGE, 2015), em 2013, o Brasil tinha 425,2 mil


policiais militares e 117,6 mil policiais civis. Havia um policial militar para
cada 473 habitantes e um policial civil para cada 1.790. A polícia ostensiva,
ão

militar, possui um número de integrantes quase quatro vezes maior do que a


nossa polícia responsável pela investigação, a civil.
É importante ressaltar que as cartas constitucionais anteriores a de 1988
s

não incorporavam o adjetivo “pública” quando traziam definições acerca da


ver

“ordem”, pois esta era uma ordem que se misturava com os interesses das for-
ças sociais dominantes daquele contexto, especificamente do Estado e das oli-
garquias que se mantinham no poder desde o século anterior; uma ordem que
deveria ser defendida e mantida pelas polícias (Reishoffer & Bicalho, 2009).
A ideia da defesa e manutenção de uma determinada ordem que seja pública

Flávia Lemos - 21982.indd 46 28/02/2020 13:12:49


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 47

– que garanta direitos individuais e participação política de todas as cidadãs


e cidadãos de sua sociedade – surge com o estabelecimento do Estado demo-
crático no Brasil, ou seja, só pode se dar num projeto estatal que articule
normativas legais e políticas públicas nessa mesma direção. Entretanto, as
práticas institucionais que então deveriam garantir e apoiar o desenvolvimento
de um Estado democrático de direito não sofreram nenhum tipo de mudança
em relação à manutenção da ordem pública. De fato, Muniz (2001) discorre

or
sobre a função das polícias militares instituídas em lei, evidenciando que

od V
salvaguardar a “Segurança Nacional” e se mobilizar pela “segurança interna

aut
e manutenção da ordem”, sem atualizações e formulações de políticas críticas
à organização e manutenção do poder do regime anterior, simplesmente cum-
prem a mesma função de uma concepção autoritária da ordem pública, que

R
percebe uma parcela de suas cidadãs e cidadãos como ameaça a esta ordem,
como “inimigos internos do regime”, e não como produtores e indivíduos

o
de direito dessa mesma ordem, ainda que constitucionalmente a segurança
aC
pública esteja descrita entre os direitos de todas e todas.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Em um sentido paralelo, articula-se a proposta de Mbembe (2016) que


r uielaciona o conceito foucaultiano de biopoder com as noções de estado de
exceção e estado de sítio, evidenciando instâncias sociais em que o poder (e
visã
não apenas o poder estatal) está continuamente referenciado a situações de
emergência e exceção, condicionando seu exercício a uma noção de inimigo
ficcional. O autor analisa “essas trajetórias pelas quais o estado de exceção
itor

e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar”


a re

(p. 7), questionando sobre as relações de política e morte que se afirmam em


um estado de emergência. Mbembe (2016) examina as espacializações do
Estado soberano na ordem global recentemente imposta trazendo uma leitura
do imaginário europeu e de uma determinada ordem jurídica europeia. A
lógica desta ordem propõe que uma “guerra legítima” seria entre dois Estados
par

“civilizados”, entendendo o Estado como “modelo de unidade política, um


Ed

princípio de organização racional, a personificação da ideia universal e um


símbolo de moralidade” (p. 12). Nesse contexto, as colônias não são “orga-
nizadas de forma estatal e não criaram um mundo humano” (Ibidem), são
ão

zonas de guerra e desordem e que, por esses motivos, tornam-se “o local por
excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser
suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente
s

opera a serviço da ‘civilização’” (Ibidem).


ver

Propomos aqui um paralelo entre o “inimigo interno” trabalhado por


Reishoffer & Bicalho (2009) e o “inimigo ficcional” de Mbembe (2016),
guardadas suas devidas pertinências, para analisar, sob a ótica da necropo-
lítica, o Brasil colonial, moderno e contemporâneo, entendendo que estes
Estados se sobrepõem. Partimos de uma leitura de um governo de Estado

Flávia Lemos - 21982.indd 47 28/02/2020 13:12:50


48

brasileiro que é majoritariamente composto pelos descendentes dos europeus


que colonizaram o Brasil, dentre os quais alguns compõem posições de poder
governamental desde a Oligarquia Velha até os partidos que se revezam na
ocupação massiva dos cargos governamentais mais importantes ou mesmo
das grandes empresas que contém a maior parte da riqueza brasileira. Mesmo
aqueles que não são diretamente descendentes de colonizadores ou de gran-
des famílias no poder desde o Brasil colônia, são majoritariamente homens

or
cisgêneros brancos pertencentes a uma elite financeira. Segundo dados do

od V
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012), 72% dos brasilei-

aut
ros ganhavam até 2 salários mínimos em 2010 (pesquisa cujo salário mínimo
utilizado era de R$510,00). Em dados mais recentes, o IBGE (2017a) apontou
que aproximadamente 25,4% da população brasileira em 2016 viveu com

R
menos de R$ 387 por mês. Além disso, homens e brancos têm salários maiores,
em média, que mulheres e pessoas pretas e pardas: em 2016, o rendimento

o
médio mensal real de todos os trabalhos das mulheres foi 23% inferior ao do
aC
homem (IBGE, 2017b). Com relação à cor, os rendimentos médios mensais

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do trabalho de brancos eram 84% superiores aos dos pardos e 82% maior que
dos pretos (IBGE, 2017b). Ao mesmo tempo, homens cisgêneros brancos
representaram 80% da bancada federal na legislatura que se encerrou em 2018
visã
no Brasil. Questiona-se: quem é o inimigo interno-ficcional desse Estado? E
onde ele está, geograficamente?
De acordo com Mbembe (2016), as noções do biopoder não são suficien-
itor

tes para explicar as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da


a re

morte, de forma que para isso ele desenvolve o conceito de necropolítica. O


autor argumenta que Foucault formula o biopoder como operação de divisão
entre aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer, a qual se faz em
relação a um campo biológico de controle, distribuindo a espécie humana
em grupos e subgrupos, operação denominada por Foucault como “racismo”.
par

Mbembe prevê o lugar expoente ocupado pelo racismo na racionalidade pró-


Ed

pria do biopoder, fazendo alusão ao lugar subrepresentativo ao qual sempre foi


designado no pensamento e práticas políticas ocidentais. Ainda em referência a
Foucault, o autor refere-se ao racismo como tecnologia que permite o exercício
ão

do biopoder, regulando a distribuição da morte na economia do biopoder e


tornando possíveis as funções assassinas do Estado. Apresentaremos, então,
as especificidades do conceito de necropolítica a partir das leituras propostas
s

por Mbembe (2016) acerca das ocupações coloniais tardo-modernas e das


ver

guerras contemporâneas.
Podemos entender que a “ocupação colonial tardia difere em muitos
aspectos da primeira ocupação moderna, particularmente em sua combinação
disciplinar, biopolítica e necropolítica” (Mbembe, 2016, p. 14-15). O autor
toma de exemplo como caso mais bem sucedido de necropoder a situação

Flávia Lemos - 21982.indd 48 28/02/2020 13:12:51


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 49

palestina. A combinação desses três é o que torna possível dominação [quase]


absoluta sobre a população do território ocupado, no qual um estado de sítio
(uma instituição militar) permite certa modalidade de crime que não difere ini-
migo interno e externo. As vilas e cidades são isoladas do mundo, a população
sitiada privada de seus meios de obtenção de renda; a mobilidade geográfica
requer autorizações formais e as instituições civis locais são sistematicamente
destruídas; o cotidiano é militarizado, sob o qual os comandantes militares

or
locais possuem uma liberdade outorgada de decidir quando e em quem atirar

od V
por seus próprios critérios.

aut
Ao trabalhar sobre as guerras contemporâneas, Mbembe (2016) faz refe-
rência a Bauman para identificar que as guerras da era da globalização não
têm como objetivo a conquista e gerência de um território, mas visam forçar

R
o inimigo à submissão, tendo como característica própria julgar irrelevantes
certas consequências imediatas e secundárias das ações militares. A superio-

o
ridade destes em relação às populações sedentárias surgia da velocidade de
aC
seu próprio movimento, da fluidez de seu aparecimento e desaparecimento,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de sua capacidade de viajar com pertences adequados à sua maneira, enquanto


os sedentários tinham limitados sua mobilidade e potencial de manobra. Tais
alusões permitem que nos aproximemos de como se dá esse novo momento,
visã
o da mobilidade global. Nele,

[...] as operações militares e o exercício do direito de matar já não consti-


itor

tuem o único monopólio dos Estados, e o ‘exército regular’ já não é o único


meio de executar essas funções. A afirmação de uma autoridade suprema
a re

em um determinado espaço político não se dá facilmente. Em vez disso,


emerge um mosaico de direitos de governar incompletos e sobrepostos,
disfarçados e emaranhados, nos quais sobejam diferentes instâncias jurí-
dicas de facto geograficamente entrelaçadas, e nas quais abundam fideli-
par

dades plurais, suseranias assimétricas e enclaves (Mbembe, 2016, p. 18).


Ed

O autor descreve essa organização de direitos territoriais e reivindica-


ções como heterônoma, e questiona a demarcação explícita entre “interno”
e “externo” nos campos políticos. Junto a esse contexto, podemos perceber
ão

a emergência do que Deleuze e Guattari (1997) chamaram de máquinas de


guerra, “organizações polimorfas e difusas, as máquinas de guerra se caracte-
rizam por sua capacidade de metamorfose” (Mbembe, 2016, p. 19). O próprio
s

Estado pode se tornar máquinas de guerra, se apropriar de uma ou mesmo aju-


ver

dar uma a ser criada. São constituídas por homens [e mulheres] armados[as],
que se organizam em divisões e uniões de acordo com cada contexto. Estas
podem funcionar com o empréstimo de exércitos regulares ao mesmo tempo
em que estes podem se apropriar de suas características. As máquinas de guerra
possuem tanto característica de organização política quanto de uma empresa

Flávia Lemos - 21982.indd 49 28/02/2020 13:12:51


50

mercantil, podendo até mesmo forjar ligações diretas com redes transnacionais
(Mbembe, 2016). No contexto brasileiro, pudemos identificar anteriormente
o tal inimigo ficcional-interno, cujas características descritas acima são a ele
pertinentes também, como veremos a frente.
Diante de tal conjuntura e de seu extremismo, podemos perceber algu-
mas diferenças entre o comando colonial e essa forma de governabilidade.
Nesta, a escolha entre a vida e a morte se dá a partir de tecnologias mais

or
táteis, mais anatômicas e sensoriais, sob as quais o controle dos corpos em

od V
aparatos disciplinares é menos importante do que sua inscrição na ordem

aut
da economia máxima – figurada como “massacre”. Uma generalização da
insegurança aumenta a distinção social de possuir armas, e as guerras não se
dão apenas entre exércitos de dois Estados soberanos, mas são travadas entre

R
grupos armados: os que agem através do Estado e os que não têm Estado, mas
que possuem o controle de territórios bastante específicos (Mbembe, 2016).

o
O Brasil é um país extenso e diverso, no qual coexistem práticas de con-
aC
trole também diversas, com similaridades e distanciamentos. De que maneira,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


em composição com os desenvolvimentos apresentados, podemos analisar as
racionalidades da Segurança Pública brasileira presente nas últimas décadas?
Estas fazem parte de todo um sistema penal, uma rede de articulações que pode
visã
ser abordada a partir variadas instâncias. Segundo Batista (2007), as institui-
ções do Sistema Penal constituem-se das instituições policiais como política
de segurança pública, das instituições judiciárias como política judiciária e
itor

das instituições penitenciárias como política penal. Tal Sistema se coloca


a re

junto a um conjunto de normas jurídicas que ditam os crimes, suas sanções


e a execução destas junto a normativas legais como a lei de execução penal,
os regulamentos penitenciários e a organização do judiciário.
Analisemos alguns dados que fazem emergir a construção da segurança
pública no Brasil, como política. Tomando como referência a taxa de homicí-
par

dios, a cada três assassinatos, dois são de pessoas negras (Waiselfisz, 2016).
Ed

Segundo o Atlas da Violência 20181, em 2016, o Brasil alcançou a marca his-


tórica de 62.517 homicídios, ou seja, o país atingiu uma taxa de 30, 3 mortes
para cada 100 mil habitantes. Nos últimos dez anos, observa-se que a taxa de
ão

homicídios de não negros diminuiu 6,8%, ao passo que a taxa de população


negra aumentou 23,1%. Em 2016, constatou-se uma taxa de homicídio para
a população negra de 40,2, o mesmo indicador para o resto da população foi
s

de 16 (IPEA & FBSP, 2018), o que permite inferir que, 71,5% das pessoas que
ver

são vítimas de homicídio a cada ano no país são pretas ou pardas. Podemos
perceber uma grande desigualdade entre pessoas brancas e negras no que se
1 Os dados analisados provêm de informações publicadas em 2016 no Sistema de Informação sobre
Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS) e dos registros publicados no 10º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública.

Flávia Lemos - 21982.indd 50 28/02/2020 13:12:51


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 51

refere à distribuição da segurança, o que nos levaria pensar que a população


negra brasileira demandaria maior atenção para ter sua segurança garantida
pelo Estado, acompanhando que o contexto racista do qual participa o Brasil
é em opressão à população negra. Apesar de não existirem indícios de que
negros cometam mais crimes do que brancos, há a tendência de sofrerem maior
coerção por parte do sistema de justiça criminal, seja por uma vigilância mais
incisiva por parte da polícia, seja por uma probabilidade maior de sofrerem

or
punição (Oliveira Junior & Lima, 2011).

od V
Fica evidente que, para analisar questões de raça no Brasil precisamos

aut
perceber seu recorte estrutural de opressão relacionada à população negra.
Para isso, é importante entendermos que essa realidade é composta também
a partir da noção de racismo institucional, que “pode ser definido como o

R
fracasso coletivo das instituições em promover um serviço profissional e
adequado às pessoas por causa da sua cor” (Oliveira Junior & Lima, 2011, p.

o
22). É uma modalidade do racismo que não se dá sob atos de discriminação
aC
manifestos, explícitos ou declarados, mas por um funcionamento diferenciado
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

do ponto de vista racial de diversas organizações e instituições na distribuição


de serviços, benefícios e oportunidades aos diversos segmentos da população
(Oliveira Junior & Lima, 2011).
visã
O processo de produção e distribuição da segurança pública consiste em
atividades de controle da criminalidade e da violência pelo sistema de justiça
criminal, o qual é composto de instituições ligadas ao Poder Executivo e ao
itor

Judiciário, que atuam em etapas concatenadas e sucessivas de controle social


a re

que definem o papel do Estado na consecução da ordem pública (Oliveira


Junior & Lima, 2011). A instituição policial, então, atua como representante
do Estado nas ruas, a qual opera através de racionalidades que se propõe neu-
tras e em busca d’A ordem social desejável. Dessa forma, é uma instituição
que se afirma e se reafirma, também, atravessada pelo racismo em diferentes
par

instâncias. De acordo com o infográfico do Fórum Brasileiro de Segurança


Ed

Pública, pessoas mortas em intervenções policiais são majoritariamente negras:


entre 2015 e 2016, 76% das vítimas de intervenções policiais eram homens
negros (FBSP, 2017). Nesse mesmo sentido, como expõe a Pesquisa Nacional
ão

de Vitimização, segundo dados de 2010, 6,5% dos negros que sofreram uma
agressão no ano anterior tiveram como agressores policiais ou seguranças
privados (que muitas vezes são policiais trabalhando nos horários de folga),
s

contra 3,7% dos brancos” (IBGE, 2012). Ao mesmo tempo, policiais negros
ver

representam a maioria das vítimas nas corporações: entre 2015 e 2016, 56%
dos policiais vítimas de homicídio eram homens negros (FBSP, 2017). Isso
demonstra que o racismo atravessa a instituição policial não apenas enquanto
agentes, mas também enquanto vítimas de um racismo institucional que se
manifesta em nossas próprias organizações policiais.

Flávia Lemos - 21982.indd 51 28/02/2020 13:12:51


52

3. Neoliberalismo e racionalidades econômicas

A partir da conjuntura apresentada seguimos na articulação das raciona-


lidades que agem por via das políticas de segurança pública brasileiras e de
certas operações capitalísticas2 do mundo ocidental e mais além em composi-
ção com aglutinações dessas linhas de força que se apresentam sob a forma das
políticas econômicas. De acordo com Reishoffer & Bicalho (2009), na década

or
de 1980, com a redemocratização brasileira em curso, as principais mídias

od V
começaram a denunciar um grande aumento na violência urbana e, associada

aut
a esse aumento a necessidade de se intensificar “políticas de segurança nas
principais metrópoles brasileiras que, paradoxalmente, haviam elegido gover-
nos de oposição em plena transição democrática, baseados em princípios

R
condizentes à garantia dos direitos humanos” (Reishoffer & Bicalho, 2009, p.
7). Como já vimos anteriormente, tais políticas não foram redesenhadas para

o
a Constituição de 1988, o que compõe aquilo que Dornelles (2003) aponta
aC
como um revezamento entre dois modelos de segurança pública: o modelo do

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


eficientismo penal, marcado pelo discurso de “lei e ordem”, ações repressivas
e até mesmo práticas de terror, e o modelo da garantismo constitucional, fun-
damentado no discurso da cidadania, que visa combater a criminalidade com
visã
estratégias não-repressivas e com os princípios democráticos como diretriz.
O aumento da criminalidade foi então associado ao segundo modelo, orga-
nizando uma concepção de guerra civil, herança da ditadura, que pedia por
itor

militarização das forças de segurança. Fortalece-se uma ideia de limitações a


a re

um governo democrático no que se refere a práticas de segurança e controle,


sem levar em conta as variáveis da transição do período ditatorial ao início
de desenvolvimento de uma democracia, além dos outros diversos vetores
sociais, históricos, econômicos e capitalísticos em questão.
Analisemos, então, a partir de alguns vieses econômicos para além da
par

segurança pública, inferindo os caminhos que as políticas de seguridade social


(saúde, educação, previdência) nos estados de bem-estar social contempo-
Ed

râneos a fim de nos aproximarmos do desenvolvimento do Estado demo-


crático brasileiro. Mertens (2017) analisa as transformações nas políticas
ão

sociais nas últimas quatro décadas, evidenciando as rupturas em economias


capitalistas avançadas e suas relações com as lacunas em seus esquemas
se seguridade social, em especial no decorrer da Grande Crise Financeira
s

internacional desde 2007. O autor coloca que, durante a crise financeira,


ver

o aumento precedente de endividamento privado correlaciona-se com os


empréstimos às famílias como componente central dos estados de bem estar
social contemporâneos.
2 Termo cunhado por Guattari e Rolnik (2007) para designar uma economia que age para além da economia
estatal e financeira; diz dos regimes de uma economia das subjetividades.

Flávia Lemos - 21982.indd 52 28/02/2020 13:12:51


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 53

Desde então, as execuções hipotecárias e o superendividamento afeta-


ram vidas pessoais, ainda mais em países onde a austeridade restringia
os orçamentos sociais para funcionar como estabilizadores automáticos
(Mertens, 2017, p. 2).

Temos, no Brasil, justamente essa situação, na qual um dos pés do tripé


macro-econômico brasileiro é a austeridade. Por austeridade fiscal, entende-se

or
aqui o estado prever sua diminuição de gastos, comum nas economias capita-
listas. Nesse sentido, o primeiro corte dos Estados é nos gastos sociais, como

od V
no Brasil são, especialmente, saúde, educação e previdência, conjuntura que

aut
compõe mais endividamentos à população pela falta de provisão pública. Mer-
tens (2017) expõe que o patrocínio do Estado a produtos financeiros torna-se

R
um substituto às tradicionais políticas sociais, resultando num novo esquema
que vem sendo denominado financeirização da vida cotidiana.

o
Através dessas políticas sociais baseadas em créditos, há a operação de
aC
um paradigma de política que enfatiza a promoção pública de ativos privados
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

como um meio de seguridade social – o bem-estar social baseado em ativos.


Esse paradigma:
visã
Abrange a noção de que a propriedade de ações e propriedades, e até
mesmo o investimento no ensino superior, equipa indivíduos e famílias
com seus próprios amortecedores lidando com a volatilidade durante o
ciclo de vida, particularmente durante doenças, desemprego e aposenta-
itor

doria. A tarefa da política pública é, assim, incentivar o comportamento


a re

econômico que facilita a propriedade e o investimento, os quais, por sua


vez, impedem as dificuldades sociais por meio de seu caráter de seguro
privado (Mertens, 2017, p. 3).

Segundo o autor, há indícios de que processos de privatização e mudança


par

de riscos sugeririam que o bem-estar social baseado em ativos se propõe


Ed

a substituir gradualmente a provisão tradicional de fluxos de renda, como


pensões e benefícios de desemprego. É evidente, no entanto, que as políticas
públicas de diferentes estados de bem-estar social baseados em ativos têm pro-
ão

movido a poupança ou o financiamento da dívida de ativos (Mertens, 2017).


Temos, no Brasil, alguns exemplos de tal movimento, sendo o mais popular
entre eles o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), programa do Minis-
s

tério da Educação destinado a financiar a graduação na educação superior


ver

de estudantes matriculados em cursos superiores não gratuitos, segundo a


Lei 10.260/2001.
O que tais práticas de financiamento e privatização compõe nos vetores
de segurança pública no Brasil? De acordo com Castel (1995), os efeitos
sociopolíticos da privatização das práticas de segurança produzem um modo

Flávia Lemos - 21982.indd 53 28/02/2020 13:12:52


54

de subjetivação denominado “descoletivização do indivíduo”. Um dos prin-


cipais vetores de análise da insegurança no “mundo capitalista” é a produção
de uma massa de indivíduos que se entendem “soltos” na sociedade, devendo
garantir sua proteção social em meio a uma organização social que nunca
garantiu a igualdade de direitos. O autor nos mostra que alguns poucos que
possuem condições financeiras para tal recorrem a seguros privados – que se
multiplicam numa sociedade de incertezas (Castel, 1995) – que sobrevivem

or
em uma economia subjetiva e financeira da própria insegurança que dizem

od V
evitar. Em meio à multiplicação de riscos, cabe ao indivíduo privado/pri-

aut
vatizado garantir sua própria segurança, de forma que tal responsabilidade
social deixa de ser um empreendimento coletivo para tornar-se uma estratégia
individual (Castel, 1995).

R
Tais movimentos individualizantes identificados intensificam-se com
a lógica de “financeirização da vida” apresentada anteriormente. Produz-se

o
uma determinada ordem social que não se efetiva pela garantia de condições
aC
de cidadania para todas e todos, mas pelo direito de consumo de alguns e

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


algumas. Segundo Wacquant (2001), é

[...] a remediação de um ‘mais Estado’ policial e penal a um ‘menos


visã
Estado’ econômico e social”, e ainda completou que tal penalidade neo-
liberal é ainda mais funesta em países atingidos por fortes desigualdades
de condições de vida e desprovidos de tradição democrática. É quando as
itor

questões sociais se tornam questões de polícia. Os ‘inimigos’ da ordem


são estes que ousam transpor as barreiras do consumo e estão continuada-
a re

mente expostos à violência policial. Tal violência é inserida numa tradição


nacional secular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da
escravidão e dos conflitos agrários, que foram fortalecidos por duas déca-
das durante a ditadura militar, na qual a luta contra a ‘subversão interna’
par

era disfarçada em repressão aos opositores do regime (p. 21).


Ed

Nicholas Barr (1998), no livro The Economics of the Welfare State, arti-
cula três linhas intelectuais de estudos sobre o tema do bem-estar social: o
problema da maximização do bem-estar social, questões de justiça social e
ão

problemas de definição e mensuração. Debruçando-se sobre políticas públi-


cas de saúde e educação (mas mais especificamente de saúde), o livro age
na direção de complexificar debates sobre a medição de custos e benefícios
s

privados e sociais para esses âmbitos. Escolhe-se trazer a visão do autor


ver

entendendo-a como potente para agenciar e fundamentar a multiplicidade


das questões em âmbitos econômicos, entretanto com a atenção de que seus
estudos não contemplam questões críticas das relações de poder evidenciadas
por conceitos da bio-necropolítica, nem são especificamente pensadas para
estas situações em países colonizados.

Flávia Lemos - 21982.indd 54 28/02/2020 13:12:52


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 55

Segundo Barr (1998), os maus argumentos econômicos sobre interven-


ções estatais são geralmente de dois tipos: ou eles não entendem a natureza
e as limitações da alocação de mercado; ou confundem objetivos e métodos.
Entende-se como uma posição libertária frequente a concepção da saúde como
mercadoria “comum” como qualquer outra, o que significaria que deve ser
distribuída de acordo com a renda, os gostos e os preços a ela referentes; ou

or
seja, se a distribuição de cuidados de saúde ou educação não está atingindo
bons resultados, dever-se-ia modificar a distribuição de renda. O autor argu-

od V
menta que este é um erro do primeiro tipo.

aut
A visão de que “cuidados de saúde / educação / habitação são direitos

R
básicos e, portanto, devem ser fornecidos pelo Estado” é ilógica, porque
as palavras “e, portanto,” simplesmente não seguem a premissa inicial. Se

o
os cuidados de saúde, etc., são direitos básicos, então também a comida,
que é bem fornecida pelo setor privado. Pela mesma razão, o argumento
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de que “os cuidados de saúde, etc. devem ser fornecidos publicamente


porque, de outra forma, os pobres não poderiam pagar por eles” não se
sustenta. A pobreza pode justificar transferências em dinheiro, mas não
é, sem uma qualificação considerável, uma justificativa para a provisão
visã
pública (Barr, 1998, p. 278).

O entendimento do autor sobre pobreza não acompanha discussões críti-


itor

cas e complexas sobre o tema, porém ressalta-se aqui a exposição da dificul-


a re

dade em mensurar investimentos em políticas públicas. Barr (1998) pontua que


o bem-estar social é maximizado pela busca conjunta de eficiência e justiça
social, mas que tal entendimento sobre equidade é elusivo, impreciso. Ao
explorar essas discussões no setor da saúde, propõe-se explicitar a distinção
par

entre a saúde e a assistência médica. O principal objetivo da política de saúde,


é argumentado, é melhorar a saúde das pessoas.
Ed

Saúde, no entanto, deriva de muitas fontes, incluindo (a) padrões gerais de


vida, incluindo o nível de renda e sua distribuição, (b) escolha individual,
ão

por exemplo sobre dieta (abundância de frutas e vegetais) e estilo de vida


(exercício, evitando tabagismo, etc.), (c) o ambiente externo geral (por
exemplo, poluição), (d) o ambiente individual, como o tipo de trabalho (ou
s

ter um emprego), (e) a qualidade e disponibilidade dos cuidados de saúde,


ver

e (/) a herança de uma pessoa (por exemplo, força física e emocional). O


tratamento médico é, portanto, apenas parte da história. A política de saúde
deve olhar para todos os (fl) – (e), não apenas para os cuidados de saúde
definidos de forma restrita; a política, por exemplo, deve incluir ações
sobre a qualidade dos alimentos e educação pública sobre os benefícios

Flávia Lemos - 21982.indd 55 28/02/2020 13:12:52


56

para a saúde da dieta e decisões sobre estilo de vida, bem como a mobi-
lização de recursos e o gerenciamento do NHS (National Health Service)
(Barr, 1998, p. 279).

Barr (1998) ilustra a situação afirmando que, se não gastássemos nada


com a saúde, algumas pessoas morreriam desnecessariamente de queixas
triviais; se gastássemos toda a renda nacional em saúde, não haveria comida

or
e todos morreriam de fome. A saúde, então, é apenas uma entrada; o inves-

od V
timento é na melhoria da saúde. Porém é algo dificílimo de mensurar, uma

aut
vez que não pode ser pensado a partir de entendimentos causais simplórios.
O autor elenca: entre mortalidade infantil, expectativa de vida e estimativas

R
de carga de doença, até que ponto alguma melhoria na saúde é causada por
cuidados médicos?

o
A recuperação completa de um paciente pode ser devida inteiramente ao
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tratamento que ele recebeu; ou poderia ser devido, no todo ou em parte,
aos seus poderes naturais de recuperação. A influência de fatores intangí-
veis (a vontade de viver) é crucial, mas impossível de medir. Da mesma
forma, melhorias nos resultados de saúde (por exemplo, expectativa de
visã
vida) podem ser devidas à melhoria da dieta, redução do tabagismo, ar mais
limpo e afins. Se esses fatores forem ignorados, tendemos a superestimar
os benefícios dos cuidados de saúde (Barr, 1998, p. 281).
itor
a re

Teorizar sobre investimentos em políticas públicas não é uma tarefa fácil,


e necessariamente deve passar por discussões de valores e direitos humanos,
como indicado por Barr (1998), que só podem ser bem feitas se entendidas
de maneira complexa. Para tanto, aqui aposta-se no entendimento bio-necro-
par

político de nosso governo brasileiro, entendendo-o como possibilidade mais


pragmática para o entendimento da multiplicidade de fatores presente em
Ed

nossas políticas de segurança pública. De forma ilustrativa, para retomada


direta da discussão acerca do tema, trazemos um trecho do debate travado
por Marcelo Freixo com o então deputado estadual Flávio Bolsonaro para o
ão

Jornal Extra. Segundo Freixo:

A ideia do papel do prefeito. [...] O que que cabe à cidade ajudar na con-
s

tribuição da segurança pública?! O prefeito não tem poder de polícia. [...]


ver

O prefeito pode fazer uma série de coisas. O prefeito pode investir numa
guarda municipal mais próxima, pode trabalhar junto com o governo do
estado em mapas da violência... [...] Onde que a violência foi reduzida,
onde que melhorou os índices de segurança pública?! [...] Investiram,
por exemplo, em iluminação pública. [...] É óbvio que só iluminação não

Flávia Lemos - 21982.indd 56 28/02/2020 13:12:52


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 57

vai garantir segurança pública, [...] mas é claro que o prefeito tem que
ser chamado!3

O trecho retirado do debate fornece a possibilidade de que se vislumbre


minimamente a complexidade de um projeto de segurança pública no Brasil.
Usando um exemplo de funções de um cargo executivo a nível municipal,
Freixo não apenas propõe a articulação entre as dimensões estadual e munici-

or
pal, como aponta um fator de segurança pública pensado em diversos países e

od V
ignorado no Rio de Janeiro: a iluminação pública. Tal fator não é comumente

aut
pensado para a garantia de segurança no Brasil, o que evidencia direciona-
mentos de nossas políticas nesse âmbito: em que se investe pela segurança?

R
Onde há segurança? De que maneira nosso Estado investe na melhoria da
segurança? E quem fica realmente mais seguro com tais políticas? Mais uma

o
vez, torna-se nítido que a segurança pública no Brasil é pensada para regiões
geográficas, classes e raças bastante específicas.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

4. Conclusão
visã
Percebe-se que as discussões críticas acerca da garantia de direitos tor-
nam-se a ferramenta mais fundamental e pragmática a fim de elaborar dire-
trizes para políticas nacionais. Analisando certas racionalidades presentes no
itor

Estado brasileiro, prevê-se um determinado projeto social que se articula com


a re

as leis e se afasta delas de acordo com as formas de subjetivação e produções


de desejo imprimidas em cada contexto, podendo-se muitas vezes visualizar
uma produção de desejo por uma “ordem” ideal. Tal maquinário desejante
emerge atravessado por uma lógica colonial e linearizada, como uma ideia do
par

recorte de uma peça e sua substituição. Forma-se o entendimento de um “bem


social universal” e uma ilusão de neutralidade possível, a partir de um regime
Ed

de verdades capitalístico, individual e intimista. Assim se articula também a


ideia de ressocialização, que segue essa lógica, mas numa conjuntura em que
não se contesta sua inefetividade (projeto social).
ão

Apontar um novo estatuto de leis ou reduzir as problemáticas a novas


políticas públicas progressistas apenas evidencia como ignoramos o que existe
s

por aquilo que “deveria existir”, o que pode nos levar a lógicas simplórias
ver

de investimento e diretrizes políticas. Cada pessoa segue determinadas leis


e regras de maneiras que podem ser muito mais fiéis e estritas do que as
maneiras com as quais se relacionam às leis da sociedade; pensar sobre lógicas

3 <https://extra.globo.com/casos-de-policia/veja-como-foi-debate-de-flavio-bolsonaro-marcelo-freixo-sobre-
-seguranca-publica-20907174.html>.

Flávia Lemos - 21982.indd 57 28/02/2020 13:12:52


58

de aprisionamento deve ser um aproximar-se das normativas colocadas em


questão, dos regimes se sentido e desejo que ali se operam, fazendo evidenciar
o caráter transversal colocado em uma política pública. Flávia Lisboa (2018)
expõe a lógica criminal a partir de conflitos com as leis vigentes, visibilizando
racionalidades de um projeto político brasileiro de controle que esquadrinha,
encarcera e extermina uma determinada parcela da população brasileira.
Certos aspectos do que podemos entender como desenvolvimento de um

or
Estado acoplado ao neoliberalismo como modelo econômico caminham para

od V
privatizações dos direitos, como saúde e educação, promovendo um Estado

aut
cuja ocupação final é a da segurança pública. E a segurança pública, para
um cidadão modelar, em tal contexto, visa à garantia da propriedade privada

R
deste. Como pensar políticas públicas de segurança diante da exposição de
tais racionalidades? Entendemos que tal contexto produz urgência em uma

o
abordagem pragmática e humana do tema, cuja instrumentalização mais per-
tinente, no momento, se encontra nos estudos bio-necropolíticos.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 58 28/02/2020 13:12:52


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 59

REFERÊNCIAS
Barr, N. (2012). Economics of the welfare state. London: Oxford Univer-
sity Press.

Batista, N. (2007). Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de

or
Janeiro: Revam.

od V
Castel, R. (1995). A insegurança social. O que é ser protegido? Petrópolis: Vozes.

aut
Coimbra, C. M. B. (2001). Operação Rio: o mito das classes perigosas: um

R
estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança
pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor; Niterói: Intertexto.

o
Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Tratado de Nomadologia: máquinas de
aC
guerra. Mil platôs V - capitalismo e esquizofrenia, (pp.11-110). São Paulo:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ed. 34.

Dornelles, J. R. W. (2003). Conflitos e Segurança – Entre Pombos e Falcões.


visã
Rio de Janeiro: Lúmen Juris.

FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017). Retrato da violência


contra negros e negras no Brasil. Infográfico de divulgação. http://www.
itor

forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/11/infografico-consciencia-
a re

negra-FINAL.pdf

Foucault, M. (1997). Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Petró-


polis: Vozes.
par

Foucault, M. (2007). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.


Ed

Guattari, F. & Rolnik, S. B. (2007). Micropolítica: cartografias do desejo.


Petrópolis: Vozes.
ão

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2012). Censo 2010:


educação, deslocamento, trabalho, rendimento.
s

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2014). Tábua completa


ver

da mortalidade para o Brasil. ftp://ftp.ibge.gov.br/Tabuas_Completas_de_


Mortalidade/Tabuas_Completas_de_Mor talidade_2014/notastecnicas.pdf/>

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2015). Perfil dos Esta-


dos e Municípios Brasileiros 2014. Rio de Janeiro.

Flávia Lemos - 21982.indd 59 28/02/2020 13:12:53


60

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017a). Síntese de


Indicadores Sociais (SIS).

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017b). Pesquisa


Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua).

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada & FBSP – Fórum Brasileiro

or
de Segurança Pública (2018). Atlas da violência 2018.

od V
Lisboa, F. A. (2018). Do conflito com a lei ou da lei em conflito?na privação

aut
de liberdade, outro estatuto re(existe). Dissertação (Mestrado em Psicologia),
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

R
Mbembe, J. A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, 32, 122-151.

o
Mertens, D. (2017). Borrowing for social security? Credit, asset-based welfare
aC
and the decline of the German savings regime. Journal of European Social

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Policy, 27(5), 474-490.

Muniz, J. O. (2001). A Crise de identidade das Polícias Militares: Dilemas e


visã
Paradoxos da Formação. Security and Defense Studies Review, 1, 187-198.

Muniz, J. O. & Zacchi, J. M. (2004). Avanços, Frustrações e Desafios para uma


Política Progressista, Democrática e Efetiva de Segurança Pública no Brasil.
itor

In Cadernos PROSUR (Org.). Políticas Públicas de Seguridad Ciudadana en


a re

los Países del Cono Sur: propuestas e recomendaciones. São Paulo - Santiago:
Friedrich Ebert Stiftung.

Oliveira Júnior, A. D. & Lima, V. C. D. A. (2011). Segurança Pública e


Racismo Institucional. In IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
par

(Org.). Boletim de análise Político-Institucional, 1, p. 21-26.


Ed

Reishoffer, J. C., & Bicalho, P. P. G. (2009). Insegurança e produção de


subjetividade no Brasil contemporâneo.  Fractal: Revista de Psicolo-
gia, 21(2), 425-444.
ão

Senado Notícias (2017). Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos,


metade da média Nacional. http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
s

id/538498/Cidadania_598.pdf?sequence=1
ver

Wacquant, L. (2001). As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Waiselfisz, J. J. (2016). Mapa da Violência 2016: homicídios por armas de


fogo no Brasil. Brasília: FLACSO.

Flávia Lemos - 21982.indd 60 28/02/2020 13:12:53


PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS:
experiências formativas do Vieses-UFC

or
Clara Oliveira Barreto Cavalcante
João Paulo Pereira Barros

V
Ingrid Sampaio de Sousa

aut
Larissa Ferreira Nunes
Ivne Alencar Farias
Vanessa Amarante de Souza

CR
do
1. Introdução

As conexões entre os campos da Psicologia e das campo das políticas


públicas têm crescido suscitado inúmeros debates nas últimas décadas. Do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
ponto de vista acadêmico, reformas curriculares a partir das Diretrizes Cur-
riculares para os cursos de graduação em Psicologia têm buscado incluir
ra
disciplinas com essa temática na formação de estudantes. Já sob a perspectiva
da profissão, a criação do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Polí-
i
rev

ticas Públicas (CREPOP), em 2006, pelo Sistema Conselhos de Psicologia


exemplifica como essas conexões se tratam de um assunto também premente
(FERREIRA NETO, 2017).
to

Diversas produções acadêmicas destacam que as políticas públicas se


converteram em um dos principais campos de atuação de psicólogos, a partir
ara

do final da década de 80 do século XX (FERREIRA NETO, 2017; DIMENS-


TEIN; MACEDO, 2012; SILVA; CARVALHAES, 2016). Yamamoto (2004)
ver di

e Ferreira Neto (2017) pontuam que marcos importantes disso foram o fim
do regime militar, o processo de redemocratização e a constituição de 1988.
op

As áreas da saúde, com a criação do Sistema Único de Saúde e a Reforma


Psiquiátrica, e da Assistência Social, com a criação do Sistema Único da
E

Assistência Social, são exemplos desse fenômeno que possibilita a psicólogos


e psicólogas assumirem a condição de trabalhadores e trabalhadoras sociais,


o que pode se considerar uma tendência emergente, e não só de profissionais
liberais (FERREIRA NETO, 2010, 2017; FERRAZZA, 2016). Dessa forma,
é instigante problematizar a seguinte questão: que ressonâncias na formação e
atuação em psicologia são produzidas por sua crescente inserção em diversas
políticas públicas?
Por um lado, estudos como o de Brigagão, Nascimento e Spink (2011,
p. 199), por meio de análise de documentos do CREPOP, apontam como essa
inserção pode possibilitar à psicologia a “reinvenção da prática a partir da
interpretação das políticas”, mediante criação de técnicas e estratégias novas,

Flávia Lemos - 21982.indd 61 28/02/2020 13:12:53


62

e às políticas públicas mais diálogos entre diferentes disciplinas para a busca


por soluções a problemas sociais. Por outro, produções como as de Ferreira
Neto (2017) e Ferrazza (2016), inspiradas no projeto foucaultiano de realiza-
ção de um “diagnóstico do presente”, advertem-nos para o fato de que essa
inserção no campo das políticas públicas não necessariamente transparece
um compromisso ético-político da profissão com uma atuação progressista
ou transformadora de discursos e práticas. Em direção semelhante, Hunning

or
et al. (2014) frisam que processos de normalização e ajustamento, caros à

od V
constituição histórica das práticas psicológicas em suas relações com o que,

aut
sob a ótica foucaultiana, conhecemos como instituições de sequestro, podem
adquirir roupagens distintas nesses contextos de atuação emergentes.
Frente a tais práticas e situações acadêmico-profissionais, a partir das

R
ferramentas de autores como Foucault e Deleuze, cabe-nos cartografar as
forças em jogo, as singularidades dos acontecimentos, os estados mistos,

o
os agenciamentos e dispositivos, enfim, as dimensões macro e micropolí-
aC
ticas que envolvem essa atuação. Isso significa pensar as políticas públicas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sendo compostas por elementos heterogêneos e marcadas por embates, rela-
ções agonísticas de poder e saber entre diferentes atores sociais, nem todos
ligados ao Estado, a fim de “construir um aparato jurídico-institucional que
visã
oriente a resolução de conflitos em relação aos bens públicos” (FERREIRA
NETO, 2017, p. 33)
Por sua vez, também é relevante problematizar que experiências formati-
itor

vas no âmbito da graduação têm sido propiciadas em decorrência da sua apro-


a re

ximação com tais políticas públicas, já que uma das principais preocupações
advindas da crescente inserção da psicologia nas políticas públicas é garantir
uma formação condizente com a atuação nesses âmbitos e ao mesmo tempo
problematizadora desses âmbitos, ao invés de tomar psicologia, políticas
públicas e seus agenciamentos como auto-evidentes (FERRAZZA, 2016).
par

Ferreira Neto (2017) aponta que uma das ressonâncias possíveis é a realização
Ed

de novas perguntas: ao invés de se restringir à pergunta sobre qual o melhor


conhecimento a ser transmitido, privilegiando disputas entre saberes eurocên-
tricos e em suas aplicações locais, passam a ter lugar indagações como: “Que
ão

profissional desejamos formar? E para qual sociedade? Qual a profissão que


nossa sociedade necessita?” (FERREIRA NETO, 2017, p. 43)
Isso posto, o objetivo deste capítulo é discutir como atividades de for-
s

mação acadêmica do “VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre


ver

Violência, Exclusão Social e Subjetivação” têm contribuído para problema-


tizar condições, efeitos, desafios e possibilidades acerca das conexões entre
Psicologia e Políticas Públicas. Essas atividades têm se respaldado em aportes
teóricos da Psicologia Social que debatem violência, exclusão social e modos
de subjetivação, em suas articulações transdisciplinares tanto com referências

Flávia Lemos - 21982.indd 62 28/02/2020 13:12:53


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 63

pós-estruturalistas, a exemplo de Foucault, Deleuze, Guattari e Butler, quanto


pós/decoloniais, como Mbembe e Sayak Valencia, dentre outros/as.
Na produção deste texto, partimos da premissa de que tanto as atividades
formativas desenvolvidas pelo VIESES dentro da Universidade, tais como
grupos de estudo, seminários temáticos, ciclos de debate e eventos diversos,
quanto as extensões realizadas em diferentes territórios da cidade de Fortaleza-
Ce, contribuem para aprimorar processos formativos críticos e inventivos no

or
âmbito da psicologia frente a vicissitudes e horizontes concernentes às suas

od V
incursões no multifacetado campo das políticas.

aut
O texto está dividido em mais duas seções. Em uma delas, relatamos as
ações de um projeto voltado ao desenvolvimento de atividades acadêmicas
para estudantes do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, no

R
tocante às conexões entre Psicologia, Políticas Públicas e Direitos Humanos.
Na outra seção, apresentaremos as atividades de um dos projetos de extensão

o
desenvolvidos também pelo VIESES, que enfoca o campo da socioeducação.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

2. Projeto “Políticas Públicas e Direitos Humanos:


Potencializando a formação em Psicologia”
visã
São complexos os impasses e as possibilidades de atuação da Psicologia
em políticas públicas. Isso porque devem ser ressaltados, neste bojo, a hetero-
geneidade dessas políticas, a multiplicidade de perspectivas teóricas e episte-
itor

mológicas que orientam as práticas psi neste campo, bem como os diferentes
a re

caminhos que podem tomar tais práticas, movimentando-se desde a norma-


lização social à composição de resistência (SILVA; CARVALHAES, 2016).
Considerando a necessidade de pautar isso, o VIESES propôs, junto
à Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal do Ceará (UFC), o
par

projeto “Políticas Públicas e Direitos Humanos: potencializando a formação


em Psicologia”, contemplado pelo Programa de Bolsa de Apoio a Projetos da
Ed

Graduação dessa universidade, que visa ampliar estratégias de acolhimento a


estudantes na Universidade e no Curso e reduzir os índices de reprovações e
evasões. Esse projeto dirige-se a estudantes de psicologia da UFC, mas recebe
ão

em suas atividades estudantes de Psicologia de outras instituições de ensino


superior do estado e também de áreas afins. O objetivo do projeto é propiciar
o contato de discentes com discussões e vivências acerca das relações entre
s

os campos das políticas públicas, dos direitos humanos e seus desafios e pos-
ver

sibilidades para a Psicologia, a partir de metodologias grupais diversificadas,


como grupos de estudo, cinedebates, saraus, rodas de conversa, oficinas, rela-
tos de experiência, seminários temáticos, ciclos de debate e eventos diversos.
Nesse sentido, desde 2016 até o primeiro semestre de 2018, uma série de
atividades, voltadas ao âmbito da graduação e da formação dos estudantes de

Flávia Lemos - 21982.indd 63 28/02/2020 13:12:53


64

psicologia, vem sendo realizadas pelo VIESES. Esse conjunto de atividades


têm contribuído também para a problematização da formação, instigando
(re)pensarmos a relação entre teoria e prática e a segmentação entre distintos
campos da própria psicologia presentes na organização dos currículos. Ainda
nos é útil a noção de áreas de atuação para pensarmos o campo de trabalho
em psicologia? (FERREIRA NETO, 2011).
Tais ações têm nos auxiliado a refletir sobre as diversas possibilidades da

or
psicologia no campo das políticas públicas, mas também sobre alguns perigos
imanentes a esse contexto de inserção crescente. Um deles é o de investir

od V
numa formação excessivamente operativa e pragmática, em resposta ao viés

aut
conteudista de outrora. O perigo que aí se encontra é abdicar do devido aden-
samento conceitual e reiterar dicotomias entre teoria e prática. Concordamos

R
com Ferreira Neto (2011, p. 45) que “uma formação que tem na teoria seu
fundamento e na prática sua aplicação está longe de ser de fato uma formação

o
crítica”. Nesse sentido, uma pista interessante pode ser encontrada no diálogo
aC
entre Foucault e Deleuze sobre o papel do intelectual: “a prática é um conjunto

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento de uma
prática a outra” (FOUCAULT, 1979, p. 70)
Feitas essas observações, a seguir apresentaremos algumas ações for-
visã
mativas que foram realizadas pelo projeto até o semestre 2018.1. Juntamente
ao relato das ações, traremos algumas problematizações que as amalgamam.
itor

2.1 Grupos de Estudo do VIESES


a re

Aconteceram seis grupos de estudos abertos a estudantes de graduação de


psicologia e áreas afins: três deles em 2017.1, um em 2017.2 e dois em 2018.1.
No primeiro semestre de 2017, foram criados espaços de discussão sobre “O
pensamento de Michel Foucault e suas contribuições ao debate sobre poder,
par

normalização e violência”, além de outro espaço formativo sobre “Pesquisa-


-intervenção com juventudes em contextos de violência”. Esses dois grupos
Ed

tiveram em comum o tema da violência. O primeiro grupo tinha uma proposta


de aprimoramento teórico, a fim de colocar em análise a violência como um
dispositivo. O segundo grupo, por seu turno, tinha um enfoque na discussão
ão

metodológica sobre perspectivas e estratégias de pesquisa participativa que


investissem na pesquisa COM juventudes, e não SOBRE juventudes, em
contextos marcados por violência.
s

Em 2017, também foi inaugurado o grupo de estudos sobre “Psicologia,


ver

Políticas Públicas e Direitos Humanos”. A proposta desse grupo é trabalhar


as conexões entre esses três elementos a partir de temáticas específicas, de
modo a refletir não só como a psicologia maquina intervenções no campo das
políticas públicas, mas também vem produzindo conhecimentos e pesquisas
nesse campo (GUARESCHI, 2017)

Flávia Lemos - 21982.indd 64 28/02/2020 13:12:53


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 65

Durante os encontros, em cada semestre, diversos temas foram debati-


dos: A noção de Direitos humanos e seus (des)encontros com a Psicologia e
as Políticas Públicas; O campo da saúde mental e a inserção da psicologia;
adolescentes “em conflito com a lei”, políticas sobre drogas e a perpetua-
ção de práticas manicomiais; Práticas de encarceramento e a fabricação da
delinquência: apostas ético-políticas da psicologia em tempos de volúpia
punitivo-penal; Políticas públicas e direitos humanos nos campos do gênero

or
e da sexualidade; Direitos humanos, Políticas públicas e Juventudes marcadas

od V
pela violência: implicações da (à) Psicologia; Impasses e reinvenções das

aut
políticas públicas no Brasil; Mídia e Produção de Subjetividades: violações
de direitos humanos e formas de resistência em debate; Políticas Públicas

R
de Assistência Social e a inserção da psicologia; Violência contra a mulher:
interseccionalidade entre gênero, classe e raça e desafios à aspectos éticos
para a atuação em Psicologia; Políticas Públicas de Saúde Mental e Políticas

o
Públicas no campo da Justiça: impasses e interfaces com a Psicologia. Esses
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

espaços foram sendo construídos conjuntamente e de modo horizontal entre


facilitadores e participantes (estudantes e profissionais convidados) em cada
edição do grupo.
visã
A partir de textos, relatos de experiências com a presença de convidados,
visitas a políticas públicas e exibição de documentários, no grupo foi possível
pautar possibilidades de atuação, levantar reflexões sobre questões ético-polí-
ticas pertinentes à formação e também sobre a psicologia como área de saber
itor

capaz de contribuir com planejamento, execução e avaliação de políticas públi-


a re

cas (REIS et al, 2014). Não obstante, a fim de exercitar movimentos críticos
e produção de novos horizontes, também pusemos em análise dilemas dessa
inserção em políticas públicas nos últimos anos, tais como as precarizações
das condições e dos processos de trabalho de profissionais de psicologia em
par

diferentes políticas públicas (CASTRO, 2011). Também discutimos aspectos


que remetem à seguinte ponderação de Guareschi (2017, p. 254),
Ed

[...] ainda temos que produzir práticas que engendrem problematizações


sobre determinadas concepções de subjetividade ou que priorizem visões
ão

individualistas [...] e que possam trabalhar para uma despolitização das


políticas públicas. [...] podemos buscar realizar práticas coletivas e demo-
cráticas para que os profissionais da Psicologia possam contribuir cada vez
s

mais para o reconhecimento dos cidadãos enquanto sujeitos de direitos.


ver

No primeiro semestre de 2018, deu-se início ao grupo de estudos “Bio/


Necropolítica: diálogos entre Mbembe, Foucault e Agamben”, o qual teve por
seu objetivo estudar a relação entre a noção de necropolítica, a questão da vio-
lência e das políticas de inimizade na contemporaneidade e suas implicações

Flávia Lemos - 21982.indd 65 28/02/2020 13:12:54


66

nos modos de subjetivação. Tal assunto foi escolhido mediante os interesses


das extensões e pesquisas do VIESES. Discutindo aspectos abordados pelo
pensador camaronês Achille Mbembe, como democracia, neoliberalismo,
sociedade da inimizade, necropolítica e violência colonial, foi proposta uma
(re)leitura das noções de biopolítica e estado de exceção, vitalizando a crítica
social a partir das periferias do capitalismo (HILÁRIO, 2016)

or
2.2 Seminários Temáticos do VIESES

od V
aut
Atividade iniciada em 2017, os seminários temáticos são momentos
formativos organizados pelo VIESES e abertos a estudantes e profissionais
da Psicologia e áreas afins, com intuito de propiciar o contato com o que

R
vinha-se pensando e observando, no fazer cotidiano das práticas sociais, em
torno do fenômeno da violência urbana, no que diz respeito às juventudes

o
marginalizadas de territórios com altos índices de homicídios (Bom Jardim,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Barra do Ceará, Jangurussu e Mondubim) nos quais o grupo esteve inserido
durante o ano.
Em 2017, foram realizados quatro Seminários Temáticos, com os seguin-
tes temas: “Juventudes e modos de habitar a cidade”; “Políticas de pesquisa
visã
em Psicologia”; “Análise epidemiológica e espacial dos homicídios na ado-
lescência em Fortaleza” e “Conflitos territoriais em Fortaleza”. Já no primeiro
semestre de 2018, ocorreram quatro: “Processos de subjetivação e esquizoa-
itor

nálise”; “Psicologia Social da violência”; “Gênero e Necropolítica morte de


a re

mulheres no CE” e “Gênero, masculinidade e violência”.

2.3 Ciclos de Debates do VIESES


par

Outra ação desenvolvida foram os Ciclos de Debates do VIESES, evento


de maior alcance que faz ressoar a um público mais amplo questões atuais,
Ed

relacionadas à problemática da violência e seus tensionamentos ao campo das


políticas públicas. Organizado no modelo de mesa-redonda, com convidados
e convidadas de filiações institucionais diversas e diferentes lugares de fala,
ão

como universidades, movimentos sociais, equipamentos das políticas públicas,


entre outros. Promoveu-se, ao total, seis Ciclos de Debates. O primeiro ciclo
foi sobre Extermínio de adolescentes e jovens no Brasil, o segundo acerca das
s

Políticas sobre drogas, Direitos Humanos e Saúde Mental, o terceiro sobre


ver

Juventudes, Violências e Mídias e o quarto sobre Juventudes, Gênero e Práticas


de Resistência, todos esses no ano de 2016. Em outubro de 2017, tivemos o
V Ciclo de Debates, com o tema Violência institucional contra adolescentes,
que contou com a composição de duas mesas e a presença de cinco convida-
dos no total para debater o sistema socioeducativo cearense e a problemática

Flávia Lemos - 21982.indd 66 28/02/2020 13:12:54


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 67

dos homicídios na adolescência. No primeiro semestre de 2018, ocorreu o VI


Ciclo de Debates, abordando o tema Racismo e Violência.

2.4 Rodas de Conversa sobre ações de pesquisa, ensino e extensão


em Psicologia no campo dos Direitos Humanos

Com o objetivo de facilitar a ambientação de estudantes do início do

or
curso, houve, em 2016 e 2017, a participação do VIESES durante a semana

od V
de recepção dos alunos recém-ingressos e, também, na disciplina “Introdução

aut
à Universidade e ao Curso”, momentos em que ações de pesquisa, ensino
e extensão do núcleo sobre violência, juventude e direitos humanos foram
apresentadas. No início do primeiro semestre de 2018, tivemos a apresen-

R
tação das atividades desenvolvidas pelo VIESES na recepção dos alunos
recém-ingressos na Universidade e no processo seletivo realizado para se

o
vincular ao núcleo.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

2.5 Participação na organização e realização de eventos envolvendo


Direitos Humanos, Políticas Públicas, Juventude e Psicologia
visã
Em maio de 2017, durante a programação que marcou o Dia da Luta
Antimanicomial, houve apoio do VIESES na organização e na divulgação do
evento “O enclausuramento da loucura e da pobreza: uma discussão a partir
itor

de práticas de encarceramento”, promovido em conjunto com o projeto de


a re

extensão Pasárgada.
Em agosto do mesmo ano, ocorreu o VII Simpósio Internacional sobre
a Juventude Brasileira – JUBRA, evento bianual ocorrido em Fortaleza e
que recebeu participantes de todo o país, o qual, também, contou com nossa
par

participação na comissão organizadora e mobilizou estudantes de Psicologia


para a organização. Já em novembro, ocorreu o I Seminário sobre Segurança,
Ed

Direitos Humanos e Convivialidade do Centro de Humanidades da UFC, cujas


programação e divulgação também contaram com nossa participação; e lugar
onde discutiu-se a situação atual da violência no campus, em seu entorno e
ão

na cidade.
Desde fevereiro de 2018, o VIESES participa do “Movimento Cada Vida
Importa”, mobilização de docentes e estudantes de dezenas de instituições de
s

ensino superior do Ceará para sensibilizar a comunidade acadêmica e geral


ver

quanto à violência nas periferias do Ceará, atentando-se principalmente à


juventude. Em abril de 2018, participamos da organização do Segundo Semi-
nário do Movimento Cada Vida Importa, abordando impactos da desigualdade
social no crescimento da violência no Ceará. (NEGREIROS; QUIXADÁ;
BARROS, 2018)

Flávia Lemos - 21982.indd 67 28/02/2020 13:12:54


68

Em maio de 2018, em função do mês alusivo à Luta Antimanicomial,


realizou-se novamente, em parceria com o projeto de extensão Promoção de
Arte, Saúde e Garantia de Direitos (Pasárgada – UFC), a mesa “Enclausura-
mento da Pobreza e da Loucura: diálogos entre saúde mental e justiça”, sendo
apoiado também o II Sarau Antimanicomial. Essas atividades compuseram
a programação da II Semana da Luta Antimanicomial, organizado pelo Cen-
tro Acadêmico de Psicologia Fátima Sena da UFC com o apoio do Fórum

or
Cearense da Luta Antimanicomial (FCLA). Em junho, houve participação
e organização na exibição do filme “Cidade de Deus”, em parceria com o

od V
Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), da UFC,

aut
e o Movimento Cada Vida Importa, para discutir o tema do extermínio de
adolescentes e jovens no Brasil.

R
3. Projeto Histórias Desmedidas: trajetórias

o
juvenis em outros riscos
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


O Projeto “Histórias Desmedidas: Trajetórias Juvenis em Outros Riscos”
teve início em 2016 e tem como foco o acompanhamento de adolescentes
a quem se atribui o cometimento de ato infracional e que se encontram em
visã
cumprimento de medida socioeducativa. Trabalhando em duas frentes, possui
dois propósitos principais: 1) Contribuir com o monitoramento do sistema
socioeducativo local realizado por entidades da sociedade civil ou pelo sistema
itor

de justiça, incidindo técnica e politicamente no campo da defesa de direitos de


juventudes na cidade de Fortaleza, com foco na atuação da psicologia nesse
a re

campo. 2) Construir espaços coletivos de problematização com adolescentes


a quem se atribui o cometimento de ato infracional e que cumprem medida
socioeducativa acerca de suas trajetórias e perspectivas de vida, por meio da
discussão de temas ligados à condição juvenil na contemporaneidade e ao
par

campo dos direitos humanos.


As ações têm como intuito desnaturalizar processos de violação de direi-
Ed

tos e assujeitamentos juvenis e potencializar o compartilhamento de histórias,


por vezes, invisíveis e inaudíveis socialmente. Busca, também, potenciali-
zar dispositivos de intervenção voltados para o monitoramento de unidades
ão

socioeducativas, bem como instituições governamentais e de terceiro setor


que lutam pelos direitos da infância e juventudes. A realidade cearense vem
sendo denunciada nos monitoramentos produzidos pelos Fórum DCA, o qual
s

essa frente atua. O 4º Monitoramento do sistema socioeducativo, por exem-


ver

plo, apresentou inúmeras violações de direitos, violências, insalubridades


nas dependências dos centros e casos de violência institucional, os quais
culminaram em uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Huma-
nos (CIDH), resultando uma medida cautelar contra o governo brasileiro em
decorrência dessa realidade nas instituições de privação de liberdade.

Flávia Lemos - 21982.indd 68 28/02/2020 13:12:54


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 69

Temos percebido que as discussões propostas nas atividades com os/


as jovens em cumprimento de medida socioeducativa, com profissionais e
com grupos de defesa de direitos da infância e juventude subverte a lógica
que acaba por essencializar a associação entre jovens negros, pobres, risco
social e violência (LEMOS; SCHEINVAR; NASCIMENTO, 2014), tal lógica
opera por três funções: culpabilização, segregação e silenciamento. Essas três
funções são apontadas por Guattarri e Rolnik (2005) como parte da economia

or
subjetiva capitalística.

od V
Nesse sentido, consideramos que as forças capitalísticas, as quais têm

aut
incidido de forma mais violenta na produção da infância, adolescências e
juventudes desiguais, afirmam-se por modos de dominação no plano econô-
mico e social, assim como na produção de subjetividade. Essa produção de

R
subjetividade, no contexto do Capitalismo Mundial Integrado, é serializada,
normalizada e centralizada em torno de uma imagem e consenso, sendo esse

o
seu enquadramento, o que permite a sua propagação na forma de produção e
aC
consumo das relações sociais. (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Constitui-se,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

dessa forma, um desafio para a psicologia produzir em meio a essas perversas


lógicas, bem como a ampliar sensibilidades, de forma a reconhecer os pontos
de rupturas e os focos de resistência ético-estético-político.
visã

3.2.1 Colaboração com monitoramento do sistema socioeducativo


local, com produção de relatório e recomendações
itor
a re

Em relação ao primeiro objetivo do projeto, contribuímos com a reali-


zação do monitoramento do sistema socioeducativo do Ceará realizado pelo
Fórum DCA. Em 2016, as atividades se deram a partir da colaboração com o
monitoramento do sistema socioeducativo por meio de uma parceria com o
par

Fórum-DCA, os monitoramentos foram nos Centros de Referência em Assis-


tência Social (CREAS) e nas unidades socioeducativas. Em 2017, ampliamos
Ed

nossa colaboração por meio de visitas, em conjunto com membros do Fórum,


a 10 centros educacionais de Fortaleza, também auxiliando a equipe do Fórum
DCA. Essas ações resultaram no quarto relatório de monitoramento do sis-
ão

tema socioeducativo do Ceará do Fórum DCA-CE. Nesse monitoramento, ao


todo, foram escutadas 200 pessoas, das quais 115 são adolescentes socioe-
ducandos, considerados os principais beneficiários da socioeducação, o que
s

atesta o impacto social dessa frente de ação de nosso projeto de extensão e a


ver

importância desse tipo de colaboração, da universidade junto à sociedade civil


organizada. Ademais, foi realizada, na sede do CEDECA-CE, uma oficina de
elaboração de um conjunto de recomendações ao poder público e ao sistema
de justiça acerca do sistema socioeducativo local, da qual integrantes do nosso
projeto também participaram. Esses produtos técnicos tiveram seu lançamento

Flávia Lemos - 21982.indd 69 28/02/2020 13:12:54


70

na Universidade Federal do Ceará, no V Ciclo de Debates do VIESES- UFC,


ocorrido no segundo semestre de 2017, que contou com a presença de 100
participantes, entre representantes do legislativo, do UNICEF, de coletivos
juvenis, do CEDECA e do sistema socioeducativo, além de estudantes da
psicologia e de áreas afins, da UFC e de outras IFES.
No semestre 2018.1, as atividades foram deslocadas para a contribuição
do Plano Decenal do Socioeducativo do Ceará, o qual consiste em um docu-

or
mento de metas, destinado a cumprir durante uma década (2018-2028), para a

od V
melhoria do sistema socioeducativo no Estado. Os próximos monitoramentos

aut
no sistema socioeducativo se darão a partir desse plano, por isso sua impor-
tância. A principal atividade consistiu em compor a Comissão Socioeducativo
composta, também, pelo Fórum-DCA, Cedeca, Comdica, Cress-Ce e CRP-11.

R
Outra atividade se trata da Comissão Intersetorial de Elaboração do Plano
Decenal, a qual definirá, até o fim do ano de 2018, o Plano Decenal final. Nas

o
reuniões, foi possível identificar algumas denúncias de familiares e socioe-
aC
ducandos/as, a partir das organizações não governamentais presentes, como:

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dificuldade de atendimento de saúde, perseguições de profissionais por parte
de direções devido às denúncias que estes fazem da violência institucional
contra adolescentes nas unidades de internação, novas rebeliões, cuja uma
visã
delas culminou na morte de uma jovem em cumprimento de medida socioe-
ducativa no Centro Cardeal Aloísio Lorscheider no mês de junho de 2018.
Ajudamos ainda a promover, em conjunto com o Centro de Referência
itor

Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) do CRP-11, uma oficina


a re

sobre a atuação do psicólogo em medidas de internação. Como produto dessa


oficina, colaboramos na atualização do documento de Referências Técnicas
para a atuação do psicólogo nas medidas de internação, o qual tem por obje-
tivo balizar a atuação de psicólogos, em todo o Brasil, inseridos em medida
de meio fechado.
par
Ed

3.2.2 Oficinas com Jovens em Cumprimento de Medida


Socioeducativa de Prestação de Serviço à Comunidade (PSC) no Cuca
da Barra do Ceará.
ão

Concernente à segunda frente do projeto, Em 2016, foram realizadas ati-


vidades grupais em formato de oficinas em um grupo composto 10 adolescen-
s

tes, de 15 a 17 anos, em cumprimento de medida socioeducativa de prestação


ver

de serviço à comunidade (PSC) no Cuca da Barra do Ceará, totalizando 5


encontros. Em 2017, essas atividades resultaram em 8 oficinas com outros 10
adolescentes na mesma condição as quais tiveram frequência quinzenal. Os
temas das oficinas são escolhidos pelos participantes, tais como: trajetórias
juvenis em territórios das periferias urbanas; racismo; ECA; profissionalização

Flávia Lemos - 21982.indd 70 28/02/2020 13:12:54


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 71

e acesso ao mercado de trabalho; relações com a violência e medidas socioe-


ducativas; injustiças sociais e perspectivas de futuro. Nessa mesma edição,
foi proposto que o grupo participante criasse, a cada encontro, um produto a
ser compartilhado com o equipamento e à comunidade, a partir das temáticas
discutidas, tais como murais informativos sobre direitos de crianças e adoles-
centes, letras de rap, grafite, fanzine, fotografias que pudessem estampar as
dependências do equipamento, etc. No tocante a esses produtos, destacou-se,

or
ao final do semestre, a produção de um vídeo com ajuda dos adolescentes sobre
o Cuca Barra, com o intuito de que fosse apresentado a novos adolescentes

od V
jovens que chegassem ao equipamento, para que estes pudessem conhecê-lo

aut
sob a perspectiva daqueles que o frequentam e que nem sempre adquirem
visibilidade e dizibilidade.

R
3.2.3 Campanha de discussão sobre a Redução da Maioridade Penal

o
com Jovens em parceria com a Rádio Cuca
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Em meados de 2017, expandimos as ações ligadas ao segundo objetivo


do Projeto para o Cuca do Mondubim. Naquela época, mais uma vez estava
em vigor a discussão em torno de propostas de redução da maioridade penal.
visã
Assim, propusemos uma campanha de discussão sobre essa questão com
jovens que participam da equipe de comunicação da Rede Cuca, a fim de
que novas narrativas sobre a violência urbana e responsabilização juvenil
itor

pudessem ser construídas e pudessem circular no equipamento. Essa atividade


surge em contraponto a produção de sentidos vinculados no cotidiano de
a re

grandes mídias que perpetuam a naturalização da violência e criminalização


da infância e juventude negra e periférica.
Assim, nossa intervenção problematizou questões como o recrudesci-
mento da lógica penal-punitiva, sua seletividade racial, bem como a gestão
par

da pobreza por meio do encarceramento em massa, o perfil dos jovens encar-


cerados e privados de liberdade e a ineficiência do sistema penal brasileiro, a
Ed

exemplo do estadunidense, na redução dos índices de violência e da sensação


de insegurança social. A campanha se iniciou com uma oficina sobre redução
da maioridade penal com 15 jovens da equipe de comunicação dos Cuca
ão

Barra, Jangurussu e Mondubim, responsáveis por produzir conteúdo acessível


a jovens que frequentavam os três Cucas. Na oficina, foram discutidas 18
razões divulgadas pelo Conselho Federal de Psicologia contrárias à Redução
s

da Maioridade Penal. Foram debatidos também os modos como os oligopólios


ver

midiáticos abordam essa questão e como é possível usar o dispositivo da mídia


para produzir outras leituras sobre o assunto que contemplem as perspectivas
das juventudes periféricas, principais alvos da volúpia punitivo-penal. Foram
produzidos 18 conteúdos resultantes dessa oficina, na forma de spots, a serem
veiculados pela Rádio Cuca das três instituições durante o mês de novembro.

Flávia Lemos - 21982.indd 71 28/02/2020 13:12:55


72

3.2.4 Acompanhamento de grupo de adolescentes em cumprimento


de medida socioeducativa de Liberdade Assistida (L.A) e
acompanhamento das acolhidas de adolescentes em cumprimento de
PSC e L.A no CREAS da Regional V.

Outra atividade do ano de 2018, relativa à segunda frente, foi a inserção,

or
por meio de observações participantes, em cinco encontros de um grupo de
adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade Assis-

od V
tida, no CREAS da Secretaria Executiva Regional V, que que atende pessoas

aut
do Grande Bom Jardim e Mondubim, contextos onde o VIESES já atuava. Em
média participaram do grupo 15 adolescentes, em sua grande maioria do sexo

R
masculino. Acompanhamos discussões relacionadas a temas como racismo,
hip hop/cultura negra e capoeira como expressão cultural, conduzidas por

o
educadores sociais contratados pelo Governo do Estado do Ceará. Ao término
aC
do grupo, a atividade de inserção foi o acompanhamento de três acolhidas a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


novos adolescentes e jovens, responsabilizados com medida socioeducativa
de PSC e LA no referido CREAS. Estas consistem em momentos de recepção
por parte da equipe do equipamento, que expõe ao adolescente e ao seu parente
visã
responsável, que o acompanha, como funciona o cumprimento da medida.
Em 2018.2, está previsto o desenvolvimento de outro grupo de discussão,
a partir de oficinas semanais sobre experiências juvenis e direitos humanos,
itor

em um formato semelhante aos que já realizamos na Barra do Ceará, conforme


a re

mencionado acima. Nesta oportunidade, porém, pactuamos a execução con-


junta do grupo com o Projeto Traficando Saberes, do Laboratório de Estudos
da Violência (LEV), ligado ao Departamento de Ciências Sociais da UFC,
que já vinha realizando ações no referido CREAS desde 2017.
par

4. Considerações finais
Ed

Por meio de suas ações de formação acadêmica dentro da universidade


e de extensão universitária, o VIESES busca contribuir com a formação de
ão

estudantes que problematizem o campo das políticas públicas, a inserção da


psicologia nesse contexto, ao mesmo tempo em que criam possibilidades de
ação inventiva nesse campo.
s

Com o projeto de extensão “Histórias Desmedidas: Trajetórias Juvenis e


ver

Outros Riscos”, buscamos desenvolver nos estudantes envolvidos os seguintes


aspectos: maior conhecimento das possibilidades de inserção da Psicologia no
enfrentamento de violências e no sistema socioeducativo; autonomia e proa-
tividade no desenvolvimento de atividades de campo; capacidade de trabalho

Flávia Lemos - 21982.indd 72 28/02/2020 13:12:55


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 73

em equipe e de co-engendramento de aspectos teóricos e práticos; capacidade


de diálogo com atores sociais da cidade; competência para operar crítica e
criativamente com dispositivos grupais, na perspectiva de potencialização de
processos de singularização; desenvolvimento de competências na elaboração
de relatórios técnicos.
Almejamos ainda que sejam criadas, em conexão com o ensino e a prática

or
de pesquisa, ações que oportunizem aos estudantes e ao público envolvido
tanto a potencialização de reflexões e deslocamentos atinentes à efetivação

od V
da cidadania de juventudes que habitam as margens urbanas, quanto o desen-

aut
volvimento de ferramentas de intervenção que problematizam a escalada de
violências contra esses segmentos sociais, numa perspectiva micropolítica,

R
e as respostas tradicionais ao problema da violência urbana, as quais têm
passado pelo recrudescimento de lógicas punitivo-penais.

o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 73 28/02/2020 13:12:55


74

REFERÊNCIAS
BRIGAGÃO, Jaqueline; NASCIMENTO, Vanda Lúcia Vitoriano do; SPINK,
Peter Kevin. As interfaces entre psicologia e políticas públicas e a configuração
de novos espaços de atuação. REU - Revista de Estudos Universitários,
v. 37, n. 1, p. 199-215, 2011.

or
CASTRO, Rosangela de Barros. Psicologia e políticas públicas: articulações

od V
possíveis. Psicologia política, v. 11, n. 22, p. 377-381, 2011.

aut
DIMENSTEIN, Magda; MACEDO, João Paulo. Formação em Psicologia:

R
Requisitos para Atuação na Atenção Primária e Psicossocial. Psicologia ciên-
cia e profissão, v. 32, n. esp., p. 232-245, 2012.

o
aC
FERRAZZA, Daniele Andrade. Psicologia e políticas públicas: desafios

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


para superação de práticas normativas. Revista Polis Psique, v. 6, n. 3,
p. 36-58, 2016.
visã
FERREIRA NETO, João Leite. A atuação do psicólogo no SUS: análise de
alguns impasses. Psicologia ciência e profissão, v. 30, n. 2, p. 390-403, 2010.
itor

______. Psicologia, Políticas Públicas e o SUS. 2. ed. São Paulo/Belo Hori-


a re

zonte: Escuta/FAPEMIG, 2017.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo.


par

Petrópolis: Vozes. 2005.


Ed

GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima. Psicologia e Políticas Públicas: as


práticas profissionais no campo da saúde e da assistência social. Psicologia:
Ciência e Profissão, v. 37, n. 2, p. 253-257, 2017.
ão

HILÁRIO, Leomir Cardoso. Da biopolítica à necropolítica: Variações Fou-


s

caultianas nas periferias do capitalismo. Sapare aude, v. 7, n. 12, p. 194-


ver

210, 2016.

HUNING, Simone Maria; SILVA, Wanderson Vilton Nunes da; SILVA, Aline
Kelly. Currículos e interface entre clínica psicológica e o sistema único de
saúde brasileiro. Revista Psicologia e Saúde, v. 6, n. 2, p. 11-19, 2014.

Flávia Lemos - 21982.indd 74 28/02/2020 13:12:55


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 75

NEGREIROS, Daniele Jesus; QUIXADÁ, Luciana Martins; BARROS, João


Paulo Pereira. Movimento cada vida importa: a universidade na prevenção e no
enfrentamento à violência no Ceará. Universidade e Sociedade, a. XXVIII,
n. 62, p. 80-87, 2018.

REIS, Carolina dos; GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; HUNING,


Simone Maria; AZAMBUJA, Marcos Adegas de. A produção do conheci-

or
mento sobre risco e vulnerabilidade social como sustentação das práticas

od V
em políticas públicas. Estudos de Psicologia, v. 31, n. 4, p. 583-593, 2014.

aut
LEMOS, F. C. S.; SCHEINVAR, E.; NASCIMENTO, M.L. Uma análise do
acontecimento “crianças e jovens em risco”. Psicologia & Sociedade. v. 24,
n. spe., p. 25-30, 2012.
R
o
SILVA, Rafael Bianchi; CARVALHAES, Flávia Fernandes de. Psicologia e
aC
políticas públicas: impasses e reinvenções. Psicologia & Sociedade, v. 28,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

n. 2, p. 247-256, 2016.

YAMAMOTO, Oswaldo Hajime; OLIVEIRA, Isabel Fernandes de. Política


visã
social e psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa.
v. 25, n. esp., p. 9-24, 2010.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 75 28/02/2020 13:12:55


Flávia Lemos - 21982.indd 76
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:55
EL PROYECTO DE CIUDAD CREATIVA
Y EL ENTORNO SOCIAL DEL PARQUE
MORELOS DE GUADALAJARA4

or
V
Bernardo Jiménez-Domínguez

aut
1. Introducción

CR
do
Las ciudades latinoamericanas, como afirma Borja (2003), han confun-
dido la urbanización con la sub-urbanización, de ahí la enorme fragmentación
político-administrativa, social y de usos con la consecuente privatización,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

disminución y/o abandono del espacio público.


são
Por el contrario, la ciudad integrada se caracteriza por el espacio público
que se ejerce tradicionalmente en plazas, parques y calles (en sus esquinas y
ra
aceras), cuyo acceso universal, calidad y desarrollo garantizan la identidad
i
colectiva y el ejercicio de la ciudadanía. El espacio público supone pues,
rev

dominio público, uso social colectivo y multifuncionalidad.


En ese sentido, la negación de la ciudad es el estrechamiento del espacio
to

público, el aislamiento, la exclusión de la vida en común y de la diversidad


urbana, la segregación de la ciudad fragmentada que funciona asimétrica-
ara

mente alrededor del automóvil y de centralidades cerradas sobre sí mismas,


como los centros comerciales.
ver di

Por todo lo anterior se ha planteado la ciudad sostenible, el modelo


local de la ciudad compacta, inteligente y creativa que permite regenerarla
op

y la incorporación simultánea a nivel de la gestión urbana de la participa-


ción ciudadana. Es decir, en el trasfondo del asunto aparece la democracia
E

participativa como marco de los proyectos viables de regeneración urbana


(Jiménez & López, 2000).

2. El modelo de Ciudad Compacta

El modelo de ciudad compacta se relaciona de forma estrecha con el


objetivo vigente de la ciudad sostenible porque busca disminuir el consumo
per cápita de energía, implica aire y agua más limpios, menor congestión

4 Esta es una versión resumida de un texto previo presentado en la Mesa “Gentrificación y el Proyecto de la
Ciudad Creativa Digital, en el Museo Regional de Guadalajara, el 19 de julio de 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 77 28/02/2020 13:12:55


78

de tráfico y espacios públicos abiertos e interconectados dado que la ciudad


sostenible es por definición una ciudad caminable. La ciudad compacta
según Rogers (2006), es una ciudad densa y socialmente diversa en la que se
sobreponen las actividades económicas y sociales y en la que las comunidades
están concentradas en torno a barrios.

3. Críticas al modelo de Ciudad Compacta (CC)

or
od V
La CC se ubica en lo que se ha denominado la paradoja entre deseabilidad

aut
urbana y habitabilidad suburbana, presente en conceptos actuales tales como
el de la misma ciudad compacta, pero también en otros relacionados como los
de ciudad creativa, ciudad digital, crecimiento inteligente, comunidad sana,

R
nuevo urbanismo y en conjunto, desarrollo urbano sostenible (DUS). Las
Ciudades Compactas son llamadas también, ciudades inteligentes, creativas,

o
desarrollos orientados al tránsito o pueblos neotradicionales como parte del
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


movimiento de crecimiento inteligente. Sin embargo, según Neuman (2005),
la evidencia empírica sobre la relación entre la revitalización de la CC y la
sostenibilidad urbana es de una correlación negativa, débilmente relacionada
o correlacionada solo en términos limitados y los estudios empíricos no son
visã
conclusivos sobre el vínculo entre mayor densidad y la reducción de viajes
en auto, que es una de sus metas.
itor

4. El Desarrollo Urbano Sostenible (DUS)


a re

La problemática urbana señalada y la discusión de modelos alternativos


es un reconocimiento implícito de la insostenibilidad del modelo actual de
desarrollo en todo el planeta y a todos los niveles. A partir de ello se abre
par

un espectro amplio, ambiguo y contradictorio de posiciones. Los debates y


aplicaciones van desde aquellos que piensan que el modelo actual todavía
Ed

aguanta un tiempo adicional de maltrato ambiental, asimetría social y ausencia


de participación política de la ciudadanía a nivel local y a nivel global, hasta
los que luchan por cambios inmediatos y urgentes. Por eso se habla de una
ão

sostenibilidad débil y una fuerte y ello se hace también desde diferentes


posiciones de poder e intereses que mueven la geopolítica Norte/Sur. Fer-
nández (2000) ha planteado que la sostenibilidad debe darse no solo a nivel
s

ecológico y ambiental, sino también a nivel social y político.


ver

Pero tal vez la mejor respuesta al tema de la sostenibilidad urbana ha


sido la Agenda Copenhagen para las ciudades sostenibles: 10 principios para
la gobernanza sostenible de la ciudad (2007). Esta agenda replantea la rela-
ción de competencia entre la ciudad y la naturaleza para redefinir a la ciudad
como un organismo autosostenible que se basa en el sentido de ciudadanía y

Flávia Lemos - 21982.indd 78 28/02/2020 13:12:55


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 79

responsabilidad individual. Las ciudades sostenibles son ciudades participa-


tivas en las que la planeación urbana es multidisciplinaria y cooperativa
y su eje es la gente más que el diseño aislado. En ellas las empresas forman
parte de la planeación participativa y asumen su responsabilidad en la soste-
nibilidad urbana. La cooperación global se considera esencial para resolver
los problemas de las ciudades en desarrollo. La gobernanza flexible y una
mentalidad abierta a los cambios inesperados e impredecibles es vital para

or
afrontar las situaciones de crisis. Los líderes urbanos deben estar capacitados

od V
para lidiar con las interconexiones complejas de las nuevas instituciones y

aut
sus asociados. Dicha agenda se extendió a las 17 Metas para el desarrollo
sostenible en 2018 que abarcan el contexto propiciatorio realista para ir mas
allá del discurso tradicional sobre el tema: en primer lugar, acabar con la

R
pobreza en todas sus formas y en todas partes. Luego sigue acabar con el
hambre, lograr la seguridad alimentaria, mejorar la nutrición y promover la

o
agricultura sostenible. En tercer lugar, asegurar vidas saludables y promover
aC
el bienestar para todos y para todas las edades. De ahí se sigue con la inclu-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sividad y educación de calidad para promover oportunidades educativas para


todos y para toda la vida. Mas adelante se enfatiza la igualdad de género para
empoderar a todas las mujeres y niñas. Y en séptimo lugar se plantea energía
visã
sostenible, confiable y al alcance de todos. Mas adelante que el crecimiento
económico sostenido, inclusivo con empleo productivo y trabajo decente
para todas las personas. Para ello se debe promover infraestructura resiliente
itor

y una industrialización innovadora y sostenible. Es indispensable reducir la


a re

desigualdad entre y dentro de los países. Hacer que los asentamientos sean
humanos y las ciudades sean incluyentes, seguros, resilientes y sostenibles.
Asegurar los patrones de producción y consumo sostenibles. Hay que impul-
sar acciones urgentes para combatir el cambio climático y su impacto. La
conservación y uso sostenible de los océanos, mares y recursos marinos para
par

el desarrollo sostenible. Proteger, restaurar y promover el uso sostenible de


Ed

los ecosistemas terrestres, manejo sostenible de bosques, la lucha contra la


desertificación y detener y revertir la degradación de la tierra y la pérdida de
la biodiversidad. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para el desarrollo
ão

sostenible proveyendo el acceso a la justicia para todos construyendo institu-


ciones transparentes e inclusivas a todos los niveles. Finalmente, fortalecer
los medios para la implementación y revitalización de la colaboración global
s

para poder lograr un auténtico desarrollo sostenible.


ver

El modelo de ciudad compacta, creativa y sostenible como alternativa


vigente busca a través de una gestión municipal consecuente la preservación
de su patrimonio y el buen funcionamiento económico a partir de proyectos de
revitalización urbana que hacen competitiva las ciudades de forma sostenible
y equitativa. Pero cuando las oportunidades de regeneración urbana se dan

Flávia Lemos - 21982.indd 79 28/02/2020 13:12:55


80

prioritariamente como negocios a costa de los habitantes de los centros


históricos o patrimoniales con la consecuente corrupción, tenemos como una
posible consecuencia oculta, el fenómeno denominado gentrification en la
literatura de los estudios urbanos, que significa literalmente aburguesamiento,
a partir del cual con la excusa del embellecimiento y la revalorización eco-
nómica, los habitantes originales son gradualmente sustituidos por otros de
mayor capacidad adquisitiva, dejando de lado la perspectiva social, cultural

or
e histórica de un enfoque simétrico, integral y sostenible. En ese sentido, la

od V
sostenibilidad urbana es multidimensional y asume una ética de las ciudades

aut
que solo es posible a partir de las personas en su entorno local. Tal como se
planteó en el Fórum Barcelona en 2004, son los residentes los verdaderos

R
activos a ser incluidos en los procesos de revitalización urbana. Por eso
es preciso proteger la identidad cultural y controlar a los agentes inmo-
biliarios para que se adapten a ella y no que pasen por encima con justi-

o
ficaciones puramente especulativas, inmediatistas y unilaterales. O como
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


lo plantea la Agenda Copenhagen, el diseño y la arquitectura deben partir de
los valores de los ciudadanos y el respeto del ambiente, de su inclusión como
ventaja y enriquecimiento de los proyectos urbanos, porque es la gente la
visã
que hace la ciudad, no los edificios. Son ellos los verdaderos expertos de
la ciudad, no los burócratas.

5. El Parque Morelos: De la oferta de la ciudad


itor

compacta a la ilusión de la ciudad digital


a re

Aprovechando la oportunidad de los Juegos Panamericanos 2011, el


Ayuntamiento de Guadalajara definió en 2008 un proyecto de vivienda para
las 8 mil personas de las delegaciones nacionales asistentes a los Juegos en
par

los alrededores del Parque Morelos, que impulsara a la vez la revitalización


del Centro Histórico. Las autoridades de planeación urbana lo conceptualiza-
Ed

ron como un proyecto sostenible para la re-densificación del centro según el


concepto de ciudad compacta, la generación de espacios públicos conectados
ão

por corredores peatonales, la revitalización del patrimonio construido y la


creación de un sistema de BRT en la aledaña Calzada Independencia.
El Ayuntamiento contaba ya con la propiedad del 70% del suelo pro-
s

yectado y compró 54 propiedades que se ubican dentro del espacio de lo que


ver

se conoció como el proyecto oficial para la Villa Olímpica (que es ahora el


núcleo de lo que pretende ser la CCD). Tanto los vecinos afectados, como
la ciudadanía, e incluso los colegios profesionales, centros de investigación
y universidades, desconocían el proyecto. Lo cual supone que no fueron

Flávia Lemos - 21982.indd 80 28/02/2020 13:12:55


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 81

convocados ni incluidos en su definición. De ahí vendrían buena parte de


los problemas.
El diseño se resolvió a través de una definición unilateral al asignar
edificios a arquitectos de renombre internacional y nacional, y a nivel local
se hizo un concurso en el que se adjudicaron 6 edificios de un total de 13.
Igualmente se asignó el proyecto de renovación del Parque Morelos y de la
Plaza de la Acequia y se encargó un plan maestro a un especialista. Se creyó

or
de forma unilateral que los vecinos estarían conformes con el precio por

od V
encima del mercado vigente que les ofrecía el Ayuntamiento por sus viviendas

aut
o con el plan de convertirse en inversionistas. Pero no fue así, en este lugar
hay ciudadanos que han sido vecinos por más de tres generaciones y se sien-

R
ten satisfechos y orgullosos de vivir ahí. Son conscientes de su patrimonio,
cultura y relaciones de cercanía entre vecinos y con el centro histórico de la

o
ciudad. Priorizan todo lo anterior pese al deterioro creciente de la zona y en
aC
especial del abandono del Parque Morelos. Es decir, a su manera los vecinos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ya vivían la ciudad compacta en pleno centro histórico de la ciudad. Su


exclusión inicial se tornó en rechazo al proyecto y generó un movimiento de
oposición ante la actitud cerrada del Ayuntamiento con respecto a los recla-
visã
mos de los vecinos a quienes se les prometió aclarar la situación, incluirlos y
darles mayor información sobre el proyecto, lo mismo que sucede ahora solo
en el discurso. Pero como es sabido, el proyecto fracasó y fue dejado de lado.
itor

A inicios de 2012 se anunció públicamente −y lo hizo en Guadalajara


a re

nada menos que el presidente Calderón− que el nuevo proyecto para la rege-
neración del parque, su entorno demolido y el centro histórico como tal, era
la creación de la Ciudad Creativa Digital con base en un estudio realizado
por el MIT en el que se seleccionó a la ciudad como el espacio más adecuado
par

para una iniciativa de negocios digitales. Se promocionó como un modelo


para posicionar a México en un lugar de liderazgo creativo a nivel global, a
Ed

la vez que impulse el desarrollo urbano sustentable. En dicho medio la CCD


promete ser tanto un laboratorio para probar innovaciones, como un mag-
neto para impulsar la industria digital. Se pretende que alrededor del Parque
ão

Morelos se construyan hoteles, restaurantes, centros comerciales y hospitales


de clase mundial interconectados con el centro histórico a partir de espacios
públicos, puentes y senderos peatonales para facilitar un espacio de trabajo.
s

Es decir, el parque visto como una escenografía ajardinada, interco-


ver

nectada y con arcos coloniales para ubicar la nueva ciudad creativa digital.
En una entrevista, Carlo Ratti director del SENSEable City Lab del MIT y
diseñador en jefe del proyecto de la CCD, reconoció que tiene que ser un
proyecto efectivo de regeneración urbana, que tiene que estar relacionado

Flávia Lemos - 21982.indd 81 28/02/2020 13:12:55


82

con el resto de la ciudad y que debe incluir a las comunidades vecinas en


el sitio para poder tener éxito. Sin embargo, en la promoción del proyecto
ésto parece convertirse más bien en algo aleatorio frente a los problemas de
financiamiento y se prioriza la promoción empresarial.

6. De los planes a los problemas de la CCD

or
Pasemos del concepto, la promoción empresarial y los planes de desarro-

od V
llo de la CCD vista desde el MIT, a los problemas situados una vez el proyecto

aut
fue presentado por el presidente en turno el 30 de enero de 2012. El primer
problema es que el presidente mismo señaló que se impulsaría a partir de pro-
gramas de dependencias federales como el programa para el desarrollo de la

R
industria del software, programa de promoción de innovación tecnológica, el
CONACYT, BANOBRAS, CONACULTA, Secretaría de Educación Pública,

o
pero a la hora del cabildeo para gestionar los recursos indispensables para
aC
dar inicio a las obras, argumentó que se le cruzó el cambio de gobierno. Se

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


estableció que de inicio se esperaba una inversión de 10 mil millones de
dólares, pero pasó un año y el gobierno del Estado solo asignó 100 millones
de pesos del presupuesto de egresos 2013 y la federación no aportó recursos.
visã
La primera etapa del proyecto tiene como objetivo la rehabilitación del
Parque Morelos, la promoción y socialización del plan y la construcción de
un instituto digital de las artes. Pero el tiempo para consolidar la CCD está
itor

calculado en un mínimo de 15 años contando con fondos públicos y priva-


a re

dos. La CCD enfrenta no solo la falta de recursos necesarios, sino también


la indefinición en la propiedad de terrenos para llevar a cabo su edificación
porque se ha denunciado que de acuerdo a la auditoría de Pricewaterhouse
Coopers, hay una afectación al erario público de 330 millones de pesos
debido a la mala gestión del gobierno derechista del Partido de Acción
par

Nacional. Solo se tienen terrenos baldíos abandonados, muchos en litigio,


casas pequeñas ocupadas o abandonadas porque no han sido adquiridas. Algu-
Ed

nos de esos predios enfrentan juicios porque los dueños exigieron mayor
pago. Muchas viviendas fueron derrumbadas, adquiridas a bajos precios por
agencias inmobiliarias y revendidas al ayuntamiento de Guadalajara a un
ão

precio más elevado. La zona luce en consecuencia abandonada y hay muchas


quejas al respecto de los vecinos por la inseguridad y contaminación que han
s

generado. El Ayuntamiento respondió provisionalmente maquillando la zona


con algunos arbolitos, bardas y pintura en el exterior.
ver

La secretaría de economía entregó 50 millones para los estudios, pero


se ha calculado que por el enorme retraso en la infraestructura hidráulica que
tiene la metrópoli, pero en particular el centro histórico y los alrededores del
Parque Morelos, se necesitarán por lo menos 17 mil millones de pesos para

Flávia Lemos - 21982.indd 82 28/02/2020 13:12:56


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 83

colectores, redes de agua y drenaje sanitario que de no hacerse pone en


grave riesgo la certificación de sustentabilidad del proyecto y de la urbe.
La definición de DUIS plantea que las áreas de desarrollo deben estar inte-
gralmente planeadas y contribuir al ordenamiento territorial de los estados
y municipios para poder promover un desarrollo urbano justo y sustentable,
que es sabido no es el caso del AMG.
Hay que aclarar que el término ciudades inteligentes nace hace unas

or
pocas décadas con el propósito de generar ambientes sustentables a tra-

od V
vés de la eficiencia energética a lo que se han sumado las tecnologías de

aut
la información como directriz de su desarrollo. La CCD de Guadalajara se
propone integrar según sus metas, infraestructura y sistemas de conectividad,
sensores, recolección y análisis de datos para comprender su funcionamiento

R
y así poder brindar una mejor calidad de vida a sus habitantes. Dichas deci-
siones informadas están a la base de las metas de la reducción de costos, la

o
eficiencia energética y el mejoramiento en las condiciones de vida urbana.
aC
Por ello, la misma IBM ha definido la ciudad inteligente como aquella en
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

la que interactúan entre si los sistemas de transporte, agua y energía de


tal forma que se logre optimizar el funcionamiento individual y en su con-
junto. El diseño de estas estrategias complejas e incompatibles con el modo
visã
de vida dominante actual implican, como se ha venido mencionando, que se
involucren los sistemas a nivel de economía, ambiente, vivienda, movilidad,
gobierno, pero sobre todo, la dinámica de la vida cotidiana de los ciudada-
itor

nos. Si el proyecto de CCD está desfasado y con los problemas concretos


a re

ya mencionados, el mayor atraso lo tenemos justamente alrededor de la


población y en particular de la población del contexto del Parque More-
los, que no aparece como parte de la Fundación de la CCD. Lo que no se
ha mencionado, más que eventualmente, es lo que ha pasado con el entorno
social del proyecto y en especial, con los vecinos que ya viven en el núcleo
par

central de lo que será la ubicación de la CCD, en caso de concretarse en la


Ed

próxima década.

7. La aparición de las personas, los vecinos,


ão

los especialistas en la CCD

Una vez definido el proyecto desde arriba, diseñado por el MIT, plan-
s

teado con un eje fundamentalmente empresarial, en el que el mando está en la


ver

alianza del sector público con el privado, y el centro histórico y en particular


el Parque Morelos es tan solo una locación escenográfica sobre la cual se
construirá la CCD para convertirla en un paisaje inspirador para los creativos
que trabajarán en ella, la dirección del proyecto presionada por las críticas y
la falta de información suficiente, convocó a una serie de Mesas de Análisis

Flávia Lemos - 21982.indd 83 28/02/2020 13:12:56


84

con especialistas sobre una serie amplia y variada de temas relacionados con
la CCD, tales como espacio público, ambiente, equipamiento, infraestructura,
movilidad, vivienda, patrimonio y diseño arquitectónico, que se llevaron a
cabo del 21 de agosto al 2 de octubre de 2012. Los aportes fueron registrados
y se sintetizaron en recomendaciones generales, las cuales resultan en buena
parte difíciles de integrar en el proyecto tal cual, pero además no trascendie-
ron o se fue más allá de hacer la consulta y colgar la síntesis. Es decir, los

or
especialistas y la ciudadanía y vecinos convocados no fueron integrados al

od V
proyecto, difícilmente se puede decir que se integrarán sus aportes, y el pro-

aut
yecto continúa su marcha tal como aparece definido en el sitio. Veamos las
recomendaciones generales que surgieron de las mesas y veremos que hay un
eje común que gira alrededor de lo local y la población afectada:

1. R
Mejorar la calidad de vida de vecinos y usuarios del centro histórico.

o
2. Repoblar sin desplazar a las poblaciones actuales.
aC
3. Integrar a las personas en situación de calle.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


4. Se deben generar oportunidades para sectores formales e informales.
5. Atender a la diversidad de población real y dotarlos de equipa-
miento acorde.
visã
6. Destacar los rasgos identitarios, culturales, patrimoniales y sociales
del Centro Histórico.
7. El polígono de renovación debe ampliarse.
itor

8. La movilidad debe permitir la accesibilidad universal y


a re

ser sustentable.
9. Los espacios públicos deben ser regenerados y la calle generar
encuentros y expresiones.
10. El uso del espacio debe ser democrático y garantizar la conectividad
par

en la zona.
11. Mejorar la calidad ambiental de la zona.
Ed

12. La vivienda como eje implica apoyos para renovación, construc-


ción, redensinficación.
13. Las edificaciones elevadas no son deseables.
ão

14. Diseñar un perfil de necesidades de equipamiento.


15. El patrimonio debe ser potenciado y respetado.
16. Refuncionalización de espacios subutilizados.
s

17. Fases y plazos de acuerdo a la escala del proyecto.


ver

18. Comunicar mejor y de forma más extensa y detallada la iniciativa.


19. La sociedad civil y la iniciativa privada deben coordinarse.

Salta a la vista en este listado la diversidad de sectores que habitan y


usan el entorno del Parque Morelos y que no aparecen en el diseño o las

Flávia Lemos - 21982.indd 84 28/02/2020 13:12:56


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 85

imágenes del proyecto, aparecen sus prioridades, necesidades y expectativas,


pero también las necesidades de un espacio carente de lo más básico en tér-
minos de la infraestructura necesaria para construir ahí la CCD tal como ha
sido diseñada a distancia desde el MIT. Veamos una síntesis de lo planteado
por la representante de los vecinos que más continuidad tuvo en las mesas y
que confirma lo anterior, la maestra Ma. Patricia González:

or
1. No entiendo cómo no hablan de la comunidad que está en

od V
los alrededores….

aut
2. Mi casa no se las doy… nuestras casas no aparecen en los planos
del proyecto…
3. Los drenajes no están bien y son muy antiguos…

R
4. En la zona hay deficiencias fuertes… Las tomas de agua en las casas
tienen problemas…

o
aC
La gente que tiene toda una vida en la zona y que ahí mismo trabaja o
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tiene algún negocio, no quiere irse, tienen miedo de perder a su clientela, su


forma de vida anterior, de quedarse solos. No quieren que les vuelva a pasar lo
mismo del proyecto de las Villas y que quede todo abandonado. No se imagi-
visã
nan en qué pueden trabajar en la CCD. La mayoría son mayores, tienen de 60
años para arriba y no se imaginan cómo serán incluidos. Seis años después,
los avances de la CCD son mínimos o inexistentes, las críticas de expertos
itor

son muchas por su retórica puramente publicitaria, por su inoperancia y la


a re

prensa ha informado sobre los malos manejos que se resumen en los siguientes
datos oficiales en julio de 2018 conforme a lo publicado por #44Lab: En las
revisiones de la Auditoría Superior de la Federación, Auditoria Superior del
Estado y Contraloría del Estado se encontraron presuntos pagos por obras
inexistentes, contratación simulada de personal, adjudicaciones directas ile-
par

gales, duplicidad de pagos y empresas fantasmas. Las observaciones hechas


Ed

a la Ciudad Creativa Digital por diferentes instancias suman más de 134


millones de pesos.
ão

8. El aburguesamiento del espacio como trasfondo real

Como hemos visto hasta aquí, se ve diferente desde arriba, por afuera
s

y en un render el espacio y el entorno del Parque Morelos y sus funciones.


ver

Visto desde el MIT el Parque es un escenario que adornaría la Ciudad Creativa


Digital, y la vida de barrio se reduce a los flujos caminables e interconectados
que conducen a los diferentes edificios e instalaciones de las empresas y ofi-
cinas de la industria digital como parte de lo que denominan entorno creativo
para mejorar la conectividad social y física. En los renders y maquetas es

Flávia Lemos - 21982.indd 85 28/02/2020 13:12:56


86

visible la homogeneización e higienización de un entorno que se pretende


seguro, limpio y sustentable, cuyo fin explícito es regenerar el Centro Histó-
rico y generar un mejoramiento en la calidad de vida, pero no está claro en
la vida de quiénes, porque los habitantes actuales desaparecen al igual que
sus casas y solo vemos a jóvenes creativos a los que se les abre un futuro de
empleabilidad. A ellos se los emplea para que, en este contexto sofisticado y
bien equipado, creen imágenes que otros en otros países del Sur empobrecido

or
maquilarán por sueldos miserables para convertirlas en productos altamente

od V
cotizados. La diversidad y los contrastes en los diversos ritmos y modos de

aut
vida entre las dos ciudades, la digital y la barrial, parecen desaparecer. Una
evidencia preocupante son los testimonios de las vecinas que encuentran sus
domicilios reemplazados por instalaciones de la CCD en las maquetas que

R
les presentan, lo cual pone en duda el discurso inclusivo de la información
promocional y puramente propagandístico del proyecto, pero más grave aún

o
es que no les puedan dar una explicación lógica al respecto. Tampoco les han
aC
ofrecido comprar sus propiedades, como se hizo en el pasado proyecto de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ciudad compacta. Ahora son más cautelosos, pero tampoco pueden justificar la
desaparición por ahora virtual de sus hogares. Tampoco el tipo de intervención
para mejorar el Parque ha sido consultado y los elementos que lo componen
visã
ya estaban presentes en el proyecto anterior, con la diferencia de que en éste,
los arquitectos ganadores decidieron consultar a los vecinos, dialogar sobre
el proyecto e incorporar sus aportes. Como lo dice una vecina, qué pueden
itor

hacer si todo está ya prediseñado. Una de las preocupaciones en el proyecto


a re

anterior a la CCD, era que el parque actualizado y bien equipado se convirtiera


en el jardín de quienes compraran los apartamentos en los edificios de diseño
en su entorno. En el proyecto de la CCD el Parque es definido como el eje
del proyecto y se lo ve casi como un patio interior del mismo, en el contexto
ampliado e interconectado del centro histórico de Guadalajara.
par

Hay que reconocer que en la perspectiva descrita al inicio sobre la con-


Ed

veniencia de la ciudad compacta y ésta como condición de la sostenibilidad


urbana, el proyecto de ciudad inteligente de la CCD, cumple su cometido en
el diseño, pero es claro también que olvida que ocupa un lugar con historia,
ão

identidad, diversidad y ciudadanos activos y reales que contrastan con el pro-


yecto, sus objetivos y la población a la que define como actores principales
de la CCD, jóvenes creativos altamente cualificados. Es en ese momento en
s

que emerge el aspecto de la homogeneización social como resultado de la


ver

seguridad implícita en las ciudades digitales, que excluye a los extraños y


que facilita el acceso solo a los que acceden a la tecnología y tienen tarjetas
que permiten el ingreso y dominan las claves de acceso, los que no, quedan
atrás, afuera, se convierten en rezagados tecnológicamente. Cómo y en dónde

Flávia Lemos - 21982.indd 86 28/02/2020 13:12:56


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 87

se resuelve, solo participativamente como ha sido el caso allí donde la demo-


cracia es real y no solamente formal.
La CCD no puede resolver la asimetría social a punta de diseño e inver-
sión multinacional. Por el contrario, la contraparte es que al excluir y desplazar
a la población real y abrir las puertas a una población cliente, priorizando los
negocios multinacionales e inmobiliarios, lo que ha sucedido históricamente
es un proceso de gentrificación, de aburguesamiento del espacio. Este término

or
fue acuñado por Ruth Glass (1964) en la introducción de un libro por el Centro

od V
de Estudios Urbanos de UCL al describir lo que llamaba la invasión de los

aut
barrios populares por parte de la clase media y media alta en Londres, lo cual
lleva rápidamente al desplazamiento de la mayoría de pobladores originales.
Dicha segregación del espacio urbano incluye también cambios en el espacio

R
público y el comercio. Como bien lo plantea Clerval (2012), se trata de una
imitación de la ecología urbana de la Escuela de Chicago, la vuelta al centro

o
en lugar de la salida al suburbio vinculada con la reinversión del capital en el
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

centro urbano por parte del sector inmobiliario en alianza con el sector público,
como lo ha explicado Smith (1996), para los inversionistas es una clara opor-
tunidad de ganancias rápidas. Es lo que se ha denominado, acumulación por
expoliación, que a partir del año 2000 se extendió a muchas ciudades en el
visã
mundo como sinónimo de regeneración urbana, ya vimos antes el concepto
de ciudad compacta y sostenibilidad urbana que les sirven de soporte.
De nuevo hay que recordar la Agenda Copenhagen para la que las ciu-
itor

dades sostenibles viables deben ser ciudades participativas en las que la pla-
a re

neación urbana es multidisciplinaria y cooperativa y su eje es la gente más


que los negocios y el diseño aislado. En ella las empresas forman parte de
la planeación participativa y asumen su responsabilidad en la sostenibilidad
urbana. Esta es la alternativa para la viabilidad sustentable de la CCD y son los
par

vecinos quienes lo están recordando a partir de su experiencia, conocimiento


y resistencia ciudadana, a pesar de que ni forman parte de la Fundación CCD
Ed

que dirige el proyecto asesorada por el MIT, ahora ya instalado en el terreno,


ni aparecen contemplados más que en la propaganda externa del proyecto.
Lo otro, es la imposición de un proceso de gentrificación excluyente que se
ão

opone y enfrenta a la población afectada.


s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 87 28/02/2020 13:12:56


88

REFERÊNCIAS
Borja, J. (2003) La ciudad conquistada. Madrid: Alianza Editorial.

Copenhagen Agenda for Sustainable Cities. (2007) 10 Principles for Sustain-


able City Governance. Danish Ministry of the Environment.

or
Clerval, A. (2008). La gentrification a Paris intra-muros: dinamiques spatiales,

od V
rapports et politiques. Tesis de doctorado en geografía. U. de París 1.

aut
Fernández, R. (2000) Gestión ambiental de ciudades. México: PNUMA.

R
Glass, R. (1964). Introduction. In Centre for Urban Studies (Ed.) London:

o
Aspects of Change. London: McKibbon&Kee.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Jiménez, B. y López, R. (2000) La relación necesaria entre identidad urbana
y sostenibilidad posible. Revista Universidad de Guadalajara. 19, 54-60
visã
Jiménez, B. (2002) Which kind of Sustainability for a Social Environmental
Psychology? En Schmuck, P. & Schultz, W. (Eds.) Psychology of Sustainable
Development. Boston: Kluwer
itor

Neuman, M. (2005) The Compact City Fallacy. Journal of Planning Educa-


a re

tion & Research, 25, 11-26

Rogers, R. (2006) Ciudades para un pequeño planeta. Barcelona: Gus-


tavo Gili.
par

Smith, N. (1996) The new urban frontier: gentrification and the revanchist
Ed

city. New York: Routledge.

Sustainable Development Goals. (2018) The Capital of Sustainable Develop-


ão

ment. The City of Copenhagen Actions Plan for the Sustainable Development
Goals. The City of Copenhagen Department of Finance.
s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 88 28/02/2020 13:12:56


TENSÕES NO COTIDIANO DO BAIXO
SÃO FRANCISCO: indicações de análise
da vida ribeirinha através do dispêndio

or
V
Beatriz Vilar Lessa

aut
Marcelo de Almeida Ferreri

CR
1. Linhas de acesso a um cotidiano como objeto

do
Este texto5 se volta para tensões produzidas historicamente por trans-
formações socioculturais vividas no cotidiano em diversos povoamentos do
território do Baixo São Francisco sergipano, a partir de uma leitura conceitual
pouco usual para esse assunto: a do dispêndio.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
Os lugares foram percorridos em função da demanda de produção de
laudo pericial – concluído em 2016 – em um caso de apreciação de impacto
ra
socioambiental, pela construção e funcionamento da barragem de Xingó no
i
município de Canindé do São Francisco / SE. As referidas transformações
rev

socioculturais que incidem sobre a região sergipana seriam provenientes de


amplos processos de desenvolvimento econômico e social que redundam em
to

modificações na vida daquele lugar, tendo a política de geração de energia


como marcador de amplas mudanças históricas.
Este texto tem como principal intuito apontar uma conjuntura de trans-
ara

formações dos modos de vida dos ribeirinhos, desencadeadas pelo desenvol-


ver di

vimentismo na região, indicando a noção de dispêndio de Georges Bataille,


articulada a alguns aportes da concepção de cotidiano de Michel de Certeau,
op

como caminho de análise. A aposta dessa reflexão é que tal análise permite
acesso a elementos importantes da vida comum do lugar e seus respectivos
E

conflitos, para o conhecimento efetivo da vida ribeirinha no contemporâneo.


Antes, porém, cabe sinalizar a vinculação da temática e do ponto de vista

teórico no âmbito de sua área de discussão. Reconhecendo que nem tema,


nem recursos conceituais dizem respeito ao campo estrito da psicologia, pouco
chegada a temáticas da vida do campo e às contribuições dos referidos autores,
é no apelo a uma espécie praticamente exótica de psicologia social que se
situa o exercício proposto. Psicologia social fora de seu escopo propriamente
conhecido, de seu terreno, trata-se de um olhar que aciona toda sensibilidade

5 Este texto foi produzido com base na pesquisa Tensões nos modos de vida do Baixo São Francisco e dis-
pêndio: Um estudo sobre o cotidiano ribeirinho, vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica da Universidade Federal de Sergipe, 2018/2019.

Flávia Lemos - 21982.indd 89 28/02/2020 13:12:56


90

histórico-antropológica possível para refletir sobre assunto que tem morada


mais convencional no campo da geografia, da economia ou da sociologia rural.
É a evocação de uma psicologia social cujo foco se encontra na constituição
histórica, política e antropológica da relação indivíduo e sociedade, e menos
na naturalização desse tipo relação, de interação.
Assim, tudo parecerá, como já dito, fora de seu campo: a análise do
desenvolvimentismo longe do saber da economia, o tratamento do tema dos

or
modos de vida sem o apoio categórico da antropologia, o acionamento da

od V
noção de dispêndio fora da filosofia da história que o próprio Bataille a ins-

aut
creveu. É, sobretudo, a circulação do interesse em psicologia social longe dos
domínios teóricos e habituais de sua consagrada trajetória, para marcar um
lugar próprio de análise. Uma psicologia que deixou a própria casa e seguiu

R
pela margem do rio, com estranhas companhias. Para mostrar isso primeiro
aparece a região do rio, depois o arranjo conceitual. Ao fim as indicações

o
do caminho.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


2. O rio São Francisco como produtor de
análise do cotidiano de um lugar
visã
O rio São Francisco era o caminho natural para o reconhecimento das
vastidões interiores da terra que desafiava seus ditos colonizadores. O Velho
Chico tem, portanto, uma longa história de usos colonizadores e (há muito)
itor

desenvolvimentistas. Possui extensão de 2.700 kms e corta 4 (quatro) estados


a re

na faixa litorânea intramediana do território brasileiro. Seu nome indígena


é Opará, cujo significado aproximado seria “rio-mar”. Foi alcançado pelos
portugueses em 1501, um ano após sua chegada às terras brasileiras. Conflitos
entre portugueses e povos indígenas marcaram as investidas colonizadoras
par

pelas margens interioranas do rio. No Brasil-Colônia foi chamado rio dos cur-
rais pelo uso deles como estratégia para povoamento das margens e circulação
Ed

de mercadorias. Nessa estratégia se encontra a base dos conflitos fundiários


que as regiões próximas ao rio conheceram ao longo de sua história: expro-
priação de nativos e exploração econômica. No século XIX, essa exploração
ão

passou a ser subsidiada pela ciência com o levantamento da calha navegável.


Além dessa, outras missões históricas, de cunho econômico mais acen-
tuado, incorreram em torno do rio, como a política desenvolvimentista de
s

meados do século passado que instalou complexos hidroelétricos (hoje são


ver

quatro) em seu curso e programas de desenvolvimento pelo poder público


– com marcos na criação da Companhia Hidrelétrica do São Franscisco
(CHESF) em 1945 e da Companhia de Desenvolvimento do São Francisco
(CODEVASF) em 1974. O rio-mar já foi designado rio da unidade nacional,

Flávia Lemos - 21982.indd 90 28/02/2020 13:12:56


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 91

pela diversidade cultural que habita suas proximidades, e rio da integração


nacional, pela “incumbência” de desenvolvimento agroeconômico, energético
e social a que foi submetido.
Na margem sergipana, o Território Baixo São Francisco abrange uma
área de 1.967,10 Km² e é composto por 14 municípios: Muribeca, Amparo de
São Francisco, Brejo Grande, Canhoba, Cedro de São João, Ilha das Flores,
Japoatã, Malhada dos Bois, Neópolis, Pacatuba, Propriá, Santana do São

or
Francisco, São Francisco e Telha. A população total do território é de 125.193

od V
habitantes, dos quais 52.536 vivem na área rural, o que corresponde a 41,96%

aut
do total. Possui 6.900 agricultores familiares, 907 famílias assentadas e 4
comunidades quilombolas. Seu IDH médio é 0,61 na escala de 1.

R
Ainda através de dados sociodemográficos, a maior parte produzidos
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a região apre-

o
senta o menor IDH do estado de Sergipe, abriga apenas pequena parte da
população, tem Produto Interno Bruto (PIB) bastante pequeno, além do que,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

devido à proximidade com o rio, essa região foi considerada região para
desenvolvimento em meados do século passado. A região como um todo
abriga sete comunidades quilombolas e pelo menos treze assentamentos de
visã
reforma agrária, que demandam políticas públicas diferenciadas. Um programa
governamental chamado Territórios da Cidadania do anterior Ministério do
Desenvolvimento Agrário, hoje Ministério da Agricultura, Pecuária e Abaste-
itor

cimento, que tinha como objetivos promover o desenvolvimento econômico


a re

e universalizar programas básicos de cidadania por meio de uma estratégia


de desenvolvimento territorial sustentável, informava investimentos de 98,7
(noventa e oito, vírgula sete) milhões de reais em ações que tratam de apoio
à produção agrária, à cidadania e infraestrutura no período de 2009 à 2015
(PORTAL TERRITÓRIOS DA CIDADANIA, 2014).
par

O Baixo São Francisco se tornou objeto de estudo desde a ocorrên-


cia de uma perícia socioambiental realizada nesta região. Advinda de uma
Ed

encomenda do Judiciário, um dos professores integrantes Grupo de Estudo


e Pesquisa sobre Exclusão, Cidadania e Direitos Humanos (GEPEC) foi
ão

nomeado como perito dos processos 0002809-27.2002.4.05.8500 e 0000420-


35.2003.4.05.8500 da Segunda Vara de Justiça Federal de Sergipe. A razão
que motivou estes processos judiciários é argumentada pelo fato de que a
s

instalação e o funcionamento da Usina Hidrelétrica de Xingó haveriam pro-


ver

duzido grandes danos socioambientais na vida dos moradores do povoado


Cabeço, no município de Brejo Grande/SE, seja pela inundação completa do
povoado, seja pela restrição das condições de pesca na região, em uma lide
iniciada em 2002.

Flávia Lemos - 21982.indd 91 28/02/2020 13:12:57


92

Para a confecção do laudo pericial demandado, a perícia socioambien-


tal, em parte equipe dessa pesquisa, realizou, dentre outras ações, um estudo
que totalizou 45 (quarenta e cinco) viagens a campo, passando por 25 (vinte
e cinco) localidades da região, realizadas entre junho de 2012 e dezembro
de 2014. Essas visitas tiveram como função a produção de registros que
descrevessem o cotidiano da vida local. A inspiração do olhar nesses regis-
tros voltados para o cotidiano buscava preparar o terreno para a análise das

or
práticas, crenças e valores que perpassam as relações entre órgãos estatais,

od V
empresas e grupos comunitários, possível via para conhecer as tensões vividas

aut
na região (MENDONÇA FILHO; ANDRADE, 2016).
Os registros, em seu conjunto, apresentam as idas e vindas de uma
região programada para cumprimento da missão desenvolvimentista histori-

R
camente incumbida. Impressões de organização, ajuste e preparo no trato das
transformações sócio-culturais da região, especialmente das que provêm da

o
intervenção do desenvolvimento regional, emergem como elemento analítico
aC
privilegiado para caracterizar a relação entre Estado, corporações e modo de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vida local.
O trabalho na produção agrária desempenha papel fundamental na dis-
cussão das sociabilidades na contemporaneidade e pode ser tomado como
visã
via de reflexão acerca das transformações nos modos de vida do Baixo São
Francisco. As particularidades das atividades produtivas são um importante
elemento neste estudo, para melhor caracterização das tensões e cotidiano
itor

dos ribeirinhos.
a re

De acordo com Mendonça Filho e Andrade (2016), há dois modos dife-


rentes de produção coexistindo e atravessando as relações no Baixo São
Francisco desde o século XVII até a atualidade. O primeiro modo é o de
subsistência enquanto “produção voltada ao consumo do próprio produtor
e daqueles com quem ele vive”. Já o outro modo é o comercial, que atende
par

aos anseios do mercado. Contudo, tais formas de produção e suas dinâmicas


Ed

sociais vêm passando por diversas transformações com a intensificação do


desenvolvimentismo, em especial com a implantação da Usina Hidrelétrica
Xingó. A partir do crescimento do projeto de desenvolvimento nacional nas
ão

comunidades que circundam o “Velho Chico”, o Baixo São Francisco tem


vivido um gradual desarranjo dos modos de subsistência, com uma “perda de
sustentabilidade por tornar as pessoas dependentes do fluxo (em geral limitado
s

e instável) de dinheiro” (MENDONÇA FILHO; ANDRADE, 2016). Assim,


ver

assiste-se a uma mudança das sociabilidades dos ribeirinhos em decorrência


das modificações nos modos de produção.
Uma das alterações nas formas de trabalho que vem se processando
no Baixo São Francisco refere-se à modernização da produção agrícola.
Nesse sentido, Sousa (2011) aponta uma territorialização do capitalismo no

Flávia Lemos - 21982.indd 92 28/02/2020 13:12:57


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 93

meio rural, com o incremento de tecnologias modernas a fim de aumentar


a produtividade. Para a autora, reside nesse processo uma das contradições
do capitalismo, pois este sistema não aceita o “ser camponês”, e ao levar a
modernização para o campo tenta alçar o campesinato ao status de agricultura
familiar; todavia, ela aponta que ao adquirir maquinário moderno, o pequeno
produtor se endivida e acaba correndo o risco de perder sua terra. Dessa forma,
Sousa ressalta que a modernização da agricultura revela outro lado do desen-

or
volvimentismo na medida em que as famílias camponesas ficam “na luta acir-

od V
rada pela manutenção da vida” e a miséria é estabelecida, enquanto o capital se

aut
beneficia com grandes rendimentos, atendendo ao mercado (SOUSA, 2011).
Na esteira das alterações acima, Shimada (2011) ressalta que em Ser-
gipe, a economia açucareira, cuja modernização conta ainda com emprego

R
(temporariamente) de grande número de trabalhadores na sua produção, tem
grande destaque. Segundo a autora, a cana-de-açúcar está incorporada na

o
ordenação do agronegócio, se adequando às imposições do mercado, com o
aC
aumento da produção do açúcar e de álcool etílico para agrocombustível. Uma
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

das consequências da produção e exportação da cana leva a uma crescente


concentração de terras entre os grandes empresários, além da exploração do
trabalhador de corte de cana, submetido a condições precarizadas de trabalho
visã
(SHIMADA, 2011).
O trabalho precarizado das relações de produção atuais se distancia do
modo de vida camponês, que marcava as formas de vida mais tradicionais
itor

da região. Nos deslocamentos das formas de vida ligadas à agricultura que


a re

podem ser delineados entre a produção de subsistência, camponesa pro-


priamente dita, ao trabalho voltado à economia de mercado fica marcado
o incremento à dependência das ações do Estado e das corporações como
saldo principal do desenvolvimentismo regional. Contratualidades cada vez
mais voláteis, vinculação necessária a programas de benefícios assistenciais,
par

processos variados de endividamento econômico preenchem o cotidiano da


Ed

região, instaurando tensões que marcam o trabalhador ribeirinho no dia a dia


de sua busca por sustento.
Por essa razão, tais transformações socioculturais requerem um aporte
ão

teórico que respeite as sutilezas desse processo de modificação do modo de


vida na região, um olhar sensível para repercussões de tudo isso no cotidiano
dos povoamentos da beira do rio. É nesse ponto que os conceitos do dispêndio
s

e do cotidiano são acionados.


ver

3. Dispêndio improdutivo nas atividades humanas

A ideia do dispêndio tem como animação fundamental a destruição, o


desperdício sem propósito, a improdutividade. Foi inicialmente desenvolvida

Flávia Lemos - 21982.indd 93 28/02/2020 13:12:57


94

por Georges Bataille em seu artigo “A noção do dispêndio”, de 1933, e em


seguida no livro “A parte maldita”, de 1949. Ora, não haveria noção mais
estranha para tratar do cotidiano da vida ribeirinha de qualquer lugar, ainda
mais depois de situar aspectos da vida produtiva (justamente isso) do Baixo
São Francisco sergipano, quando assinalado o quadro geral da situação do
trabalho nas atividades agrícolas. Eis porque no início fora dito que as coisas
estariam fora do lugar.

or
Seguindo Bataille, não se discute de forma plena o valor fundamental

od V
da lógica da utilidade, e suas repercussões filosóficas e econômicas para a

aut
ideia do produtivo, da produção, havendo um falseamento do debate e o
questionamento inicial sendo evitado. Para o autor, a discussão da utilidade

R
presente no tipo de pensamento corrente camufla o dispêndio, a perda que
há nas relações produtivas e prestações, elemento fundamental das relações

o
econômicas. De acordo com Bataille, o consumo da atividade humana pode
ser decomposto em dois momentos diferentes. O primeiro diz respeito ao
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


“uso do mínimo necessário”, enquanto o segundo se refere a práticas que têm
seu fim em si mesmas, não se regulando pela produtividade, racionalidade,
pelo acúmulo, pela utilidade; a esta forma improdutiva de consumo o autor
visã
designou dispêndio. Para ele, a segunda se sobrepõe à primeira.
Bataille declara que sua concepção de dispêndio advém do dispêndio do
Potlatch, tratado por Marcel Mauss, com a ressalva de que nessa condição
a destruição pode levar à multiplicação das riquezas. A obra “Ensaio sobre
itor

a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, publicada inicial-


a re

mente em 1925, guarda pistas para a reflexão sobre o dispêndio.


O sistema de prestações econômicas das sociedades arcaicas se insere,
para Mauss, no campo dos fenômenos sociais “totais”, em que se pode obser-
var aspectos religiosos, jurídicos, morais, econômicos e de outras instituições
par

daquela sociedade. Entretanto, esses fatos sociais são “totais” não porque
abrangem toda a organização social, mas pela força e reverberações dessas
Ed

práticas nas relações do grupo. Concernente a esse “sistema de prestações


totais”, o autor se utilizou do Potlatch para investigar os modos como essas
sociedades primitivas se estruturam e normatizam. Dessa forma, Mauss reser-
ão

vou para seu estudo, dentre os vários sentidos de Potlatch, as noções de


“nutrir” e “consumir” para as práticas de prestações e contraprestações por
s

ele observadas.
ver

Marcel Mauss caracteriza, ainda, o Potlatch como uma instituição de


“prestações totais de tipo agonístico”; ou seja, uma relação em que através
das obrigações de dar, receber e retribuir as dádivas se instaura um modelo de
rivalidade entre chefes de tribos e clãs, podendo essa prática levar à falência
pela via da destruição mútua.

Flávia Lemos - 21982.indd 94 28/02/2020 13:12:57


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 95

Estabelecidos os locais e estruturados os sistemas que servem para inves-


tigar como se dão essas prestações totais, Mauss faz algumas observações.
Uma delas diz respeito ao “presente dado aos deuses”, pois no Potlatch as
relações são, a todo instante, mediadas pelo mito e pelos deuses; portanto,
o sacrifício é o auge da qualidade do objeto trocado. Nesse sentido, o autor
destaca que:

or
não é somente para manifestar poder, riqueza e desprendimento que escra-
vos são mortos, que óleos preciosos são queimados, que o cobre é lançado

od V
ao mar e até mesmo casas suntuosas são incendiadas. É também para

aut
sacrificar aos espíritos e aos deuses, em verdade confundidos com suas
encarnações vivas, os portadores de seus títulos, seus aliados iniciados

R
(MAUSS, 2003, p. 206).

o
Mauss ainda atenta para o que ele denominou teoria da esmola, a qual
tem suas bases na concepção moral da dádiva e da fortuna, mas também na
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ideia do sacrifício, dando início à “doutrina da caridade e da esmola”, ampla-


mente difundida através do cristianismo e islã. A passagem para a esmola,
citada no Ensaio sobre a dádiva, servirá de base para a discussão que Bataille
visã
trata em sua “noção do dispêndio” acerca das implicações de tal prática na
cultura ocidental.
Analisados os sistemas de prestações em seus devidos locais, Mauss
chega a alguns entendimentos, sendo o primeiro a “conclusão de moral”
itor

e avisando que se podem prolongar tais notas às sociedades de sua época,


a re

início do século XX. Isso porque, como apontado no Ensaio sobre a dádiva,
observa-se valores semelhantes aos do potlatch, em que objetos têm, além
do valor venal, valores afetivos; do mesmo modo que se deve retribuir mais
do que se ganhou. É comum, também que as famílias despendam mais do
par

que podem em festas de casamento, aniversários etc, para mostrar que se é


um “grande senhor” (MAUSS, 2003), aspectos ainda percebidos atualmente.
Ed

O segundo resultado de Mauss sobre o sistema de prestações agonísticos


envolve “conclusões de sociologia econômica e de economia política”. Nesta
parte do estudo, o autor destaca que tais estudos podem auxiliar a distinguir
ão

melhores formas de gestão nas sociedades modernas. Tal nota se deve aos, de
acordo com Mauss, resquícios da noção de valor das economias de sociedades
arcaicas (impregnadas de elementos religiosos e com fortes relações de poder)
s

que podem ainda ser encontrados hodiernamente no mercado. Para Mauss, as


ver

sociedades ocidentais criaram o homo oeconomicus, porém ainda se encontra


nas diversas classes sociais características de dispêndio puro e irracional,
prática originada no Potlatch e entendido como destruição, além de outros
indícios das relações e prestações econômicas primitivas. Esse entendimento
estrutura a concepção de dispêndio para Georges Bataille.

Flávia Lemos - 21982.indd 95 28/02/2020 13:12:57


96

Por conseguinte, é assinalado que a economia, em sua dimensão das


relações cotidianas, não repele práticas destinadas apenas para os dispêndios
de tipo agonístico. As relações que constituem a vida produtiva comportam
medidas de força, iniciativas que largam o critério racional em ações que
caracterizam, para Bataille, o dispêndio improdutivo com função de manter
uma posição, porém sem provocar o aniquilamento do outro.
Concomitante ao processo de modificação do dispêndio nas sociedades

or
modernas, o dispêndio pagão e os grandes sacrifícios em cultos deram espaço,

od V
com a disseminação do cristianismo, a práticas menos exuberantes, menos

aut
chamativas, mais comedidas em seu acionamento como a esmola livre (a qual
não provoca grandes perdas materiais). Se classicamente era doada pelos ricos
aos mosteiros e igrejas, essa prática encontra lugar no cotidiano, entretanto,

R
estendida para além de sua comunidade religiosa muitas vezes. Desse modo,
se percebe proximidades que o dispêndio vai adquirindo na vida comum.

o
Bataille levou adiante essa inscrição do dispêndio no cotidiano; nomeou
aC
situações e coisas que teriam poder de perda improdutiva na vida de hoje das

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pessoas. Nesse sentido, possuem lugar fundamental na vida das sociedades
humanas as práticas do sacrifício (com valor de), o valor de ostentação das
jóias, o espetáculo, a combatividade que se esgota nos jogos de competição,
visã
cultos, atividade sexual desviada da finalidade reprodutiva, a produção da arte,
das novidades luxuosas da moda, a riqueza dos monumentos e a extrapolação
do sentido na poesia (BATAILLE, 2013). Mesmo nessas formas de dispêndio,
itor

que se apresentam cotidianamente no vivido, Bataille vê o entrecruzamento


a re

amalgamado de fenômenos sociais, políticos, econômicos e estéticos e aponta


para a insuficiência da análise social que não considere a vida em seu conjunto,
a vida na quebra dos limites, no excesso, na perda das medidas do cálculo,
tipo de recusa que acontece a partir do princípio da utilidade e da acumula-
ção. Por esse aspecto a produção é subordinada ao dispêndio, seu consumo
par

arrebatador que faz com que toda a atividade produtiva caminhe na direção
Ed

de sua culminância.
Porém, é necessário estabelecer com que linhas se vê o cotidiano para
amparar esse componente intempestivo do dispêndio. Nesse ponto, Certeau
ão

apresenta possibilidades irrecusáveis para sua concepção. Ao se afastar da


tradição vigente que entendia cotidiano como rotinização, repetição, estag-
nação para analisar o cotidiano a partir dos elementos conflitantes, Certeau
s

se aproxima da imagem de movimento para pensa-lo; desse modo prepara o


ver

terreno para entender a vida comum como prenhe de tensões.


Para operar tal ruptura, Certeau vincula sua caracterização de cotidiano
às ideias de “estratégia” e “tática”. A primeira Certeau elabora como um
manejo das forças em cena viabilizado quando uma parte de “querer e poder”
tem potencial para ser destacado. Já a segunda se refere à “arte do fraco” e

Flávia Lemos - 21982.indd 96 28/02/2020 13:12:58


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 97

se liga à astúcia, que “opera golpe por golpe”. A trama das estratégias e táti-
cas configura com primor o âmbito no qual o olhar dirigido ao cotidiano se
concentra: o das práticas.
Para Certeau, no que tange ao cotidiano, “a questão tratada se refere a
modos de operação ou esquemas de ação e não diretamente ao sujeito que
é seu autor e veículo” (CERTEAU, 1994, p. 38). No lance em que retira o
sujeito da centralidade do olhar, o olhar naturalizante da psicologia fica des-

or
locado; no ato seguinte ele vai assinalar o lugar das astúcias como o ponto

od V
privilegiado da pesquisa: “esse trabalho tem, portanto, por objetivo explicitar

aut
as combinatórias de operações (dos consumidores). O cotidiano se inventa
com mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 1994, p. 38). Desse
modo fica caracterizado a maneira como o cotidiano vira terreno de conflitos,

R
longe da paz de uma duradoura mesmice.
A aproximação entre dispêndio e cotidiano traçados dessa forma é pro-

o
missora e, ao mesmo tempo, perigosa. Não há encaixe mecânico e harmônico
aC
entre os termos, já que esses aportes conceituais se mexem em registros, ao
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

menos na aparência, irrevogavelmente separados: Bataille quer exuberância,


Certeau quer discrição tática; o dispêndio aponta destruição, o cotidiano se
volta para a produtividade das operações; um o extraordinário, o outro o
visã
ordinário. Mas é em meio a essas indisposições de partida que as costuras são
indicadas para assim conhecer as tensões da vida ribeirinha.
itor

4. Indicações de reflexões sobre o cotidiano


a re

no Baixo São Francisco

Afinal, como pode funcionar o tratamento de um objeto complexo como o


das transformações na vida ribeirinha do Baixo São Francisco a partir de uma
par

combinação conceitual tão arisca? Qual ajuste de termos possível para isso?
Não se trata, portanto, de meras aplicações conceituais; algum artesanato se
Ed

faz necessário. Seguem indicações, pistas, rastros, ajustes na base de martelo.


O primeiro diz respeito a livrar o dispêndio de seu compromisso com uma
história universal, como apontado por Jean Piel (2013); não se pretende com
ão

ele a verdade última do desenvolvimentismo na beira do rio. Desfeito isso,


põe-se o dispêndio improdutivo na direção daquilo que Certeau ressalta do
cotidiano enquanto campo de tensões: as práticas. Um e outro aporte con-
s

ceitual favorece que apareça o plano de ações como âmbito por excelência
ver

da reflexão. E nesse ponto, pondo crédito na iniciativa, as aproximações são


mais permitidas.
Trata-se, por um autor e outro, de rever a lógica que rege o tratamento
da ideia de produção, do que se julga como produtividade. Se de um lado se
preconiza a destruição e de outro o cabedal de apropriação tática pela forma

Flávia Lemos - 21982.indd 97 28/02/2020 13:12:58


98

de produzir, em ambos fica marcado o valor do aspecto afetivo sobrepujando


o aspecto venal das relações. A produção é arrancada do seu lugar clássico
da racionalidade geral do mundo moderno.
Outra convergência possível, decorrente já do ponto anterior, diz respeito
ao fato de que o dispêndio e o cotidiano certeauano afrontam a lógica hege-
mônica da acumulação econômica, seja porque um autor refere o consumo
como terminado nele mesmo (comportando sua dimensão de perda suntuá-

or
ria), destrutivo nesse ponto, seja porque outro autor referenda práticas não

od V
autorizadas de consumo, pela artimanha de subverter o modo pré-concebido

aut
de uso das coisas. Por uma via ou outra é a dominação que se vê alijada de
suas possibilidades expansionistas.
Mas, indicadas essas linhas, como se chega ao que se vê da região ribei-

R
rinha? Como ver o Baixo São Francisco nessa pequena engenhoca conceitual?
Nesse ponto, algumas apostas que seriam, então, irresistíveis: que o lugar

o
não seja propriamente passivo em relação às encomendas desenvolvimen-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tistas que se acumularam em sua história; que, talvez, agonisticamente e/ou
astuciosamente na discrição do cotidiano, se encontre um campo de batalhas
que constitua o modo de ser de habitantes e forças político-econômicas que
agem na região.
visã
No que tange as atividades agrícolas, os palpites seguem na direção de
olhar para práticas de dispêndio e táticas cotidianas que se inserem no processo
de modernização do cultivo e em seus efeitos. Nesse sentido, o aporte concei-
itor

tual tornaria visível uma gama de ações inscritas no próprio âmbito da vida
a re

precarizada das relações de trabalho, para mostrar algo mais que a produção
massiva de dependência. Dessa forma, apontar para uma parte do cotidiano
em que atividades deixadas de lado pela visão econômica dominante, porque
improdutivas ou impróprias, assumem protagonismo para conhecer a vida do
par

lugar, a habitação da beira do rio. Indicações, não mais que apostas... fazer o
(im)possível ganhar pernas e andar pelas margens do São Francisco sergipano.
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 98 28/02/2020 13:12:58


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 99

REFERÊNCIAS
BATAILLE, George. A parte maldita: precedida de ‘a noção de dispêndio’.
2. ed. rev. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis,

or
RJ: Vozes, 1994. v. 1.

od V
LEITE, Rogério P. A Inversão do Cotidiano: Práticas Sociais e Rupturas na

aut
Vida Urbana Contemporânea. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro,
v. 53, n. 3, p. 737-756, 2010.

R
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas socieda-

o
des arcaicas. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

MENDONÇA FILHO, Manoel. C. C.; CARVALHO, Clarisse. A. Laudo de


Perícia Socioambiental. Aracaju: 2ª Vara de Justiça Federal, 2016.
visã
PIEL, Jean. Introdução. In: A parte maldita: precedida de ‘a noção de dis-
pêndio’. 2. ed. rev. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
itor

PORTAL DA CIDADANIA. Territórios da cidadania. Brasília: Governo


Federal, 2010. Disponível em: <www.mda.gov.br/sitemda/tags/territórios-da-
a re

cidadania>. Acesso em: 27 jul. 2014.

SHIMADA, Shiziele O. A relação capital-trabalho no corte da cana e as novas


formas de travestimento do trabalho escravo-precarizado. In: CONCEIÇÃO,
par

A. L. (Org.). Trabalho e trabalhadores: as novas configurações espaciais da


reestruturação produtiva no espaço rural. São Cristóvão/SE: Editora UFS,2011.
Ed

SOUSA, Raimunda A. D. Trabalho e trabalhadores no campo: desvendando


a realidade no Vale do São Francisco. In: CONCEIÇÃO, A. L. (Org.). Tra-
ão

balho e trabalhadores: as novas configurações espaciais da reestruturação


produtiva no espaço rural. São Cristóvão/SE: Editora UFS,2011.
s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 99 28/02/2020 13:12:58


Flávia Lemos - 21982.indd 100
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:12:58
O TEMPO, A JUVENTUDE E O
PRECÁRIO – REFLEXÕES SOBRE
AS (IM)POSSIBILIDADES DE UMA

or
VIDA LIVRE, ÉTICA E BELA

V
aut
Iolete Ribeiro da Silva
Enio de Souza Tavares

CR
do
1. Introdução

Um texto que se propõe a falar de tempo recai sobre uma questão ampla
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
e complexa. Muito embora a provocação não seja de se pensar o tempo como
categoria, mas o tempo em que estamos vivendo, e pensá-lo como precário. No
ra
entanto, entendemos que uma boa reflexão sobre o tempo se liga diretamente
ao nosso tema e, em especial, ao tempo do ponto de vista psicológico que é
i
o campo de onde queremos falar inicialmente. Para tanto, começamos por
rev

pensar uma metáfora do tempo psicológico dentro do escopo do pensamento


kleiniano, tomando-o realmente como metáfora, posto que em certa medida
to

o modelo de pensamento seguido por Melanie Klein (1882-1960) pode ser


amplamente criticado por nós. Seguindo a linha de raciocínio que queremos
ara

traçar aqui, continuamos a pensar em que consiste a precariedade do nosso


tempo para a juventude do nosso país, escolhendo como ponto de discussão, a
ver di

produção teórica sobre a juventude, notadamente aquela que descontextualiza


o jovem e o explica como um entidade isolada do campo social, de forma que
op

cada indivíduo se explica em si mesmo.


É a lógica seguida também pelos estudiosos da personalidade de base
E

psicodinâmica. Seus exemplares fortes são Kernerberg, Gabbard, McWil-


liams, entre outros. Não citaremos uma publicação específica desses autores
por sua posição a esse respeito ser algo que acompanhas suas respectivas
obras. Estes autores, inclusive, sendo bastante influenciados pela teoria das
relações objetais, na qual Melanie Klein tem papel fundamental. Outra forma
de olhar a conjuntura do nosso tempo será a tentativa rápida de refletir sobre
a reforma do ensino médio a ser instaurada em nosso país, neste tempo.
Nossa hipótese é de que a subjetividade forjada na escolarização proposta
pela reforma do ensino médio retira do sujeito estudante, que é o sujeito
cidadão e o sujeito psicológico ao mesmo tempo, recursos importantes para
lidar com a vida e com a precariedade próprias desse tempo, e, de forma geral,

Flávia Lemos - 21982.indd 101 28/02/2020 13:12:59


102

com os descompassos da vida. Encerramos nossa reflexão dentro do campo


da promoção da saúde, tomando como articulador as reflexões realizadas
por Foucault a respeito da liberdade e de uma vida bela, pensando o campo
da educação e até mesmo o território da escola, como um campo onde essas
vivências podem ter alguma potência.

2. Tempo, “História e o surgimento do sujeito psicológico

or
od V
Iniciamos nosso caminho falando da subjetividade por intermédio da

aut
teoria psicanalítica kleiniana. A psicanálise foi a primeira no campo psi a
resgatar a subjetividade como objeto importante (PRADO FILHO; MAR-

R
TINS, 2007), na contramão de outras teorias, as quais, no afã de contribuir
para a cientificidade de psicologia, de-subjetivava e expurgava a experiência

o
psi de tudo o que era sinônimo de erro, paixões, vícios, ou seja, a própria
subjetividade (FIGUEIREDO, 1997; GONZÁLEZ REY, 2007, 2002), prin-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


cipalmente quando se pensa a subjetividade como uma representação da psi-
que constituída de contradição (GONZÁLEZ REY, 2007) ou constituído de
ambivalências e conflitos como é o caso da visão psicanalítica.
visã
Foucault (1996) aponta que a psicanálise funciona como um questionador
da noção de sujeito epistêmico coerente, integrado, e dominador de si e de seus
afetos. Esse questionamento funciona como uma ferida narcísica ao projeto
itor

da ciência moderna e do homem moderno. A moral civilizada funcionava para


organizar estruturas de censura no indivíduo que impediriam o sujeito de se
a re

conhecer. Assim, parafraseando Foucault em “A hermenêutica do sujeito”


(2010) o homem moderno era um completo desconhecedor de si, por não
conceber uma espécie de lógica por trás que atuava sobre o que ele escolhia,
falava, desejava, dizia querer e dizia não querer. Apenas parafraseando posto
par

que o “homem” a quem o filósofo se refere não seria o moderno.


Evidentemente que Foucault não fala do homem moderno, mas nesse
Ed

momento de sua obra (Em A hermenêutica do sujeito) ele fala do homem grego
antigo e da necessidade que se propagava de o cidadão grego cuidar-se de si
ão

mesmo, voltar-se para si. Estava implícito neste apelo o conhecimento de si


como primordial. O grego muitas vezes era tomado como “um ignorante das
coisas que ignorava”.
s

Pensamos que, em certo ponto, dada a distância entre os tempos antigo


ver

e o contemporâneo, e apesar dela, essa ignorância pode ser vislumbrada nos


modos de subjetivação atuais. Pelo menos em termos de uma análise mais
rápida, pensamos ter algo dessa premissa que se encaixa em nossos tempos.
Especialmente no que se confere em um certo narcisismo constituinte das
subjetividades contemporâneas. O narcisista é um grande desconhecedor de si

Flávia Lemos - 21982.indd 102 28/02/2020 13:12:59


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 103

mesmo. Não está voltado para si, mas para uma imagem que criou de si com
uma qualidade de beleza e inteligência que são incapazes de tocar a realidade
multifacetada de qualquer experiência subjetiva.
Iniciamos enfatizando como que essa “defesa da psicanálise” ou seu
elogio por acharmos que o projeto da reforma do ensino médio atual como
um cenário que estamos tentando analisar aqui, muito próximo do modelo de
homem mecânico, sem desejo, e coincidente consigo mesmo que é subjeti-

or
vado no auge da modernidade cientifica (FIGUEIREDO, 2004). Entendemos

od V
que a lógica por trás da reforma do ensino médio se coaduna com aqueles

aut
pressupostos modernos, sem deixar de conter especificidades e interesses
específicos deste tempo. Assim seguimos a desenvolver a metáfora sugerida
por Melanie Klein.

R
A psicanálise kleiniana, diferente da produção freudiana, vai pensar o
desenvolvimento do psiquismo em termos de duas posições. Essas “posições

o
psíquicas” descrevem o tipo de funcionamento ou estado de funcionamento no
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

qual a pessoa se encontra de forma dominante em um determinado momento.


Sendo essas posições chamadas por Klein de posição esquizoparanóide e
posição depressiva (OGDEN, 2017).
visã
Na posição esquizoparanóide que é a primeira forma da criança se rela-
cionar com o mundo, as formas de percepção são drásticas, no sentido de que
o mundo é vivenciado de forma polarizada. Ou os objetos são totalmente bons
e idealizados (como é o caso da mãe boa, o seio bom), ou os objetos são total-
itor

mente maus e persecutórios (a mãe má, seio mau). Disso já podemos pensar
a re

como deva ser difícil alguém que encena psiquicamente esse funcionamento
na vida adulta, tomando o mundo como dividido em bom ou ruim, sem ter
condições de olhá-lo com maior riqueza.
Dizemos que na posição esquizoparanóide o sujeito não tem recurso para
par

viver o mundo além da percepção de que este “ou é 8 ou é 80”, da mesma


maneira que um objeto é visto como totalmente mau, em outro momento é tido
Ed

como totalmente bom. Há uma precariedade no tempo aqui, mas no sentido


de uma relação específica de recriação de história; uma recriação defensiva
que impossibilita a criança de se relacionar com os objetos inteiros, com suas
ão

pluralidades de expressões. A recriação de histórias é a incapacidade que o


indivíduo tem de lidar com vida que é feita de conquistas, vitórias, prazeres
e também de decepções, insucessos, frustrações e tristezas.
s

Essas são as formas mais infantis 6 que temos de lidar com a vida. Se
ver

tomarmos essas ideias e a colocarmos rapidamente para o contexto de uma

6 O termo infantil aqui é apenas utilizado segundo a visão kleiniana e entendemos que é carregado de valor
adultocêntrico, posição do qual somos críticos. Decidimos manter o termo pela coerência teórica e também
pela possibilidade de refletirmos sobre o mal-estar que este termo pode eventualmente produzir no leitor

Flávia Lemos - 21982.indd 103 28/02/2020 13:12:59


104

produção sociocultural, identificamos que de modo geral a sociedade e suas


instituições, são dispositivos de infantilização. Poucos são os espaços no
meio social que nos possibilitam fazer uma reflexão autêntica sobre a vida e
o viver que nos dê um repertório mais rico de significados para enfrentarmos
a vida. Então, pensamos que esse tempo precário que afirmamos, é precário
subjetivamente, é pobre de outras condições para que as pessoas de modo
geral se situem como produtores de sentidos novos.

or
A história corre no tempo e é em uma posição mais amadurecida como é

od V
o caso da posição depressiva que, ao lamentar a realidade, inventa-se um jeito

aut
mais rico de lidar com ela. A recriação da história é recurso mais primitivo.
Na posição depressiva há um sujeito intérprete, produtor de sentidos, sujeito
que decide também sobre o insalubre e sobre os dissabores. Esse sujeito que

R
é uma conquista da posição depressiva também é o sujeito que é capaz de
decidir com relativa autonomia, capaz de tolerar em si também uma certa

o
negatividade, o que consideramos ser algo importante na conquista da liber-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dade, segundo a concebemos aqui e a qual desenvolveremos mais adiante, a
partir das ideias de Foucault.
Esses recursos mais maduros não estão presentes na posição esquizo-
paranoide, como já mencionamos. Aliás, é importante de se mencionar um
visã
registro sobre essa posição: o fato de que a criança não se sente produtora
de novo, os fenômenos só lhe acontecem. As fantasias, as ideias, os medos
e os desejos são experienciados como acontecimentos à revelia do querer da
itor

criança. Um exemplo disso é a experiência adulta que algumas pessoas com


a re

ansiedade patológica sentem com os chamados “pensamentos intrusivos”. É


como se a pessoa, igual à criança kleiniana fosse apenas um objeto onde os
fenômenos psíquicos acontecem. A experiência pessoal nesse momento é a
de “isso-dade”, diferente da “eu-dade” experimentada na posição depressiva
par

(OGDEN, 2017)
Ed

[...] para Klein ainda não existe uma pessoa intérprete da própria expe-
riência. Também ainda não existe um “eu”. A posição esquizoparanoide
é o domínio do “isso”, apesar de não ser exclusivamente o domínio do
ão

Id (isto é, pressões instituais). Em outras palavras, o ego primitivo (o


componente organizador adaptativo da personalidade) é também impes-
soal por ser praticamente desprovido de subjetividade, de um sentido de
s

“eu-dade”. O bebê, quando defrontado pelo perigo gerado pelo processa-


ver

mento (ainda não interpretação) da experiência de acordo com o instinto de


morte, utiliza a clivagem. A clivagem é uma tentativa de obter segurança

como produziu nos autores. O mesmo se aplica ao termo primitivo, específico teoricamente por significar
algo que se instaurou mais precocemente no desenvolvimento de um indivíduo.

Flávia Lemos - 21982.indd 104 28/02/2020 13:12:59


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 105

através do distanciamento entre os aspectos ameaçadores e ameaçados


dos indivíduos e seus objetos.
Os objetos são valiosos, porém ainda não existe um “eu” para amá-los ou
valorizá-los. O self existente é um self-objeto, em contraposição a um self
subjetivo. O self subjetivo pode ser pensado como representado pela cons-
ciência autorreflexiva do “eu estou” na frase “eu estou sendo atacado”. O
“eu estou” é uma condensação de “eu estou ciente de que que a experiencia

or
que tenho de mim mesmo é...”. O self na posição esquizoparanoide é uma
self-objeto, não um self criador e intérprete de pensamentos, sentimentos,

od V
percepções e análogos. o self-objeto corresponde ao self não falado e não

aut
reflexivo na frase “Está quente” (em oposição a “Estou ciente de que me
parece quente), ou “Ele é perigoso” (em vez de “Estou ciente de que o

R
vejo como perigoso”) (OGDEN, 2009, p. 57-58).

Estas premissas kleinianas nos fizeram pensar no processo de escola-

o
rização e de institucionalização, de modo geral, como esse processo de for-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mação de pessoas não reflexivas, não intérprete das suas próprias realidades.
Embora estejamos fazendo uma conceitualização dentro do escopo de uma
teoria que se funda mais no determinismo psíquico e a teoria se reafirme na
visã
clínica individual (que é por excelência o campo da psicanálise) como uma
verdade, ela pode ser cartografada no corpo social de produção da subjetivi-
dade e seus agenciamentos, até mesmo se tomarmos emprestado o conceito
de inconsciente maquínico de Guattari (1988), como esse inconsciente não
itor

natural, fabricado, produzidos pelos agenciadores coletivos.


a re

O protótipo da mudança qualitativa para um outro estado de experiencia


psíquica é a de a criança encontrar, no percurso do seu desenvolvimento, uma
mãe adequadamente tolerante, onde a lei e a proibição precisam acontecer sem
ameaças. A função materna (termo teórico) pode ser exercida e pensada de
par

forma ampla, não exatamente pela mãe biológica. E na linha de pensamento


que aqui queremos fazer a mãe pode ser tomada a partir de uma esfera das
Ed

instituições. Daí já começamos a pensar no tipo de sociedade que nós temos.


Uma sociedade que vende tudo em grandes pacotes, não respeitando os tempos
e os processos individuais. Uma sociedade da intolerância. Não toleramos
ão

loucos, gays, travestis, transexuais, indígenas, negros, crianças, jovens.


Os exemplos seriam diversos e o leitor pode pensar tantos outros exem-
s

plos que me fogem agora. Mas somente pra pensarmos nos processo educa-
tivos, mesmo depois de conhecermos as ideias de Wallon (GALVÃO, 2013)
ver

que afirma que a agitação das crianças em sala de aula muitas vezes é o pré-
-requisito para que a aprendizagem aconteça com sucesso, não somos capazes
de em nossas escolas destinadas à infância incorporar esses fenômenos como
parte de um processo saudável e inerente ao aprender.

Flávia Lemos - 21982.indd 105 28/02/2020 13:12:59


106

Nossas crianças e jovens são convocados à docilidade comportamental,


alunos quietos são o protótipo de uma sala boa. Quietude muitas vezes alcan-
çada a peso de ameaça institucional. Quietude não adquirida por meio de uma
reflexão importante como aquela que lucidamente propõe que não tenhamos
tantos estímulos que irão competir com a atenção dos alunos e realmente colo-
car o processo de aprendizagem em cheque. Mas, em vez disso, adquirida por
estratégias de coerção, punição e vigilância como bem nos explicou Foucault

or
(2009) sobre os dispositivos de adestramentos e a formação dos corpos dóceis

od V
e ainda tão atual e aplicáveis às nossas instituições de ensino.

aut
3. Denunciando o mundo: o que significa ensinar? Como

R
ensinamos? O que ensinamos? Por que ensinamos?

o
O significado de ensinar descolado do processo de aprender, leva a sig-
nificações muito específicas que organizam essa prática. Ensinar tem sido
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pensado como processo de transmissão. O a-luno (sem luz) ainda é tomado
como aquele que não tem nada a dizer no percurso e em um percurso que
também é seu. É comum se que se utilize o termo “absorver o conteúdo” no
visã
que diz respeito ao processo de aprendizagem. Entendemos que para além de
um jeito de conceber tais processos, esse formato, que é essencialmente um
formato relacional, institui um modo de produção da subjetividade.
Freire (2011) aponta o diálogo como uma ferramenta potente de ensino-
itor

-aprendizagem, mas de um ensino-aprendizagem seguindo os pressupostos


a re

da liberdade. Nesses pressupostos o diálogo é muito mais que enunciados


alternados, implica uma forma relacional especifica com os atores do diálogo
que se posicionam mais horizontalmente. Todos constroem e são responsáveis
pelas informações partilhadas. Assim se expressa Paulo Freire a esse respeito:
par

O diálogo como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir,
Ed

se rompe, se seus polos, (ou um deles) perdem a humildade.


Como dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro,
nunca em mim?
ão

Como posso dialogar, se me admiro como um homem diferente, virtuoso


por herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconheço
outros “eu”?
s

Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens


ver

puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora
são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”?
Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de
homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua
deterioração que devo evitar?

Flávia Lemos - 21982.indd 106 28/02/2020 13:12:59


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 107

Como posso dialogar se me fecho a contribuição dos outros, que jamais


reconheço, e até me sinto ofendido com ela?
Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro
e definho? (FREIRE, 2011, p. 111-112).

Pronunciar o mundo e denunciá-lo tem algo a ver com o uso da palavra


em Freire. A palavra pronunciada como legítima, mas também como inven-

or
tiva, interventora, que quebra, desfaz e refaz a realidade. Quem não pode usar
(pronunciar, denunciar, problematizar, etc) se encontra em estado de opressão.

od V
Pensamos que Freire usa o termo pronúncia do mundo de modo parecido com

aut
a poética. Pronunciar é criar. Se alguém acredita não poder inventar uma outra
vida além da que já conhece e sabe, deste lugar não poderão sair facilmente

R
mudanças em níveis individuais e nem alcançaram o nível do coletivo.

o
Se alguém não é capaz de sentir-se ou saber-se tão homem quanto os outros,
aC
é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios
absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais [...].
A fé nos homens é um dado a priori do diálogo. Por isto existe antes mesmo
visã
de que ele se instale. O homem dialógico tem fé nos homens antes de
encontrar-se frente a frente com eles (FREIRE, 2011, p. 112).

Desta forma, à esteira de Freire pensamos ser difícil (para sermos genero-
itor

sos com as palavras) um outro modo de subjetivação onde os jovens sejam par-
a re

ticipantes da vida social e coletiva e possam apontar novas e boas estratégias


de resistência tendo o modelo de educação dominante que temos. A não ser
que esses jovens tenham contato com outras formas de relação educativa mais
emancipadoras. O que em geral acontece em contextos educativos não formais.
Refletimos nessa direção por estar no imaginário social e até na literatura
par

cientifica uma negação dos saberes da juventude. Os jovens não têm o que
Ed

dizer, não são vistos como capazes de exercer sua liberdade, de modo geral
são vistos como naturalmente rebeldes e tais características podendo ser expli-
cáveis em termos de uma certa normalidade. Como se fossem características
ão

normais da juventude ou da adolescência essas performances. Muitas vezes


adolescentes e jovens são encapsulados em discursos científicos como produto
de sínteses hormonais, em uma leitura biologizante por um lado, mas também
s

por outro como um determinismo psíquico que vislumbra como natural esse
ver

processo de imaturidade e crise juvenil, beirando a irresponsabilidade. Várias


dessas características estão presentes nas ideias da Aberastury e Knobel (1990)
sobre a adolescência normal. É um grande exemplo desse viés.
Para usarmos um termo da Teoria das Representações Sociais, podemos
dizer que essas ideias construídas no campo do universo reificado que seria

Flávia Lemos - 21982.indd 107 28/02/2020 13:13:00


108

o campo acadêmico-científico chega no universo consensual (senso comum)


de modo mundo aleatório como teorias do cotidiano. Essa teoria, nas práticas
diárias dentro da sala de aula, fazem a mediação dos processos educativos e
suas consequências são vistas na paisagem atual do nosso sistema de ensino
pouco emancipador e, altamente intolerante e disciplinador.
Neste cenário só há espaço para um tipo de formação subjetiva: aquela
que pressupõe o aluno como objeto, como coisa, como “isso”. O estudante

or
não tem lugar de intérprete. Ele é depósito, não é reconhecido como um outro

od V
“eu” que ressignifica e faz operações sobre o que é dito ou lido. Esse não

aut
reconhecimento sugere o tipo de conteúdo a ser que deve ser transmitido: o
conteúdo duro da matemática e da gramática normativa. Pegando carona neste
gancho, podemos pensar nas consequências subjetivas da atual reforma do

R
ensino médio, como produto da medida 746 de 2016, que torna facultativo
os componentes curriculares ligado às humanidades. Tal reforma já pode ser

o
criticada pelas concepções que adotamos aqui pela própria falta de diálogo
aC
que houve na sua proposição. A sociedade não foi amplamente convocada

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


para sua construção.
Além do mais, nos termos que estamos discutindo, criticamos também
pela sua própria incompatibilidade com as diretrizes presentes na LDB em
visã
seu artigo 35, o qual preconiza em seu inciso III que haja o “o aprimoramento
do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desen-
volvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. O que nos
itor

parece é que a reforma apresenta uma aparente abertura para que o estudante
a re

possa escolher, mas no final das contas essa escolha será sempre pressionada
pelas possibilidades de construção de itinerários composto por disciplinas que
puderem ser oferecidos nas diferentes escolas e planejadas pelos diferentes
sistemas de ensino nos estados. Além do mais a própria lógica de acesso ao
ensino superior, força os estudantes a optarem por determinadas disciplinas
par

que possibilitarão mais facilmente este ingresso ao mundo da universidade,


Ed

abrindo-se mão dos componentes curriculares tomados como optativos.


Nossa questão aqui se dá pela premissa de que a vida e a realidade con-
creta não respondem às lógicas gramaticais e matemáticas. Os descompassos
ão

da vida exigem outras equações, rigidez das lógicas gramaticais e matemáti-


cas e suas universalizações nos faz pensar que se pode haver um reforço na
lógica esquizoparanoide que ver as coisas todas “preto no branco”. Na vida
s

subjetiva, no mundo das relações, nos tempos precários, nos tempos de crise
ver

que chegam em qualquer vida, outras racionalidades operam. Aliás, sempre


e em todo tempo há heterogeneidade de racionalidades.
Morin (2007) e os demais autores da complexidade nos ajudam a pensar
que a causa e o efeito são apenas uma parte da vida complexa que é tecido
junta de várias racionalidades. Problematizar isso é via para pensarmos outras

Flávia Lemos - 21982.indd 108 28/02/2020 13:13:00


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 109

formas de vida, abrir as portas para as outros discursos que expliquem a vida
no seu devir e no que ela tem de indeterminado. Como pensamos do ponto
de vista da psicologia, pensamos que aí se assentam os fundamentos do que
podemos chamar de saúde psíquica: a possibilidade de um repertório rico
para explicar a vida e nos tornarmos intérpretes com mais recursos internos.
Pensamos nisso do que lugar que falamos porque nos diversos espaços
por onde temos contato com a juventude desde a socioeducação, nas escolas

or
públicas e no espaço da clínica psicológica, vimos crescer o índice de ado-

od V
lescentes e jovens de modo geral com uma certa incompetência interna de

aut
negociar com a vida, chegando frequentemente à automutilação e à ideações
suicidas ou, infelizmente à tentativas de suicídio e ao próprio suicídio. Esta
realidade não é novidade pra ninguém e não é notícia apenas para os profis-
sionais da saúde.
R
Nossa denúncia do mundo, para usar o termo freiriano, se localiza com

o
indagação sobre as relações entre a atual escolarização e a falta de recursos
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que todos nós, não só a juventude, temos pra negociar com a vida. Em uma
sociedade escolarizada, qual o papel da sociedade nesse processo? E quais as
potencias de transformação do cenário social que a própria escola pode ter?
Entendemos que o enfretamento de tempos difíceis, social ou individual-
visã
mente, exige uma capacidade de construir novos caminhos na produção da
subjetividade, tomando essa produção não como algo somente do indivíduo,
mas que tem a ver com a sociedade e seus agenciadores. Motivado por isso
itor

queremos refletir vias de experiências subjetivas ricas seguindo as provocações


a re

realizadas pelo campo da promoção da saúde e seguindo as provocações de


Foucault que ao ler os gregos e os romanos antigos reflete e sobre o conceito
de liberdade e de ética, pressuposto de uma vida bela.
par

4. Negociando com a vida ou a liberdade como uma agonística


Ed

Problematizar os modos de constituição da subjetividade no âmbito peda-


gógico, indagar a formação para permitir que outras propostas habitem e
atravessem o educativo sem conduzir a um pensar e um agir corretamente,
ão

ou pelo menos sem determinar como ser e conhecer o saber exige o retorno
de cada um a si mesmo e o trabalho de construção de um modo diferente
de perceber-se ou de ser percebido pelo outro.
s

O que se apresenta aqui é um exercício de trabalhar com o pensamento


ver

de modo que ele se torne mais potente para introduzir o cuidado de si


(epiméleia heautoú) como condição de reconfiguração da relação peda-
gógica que se afirma no trabalho cuidadoso e permanente em torno de
si mesmo, de modo que se restaure a relação de aprendizagem ao longo
da vida comprometida com o cuidado de si; isto é, uma relação capaz

Flávia Lemos - 21982.indd 109 28/02/2020 13:13:00


110

de estabelecer com o saber uma aprendizagem na qual o ser se faz ou se


revela. Tarefa que exige curiosidade e, ao mesmo tempo, a instauração
de um sentido outro em nossas maneiras de pensar e de agir em nosso
trabalho pedagógico (CARVALHO, 2014, p. 17).

A citação acima refere ao contexto das reflexões levantadas por Foucault


a respeito do cuidado de si, seus estudos sobre o período helenístico e romano,

or
em que o modo de produção da subjetividade se caracterizava por outros
patamares e a relação que o sujeito estabelecia consigo tinha uma convoca-

od V
ção muito especifica: voltar-se para si. O convite do grego arcaico presente

aut
na religião grega e depois na filosofia, passando pela cultura romana era de
um cuidado para consigo mesmo (cura sui). Ao fazer sua história, Foucault

R
reflete sobre como os antigos tinham uma relação muito diferenciada daquela
que hoje temos em um mundo cristianizado e ocidental, onde o apelo mais

o
forte é o da renúncia de si.
aC
Já pensando na relação que isso pode ser estabelecida com as práticas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


cotidianas de ensino, podemos comentar sobre a própria noção que subjaz
à pedagogia moderna se funda em uma modelo de ascese como presente no
cristianismo, ou em um certo tipo de cristianismo. Basta pensarmos no quanto
visã
os alunos devem se submeter a regras de controle do corpo, no tempo e no
espaço e nos rituais presentes nas instituições escolares. Ao analisar a obra
de Foucault sobre o cuidado de si e as práticas de liberdade, Duarte (2016)
menciona que o filósofo afirma que a relação que a relação estabelecida entre
itor

o diretor ou mestre e o dirigido ou discípulo entre os estoicos não era de


a re

obediência e sujeição ilimitadas. Nas palavras de Foucault:

De fato, a direção, vida filosófica antiga e na pedagogia antiga, tem três


características. Primeiro, ela é limitada e instrumental. Quero dizer que
par

essa obediência tem um fim bem definido, um fim que é exterior a ela
[...] Segundo a direção antiga supõe, de parte do mestre, certa forma de
Ed

competência. Essa competência não é necessariamente um saber ou um


saber técnico [...] É aquele que é capaz de nos guiar [...] É necessário
portanto uma espécie de diferença de natureza entre quem dirige e quem é
dirigido. Enfim, terceiro, sempre na direção antiga, não cristã, não monás-
ão

tica, a direção é provisória, quer dizer que o essencial da sua finalidade


é levar a um estado em que não necessitaremos mais de um diretor e em
que poderemos nos conduzir nós mesmos e sermos nós mesmos nosso
s

soberano diretor (FOUCAULT, 2014, p. 242).


ver

Certamente que estamos longe desse tipo de pedagogia, também porque


nossas estruturas sociais são outras. No entanto, olhar para modos diferentes de
relações pedagógicas nos faz pensar que em algum momento nós socialmente
fomos construindo um tipo de vida e a naturalizamos. Pensar que outras formas

Flávia Lemos - 21982.indd 110 28/02/2020 13:13:00


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 111

de existência foram possíveis em outros tempos, nos faz pensar no nosso


tempo e possibilitar a construção de outros modelos. E aqui queremos lançar
luz sobre as experiencias libertárias na educação. Nas palavras de Foucault
vimos que as propostas pedagógicas antigas se pautavam por um outro cami-
nho e visavam outros fins. Hoje em dia os estudantes são tutelados até o nível
de doutorado, subjugados a relações de poder perversas que muitos de nós
conhecemos. Apesar de anacrônico, pensar nos antigos nos faz questionar o

or
nosso próprio projeto de sociedade ou pelo seria bom que assim o fizéssemos.

od V
Bion ao longo de sua obra aponta que grande parte da construção do

aut
sujeito psíquico (tomado em Bion não como assujeitado), aquele que é intér-
prete e que se dá da passagem da posição esquizoparanoide para a posição
depressiva, se deve às capacidades da mãe de conter as vivências da criança

R
(GROTSTEIN, 2017). Um paralelo se dá na prática clínica em que o terapeuta
ou analista funciona como esse continente-mãe ou mãe-continente. Me parece

o
que o que Bion narra serve como metáfora para as relações estabelecidas entre
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

discípulo e mestre na antiguidade.


Evidentemente que estamos tentando articular dois sistemas explicativos
em grande parte distintos, mas se nos dermos essa autorização de articulá-los
visã
podemos fazer grandes avanços, segundo nosso julgamento. Por exemplo, o
jovem Alcibíades teve várias relações amorosas quando novo. Sócrates se
interessou por ele quando Alcibíades já estava em idade mais madura. Fou-
cault (2010) indica Sócrates estava interessado nas questões de Alcibíades,
itor

na sua vida, não o tomava apenas como objeto de seus interesses sexuais, era
a re

interesse genuíno na pessoa de Alcibíades. Segundo o filósofo francês isto


era parte da relação que configurava a epiméleia heautoú.
Em termos kleinianos/bionianos o sujeito faz a passagem da “isso-dade”
para a “eu-dade” também pelo olhar de seu cuidador. O que importa afirmar
par

aqui é que seja em termos de psicanalise ou em outro sistema explicativo,


nossa cultura atual produz conhecimento que reafirmam práticas diferencia-
Ed

das e que acreditam em outras configurações relacionais que fazem emergir


o sujeito como seu soberano e capaz de decidir sobre a sua própria vida e
ão

de construir uma vida que seja bela para si pela conquista da sua liberdade.
Por vida bela gregos tomam aquela vida feita produzida por cada um, por
que cada um saberia o que é melhor para si, por estar sempre voltado para si,
s

atravessado pelos outros. As artes do viver constituídos pela submissão livre


ver

das práticas de si por meio das quais “[...]os homens não apenas se fixam em
regras de conduta, mas buscam a transformar-se a si próprios em seu ser sin-
gular e fazer de sua vida uma obra de arte que possui certos valores estéticos
e que responde a certos critérios de estilo” (DUARTE, 2016, p. 39)

Flávia Lemos - 21982.indd 111 28/02/2020 13:13:00


112

Em suma, ao analisar o modo de sujeição do indivíduo ao código moral,


Foucault passou a considerar a atividade do sujeito que livremente se
assujeita a um código e assim se distingue dos demais, reconhecendo-se
então como sujeito ético. Se há morais que privilegiam a codificação
em sua “sistematicidade e riqueza”, também há morais em que a tônica
não se encontra no quadro das prescrições, mas no modo como cada um
indivíduo se submete às regras, visando transformar a própria existência

or
em obra de arte (p. 39).

od V
Por esta razão, Foucault aponta que o sujeito ético, aquele que conse-

aut
gue fazer escolhas, é também o sujeito livre. Segundo Foucault “A liberdade
é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida

R
pela liberdade (2006, p. 267)”. Na sua visão, a liberdade corresponde a uma
agonística, ou seja, conquistada por meio de um esforço, de uma luta entre as

o
forças do querer e as práticas da liberdade (CANDIOTTO, 2016)
aC
Nesse sentido que retomamos também a ideia de capacidade negativa

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


da mente retirada de Bion essa condição de ser tolerante à certas frustrações
(GROTSTEIN, 2017). Acreditamos que tal capacidade é aprendida de tam-
bém como um outro posicionamento diante do mundo. A vida moderna faz
visã
um apelo constante à euforia, ao “sem limites para o prazer”, os apelos da
publicidade vão na direção de um narcisismo onde o slogan principal é que
“você merece”, construindo um circuito pobre entre trabalho e merecimento
itor

de toda forma de prazer, onde não cabe afetos diversos como a tristeza. E de
a re

forma significativa exatamente nessa sociedade aumentam os números de


depressivos (KHEL, 2009). A liberdade aqui é tomada como parte de um pro-
cesso em que eu não me torno escravo de nada, de nem uma forma de prazer,
sentimento ou pessoa. Onde, por exemplo, um prazer não se torna um vício.
par

5. Imaginando o cenário possível para


uma vida ética, livre e bela
Ed

Na sua “A hermenêutica do sujeito” Foucault apresenta um caminho de


ão

convocação e de possibilidades para a experiencia do cuidado de si. Desde


a convocação mais propriamente presente na história da religião grega, até
a presença desse apelo dentro dos grupos filosóficos diversos. As várias ver-
s

sões dessa convocação e quem poderia viver o cuidado de si nos faz pensar
ver

primeiro na dimensão histórica e sempre mutante do convite. Posterior-


mente podemos pensar na dimensão social em que tal apelo pode surgir, e
em como nos múltiplos contextos da organização da vida, ele pode ser mais
ou menos incorporado.

Flávia Lemos - 21982.indd 112 28/02/2020 13:13:00


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 113

Assim o cuidado de si, o retorno para si era algo para ser vivenciado
desde muito jovem ou para ser pensado por quem queria governar os outros,
sendo também algo que se deveria tomar como premissa quando se estivesse
chegado à vida adulta, como foi o caso de Alcibíades. No seu encontro com
Sócrates. Também alguns grupos entendiam que o retorno a si só poderia ser
vivido por quem tinha privilégios e não precisava trabalhar ou ter outra ocupa-
ção, sendo um apelo que, embora direcionado à todos, poucos realmente teriam

or
condições de vivenciar. Depois o apelo era voltado para quem já era ancião,

od V
voltando, posteriormente, o apelo a todo mundo e em qualquer condição.

aut
Estimulado por essa característica histórica é que pensamos em que
sentido podemos pensar uma vida bela e artista, nos termos gregos, uma vida
estética, e livre. Pesamos que olhar apenas para o indivíduo seria a reprodução

R
dos ideais da filosofia liberal e capitalística. Não achamos que a aposta de
Foucault, tenha esse viés, apesar de muitas vezes ele o seja assim pensado.

o
Evidentemente que tal crítica desconhece às duras palavras do filósofo a
aC
respeito do sistema e do capital.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Pensamos, então, numa via que seja compatível com nosso tempo, com
os recursos que temos construído neste momento histórico e optamos por
pensar em uma reflexão que leva em conta as ideias em torno do conceito
visã
da promoção da saúde. Pensando que as reflexões e iniciativas em torno
da temática da promoção da saúde compõe um cenário pensado nos nossos
tempos como forma de enfretamento da precariedade da vida e das aborda-
itor

gens em saúde. Algumas ideias podemos destacara respeito da promoção


a re

da saúde. Primeiramente a ênfase na própria ideia de saúde e não na doença


como costumeiramente se dá ao se discutir saúde. Ou seja, há um caminho
de potencialização nas experiências bem sucedidas e não no patológico. Em
outras palavras, o foco recai sobre o que deu certo, ou no que pode dar e não
em consertar os problemas. É mais do que simplesmente a prevenção que
par

ainda carrega forte ênfase no adoecimento, de certo modo, pois se caracteriza


Ed

em evitar a doença. A promoção da saúde pensa muito mais do que evitar a


doença em produzir estilo de vida que sejam saudáveis em si.
Evidentemente que aqui estamos pensando saúde perto do que podemos
ão

chamar de vida bela, tomando o conceito amplo de saúde, o qual leva em conta
o ser humano como um todo: como um ser biológico, psíquico, social, histó-
rico, cultural e espiritual. Desta maneira, segundo o paradigma da promoção
s

da saúde preconiza que não basta o indivíduo fazer escolher saudáveis, ele
ver

precisa ter a opção de fazer essa escolha. Por esta razão o fazer e o pensar
da promoção da saúde sempre implica um comprometimento intersetorial.
Pensar em saúde é pensar em engenharia de trânsito, em educação, arquitetura
urbana, economia, entretenimento e lazer, segurança pública, administração
sanitária e demais setores.

Flávia Lemos - 21982.indd 113 28/02/2020 13:13:01


114

Pensamos isso por acharmos que o sujeito escolhe dentro dos limites e
das possibilidades dadas pelo contexto. Nossos contextos precisam possibilitar
a experiencia da liberdade e da construção de uma vida ética. No entanto, não
conseguimos pensar na construção desse sujeito ético sem considerar que pre-
cisamos construir como sociedade um ethos mais solidário. Alguns filósofos,
inclusive Foucault, chama atenção para a amizade como um caminho possível.
A amizade é espaço de experimentação, caminho para ética. Evidente-

or
mente que o filósofo fala da amizade tendo como pano de fundo a experiência

od V
homossexual como protótipo de um tipo de vinculação que seria ao mesmo

aut
tempo não fusional como o amor e vinculação que permite vários arranjos
relacionais, para além dos já sabidos. Um território de novas possibilidades.
Acreditamos seriamente que a criação de experiencia de amizade não só entre

R
jovens, mas entre gerações diferentes pode ser um contexto favorável para a
produção de novas formas de subjetivação que sejam também formas de resis-

o
tências frente aos tempos precários. Locais (não necessariamente físicos) onde
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


também haja espaço para escuta e onde o jovem possa ser considerado agente
de sua vida em relações solidárias que o ajudem nesse percurso. Não porque
os jovens não tem competência, ou porque precisem de tutela em um sentido
amplo e não jurídico, ou seja, não porque precisem de um adulto guiando.
visã
Talvez seja importante a construção de espaços de amizade e de solidarie-
dade, porque a vida é assim mesmo. Nas palavras de Guimarães Rosa: “A vida
é mutirão de todos. Por todos remexida e temperada”. Que cada jovem decida
itor

nisso o melhor sabor, seu melhor tempero, nos diversos arranjos e gostos que
a re

podem ter. mas não isolados, abraçados por uma comunidade aberta para
experiências de liberdade. Talvez, um devaneio, mas o que Foucault tem nos
ensinado na sua obra tem sido muito isso: não devemos apenas ficar tentando
entender o que somos, mas essencialmente nos tornamos sempre outra coisa.
par

E neste processo, imaginar tem uma função crucial, função inventiva, criadora
e produtora de uma nova forma de viver, de existir e de produzir sentidos.
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 114 28/02/2020 13:13:01


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 115

REFERÊNCIAS
CANDIOTTO, C. Práticas de subjetivação e experiência da sexualidade em
M. Foucault: sobre O uso dos prazeres e O cuidado de si. In: RESENDE,
H. (Org.). Michel Foucault: Política – pensamento e ação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016.

or
CARVALHO, W. L. Pensar a educação a partir de Foucault: do humanismo

od V
ao cuidado de si. São Paulo: Loyola, 2014.

aut
DUARTE, A. Foucault e os coletivos políticos: novas formas de vida para além

R
do sujeito identitário de direitos. In: RESENDE, H. (Org.). Michel Foucault:
Política – pensamento e ação. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

o
aC
FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

das práticas e discursos psicológicos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In:


visã
FOUCAULT, Michel. Ética, Política e Sexualidade: Ditos e escritos. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, v. V, p. 264-287. 2006.

______. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Tradução de Márcio


itor

Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. Martins Fontes, 2010.


a re

______. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de


Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1996.
par

______. O governo dos vivos. Tradução de Eduardo Brandão São Paulo:


Martins Fontes, 2014.
Ed

______. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 36. ed. Tradução
de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009.
ão

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
s

GALVÃO, I. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento


ver

infantil. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

GROTSTEIN, J. S. “...no entanto, ao mesmo tempo e em outro nível...”:


aplicações clínicas na linha kleiniana/bioniana. Tradução de João Paulo
Machado de Souza e Patrícia F. Lago. São Paulo: Blucher, 2017. v. 2.

Flávia Lemos - 21982.indd 115 28/02/2020 13:13:01


116

GUATTARI, F. O inconsciente maquínico. Campinas: Papirus, 1988.

KHEL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo:


Boitempo, 2009.

OGDEN, T. H. A matriz da mente: relações objetais e o diálogo psicanalí-


tico. Tradução de Giovanna Del Grande da Silva. São Paulo: Blucher, 2017.

or
od V
PRADO FILHO, K.; MARTINS, S. A subjetividade como objeto da(s)

aut
psicologia(s). Psicol. Soc. Porto Alegre, v. 19, n. 3, p. 14-19, dez. 2007.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-71822007000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em : 11 dez.

R
2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822007000300003.

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 116 28/02/2020 13:13:01


TENDÊNCIAS PARA A ADESÃO
AO AUTORITARISMO: um
olhar sobre a personalidade

or
V
Louine Costa Lima Cruvinel

aut
Cristiane Souza Borzuk
Andressa Cabral Domingues

1. Introdução
CR
do
No atual cenário político é possível perceber a ascensão de líderes nos
países ocidentais que defendem governos autoritários. Podemos afirmar que
esses líderes representam parte da população que, de forma democrática, lhes
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
deram poder. Segundo Carone (2012), a ascendência de líderes com estas
características tende a se fortalecer em momentos de instabilidade política e
ra
econômica, como uma alternativa para mudança. Neste cenário de instabili-
dade política, econômica e de valores sociais, podemos perceber a disposição
i
dos indivíduos para aderir e concordar com princípios autoritários.
rev

Um dos acontecimentos marcantes em 2017 sobre a ascensão de movi-


mentos totalitários foi a marcha nazista em Charlottesville, EUA, no dia 12
to

de agosto de 2017, onde homens e mulheres caminharam com tochas, fizeram


saudações nazista e gritaram palavras de ordens contra imigrantes, negros e
ara

homossexuais. Segundo a BBC Brasil em sua página online (2017), muitos


integrantes deram entrevistas afirmando serem nazistas. Disseram que preci-
ver di

savam defender a supremacia branca na América do Norte e que os imigrantes


não podem substituí-los.
op

As evidências sobre as movimentações de grupos com ideais antidemo-


cráticos são crescentes na atualidade. No Brasil, policiais civis de Porto Alegre
E

e de São Paulo identificaram uma movimentação de grupos neonazistas que


estavam trocando experiências com grupos similares nos Estados Unidos,

Europa e Argentina, criando uma rede. Existem hoje, no Brasil, departamentos


policiais específicos para controle de informações sobre estes grupos, pela
grande preocupação existente na sociedade em que grupos com características
fascistas disseminem ódio.7
Que o fascismo deixou profundas marcas na história da humanidade é
fato. A ascensão de um líder totalitário, a extinção da oposição, a eugenia
levada a níveis práticos e extremos desaguando no holocausto (como no caso
7 Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/policia/policia-de-sp-ve-aumento-de-movimentacao-
-neonazista-e-identifica-grupos,93cb6a3bc57f1c80532f94bfbd208854tw6z4umz.html>.

Flávia Lemos - 21982.indd 117 28/02/2020 13:13:01


118

do nazismo); todos aspectos relacionados às práticas fascistas que vistos à


distância intrigam e chocam. Estudiosos das mais diversas áreas já se debru-
çaram sobre o estudo de elementos que compõem o quadro propicio para o
desenvolvimento de políticas antidemocráticas, a fim de compreendê-lo em
seus termos sociais, econômicos, políticos e psicológicos.
Theodor W. Adorno, teórico crítico Frankfurtiano, é importante refe-
rência para esse movimento dedicando parte do seu trabalho para o estudo

or
da propaganda antidemocrática e da personalidade autoritária, na busca por
mecanismos psicológicos e sociais envolvidos neste processo. Por meio de

od V
suas contribuições, é possível uma compreensão abrangente da relação estabe-

aut
lecida entre líderes e seguidores, principalmente pela descrição de uma série
de elementos com o caráter de manipulação inconsciente predominante na

R
propaganda antidemocrática. Considerando o quadro político instável carac-
terístico da ascensão e consolidação de movimentos antidemocráticos, e a

o
delicada situação em que o Brasil atravessa atualmente, a intenção deste texto
aC
é contribuir, do ponto de vista da psicologia social, para a compreensão dos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


fatores determinantes da ascensão e manutenção de movimentos totalitários.

6. O lugar da Psicologia na compreensão


visã
de contextos antidemocráticos
Segundo Rouanet (1983), as primeiras tentativas de aproximar o pen-
itor

samento de Marx e Freud ocorreram a partir de dois marcos importantes: a


Revolução Bolchevista, em 1917, e a chegada de Hitler ao poder, em 1933.
a re

Estes dois marcos tiveram em comum o fato de que ambos contrariaram as


expectativas objetivas postas pelas condições econômicas e políticas da época.
De um lado, a Revolução Socialista foi possível mesmo a par do considerável
atraso econômico da Rússia e da inexpressividade de seu proletariado. Vale
par

lembrar que a Rússia era um país essencialmente agrário, e as análises da II


Internacional indicavam a impossibilidade da Revolução sem a hegemonia
Ed

burguesa. De outro lado, na Alemanha, ainda que as condições objetivas


indicassem certa maturidade do processo político e condições favoráveis à
revolução social (alto nível de industrialização, com um proletariado expres-
ão

sivo e uma conjuntura econômica que levava a pauperização crescente da


população), havia uma acentuação de forças contrarrevolucionárias, com a
defesa cada vez maior de posições conservadoras, culminando, em 1925, na
s

vitória de Hindenburg como presidente do Reich e, em 1934, a ascensão de


ver

Hitler ao poder. O que está em questão, nestes dois fatos, é o descompasso


entre os fatores objetivos e os subjetivos, revelando a importância estratégica
dos fatores subjetivos (Rouanet, 1983, p. 14).
Neste contexto, se anunciaram as possibilidades de aproximação entre o
pensamento de Marx e a psicologia. Em 1919 Emil Lorenz anunciava:

Flávia Lemos - 21982.indd 118 28/02/2020 13:13:01


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 119

A dominação e a exploração não precisam de nenhuma explicação psi-


cológica. Somente quando perguntamos quais os mecanismos psíquicos,
independentes de qualquer instância externa de poder, que levam a maioria
oprimida a sujeitar-se à sua situação, a comprazer-se nela, a esquecer a
origem da sua escravidão, a ignorar seu protagonismo histórico, a tornar-
se patriótica – somente então precisamos da psicologia8

or
A partir desse ano, surgiu toda uma literatura que tinha como propósito
a resposta à pergunta: “quais os mecanismos psicanalíticos que explicam a

od V
onipotência da ideologia burguesa?” (Rouanet, p. 15). No movimento psi-

aut
canalítico, Siegfried Bernfeld, Otto Fenichel e Paul Federn demonstraram
interesse nesta articulação, mas foi Reich o seu “proponente mais vociferante”
(Jay, 2008, p. 133).
R
Neste mesmo movimento, pode-se localizar o trabalho desenvolvido

o
pelos membros do Instituto para Pesquisa Social, da Universidade de Frank-
aC
furt, no período compreendido sob a direção de Horkheimer. Segundo Jay
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

(1978), apesar de que o tema da relação entre a psicologia e o marxismo fosse


um tema recorrente nos círculos intelectuais de Frankfurt naquele período, a
introdução da psicanálise nas análises do Instituto representou a intenção de
visã
romper com o marxismo economicista que vigorava sob a direção de Grün-
berg. Isso indicou uma mudança importante nas pesquisas desenvolvidas a
partir de então. A questão que orientará os trabalhos aparecerá na aula inau-
itor

gural de Horkheimer, em 1929:


a re

Que ligações podem ser estabelecidas num grupo social específico, numa
época específica, em países específicos, entre o papel econômico desse
grupo, as mudanças na estrutura psíquica de seus membros e os pensa-
mentos e instituições que são um produto dessa sociedade e que têm, como
par

um todo, um efeito formativo sobre o grupo em questão?9


Ed

Esta nova orientação se deu pela incorporação da psicanálise aos tra-


balhos do Instituto, inicialmente sob a batuta de Erich Fromm. Os estudos
realizados na Teoria Crítica chegaram a um ponto importante quando perce-
ão

beram que a classe operária não foi capaz de cumprir seu papel como Marx
concluía em seus estudos. De acordo com Jay (2008), Marx considerava que
s

a revolução poderia partir apenas da classe operária. Como esse papel não
ver

foi feito, os pesquisadores do Instituto começaram a fazer um esforço para


entender o desaparecimento das forças críticas do mundo.

8 Trecho da conferência intitulada Sobre a Psicologia da Política (Zur Psychologie der Politik). Citado por
Rouanet, p. 15.
9 Citado por Slater, p. 28.

Flávia Lemos - 21982.indd 119 28/02/2020 13:13:01


120

O Institut concentrou as energias no que os marxistas tradicionais


haviam relegado a uma posição secundária - a superestrutura da socie-
dade moderna. Isso significou concentrar-se primordialmente em dois
problemas: a estrutura e o desenvolvimento da autoridade, e a emergência
e a proliferação da cultura de massa. Todavia, para que essas análises
pudessem ser satisfatoriamente concluídas, era preciso preencher uma
lacuna no modelo marxista clássico da subestrutura e da superestrutura

or
(Jay, 2008, p. 1310).

od V
Os pesquisadores perceberam a falta de um elo psicológico para com-

aut
preensão da disposição da classe operária em continuar sendo oprimida, o
que pôde ser suprida pela inserção da psicanálise nas pesquisas posteriores.

R
7. A pesquisa sobre A Personalidade Autoritária

o
aC
Realizada no final da Segunda Guerra, a pesquisa intitulada La Perso-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nalidad Autoritaria foi realizada por Theodor Adorno, Else Frenkel, Daniel
Levinson e R. Nevitt Sanford, nos Estados Unidos. Teve, como sua hipótese
principal, a seguinte questão: “as convicções políticas, econômicas e sociais
visã
de um indivíduo estão ligadas às tendências da personalidade?” (1965, p. 27).
Segundo Adorno, a principal preocupação dos autores foi estudar o indivíduo
potencialmente fascista e sua estrutura de personalidade, que o deixa suscetível
itor

a aceitação da propaganda antidemocrática (1965, p. 27). Consideraram que


a re

conhecer as forças da personalidade que favorecem a aceitação do fascismo


seria útil contra a adesão a sistemas totalitários. Uma questão importante
descoberta na pesquisa foi que os indivíduos que mostram suscetibilidade
para aceitar a propaganda fascista, possuíam características comuns.
par

Segundo Adorno, et al. (1965), os pesquisadores levantaram as seguin-


tes questões sobre os indivíduos potencialmente fascistas: “Como eles são?
Ed

Como é formado o pensamento antidemocrático? Quais são as forças orga-


nizadoras dentro do indivíduo? Se existem pessoas potencialmente fascistas,
qual a quantidade delas na sociedade? Quais os fatores determinantes em seu
ão

desenvolvimento?” (p. 28).


As tendências ideológicas de mesma natureza podem existir a partir de
s

muitas origens, assim como as mesmas necessidades pessoais podem estar


ver

presentes em ideologias diferentes. De acordo com essa ideia, os autores da


pesquisa definiram ideologia como uma organização de opiniões, atitudes
e valores. Existe independente de um indivíduo isolado e tem efeito nos
processos históricos do momento em que se expressa e atua no indivíduo
dependendo de como atende suas mais profundas necessidades.

Flávia Lemos - 21982.indd 120 28/02/2020 13:13:02


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 121

Empleamos aquí el término ideología en la acepción que se le da común-


mente em la literatura actual, vale decir que con él designamos una orga-
nización de opiniones, actitudes y la sociedad. Podemos hablar de la
ideología total de un individuo o de su ideología con respecto a diferentes
aspectos de la vida social: política, economía, religíon, grupos minorita-
rios, etc. Las ideologías tienen una existencia independiente de cualquier
individuo aislado, y las que se dan en determinados peródos resultan tanto

or
de procesos históricos como de acontecimientos sociales del momento.
Dichas ideologías ejercen sobre cada indivíduo diferente grado de atrac-

od V
cíon, lo cual depende de sus necesidades y de la medida en que éstas son

aut
satisfechas or frustradas (Adorno, t. et al., 1965, p. 28)

R
Logo na introdução, Adorno et al. (1965) afirmam que os indivíduos
não expressam as tendências antidemocráticas do mesmo modo. Alguns acei-
tam a propaganda antidemocrática de imediato, outros esperam para aceitar

o
depois que se torna um movimento forte e outras pessoas não aceitam (p.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

30). Portanto, existem fatores que se estabelecem entre a identificação com


os movimentos totalitários e a participação ativa neles, entre a aceitação da
ideologia e a ação. Existem pessoas que aderem à ideologia, fazem assumi-
visã
damente a propaganda antidemocrática, ataques contra grupos minoritários,
e outras que se identificam com a ideologia, mas não agem. Portanto, para
os autores da pesquisa, existem graus de variância referentes aos momentos
em que os indivíduos vivem e a potencialidade das ações. Os pesquisadores
itor

perceberam que era necessário entender os elementos que conduzem à ação


a re

e também os que inibem a ação fascista.


Deste modo, para compreender os motivos que favorecem a adesão a uma
ideologia antidemocrática, é preciso compreender a estrutura e a dinâmica
de personalidade dos indivíduos. Ainda que tendências antidemocráticas não
par

sejam de natureza psicológica, há uma correspondência psicológica na manu-


tenção ou recusa de tais tendências. Na pesquisa, os autores conceituaram a
Ed

personalidade como uma organização das forças internas do indivíduo. Estas


forças contribuem para a predisposição de respostas emitidas pelos indivíduos
diante de situações específicas, atribuindo constância aos comportamentos
ão

físicos e verbais. As forças possíveis de inibir um comportamento antidemo-


crático estão em um nível mais profundo do que as forças que se expressam
imediatamente em comportamentos. Os autores da pesquisa se basearam na
s

teoria freudiana sobre a personalidade:


ver

Sólo una teoría de la personalidad total puede explicar tales estructuras. Y


la adoptada en la presente investigacíon afirma que la personalidad es una
organización más o menos permanente de las fuerzas internas del indiví-
duo. Estas fuerzas persistentes de la personalidad contribuyen a determinar

Flávia Lemos - 21982.indd 121 28/02/2020 13:13:02


122

la respuesta del sujeito ante distintas situaciones, y, por lo tanto, es a ellas


que se debe atribuir en buena parte la constancia del comportamiento, sea
verbal o físico. Pero, aunque constante, el comportamiento no es lo mismo
que la personalidad; ésta se encuentra detrás de la conducta y dentro del
individuo. Cada fuerza de la personalidad no es una respuesta sino una
predisposición a la respuesta; el que una predisposición llegue a expre-
sarse manifiestamente no depende sólo de la situación del momento sino

or
también de las predisposiciones que se le opongan. Las fuerzas inhibidas
de la personalidad se encuentran en niveles más profundos que aquellas

od V
que se expresan inmediata y constantemente en un comportamiento franco

aut
(Adorno, et al., 1965, p. 30).

R
Se é verdade, como afirmam Adorno et al. (1965, p. 30), que a perso-
nalidade é uma organização mais ou menos permanente das forças internas
do indivíduo, e que estas forças contribuem para determinar a resposta deste

o
indivíduo diante das diversas situações com que se defronta, ela é, por sua
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


própria natureza, “producto do medio social” (p. 31). De acordo com os
autores, as forças da personalidade são essencialmente necessidades, e, como
tais, só existem como referência e a partir do outro, sendo, desde o princípio,
visã
social. De outro lado, se a partir do conceito de estrutura, consideramos a
personalidade como razoavelmente estável, há que se considerar também,
que ela não é invariável: “lejos de estar formada desde un principio, de ser
algo invariable que actúa sobre el mundo que la rodea, la personalidad evolu-
itor

ciona a impulsos del ambiente social y no puede aislarse jamás de la totalidad


a re

social dentro de la que se desenvuelve” (Adorno et al., 1965, p. 31). Talvez, a


proposição mais correta seja aquela que reconheça a “interdependência entre
personalidade e sociedade” (Adorno et al., 1965, p. 31).
par

8. A formação da personalidade do indivíduo autoritário


Ed

O presente tópico tem por objetivo apresentar dados sobre a formação da


personalidade de indivíduos suscetíveis à adesão a movimentos totalitários.
Para isso, recorreremos, em particular, à pesquisa sobre a personalidade auto-
ão

ritária, de Adorno et al. (1965) e A Personalidade narcisista segundo a Escola


de Frankfurt e a ideologia da racionalidade tecnológica, de Crochik (1990).
No capítulo Tipos y Síndromes, de La personalidad autoritaria, os autores
s

citam síndromes e características da personalidade que exercem influência


ver

sobre a adesão dos indivíduos a movimentos totalitários (p. 696). De acordo


com os autores, essa definição e categorização das síndromes é a primeira
aproximação feita entre a teoria e os dados empíricos. Dividiram as síndro-
mes em Síndromes que se encontram em pessoas com altas pontuações, que
estariam mais dispostas a aderir a uma ideologia totalitária, e Síndromes que

Flávia Lemos - 21982.indd 122 28/02/2020 13:13:02


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 123

se encontram em pessoas com baixas pontuações, que tenderiam a recusar


ideologias totalitárias.
Dentre as várias síndromes descritas, a Síndrome Autoritária é a que
possui mais pontos significativos para a compreensão da adesão a pautas
autoritárias (p. 708). Segundo Adorno et al. (1965), o indivíduo autoritário
só encontra sua adaptação social sentindo prazer na obediência e na subor-
dinação, já que há o reconhecimento tácito da hierarquia social como algo

or
natural e necessário. Além disso, em nossa organização social, as tendências

od V
sádicas e masoquistas encontram gratificações. Essas gratificações possuem

aut
uma relação com as resoluções de conflitos no complexo de Édipo. De uma
forma simplificada, o amor que a criança sente pela mãe se torna um tabu,
geralmente barrado pela figura do pai. A criança passa a odiar o pai, esse ódio

R
se transforma em amor por meio de formações reativas. Essa transformação
leva a um tipo particular de superego.

o
Na Síndrome Autoritária, a conversão de ódio em amor é uma tarefa
aC
difícil e não possui bom êxito. Parte da agressividade sentida é absorvida
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e convertida em masoquismo e outra parte é convertida em sadismo, esse


sadismo é descarregado naqueles indivíduos ou grupos com os quais ele não
se identifica. Foi observado, no momento em que a pesquisa foi realizada,
visã
que esses indivíduos convertiam ao judeu o substituto do odiado pai, que em
um nível de fantasia vê-se os mesmos atributos paternos que revoltam o filho,
como a frieza, a dominação e a rivalidade sexual. A ambivalência o invade,
itor

esse indivíduo pode se tornar capaz de atacar quem considera fraco e se presta
a re

socialmente como vítima.


Na Europa, no momento da realização da pesquisa, a Síndrome Auto-
ritária era muito característica da classe média, onde existia a má aceitação
da própria situação social. Outra característica da síndrome é a negação da
gratificação material, que indica a existência de um superego restritivo. O
par

indivíduo autoritário expressa sua mobilidade social ascendente, se identifica


Ed

com aqueles indivíduos ou grupos que estão em um grau a mais na hierarquia


da autoridade. Outra característica citada por Adorno et al (1965), é o fato de
que os indivíduos com a síndrome autoritária possuem compulsões em suas
ão

crenças religiosas e entendem a religião de maneira muito punitiva. Existe,


nas relações familiares do indivíduo autoritário, um pai punitivo, que usa da
brutalidade, e o indivíduo passa a admirar essa força bruta. A identificação
s

familiar e com o grupo, se converte em disciplina autoritária.


ver

Toda a construção teórica realizada pelos pesquisadores corresponde às


características de uma época, que possuía um tipo de política, de economia e
cultura, fatores determinantes da formação da personalidade dos indivíduos,
o que implica em seu caráter sócio histórico. Com a passagem do capita-
lismo concorrencial para o capitalismo monopolista, pode-se dizer que novos

Flávia Lemos - 21982.indd 123 28/02/2020 13:13:02


124

elementos são colocados em marcha na constituição subjetiva dos indivíduos.


Segundo Crochík (1990), com a passagem do capitalismo livre para o organi-
zado, o indivíduo que antes precisava controlar seus instintos, pois não havia
um sistema muito organizado a ponto de exercer controle sobre a consciência,
passa a liberar seus instintos em um sistema de monopólios, desde que esses
instintos estivessem associados à conformidade social. O pai deixa de ser uma
figura forte para a identificação dos filhos e, de acordo com Crochík, os meios

or
de comunicação de massa passam a influenciar decisivamente as crianças e

od V
jovens com ideais e valores que beiram a perfeição, assim a família não possui

aut
condições de competir com a indústria cultural (1990, p. 151).
Para o autor, a influência direta de valores externos torna os superegos

R
mais frágeis. O ódio que, antes, na constituição da personalidade autoritária,
era dirigida ao pai, passa a não ter um objeto específico, podendo direcioná-
-lo a tudo. Com os diversos modelos de identificação que a criança passa a

o
ter, o ego é construído de forma frágil, possui dificuldades na formação do
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


superego e responde com deficiência diante das exigências do id, formando
o que foi chamado de Personalidade Narcisista (Crochik, p. 151). Segundo
Crochík (1990), na atualidade, a cultura se caracteriza mais pela liberação
visã
do que pela repressão, a formação da personalidade está ligada ao consumo,
e não mais se dá pelo trabalho. Com a fragilidade do superego, os indivíduos
possuem maior facilidade para ser corruptíveis. Algumas das características
da Personalidade Narcisista são: medo de dependência, sensação de vazio
itor

interior, ódio reprimido sem limites, desejos orais não satisfeitos, dependência
a re

de calor advindo de outras pessoas, apego a valores externos, pouca diferen-


ciação entre o indivíduo e o meio:

Assim, no pós-guerra a personalidade autoritária baseava-se na ambigui-


par

dade de afetos, ou melhor, na cisão de afetos relativos a autoridade, que


levava a uma alternância de submissão-rebeldia calcada em objetos dis-
Ed

tintos: a submissão orientada para as autoridades constituídas e a rebeldia


contra os exogrupos. A personalidade narcisista, sucedânea da autoritária,
não se baseia mais no conflito de afetos e sim na desconexão ente eles e
ão

deles com o conteúdo da experiência (Crochík, p. 12).

Portanto, para Crochík (1990), a Personalidade Autoritária se constrói


s

de acordo com os problemas relacionados com a figura de autoridade, já a


ver

Personalidade Narcisista se constrói a partir da desconexão com as figuras de


autoridade. A Personalidade Autoritária é construída em momentos históricos
diferentes da Personalidade Narcisista. A Personalidade Autoritária se cons-
tituiu a partir de uma educação repressora, o que era muito característico de
quando a pesquisa foi realizada. Já a Personalidade Narcisista se constitui a

Flávia Lemos - 21982.indd 124 28/02/2020 13:13:03


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 125

partir da falta de identificação das crianças com o modelo familiar e o modelo


almejado é o imposto pela indústria cultural.

9. Considerações finais

Percebendo as variantes existentes entre a adesão e a não adesão aos


movimentos totalitários, este trabalho se dispôs a refletir sobre as tendências da

or
personalidade que favorecem a adesão a tendências antidemocráticas. É notá-

od V
vel que o surgimento de movimentos do tipo totalitário emerja em momentos

aut
conturbados da sociedade, em que a política, a economia e a cultura estejam
passando por mudanças, mas são fatores subjetivos, como as características

R
de personalidade dos indivíduos, que favorecem a adesão ou não a estes
movimentos. Características da personalidade que contribuem para a adesão
a movimentos antidemocráticos foram encontradas nos sujeitos da pesquisa

o
sobre a personalidade autoritária, entre elas estão a falta de motivações racio-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nais no ataque a alguns grupos considerados minorias. Indivíduos com essas


características possuem, em geral, uma explicação dos motivos que justificam
o preconceito contra alguém ou algum grupo. Entretanto, tais explicações não
visã
passam pela reflexão racional, sendo, sobretudo, resultado dos mecanismos
de defesa construídos durante seu desenvolvimento psicológico.
A aceitação de ideias preconceituosas sobre alguém ou algum grupo como
sendo naturalmente verdadeiras, também é uma característica de indivíduos
itor

que possuem tendências a aceitar movimentos totalitários. Pessoas com esta


a re

característica aceitam “falácias” como verdade, sem passar por uma análise
crítica e ponderar se as informações recebidas correspondem à realidade. A
intenção deste trabalho, ao apresentar os elementos constituintes da existência
subjetiva dos indivíduos que possuem disposições para aderirem a tendências
par

antidemocráticas, não é justificar quaisquer formas de organização social


a partir da mônada psicológica. Não se trata de reduzir às características
Ed

individuais a existência de totalitarismos ou a quaisquer outras formas de


governo. São questões políticas e econômicas. Compreende-se, no entanto,
que é necessária a compreensão dos fatores subjetivos que possibilitam às
ão

pessoas aderirem ou não a tais formas de ideologia.


s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 125 28/02/2020 13:13:03


126

REFERÊNCIAS
Adorno, T. (1965). et al. La personalidad autoritária. Buenos Aires.

Carone, I. (2012). A personalidade autoritária: Estudos frankfurtianos sobre


o fascismo. Revista Sociologia em Rede, 2(2). Encontrado em: http://redelp.

or
net/revistas/index.php/rsr/article/view/2carone2/9.

od V
Crochík, J. L. (1990). A personalidade narcisista segundo a Escola de Frank-

aut
furt e a ideologia da racionalidade tecnológica. Psicologia-USP, São Paulo.
1(2),141-154.

R
Jay, M. (2008). A imaginação Dialética: História da escola de Frankfurt e

o
do instituto de pesquisas sociais 1923-1950. Rio de Janeiro. Contraponto.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Matos, O. C. F. (2001). A escola de Frankfurt: Luzes e sombras do Iluminismo.
São Paulo. Editora moderna.
visã
Rouanet, S. P. (1983). Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro; Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará.
itor

Senra, R. (2017). ‘Sou nazista, sim’: o protesto da extrema direita dos EUA
contra negros, imigrantes, gays e judeus. BBC Brasil, Charlottesville, Encon-
a re

trado em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927

Slater, P. (1976). Origem e significado da escola de Frankfurt. Rio de Janeiro.


Zahar Editores.
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 126 28/02/2020 13:13:03


AUTORITARISMO E GUERRA
ÀS DROGAS NO BRASIL

or
José Araújo de Brito Neto
Flávia Cristina Silveira Lemos

V
Luanna Tomaz de Souza

aut
1. Introdução

CR
O presente artigo visa analisar a política de drogas no Brasil e as per-

do
manências de uma racionalidade autoritária de justiça penal. Para tanto, será
apresentada uma análise dialética e histórica que destaca os conflitos que
se delinearam a partir da expansão da política contra as drogas, no Brasil,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
tomando como base pesquisa bibliográfica e documental. O tema da proi-
bição das drogas é de extrema relevância na medida em que o tráfico de
drogas é o crime que mais encarcera no país, aumentando 339% desde a
ra
Lei 11.343/200610. Torna-se fundamental, nesse contexto, compreender a atual
i
política de drogas implementada no Brasil. A chamada “guerra às drogas”
rev

reflete uma política internacional e um contexto histórico autoritário e que


foi voltada principalmente à contenção de determinados grupos e que precisa
to

ser analisada pois se dissemina na política criminal do país.


A política de drogas brasileira insere-sem um modelo de “política cri-
ara

minal autoritária”. Ferrajoli (2002) compreende assim políticas criminais


que desvalorizam, em maior ou menor intensidade, o princípio da legalidade
ver di

estrita ou um de seus corolários, buscando dar uma eficácia absoluta ao Direito


Penal. Pleiteia-se a máxima efetividade do controle social. As políticas crimi-
op

nais autoritárias constroem também a prisão como a única alternativa para a


solução de conflitos, ignorando a complexidade com que estes ocorrem e as
E

inúmeras possibilidades de enfrentamento.


Para Zaffaroni (2007), os componentes autoritários acompanham o direito

penal ao longo de sua história e permanecem mesmo sob a construção de


novos Estados, pautados em um modelo democrático. Esse ranço autoritário
se revela em diversos elementos, como a permanente construção de inimigos.
No âmbito da política de drogas, o mundo, sob influência dos EUA começa, a
partir, da década de 1980, a estruturar uma legislação penal claramente auto-
ritária elegendo o traficante como inimigo a ser exterminado, com a violação
de vários princípios estabelecidos pelas novas constituições. Segundo Batista
10 G1. Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas. Disponível em: <ponde-por-trafico-
-de-drogas.ghtml>. Acesso em: 16 jul. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 127 28/02/2020 13:13:03


128

(1998, p. 123): “[...] sejam eles jovens negros e pobres das favelas do Rio de
Janeiro, sejam camponeses colombianos, sejam imigrantes indesejáveis no
Hemisfério Norte”.
Esse autoritarismo penal não contribuiu para inibir o consumo, pelo
contrário, e ainda ampliou o encarceramento e construiu uma lógica que
aperfeiçoou o viés punitivo do sistema penal. No Brasil, a transição demo-
crática brasileira esbarrou em enorme dificuldade de inserir a justiça penal

or
(PASTANA, 2009). Observa-se, na prática, uma forte resistência do campo

od V
jurídico penal em assumir a sua responsabilidade política na consolidação

aut
democrática o que ajusta-se ao projeto neoliberal também em curso no país
de suprimir ao máximo direitos previstos em lei reafirmando um discurso
que amplia o controle do Estado sobre os indivíduos para suposto controle
da criminalidade.
R
o
2. A guerra as drogas e o proibicionismo no Brasil
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


O processo de proibição do uso de substâncias no Brasil é farto no que
se refere a criminalização do usuário e na construção de estigmas. Segundo
visã
Maurício Fiore (2005), o proibicionismo do uso de drogas, no Brasil, encontra
sua emergência no século XIX. Em 1830, houve a proibição do uso da canna-
bis, associada, à época, ao consumo das classes mais baixas e discriminadas
da sociedade11.
itor

Adiante verifica-se que uma parte da elite brasileira tinha acesso ao


a re

uso de substâncias proibidas, o que não comprometia o acordo social entre


medicina e Estado. Conforme ressalta Fausto (2009), nesse período, conside-
rando o primeiro recenseamento, em 1872, a população brasileira foi estimada
em 9,93 milhões de pessoas: os mulatos eram 42% da população, 20% eram
par

negros e 38 % eram brancos, enquanto o índice de analfabetismo da popu-


lação escrava era de 99,9% e, entre a população livre, era de 80%, havendo
Ed

assim um enorme “poço” que separava as elites letradas das camadas mais
baixas da população. Já na República, em 1890, com a aprovação do primeiro
Código Penal Republicano, foi tornado crime contra saúde pública a venda
ão

de substâncias venenosas e não autorizadas, sendo apenado esse ato através


de multa. Carvalho (2013, p. 58-59) ilustra:
s

Com a edição do Código de 1890, passou-se a regulamentar os crimes


ver

contra a saúde pública, previsão que encontrou guarida no Título III da

11 Em 1830, foi instituída pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, a Lei do Pito do Pango, na qual prelecionava
que: "É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os
contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele
usarem, em três dias de cadeia. "

Flávia Lemos - 21982.indd 128 28/02/2020 13:13:03


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 129

Parte Especial (Dos crimes contra a Tranquilidade Pública). Juntamente


com a incriminação do exercício irregular da medicina (art. 156); da prá-
tica da magia e do espiritismo (ar. 157); do curandeirismo (art. 158); do
emprego de medicamentos alterados (art. 160); do envenenamento das
fontes públicas (art. 161); da corrupção da água potável (art.162), da alte-
ração de substâncias destinadas à alimentação (art.163); e da exposição
de alimentos alterados ou falsificados (art. 164), o art. 159 previa como

or
delito “expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas sem legítima
autorização e sem as formalidades prescriptas nos regulamentos sanitá-

od V
rios”. Submetendo o infrator à pena de multa.

aut
Esse período do começo da República foi caracterizado por grandes

R
transformações socioeconômico-político-culturais, de maneira que o país,
que antes era sustentado pelo sistema escravocrata, naquele momento passa

o
a adequar-se ao sistema assalariado. As pessoas escravizadas passam a ser
consideradas “libertas”, porém, sem nenhuma assistência, vindo a contribuir
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

com o aumento dos conflitos urbanos. Assevera Maestri (2011, p. 129):

Esse descaso com o negro gerou problemas sociais sérios. Os poucos que
visã
tinham alguma profissão faziam biscates (bicos), comiam e dormiam onde
fosse possível. Outros iam sendo forçados à marginalidade, vivendo do
roubo ou da caridade pública, embriagando-se. Alguns foram vitimados
pela tuberculose ou por outras doenças, favorecendo, dessa forma, a orga-
itor

nização de instituições tais como as Santas Casas de Misericórdia, o Hos-


a re

pital Psiquiátrico D. Pedro II, os asilos São Vicente de Paula, entre outros.

No início do século XX, é importante ressaltar que as legislações brasi-


leiras eram também construídas sob a lógica da proibição do uso e da crimina-
lização do comércio das drogas, levando os usuários às prisões ou sanatórios
par

(RAMOS, 2012). Era o chamado higienismo, que, desde 1900, estava na pauta
principal da condução do Estado. Nesse mesmo período, é importante frisar
Ed

que houve, no mundo, um aumento do consumo de ópio e haxixe, sobretudo


por grupos intelectuais e aristocráticos, incentivando novas regulamentações
ão

(CARVALHO, 2013). Por conseguinte, em 1921, por meio do Decreto n.


4.294, houve, no país, a criminalização da venda da cocaína, do ópio e seus
derivados. Em seguida, com o advento do Decreto n. 14.969, surgiu a figura
s

do toxicômano, nomeado como o indivíduo dependente de tóxicos, podendo


ver

inclusive ocorrer, por meio desse documento, sua internação, requerida pelo
mesmo, por sua família ou pelo próprio judiciário (FIORE, 2005).
No Brasil, se assistia a emergência de um contexto de higienização social.
O Código Sanitário da República de 1890 disciplinava o uso do espaço urbano
segundo padrões europeus, condenando o uso público de drogas. Na década

Flávia Lemos - 21982.indd 129 28/02/2020 13:13:03


130

de 20, contudo, a situação se modificou, com a Convenção de Haia (1912)12


se fortalece o controle sobre opiáceos e cocaína, surgindo a primeira lei de
controle. Estes vícios, que eram das classes mais altas, passam a ser proibidos
ao alcançar as classes mais perigosas, como negros e a plebe urbana nacional.
Ao assumir uma postura proibicionista (com proibição total à livre produção,
circulação e consumo de substâncias psicoativas e repressão aos segmentos
sociais associados segundo o discurso governamental) significava estar ali-

or
nhado aos Estados Unidos.

od V
Adiante, observa-se que paulatinamente a legislação brasileira assume

aut
um papel de seletividade com relação ao consumo de drogas com foco na
população negra. Faz-se constatar que, mesmo com o advento do higienismo
e da influência das legislações mundiais, a elite consumidora será excluída,

R
de fato, desse processo de proibição do consumo.
Sobre o aspecto da legislação, houve a Consolidação das Leis Penais,

o
em 1932, sendo alterado o caput do artigo 159 do Código de 1890, acrescendo-
aC
lhe doze parágrafos e a previsão de prisão celular. Ocorreu então a substituição

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do termo substâncias venenosas para o termo substâncias entorpecentes (o
qual perdurou até a revogação da Lei n. 6.368/76), bem como a previsão de
pena de prisão (CARVALHO, 2013).
visã
Nos EUA, a guerra contra às drogas tem como pano de fundo uma
marcha das medidas de controle social com base no controle sobre hábitos
e disciplinarização de condutas (RODRIGUES, 2002). Através de reuniões
itor

internacionais, o país começa a disseminar o terror causado pela dissemina-


a re

ção do uso de substâncias associadas aos negros, mexicanos e às populações


mais pobres. As resistências liberais internas vão sendo minadas através da
mobilização dos diversos países.
Quando surge a Lei Seca proibindo a produção, transporte, importação
e exportação de bebidas alcoólicas em todos os Estados da federação cria-se
par

um gigantesco mercado ilegal de álcool e a disseminação do uso de outras


drogas proibidas, como a maconha e a cocaína, utilizadas pelas populações
Ed

negras e imigrantes. Para os representantes da política de drogas do período,


como Harry Anslinger, “acabar com as drogas” significava inibir a influência
moral destas populações (RODRIGUES, 2002).
ão

Em 1936, foi criada a Comissão Permanente de Fiscalização de Entor-


pecentes, com a finalidade de controlar a produção e circulação de drogas,
s

inclusive por meio de pesquisas que objetivassem auxiliar na repressão e


ver

punição ao uso. Essas medidas tinham um entrelaçamento com o autoritarismo


do Estado Novo de Getúlio Vargas, baseado na normalização de condutas
através da moral e do militarismo. Vivia-se o Estado Novo, marcado pelo

12 A Convenção Internacional do Ópio, assinada em Haia em 23 de janeiro de 1912, durante a Primeira Con-
ferência Internacional do Ópio, foi o primeiro tratado internacional de controle de drogas.

Flávia Lemos - 21982.indd 130 28/02/2020 13:13:04


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 131

controle da opinião pública, censura aos meios de comunicação, tortura e


perseguição aos opositores ao regime varguista, sobretudo os partidos de
esquerda (FAUSTO, 2009).
O Brasil participava ativamente das reuniões internacionais e incorporava
a política externa. O Decreto-Lei n. 891/1938 serviu para incorporar as Con-
venções de Genebra de 1931 e 1936, a Convenção Única sobre Entorpecentes
de 1961, o que fundamentou a reforma da Lei de Tóxicos de 1967 (RODRI-

or
GUES, 2002). A ditadura varguista, entre 1937 e 1945, teve também forte
influência moral na construção do imaginário sobre a droga e a marginalidade

od V
da população pobre. Com a “dignificação” do trabalho, o adestramento dos

aut
corpos pelos padrões de normalidades sociais, as parcelas marginalizadas da
população foram facilmente estigmatizadas, originando o exemplo do “crime”

R
de vadiagem, sempre previsto no ordenamento jurídico brasileiro, entretanto,
ganhando força nesse período, com sua alocação na lei de contravenções

o
penais, em 1940.13 Nesse mesmo sentido, é publicado o Código Penal, atra-
aC
vés do Decreto-Lei n.2.848/40, sendo previsto na epígrafe do seu artigo 281
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

o “[...] comércio clandestino ou facilitação do uso de entorpecentes”. Para


Carvalho (2013, p. 59):
Assim, é lícito afirmar que, embora sejam encontrados resquícios de cri-
visã
minalização das drogas ao longo da história legislativa brasileira, somente
a partir da década de 40 é que se pode verificar o surgimento de política
proibicionista sistematizada. Diferentemente da criminalização esparsa,
itor

a qual apenas indica preocupação episódica com determinada situação,


nota-se que as políticas de controle (das drogas) são estruturadas com a
a re

criação de sistemas punitivos autônomos que apresentam relativa coerên-


cia discursiva, isto é, modelos objetivando demandas específicas e com
processos de seleção (criminalização primária) e incidência de aparatos
repressivos (criminalização secundária) regulados com independência de
par

outros tipos de delito.

A partir de 1964, bem como o posterior período de redemocratização do


Ed

país, inaugurou um período demarcador quanto às políticas sobre drogas. A


partir deste momento, os discursos da violência, da criminalização do usuário,
do aumento das penas bem como de práticas de cuidado e de atenção à saúde
ão

emergem e propiciam o desenvolvimento de novos modos de pensar e agir


das políticas públicas.
s

3. A ditadura militar e o acirramento do autoritarismo


ver

Em 1964, o país presenciava um dos períodos políticos mais autoritá-


rios de sua história, a ditadura militar, com a cassação de direitos políticos, a

13 Artigo 59 do Decreto-Lei n. 3.688, de 03 de outubro de 1941.

Flávia Lemos - 21982.indd 131 28/02/2020 13:13:04


132

redução das liberdades individuais e um enrijecimento da legislação, alinhando


o Brasil ao contexto internacional. A doutrina de segurança nacional (DSN)
assegurava ao Estado o combate ao inimigo interno, ao opositor ao sistema
recém instalado no país. Não somente tratava-se de opositor ideológico, mas
do diferente, daquele que desafiasse a moralidade e a normalização imposta
pelo Estado naquele período.
E neste contexto que surgem legislações mais rígidas que irão sedimentar

or
um discurso autoritário e estigmatizador do usuário de drogas. A Lei n. 4.451
de 04 de novembro de 1964 alterou a redação do artigo 281 do Código Penal

od V
Brasileiro incriminando o plantio de substâncias entorpecentes e confirmando

aut
o proibicionismo no que se relaciona ao porte, instigação e comércio de subs-
tância entorpecente em desacordo com a determinação legal ou regulamentar.

R
Por conseguinte, foi editado o Decreto-Lei n. 159/67 igualando os
entorpecentes às substâncias capazes de determinar a dependência física e/

o
ou psíquica. Em 1968, foi publicado o Decreto-Lei n. 385, que, contrariando
aC
a orientação internacional, rompeu com o discurso da diferenciação e crimi-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nalizou o usuário através do acréscimo de novo parágrafo ao artigo 281 do
código penal brasileiro (CARVALHO, 2013). Aliado a este aspecto, a postura
proibicionista dos Estados Unidos da América foi fortemente intensificada
visã
a partir da Declaração de Guerra às Drogas do presidente Richard Nixon,
em 1973. As drogas assim passaram a substituir o anticomunismo como grande
inimigo público.
Com esse esforço proibicionista, passou-se então a criminalização do
itor

usuário. Não somente a patologização de suas condutas foi suficiente, as


a re

forças envoltas pela ditadura militar instalada no país, conduziram o ato de


porte para uso próprio como crime.
Neste período, emergiu a Convenção de Viena de 1971. Este documento
reafirma as bases da Convenção de 1961 e versou sobre o controle no que se
par

relaciona a preparação, comércio e uso das substâncias psicotrópicas. O Brasil


apenas ratificou esta Convenção anos depois, através do Decreto n.79.388,
Ed

de 14 de março de 1977, do então presidente Ernesto Geisel. Na exposição de


motivos do documento ratificado pelo Brasil observa-se juízos morais como
a “preocupação para com a saúde e o bem-estar da humanidade”, alerta que
ão

“medidas rigorosas são necessárias para restringir o uso de tais substâncias


para fins legítimos”, bem como defende a “preocupação com os problemas
sociais e de saúde pública”.
s

No Brasil, imediatamente teve emergência a Lei n. 5.726, de 29 de outu-


ver

bro de 1971. Tal legislação preservou o discurso médico, reforçando assim


mais do que nunca, o estereótipo do usuário como dependente:
Da recuperação dos Infratores Viciados
Art. 9º Os viciados em substâncias entorpecentes ou que determinem
dependência física ou psíquica, que praticarem os crimes previstos no art.

Flávia Lemos - 21982.indd 132 28/02/2020 13:13:04


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 133

281 e seus §§ do Código Penal, ficarão sujeitos às medidas de recuperação


estabelecidas por esta lei.

Paralelo a este modelo médico-jurídico, o movimento da reforma psi-


quiátrica ganhava força em muitos países do mundo, principalmente na Itália,
onde nos anos 60 começou a influenciar os estudos pelo fim das instituições
psiquiátricas. Este movimento, baseado nos pressupostos de Franco Baságlia14,

or
visou à extinção das instituições psiquiátricas, nas quais as práticas eram
baseadas na exclusão social. Tendo amplo apoio dos usuários e familiares,

od V
tal movimento de reforma contribuiu para a formulação de novas práticas de

aut
cuidado na saúde mental, sendo referência até hoje, além de ser reconheci-
damente apoiado pela Organização Mundial da Saúde (AMARANTE, 2005

R
apud RAMOS, 2012). No dizer de Baságlia (1980, p. 52):

o
[...] . O hospital em si é doente. Todos afirmam que a organização não está
bem. É difícil sair dessa gaiola porque a organização da medicina é feita
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

assim. Seria preciso mudar a lógica da medicina para sair desse drama.
Não estamos satisfeitos nem com os médicos, nem com os hospitais, nem
com a medicina, nem com a maneira pela qual se organizam os serviços
visã
de saúde pública. Na verdade, não estamos satisfeitos com nada.

Este contexto brasileiro, alinhado às convenções da ONU (Organização


das Nações Unidas), ao ideário proibicionista instalado pelos Estados Unidos
itor

da América, bem como a doutrina de segurança nacional levantada pela dita-


a re

dura militar corroboraram com o enrijecimento das legislações nos anos 70.
As instituições paulatinamente passaram a adotar posturas criminalizadoras e
patologizantes, assim o debate se estendeu a nível político e centrado também
na lógica de salvação nacional.
De outro aspecto, é importante frisar que dois crimes ocorridos no Bra-
par

sil, em 1973, tiveram também importância para a emergência da legislação


Ed

subsequente: Trata-se do assassinato da criança Araceli Cabrera Crespo, de 09


anos de idade, em 27 de maio de 1973. Esta foi sequestrada em Vitória (ES)
por três empresários, sendo que o laudo pericial do crime concluiu que antes
ão

da morte, a menina havia sido drogada e posteriormente abusada sexualmente.


Outro crime marcante foi o assassinato da menina Ana Lídia Braga, de 07
anos, ocorrido em 11 de setembro de 1973, tendo sido seu corpo encontrado
s

com evidências de abuso sexual. Tal crime, por envolver jovens de famí-
ver

lias conhecidas do Distrito Federal e envolvidos com o uso de drogas teve


as investigações realizadas secretamente a mando de autoridades militares
(AMUY, 2005).
14 Médico psiquiatra precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano conhecido como Psi-
quiatria Democrática.

Flávia Lemos - 21982.indd 133 28/02/2020 13:13:04


134

Em 22 de outubro de 1973, o então deputado Peixoto Filho encaminhou a


Câmara dos Deputados o Requerimento nº 47, com 104 assinaturas, solicitando
a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI (AMUY, 2005).
Em 1974, foi instituída, em nível da Câmara de Deputados, uma CPI que tinha
como finalidade a investigação das causas do uso e do tráfico de substâncias
alucinógenas. A citada comissão parlamentar apontou em seu relatório final
a necessidade de criação de mecanismos mais eficientes quanto à prevenção

or
e a repressão às drogas no país, o que desencadeou a emergência da Lei n.

od V
6.368/76 (RODRIGUES, 2004).

aut
A Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976, promulgada pelo então pre-
sidente Ernesto Geisel, representou mais um enrijecimento proibicionista no
que tange ao controle do Estado sobre o uso, produção e tráfico de substân-

R
cias entorpecentes. O regime militar buscou reforçar seu controle através da
criminalização ou patologização das condutas. Para Karam (1997, p. 344):

o
aC
Neste ponto, é significativo, em nossa legislação, a utilização de lingua-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


gem característica da antiga doutrina de segurança nacional, que, neste
tema das drogas qualificadas de ilícitas, insiste em sobreviver, aparecendo
no estabelecimento de um dever legal de colaboração, que expresso no
visã
artigo 10 da Lei n. 6368/76, ressurge no substitutivo adotado pela Comis-
são Especial constituída pelo presidente da Câmara de Deputados para
apreciar os diversos projetos de lei que dispõe ser “dever de todas as pes-
soas, nacionais e estrangeiras, com domicílio ou sede no País, colaborar na
itor

prevenção do tráfico ilícito, do uso indevido e da produção de substâncias


a re

entorpecente e drogas afins”.

Segundo Carvalho (2013, p. 75): “O discurso do tipo penal militarizado


de repressão às drogas ilícitas no Brasil aparece como pano de fundo na
par

construção normativa da Lei 6.368/76[...]”. Estas evidências foram acom-


panhadas pela nova realidade que o país atravessava. No início dos anos 70
Ed

vivia-se o “Milagre Econômico Brasileiro”. As políticas desenvolvimentistas


do regime militar, através dos grandes projetos, como a construção da rodovia
transamazônica e a expansão da malha viária, favoreceram uma concepção
ão

de ordem e desenvolvimento social.


De outro aspecto, a desproporcionalidade entre o avanço econômico
s

e o retardo e abandono de programas sociais foi uma das características do


ver

“Milagre Brasileiro”. O país teria destaque mundial no que se relaciona ao


crescimento, notadamente o industrial, entretanto seria marcado por baixís-
simos indicadores de qualidade de vida da população, como os de saúde, de
educação e de habitação (FAUSTO, 2009).

Flávia Lemos - 21982.indd 134 28/02/2020 13:13:04


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 135

Neste contexto, a Lei 6.368/76 ainda alargou a repressão principalmente


as camadas mais estigmatizadas da sociedade. O binômio dependência-trata-
mento, tráfico e repressão transitaram por toda a citada legislação e a junção
da dependência-delito desencadeou um agravamento da criminalização da
adicção, estabelecendo uma intervenção do Estado com a finalidade de impedir
o crime (CARVALHO, 2013).
No que tange ao tratamento, a Lei não utilizou mais a nomenclatura

or
do viciado, sim a de dependente, demonstrando certo avanço com relação à

od V
legislação anterior, porém ratificando o modelo hospitalar para a internação

aut
e prevendo, quando necessário, o modelo extra-hospitalar com a assistência
do serviço social competente. Essa política repressiva e patologizante retor-

R
nou por quase três décadas com um emaranhado de fórmulas proibicionistas,
conectadas a uma postura não somente repressiva, mas também vinculada a

o
condução de um governo militarizado e alinhado a postura dos Estados Unidos
da América, bem como às Convenções da ONU.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Neste período, entre 1984/1985, há de se ressaltar que emerge o crack


como droga consumida por populações marginalizadas, particularmente negros
e hispânicos nos bairros pobres de Los Angeles, Miami e Nova Iorque. A
visã
referida droga era obtida por um processo de fabricação de baixo custo e foi
responsabilizada pela explosão da violência nas periferias americanas naquele
período; o que acarretou também a superlotação das cadeias por porte de crack
(RIBEIRO; ARAÚJO, 2006).
itor

Assim essas ações, diante das políticas repressivas, irão se reproduzir


a re

por longos períodos nos Estados Unidos no decorrer das décadas seguintes e
também influenciarão parte da América Latina nesta condução da repressão
ao tráfico e ao usuário de drogas. Neste mesmo período, o Brasil vivia os anos
de abertura política. No final dos anos 70, a Lei de Anistia (Lei nº 6.683, de 28
par

de agosto de 1979.) sinalizava os bons ares da redemocratização que ocorreria


na década seguinte. Os anos 80, no Brasil, foram marcados pela ebulição por
Ed

democracia. Do ponto de vista econômico, vivia-se anos de recessão. Segundo


Fausto (2009, p. 502):
ão

A recessão de 1981-1983 teve pesadas consequências. Pela primeira vez


desde 1947, quando os indicadores do PIB começaram a ser estabelecidos,
o resultado em 1981 foi negativo, assinalando queda de 3,1%. Nos três
s

anos, o PIB teve um declínio médio de 1,6%. Os setores mais atingidos


ver

foram as indústrias de consumo durável, como, por exemplo, os eletrodo-


mésticos e de bens de capital, concentradas nas áreas mais urbanizadas do
país. O desemprego nessas áreas tornou-se um problema sério. Calcula-se
que o declínio da renda foi mais grave do que o corrido nos anos seguintes
à crise de 1929.

Flávia Lemos - 21982.indd 135 28/02/2020 13:13:04


136

Esta realidade de crise agravou os problemas sociais. Os investimentos,


que já eram parcos naquele período, foram reduzidos. Os centros urbanos
brasileiros cresciam desordenadamente e com essa perspectiva de crise polí-
tica/econômica emergiu graves questões sociais, como a falta de habitação,
saneamento e emprego.

4. O processo de redemocratização no

or
país e a política de drogas

od V
aut
A “devolução” do poder político aos civis, todavia, não foi marcada por
debates sociais sobre o modelo de democracia. Isso ocorreu porque, segundo

R
parte dos militares, o país que deveria emergir com a abertura era um Estado
comandado pela elite beneficiada pelo militarismo.

o
O processo de transição para o regime democrático, contudo, teve forte
influência por outros setores como os partidos políticos bem como organiza-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ções não partidárias (SILVA, 2014). O movimento das diretas, dentre os vários
fatores, teve influência da crise de Estado marcado pela redução da capacidade
da gestão econômica, bem como da crise do regime ocasionado também pela
visã
mudança nas relações de poder. Isso ocorreu pelo enfraquecimento do poder
executivo federal, com a fragmentação da base política do governo perante o
Senado, bem como perante a Câmara Federal (BERTONCELO, 2009).
itor

Mesmo sendo rejeitadas as eleições diretas para presidente, a proposta


teve grande apoio popular. Tancredo Neves e José Sarney mesmo sendo elei-
a re

tos de forma indireta representaram uma transição política caracterizada pela


oposição no poder. Com a morte do primeiro, em 1985, assume seu vice.
A crise econômica, a alta inflação e a carestia foram marcas do governo de
José Sarney, entretanto, foi neste mesmo governo, que se firmaram as bases
par

democráticas estabelecidas até hoje como a Assembleia Nacional Consti-


tuinte, iniciada em 01 de fevereiro de 1987, a qual culminou na promulgação
Ed

da atual Constituição Federal em 05 de outubro de 1988. Este documento,


contou com ampla participação popular de setores sociais como sindicatos,
ão

associações e movimentos sociais, os quais contribuíram com milhares de


sugestões encaminhadas à Constituinte.
Esses novos ares da democracia concediam ao cidadão novas garantias
s

sob o aspecto constitucional. Para termos uma ideia, as garantias constitucio-


ver

nais da carta magna anterior eram localizadas no final do texto constitucional,


na Constituição de 1988 ganhava a posição de início no artigo 5o com a maior
quantidade de garantias nunca dantes imaginadas, como também garantidas
em outros artigos, como aqueles que garantem os direitos sociais: o direito
à saúde, à educação, à assistência social. A dignidade da pessoa humana

Flávia Lemos - 21982.indd 136 28/02/2020 13:13:05


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 137

tornou-se um fundamental do Estado, colocada no artigo 1º da Constituição.


Segundo Ribeiro e Araújo (2005, p. 470):

A partir do restabelecimento do Estado Democrático de Direito, notada-


mente após o advento da Constituição da República de 1988, experimen-
tamos uma breve fase que se apresentava com ares liberalizantes. Isso se
deu a reboque das reformas institucionais e legislativas que, à época, a

or
imprensa se referiu como “entulho autoritário”. O debate acerca de outros
modelos alternativos à repressão ganha as ruas também em função de que

od V
estavam evidentemente revogados os dispositivos legais que impunham a

aut
censura prévia a respeito do tema drogas, sendo certo que, até então, sequer
era possível a realização de uma conferência sem prévia autorização [...].

R
Em 15 de novembro de 1989 e, em 17 de dezembro do mesmo ano,

o
conforme previsto na nova Constituição Federal de 1988, no Ato das Dis-
posições Constitucionais Transitórias, em seu artigo 4o, parágrafo primeiro,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

foram realizadas as eleições diretas para Presidente da República, no Brasil. A


partir deste período, o país viveria também mudanças profundas no que tange
a sociedade brasileira. No plano internacional, neste período, no que se rela-
visã
ciona a “marcha proibicionista” às drogas, a ONU aprovou outro importante
documento: A Convenção de Viena de 1988, também chamada de Convenção
contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Segundo
Ribeiro e Araújo (2005, p. 461/462):
itor
a re

A terceira e última das chamadas Convenções-Irmãs da ONU foi a Con-


venção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e
Substâncias Psicotrópicas (Viena - 1988). Além de ratificar as resoluções
aprovadas pelos encontros anteriores, a terceira convenção preocupou-
par

se com o crescimento do crime organizado. Neste sentido, a convenção


chamou os países-signatários a adotarem medidas de combate ao tráfico
Ed

de drogas e à lavagem de dinheiro. Além disso, os produtos químicos


utilizados na obtenção dos princípios ativos das plantas psicoativas (pre-
cursores) passaram a sofrer forte controle por parte das nações. A terceira
convenção marca também um novo acirramento da repressão ao usuário de
ão

drogas, recomendando aos países-signatários a adoção da criminalização


do porte e uso de drogas.
s

A referida convenção foi ratificada pelo Brasil através do Decreto n. 154


ver

de 26 de junho de 1991, assinado pelo então presidente Fernando Collor de


Mello. O citado documento é composto de 34 artigos versando, em suma,
sobre o enrijecimento das legislações a nível internacional com relação à
produção, o tráfico e consumo de drogas, bem como medidas de combate ao

Flávia Lemos - 21982.indd 137 28/02/2020 13:13:05


138

tráfico internacional. Percebe-se então que a conjuntura político e internacio-


nal paulatinamente influenciou a repressão às drogas no Brasil. Esta relação
tendeu ao agravamento do modo como a questão passou a ser vislumbrada
pela população brasileira, pois a partir dos anos 80 vários fatores se articu-
larão para esta postura proibicionista e entre eles, também o crescimento
da violência, a qual será redimensionada através das forças proibicionistas.
Segundo Batista (1998, p. 122):

or
od V
Na transição da ditadura para a “democracia” (1978-1988), com o desloca-

aut
mento do inimigo interno para o criminoso comum, com o auxílio luxuoso
da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacta a estrutura de controle
social, com mais e mais investimentos na “luta contra o crime”. E, o que é

R
pior, com as campanhas maciças de pânico social, permitiu-se um avanço
sem precedentes na internalização do autoritarismo. Podemos afirmar sem

o
medo de errar que a ideologia do extermínio é hoje muito mais massiva e
aC
introjetada do que nos anos imediatamente posteriores ao fim da ditadura.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


É relevante perceber que nos anos 70 eram raros os trabalhos que aborda-
vam o tema da violência sobre o prisma da criminalização, não havendo grande
visã
repercussão popular e a massificação do tema, o que de fato se intensificou
a partir da década de 80 (ZALUAR, 1999). Para Wieviorka (2006, p. 223):

Seria absurdo só pensar a violência com referência ao sujeito, quer se trate


itor

do ator ou da vítima. As condutas humanas, com efeito, não se desen-


a re

volvem no vazio ou apenas no choque de subjetividades, mas no seio


de sistemas sociais, políticos, culturais. Porém, ao sair de uma época em
que a reflexão em geral, ou relacionada à violência em particular, teve
tendência a desinteressar-se do sujeito, a ponto que alguns proclamavam
nada menos que sua morte, e quando, manifestamente, assistimos por toda
par

a parte a um retorno do sujeito, parece-me que, ao pensar a violência na


Ed

perspectiva do sujeito, damo-nos condições para melhor refletir sobre os


meios de enfrentá-la.

Este enfoque da violência no sujeito é de suma importância para se


ão

investigar a criminalização do mesmo neste final de século. Diferente da


interpretação do autor passou-se paulatinamente a analisar este autor como
s

inimigo, como indivíduo a ser extirpado da sociedade. Melhor seria interrogar


ver

o mesmo do ponto de vista do enfrentamento, porém a criminalização passou


também a ser conduzida pelos discursos proibicionistas. Houve assim um
deslocamento na transição da ditadura, emergindo assim o “mito da droga”,
com forte apelo legal, criminalizador e emocional conduzidas pela mídia e
fortemente subjetivizada pelo imaginário popular (BATISTA, 1998).

Flávia Lemos - 21982.indd 138 28/02/2020 13:13:05


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 139

Desta criminalização, emerge também a relação entre a violência e as


drogas, que tomou conta dos debates fortemente a partir deste período e teve
como aspecto importante a atuação da imprensa no processo de criminaliza-
ção do usuário e do traficante de drogas. Este ponto de vista será latente se
vislumbrarmos a reprodução da violência através principalmente das mídias
também no final do século XX. Logo, a mídia representaria uma dessas forças
criminalizadoras, responsáveis pela “condenação antecipatória” do usuário

or
de drogas o que se coaduna também perfeitamente com o entendimento de

od V
Zaluar (1999, p.14) quando diz que: “A violência, como qualquer outro ins-

aut
trumento, pode, portanto, ser empregada racional ou irracionalmente, pode
ser considerada boa ou má, justificada ou abominada [...]”.
Sobre outro aspecto, no Brasil, em 11 de janeiro de 2002 foi sancionada

R
pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, a Lei n.10.409/02, a chamada
nova Lei de Drogas. Esta Lei não representou avanços significativos no que

o
atine a descriminalização. De acordo com Carvalho (2013), ocorreu a revoga-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ção parcial da Lei nº.10.409/02. No projeto dessa nova Lei, o caráter delitivo
do porte de drogas para uso pessoal se manteve, no entanto, foi adotado como
medida uma política criminal não encarceradora, com o advento das penas
alternativas. A criminalização do comércio de drogas ilícitas também persis-
visã
tiu, o que demonstrou o caráter proibicionista do legislador, inclusive com a
mesma espécie e quantidade de pena prevista na lei anterior. Todavia, após
a sua aprovação pelo congresso, alguns artigos dessa nova lei foram vetados
itor

pelo presidente da república, passando a vigorar somente a parte processual.


a re

Consequentemente, as penas continuaram a ser regidas pela Lei n. 6.368/76,


o que não caracterizou grandes modificações.
A visão seletiva do direito penal assim reafirmou a exclusão de jovens
pobres e alimentou a diferenciação entre jovens pobres e jovens ricos. Aos
par

jovens ricos o consumo de drogas é tolerado e, aos jovens pobres é negada a


sua cidadania (BATISTA, 1998). O que a prevenção ao crime vem a amealhar
Ed

é também, além da exclusão, o estigma da marginalização. Segundo Passetti


(2012, p. 21): “A prevenção geral é sempre seletiva. Os perigos são tidos como
anormais, subversivos, assaltantes, pobres, etnias diversas, pessoas, grupos
ão

ou classes, definidos como intoleráveis [...]”.

5. A Lei 11.343/2006 e o acirramento punitivo


s
ver

É neste apogeu criminalizador que em 23 de agosto de 2006, foi sancio-


nada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a atual Lei de Drogas. A Lei
n. 11.343/2006, apesar de ser antecedida por uma construção de uma política

Flávia Lemos - 21982.indd 139 28/02/2020 13:13:05


140

pública de governo sobre drogas, veio reafirmar a postura proibicionista sem-


pre adotada pelo país. Sobre este aspecto, Karam (2008, p. 105) observa que:

A Lei 11.343/06 é apenas mais uma dentre as legislações dos mais diversos
países que reproduzindo os dispositivos criminalizadores das proibicionis-
tas convenções da ONU, conformam a globalizada intervenção do sistema
penal sobre produtores, distribuidores e consumidores das selecionadas

or
substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção, que, em
razão da proibição são qualificadas de drogas ilícitas.

od V
aut
Com o advento da Lei 11.343/2006 cresce a repressão e o número de
presos por tráfico de drogas, principalmente os jovens negros. Assiste-se um

R
processo de estigmatização de drogas associadas a essa população, como o
crack. De acordo com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, este delito

o
era responsável por 7,5% dos adolescentes presos em 2002. Em 2011, pas-
sou para 26,6%, segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos (SDH)15.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


No âmbito penal, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN), com a nova Lei de Drogas houve um aumento de 339% do número
de presos, figurando o tráfico de drogas como o principal crime no país16. No
visã
âmbito do encarceramento feminino, 68% das mulheres estão presas por tráfico
de drogas, sendo que de 2000 a 2014 a população de mulheres em situação
de cárcere cresceu 567%. Percentual chocante se comparado ao crescimento
de apenas 17% da população feminina no país17.
itor

É relevante observar que da população carcerária brasileira, cerca


a re

de 622.202 presos/as, 61,6% são negros/as (pretos/as e pardos/as), conforme


o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), sendo que
no conjunto da população, a representatividade dos negros é menor: 53,6%,
de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (Pnad) divul-
par

gada em 201418. Percebe-se claramente que o endurecimento da política de


drogas serviu para o aumento da população presa, em especial a população de
Ed

mulheres e a população negra. Isso contradiz um discurso de que a Lei teria


sido benevolente ao introduzir um tratamento diferenciado para o usuário de
drogas em seu artigo 28:
ão

15 FOLHA. Triplica parcela de jovens internados por tráfico de drogas. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/cotidiano/2013/08/1324683-triplica-parcela-de-jovens-internados-por-trafico.shtml>. Acesso em:
s

16 jul. 2018.
ver

16 G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-de-drogas-presos-por-trafico-


-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.html>. Acesso em: 20 set. 2016.
17 CONSULTOR JURÍDICO. Número de mulheres presas cresce sete vezes em menos de 15 anos. Dis-
ponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-05/numero-mulheres-presas-cresce-sete-vezes-15-anos>.
Acesso em: 16 jul. 2018.
18 CARTA CAPITAL. Mais de 60% dos presos no Brasil são negros. Disponível em: <ital.com.br/sociedade/
mais-de-60-dos-presos-no-brasil-sao-negros>. Acesso em: 16 jul. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 140 28/02/2020 13:13:05


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 141

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou


trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às
seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

or
§1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal,
semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena

od V
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física

aut
ou psíquica.
§2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz

R
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e
às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

o
§3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão
aC
aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

§4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do


caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas
visã
comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabe-
lecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se
ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação
de usuários e dependentes de drogas.
itor

§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere


a re

o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente,


poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – admoestação verbal;
II – multa.
par

§7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do


infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambu-
Ed

latorial, para tratamento especializado.

Avança o artigo ao não fazer menção diretamente ao uso de drogas,


ão

somente ao porte e ao plantio ao prever medidas de cunho educativo e adminis-


trativo como sanção. A Lei poderia, contudo, ter descriminalizado tal conduta,
ao invés disso cria uma sistemática arbitrária de diferenciação entre o usuário
s

e o traficante. Nos termos do artigo 28,§2º:


ver

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz


atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e
às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Flávia Lemos - 21982.indd 141 28/02/2020 13:13:05


142

Alguns autores defendem que a Lei 11.343/2006 representou um avanço


para a questão do usuário com a descriminalização do uso e do porte de
drogas. Para Luiz Flávio Gomes (2006), na medida em que o artigo 1º da
Lei de Introdução ao Código Penal descreve crime como a infração penal
a que a lei comine pena de reclusão ou de detenção e a Lei 11.343/2006
retira essas formas de punição dos crimes de porte de drogas, entende-se que
foram descriminalizados.

or
Contudo, a partir dos estudos da criminologia crítica se observa que con-

od V
tinuou atuando como um mecanismo de controle social sobre determinados

aut
grupos como a população negras e as classes mais pobres. A Lei 11.343/2006
sustenta uma lógica de repressão policial e segurança pública para as dro-
gas, segregando parte da população que utiliza dessas substâncias. Vende-se

R
pela mídia e pelo discurso oficial um discurso estereotipado de um traficante
perigoso, que comanda grandes quartéis de drogas e estruturas, aliciando a

o
população, o que justifica a intervenção penal. Todavia, segundo dados do
aC
Instituto Sou da Paz, mais de 67,7% dos encarcerados por tráfico de maco-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nha nas prisões do País foram flagrados com posse de menos de 100 gramas
da droga, sendo 14% deles com quantidade inferior a 10 gramas. Quanto ao
tráfico de cocaína, 77,6% foram presos com menos de 100 gramas. 62,17%
visã
dos traficantes presos no País exerciam atividade remunerada na ocasião do
flagrante, 94,3% não pertenciam a organizações criminosas e 97% nem sequer
portava algum tipo de arma19.
itor

Percebe-se assim, um sistema seletivo que prende o microtraficante ou


a re

usuário como traficante a depender de sua cor da pele, bairro em que reside,
roupas, dentre outras características arbitrárias conferidas pelo juiz a partir
do art. 28, §2º da Lei 11.343/2006. Segundo Machado (2010, p.1098): “em
nome de um combate contra um “traficante” de drogas que foi estereotipado,
apoiado por uma legislação penal comprovadamente seletiva, o Estado brasi-
par

leiro, além de criminalizar a miséria, viola, despreocupadamente, os direitos


Ed

humanos das classes sociais mais vulneráveis”.

6. Considerações finais
ão

A política contra as drogas no Brasil desenvolveu-se de forma autori-


tária e racista. Todo o seu desenvolvimento culminou em um processo de
s

criminalização do outro, levando ao crescimento do tráfico de drogas ilegais


ver

e também a um investimento maciço no encarceramento e na violação de


direitos humanos em face dos negros e das classes sociais vulneráveis.
19 IG. 67,7% dos presos por tráfico de maconha tinham menos de 100 gramas das drogas. Disponível
em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/2014-09-23/677-dos-presos-por-trafico-de-maconha-tinham-menos-de-
100-gramas-da-droga.html>. Acesso em: 20 set. 2016.

Flávia Lemos - 21982.indd 142 28/02/2020 13:13:05


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 143

Todo o processo histórico levou a um recrudescimento legal com a


Lei 11.343/2006 que: a) a quantidade de pena para o crime de tráfico foi
aumentada de 03 anos de pena mínima para cinco anos de reclusão; b) equi-
parou o fornecimento gratuito da droga ao tráfico; c) manteve a criminalização
do porte para uso pessoal de drogas, estabelecendo penas de advertência,
prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programas ou curso
educativo; ocorrendo descumprimento, admoestação e multa.

or
Percebe-se assim que as políticas de drogas no Brasil ainda transitam por

od V
vertentes proibicionistas, mescladas por perspectivas patologizantes. Em que

aut
pese para alguns autores a lei ter trazido avanços, essa ilusão é desconstruída
diante da realidade em que o usuário jovem, pobre e negro continuou com
o estigma do criminoso e mesmo que sua pena seja considerada em tese, de

R
menor intensidade, passará pelo crivo dos controles formais. Segundo Car-
valho (2013b, p. 43): “Embora o dispositivo seja destinado ao juiz, sabe-se

o
que a primeira agência de controle que é habilitada ao exercício criminalizar
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

é a policial”.
Ao final, podemos destacar a importância de repensarmos a política de
drogas no país, rompendo com seu contexto autoritário de implementação.
A atual lógica proibicionista tem levado milhares de pessoas a prisão e tem
visã
intensificado o viés punitivo do sistema penal em especial contra a popula-
ção negra e jovem do Brasil. A permanência autoritária na guerra contra as
drogas pode ser compreendida se percebermos como serviu para garantir a
itor

permanência do aparato repressivo, aprofundando seu caráter autoritário e


a re

assegurando investimentos crescentes para o controle social e a segurança


pública. A construção, principalmente com o regime militar do traficante como
inimigo propiciou a renovação dos argumentos exterminadores, o aumento
explosivo das execuções policiais e a naturalização da tortura. Essa racionali-
par

dade que precisa ser descortinada e essas permanências precisam ser rompidas
para a construção de um direito penal que realmente se adeque a um Estado
Ed

Democrático de Direito.
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 143 28/02/2020 13:13:06


144

REFERÊNCIAS
AMUY, Liliane Maria Prado. A Lei anti-tóxicos (nº 6.368/76): Os critérios
científicos utilizados em sua elaboração e a execução do álcool. Dissertação
(História da ciência). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2005. 103f.

or
od V
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e juventude pobre

aut
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.

BRASIL. Constituição Federal em 05 de outubro de 1988. Disponível em:

R
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 22 de jan. 2016.

o
aC
BRASIL. Lei nº 4.451, de 04 de novembro de 1964. Disponível em: <http://

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1964/4451.htm>. Acesso em: 05
set. 2016.
visã
______. Lei nº 5.726, de 29 de outubro de 1971. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L5726.htm. Acesso em: 03
jan. 2016.
itor
a re

______. Lei nº 6.368/76 de 21 de outubro de 1976. Disponível em: <http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6368.htm>. Acesso em: 10 jan. 2016.

______. Lei 10.409 de 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.


jusbrasil.com.br/topicos/11074912/lei-n-10409-de-11-de-janeiro-de-2002>.
par

Acesso em: 15 jan 2016.


Ed

BERTONCELO, Edison Ricardo Emiliano. Eu quero votar para presidente:


Uma análise sobre a Campanha das Diretas. Revista de cultura e política.
ão

São Paulo, n. 76, p. 01-13, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.


php?script=sci_arttext&pid=S010264452009000100006>. Acesso em: 20
jan. 2016.
s
ver

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: Estudo


criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed. São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 2009.

Flávia Lemos - 21982.indd 144 28/02/2020 13:13:06


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 145

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2002.

FIORE, Maurício. A medicalização da questão do uso de drogas no Brasil:


reflexões acerca de debates institucionais e jurídicos. In: VENÂNCIO, Renato
Pinto; CARNEIRO, Henrique (Org.). Álcool e drogas na história do Brasil.
São Paulo: Alameda, 2005. p. 257-290.

or
od V
GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Drogas Comentada: Lei 11.343,

aut
de 23.08.2006. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

R
ONU. Convenção de Viena. 1971. Disponível em: <http://www.unodc.org/
lpo-brazil/pt/drogas/marco-legal.html>. Acesso em: 05 jan. 2016.

o
______. Convenção de Viena. 1988. Disponível em: <http://www.unodc.org/
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

lpo-brazil/pt/drogas/marco-legal.html>. Acesso em: 05 jan. 2016.

______. Convenção única sobre entorpecentes. 1961. Disponível em:


visã
<http://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/drogas/marco-legal.html>. Acesso em:
05 jan. 2016.

PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETTI,


itor

Edson (Coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2. ed. Rio de Janeiro:


a re

Revan, 2012. p. 13-33.

KARAM, Maria Lúcia. Drogas: O Processo Legislativo. In: RIBEIRO, Mauri-


des de Melo; SEIBEL, Sérgio Dario (Orgs.). Drogas: A hegemonia do cinismo.
par

São Paulo: Memorial, 1997.


Ed

MAESTRI, Marcos. As campanhas antialcoólicas nas escolas primárias nas


décadas de 20 e 30 do século XX no Brasil. In: BOARINI, Maria Lúcia
(Org.). Raça, higiene social e nação forte: mitos de uma época. Maringá:
ão

Eduem, 2011. p. 129-156.


s

MACHADO, Nara Borgo Cypriano Machado. Usuário ou traficante? a sele-


ver

tividade penal na nova lei de drogas. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DO


CONPEDI nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010. Anais... Fortaleza – CE.

MOREIRA, Fernanda Gonçalves. Panorama atual de drogas e dependên-


cias. São Paulo: Atheneu. 2006.

Flávia Lemos - 21982.indd 145 28/02/2020 13:13:06


146

PASTANA, Debora. Justiça penal autoritária e consolidação do estado punitivo


no Brasil. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 121-138, fev. 2009.

RAMOS, Renata Cristina Marques Bolonheis. Comunidades Terapêuticas:


“Novas” perspectivas e propostas higienistas. Dissertação de mestrado (Psi-
cologia). Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2012, 129f.

or
RIBEIRO, Maurides de Melo; ARAÚJO, Marcelo Ribeiro. Política mundial

od V
de drogas ilícitas: Uma reflexão histórica. In: Silveira DX; Moreira FG. (Org.).

aut
Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu, 2005.
p. 457-468.

R
RODRIGUES, Thiago M. S. A infindável guerra americana: Brasil, EUA e
o narcotráfico no continente. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, v. 16,

o
n. 2, p. 102-111. 2002
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desa-
tino, 2003.
visã
______. Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2004.

SILVA, Márcia Pereira da. Autoritarismo, abertura política e movimentos


itor

sociais: Uma contribuição ao debate sobre as possibilidades e os limites da


a re

democracia no Brasil contemporâneo. Revista FSA, Teresina, v. 11, n. 1,


p. 242-254, jan./mar. 2014.

WIEVIORKA, Michel. Em que mundo viveremos? São Paulo: Perspec-


tiva, 2006.
par

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de


Ed

Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico)

ZALUAR, Alba. Um debate disperso: Violência e crime no Brasil da redemo-


ão

cratização. São Paulo em Perspectiva. v. 13, n. 3, p. 3-17. 1999.


s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 146 28/02/2020 13:13:06


TRAMAS DE UMA REDE: processo de
desmonte dos serviços da rede de atenção
às pessoas que fazem uso de drogas

or
V
Morgana Moura

aut
Dolores Galindo
Ricardo Pimentel Méllo
Tatiana Bichara

CR
do
1. Introdução

Este texto apresenta parte dos resultados de uma pesquisa cujo objetivo
foi mapear as estratégias de cuidado às pessoas que fazem uso de drogas na
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
cidade de Cuiabá (MT). Para isso, utiliza-se de crônicas como narrativa de
pesquisa para evidenciar os arranjos da política de guerra às drogas, bem
ra
como seus atravessamentos nos processos de construção de uma rede de
atenção e cuidado.
i
rev

Como recurso literário as crônicas ampliam as possibilidades de resistên-


cia aos processos de mortificação das pessoas alvo dessa guerra e ao desmonte
to

dos aparatos de atenção como estratégia de legitimação de dispositivos que


não se configuram como serviços de atenção, como comunidades terapêuticas.
ara

Nos processos de construção de estratégias voltadas para pessoas que


fazem uso de drogas, a noção de atenção ao usuário muitas vezes tomada como
ver di

sinônimo de cuidado. Todavia, quando as estratégias de atenção estão mais


relacionadas ao O QUE é feito, quais os serviços, do que necessariamente
op

o COMO é feito, o modo como pode ser operacionalizado os serviços e as


práticas considerando a noção de ética de cuidado. O foco no quantitativo de
E

ações e serviços, priorizando o que é ofertado ao usuário configura-se como


um estrato do plano de atenção (Arranjo da Atenção), fluxos que se atualizam

nas práticas institucionalizadas, os serviços, discursos academicistas e as


normativas nacionais que legitimam o atendimento.
No mapeamento das estratégias, vemos este arranjo em confluência
com os arranjos do Poder Médico que comportam as estratégias oriundas dos
processos de medicalização do consumo de substâncias psicoativas (FOU-
CAULT, 2010). E os arranjos Jurídicos que têm como ferramenta as estratégias
de judicialização da atenção e a captura dos processos de medicalização, de
sorte a construir estratégias para legitimar práticas de exclusão. Judicialização
é compreendida como o processo de soberania jurídica na qual a lei opera

Flávia Lemos - 21982.indd 147 28/02/2020 13:13:06


148

como dispositivo de poder para governo dos corpos (FOUCAULT, 2007; CAS-
TRO, 2016). A judicialização ancora-se nas leis, para intensificar as práticas
do poder judiciário em prol do enfraquecimento político do poder executivo.
Seguindo em confluência, os arranjos Bélico e de Rendimento focali-
zam as disputas de força pelo viés de Guerra às Drogas, na qual os processos
de combate proibicionista se dão com estratégias afecto-políticas, condução
do medo e desamparo, para justificar a aniquilação de vida e alimentar a

or
máquina capitalista. O arranjo Bélico se refere especificamente às estratégias

od V
de mortificação, conduzidas pela lógica de Guerra às Drogas e diz respeito aos

aut
processos de dominação, sujeição e mortificação, não somente de subjetiva-
ções, mas da vida mesma, práticas que buscam se justificar pela articulação
do dispositivo Guerra às Drogas.

R
Mesmo atravessado pelos arranjos bélico, médico, jurídico e de ren-

o
dimento, as forças que emergem do plano de atenção, propiciam linhas
maleáveis, segmentos fluidos que se atualizam na atenção dos serviços num
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


direcionamento à potência de vida e não na imposição de poder. Para dimen-
sionar a operacionalização deste arranjo e como as práticas que o atualizam
são transversalizadas pelas forças bélicas e de controle, é necessário entender
visã
como se configura a atual política de saúde mental e as estratégias de aniqui-
lação de práticas que podem propiciar rupturas aos controles engendrados no
modelo de Guerra às Drogas.
itor

Assim, em sequência apresentamos uma crônica oriunda das vivências de


pesquisa como material de análise, traçando como se arranja a atual política
a re

de saúde mental de atenção às pessoas que fazem uso de drogas e em seguida


o processo de desmonte que se dá em dois movimentos: precarização dos
serviços e deslegitimação da equipe. Por fim, argumentamos que, no processo
de desmonte das políticas públicas e serviços, a noção de funcionalidade atua
par

como argumento para aniquilação não somente dos serviços, mas principal-
mente dos usuários destes.
Ed

****
Cheguei na Unidade 320 e as telas ainda estavam encostados nas árvores
ão

do pátio. Na semana anterior, o encontro com a equipe havia sido interrom-


pido para receber um artista conhecido no estado por seus trabalhos em
s

grafite nos muros da cidade e que estava com um projeto de levar essa arte
ver

em telas para espaços concentracionários, presídios e hospitais psiquiátricos.


Como a equipe já estava ali reunida, pediram licença para apresentar o traba-
lho. Em diálogo a equipe sugeriu que a exposição ficasse ao longo da semana,

20 Unidade 3 é uma das unidades do Centro Integrado de Atenção Psicossocial Adauto Botelho, sendo assim
uma unidade hospitalar psiquiátrica.

Flávia Lemos - 21982.indd 148 28/02/2020 13:13:06


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 149

assim, as famílias que vinham para a visita, geralmente sábado e terça,


poderiam também apreciar o trabalho. Ele disse que também queria estar
presente nesses dias e assim poderia falar um pouco sobre seu processo de
criação e como seu trabalho era construído a partir de referências religiosas.
Na ânsia de mobilizar por meio da arte, ele disse que queria conver-
sar primeiro com os pacientes ou “eles não iam entender”. Isso causou um
estranhamento, pois esse posicionamento não condizia com o trabalho de

or
alguém que faz painéis em muros e prédios em demolição, na rua onde o

od V
efêmero do instante em acontecimento que dita da experiência da arte e não

aut
uma explicação prévia. Mesmo em estranhamento, mantive o silêncio. Mas
a arte-terapeuta interviu e disse que o diálogo com os pacientes seria bom,
mas que seria mais interessante eles experenciassem o trabalho primeiro,

R
trazer as impressões e o que sentiu. E assim acordaram.
No sábado, estive na “inauguração da exposição”, personagens na tele

o
que me remetiam aqueles que já vi na rua. Uma exposição contemplativa, com
aC
uma explicação de cada detalhe, das lâmpadas que remetiam a luz divina, o
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

barco que remetia ao processo de navegar tendo “Deus como guia”. Acabou
a fala, serviram o lanche, fui embora. Na quinta-feira seguinte as telas ainda
estavam ali, fiquei me perguntando o porquê, mas logo passei pelo o pátio e
visã
segui para a sala de reuniões.
Há quase dois meses que já estava acompanhando as equipes de saúde
mental de Cuiabá trabalhando temática tais como noção de droga, construção
itor

de dependência, e conceito de redução de danos. E naquele dia trabalha-


a re

ria a noção de rede. Ao longo desse tempo, a equipe já trazia aspectos da


dinamicidade da rede de atenção no município, seja pelas dificuldades de
dialogar com um servidor ou pelas boas articulações com outras instituições.
Todavia, foi com o encontro onde trabalhamos especificamente o tema que
consegui visualizar algo que me incomodava, algo que pulsava enquanto
par

estranhamento: a não funcionalidade da rede.


Especificamente nesse dia, a equipe estava eufórica. Tinham recebido
Ed

uma devolutiva do judiciário em relação a um paciente que já completava


cinco meses de internação e que a comunicação de alta havia sido negada
pelo juiz que determinou a manutenção do paciente na instituição. “De que
ão

serve nossa avaliação e nosso acompanhamento?”, a farmacêutica questiona


à equipe sem ter uma resposta. Uma das psicólogas endossa: “O juiz tem
s

poder de validar a avaliação minha, do médico, de todo mundo aqui?”.


ver

Paciente orientado, consciente, responsivo por si, usuário de pasta base


e que há alguns anos vivia em situação de rua. Chegou ao sistema judiciária
por uma medida de segurança solicitada pela família devido a uma agres-
são doméstica, no domicílio onde não residia e ao invés de responder por
criminalmente por isso, ele foi encaminhado para tratamento. No período

Flávia Lemos - 21982.indd 149 28/02/2020 13:13:06


150

de internação a equipe buscou estabelecer vínculos, buscou as instituições


que poderiam fazer o acompanhamento básico dele e da família. Ele insistia
em querer voltar para a rua, não encontrava sentido em estar na família. A
equipe verificou possibilidade de abrigo municipal ou outra instituição, mas
ele se firmava: “prefiro a rua”.
Já era o quarto encaminhamento de alta do paciente, mas o judiciário
não permitia a equipe “liberar” o paciente se não encontrasse outra insti-

or
tuição para acolhê-lo, desconsiderando o conhecimento técnico de médicos,

od V
enfermeiros, psicólogas, assistentes sociais, nutricionista, farmacêutica e

aut
arte terapeuta que afirmava que não tinha mais motivos para ele permanecer
ali. E assim seguia. Uma disputa de força onde a vontade do juiz sobre a
decisão técnica da equipe era colocada sem justificativa legal, somente pelo

R
argumento de que a alta seria um risco para ele e para os outros, sem neces-
sariamente ter um porquê do risco. Dessa vez, a equipe havia feito arranjos

o
com a equipe sociassistencial do município para fazer o acompanhamento
aC
externo e com a equipe do CAPS para dar continuidade ao tratamento. E

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mesmo assim o juiz foi taxativo, queria uma instituição que ele ficasse recluso,
mesmo sem precisar responder por um crime.
Em sequência a assistente social externa: “Não temos carro disponível,
visã
mas a vontade que tenho é de colocar ele dentro do carro e baixar lá no fórum
no gabinete do juiz. Ele queixou esses dias de que nunca foi ouvido pelo juiz,
que se acha preso aqui. Vou falar o que? Mesmo dizendo que é uma unidade
itor

hospitalar, é a mesma coisa que estar preso”.


a re

Após o momento de fúria da equipe ante aquele papel timbrado do


fórum, a farmacêutica diz: “desculpa, tomamos o tempo da aula”. Não tinha
porque se desculpa, aquela era justamente a temática do encontro daquele
dia. Aproveito o caso e começo a trazer o conceito da rede aracniana de
Deligny, numa dimensão mais micro, para além dos fluxos e trocas entre
par

as instituições de atenção, onde a rede passa a ser considerada como um


modo de ser, arranjos que vão se compondo e produzindo modos de vida. E
Ed

a construção dessas redes se dá principalmente quando os acontecimentos


históricos são intoleráveis, é “quando o espaço se torna concentracionário,
a formação de uma rede cria uma espécie de fora que permite ao humano
ão

sobreviver” (DELIGNY, 2015, p. 18). Cada pessoa pode atuar como arac-
niano compondo suas próprias redes de fluxos, ligações por afetos e cortes
s

como ruptura e resistência.


ver

Pensando a realidade da instituição, peço que em uma folha branca


cada uma desenhe o mapa da instituição, de sua rede de atenção enquanto
profissional, não necessariamente uma planta baixa, mas um mapa podendo
comportar aspectos para além das paredes do local. Naquele mapa solicitei
que sinalizassem os pontos de enrijecimento, os percursos instituídos, os

Flávia Lemos - 21982.indd 150 28/02/2020 13:13:07


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 151

projetos pensados que acabavam por amarrar mesmo sem cordas as vidas
que estavam ali, incluindo sua prática.
Num segundo momento entreguei uma folha de seda e pedi que colocasse
sobre o mapa e que retomasse a conceito de rede aracniana de Deligny, onde
ele faz uma distinção específica na noção de rede em oposição a um objeto
ou ferramenta para lidar com as coisas, o mundo. Na proposta aracniana,
o que possibilita a rede não é aquilo que está fechado, acabado, mas sim a

or
falha, a ruptura, a brecha.
Contaminadas por essa proposição, com cor diferente do desenho de

od V
baixo, peço que retomem as experiências de ruptura, as brechas, as estratégias

aut
de resistência ante aquele projeto pensado do mapa de baixo. Cozinha como
espaço de encontro, potentes vínculos com outras instituições e até situações

R
de fuga da internação, muros e cercas pulados como ato de sobrevivência.
Na atividade, a imposição judicial retornar: “a gente sabe que aqui

o
não é o melhor lugar, a internação é difícil, mas sabemos de nossa prática.
aC
Eu sei da minha técnica, eu tenho domínio do que faço. Por que ele [o juiz]
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

acha que sabe mais do que eu sobre a minha profissão?”. Trabalhamos os nós
enrijecidos e as potências de ruptura da atual rede. E ali, com as angústias de
profissionais que tinham dimensão das limitações institucionais e de atuação,
visã
entendi que a rede enquanto cuidado em saúde funcionava, mas estratégias
para sua deslegitimação vinha de outra ordem, e com canetadas.
Finalizamos o encontro e eu ainda iria trabalhar a mesma temática nos
itor

CAPS. Saio um pouco inquieta e pelo pátio resolvo parar para ver novamente
as telas. Por que não foi possível levar os pacientes para fazer um tour pela
a re

cidade e ver as imagens do artista nos muros e prédios? Ah, não tinha carro.
Mas se pedir de outra instituição emprestado? É perigoso, vai que foge? Pode
fugir daqui também. No final ao lado das telas há um aparelho enferrujado
de ginástica que já compõe a paisagem há anos, olho em detalhe as roldanas
par

do equipamento e uma aranha está trabalhando. Tecendo, pequena, lidando


com o improviso dos cabos de aço soltos. Trabalho micro e que funciona.
Ed

_____________________________________________________________

2. Política de saúde mental e os arranjos da atenção


ão

Como uma das redes temáticas do Sistema Único de Saúde (SUS), a rede
de atenção psicossocial (RAPS) foi normatizada pela resolução 3.088/2011
s

do Ministério da Saúde (MS), com a finalidade de ordenar os serviços de


ver

atenção em saúde mental para pessoas com transtorno mental e problemas


decorrentes do consumo de crack, álcool e outras drogas (BRASIL, 2011).
As redes de saúde no âmbito do SUS foram pensadas “como estratégia para
superar a fragmentação da atenção e da gestão nas regiões de saúde e aperfei-
çoar o funcionamento político-institucional do SUS, com vistas a assegurar

Flávia Lemos - 21982.indd 151 28/02/2020 13:13:07


152

ao usuário o conjunto de ações e serviços que necessita com efetividade e


eficiência” (BRASIL, 2010, s/p).
Cada rede de saúde é caracterizada por arranjos organizativos de ações
e serviços de saúde, considerando os diferentes níveis tecnológicos e de aten-
ção, promovendo assim uma relação horizontal entre os pontos de atenção e
tendo a centralidade da comunicação a Atenção Básica. Neste aspecto, para
além de uma dimensão assistencial, a atenção em saúde parte de uma noção

or
ampliada do processo saúde-doença, concebendo e organizando as políticas

od V
e ações de saúde numa perspectiva interdisciplinar, buscando a efetividade

aut
dos princípios de integralidade e equidade do SUS.
Como uma rede de saúde, a RAPS também considera os diferentes níveis

R
tecnológicos no atendimento as pessoas que fazem uso de drogas tendo as
unidades básicas de saúde a centralidade de comunicação. Nesta organização,
há de se considerar os pontos de atenção às usuárias e usuários: as unidades

o
básicas de saúde, equipe de atenção básica para populações específicas (equipe
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de consultório na rua e equipe de apoio aos serviços do componente de atenção
residencial de caráter transitório), centros de convivência, centros de atenção
psicossocial em suas diferentes modalidades, serviço de atendimento móvel
visã
de urgência (SAMU), sala de estabilização, unidade de pronto atendimento
(UPA) 24 horas, portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro,
serviços de atenção residencial de caráter transitório, enfermaria especializada
em hospital geral, serviço hospitalar de referência para atenção a essa popula-
itor

ção, serviços residenciais terapêuticos e serviços de reabilitação psicossocial


a re

(BRASIL, 2011).
O município quando organiza sua RAPS não necessariamente precisa
ter todos os componentes normatizados pela resolução nacional, compete
aos gestores e técnicos responsáveis considerar as demandas do território,
par

as especificidades locais. Em Cuiabá, por exemplo, especificamente para o


atendimento de álcool e outras drogas, há dois CAPSad (Centro de Atenção
Ed

Psicossocial Álcool e outras Drogas), um voltado para o atendimento de


adultos, de gestão estadual, e outro voltado ao atendimento de crianças e
adolescentes (conhecido como CAPSadolescer), de gestão municipal. Além
ão

dos CAPSs, há UPAs, SAMU, unidades básicas de saúde, consultório na rua


e, para além do descrito na resolução de 2011, atendimentos ambulatoriais em
policlínicas e unidade de internação psiquiátrica21 de atendimento masculino.
s

O conjunto de ações que comporta o atendimento dos usuários em seus


ver

múltiplos níveis de intervenção é configurado como atenção em saúde. Ou

21 No final de 2018, o Ministério da Saúde fez um reordenamento da política de saúde mental passando a
considerar os serviços ambulatoriais e os leitos em hospitais psiquiátricos, desconsiderando o processo de
reforma psiquiátrica legitimado pela Lei 10.2016/2001.

Flávia Lemos - 21982.indd 152 28/02/2020 13:13:07


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 153

seja, a atenção em níveis é o agrupamento dos serviços de acordo com a


complexidade das ações necessárias para atender a demanda da população,
seja no que diz respeito a promoção, restauração ou manutenção de sua saúde.
Assim, a organização do sistema de saúde prevê atenção em nível primário,
com foco na prevenção configura-se nas estratégias relacionadas à diminuição
dos riscos de doença e à proteção da saúde, compondo as unidades básicas
de saúde, núcleos de apoio a saúde da família e demais serviços de atenção

or
básica; em nível secundário, a atenção é formada por serviços responsáveis

od V
por oferecer tratamento especializado; e o nível terciário comporta os serviços

aut
de alta complexidade abrangendo cirurgias e demais procedimentos invasivos.
Envolvendo também todos os níveis de governo (municipal, estadual e
federal), essa atenção compreende tanto o campo da assistência em saúde, as

R
intervenções ambientais e as políticas externas em uma dimensão de aten-
ção intersetorializada, na qual outros dispositivos são chamados a compor a

o
atenção, mesmo não sendo necessariamente de saúde, tais como educação e
aC
serviços socioassistencias (BRASIL, 1996).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Na atenção em saúde mental, as normativas legais da política de saúde


mental, conhecimentos técnicos e os equipamentos de saúde compõe os meca-
nismos que permitem operacionalizar o arranjo da Atenção, as forças que são
visã
disparadas a partir da articulação desse conjunto de ações. Esse plano de forças
está relacionado com a trajetória histórica de mobilização para construção de
uma política de saúde mental cuja atenção não se volta mais para a centrali-
itor

dade do problema no sujeito, mas principalmente em um reordenamento da


a re

noção de adoecimento mental em uma dimensão psicossocial.


Um plano de forças que comporta a trajetória e conquistas da luta anti-
manicomial, as mobilizações que repercutiram na construção da lei nacio-
nal 10.216/2001 de reforma psiquiátrica, com a qual os hospitais deixam
de ser centralidade e a atenção é normatizada como sendo em meio aberto,
par

considerando os aspectos psicossociais o processo de produção de saúde.


Ed

Este movimento de mobilização política, ancorado em conceitos norteadores


do SUS, culminou na construção de um plano que tem essa modalidade de
atenção como potência norteadora de práticas e serviços.
ão

A exemplo, a noção de território instalada na política pública de saúde


trata-se além dos critérios geográficos e aspectos político administrativos, as
marcações políticas, econômicas, sociais e culturais em uma dinamicidade
s

permanente. Trazendo para a produção de saúde mental, as estratégias de


ver

atenção são pensadas considerando o território do usuário e seus atravessa-


mentos psicossociais, desde a atenção básica.
Fazendo uma avaliação sobre a política de cuidado e as redes de atenção
psicossocial no Brasil, Andrade (2016) afirma que a lógica de funcionamento
dos CAPS, de uma maneira geral, se dá sem território. E isso acontece pela

Flávia Lemos - 21982.indd 153 28/02/2020 13:13:07


154

falta de uma atenção básica para fazer a cobertura da atenção ao uso de drogas
no território de cada usuário do serviço. Se efetivamente levassem a cabo o
cuidado na atenção básica, os municípios de pequeno porte teriam subsídios
para o atendimento a esses usuários e demais usuários de saúde mental, sem
fazer o movimento de “despachar a demanda” para capital.
Andrade (2016) afirma que um CAPS sem território “é uma unidade de
saúde mental ou de atenção ao uso de drogas em condições muito inferiores

or
ao que seria um hospital psiquiátrico” (p. 39). Com guarda aberta para receber

od V
porrada dos antirreformistas pois está descaracterizado ao não ter atenção em

aut
seu aspecto psicossocial. Nestes casos, o que existe não é uma rede, mas um
protocolo de encaminhamento. Isso escapa ao que efetivamente é a noção de

R
atenção integral em saúde, seguindo o princípio de equidade.
Enquanto rede de atenção disponível em Cuiabá, há a ausência de manu-
tenção dos serviços existentes e pouca mobilização no que diz respeito a

o
criação de outros que poderiam suprir as demandas locais. Mas para além de
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


descrever processos de falha e ausências de instituições quero chamar aten-
ção para a forma como são arranjados os processos de cuidado com a rede
de atenção que se construiu no município para atender as especificidades das
visã
pessoas que usam drogas.
Para além de aspectos da saúde, as demandas das drogas precisam ser
pensadas na transversalização das políticas socioassistenciais, aspectos jurí-
dicos-legais, segurança pública, saúde e educação, levando a cabo a noção
itor

de território em seu aspecto psicossocial. Considerando a complexidade da


a re

questão das drogas, em 2004, a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), até
então configurada como Política Antidrogas, sofre um realinhamento das
ações adotando estratégias de cooperação mútua e articulação de esforços
entre governo, iniciativa privada, terceiro setor e cidadãos.
par

O novo plano passou a contemplar não somente o tratamento, recupe-


ração e reinserção social, mas também estratégias de prevenção, redução de
Ed

danos sociais e à saúde, redução de oferta, bem como viabilizava estudos e


pesquisas para construção e avaliação dessas ações. Especificamente no que
diz respeito ao uso do crack (uma substância derivada da cocaína), esse passou
ão

a receber maior atenção na PNAD pela expansão do seu consumo no país.


Dentre os motivos para essa expansão destacam-se o menor custo, em relação
ao pó de cocaína, adequando-se ao perfil de baixa renda; fácil utilização, por
s

ser fumado dispensa o uso de seringas; e quanto as formas de uso, chama


ver

menos atenção que as drogas injetáveis pois pode ser misturado ao tabaco e
à maconha (pistilo).
A expansão do uso de crack confirmada pelos indicadores epidemio-
lógicos, assim como a complexidade do atendimento dado as pessoas que

Flávia Lemos - 21982.indd 154 28/02/2020 13:13:07


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 155

fazem uso de drogas fizeram com que em 2010 fosse instituído no país o
plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas. O novo plano
tem como proposta a ampliação e fortalecimento das redes de saúde e
assistência social; capacitação dos profissionais envolvidos na atenção aos
usuários e no enfrentamento ao tráfico de drogas; ampliação da participação
comunitária; divulgação de informações sobre as substâncias e elaboração

or
de novas estratégias de enfrentamento ao tráfico (BRASIL, 2010). Desde
então foram elaboradas várias estratégias de capacitação para os agentes

od V
envolvidos nesse plano integrado.

aut
Em Mato Grosso, o Plano Estadual de Enfrentamento às Drogas foi
elaborado em 2011, trazendo especificações do estado, tal como a extensa

R
fronteira com a Bolívia, que facilita o tráfico em acesso pelo Pantanal
(MATO GROSSO, 2011). Na proposta estadual, vemos descritas várias

o
propostas de ações (de prevenção, tratamento, repressão e financiamento)
aC
que envolvem articulações entre secretaria de justiça e direitos humanos,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

secretaria estadual de segurança pública, secretaria estadual de educação,


secretaria estadual de saúde, secretaria estadual do trabalho e assistência
social, secretaria de administração, tribunal de justiça, ministério público,
visã
marinha, aeronáutica, polícia rodoviária federal, entre outros.
Na descrição dessas ações no plano, mesmo apresentando como prio-
ridade as ações de prevenção e atendimento, há um expressivo destaque
itor

ao enfrentamento e repressão ao tráfico, o que produz efeitos nas ações de


a re

atendimento e prevenção, visto que as ações estão a priori articuladas em


rede, como o plano descreve.
Destacamos estes aspectos pois eles atravessam as questões de atenção
consideradas como sendo da saúde, como no caso do paciente internado há
par

cinco meses no hospital psiquiátrico mesmo que a equipe reafirme a sua alta.
Ou seja, nas estratégias voltadas para os usuários de drogas, os fluxos da
Ed

atenção são atravessados por essa lógica de Guerra às Drogas impulsionado


pelo arranjo bélico. As forças de enfrentamento e repressão emanadas neste
plano bélico são direcionadas aos usuários e consequentemente atravessam
ão

as práticas de atenção, seja na reafirmação constante do risco à sociedade


supostamente propiciado pelo usuário, que passa a ser considerado como pas-
s

sível de enclausuramento; seja pelo descrédito dado aos serviços de atenção


quando se reafirma a abstinência como sinônimo de cura.
ver

Os cortes bélicos na atenção propiciam um desmonte dos serviços em


dois movimentos: ausência de estratégias para manutenção das instituições
e deslegitimação das práticas das equipes, subvertendo-as ou capturando-as
para serem ferramentas bélicas de controle e mortificação.

Flávia Lemos - 21982.indd 155 28/02/2020 13:13:07


156

3. Processo de desmonte

Esse atravessamento do plano bélico propicia construir uma prioridade


nas intervenções do Estado a partir do temor da guerra. A Guerra às Drogas
passa a ser argumentação para justificar as prioridades de financiamento nas
áreas de segurança e repressão, tal qual visto pelo plano estadual. E pela
mobilização da guerra, os serviços de atenção passam gradativamente a um

or
processo de desmonte que se dá em dois movimentos: precarização dos ser-

od V
viços e deslegitimação da equipe.

aut
No processo de precarização dos serviços o movimento de desabas-
tecimentos das unidades e não manutenção, até mesmo predial, é uma das
estratégias. A exemplo, o CAPSad funciona “provisoriamente” há mais de 5

R
anos em uma casa alugada pois o projeto de reforma e ampliação da unidade
foi embargado pela justiça, como anunciado pela coordenadora do CIAPS

o
em entrevista “a obra está parada sem previsão de retorno pois está em uma
aC
área de proteção ambiental aqui no parque [parque Zé Bolo Flô]”. O espaço

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


não comporta a quantidade de funcionários e usuários, não há salas suficien-
tes, algumas para atendimento individual foram construídas com paredes de
gesso, impossibilitando o sigilo no atendimento. Os trabalhos em grupo se
visã
dão em na única sala que foi interditada por um período pois o teto caiu e o
mofo tomou conta do espaço.
No CAPS adolescer, segundo relatos da equipe, não há envio de supri-
itor

mentos para realizar oficinas, não há carro para realizar ações no território
a re

ou visitas domiciliares. Quanto a situação do prédio, em período de chuva,


a unidade era invadida por água, ao ponto de um dia as atividades do curso
de capacitação serem interrompidas pois a água começou a cair pelos bocais
das lâmpadas por todo o prédio.
Situação não tão diferente na Unidade 3 com camas quebradas, falta de
par

suprimentos de atenção hospitalar, salas sem ventilação e ausência de funcio-


Ed

nários para conseguir dar conta do atendimento ininterrupto da instituição.


Em episódio narrado pela equipe, os funcionários fizeram uma arrecadação
interna para instalar um ar condicionado na sala de equipe e até mesmo para
ão

custear a manutenção da bomba d’água da unidade.


Além deste processo de precarização das unidades físicas, outra maquina-
ção que se dá é a ausência de educação permanente propiciada pelos gestores
s

para lidar com as especificidades da temática das drogas ou uma atualização


ver

das práticas, algo que é reconhecido pelas equipes como descreve uma arte
terapeuta de um dos CAPS: “não recebi formação pra vim pra cá, sou arte-
são, ensino o artesanato, mas os adolescente não querem recortar e fazer
aquilo que consigo propor, mas também não consigo suporte para trazer
outras possibilidades”. Nesta ausência dos gestores, alguns servidores que

Flávia Lemos - 21982.indd 156 28/02/2020 13:13:07


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 157

se mobilizam e, que também tem condições de fazer, procuram isso de forma


externa, fazendo cursos de especialização e outros.
Na justa medida que o Estado não propicia o que seria sua atribuição na
garantia de direitos e consequentemente na garantia um bom atendimento, as
equipes buscam se mobilizar para tentar amenizar tais ausências. Mas acaba
sendo uma resistência pontual localizada nos serviços especializados, não se
ampliando para os demais pontos da rede de atenção, como por exemplo as

or
unidades básicas de saúde ou os prontos atendimentos. Ao longo do curso

od V
isso se evidenciou pelas colocações das equipes. No CAPSad uma técnica

aut
de enfermagem disse que também atuava no hospital geral e percebe como a
equipe de lá tem dificuldade de atender pessoas em situação de consumo de
drogas ou em situação de surto “não que não tenham conhecimento, é aversão

R
mesmo. Sei por estar no CAPS. As formações que recebem são técnicas e não
de sensibilização pra atender esse público”.

o
Operando por linhas maleáveis, as equipes da atenção especializada se
aC
rearranjam ante a estratégia de desmonte do Estado pela desassistência aos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

serviços. Buscam parcerias com outras instituições, incluindo aqui as univer-


sidades e a possibilidade de atualização por meio de cursos de extensão, como
o curso de RD que foi demandado pelas equipes. Quando estratégias assim
visã
chegam a outros pontos da rede, as forças da atenção conseguem ampliar
as possibilidades desses pontos. Sabendo que aconteceria o curso no CAPS
adolescer, uma fonoaudióloga e uma fisioterapeuta que atuam no Centro de
itor

Especialidades Médicas (CEM) do município pediram para fazer a formação


a re

em redução de danos. O que propiciou repensar os fluxos de atenção em saúde


mental para crianças e a adolescentes ao longo do curso, sugerindo novas
estratégias mesmo com os movimentos de precarização do Estado.
No movimento de precarização como estratégia de desmonte, as linhas
maleáveis possibilitam as forças do plano de atenção criarem possibilidades
par

de cortes nos grandes estratos subtraindo sua rigidez e possibilitando assim


Ed

variações. Não se trata de aceitar lidar cotidianamente com a ingerência dos


gestores que não propiciam as vezes o mínimo que é a manutenção das insti-
tuições, mas criar possibilidades de variações ante a essa estratégia que tem
ão

como foco criar justificativas para uma não funcionalidade desse modelo de
atenção. Visto que neste processo de precarização emergem essas possibi-
lidades de desestratificação relativa, outro movimento que é lançado como
s

estratégia de desmonte é a deslegitimação das equipes, principalmente de


ver

seu saber técnico.


Tanto nos CAPSs quanto na unidade de internação, há profissionais que
buscam fazer especialização, estudar a temática, estudar redução de danos,
pensar as estratégias, estudar os casos, fazer capacitações. Ou seja, há pes-
soas com domínio teórico e técnico para lidar com a demanda dos serviços,

Flávia Lemos - 21982.indd 157 28/02/2020 13:13:08


158

profissionais que além de terem especializações e mestrado, tem um discurso


de como conduzir sua prática seguindo os princípios do cuidado.
A capacitação de servidores é algo que atravessa os modos de constituição
das políticas públicas no Brasil. Na mesma medida que foram convencionadas
como necessárias ao aperfeiçoamento da atenção, são aparatos de rendimento
tanto para o Estado, quanto para os servidores, que tem a possibilidade de
aumentar os salários conforme aumenta sua titulação. Todavia, para além de

or
um aparato de rendimento, para os servidores o estudo se configura como

od V
uma segmetarização maleável ante as linhas duras de controle. Cria-se uma

aut
fissura nos moldes bélicos da proibição quando a equipe se atualiza e acessa
conteúdos que contrapõe os modelos de controle.
Ante a este tipo de resistência, as forças jurídicas que atuam em con-

R
fluência com os arranjos do rendimento atuam impondo práticas de poder,
tais como barrar alta coletiva da equipe, deslegitimando o conhecimento dos

o
profissionais. Deslegitimação está amparada não necessariamente por aparatos
aC
legais, mas por afetos, como o medo do que o paciente poderá fazer se sair em

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


alta e ficar na rua. Na deslegitimação da equipe, o poder se impõe pela lógica
da judicialização da atenção. Exigindo eficiências ditadas pelo saber médico
que versam sobre a noção de cura como sinônimo de abstinência, as forças
visã
judiciárias atualizam-se na negativa a liberdade, reforçando o movimento de
não funcionalidade dos serviços e da rede.
As equipes reconhecem suas limitações e as estratégias que constroem
itor

como sendo as vezes limitantes, principalmente na internação, como descreve


a re

uma farmacêutica: “a farmácia aqui é a nova biqueira22, busca se guiar pela


falta e acabam por suprir uma demanda que nem tem, criando outra, consu-
mindo medicação [psiquiátrica]”. Mas os atravessamentos jurídico, médico
e de rendimento operam de forma tão recorrente nos processos de atenção ao
par

ponto de a equipe introjetar isso questionando sua própria capacidade.


O processo de cuidado não pode se dá de forma abrupta, como exigido
Ed

pelo judiciário. Vemos uma pressa em “alcançar uma cura”, não pela urgência
do caso, mas pela emergência dos resultados mapeados em registros e fichas.
Por isso opera bem, sem questionamentos social, grupos que tem como didá-
ão

tica de cuidado a contagem de dias em abstinência. Tem nos dias contados


a legitimação de uma possibilidade de cura presa a uma eterna subjetivação
adoecida: “Sou adicto em recuperação a 13 anos, 2 meses e 27 dias”.
s

O processo abrupto opera aderindo à distintos regimes de significan-


ver

tes que “não raro tornam-se despóticos em seu psiquismo” (HUR, 2015, p.
272). Uma sutura apressada, uma prótese psíquica com estatuto de verdade

22 Biqueira aqui refere-se a “boca de fumo”, lugar onde se vendem drogas.

Flávia Lemos - 21982.indd 158 28/02/2020 13:13:08


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 159

inquestionável. Ai que as Comunidade Terapêuticas operam bem, um dogma


que cumpre a função psíquica de um significante arbitrário.
Neste sentido, os outros atores da rede (justiça, conselho tutelar, hospi-
tal, família, etc) querem uma emergência que os serviços de atenção aberto
não comportam. Na ânsia de dar o que se exige não conseguem levar a cabo
a noção de cuidado. Essa lógica abrupta interrompe processos subjetivos
recalcando as intensidades de forças, fixando imagens identitárias, em terri-

or
tórios cristalizados.

od V
Fixa-se a imagem da “cara da droga” e esta se estende aos modos de

aut
cuidado nos serviços de saúde mental. A captura do pensamento pelo regime
de representação se fixa em significante despóticos e não lançamos mão de

R
métodos para traçar ou experenciar essa cara, mas operamos por reconhe-
cimento por imagens pressupostas, estratificadas pela lógica do capital. O
pensamento é modulado à lógica do capital e a forma de pensar o cuidado

o
também, os serviços que foram pensados a lógica de uma ruptura com os
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

modelos manicomiais, operam pela lógica do capital, o controle, a disciplina


é exercida em campo aberto, capilarizado.
No processo impositivo, as redes moldadas em linhas duras não conse-
visã
guem lidar com as vidas que escapam e a judicialização se faz goela abaixo,
“não tem lugar pra fora do Direito, aqui você é obrigada a engolir o Direito”
(psicóloga da Unidade 3). O processo de desmonte pelos movimentos de
precarização e deslegitimação conduzem a noção de funcionalidade da rede.
itor

Todavia, entendendo as práticas por uma perspectiva rizomática, não há como


a re

se guiar por uma noção unidirecional de funcionalidade, pois entende-se que


todas as estratégias funcionam, mas há de se questionar: Funciona para que?
Está a serviço de quem?
par

3. Funcionalidade como argumento para aniquilação


Ed

De forma recorrente pelos espaços de construção de política públicas,


onde lidávamos diretamente com os enfrentamentos aos desmontes dos servi-
ços públicos, um dos argumentos para deslegitimar a prática das instituições
ão

que se guiam pela perspectiva que não tinham a abstinência como prioridade
é que elas “não funcionavam, pois, a pessoa voltava a usar droga”. Uma
afirmação guiada pela perspectiva proibicionista que tem como sinônimo de
s

“tratamento” a abstinência total.


ver

Quando projetavam essa argumentação aos CAPSs via isso como algo
simplório que particularmente não relevava por não consegue capturar
quais forças operavam ali. Somente na instituição de internação, um espaço
de abstinência, que a noção de não funcionalidade da rede tomou forma e

Flávia Lemos - 21982.indd 159 28/02/2020 13:13:08


160

materialidade pelos documentos de devolutiva jurídica. A questão não é que


os serviços não funcionam, mas precisa haver justificativas para garantir a
manutenção de outros espaços rentáveis para a lógica do capital, como des-
tinação de recursos públicos para instituições privadas, como as comunida-
des terapêuticas.
A manutenção do discurso de uma não funcionalidade dos serviços e
consequentemente da RAPS passou a ser introjetada e reproduzida pelos

or
pontos da rede, sendo externada em alguns momentos pelos servidores das

od V
instituições onde estava inserida. Instituições como o CAPS que atua como

aut
uma perspectiva que não tem a abstinência como finalidade as vezes trazia
falas de afirmação de uma “não funcionalidade” sem se questionar se essa
estava ligada a lógica do Estado.

R
Entendo que caberia à rede de atenção cuidar, ou seja, construir práticas
que funcionem para potenciar as vidas dos usuários e não cercear para lucrar

o
(MÉLLO, 2018), isso vai na contramão da prioridade do Capital, por isso a
aC
recorrência de uma noção de não funcionalidade. Para além das estratégias de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


desmonte, engendram-se aqui as desarticulações na rede proporcionadas pelos
arranjos do Estado: trocas constantes de coordenações com desconhecimento
técnico por indicação de interesses políticos; querela entre as instâncias de
visã
gestão visto que há unidades do estado e unidades do município, ampliando as
ausências das trocas de informações e práticas das secretarias; ingerência no
que diz respeito a inclusão dos demais níveis de atenção para trabalhar saúde
itor

mental; e desconsideração dos demais setores (assistência social, educação,


a re

cultura, esporte, etc.) para levar a cabo a noção de rede de atenção psicossocial.
O cuidado pela via da atenção psicossocial é uma proposta ético-política
(SANTOS; YASUI, 2016), ou seja, olhar para o sofrimento para além do
diagnóstico, e isso as equipes fazem em sua atuação coletiva interna. Mas as
ferramentas para ação externa são cerceadas pelos arranjos que se mobiliza-
par

ção pelas forças de rendimento que lidam com a rede como somente fluxo,
Ed

dados e lucro. Rede não é fluxo. Fluxo é uma possibilidade de percurso da


rede (DELIGNY, 2015). A rede tem que ser vista como singular em cada caso,
acolhendo as singularidades e a própria rede da pessoa atendida.
ão

Além do mais, cerca-se de ingenuidade aquele que acredita que a implan-


tação dos dispositivos da RAPS se faz por decreto. Não se faz! Não é porque
houve uma portaria que os municípios passaram efetivamente a providenciar
s

os leitos em hospital geral, por exemplo. É preciso que haja uma sensibilização
ver

e acompanhamento de supervisão. Pois mesmo que haja o financiamento de


tais leitos e a pactuação entre secretaria e hospital, não haverá leitos pelas
desarticulações capilares que se estendem pela rede. Só dinheiro não basta,
ele precisa vim acompanhado de um trabalho paralelo junto a equipe, e vemos
que as práticas de desmonte não permitem isso.

Flávia Lemos - 21982.indd 160 28/02/2020 13:13:08


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 161

A rede vai se fazendo em ausências que são utilizadas como justificativa


de um não fazer, ou um conformismo, às vezes. Mas isso só aparece com a
emergência de um cansaço, é notório, quando não verbalizado, o cansaço das
equipes em relação as buscas por construir outras estratégias de cuidado. O
cansaço da equipe não é descaso, mas um efeito que emerge pela necessi-
dade constante de lidar com os arranjos de poder, as imposições, os controles
constantes, a tensão entre qualidade do serviço público e a qualidade do

or
serviço privado. Há uma gestão dos afetos das equipes também como forma

od V
de diminuição de sua potência, um investimento da máquina capitalística na

aut
estratégia de captura do estranhamento, da sensibilização que alimentam as
formas potentes de cuidado. Isso não somente pelo cerceamento de coisas e
cortes de ações, mas também pela valorização dos espaços de clausura como

R
a autorização da reforma do Hospital Psiquiátrico Adauto e os projetos de lei
estaduais visando investimento das comunidades terapêuticas.

o
Quando o Estado afirma uma não funcionalidade da rede é como uma
aC
estratégia de imposição de poder. E se nos guiamos pela compreensão de que
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

só se incide poder porque há um foco de resistência ali, vemos isso cotidiana-


mente nas práticas de atenção que criam desvios e dobras ante aos processos
de desmonte pela precarização e deslegitimação. A rede traçada pelos servi-
visã
ços engendrada pelas forças do plano da atenção é uma rede cotidiana, pois
“a rede não é solução, mas um fenômeno constante, uma necessidade vital”
(DELIGNY, 2015, p. 32).
itor

Direcionando a noção de rede para os arranjos cotidianos, Deligny (2015)


a re

descreve a noção de rede aracniana como sendo as tramas daquelas e daqueles


que criaram estratégias de sobrevivências ante a imprevisibilidade da vida,
com o foco não no que falta, mas no que possibilita criar novos laços e teias.
Essa noção pode ser transposta para a noção de rede que opera os serviços de
saúde mental pois, para Deligny, aquilo que possibilita a rede funcionar para
par

potencializar vida é a brecha, as rupturas.


Ed

Este movimento de trama que é construído nos serviços opera por fluxos
maleáveis, divergindo do movimento unidirecional das linhas duras. São
práticas que detectam “linhas de vida tênues, muitas vezes quase invisíveis,
ão

quase inaudíveis, mas que funcionam como germes de possíveis conexões,


camufladas na profusão de condutas de evasão de vida” (TEDESCO; PECO-
RATO, 2016, p. 100). E isto pode ser visto até mesmo no espaço de clausura
s

que é a internação quando profissionais constroem estratégias clínica com


ver

foco em outros aspectos, outras conexões para além da droga, como por
exemplo um grupo de cidadania para falar sobre direitos humanos e política
de saúde mental com os usuários. Pontuar esse aspecto não implica uma defesa
de uma instituição de internação, mas uma observação de que para além de

Flávia Lemos - 21982.indd 161 28/02/2020 13:13:08


162

instituições com abertas, a perspectiva antimanicomial se faz com as práticas


cotidianas de cuidado.
Ao questionar a psicóloga sobre a “efetividade do grupo” sobre uma polí-
tica que versa ações opostas a proposição do serviço de clausura, ela responde
que o fato de ela reconhecer que aquele local não é efetivamente um espaço
de cuidado, permite lançar mão de coisas que avalia como sendo prioridade
para o usuário a partir da escuta de suas demandas, o que inclui saber sobre

or
seus direitos e suas violações. Nesta prática “não importa o que ele vai usar

od V
[quais drogas] saindo daqui, mas as conexões para manter essa vida após

aut
sair” (psicóloga da Unidade 3). Práticas que podem ser descritas como práticas
libertárias (MÉLLO, 2018), que provocam desestabilizações, questionando
as padronizações da atenção. Potentes estratégias que minam o recurso da

R
não funcionalidade justamente por não operarem na lógica unidirecional de
mensurar a funcionalidade de uma estratégia pelo viés da abstinência.

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 162 28/02/2020 13:13:08


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 163

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Tarcísio Mattos de. Panorama atual da política de drogas no
Brasil: a redução de danos. In.: SOUZA, Ândrea Cardoso de et al. Entre
pedras e fissuras: a construção da atenção psicossocial de usuário de drogas
no Brasil. São Paulo: Hucitec editora, 2016, p. 23-59.

or
od V
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.203, de 05 de novembro de 1996.

aut
Aprova a Norma Operacional Básica 01/96 do Sistema Único de Saúde.
Brasília, 1996.

R
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011.

o
Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou trans-
torno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial [da


União], Brasília, 26 dez. 2011, seção 01, n. 247, p. 230-232.
visã
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010.
Estabelece as diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no
Âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
itor
a re

DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. São Paulo: N-1 edi-


ções, 2015.

HUR, Domenico Uhng. Psicologia, esquizoanálise e biopolítica: sofrimento


psicossocial e transformação. In: HUR, Domenicao Uhng; LACERDA
par

JUNIOR, Fernando; RESENDE, Maria do Rosário Silva. Psicologia e


Ed

transformação: intervenções e debates contemporâneos. Goiânia: Editora


UFG, 2015. p. 269-287.
ão

MATO GROSSO. Secretaria do Estado de Segurança Pública. Plano Estadual


de Enfrentamento às Drogas em Mato Grosso. Cuiabá: Mato Grosso, 2011.
s

MÉLLO, Ricardo Pimentel. Cuidar? De quem? De quê?: a ética que nos


ver

conduz. Curitiba: Appris, 2018.

SANTOS, Clayton E. dos; YASUI, Silvio. Muito além do CapsAD: o cuidado


no território e na vida. In.: SOUZA, Ândrea Cardoso de et al. Entre pedras e

Flávia Lemos - 21982.indd 163 28/02/2020 13:13:08


164

fissuras: a construção da atenção psicossocial de usuário de drogas no Brasil.


São Paulo: Hucitec editora, 2016. p. 70-87.

TEDESCO, Silvia; PECORATO, Leonardo. O conceito de normatividade


e a perspectiva de redução de danos: uma proposta para atenção à saúde do
usuário de drogas. In: SOUZA, Andrea Cardoso de et al. Entre pedras e
fissuras: a construção da atenção psicossocial de usuário de drogas no Brasil.

or
São Paulo: Hucitec editora, 2016. p. 88-106.

od V
aut
R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 164 28/02/2020 13:13:09


MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
E DA SOCIEDADE: repensando a
atuação em psicologia escolar

or
V
Vânia Aparecida Calado

aut
Marilene Proença Rebello de Souza

1. Introdução

CR
do
Em período de férias, um casal aluga uma casa na praia e leva sua
filha de três anos. Chegam em um dia quente de janeiro, no litoral do Rio
de Janeiro e dirigem-se ao restaurante para almoçar. Após aguardar por
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

um bom tempo na fila de espera sentam-se, fazem os pedidos. A pequena


são
Luiza, senta-se também em uma cadeirinha dedicada às crianças. Como o
restaurante estava lotado, o pedido demorou mais de 30 minutos para ser
ra
preparado. Neste intervalo, Luiza encontra algo interessante em um vidro com
i
sal e outro de pimenta sobre a mesa. Rapidamente os alcança e espalha o con-
rev

teúdo dos dois sobre a toalha. Os pais atônitos, tiram rapidamente os vidros
de Luiza, a repreendem e ficam surpresos com o comportamento da menina.
to

Chegando à sua cidade, consultam um especialista relatando o ocorrido. O


especialista avalia que se trata de um comportamento preocupante, atípico
ara

e que pode indicar que Luiza terá um transtorno que é muito comum entre as
crianças da atualidade: TDAH. Explica aos pais que se trata do Transtorno
ver di

de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Após fazer algumas perguntas aos


pais, o especialista considera que seja interessante atuar de forma preventiva
op

e receita metilfenidato para que a criança possa ter mais foco em suas ações
e não se disperse com o que está à sua volta. Os pais, tendo esta informação,
E

embora se preocupem pela medicação, tranquilizam-se, pois agora possuem


um diagnóstico a respeito de um comportamento que eles não compreende-

ram a respeito da criança e de outros comportamentos semelhantes que ela


apresentou nesses últimos tempos.
Essa narrativa, feita por um casal, aconteceu de fato. Trazemos neste
capítulo por considerar que expressa muito bem alguns fenômenos que temos
denominado de medicalização da sociedade. Atribui-se à criança, ao indivíduo,
uma patologia por ele apresentar comportamentos que são considerados ou
interpretados como doenças, desvios, disfunções sem que se leve em conta
os contextos, condições, circunstâncias sociais, políticas, educacionais, eco-
nômicas, relacionais em que tais ações humanas ocorrem. Conforme analisa

Flávia Lemos - 21982.indd 165 28/02/2020 13:13:09


166

o sociólogo estadunidense Peter Conrad (2007, p. 20) “Medicalização” des-


creve um processo pelo qual problemas não médicos se transformam e são
tratados como problemas médicos, em termos de doenças e distúrbios”. E ao
serem tratados como patologias, inserem uma outra dimensão da questão: o
tratamento. De maneira geral, esse tratamento, por se tratar de uma suposta
patologia do campo da saúde, vem acompanhado da utilização de medicamen-
tos, destacando-se a utilização de psicofármacos, substâncias psicoativas que

or
atuam sobre o Sistema Nervoso Central com um grande número de efeitos

od V
colaterais graves.

aut
Esse fato, no Brasil, tem se confirmado, quando se analisa a veicula-
ção de medicamentos entre a população. Levantamento recente realizado
pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (2015) junto

R
à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, órgão regulador dos
medicamentos no país, constata que o Brasil é o primeiro país no mundo

o
no consumo de Clonazepam, benzodiazepínico usado principalmente como
aC
um antiepilético. Este medicamento movimentou um mercado de vendas de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


R$113,96 milhões em 2012, com fabricação de 3,2 toneladas do produto.
O Clonazepam está disponível em 68 diferentes formulações no mercado
brasileiro e é prescrito para transtornos de ansiedade e de humor, sendo o
visã
Rivotril®, da Roche, o 13° medicamento mais vendido no país, ganhando
inclusive de medicamentos populares para dor, como o Buscopan composto.
Os dados também revelam que os professores estão entre aqueles que mais
itor

consomem esse medicamento.


a re

Esse processo de medicalização se constata também na escola. Ou seja,


questões de ordem das políticas educacionais, das insuficiências dos currí-
culos, das dificuldades pedagógicas são transformadas em dificuldades dos
estudantes, em patologias individuais dos mesmos. Nesse sentido, não se
considera que o estudante seja fruto, produto, expressão da escola que a ele
par

oferecemos mas sim que ele teria um distúrbio orgânico que dificultaria o seu
Ed

aprendizado, a apropriação da leitura, da escrita, enfim dos conhecimentos


que são veiculados pela escola.
No campo da escolarização, essa discussão vem sendo feita há algum
ão

tempo pelos estudos desenvolvidos na área de Psicologia Escolar e Edu-


cacional (Patto, 2008; Souza, 2008; Machado, 2002) dentre tantos outros
trabalhos. Tais estudos consideram que é fundamental compreendermos o
s

processo de escolarização oferecido aos estudantes em nossas escolas nas


ver

redes pública e privada. Nesse sentido, analisam que classicamente tenta-se


encontrar as causas dos baixos índices de qualidade da escola brasileira por
meio de dados sobre acesso, permanência e desempenho nas próprias crianças,
em suas famílias e em sua origem de classe. Uma das causas que os estudos
da área questionam é a orgânica. Um grande número de supostas patologias

Flávia Lemos - 21982.indd 166 28/02/2020 13:13:09


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 167

são então apresentadas como causadoras das dificuldades escolares: a pato-


logia de quem não lê e não escreve, dislexia; a patologia de quem apresenta
dificuldade em estar atento às aulas e de apreensão de conteúdos, o transtorno
de déficit de atenção, com ou sem hiperatividade (TDAH); a patologia de
quem não se adapta às regras escolares, o transtorno de oposição desafiadora
(TOD) e tantos outros. O curioso dessas patologias é que todas se referem a
processos escolares que deveriam ser desenvolvidos, promovidos, trabalhados,

or
constituídos pela escola. São “doenças” que acometem os estudantes que estão

od V
no início do processo de alfabetização, como a dislexia e o TDAH ou ainda

aut
os adolescentes, que se encontram em processo de construção de valores e
direitos sociais, como o TOD.
O passo seguinte ao diagnóstico da suposta patologia é o tratamento.

R
De maneira geral, o tratamento dado às crianças e adolescentes com difi-
culdades escolares centra-se na dispensação de psicofármacos. O Brasil

o
comparece como o segundo consumidor mundial de Cloridrato de Metilfe-
aC
nidato, psicoestimulante utilizado no tratamento de TDAH, saltando de 919
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

toneladas de importação do produto em 2009 para 1820 toneladas em 2013.


Somente no período de 2009 a 2013, a Ritalina®, um dos nomes fantasias
sob o qual o metilfenitado é comercializado no Brasil, teve um aumento de
visã
vendas de 180%, aumentando de 58.719 caixas comercializadas em farmá-
cias em 2009 para 108.609 caixas em 2013 (Fórum sobre Medicalização da
Educação e da Sociedade, 2015, p. 6.)
itor

A discussão que a área de Psicologia Escolar e Educacional realiza há


a re

mais de trinta anos, destaca a necessidade de considerarmos os processos


intramuros da escola, analisando que as dificuldades reveladas pelos bai-
xos índices de qualidade da escola são produto de uma série de fatores que
constituem o cotidiano escolar, tais como as expectativas da escola sobre
seus estudantes e famílias, as políticas educacionais e sua implementação,
par

as práticas pedagógicas, as relações institucionais escolares, as políticas de


Ed

formação e de carreira docente, dentre outros fatores. A argumentação apre-


sentada destaca o fato de que as dificuldades escolares precisam ser tratadas
no campo das políticas e práticas escolares, sendo o seu estudante produto
ão

de tais condições de escolarização a ele oferecidas por educadores, gestores


e políticas educacionais. Portanto, se algo não vai bem, precisaremos avaliar
a escola que está sendo oferecida ao estudante e não simplesmente buscar
s

no estudante, em sua família, na comunidade, as origens dessas dificuldades


ver

(Souza, 2010).
A quem interessa a contenção química de crianças e adolescentes? Esta
pergunta vem sendo realizada por psicólogos, fonoaudiólogos, pediatras,
psiquiatras, neurologistas, professores, nutricionistas, farmacêuticos, enfim,
uma gama de profissionais que questionam as interpretações simplistas e

Flávia Lemos - 21982.indd 167 28/02/2020 13:13:09


168

reducionistas presentes no campo educacional. Pesquisas nessas áreas ques-


tionam internacional e nacionalmente tais explicações e principalmente as
formas de diagnóstico e de tratamento que são a elas articuladas, produzindo
um mercado “psi” extremamente preocupante no campo da saúde pública e
da educação das novas gerações (Conselho Regional de Psicologia & Grupo
Interinstitucional Queixa Escolar, 2015). Apresentaremos a seguir como a
medicalização se constitui nas práticas educacionais por meio de histórias de

or
crianças que iniciam seu processo de escolarização, visando problematizar

od V
tais encaminhamentos e tratamentos oferecidos.

aut
2. Escolarização de crianças e o processo de medicalização

R
Para discutir as implicações do processo de medicalização e patologização
da educação serão expostos brevemente 11 casos, sendo dois adolescentes e

o
nove crianças, residentes no município de Natal/RN que foram atendidos por
aC
estagiários do 7º, 9º e 10º períodos do curso de Psicologia de uma instituição de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ensino superior privada da região, durante dois semestres. Os estagiários do 7º
período cursavam o estágio básico e os do 9º e 10º o profissionalizante na área da
Psicologia Escolar e Educacional, ambos estágios curriculares obrigatórios. As
visã
práticas foram desenvolvidas em escolas públicas e particulares, assim como no
Serviço-Escola de Psicologia da referida instituição de ensino superior. As crian-
ças tinham entre 8 e 11 anos, cursavam do 2º ao 5º ano do Ensino Fundamental;
itor

os adolescentes tinham 12 e 13 anos e cursavam o 6º e o 5º ano, respectivamente.


a re

Entre os 11 atendidos, havia uma menina e dez meninos.


As escolas possuíam o laudo com diagnóstico médico, ou psicológico
ou psicopedagógico de cinco dos casos, os demais, havia a solicitação para
diagnóstico e tratamento. A figura 1 abaixo mostra a relação das crianças e
adolescentes com diagnóstico, idade, sexo, uso de medicamento ou não.
par

Figura 1– Tabela com relação de crianças e adolescentes com diagnóstico


Ed

Identificação Sexo Idade Escola Série Diagnóstico Medicamento


J Masculino 13 Pública 5o Ano E.F. TDAH e Dislexia Metilfenidato
ão

F Masculino 9 Particular 3o Ano E.F. TDAH Sem informação


T Masculino 11 Pública 5o Ano E.F. TDAH e Dislexia Metilfenidato
C Masculino 8 Pública 3o Ano E.F. Distúrbio de conduta Sem informação
Transtorno depressivo
s

D Masculino 12 Particular 6o Ano E.F. maior e Transtorno de Fluoxetina


ver

Pânico sem Agorafobia

Entre os seis casos sem diagnóstico, os profissionais da escola pos-


suíam hipótese sobre a causa dos problemas dos alunos. A figura 2 mostra
essa relação.

Flávia Lemos - 21982.indd 168 28/02/2020 13:13:09


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 169

Figura 2 – Tabela com a relação de crianças e adolescentes sem diagnóstico


Identificação Sexo Idade Escola Série Causas Medicamento
Transtorno do
H Masculino 9 Particular 4o ano E.F Sem medicamento
Espectro Autista
E Masculino 8 Pública 3o ano E.F. Dislexia Sem medicamento
A Masculino 10 Pública 5o ano E.F. Dislexia Sem medicamento
F Masculino 9 Particular 4o ano E.F. TDAH Sem medicamento

or
TDAH, Transtorno
L Masculino 10 Particular 5o ano E.F. de Conduta e Sem medicamento
desestrutura familiar

od V
M Feminino 8 Pública 3o ano E.F. Desestrutura familiar Sem medicamento

aut
Entendemos que todas essas crianças e adolescentes acima viviam as

R
consequências do fenômeno da medicalização da educação, em função de um
processo de escolarização de má qualidade, atravessado por políticas públicas
educacionais e atendimento em serviços de saúde também de baixa qualidade.

o
A partir de agora, discutiremos os aspectos em comum e específicos
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

em relação às escolas públicas e particulares relacionados à concepção de


desenvolvimento do professor, ensino e aprendizagem, condição de trabalho
do professor, gestão, aspectos culturais, sociais e históricos, projeto político
pedagógico, relação entre escola, alunos e família. Abordaremos também
visã
algumas características das crianças e adolescentes atendidos, assim como
a relação deles com suas famílias. Por fim, apresentaremos as intervenções
realizadas e as reflexões finais para o trabalho do psicólogo na área da saúde
itor

e educação.
a re

3. As escolas

Os estudantes citados acima estudavam em 11 escolas, sendo seis públi-


par

cas e cinco particulares. As escolas particulares eram pequenas, com 150


a 200 alunos, as públicas eram maiores, com mais de 500 alunos. As turmas
Ed

das crianças e adolescentes não eram muito numerosas, não ultrapassavam 35


alunos. Nenhuma escola pública tinha o projeto político pedagógico elaborado.
Os professores, tanto nas escolas públicas, quanto nas privadas, possuíam
ão

mais de um vínculo de trabalho, ou seja, trabalhavam em outras redes ou


escolas nos outros turnos. No caso das escolas privadas, apenas uma delas
apresentava absenteísmo e constantes atrasos dos professores, incluindo alta
s

rotatividade dos profissionais, já nas públicas, o excesso de faltas era uma


ver

característica em comum.
Muitos professores da escola pública relatavam cansaço, estresse, adoe-
cimento físico e sofrimento psíquico causado pelo trabalho, o que provocava
frequentes faltas e licenças médicas. A desvalorização profissional, as pre-
cárias condições de trabalho, os baixos salários, geram sofrimento, o que

Flávia Lemos - 21982.indd 169 28/02/2020 13:13:10


170

pode ser expresso pelas faltas, rotatividade ou troca frequente de professores


(Souza, 2007b).
Todas apresentavam uma gestão centralizada. Os professores tinham
pouquíssima autonomia para resolver os conflitos em sala de aula, sempre
encaminhavam para a coordenação, diretoria ou psicólogo, quando a escola
tinha esse profissional no quadro. Analisamos que esse modo de funciona-
mento sobrecarregava os gestores, principalmente a coordenação pedagógica,

or
que não podia dar suporte pedagógico aos professores, seja por meio de reu-

od V
nião ou individualmente. As reuniões de planejamento aconteciam apenas

aut
nas férias letivas.
Asbahr & Souza (2007), a partir dos fundamentos da psicologia histórico-
cultural, discutem o impacto das precárias condições de trabalho do professor

R
no seu processo de humanização na realização da atividade pedagógica. Consi-
deram fundamental que no trabalho pedagógico sejam preservados momentos

o
coletivos para a construção do projeto político-pedagógico da escola, pois o
aC
documento e seu processo de construção representam um projeto-atividade

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


que pode enfrentar a fragmentação do trabalho docente.
As práticas pedagógicas desenvolvidas baseavam-se em aulas expo-
sitivas, sem considerar o saber prévio dos alunos, sem trabalho em grupo,
visã
cadeiras enfileiradas, com exercícios repetitivos com foco da memorização e
não no incentivo ao raciocínio dos alunos, com muitas atividades de cópia de
conteúdo do quadro. No geral, as bibliotecas e salas de leitura, assim como as
itor

de informática não eram usadas, mesmo quando a escola tinha esse recurso,
a re

em função da infraestrututra ruim como calor, mofo, equipamentos quebrados


ou falta de profissionais qualificados responsáveis pelo espaço. As precárias
condições, a homogeneização estrutural e rígido disciplinamento, levam à
fragmentação do conhecimento, anulam a diversidade humana, provocam a
desumanização e sofrimento em todos da escola (Souza, 2014).
par

O diálogo com os professores acerca do processo de ensino-aprendizagem


Ed

de seus alunos revelou concepções biologizantes sobre o desenvolvimento e


aprendizagem da criança e do adolescente, desconsiderando aspectos pedagó-
gicos, institucionais, culturais, sociais e históricos. A análise dos professores
ão

referia-se a aspectos biológicos do desenvolvimento e do funcionamento fami-


liar. Nesse sentido, a origem do fracasso escolar de seus alunos encontrava-se
em supostos problemas orgânicos, de origem cerebral, na ausência na vida
s

escolar dos filhos por parte dos responsáveis em função da desestrutura fami-
ver

liar. A crença que deposita sobre o organismo da criança ou sobre sua família
as causas do não aprender na escola retira do educador o saber construído na
prática docente para lidar com o processo de aprendizagem.
Os relatos dos professores de escola pública apresentaram também con-
cepções atravessadas pelo preconceito social que localizam na pobreza o

Flávia Lemos - 21982.indd 170 28/02/2020 13:13:10


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 171

motivo para o fracasso escolar, coincidindo com a perspectiva da Teoria da


Carência Cultural. É fundamental romper com essas concepções biologizantes,
psicologizantes e medicalizantes sobre o fracasso escolar disseminadas por
meio de discursos científicos que também fazem parte da formação inicial do
professor (Checchia & Souza, 2016; Patto, 2008).
Os professores e gestores das escolas em que crianças sem diagnóstico
estudavam alegavam que sem um laudo médico ou psicológico, não poderiam

or
fazer nada pelos alunos, pois não sabiam o que deveria ser elaborado para
promover a aprendizagem dos mesmos. Por outro lado, os profissionais das

od V
escolas em que crianças e adolescentes com diagnóstico e laudo estudavam,

aut
também diziam que não podiam fazer nada, pois seus alunos eram doentes,
tinham transtornos e precisavam de um serviço especializado que muitas
vezes não podiam oferecer.
R
Alguns professores demonstraram interesse em receber orientações de

o
como desenvolver diferentes práticas pedagógicas, porque entendiam que era
aC
seu papel fazer isso, mas tal visão não era consensual. No geral, esses profis-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sionais revelavam desconhecimento acerca do fenômeno da medicalização da


vida e da educação. Compreendiam que a melhora ou não no comportamento
e aprendizagem referia-se ao uso do medicamento, atendimento psicológico
visã
ou psicopedagógico. Esse quadro também foi encontrado por Leonardo e
Suzuki (2016, p. 50) em pesquisa com professores:
itor

Concomitantemente ao que se observou nas primeiras falas das entre-


vistas, pudemos identificar, já nesse momento, os sentimentos quanto à
a re

preocupação dos professores com os problemas de comportamento em


sala de aula. O que pudemos analisar foi um sentimento de impotência
dos educadores, que, por não conseguirem se inserir como parte ativa no
processo de ensino e aprendizagem de seus alunos, também não se sentem
par

capazes de influir nesse processo.


Ed

Dessa forma, o que resta a esses professores é buscar alternativas que são
apresentadas no ambiente escolar como solução para os problemas de
comportamento, de forma a-histórica. O encaminhamento ao médico é uma
ão

dessas alternativas, que identificamos como privatização/ terceirização do


ensino nos moldes capitalistas.
s
ver

4. As famílias
Conseguimos contato e desenvolvemos intervenção com as famílias
de 10 das 11 crianças e adolescentes atendidos. As famílias acompanhadas
expressaram grande preocupação em função da trajetória escolar das crianças

Flávia Lemos - 21982.indd 171 28/02/2020 13:13:10


172

e adolescentes. Apenas uma criança vivia com os avós, as demais residiam


com ambos os pais ou com apenas um dos cônjuges. As relações familiares
revelavam afeto e vínculo, sendo que muitos dos conflitos existentes refe-
riam-se à situação escolar dos filhos.
A escolaridade dos pais variava entre ensino fundamental incompleto a
ensino médio. Duas mães informaram que apenas sabiam escrever o próprio
nome, os demais liam e escreviam. Os familiares queixaram-se do autorita-

or
rismo e desrespeito na relação com os professores e gestores, o que preju-

od V
dicava o acompanhamento dos filhos, pois precisavam de orientações e não

aut
tinham isso da escola. Tal situação provocava afastamento dos pais da escola,
pois o contato se dava apenas para receber reclamações e encaminhamentos
a especialistas.

R
Essa relação autoritária da escola com os familiares provoca afastamento
e prejudica a relação entre ambos (Souza, 2007b). A relação entre essas duas

o
instituições sempre foi marcada por conflitos e culpabilização de um dos lados,
aC
o que não é favorável para o processo de ensino-aprendizagem das crianças

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e dos adolescentes (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010).
As famílias sentiam-se confusas diante das afirmações da escola sobre
como agir com as crianças e adolescentes de forma a contribuir para seu pro-
visã
cesso de ensino-aprendizagem e pediam ajuda. Tal situação vai contra a visão
sobre a ausência na vida escolar dos filhos. Diante das queixas advindas da
escola e da solicitação de um diagnóstico, a compreensão desses familiares
itor

era de que seus filhos poderiam ter uma doença que prejudicava sua apren-
a re

dizagem e comportamento, revelando também o desconhecimento acerca do


processo de medicalização.
Os pais das crianças e adolescentes com diagnóstico e laudo, trouxeram
uma visão bastante cristalizada em relação à suposta doença de seus filhos.
Observamos que isso trazia alívio do sofrimento por um lado, e angústia por
par

outro, pois não sabiam como cuidar do filho. Illich (1975) alerta que o processo
Ed

de medicalização, leva a um diagnóstico que, por sua vez, nomeia uma doença,
dá ao sujeito um papel social, além disso, isenta a família e a sociedade de
sua responsabilidade, localizando no problema no corpo do indivíduo. Nos
ão

relatos, os casos em que não havia melhora após diagnóstico e tratamento,


isso se devia à doença, quando tinha melhora, era por causa do medicamento.
Nenhum familiar compreendia o impacto da trajetória escolar no processo de
s

ensino-aprendizagem, então, não podiam questionar ou dialogar com a escola


ver

na busca de práticas pedagógicas alternativas.


Investigamos os hábitos de leitura da família e a rotina para realização
das tarefas escolares, estudo, descanso e lazer e verificamos que a organização
familiar ao redor dessas tarefas acontecia mas sem horários, fazendo com
que muitas vezes as crianças realizassem as atividades muito tarde da noite

Flávia Lemos - 21982.indd 172 28/02/2020 13:13:10


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 173

ou que ficassem acordadas até de madrugada, sem conseguir acordar pela


manhã pra ir para a escola. Essa situação acontecia em função da jornada
de trabalho dos familiares e da necessidade de cuidar de outros membros da
família, como filhos menores e idosos, ou por se considerarem incapazes de
ajudar os filhos em função de sua escolaridade. Diante do exposto, mais uma
vez não identificamos ausência ou desestrutura familiar, são aspectos que se
referem ao excesso de tarefas e responsabilidades dos familiares.

or
od V
5. As crianças e os adolescentes

aut
As crianças e adolescentes demonstraram grande desconforto em função

R
de sua trajetória escolar marcada por queixas, dificuldades, humilhação e
estigma. Na escola e na família eram vistos como pessoas incapazes, o que
as tornavam inseguras e descrentes da própria capacidade de aprender. Elas

o
nem tentavam ler ou escrever, evitavam essas situações durante os atendimen-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tos porque lhes provocava sofrimento. Quando falavam da escola, algumas


traziam comentários positivos sobre alguns colegas e professores e referiam-
se negativamente a si próprios, pois eles não aprendiam e/ou não tinham
visã
bom comportamento.
A investigação de seu dia-a-dia revelou que quase não brincavam ou
possuíam momentos de lazer, passavam o dia assistindo televisão ou com
aparelhos eletrônicos como celulares, ipads e computadores, pois seus fami-
itor

liares não podiam estar presentes, levar para outros espaços ou permitir que
a re

brincassem na rua com vizinhos devido à violência e insegurança. As crianças


e adolescentes que residiam e estudavam nos bairros periféricos, também
sofriam preconceito social e racismo, como o adolescente J. de 13 anos.
Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
par

de 2014 (Brasil, 2015), mostram que 53,6% da população brasileira se auto-


declarou parda (45%) ou preta (8,6%). Análises acerca da violação de direitos
Ed

no país indicam que:

A prática de racismo institucional pode ser considerada, na atualidade,


ão

a principal responsável pelas violações de direitos das (os) negras (os)


e afrodescendentes. Praticada em estruturas públicas e privadas do país,
essa prática é marcada pelo tratamento diferenciado, desigual, parco com
s

negras (os) e afrodescendentes em políticas como a de educação, traba-


ver

lho e segurança pública e também nos meios de comunicação brasileiros


(Conselho Federal de Psicologia, 2013, p. 18).

Flávia Lemos - 21982.indd 173 28/02/2020 13:13:10


174

O racismo institucional é sistêmico, garante a exclusão dos grupos que


são subordinados em função da raça, como por exemplo, negros, ciganos,
indígenas (Brasil & Seppir, 2013 apud Conselho Federal de Psicologia, 2013a).
Outro estigma que caracterizava os que possuíam diagnóstico era de ser
doente, diziam que não aprendiam e não tinham bom comportamento por-
que eram doentes. Uma fala do garoto de T. de 11 anos, estudante de escola
pública nos marcou, “Oi, eu sou TDAH, por isso não aprendo e não consigo

or
ficar parado” (sic) e saiu correndo pela sala de aula e pela escola. Ninguém

od V
tentava interagir com ele, brincar, ensinar porque ele era “TDAH”.

aut
As crianças que não tinham diagnóstico também achavam que a causa
de seu problema era uma doença, elas se achavam incapazes de aprender,
muitas vezes, o comportamento agitado e agressivo refletia isso. Como no

R
caso do menino L, que não ficava em sala de aula, cuspia, agredia física e
verbalmente quando chamavam sua atenção. Após construção de vínculo e

o
aproximação, descobrimos que não sabia ler e escrever e que por isso não
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ficava em sala, informação ignorada pelos próprios professores e familiares.
A direção da escola já tinha colocado uma condição para a família que a
criança permaneceria na escola apenas se fosse ao psiquiatra, ao psicólogo.
L. em seu intenso sofrimento, sabia apenas agredir porque era agredido per-
visã
manentemente dentro da escola.

6. A intervenção em orientação à queixa escolar


itor
a re

Souza (2007a) apresenta a proposta de Orientação à Queixa Escolar


(OQE) desenvolvida no serviço-escola do Instituto de Psicologia da Univer-
sidade de São Paulo. Essa proposta de atendimento baseia-se na abordagem
crítica em psicologia escolar, que considera que a gênese da queixa escolar
par

apresenta seu centro no processo de escolarização, por isso envolve a escola


e seus personagens, como alunos, profissionais e familiares, que constituem
Ed

uma rede de relações complexas. Além dessa rede de relações, há a compreen-


são de que o homem se constitui numa relação dialética com a sociedade,
a partir de aspectos sociais, culturais, históricos e políticos. Dessa forma, a
ão

investigação da queixa, assim como a intervenção leva em consideração todos


esses elementos e personagens, não apenas o corpo do sujeito. O objetivo é
propor ações reflexivas e que fortaleçam todos os envolvidos na direção da
s

compreensão de forma mais complexa acerca do que levou a queixa e, a partir


ver

daí, que os participantes possam agir de forma a construir novas concepções


e práticas e visem a transformação da situação.
Nesse sentido, as intervenções realizadas pelos estagiários foram desen-
volvidas com as crianças, os adolescentes, seus familiares e na escola, com
professores e gestores.

Flávia Lemos - 21982.indd 174 28/02/2020 13:13:10


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 175

Conforme reiteram Asbahr & Souza (2007) e Souza (2007b), as con-


dições de trabalho do professor, a gestão da escola e as políticas públicas
não favorecem o desenvolvimento de práticas pedagógicas humanizadoras.
Garrido e Moysés (2010) propõem que a melhor estratégia de enfrentamento
à medicalização da educação é por meio da formação inicial e continuada dos
professores, com o propósito de elaborar práticas pedagógicas mais criativas
e humanizadas, tendo como base a compreensão sócio-histórica do desen-

or
volvimento e a valorização docente. O trabalho com os profissionais focou a

od V
reflexão e elaboração de práticas pedagógicas.

aut
Os pais e professores receberam informações acerca do desenvolvimento
humano a partir da psicologia histórico-cultural. Vigotski (2007) estudou os

R
processos psicológicos humanos e compreendeu que o processo de trabalho,
a atividade social e histórica constitui o universo social e uma cultura acu-
mulada, sendo que o homem ao se inserir nesse universo, se apropria dessa

o
cultura e se modifica. A transmissão cultural realiza a função mediadora entre
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

o processo histórico e o indivíduo e dá condições para o desenvolvimento do


psiquismo humano. Essa mediação acontece a partir do signo que, por meio da
linguagem, favorece o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
visã
A inserção na cultura gera aprendizado, portanto, aprendizagem e desen-
volvimento estão ligados desde o nascimento da criança. A teoria da área de
desenvolvimento potencial pode contribuir para compreender esse processo.
O autor propõe a constituição de dois níveis de desenvolvimento: o primeiro
itor

é desenvolvimento efetivo da criança, que se caracteriza pelo o que foi con-


a re

cluído; o segundo é o desenvolvimento potencial, que se refere às ativida-


des que a criança não faz sozinha, mas consegue fazer com a mediação dos
adultos, sendo que isso é possível porque há processos em desenvolvimento.
Para Vigotski (2006, p. 113) “o estado de desenvolvimento mental da criança
par

só pode ser determinado referindo-se a pelo menos dois níveis: o nível de


desenvolvimento efetivo e a área de desenvolvimento potencial”. O autor
Ed

conclui que a aprendizagem se adianta ao desenvolvimento, a escola deve ter


a tarefa de propor atividades que possibilitem o desenvolvimento do que falta
ão

à criança e não focar apenas aquilo que ela já faz sozinha e tem desenvolvido.
A escola tem papel fundamental no desenvolvimento das funções psicológicas
superiores por meio da mediação do professor.
s

Além das informações sobre desenvolvimento humano, acolhemos os


ver

profissionais em relação ao sofrimento causado por sua condição de trabalho,


oferecemos um espaço de escuta, reflexão para elaboração de novas práticas
pedagógicas, tendo como base a mediação, o uso do brincar, atividades práticas
e dinâmicas, maior participação dos alunos e trabalhos em pares. Conseguimos
a parceria com a maior parte dos professores. O brincar é muito importante

Flávia Lemos - 21982.indd 175 28/02/2020 13:13:10


176

para o desenvolvimento humano e para o processo de ensino e aprendizagem


para todas as faixas etárias, pois permite a socialização, desenvolvimento da
linguagem, apropriação da cultura, expressão e elaboração de experiências,
dentre outros. O professor deveria considerar o brincar como um objeto de
muito relevante tanto em sua formação como em sua prática pedagógica
(Vinhoti & Santos, 2007).
Os pais foram atendidos individualmente e em grupo. Nesses atendimen-

or
tos, além de levarmos informações acerca do desenvolvimento e aprendiza-

od V
gem, buscamos destacar situações em que era possível identificar realizações

aut
de seus filhos, por meio da exibição de produções dos mesmos, bem como de
ações desenvolvidas nos grupos e atendimentos individuais (Souza, 2007c).

R
Esclarecemos todas as dúvidas, apresentamos informações sobre seus direitos
e deveres em relação ao acompanhamento da vida escolar de seus filhos, como
por exemplo, de discutir a proposta pedagógica da escola, o que é garantido

o
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Rio Grande do Norte, 2011).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Esse processo também foi favorecido pela construção de vínculos com
outras famílias que vivenciavam situações semelhantes, pela troca de informa-
ções, reflexão em conjunto sobre possibilidades de mudanças a serem feitas na
visã
rotina familiar e dos filhos para que esses pudessem ter o momento de brincar,
que não se restringisse aos aparelhos eletrônicos, assim como de realizar as
atividades de estudo, horário de dormir e hábito de leitura tendo em vista a
importância da imersão no universo da leitura e da escrita, de suas funções
itor

e usos sociais (Mello, 2010). A participação da família nesses atendimentos


a re

possibilitou a mediação dos conflitos familiares causados pela queixa escolar


vivenciada pelos filhos.
Durante os encontros com os pais levamos informações e reflexões acerca
do fenômeno da medicalização. Todos demonstraram resistência em ampliar
par

a compreensão dos aspectos que influenciam o desenvolvimento, o ensino e


a aprendizagem que não fossem biológicos. Por algumas vezes precisamos
Ed

usar estudos de caso e filmes, pois por meio da arte e da experiência esté-
tica, os participantes se distanciam da realidade, mas ao mesmo tempo trazia
elementos dela, o que favorecia a reflexão (Santos et al, 2013). No caso de
ão

H., após alguns meses de atendimento, a criança recebeu laudo de avaliação


neuropsicológica com o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista Leve.
O documento revelava apenas os resultados de testes aplicados, sem relato
s

de nenhuma sessão livre com a criança, investigação da trajetória escolar e


ver

contato com a escola. Além disso, os instrumentos utilizados por profissionais


da área médica para diagnóstico de supostos transtornos de déficit de atenção
são amplamente questionados por trabalhos das áreas da Medicina e da Psi-
cologia (Lima, 2005; Souza, 2013).

Flávia Lemos - 21982.indd 176 28/02/2020 13:13:11


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 177

Os atendimentos em grupo revelaram uma criança tímida e insegura, pri-


vada de brincar com outras crianças por problemas de saúde dos pais, mas que
no contato com os outros e a mediação das estagiárias de psicologia, passou
a falar, a expressar seus sentimentos, a ter comportamentos espontâneos, a
acreditar que era capaz de aprender. A professora de H. não acreditava mais
que ele tinha TEA, ele não se achava mais doente, por fim, sua mãe começou
a acreditar nas possibilidades de desenvolvimento e de aprendizagem de seu

or
filho. Elaboramos um relatório com o relato e análise do desenvolvimento da

od V
criança e sugerimos que a mãe procurasse outra avaliação, pois consideramos

aut
que os termos diagnósticos não procediam.
O caso de A. deve ser destacado, pois o mesmo tinha hipótese de dislexia.
Segundo relato da professora, o estudante apenas reconhecia as letras, tanto

R
ele quanto sua família não acreditavam que era capaz de aprender. Porém, em
três meses de atendimento, com a valorização de seu raciocínio, a parceria

o
da família e da escola, ele passou a ler e a escrever frases, com a certeza de
aC
que não tinha nenhum transtorno.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

As estratégias usadas com as crianças buscavam incentivar a expressão, a


criatividade, a fala, elevar a consciência sobre suas atividades, inserir a leitura
e escrita para trabalhar sua função social e resgatar em todos a crença de que
visã
eram capazes de aprender, sempre por meio de brincadeiras e jogos. Aqueles
que sabiam mais ajudavam os que sabiam menos, sem ofensas, rótulos e humi-
lhações, gradativamente, todos começaram a tentar fazer as atividades com
itor

mais alegria, fato que se confirmou em suas escolas. O diálogo, a expressão


a re

do sentimento, a verbalização do que sentiam passaram a constituir as rela-


ções de aprendizagem, principalmente em casos em que tivemos a parceria
da família e da escola.

7. Considerações finais
par
Ed

Interpretar, compreender, intervir nos comportamentos, ações, represen-


tações, significados humanos são grandes desafios para as ciências humanas e
sociais. A Psicologia constitui-se enquanto uma das áreas de conhecimento que
ão

busca interpretar tais aspectos. Assim, desenvolveu um corpo epistemológico


que ao dialogar com demais áreas de conhecimento, busca construir teorias
explicativas para aspectos do desenvolvimento e da aprendizagem humanos
s

a partir de compromissos ético-políticos (Yamamoto, 2012).


ver

Compreender o processo de desenvolvimento humano e a constituição


das práticas educativas seja na família, na escola, no campo social permite
esclarecer algumas dimensões da vida e das relações humanas. Muitas teorias
no campo da Psicologia, da Psicologia do Desenvolvimento, da Aprendizagem,
da Psicologia Educacional e Escolar apresentam subsídios importantes para

Flávia Lemos - 21982.indd 177 28/02/2020 13:13:11


178

compreendermos e interpretarmos as ações humanas a partir de parâmetros que


consideram as necessidades, os desafios e os processos que constituem cada
um de nós a partir dos contextos sociais, históricos, culturais e relacionais.
Os questionamentos feitos ao processo de medicalização permitem com-
preender que há uma complexa rede de relações que constitui o aprendizado
escolar. Não podemos simplificar no âmbito do orgânico, do familiar, das
características individuais fenômenos educacionais que envolvem dimen-

or
sões sociais, culturais, políticas, institucionais, pedagógicas e relacionais.

od V
Precisamos sim considerar esses aspectos em nossa análise a respeito dos

aut
encaminhamentos escolares, das dificuldades apresentadas em cada momento
do trabalho pedagógico.
Ao compreendermos a escolarização em sua dimensão ético-política

R
e analisarmos os compromissos assumidos pela Psicologia nesse contexto
estaremos contribuindo para a democratização da sociedade e da escola bem

o
como para a emancipação humana. Deixamos muito clara essa posição em
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


documento aprovado nacionalmente por psicólogas (os) que atuam no campo
da Educação: Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Edu-
cação Básica (Conselho Federal de Psicologia, 2019).
Ampliar este diálogo e esta forma de atuação profissional com educa-
visã
dores, pais, escolas e sociedade é uma das tarefas urgentes para a Psicologia
Escolar e Educacional.
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 178 28/02/2020 13:13:11


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 179

REFERÊNCIAS
Asbahr, F. S. F. ; Souza, M. P. R. (2007). Buscando compreender as políticas
públicas em educação: contribuições da Psicologia Escolar e da Psicologia
Histórico-Cultural. In: Meira, Marisa Eugênia Melillo; Facci, Marilda Gon-
çalves Dias. (Org.). Psicologia Histórico-Cultural. Contribuições para o

or
encontro entre a subjetividade e a educação. 1, 185-220. (1.ed.). São Paulo:

od V
Casa do Psicólogo,

aut
Checchia, A. K. A. ; Souza, M. P. R. de. (2016). A disciplina Psicologia da

R
Educação na formação de professores: reflexões a partir da Psicologia Educa-
cional e Escolar. In: Herculano Ricardo Campos; Marilene Proença Rebello
de Souza; Marilda Gonçalves Dias Facci. (Org.). Psicologia e Políticas Edu-

o
cacionais. 1, 297-319. (1. ed.) Natal: EDUFRN - Editora da Universidade
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Federal do Rio Grande do Norte,

Conselho Federal de Psicologia (2013). Referências técnicas para Prática de


visã
Psicólogas(os) em políticas públicas de relações raciais. Conselho Federal
de Psicologia. Brasília: CFP.

Conselho Federal de Psicologia (2019). Referências técnicas para a Atuação


itor

de Psicólogas (os) na Educação Básica. Conselho Federal de Psicologia.


a re

Brasília: CFP.

Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional


Queixa Escolar (2015). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos
par

silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos. São


Paulo: Casa do Psicólogo, (2. ed.).
Ed

Conrad, Peter (2007). The Medicalization of Society: On the Transformation


of Human Conditions Into Treatable Disorders. Baltimore: The Johns Hopkins
ão

University Press.
s

Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (2015). Nota técnica:


ver

o consumo de psicofármacos no Brasil, dados do Sistema Nacional de Geren-


ciamento de produtos controlados ANVISA (2007-2014). Recuperado em 31
de janeiro, 2016 de http://medicalizacao.org.br/wp-content/uploads/2015/06/
NotaTecnicaForumnet_v2.pdf

Flávia Lemos - 21982.indd 179 28/02/2020 13:13:11


180

Garrido, J., & Moysés, M. A. A. (2015) Um panorama nacional dos estudos


sobre a medicalização da aprendizagem de crianças em idade escolar. Em
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional
Queixa Escolar (Orgs.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos
silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (2. ed.).
(pp. 71-110). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

or
Illich, I. (1975). A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Botafogo,
RJ: Editora Nova Fronteira. Recuperado de https://www.nescon.medicina.

od V
ufmg.br/biblioteca/imagem/3205.pdf

aut
Leonardo, N. S. T. & Suzuki, M. A. (2016) Medicalização dos problemas

R
de comportamento na escola: perspectivas de professores. Fractal, Rev. Psi-
col., 28(1), 46-54.

o
Lima, R. C. (2005). Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


bioidentidades. 1. 161p (1. ed.). Rio de Janeiro: Relume Dumará/Ediouro.
Machado, A. M. (2002). Avaliação psicológica na educação: mudanças neces-
sárias. In: Proença; Rocha; Tanamachi. (Org.). Psicologia e Educação: desa-
visã
fios teórico-práticos. 1, 143-169. (2. ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo, .
Mello, S. M. (2010) Ensinar e Aprender a Linguagem Escrita na perspectiva
itor

histórico-cultural. Psicologia Política, 10(20), p. 329-343, jul./dez.


a re

Oliveira, C. B. E. & Marinho-Araújo, C. M. (2010) A relação família-escola:


intersecções e desafios. Estudos de Psicologia, Campinas, 27(1), 99-108,
janeiro – março.
par

Patto, M. H. S. (2008). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão


e rebeldia (3. ed.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
Ed

Rio Grande do Norte (2011). Conselho Estadual dos Direitos da Criança e


do Adolescente. Estatuto da Criança e do Adolescente. (6. ed.). Fortaleza:
ão

CONSECRN, 174 p.
Santos, K. Y. P. dos, et al (2013). O cinema usado como intervenção no
s

contexto de medicalização do social no contemporâneo. Em Anais do III


Seminário Internacional Educação Medicalizada: reconhecer e acolher as
ver

diferenças (pp. 39-41). São Paulo, SP.


Souza, B. de P. (2007a). Apresentando a Orientação à Queixa Escolar. Em
Souza, B. de P. (Org.). Orientação à queixa escolar (pp. 97-118). São Paulo,
SP: Casa do Psicólogo.

Flávia Lemos - 21982.indd 180 28/02/2020 13:13:11


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 181

Souza, B. de P. (2007b). Funcionamentos escolares e a produção de fracasso


escolar e sofrimento. Em Souza, B. de P. (Org.). Orientação à queixa escolar
(pp. 241-278). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
Souza, B. de P. (2007c). Trabalhando com dificuldades na aquisição da língua
escrita. Em Souza, B. de P. (Org.). Orientação à queixa escolar (pp. 137-164).
São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

or
Souza, B. de P. (2014). Puxando o tapete da medicalização do ensino: uma

od V
outra educação é possível. Nuances: Estudos sobre Educação, Presidente

aut
Prudente-SP, 25(1), 299-316, jan./abr. 2014. Recuperado de http://revista.fct.
unesp.br/index.php/Nuances/article/viewFile/2733/2533

R
Souza, M. P. R de (2013). Patologização do Fracasso Escolar e Medicalização
do Ensino. In: Farias, A. M; Muraro, D. N., Eidt, N. M. (Org.). Anais do V

o
Simpósio de Pesquisa e Pós-graduação em Educação e XV Semana de Edu-
aC
cação [livro eletrônico]: Da formação à ação docente: impactos na educação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

escolar. (1. ed.). Londrina: EDUEL, 2013, 1, 23-46.


Souza, M. P. R de (2010). Retornando à patologia para justificar a não apren-
visã
dizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendi-
zagem em tempos de neoliberalismo. In: Conselho Regional de Psicologia de
São Paulo e Grupo Interinstitucional Queixa Escolar. (Org.). Medicalização
de Crianças e Adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões
itor

sociais à doença de indivíduos. 1, 57-68. São Paulo: Casa do Psicólogo,


a re

Souza, M.P.R de (2008). Problemas de aprendizagem ou problemas na esco-


larização? Repensando o cotidiano escolar à luz da perspectiva histórico-crí-
tica em Psicologia. In: Trento, D.; Oliveira, M; Rego T.. (Org.). Psicologia,
Educação e as Temáticas da Vida contemporânea. 1, 177-196. (2. ed.). São
par

Paulo: Moderna.
Ed

Vigotski, L. S. (2007). A formação social da mente: o desenvolvimento dos


processos psicológicos superiores (7. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.
ão

Vigotski, L. S. (2006). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade


escolar (10. ed.). Em Vigotski, L. S., Luria, A. R., & Leontiev, A. N. Lingua-
gem, desenvolvimento e aprendizagem (pp. 103-117). São Paulo, SP: Ícone.
s
ver

Vinhoti, C. R. & Santos, G.C. (2007). O brincar e a educação. Arq Mudi.


1(Supl.2), 532-6.
Yamamoto, Oswaldo H. (2012). 50 anos de profissão: responsabilidade social
ou projeto ético-político? Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 6-17.
https://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932012000500002

Flávia Lemos - 21982.indd 181 28/02/2020 13:13:11


Flávia Lemos - 21982.indd 182
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:11
PROCESSOS DE MEDICALIZAÇÃO E
AS LACUNAS DA EFETIVAÇÃO DA
EQUIDADE NO SUS: alguns apontamentos

or
V
Flávia Cristina Silveira Lemos

aut
Dolores Galindo
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Geise do Socorro Lima Gomes

CR Renata Vilela Rodrigues

do
1. Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) está sustentado pelos princípios de


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
equidade, de integralidade, de universalidade e de intersetorialidade. Desde sua
aprovação, em 1990, e de sua efetivação, no Brasil, há setores que questionam
ra
a sua efetividade. Mesmo após esses anos, ainda há muito a efetivar e a lutar
para que os princípios, o financiamento, a cobertura universal, a integralidade,
i
a intersetorialidade e a equidade se constituam, de fato, como idealizados por
rev

todos que reivindicaram e participaram da construção desse sistema. A partir


da reforma sanitária e da abertura da política brasileira, da promulgação da
to

Constituição de 1988 e da realização da VIII Conferência Nacional de Saúde,


entre outras práticas, há um constante movimento para manter o SUS e ampliar
ara

o acesso a essa política, aumentar o financiamento público destinado a ela,


formar profissionais que possam efetuar com qualidade o atendimento nas
ver di

diferentes regiões, Estados e municípios do Brasil (Paim, 2009).


Movimentos sociais populares, sobretudo os sanitaristas, de saúde cole-
op

tiva e associações, lutaram para construir um sistema de saúde baseado em


direitos sociais e universais, em uma perspectiva comunitária e de produção
E

de singularização no atendimento e na oferta da atenção (Gohn, 2010; Fer-


reira Neto & Kind, 2011). Entretanto, o atendimento gratuito, o aumento da


cobertura e a efetivação dos pilares do SUS configuram-se ainda como um
desafio. As lutas frente aos interesses internacionais contra a privatização e a
precarização dos serviços de saúde realizados são frequentes e não cessam. Os
planos de saúde, muitos dos quais provenientes de outros países vêm crescendo
cada vez mais com capital de empresas e ainda recebem subsídios do Estado,
em cerca de 20% no abatimento de impostos. A atenção nos planos privados
tem uma tendência hospitalocêntrica, pautada na prescrição de exames e de
medicamentos. Assim, compromete os princípios do SUS e opera intensa
medicalização da sociedade (Paim, 2009). Não podemos esquecer ainda a

Flávia Lemos - 21982.indd 183 28/02/2020 13:13:11


184

própria privatização do SUS, a qual ocorre de duas maneiras principais: 1)


hospitais públicos inteiros passam a ser gerenciados por empresas privadas, a
chamada terceirização, e 2) alas ou leitos de hospitais particulares são finan-
ciados com dinheiro público.
O que vem sendo reconhecido como crise do SUS encontra ancoragem
na crise do modelo do bem-estar social, que, na década de 1970, na Europa,
começa a ceder lugar para as ideias neoliberais, desenvolvidas na última

or
década do século XX, com modificações nas formas de governamentalidade,

od V
em função do desenvolvimento de uma fobia do Estado (Foucault, 2008;

aut
Miller & Rose, 2012) e do crescimento das parcerias entre público e privado.
O surgimento da arte de governar neoliberal, “na reflexão de Foucault, indica
significativas transformações nas práticas de governo de pessoas, populações

R
e da circulação de coisas” (Rodrigues, 2013 p. 136). Nos processos neolibe-
rais, o Estado tem por função regular uma gestão governamental de regula-

o
mentação legal e menos financiamento, de modo a exercer uma vigilância e
aC
monitoramento sobre a sociedade a funcionar enquanto empresas e por meio

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do mercado como termômetro de avaliação política e econômica.
Em outras palavras, o Estado busca administrar as condutas das pes-
soas, sem destruir a sua existência e autonomia, o que é possível através da
visã
proliferação de peritos, da disputa de interesses, da constituição de comitês e
conselhos representativos para a tomada de decisão com a participação entre:
cidadãos, fundações, organizações não governamentais, bancos, corporações
itor

multinacionais e uma variedade de empresas. A saúde entra nas prateleiras


a re

de um grande e altamente lucrativo mercado da vida (Miller & Rose, 2012).


Numa ótica neoliberal, o papel do Estado consiste criar e preservar o marco
institucional apropriado para o desenvolvimento de algumas práticas voltadas
para a segurança da sociedade, nos aspectos jurídicos e de acompanhamen-
tos das mesmas, pelos contratos e incentivos. Ou seja, o governo neoliberal
par

intervém “sobre a própria sociedade em sua trama e em sua espessura” (Fou-


Ed

cault, 2008, p. 199).


Para Foucault (2008), a gestão estatal no neoliberalismo passa a ser
fundamental para o desenvolvimento de uma biopolítica da população e do
ão

capitalismo direcionado para a liberdade econômica do Mercado. Adota-se


o conceito de biopolítica “para designar o que faz com que a vida e seus
mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber
s

um agente de transformação da vida humana”. Nessa perspectiva, a própria


ver

vida torna-se objeto de lutas políticas e econômicas (Foucault, 1988, p. 134).


Em outras palavras, as biopolíticas formam um conjunto de estratégias de
regulação da vida, tendo como alvo os corpos das populações e objetivando
produzir mais vidas, mais saúde, expressos em uma multiplicidade de dados
estatísticos, médias e índices (Prado-Filho, 2010).

Flávia Lemos - 21982.indd 184 28/02/2020 13:13:12


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 185

Gómez (2004), ao analisar o contexto biopolítico latino-americano, mos-


tra que a condição biopolítica na América Latina, ao se propor o comprome-
timento com o corpo e com o dever social, está ainda bastante relacionada às
formas de governo as condutas praticadas desde o século XIX, no liberalismo.
De acordo com Carvalho (2001), há, no Brasil, atualizações de processos
anteriores ao liberalismo e neoliberalismo, tais como: patrimonialismo, car-
torialismo, clientelismo, nepotismo, corporativismo e coronelismo.

or
É possível afirmar que essas práticas entrecruzadas criam efeitos especí-

od V
ficos na oferta de políticas públicas brasileiras. Nesse sentido, Ferreira Neto

aut
(2011) ressalta que o SUS foi aprovado e começa a ser efetivado, no Brasil,
em pleno período de efervescência neoliberal. Inclusive, nesse momento,
era o país governado pelo Presidente Fernando Collor de Mello, o qual abriu

R
as portas brasileiras para o capital estrangeiro e iniciou as privatizações. Os
movimentos sociais conseguem criar inflexões frente às pressões externas e

o
internas de privatização das políticas de saúde e dos interesses fortíssimos
aC
dos empresários defensores da lógica hospitalocêntrica, de internação e de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

medicalização de cada ato cotidiano.


Conforme Castiel (2010), em lugares como, por exemplo, o Brasil, é
comum visualizarmos uma forma de guerrilha que se tornou mal disfarçada
visã
e cotidiana, reinstituída nas desigualdades econômicas e sociais, nos eventos
cada vez mais incomuns de violência urbana, que se relacionam muitas vezes
às ações prepotentes de instituições oficiais encarregadas da segurança. Entre-
itor

tanto, em meio a essas estratégias de segurança, vemos emergir, a partir do


a re

século XXI, outra forma ainda enviesada de interpretar as diferenças sociais


nos países latino-americanos: a regulação biopolítica das características bioló-
gicas (Goméz, 2004). Essas regulações “sutis” das condições vitais dos seres
humanos, exercidas pelas biopolíticas empreendedoras dos direitos, consti-
tuiriam o modo atual de a existência do poder político e econômico ganhar
par

espaço e pressionar cada vez mais, em termos de busca de uma hegemonia


Ed

enquanto racionalidade gerencial das condutas.


Apesar de as práticas militares violentas e diretas de autocracia ainda per-
durarem e serem convocadas como maneira de governamentalidade securitária
ão

juntamente aos dispositivos diplomáticos, as polícias da saúde e da educação


articuladas às de seguridade vão tecendo mais interferência normalizante e
mediadora de processos de desigualdade, no acesso às oportunidades, pela
s

triagem das políticas sociais que vão se tornando compensatórias e de gestão


ver

de riscos, encaminhando para a rede privada os que são colocados nos gru-
pos chamados de extremamente vulneráveis pelos gestores dessas artes de
governar (Foucault, 2008).
A biopolítica tenta rotular “um novo método de racionalidade política
e ordenação das populações que substitui a velha repressão coercitiva direta

Flávia Lemos - 21982.indd 185 28/02/2020 13:13:12


186

por uma regulação extensa e constante” (Rodríguez, 2012, p. 551 – tradução


nossa). Como efetivar o princípio de equidade no SUS, no âmbito de uma
racionalidade neoliberal de governo? O SUS, construído em aliança com
os movimentos sociais, desafia a racionalidade mercadológica e, ao mesmo
tempo, nela se insere, por meio de uma privatização crescente dos quadros
laborais e de serviços terceirizados.
A biopolítica consistiu na emergência do corpo da população como espé-

or
cie a ser gerido, para um fazer viver e o deixar morrer. O governo da vida
entra na história, em nome da saúde e da segurança, de acordo com Foucault

od V
(1988). A medicina social, em articulação com outros saberes, tais como os da

aut
psicologia, da educação, do direito, da pedagogia, da estatística, da geografia,
da epidemiologia, da demografia, da ciência política, da administração e da

R
economia, passa a sustentar as práticas biopolíticas com a medicalização das
condutas. Na biopolítica, o poder, ou biopoder, tem como função fazer viver

o
e deixar morrer, através da criação de estratégias de regulação para intervir
aC
no aumento da longevidade, controlar acidentes e eventualidades, melhorar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a deficiência genética humana (Foucault, 2005; Foucault, 2008).
À biopolítica cabia incitar e prescrever normas de saúde como estilo de
vida e preocupação com o desenvolvimento das nações, com a economia dos
visã
recursos em tratamentos, com a prevenção de epidemias, com a manutenção
e cuidado com a força de trabalho, por meio da higienização urbana e pela
educação em saúde, sob a gerência dos Estados nascentes (Foucault, 1979).
itor

Com efeito, medicalizar era criar subjetividades organizadas pela intensa


preocupação em obedecer às normas de saúde, estritamente, em nome da
a re

segurança da população e da gestão do cuidado da vida.


De acordo com Foucault (1979; 2011), deve-se ter cuidado ao analisar
a medicalização enquanto um conjunto de práticas em alguns aspectos, por
exemplo: lembrar que há uma positividade das relações de saber e de poder
par

em que, na analítica do poder não há apenas opressão e dominação, pois há


também incitação e prescrição negociada de condutas; atentar para que as
Ed

situações de medicalização autoritária dos indigentes e tentativas intensivas


de tornar os processos medicalizantes hegemônicos e de dominação, em face
de outras formas de cuidado e atenção em saúde.
ão

Em países como o Brasil, em determinados lugares e com alguns grupos


sociais, praticamente existe pouca incidência medicalizante e, em outros e com
certos segmentos da população, ocorre o contrário, uma intensa medicalização.
s

Assim, onde não há saneamento básico, mínima urbanização em bairros, falta


ver

de acesso às vacinas, por exemplo, ninguém irá fazer uma crítica à medi-
calização, em sua positividade de cuidado em saúde. Todavia, essa intensa
medicalização em metrópoles e interiores, sobretudo no Sudeste e Sul do país
e em setores, grupos, classes e lugares do Norte, Nordeste e Centro-Oeste,
está se transformando e se aliando a outras práticas de cuidado à saúde.

Flávia Lemos - 21982.indd 186 28/02/2020 13:13:12


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 187

Esta se dá com a prática excessiva de exercícios físicos, de dietas rigo-


rosas, do uso indiscriminado de medicamentos, da falta de atenção básica
em saúde, do foco em hospitais e exames e de outras tecnologias nomeadas
como duras, tais como internação frequente e de longa duração, excesso de
cirurgias plásticas e cesáreas etc.
Uma gestão da população ocorre por recortes de grandes segmentos e
não singulariza, ou seja, não materializa práticas equitativas. Com efeito, é

or
o poder disciplinar que individualiza as condutas e pode efetuar uma prática

od V
de direitos e liberdade, em relação, para que a equidade seja concretizada.

aut
Todavia, a individualização posta na lógica disciplinar, desde final do século
XVII, atua pela culpabilização, caso as normas não sejam cumpridas, e implica
sanções, comparações, vigilâncias e hierarquias, o que difere do plano equi-

R
tativo enquanto singularização.
Para Foucault (1999), a disciplina dos corpos fomenta docilidade, sub-

o
missão política e aumento da produtividade. Portanto, está mais voltada para
aC
as práticas de dietas rigorosas, de exercícios físicos administrados, de gestão
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de risco e perigo de adoecimentos, de vigilância do cotidiano por profissionais


de saúde e menos por equidade. Assim, está mais próxima da medicalização
capilar do que da subjetivação produtora de coletivos e de protagonismos
visã
produtores de saúde coletiva. A fim de abordar as lacunas na efetivação da
equidade no SUS, este artigo está dividido nos seguintes tópicos: equidade
no SUS, medicalização e racimos institucionais; equidade no SUS, medicali-
itor

zação e equidade no SUS, medicalização e territórios de cidadania; equidade,


a re

medicalização, acesso à alimentação e privatização da saúde; equidade no


SUS, medicalização e os processos de subjetivação singularizantes.

2. Equidade no SUS e medicalização


par

O financiamento da promoção de saúde nos estabelecimentos de aten-


Ed

dimento à saúde é precário e insuficiente. Se nos detivermos nos índices da


política de internação compulsória em comunidades terapêuticas, por exemplo,
deparamo-nos justamente com a crescente seletividade racista e de classe nessa
ão

prática. Nesse caso, podemos nos referir a uma medicalização dos indigentes
de cunho autoritário. Segundo Barata (2009), as iniquidades fazem mal à
saúde coletiva e mental. A discriminação, seja contra negros, seja aos povos
s

indígenas, quilombolas e ribeirinhos, é um desafio para o Sistema Único de


ver

Saúde, no Brasil.
Nessa direção, Wieviorka (2007) ressalta que hoje é muito comum o
racismo institucional nas instituições, através das práticas cotidianas. Tornou-
se uma rotina nos atendimentos e situações de trabalho variadas, afetando
a saúde, a educação, o acesso ao trabalho e às promoções, nesse contexto,

Flávia Lemos - 21982.indd 187 28/02/2020 13:13:12


188

configurando situações de violações de direitos e, por vezes, de violência.


Barata (2004) destaca que a percepção de ser alvo de racimo, a história de
desvantagem na vida e o fato da concentração em locais de grupos minoritá-
rios étnico-raciais desencadeiam muitos efeitos deletérios na saúde, de modo
geral. A reprodução de preconceitos e processos de discriminação racial e
étnica atravessa as práticas de atenção em saúde, em seus diversos níveis, e
materializa certo vazio do princípio da equidade ainda muito presente, no país.

or
Ainda vale ressaltar que a segregação ocorre em internamentos e aprisio-

od V
namentos, na estigmatização da oferta da atenção com ofensas e na atribuição

aut
das nomeações com constantes inferiorizações dos povos negros. A política
de saúde, nos presídios e em comunidades terapêuticas, em asilos e hospitais
psiquiátricos, em hospitais de custódia, em unidades socioeducativas de pri-

R
vação de liberdade de adolescentes e em abrigos para pessoas em situação de
rua, muitas vezes é limitada por perspectivas moralizantes dos funcionários

o
da rede, os quais rejeitam atender a essa parcela do povo por preconceito
aC
étnico-racial e de classe.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Conforme Castel (2008), há uma gestão diferencial de grupos étnico-ra-
ciais com a prática frequente de discriminações negativas. Esses segmentos são
colocados no lugar de autóctones da República, pois são privados de acessos
visã
igualitários aos atendimentos e serviços de cuidado. O racismo institucional
cria bloqueios escolares, neutralizações sociais, desigualdades no acesso às
políticas de saúde. Os relatórios do Fundo das Nações Unidas para a Infância
itor

– UNICEF (1998; 2001; 2003; 2009) – têm assinalado esses indicadores no


a re

Brasil. Os documentos referentes à situação da infância publicam o acompa-


nhamento das lacunas políticas e realizam recomendações diante dos desafios
e paradoxos enfrentados no SUS, no que tange aos direitos de crianças e
adolescentes à saúde. Ainda nesses documentos, é possível verificar alertas e
advertências ao país, quanto aos atravessamentos no sistema de saúde público
par

pelos vetores raciais, étnicos, de gênero, de classe, territoriais, de escolaridade


Ed

e faixa etária, na oferta e na cobertura do atendimento, operando desigualdades


e criando/mantendo iniquidades (UNICEF, 98; 2001; 2003; 2009).
O Fundo das Nações Unidas para a Infância foi criado em 1945, com
ão

o objetivo de atender a crianças vítimas da II Guerra Mundial que ficaram


órfãs. Esse órgão estendeu suas ações para o que nomeou como saúde mater-
no-infantil e, depois, para os direitos das crianças e dos adolescentes de modo
s

geral. Hoje, ele está vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) e
ver

atua nos países que ratificaram os documentos das agências multilaterais,


como o Brasil (Lemos, 2009).
Na gestão presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Secre-
taria de Igualdade Racial e a Secretaria de Política para as Mulheres, ambas
com estatuto de ministério, sendo importante conquista dos movimentos

Flávia Lemos - 21982.indd 188 28/02/2020 13:13:12


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 189

negros e de mulheres. Também se ampliou a política de cotas raciais, nas


universidades públicas, expandindo-se o ensino técnico em nível superior,
ao se transformar escolas técnicas estaduais em institutos federais, com um
aumento significativo de vagas. Além de aumentar bolsas para os cotistas de
extensão nas universidades, promoveu-se a criação de editais de pesquisa
específicos para estudos sobre discriminação de gênero e racial. Por fim, é
oportuno ressaltar a política de incentivo à agricultura familiar e à habitação

or
popular, realizada com objetivos de inserção social. Foram igualmente fir-

od V
mados convênios entre os ministérios e as universidades, para a formação de

aut
professores e trabalhadores da saúde, da assistência social e da segurança em
cursos de especialização, por meio da educação em direitos humanos. Essas
políticas vêm ganhando intersetorialidade com o SUS e resultam em ganhos

R
substanciais para os povos discriminados.
A equidade no território é outra questão relevante a analisar. As segre-

o
gações urbanas; a ausência de cobertura do saneamento básico em grande
aC
parte das cidades brasileiras; a falta de acesso à cultura e à mobilidade por
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

transportes com dignidade e valores compatíveis com a renda dos moradores


das periferias; dificuldades no acesso ao esporte em áreas públicas e áreas
verdes, como parques e bosques; ausência de calçadas niveladas e sinaliza-
visã
ção em muitas vias; ausência de coleta de lixo diária em diversos bairros;
ausência de passarelas e faixas de pedestres que acarreta riscos de acidente
e atropelamentos; altos preços de imóveis e luta pela habitação – enfim, há
itor

inúmeras questões a pensar e a problematizar, na produção da saúde mental


a re

e coletiva nos territórios (Gohn, 2010; Penido, 2013).


No território brasileiro, há disparidade na distribuição de profissionais,
tanto em termos de região quanto de Estados e municípios. Ainda há dispa-
ridade na relação zona urbana e zona rural, cidades pequenas e médias, no
interior do país, e em áreas do semiárido nordestino e da Ilha do Marajó, no
par

Pará. Ainda é possível localizar as desigualdades em função de bairros nas


Ed

cidades grandes, em que não há cobertura ou em que ela é muito baixa na


atenção primária em saúde (UNICEF, 1998; 2001; 2003).
O UNICEF (1998; 2009) vem ressaltando as desvantagens que deter-
ão

minados grupos sofrem no Brasil, no âmbito das iniquidades territoriais e,


sobretudo, crianças e adolescentes, os quais deveriam ter prioridade absoluta
no atendimento, tendo em vista o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
s

É possível pensarmos em uma geografia política e econômica do acesso à


ver

política de saúde.
Obviamente, certos Programas, como a Estratégia Saúde da Família
(ESF), os Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASF), os Centros de
Atenção Psicossociais (CAPS), as unidades básicas de saúde, os programas de
educação em saúde, a política de redução de danos, entre outros, são muitos

Flávia Lemos - 21982.indd 189 28/02/2020 13:13:13


190

importantes e constituem iniciativas públicas que, em tese, funcionam pelo


SUS. Apesar de relevantes para a atenção básica, ainda não conseguem um
alcance de cobertura territorial e no plano da quantidade de profissionais,
recursos, infraestrutura e materialização dos princípios de equidade, integra-
lidade, intersetorialidade e universalidade. Os NASFs, por exemplo, foram
criados, em 2008, pelo Ministério da Saúde para agenciar uma ampliação
das táticas do ESF, em termos de pluralidade de práticas e alcance territorial,

or
por um trabalho chamado de apoio matricial à saúde mental e coletiva, na

od V
atenção básica. O objetivo era uma atuação com equipes multiprofissionais do

aut
ESF, visando a discutir casos conjuntamente e produzir projetos terapêuticos,
singularizando o atendimento (Dimenstein, Lima & Macedo, 2013).
As iniciativas de repensar os currículos na formação em saúde são igual-

R
mente relevantes, configuram um dos desafios, não apenas na promoção da
equidade, como na quebra das práticas de medicalização. Todavia, precisam

o
ser expandidas via programa de humanização da saúde e na recepção de
aC
docentes e pesquisadores os quais atuam na formação com certa resistência

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ao SUS, em grande parte do quadro docente (Penido, 2013).
O Programa Minha casa - Minha vida, implantado na gestão presidencial
do Partido dos Trabalhadores, e alguns programas do Programa de Cresci-
visã
mento (PAC) ligados ao acesso à água e ao saneamento básico foram de
extrema importância para a alteração de quadros de iniquidade territorial.
Contudo, paralelamente, nos últimos dois anos, instalou-se uma ampliação
itor

da desigualdade urbana e no campo, em função da dificuldade experimentada


a re

pelos pobres e negros, no acesso aos equipamentos na cidade e no acesso à


terra, como resultado da quase paralisação da reforma agrária, da especulação
imobiliária, da apropriação privada da cidade, do uso não social da terra e dos
prédios, da baixa qualidade dos transportes públicos, e pela dificuldade em
acessar lazer, cultura e serviços de saúde nas periferias urbanas.
par

O trabalho dos agentes comunitários de saúde, juntamente com os profis-


Ed

sionais dos NASFs e ESFs, cria uma nova intervenção e educação em saúde e
de relação com o território pela aproximação com a comunidade e seus cole-
tivos protagonistas. Porém, um desafio se coloca, no que concerne ao fato de
ão

os profissionais buscarem adesões instrumentais a prevenções sem construção


conjunta com a comunidade e ainda trazerem um enfoque clínico individua-
lizante e disciplinar para o cotidiano, correndo riscos de transformar essas
s

políticas em modelos ambulatoriais (Dimenstein, Lima & Macedo, 2013).


ver

Castro (1997) afirma existir, no Brasil, uma geografia da fome e aponta


o problema da desnutrição, considerando que fome se refere aos problemas
políticos e econômicos e não à ausência de alimentos. Assim, a falta de acesso
à alimentação gera efeitos na saúde. A não garantia do acesso por conta de
recursos financeiros, distribuição regional e nacional, desafios na educação

Flávia Lemos - 21982.indd 190 28/02/2020 13:13:13


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 191

em saúde e questões culturais ainda vigentes produzem doenças e agrava-


mento das existentes, implicando a não garantia da equidade. Outro aspecto
da ausência de equidade é o não acesso de boa parte do povo brasileiro a uma
alimentação rica em proteínas, nutrientes e vitaminas. A falta de uma alimen-
tação sem agrotóxicos e que seja variada provoca, igualmente, prejuízos na
promoção da saúde. Os alimentos orgânicos são caros, boa parte das frutas
também, as verduras e os legumes têm preços elevados para os assalariados

or
com renda mínima e os trabalhadores informais.

od V
Curiosamente, ao rigor da exigência disciplinar e da culpabilização dos

aut
usuários de saúde, em alguns setores da atenção básica, em função de uma
alimentação inadequada e de uma vida sedentária, é possível analisar que
essa política deveria abarcar outros pontos interessantes que são deixados

R
de lado em um paradoxo, porque uma política coletiva passa a funcionar por
mecanismos individualizantes das condutas de dieta, adesão e monitoramento

o
de exercícios físicos (Ferreira Neto & Kind, 2011).
aC
O UNICEF (1998; 2003; 2009) enfatiza que ainda há um quadro de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

desnutrição a ser enfrentado pelo Brasil, apesar de a ação da Pastoral da


Criança ter colaborado muito para a diminuição de mortes e quadros agudos
de desnutrição, com a distribuição do soro caseiro e da multimistura, em todo
visã
o país. Essa prática da Pastoral foi uma iniciativa popular, caritativa e não um
agenciamento do Estado, em um campo de equidade no SUS, em interseto-
rialidade com outras políticas. A política ofertada pelo Estado foi o Programa
itor

Bolsa Família, a partir do governo Lula e com continuidade com a Presidente


a re

Dilma, reduzindo a miséria, repercutindo na alimentação e, portanto, na pro-


moção da equidade com significativo impacto na saúde.
A despeito dos avanços do Programa Bolsa Família e dos seus impactos,
juntamente com outros programas do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), na produção da saúde e educação e na redução de desigualdades
par

sociais e econômicas, ainda há muito a fazer, no campo das políticas equi-


Ed

tativas, frente às grandes iniquidades presentes no Brasil. Grande parte da


população ainda acaba recorrendo aos serviços de emergência em prontos-
socorros, ao uso indiscriminado de medicamentos e à realização de cirurgias
ão

pela ausência da efetivação da equidade. O UNICEF (2001) elogia essas


políticas e encomenda sua expansão, para maior alcance e cobertura nacional
em locais específicos, tais como a Amazônia e o Semiárido nordestino.
s

Outro aspecto é a privatização e a precarização dos serviços de saúde


ver

com uma decorrente ampliação da rede hospitalocêntrica, através dos planos


de saúde, das OSCIPs, das concessões dos hospitais universitários à Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSRH), da crise econômica que vem
se instalando no país e das escolhas as quais estão sendo feitas de parcerias
público e privado, nos últimos anos, em nível municipal, estadual e federal.

Flávia Lemos - 21982.indd 191 28/02/2020 13:13:13


192

Os contratos temporários e terceirizados são recorrentes e as condições de


trabalho nem sempre condizentes com as exigências e qualidade que precisam
ser operacionalizadas, em um sistema tão complexo e relevante como o SUS
(Paim, 2009).
No âmbito da lógica hospitalocêntrica, tem-se com frequência a iatro-
genia, enquanto um efeito colateral de um tratamento, de um exame, de uma
cirurgia, do uso de um medicamento e de intervenções variadas com as tec-

or
nologias de saúde, em função de lacunas no âmbito da promoção da atenção

od V
básica, apesar da crescente ampliação dessa rede, que ainda é insuficiente

aut
e está distribuída de forma desigual pelo território brasileiro (Paim, 2009).
Também vale observar os processos de medicalização de uma indústria
farmacêutica formada por grandes corporações organizadas em oligopólios,

R
com ampla adesão de profissionais da saúde e recepção positiva da sociedade,
por ausência de uma crítica ao uso indiscriminado de medicamentos, de sorte

o
que é preciso pensar táticas de resistência a essa prática – e a escrita deste
aC
artigo pretende ser uma delas. Nesse caso, tratamos da lacuna da equidade, em

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


termos da educação em saúde, que configura uma iniquidade de informação
e de acesso aos direitos para lutar e reivindicá-los (Oliveira, Bermudez &
Osório-de-Castro, 2007).
visã

3. Resistências à medicalização tecidas na/pela rede


de práticas baseadas na equidade do SUS
itor
a re

Guattari e Rolnik (2000) assinalam que os processos de singularização


das subjetividades ocorrem por meio de práticas de subjetivação culturais,
sociais, políticas, econômicas, históricas e ecológicas. Apontam que a subje-
tividade é constituída pelos vetores de criação de modos de ser, os quais são
par

agenciados pelas maneiras de ser e viver, de sentir e de pensar, de agir e se


relacionar. As micropolíticas transversalizam as macropolíticas e inventam
Ed

diagonais de forças, fazendo ressonâncias singularizantes diante do instituído


das organizações e das tecnologias verticais e burocráticas cristalizadas.
Com efeito, a equidade pode desmedicalizar a vida, por intermédio de
ão

micropolíticas inventivas e disruptivas das tecnologias endurecidas de saúde.


Trata-se do que Foucault (1979) denominou insurreição dos saberes assujei-
tados pelas críticas locais e pela genealogia como anticiência e desdiscipli-
s

narização das práticas sociais.


ver

Paim (2009) e Ferreira Neto (2013) ressaltam que, a despeito dos desa-
fios, o SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde, no âmbito mundial.
Assinalam igualmente como é uma ousadia sustentar essa política em tempos
neoliberais e de grande pressão nacional e internacional de privatização da
saúde. Destacam que a rede é rica em propostas de programas e esbarra em

Flávia Lemos - 21982.indd 192 28/02/2020 13:13:13


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 193

questões de formação também ainda complexas, mesmo existindo esforços


no sentido de fomentar um processo de humanização no currículo da área
de saúde.
Os princípios do SUS, tais como o de equidade, possibilitam o trabalho
com a singularização e a tentativa da ruptura com processos de medicalização,
na atenção básica, por exemplo, além dos outros níveis de atenção. A equidade
abre espaço para o protagonismo dos usuários e para sua participação social

or
efetiva, na construção permanente na política de saúde e no seu controle social,

od V
pela fiscalização e acompanhamento de seus resultados e maneiras de ela ser

aut
implementada. Contudo, Ferreira Neto e Kind (2013) pensam que o trabalho
com as desigualdades sociais tem ficado de lado, frente à crescente indivi-
dualização da atenção cada vez mais focada em modelos oriundos da clínica

R
privada. A vertente de gestão de riscos, individualmente, ganha um espaço
significativo, em contraponto ao campo do cuidado coletivo. Instala-se um

o
amplo mercado da saúde, com o apoio da Agência Nacional Suplementar de
aC
Saúde (ANS) e de planos de saúde privados cada vez mais internacionalizados.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Bahia (2010), em um trabalho sobre a privatização do sistema de saúde


brasileiro, mostra que há uma inversão no paradigma da saúde. A rede pública,
de modo geral, é caracterizada por estabelecimentos privados e, do mesmo
visã
modo, a rede privada, por instituições públicas. Em consequência dessa carac-
terística de ocultamento do público no privado e vice-versa, diz-se que a saúde
é pública ou privada “não em razão das características individuais ou coleti-
itor

vas do bem chamado de saúde, mas porque a titularidade ou não de planos e


a re

seguros de saúde distingue segmentos populacionais” (p. 119).


De forma similar, Mendes (2012) evidencia que os diversos espaços
considerados públicos, ou mesmo o campo das relações afetivas, sociais e
culturais que atravessam a sociedade, tornam-se objeto de investimento econô-
mico e, em alguns casos, são gerenciados por empresas privadas, produzindo
par

os seguintes efeitos:
Ed

a) o “espaço público” se desloca para o mercado financeiro, que passa a


representar os múltiplos sujeitos e seus ativos; b) o que resta do “público”,
ligado ao Estado (à soberania), serve para garantir as condições necessárias
ão

dessa ampla generalização da forma-empresa, do homem-empreendimento


e da sociedade, extraindo daí sua fonte de legitimidade e capacidade de
ação política (Mendes, 2012, p. 74).
s
ver

O Brasil, mesmo sendo um país que possui cobertura integral de saúde


pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o qual pretende ofertar serviços gratuitos
a todos que deles necessitarem, a grande parcela da população brasileira ainda
tem recorrido ao sistema privado de saúde. Imersos numa lógica neoliberal,
os indivíduos terminam por serem divididos em dois grupos: aqueles que

Flávia Lemos - 21982.indd 193 28/02/2020 13:13:13


194

apenas têm acesso aos serviços públicos de saúde e aqueles que podem pagar
e possuir serviços privados, mas que constitucionalmente estão assistidos
pela saúde pública (Cordeiro et al., 2010). Nessa configuração, a equidade se
efetiva constitucionalmente como avanço e a ela se recorre como princípio,
um anteparo ante uma racionalidade neoliberal e privatizante que a torna cada
vez menos traduzível em práticas efetivas. Efetivar a equidade requer uma
racionalidade de governo outra e, por isso, mesmo com as lacunas observáveis,

or
permanece sendo fundamental para diminuição das desigualdades em saúde.

od V
aut
Considerações finais

R
Neste artigo, foram interrogadas algumas práticas de medicalização da
saúde como paradoxo das lacunas da promoção da equidade no Sistema Único

o
de Saúde (SUS), no Brasil. O racismo institucional, a alimentação, a habitação,
a distribuição territorial e o crescimento da privatização e precarização foram
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vetores de análise, por meio da literatura e pelo exame de alguns relatórios do
UNICEF (1998; 2001; 2003; 2009), em face da situação da infância e ado-
lescência brasileira. A entrada massiva dos planos de saúde e de sua compra
visã
por empresas internacionais, paralelamente às parcerias entre público e pri-
vado e diminuição do financiamento público do SUS, vem comprometendo a
efetivação do princípio de equidade. Ainda vale salientar que o currículo e a
itor

resistência docente a formar de acordo com os princípios do SUS constituem


igualmente um entrave.
a re

O preconceito que orienta racismos institucionais objetifica pessoas em


razão de lógicas de governo, reafirmando fixações identitárias, de cunho biopo-
lítico, tais como de usuários de drogas, adultos presos, adolescentes autores de
ato infracional. A dificuldade dos trabalhadores de saúde e da proteção social
par

com a falta de infraestrutura e condições de trabalho, em função de contratos


temporários e dos baixos salários, interfere também nas maneiras de intervir,
Ed

nas condições necessárias ao atendimento prestado, bem como se materializa


numa sobrecarga laboral marcada por lutas, capacitações e sofrimentos os
ão

mais variados. A medicalização se amplia no mercado da saúde, sustentando


a lógica hospitalocêntrica e oferecendo solo para políticas neoliberais, assim
como as políticas neoliberais efetuam incentivos à medicalização da sociedade,
s

em contrapartida ao cuidado humanizado e equitativo.


ver

Em detrimento de tantos entraves e limites, podemos afirmar que ainda


é possível agenciar táticas de singularização pela promoção da equidade no
SUS, e essa prática se materializa em intervenções de sanitaristas críticos,
na luta antimanicomial, na luta pela saúde coletiva de várias entidades, nas
propostas da humanização da saúde, na atenção básica em alguns serviços e

Flávia Lemos - 21982.indd 194 28/02/2020 13:13:13


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 195

na resistência à medicalização, por meio da apropriação das racionalidades


alternativas em saúde pelo povo e por alguns grupos profissionais.
Políticas sociais, como as do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), de Programas como o Minha Casa, Minha Vida, ampliação do
acesso à água e ao saneamento básico, aumento dos níveis de escolaridade,
práticas do Estratégia Saúde da Família, do NASF, das unidades básicas de
saúde e dos CAPs produzem ressonâncias de singularização. Paradoxalmente,

or
essas mesmas políticas são atravessadas por utilitarismos, individualizações,

od V
prevenções de gestão de riscos, baixa cobertura e presença de preconceitos

aut
e racismos. Dessa maneira, a equidade, ainda que não plenamente efetivada,
permanece como um princípio axial a não abandonar.

R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 195 28/02/2020 13:13:14


196

REFERÊNCIAS
Azevedo, N. S. (2012). Núcleos de apoio à saúde da família: o processo de
implantação em Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Univer-
sidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

or
Barata, R. B. (2004). Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à
saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.

od V
aut
Benevides, R., & Passos, E. (2005). A humanização como dimensão pública
das políticas de saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 10(3), 561-571. doi: http://
dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300014

R
Carvalho, J. M. de. (2001). Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de

o
Janeiro: Civilização Brasileira.
aC
Castel, R. (2008). A discriminação negativa. Cidadãos ou autóctones? Petró-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


polis: Vozes.
Castro, J. de. (1997). Geografia da fome. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.
visã
Dimenstein, M., Lima, A. I., & Macedo, J. P. (2013). Integralidade em saúde
mental: coordenação e continuidade de cuidados na atenção primária. In: S.
Paulon & R. Neves (Orgs.). Saúde mental na atenção básica: a territoriali-
itor

zação do cuidado. (pp. 39-59). Porto Alegre: Sulina.


a re

Drummond, J. (2006). Introdução. In: V. de P. Faleiros, J. de F. S. da Silva,


L. C. F. de Vasconcellos, & R. M. G. Silveira. (Orgs.). A construção do SUS:
histórias da reforma sanitária e do processo participativo. (pp. 17-34) Brasí-
lia, DF: Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.
par

Ferreira Neto, J. L. (2011). Psicologia, políticas públicas e o SUS. Belo Hori-


Ed

zonte: FAPEMIG. São Paulo: Escuta.


Ferreira Neto, J. L., & Kind, L. (2011). Práticas grupais na estratégia saúde
ão

da família. Belo Horizonte: FAPEMIG e São Paulo: HUCITEC.


Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.
s

Foucault, M. (1988). História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de


ver

Janeiro: Graal.
Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: a história da violência nas prisões.
Petrópolis: Vozes.
Foucault, M. (2008). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.

Flávia Lemos - 21982.indd 196 28/02/2020 13:13:14


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 197

Fundo das Nações Unidas para a Infância. (1998). A infância brasileira nos
anos 90. Brasília, DF: UNICEF.

Fundo das Nações Unidas para a Infância. (2001). Situação da infância bra-
sileira 2001. Brasília, DF: UNICEF.

Fundo das Nações Unidas para a Infância. (2003). Situação da infância e

or
adolescência brasileiras. Brasília, DF: UNICEF.

od V
Fundo das Nações Unidas para a Infância. (2009). Situação da Infância e da

aut
adolescência brasileiras. Brasília, DF: UNICEF.

R
Gohn, M. da G. (2010). Movimentos sociais e redes de mobilizações civis no
Brasil contemporâneo. Petrópolis/RJ: Vozes.

o
Jorge Sobrinho, E. (2006). A mobilização instituinte (décadas de 1970 e 1980).
aC
In: V. de P. Faleiros, J. de F. S. da Silva, L. C. F. de Vasconcellos, & R. M.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

G. Silveira. (Orgs.). A construção do SUS: histórias da reforma sanitária e


do processo participativo. (pp. 35-110) Brasília, DF: Ministério da Saúde,
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.
visã

Lemos, F.C. S. (2009). O UNICEF e as práticas de governamentalidade de


crianças e adolescentes no espaço/tempo. Teias, 10(20), 01-19.
itor

Nunan, B. A. (2009). NASF: concepções e desafios. In: A. Holanda, E. Z.


a re

Rosa, M. C. B. Veras, A. R. Silveira, J. D. Guerra, & C. G. Ribemboim.


(Orgs.). A prática da psicologia e o núcleo de apoio à saúde da família.
(pp. 19-21). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.
par

Oliveira, M. A., Bermudez, J. A. Z., & Osório-de-Castro, C. G. S. (2007).


Assistência farmacêutica e acesso a medicamentos. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.
Ed

Paim, J. S. (2009). O que é o SUS. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.

Penido, C. M. F. (2013). Apoio matricial em saúde mental no contexto da


ão

saúde coletiva. In: S. Paulon, S., & R. Neves, R. (Orgs.). Saúde mental na aten-
ção básica: a territorialização do cuidado. (pp.17-38). Porto Alegre: Sulina.
s

Simões, A. L. A, Rodrigues, F. R., Tavares, D. M. dos S., & Rodrigues, L. R.


ver

(2007). Humanização na saúde; enfoque na atenção primária. Revista Texto


& Contexto Enfermagem, 16(3), 439-44. doi: http://dx.doi.org/10.1590/
S0104-07072007000300009

Wieviorka, M. (2007). O racismo: uma introdução. São Paulo: Perspectiva.

Flávia Lemos - 21982.indd 197 28/02/2020 13:13:14


Flávia Lemos - 21982.indd 198
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:14
CURRÍCULO, FOUCAULT E
A MEDICALIZAÇÃO DAS
SUBJETIVIDADES: resistências

or
e campo de tensão

V
aut
Geise do Socorro Lima Gomes
Flávia Cristina Silveira Lemos

CR Ataualpa Maciel Sampaio

do
1. Introdução

Este capítulo tem como objetivo situar os estudos curriculares e os usos


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
de Foucault para interrogar a formação em psicologia, trazendo o debate
epistemológico formado pelo referencial teórico-metodológico para o campo
da psicologia social em interface com a educação e a saúde. Busca-se pro-
ra
blematizar as relações nas quais nasce e se produz um documento como o
i
currículo, por meio de um conjunto de práticas sociais e de formação.
rev

Busca-se abordar um plano de multiplicidade e tensão das forças em jogo,


às quais disputam possibilidades de dizer e dar visibilidade a um diagrama
to

heterogêneo e descontínuo, situado no tempo e no espaço. É possível pensar


o quanto na trama dos processos de medicalização há diferentes racionalida-
ara

des, em disputa.
Os processos de medicalização são diversos e podem se materializar por
ver di

muitas práticas, no caso deste texto, nos referimos, especialmente, ao currículo


e à formação medicalizante, sendo constitutivos de efeitos de poder-saber
op

também por meio das resistências, forjadas no próprio plano de uma dinâmica
de diferenciação das forças que operam tentativas de captura e produção
E

hegemônica de saberes e poderes. Um exemplo, medicaliza-se a Psicologia


pela clínica-médica e pela biotecnologia, todavia, também poderia ocorrer

uma medicalização pela neurociência e psicobiologia ou ainda pela vertente


da avaliação psicológica pautada em teorias etiológicas do desenvolvimento
tanto na filosofia do conhecimento quanto da antropobiometria.

2. Breve comentário sobre os estudos curriculares como


ferramentas de análise para interrogar a formação

É importante analisar e problematizar o currículo na produção das dife-


renças como política de Estado; como, por exemplo, uma ideia de grade,

Flávia Lemos - 21982.indd 199 28/02/2020 13:13:14


200

nome usado com frequência, no cotidiano por aqueles que desconhecem o


debate sobre teoria curricular. Há ainda os que pensam o currículo como um
conjunto de práticas fragmentadas e tecnicistas, esvaziadas de cultura, eco-
nomia, política e subjetividades. O currículo é um dispositivo e tem história,
produz modos de existência e está alicerçado em um projeto de educação e
também de sociedade. Interrogar o currículo, deslocando-o do campo tecni-
cista da Pedagogia das competências e das habilidades é imperioso e cada

or
vez mais relevante.

od V
Assim, romper com a naturalização das práticas curriculares e questionar

aut
a construção do currículo é um ato que demanda coragem e historicização
com o objetivo de colocar em xeque os efeitos normalizadores e de adequa-
ção social de um currículo a serviço das grandes corporações do capitalismo

R
neoliberal e também interrogar a noção tão banalizada de formação para o
mercado. Falar de currículo não é apenas um ato de organizar e administrar

o
o ensino e, sim uma prática política da história da verdade e da construção
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dos corpos e desejos, de maneiras singulares de viver e agir.
O currículo é um dispositivo que lida diretamente com a criação de uma
forma e maneira de constituir um sujeito em formação e a ser formado por
meio de processos materiais e concretos. As práticas da psicologia no currí-
visã
culo agenciam certo retrato da profissão, pesquisa e do ensino da Psicologia,
vigentes no Brasil. Mas qual é o perfil da formação de Psicologia, no país
e mundialmente? Quais são os vieses em jogo e as disputas de saber-poder
itor

entrecruzadas? Como é objetivado o sujeito psicólogo e a prática psicológica?


a re

As práticas da formação engendram efeitos e são organizadas por modos


de produção contemporâneos da subjetividade, em uma política cultural e
econômica específica. Gerenciar a vida pelo Estado Moderno e controlar a
sociedade por meio de um currículo e da formação é um objetivo central dos
par

países e do mercado neoliberal. Há encomendas de corporações, de organiza-


ções e grupos dirigidas ao Estado com fins da realização de uma forma, qual
Ed

seja: a esfera da lei e ordem no governo das condutas em nome da segurança.


Veiga-Neto (2009) em seu ensaio para o livro “Para uma vida não-fas-
cista” escreve sobre as nuances acerca do que se entende sobre currículo. As
ão

mais familiares versam sobre “corrida” ou “ato de correr”, “programação


pedagógica”, “documento”. E por conta da sua forma latina curriculum, nos
suscita “trajetória”, “cursos”. Essa polissemia, como cita Veiga-Neto-Neto
s

(2009) permitiu a confecção de um campo teórico que começou a ser deno-


ver

minado de Estudos Curriculares e abrangeu uma série de teorizações acerca


do que deveria ser estudado ao se tratar do tema “currículo”, quais elementos
o comporiam, como se davam suas relações, sobretudo, entre currículo e o
sujeito o qual ele alude:

Flávia Lemos - 21982.indd 200 28/02/2020 13:13:14


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 201

Trata-se, assim, de um rebatimento de duas vias: num sentido, o sujeito


é aquele que seu currículo diz quem ele é; no sentido inverso, seu currí-
culo é aquilo que ele mesmo (ou alguém por ele) registrou quem ele é.
Em qualquer caso, o que está em jogo, o que é posto em circulação em
tais rebatimentos, é a trajetória que o sujeito diz que (per)correu – ou que
disseram que ele (per)correu. Opera-se, assim, um processo de fusão, de
identificação entre o sujeito e seu currículo, de modo que qualquer coisa

or
que vier a ocorrer com um virá a produzir efeitos no outro e vice-versa

od V
(VEIGA-NETO, 2009, p. 19).

aut
Por sua vez, seguindo essa mesma linha de pensamento, em “Documentos
de identidade”, Tomaz Tadeu da Silva (2011) introduz seu livro questionando

R
o que seriam as “famosas” “teorias do currículo?”. Na verdade, trata-se de
uma provocação acerca das inúmeras publicações que tematizam sobre esse

o
assunto. Ele argumenta que normalmente as teorias que buscam “explicar”,
aC
conceituar, delinear questões acerca do currículo iniciam justamente tentando
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

descrever essa palavra. E seguem-se inúmeras descrições com base na etiolo-


gia da palavra, com o uso de dicionários, etc. E acabam na verdade estabele-
cendo uma circunferência sobre o que próprio teorizam, uma vez que, quando
visã
tentam explicar o que vem a ser esse objeto eleito, eles acabam produzindo-o.
Assim, as teorias possuem essa postura em relação à produção
de conhecimento.
itor

Entendem que existe um objeto pré-existente que está à espera de uma


a re

“descoberta” e cabe ao pesquisador “desvendar os mistérios” que o cercam e


“descobrir” suas supostas “essências” e “verdades”. Então, postulam uma teo-
ria que irá dar conta de entender esse objeto fabricado, produzido, possuindo
muitas vezes pretensões metanarrativas, tal como nos aponta Foucault em “A
par

ordem do discurso” (2004a). Essas metanarrativas ambicionam generalizar


os acontecimentos a partir de um suposto “desvelamento”.
Ed

Nesse tipo de postura teórico-metodológica há um entendimento de que


existe uma correspondência entre realidade e teoria. A teoria seria o espelho
da realidade: entenderíamos a composição da realidade com base em uma
ão

“fundamentação teórica”. Para Lyotard (2008, p. 46) essa inteligibilidade


remeteria a uma pragmática do saber científico que vem perdurando desde o
século XIX, renovando seus axiomas no século XX, embora já encontremos
s

elementos de mudanças, em metade deste último. Teríamos de acordo com


ver

o autor as seguintes propriedades deste saber científico: “[...] O saber cientí-


fico exige o isolamento de um jogo de linguagem, o denotativo; e a exclusão
dos outros. [...]” formando pares para sua verificação ou falsificação. Esses
pares são os experts, cujos referentes lhes sejam acessíveis e garantam uma

Flávia Lemos - 21982.indd 201 28/02/2020 13:13:14


202

“coerência” discursiva assentadas em “grades de conhecimento”, divididas por


suas unidades particulares, constituindo assim, cada qual, seu “campo teórico”.
A partir de estudos considerados “pós-estruturalistas”, pontua Silva
(2011) que essa visão acerca da “teoria” ganhou uma nova conotação, sobre-
tudo advinda das críticas empreendidas às concepções e aos elementos que
sustentavam essas posturas tais como: a oposição entre sujeito e objeto; a
crença na realidade (portanto, cabendo à busca por essências) e na verdade; a

or
centralidade no cérebro como produtor de conhecimento, etc.; naturalizando

od V
determinados acontecimentos. A fim de apreender críticas a essas posturas,

aut
no lugar do desenvolvimento de teorias, começou-se a trabalhar com o con-
ceito de discurso, ou seja, de produção de discursos. A partir dessa postura
se entende que não mais existem objetos a serem descobertos, ou essências

R
a serem desveladas e verdades a serem postuladas, mas todo um processo de
discursividades que pautam sobre um determinado tema, produzindo acon-

o
tecimentos, forjando objetos.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Para Silva (2011), no entanto, não podemos simplesmente abandonar o
termo teoria por conta das inúmeras incidências que se tem sobre essa pala-
vra. O emprego que fazemos desta é que deve ser problematizado. Temos a
tarefa de estarmos atentos ao que ela diz descrever e com qual finalidade é
visã
feita essa descrição. Desse modo, em resumo, existem muitas teorias sobre
o que vem a ser o currículo e cada teoria ocupa uma posição de saber e de
poder que produzirá, por sua vez, efeitos de verdade, de acordo com cada
itor

argumentação produzida, pelos diferentes autores e seus pares, e círculos de


a re

produções discursivas.
Cada teoria irá descrever ontologicamente aquilo que ela acredita
que seja currículo e em uma perspectiva de discurso, iremos apontar as
condições de possibilidades de emergência daquele currículo e se voltar
par

muito mais para tentar entender que “questões” essa “teoria” do currículo
busca responder (SILVA, 2011). O autor acima citado aponta que existem
Ed

algumas questões específicas e outras comuns que estão compondo deter-


minadas teorias sobre currículo. E é sobre essas questões que devemos nos
debruçar. Assim, por exemplo, uma questão comum a toda teoria sobre
ão

currículo é responder à pergunta “o quê?” – O quê deve ser ensinado? Quais


conteúdos devem ser selecionados? Por que uns e não outros? E atrelada
a essa preocupação está a pergunta: “O que elas ou eles devem ser?” ou
s

melhor: “no que devem se tornar?”, porque, de acordo com Silva (2011)
ver

toda teoria de currículo busca modificar as pessoas, estreitando a relação


entre currículo e produção de identidades.
Tem-se um sujeito modelo, idealizado por determinada teoria e se busca
estabelecer parâmetros acerca dos tipos de conhecimentos que irão determinar

Flávia Lemos - 21982.indd 202 28/02/2020 13:13:14


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 203

aquele sujeito, conferindo-lhe uma “identidade”. E, como a produção desses


regimes de saber não é neutra, como nos adverte Foucault (2004a) arquite-
tam-se lutas empreendidas pelas diferentes teorias, demarcando posições de
poder que irão separar, portanto, “teorias tradicionais” das “teorias críticas”,
das “teorias pós-críticas”, por exemplo.
A esse respeito Popkewitz (2002) vai chamar de ordenamento epistemo-
lógico a organização realizada pelo uso de histórias que demarcam determina-

or
das narrativas. Cada “teoria” dessas, portanto, compõem uma narrativa para

od V
explicar seus objetos de estudo e a forma como se relacionam e são forjadas

aut
com o tempo e o espaço. Assim, as teorias tradicionais se situam no campo de
uma postura de “neutralidades” científicas e “desinteressadas”. Elas aceitam o
“status quo”, tal como é definido, sem questionar os saberes e conhecimentos

R
“dominantes”. Interpreta-se a pergunta “o que” como óbvia e partem para o
“como” devem ser ensinados os conteúdos? Preocupando-se com a técnica,

o
com a organização do conteúdo de forma a melhorar o “como” serão “repas-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sados”. Já as “teorias críticas” e “pós-críticas” se preocupam com o “por


quê?” determinados conteúdos são escolhidos e outros não? Por que alguns
foram privilegiados e outros não? Desse modo, irão se detiver em questões
que envolvem as relações entre saber, identidade e poder (SILVA, 2011).
visã
Contudo, podemos fazer outra organização dessas narrativas históricas,
como a que demarca outro tipo de ruptura epistemológica entre essas “teorias”:
o delineamento do que se convencionou chamar de uma “condição pós-mo-
itor

derna” (LYOTARD, 2008). As duas primeiras teorias estariam situadas no


a re

campo da modernidade: em que a ciência é concebida como uma grande área


de saber, detentora da produção do conhecimento, outorgando a si própria este
status, onde predominavam conceitos como “razão”, “ordem”, “progresso”,
“totalidade”, “verdade”, etc.
par

A filosofia metafísica como pontua Lyotard (2008) ou a filosofia da cons-


ciência como queira chamar Popkewitz (2002) eram as bases de sustentação
Ed

dessa concepção de ciência. Essas filosofias estão ligadas a uma tradição


histórica que concebe a existência de “fatos” que ganham evolução no trans-
correr do tempo, delimitando uma ordenação cronológica dos eventos, além
ão

de uma postura metafísica, a partir de uma racionalidade centralizada no


conhecimento e no sujeito como seu produtor (uma herança do Iluminismo).
s

A posição do sujeito em relação a essa concepção expõe Popkewitz (2002,


ver

p. 180), implica neste participar da construção do conhecimento sobre o pas-


sado, e em relação ao presente poder se tornar um agente de mudança, assim,
motivado por “propósitos” e “intenções”.

Flávia Lemos - 21982.indd 203 28/02/2020 13:13:15


204

A filosofia da consciência tem dominado a construção das ciências sociais


pelo menos durante os últimos cem anos e pode ser vista como uma
invenção radical do Iluminismo. Nessa perspectiva, práticas históricas não
eram mais deixadas à organização social e a mudança entregue a forças
transcendentais (como Deus, por exemplo). A filosofia da consciência
vê o mundo como constituído de estruturas vinculadas que funcionam
em relação uma às outras numa sucessão; mas a filosofia da consciência

or
concede a soberania aos atores e à agência humana nas explicações da

od V
mudança naquelas estruturas (POPKEWITZ, 2002, p. 180).

aut
Nessa perspectiva para Lyotard (2008) após os anos de 1950, o que
vamos ter é a instalação de uma crise nos “dispositivos” legitimadores da

R
modernidade. O que também é observado por Foucault (2011a, p. 253) na
seguinte passagem:

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Houve, digamos, de 1950 a 1960, toda uma série de acontecimentos impor-
tantes que formaram um planeta cultural, estético, científico e artístico
de um tipo completamente diferente do que havia podido ser elaborado e
visã
legado pelo marxismo ou pela fenomenologia. O que não implica o menor
desdém: essas maneiras de pensar foram muitíssimo importantes. Mas,
quando as coisas mudam, elas mudam [...].
itor

A própria mudança pós-industrial, nesses anos, provoca algumas dessas


a re

rupturas. Particularmente na Europa, tem-se a “regionalização” (POPKE-


WITZ, 2002) de eventos políticos, sociais e culturais que constituirão con-
dições de possibilidade para a visibilidade de novas maneiras de conceber
a ciência, a história e o sujeito, principalmente. Desse modo, assim pontua
par

Popkewitz (2002, p. 184-185):


Ed

Meu argumento é que problematizar o que tomamos como dado – nossas


formas de raciocínio e princípios de ordenação – é uma estratégia para
desestabilizar as formas reinantes de “raciocínio”. Isto introduz um para-
ão

doxo aparente à medida que afastamos questões de agência e de atores do


centro da análise. Ao desestabilizar as condições que confinam e prendem
a consciência e seus princípios de ordem, criando, assim, uma gama mais
s

ampla de possibilidades para a ação, o ator é, paradoxalmente, reintrodu-


ver

zido. Tornar as formas de raciocínio e as regras para “dizer a verdade”,


potencialmente contingentes, históricas e suscetíveis à crítica é uma prática
que desaloja princípios ordenadores.

Flávia Lemos - 21982.indd 204 28/02/2020 13:13:15


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 205

O que essa breve sequência de descrições sobre alguns aspectos dentre


as “teorias curriculares” tem em comum em que pesem em suas diferenças?
O fato de terem sido organizadas e materializadas em tempos históricos, de
acordo com a peculiaridade que cada historicidade lhe aprazia. Que aconteci-
mentos ganhavam relevância para aquela historicidade? Portanto, narrativas
históricas atravessadas por questões econômicas, políticas, sociais, culturais
e de campos disciplinares que não podem ser desmerecidas ao se levantar

or
estudos sobre determinado currículo, tal como pontua em um exemplo Pacheco

od V
(2005, p. 59):

aut
O currículo depende também dos condicionalismos económicos (sic) exis-

R
tentes em uma dada sociedade: os recursos educativos; a valorização da
carreira dos professores; as expectativas profissionais dos alunos; as opções
curriculares dos alunos; a pressão dos grupos económicos nas escolhas

o
das áreas de conhecimento, etc.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ou ainda,

[...] Um currículo não se elabora no vazio, nem tão pouco se organiza


visã
arbitrariamente. [...] Assim, o currículo é uma representação do universo
do conhecimento, em que não se deixará de reconhecer o contributo
da Filosofia da Educação, bem como de outros campos disciplinares
itor

(PACHECO, 2005, p. 61).


a re

3. Currículo, governamentalidade e medicalização

Trazendo esse debate para o texto presente, pretendemos então “operar”


um estranhamento ao “currículo” escolhido como objeto de pesquisa. Desse
par

modo, o currículo, quando entendido como uma “invenção da modernidade”,


Ed

tal como cita Popkewitz (2002), tem como uma de suas funções regular e
disciplinar o indivíduo.
ão

A ideia de currículo corporifica uma organização curricular do conhe-


cimento pela qual os indivíduos devem regular e disciplinar a si pró-
prios como membros de uma comunidade/sociedade (LUDGREN, 1983;
s

HAMILTON, 1989; ENGLUND, 1991 apud POPKEWITZ, 2002, p. 186).


ver

Nas instituições educativas este vai funcionar como um dispositivo


que “opera” essas regulações, produzindo regimes de saber que objetivam
e subjetivam os corpos aos quais se destina. Mais adiante Popkewitz (2002)
vai ampliar a função dessa regulação “individual” para regulação social, ao

Flávia Lemos - 21982.indd 205 28/02/2020 13:13:15


206

associar o currículo a um projeto maior dentro das tecnologias de controle


da governamentalidade, buscando esses conceitos na produção de Foucault:

A noção de governamentalidade de Michel Foucault (1979) é útil para


focalizar os novos princípios de regulação corporificados na pedagogia.
A partir do século XIX, Foucault argumenta, ocorre uma relação entre
práticas estatais de governo e comportamentos e disposições individuais.

or
Se o Estado devia ser responsável pelo bem-estar de seus cidadãos, a

od V
identidade dos indivíduos devia ser vinculada aos padrões administrativos

aut
encontrados na sociedade mais ampla. Em múltiplas arenas sociais, ocor-
rem estratégias de intervenção e reformas estatais, à medida que aparecem

R
novas instituições de saúde, trabalho, educação e novas estruturas mentais,
juntamente com a emergência dos novos objetivos de bem-estar social do
Estado (POPKEWITZ, 2002, p. 187-188).

o
aC
E o poder tal como ele é percebido por Foucault, por sua vez, também

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


encontra campo para atuação nos escritos curriculares, mantendo relação com
os saberes. E essa relação vai constituir jogos ou regimes de verdade que estão
em permanente movimentação produzindo efeitos tais como prescrição de
visã
comportamentos, de condutas, correção de “desvios”, “micropenalidades”
do tempo, controle de discursos, controle dos corpos, a fim de torná-los úteis
e dóceis. Nesse ínterim, a educação, objeto de investimento das produções
itor

curriculares, torna-se tanto objeto do poder quanto do saber:


a re

Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao


qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a
qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no
par

que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e
lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter
Ed

ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes


que eles trazem consigo (FOUCAULT, 2004a, p. 43-44).
ão

Nesse sentido, entendemos o estudo do currículo como forma de identifi-


car práticas sociais que produzem efeitos, os quais operam em uma perspectiva
dos estudos de currículo às propostas de problematização histórica; Assim,
s

parte-se do pressuposto e do uso das teorias sobre currículo que levam em


ver

consideração uma perspectiva de discurso como possibilidades de condições


para emergência de determinadas práticas subjetivadoras. Têm-se, portanto,
uma estreita relação entre currículos e produção de identidades, tal como
assinala Tomaz Tadeu da Silva (2011, p. 113-114): “[...] o sujeito não é o
centro da ação social. Ele não pensa, fala e produz: ele é pensado, falado,

Flávia Lemos - 21982.indd 206 28/02/2020 13:13:15


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 207

produzido. Ele é dirigido a partir do exterior: pelas estruturas, pelas institui-


ções, pelo discurso.”.
De acordo com essa perspectiva tem-se um sujeito modelo, idealizado
por determinada teoria materializada no currículo e se busca estabelecer parâ-
metros acerca dos tipos de conhecimentos que irão determinar aquele sujeito,
conferindo-lhe uma identidade. É nesse sentido que Tomaz Tadeu da Silva
(2011) argumenta que os currículos são documentos de identidade. E, como

or
a produção desses documentos não é neutra, como bem adverte Foucault

od V
(2000a), existe uma arena arquitetada nas lutas empreendidas pelas diferentes

aut
teorias, demarcando posições de poder.
Para Corazza (2004) devemos questionar o currículo, torná-lo “estranho”,
para assim transportá-lo do lugar comum visionado. Se entendido como uma

R
linguagem “[...] a natureza de sua discursividade é arbitrária e ficcional, por ser
histórica e socialmente construída” (CORAZZA, 2004, p. 9-10). Se percebido

o
como um ser falante, pergunta-se: “o que está dizendo? O que quer dizer, com
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

isto que está dizendo? O que você quer?”. Ainda, de acordo com a autora:

[...] um currículo também produz ideias, práticas coletivas e individuais,


visã
sujeitos que existem, vivem, sofrem e alegram-se, num mundo que se
produz atravessado por complexas redes de relações que vão desde as eco-
nômico-sociais até as tramas amorosas e transferenciais. [...] Um currículo
é o que dizemos e fazemos... com ele, por ele, nele. É nosso passado que
itor

veio, o presente que é nosso problema e limite, e o futuro que queremos


a re

mudado (CORAZZA, 2004, p. 13-14).

Portanto, a postura em relação à pesquisa sobre determinado currículo


deverá seguir sempre uma posição de “perspectivadora” dos arquivos a
par

serem analisados, permitindo assim, que seja dada visibilidade ao encontro


dos acasos que compõem esses documentos, tal como nos adverte Foucault
Ed

(2000a, p. 7):

[...] O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte
ão

através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram,


o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio
tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações.
s
ver

Foi, a partir desse entendimento que procuramos situar o currículo de


Psicologia às tecnologias de controle da governamentalidade, questionando
a que produções de controle ele serve, que deslocamentos precisamos
operar sobre esse currículo a fim de que se possa exercitar por meio deste
e com este a problematização das experiências. No entanto, o que temos

Flávia Lemos - 21982.indd 207 28/02/2020 13:13:15


208

em evidência, na maioria dos currículos é a vida, controlada, objetivada,


subjetivada, esquadrinhada e regulada por esses processos em formas
medicalizantes, e ou patologizantes, para ampliar o debate do cuidado e
da proteção social por meio da formação em Psicologia e de um currículo
condizente com este foco instrumental. Com efeito, um currículo para fazer
saúde mental e coletiva, para adaptar e organizar condutas, para adaptar
e estruturar o que se pretende desvirtuado e perigoso. A medicalização é

or
parte de um projeto social de grande monta e internacionalizado. Deste

od V
modo, um profissional medicalizante e adaptador de condutas será formado

aut
por um currículo comum a este eixo de sustentação.
Definimos medicalização como um campo de tensões em que os discur¬-
sos médicos, sobretudo, têm se colocado como um dos principais elementos

R
na produção de corpos dóceis e controlados. Isso pode ser observado tanto
na esfera da prescrição de medicamentos quanto na esfera da expansão das

o
chamadas “performances” educativas, corporais, de trabalho etc, produzindo
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


modos de ser que não necessariamente são patologizantes, mas capturam os
processos de subjetivação e podem reduzir a produção da diferença.
visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 208 28/02/2020 13:13:15


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 209

REFERÊNCIAS
CORAZZA, Sandra Mara. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas
em educação. Petrópolis: Vozes, 2004.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. Luís Felipe Baeta

or
Neves. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000a.

od V
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France,

aut
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sam-
paio. São Paulo: Loyola, 2004a.

R
FOUCAULT, M. O estilo da história [1984]. In. Arte, epistemologia, Filoso-

o
fia e História da Medicina. Coleção: Rio de Janeiro: Forense Universitária.
aC
(Ditos e Escritos VII), 2011a.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

LYOTARD, Jean-François. A condição Pós-Moderna. Trad. Ricardo Correa


Barbosa. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
visã

PACHECO, J. A. Escritos curriculares. São Paulo: Cortez, 2005.


itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 209 28/02/2020 13:13:15


Flávia Lemos - 21982.indd 210
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:15
POLÍTICAS PÚBLICAS E SAÚDE
MENTAL: processo de trabalho no
cuidado psicossocial à crise

or
V
Herbert Tadeu Pereira de Matos Junior

aut
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Breno Ferreira Pena

1. Introdução
CR
do
Nesse ensaio realizaremos um debate crítico sobre políticas públicas de
saúde mental, com foco na estrutura e funcionamento do cuidado psicossocial
de urgência e emergência. Abordaremos o tema do processo de trabalho de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
profissionais da equipe multiprofissional de saúde, da clínica às pessoas em
crise nas psicoses, na atualidade de estabelecimentos de saúde. O texto apre-
ra
senta um diálogo entre os teóricos especializados e normativas técnicas do
Ministério da Saúde do Brasil, referentes ao processo de trabalho no modelo de
i
rev

cuidado psicossocial especializado de urgência e emergência em saúde mental.


A proposta debate formas de atuação multiprofissional no contexto das
práticas de cuidado em saúde mental. Inicia a discussão sobre a atenção psi-
to

cossocial especializada no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), com


foco nas estruturas de funcionamento da alta complexidade em saúde mental,
ara

de Leis e diretrizes do Ministério da Saúde do Brasil. Em seguida, debate os


conceitos de urgência e emergência em saúde mental, e o funcionamento da
ver di

intervenção de saúde no atendimento multiprofissional de urgência à crise.


Os processos de trabalho normatizados pelas políticas públicas de saúde,
op

organizam-se em um contexto de grande flexibilidade e diversidade de for-


mas de abordagem aos sujeitos em atendimento nas urgências e emergências
E

em saúde mental. Consideramos que, pesar das recomendações nacionais de


assistência em saúde psicossocial, a realidade prática do cotidiano, das difi-


culdade de acompanhamento no território, associadas ao contexto de miséria,
bem como, haver necessidade de uma ágil dinâmica de atendimento na urgên-
cia, principalmente no tocante à vacância de leitos na urgência, configuram
aspectos desafiadores ao processo de trabalho psicossocial em saúde mental
do profissional de saúde.
No decorrer do capítulo apresentaremos argumentos críticos sobre a
relação: políticas públicas e cuidado psicossocial no atendimento às urgências
e emergências em saúde mental. Contextualizaremos algumas das transfor-
mações ocorridas nas políticas públicas de assistência à saúde mental a partir

Flávia Lemos - 21982.indd 211 28/02/2020 13:13:15


212

da década de 1990 no Brasil, Leis e diretrizes de estruturação/funcionamento


dos serviços de saúde mental públicos, analisados por meio da compreensão
crítica do processo de trabalho dos profissionais das equipes multiprofissionais
nos estabelecimentos de urgência e emergência em saúde mental.
Nossa pretensão é pensar sentidos atribuídos pelo processo de pesquisa,
em uma dada conjuntura, às concepções de intervenções em saúde mental no
atendimento às pessoas crise nas psicoses, articulando estruturas e funciona-

or
mento do processo de trabalho nos estabelecimentos da rede de saúde mental,

od V
do cotidiano de intervenções das equipes especializada na alta complexidade

aut
no Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS).
É importante compreendermos que na história do Brasil, durante os pri-
meiros quatro séculos desde a invasão dos colonizadores, as políticas públicas

R
de atenção à saúde mental, quando existiam, estiveram voltadas ao objetivo
de isolamento do restante da sociedade de pessoas consideradas como loucas,

o
assim configurando-se, enquanto modelo baseado na exclusão e de sucessivas
aC
violações aos direitos humanos (BRASIL, 2011). Progressivamente com o

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


passar dos anos, principalmente, nas últimas décadas, a agenda pública de
saúde no Brasil buscou construir novas formas de garantia de direito à saúde
integral das pessoas acometidas por transtornos ou sofrimentos mentais graves.
visã
Observamos que, com o início da década de 1990, foram criadas novas
propostas de um modelo de política pública para o campo da saúde mental
no Brasil. Assim, o modelo foi sendo construído, norteado pelo interesse na
itor

modificação do cenário de hospitais psiquiátricos existentes, principalmente,


a re

no tocante, ao esvaziamento e progressiva extinção de locais de cárcere e


abandono de indigentes, substituídos assim, por leitos em hospitais gerais,
juntamente com outras especialidades médicas, na construção de uma rede
de atendimento comunitário vinculada ao sistema público de saúde regular
(AMARANTE, 2012).
par

Como uma das alternativas surgidas primeiramente, ambulatórios e


Ed

emergências psiquiátricas em hospitais gerais foram reestruturados e cons-


truídos em larga escala desde o início da década de 1990. Estas estratégias
foram realizadas com o objetivo, de atender as novas demandas da agenda
ão

pública, por serviços comunitários em saúde mental, vinculados à rede básica


e especializada de saúde por todo o país (BARROS, 2010). Na verdade, a
autora argumenta que, nesse momento, os serviços existentes precisaram ser
s

reformulados, dentro do debate de agenda pública de saúde mental, visando


ver

alternativas de tratamento que evitassem permanência por longos períodos


em internação hospitalar, bem como, maior inserção de equipes de saúde
multiprofissionais nos estabelecimentos de saúde por todo o país.
Nesse sentido, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2011) afirmar que, com
a implantação de políticas públicas de saúde mental no SUS, os serviços de

Flávia Lemos - 21982.indd 212 28/02/2020 13:13:16


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 213

emergência foram radicalmente modificados a partir da inserção de novos dis-


positivos de trabalho em redes, tecnologias, profissionais e ações, ressaltando
as mudanças no modelo de organização do processo de trabalho na assistência
de saúde mental, nos diferentes estabelecimentos de saúde pelo país.
Contudo, Paulo Amarante (2012) pondera que, a concepção de rede de
atenção à saúde mental do Ministério da Saúde, reflete uma visão ainda muito
restrita aos recursos e dispositivos sanitários, sem incorporar adequadamente

or
a possibilidade de ativação de recursos intersetoriais e comunitários (AMA-

od V
RANTE, 2012, p. 356). O autor pondera que, esta perspectiva é importante

aut
para o entendimento da necessidade de articulação dos serviços de saúde com
os recursos sociais do território, com a vida no cotidiano das cidades e resi-
dências, estratégias que precisam de um constante processo de aproximação

R
e investimento dos estabelecimentos de profissionais parte da rede de saúde
mental básica e especializada.

o
Dentro desse debate, é importante também ressaltar que, estes e outros
aC
serviços foram criados para atuar em conjuntos especializados, no encami-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nhamento dos casos de acordo com as necessidades de saúde das pessoas,


permanecendo este encaminhamento vinculado ao profissional quem, após o
atendimento especializado, continuará o acompanhamento (BRASIL, 2011).
visã
Tais orientações técnicas para o atendimento multiprofissional, atuam na busca
não somente do atendimento momentâneo, mas organização de uma rede
de acompanhamento especializado, em conjunto de serviços, profissionais
itor

e intervenções à saúde mental, mais próxima do território onde vivem as


a re

pessoas e suas famílias, em meio as locais de grande circulação nas cidades.

2. Políticas públicas em saúde mental


par

A rede de atenção psicossocial em saúde mental é formada por um con-


junto de estabelecimentos de saúde e dispositivos técnicos profissionais espe-
Ed

cializadas no atendimento aos casos de transtornos ou sofrimentos mentais.


São serviços e profissionais de saúde que atuam em diversos equipamentos
ambulatoriais, hospitalares extra-hospitalares. Resultado da modificação no
ão

modelo de saúde mental, mas também das relações entre os serviços, usuário
e família, e entre estes e a comunidade (AMARANTES, 2014). O modelo de
cuidado psicossocial visa auxiliar a pessoa portadora de transtorno mental,
s

seus familiares e comunidade no desenvolvimento de estratégias de melhor


ver

convívio com a sociedade.


O modelo de cuidado psicossocial em saúde organiza-se através de ser-
viços e profissionais atuando em conjunto de multiespecialidades, buscando
abordagem aos diferentes aspectos e características do processo de adoeci-
mento dos sujeitos e seus familiares, mas também, da sociedade e garantia

Flávia Lemos - 21982.indd 213 28/02/2020 13:13:16


214

de direitos às populações (BRASIL, 2011). Dentro desse modelo de atenção


comunitária especializado, está o desafio de encontrar soluções de tratamento,
baseadas no desenvolvimento de formas de melhor convívio de sujeitos em
sociedade, de metodologias de esclarecimento sobre a loucura e processos
de adoecimento em meio aos conteúdos circulantes, de formas de trabalho
para garantia de direitos às pessoas, do cuidado e acompanhamento em saúde
psicossocial aos portadores sofrimento mental nos estabelecimentos da rede

or
de saúde.
Os serviços atuam dentro da lógica de atenção comunitária à saúde de

od V
usuários23, não mais considerados como pacientes psiquiátricos que precisam

aut
ser tutelados e dirigidos em suas escolhas, mas sujeitos de suas vidas que,
precisam ser assistidos em suas demandas em alguns momentos, visando a

R
plena promoção de saúde, das capacidades de autonomia dessas pessoas no
protagonismo do convívio em sociedade.

o
A atenção psicossocial propõe um novo modelo assistencial, tendo como
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


prioridades a manutenção e a integração do usuário na comunidade. Nessa
perspectiva, surgem como um dos pilares assistenciais deste contexto de
atenção ao doente mental, providos de uma rede de atenção diversificada,
descentralizada e integrada à rede de serviços de saúde (ROCHA; TENÓ-
visã
RIO, 2009, p. 53).

A Lei 10.216 de 2001, dispõe sobre a assistência durante a internação24,


itor

determina que, a internação do paciente em emergência ocorrerá somente após


a re

esgotarem-se outras formas de tratamento extra-hospitalar (BRASIL, 2001).


Determina que o tratamento será estruturado para garantir o atendimento em
equipe multiprofissional, de maneira a oferecer cuidado integral à saúde das
pessoas, do acesso ao lazer e a cultura, da qualidade de vida.
par

Art. 4º, § 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de


forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos
Ed

mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos,


ocupacionais, de lazer, e outros (Lei 10.216/2001, grifo dos autores).
ão

Segundo a Lei 10.216/2001, todos serviços e profissionais que realizam


atendimento de emergência no SUS, devem atuar no objetivo de evitar a
s

23 O termo 'usuário' foi induzido pela legislação do SUS (lei n.8.080/90 e 8.142/90), às quais já me referi, no
ver

sentido de destacar o protagonismo do que anteriormente era apenas um 'paciente'. Significa um desloca-
mento no sentido do lugar social das pessoas em sofrimento psíquico (AMARANTES, 2014, p. 84).
24 Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que carac-
terize os seus motivos. Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II – internação involuntária:
aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III – internação compulsória:
aquela determinada pela Justiça(Lei 10.216/2001, grifo dos autores).

Flávia Lemos - 21982.indd 214 28/02/2020 13:13:16


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 215

internação hospitalar prolongada dos usuários. Contudo, é preciso ressaltar


que, tais mudanças no modelo de saúde mental, implicaram em um processo
de reformulação dos estabelecimentos de saúde, bem como, das práticas de
cuidado dos profissionais nas equipes multiprofissionais.
A pesquisa de Cristiane Barros (2010), ajuda a compreender melhor o
processo de mudança no trabalho das emergências em saúde mental, quando
em determinado momento, a autora afirma que, tornou-se necessário adaptar

or
o atendimento de urgência e emergência em psiquiatria para funcionar em

od V
hospitais gerais, juntamente com outras clínicas de especialidade médica,

aut
associado a implantação de atendimento em conjunto entre enfermarias espe-
cializadas e serviços extra-hospitalares, da possibilidade de acompanhamento

R
dos casos, antes e após o cuidado especializado na alta e média complexidade
nas redes de saúde.

o
Também fizeram parte dessas tentativas: a implantação de serviços de
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

internação parcial, como os hospitais-dia; a instalação de leitos psiquiá-


tricos em hospitais gerais; e a ampliação das funções dos serviços de
emergências psiquiátricas (SEPs) para o manejo do paciente em crise
(BARROS, 2010, p. 72).
visã

No tocante das primeiras intervenções voltadas à revisão no modelo


assistencial de saúde mental, parte do processo de criação e implemento das
itor

políticas públicas de saúde mental e cuidado psicossocial no Sistema Único


a re

de Saúde (SUS), destacamos, o debate que resultou nas bases da agenda: Pro-
grama Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH), instituído
pela portaria n. 251/GM, de 31 de janeiro de 2002.
O PNASH foi um dispositivo de avaliação em saúde criado como parte
par

das estratégias de redução dos leitos psiquiátricos no Brasil, ao estabelecer


novas normas para funcionamento da assistência hospitalar em saúde mental
Ed

no SUS. Como explica o documento a seguir.

Atualmente, no país todo, o número de leitos psiquiátricos é inferior a 50


ão

mil. Neste processo de redução do número de leitos, merece destaque a


atuação dos ministérios públicos estaduais que, a partir de ocorrências
de óbitos e violências em hospitais psiquiátricos, tem impetrado medidas
s

substanciais para reversão do modelo (BRASIL, 2011, p. 557).


ver

O PNASH atuou no projeto público de classificar os hospitais psiquiátri-


cos existentes no país, na busca de definir os primeiros parâmetros mínimos
de funcionamento aos estabelecimentos de saúde do SUS, ideal associado ao
processo de monitoramento dos serviços, de promover maior integralidade

Flávia Lemos - 21982.indd 215 28/02/2020 13:13:16


216

destes dispositivos à rede de serviços comunitários de saúde, respectivo aos


parâmetros das urgências psicossocial em saúde mental no SUS.
O programa subsidiou as medidas de fechamento de instituições que não
se adequassem reiteradamente ao funcionamento da atenção psicossocial em
saúde no SUS. Evidenciou-se mais intensamente na região sul e sudeste do
país, necessitando de pactuarão federal, estadual e municipal, bem como, com
o Ministério Público das referidas esferas. Atualmente o programa foi extinto,

or
havendo apresentado resultados interessantes na avaliação desses serviços
que precisariam de continuidade e mais dados atualizados.

od V
Talvez o mais importante marco desse processo, a Rede de Atenção

aut
Psicossocial (RAPs) 25 criada pelo Decreto Presidencial n.° 7.508, de 28 de
junho de 2011, configura-se como uma estratégia de organização de serviços/

R
profissionais/ações para atender pessoas em sofrimento psíquico ou trans-
torno mental, com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas

o
(BRASIL, 2011). Nos interessa mais compreender, como esta rede de servi-
aC
ços é estruturada para o acompanhamento dos usuários, assim destacamos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


seus componentes:

Art. 5º A Rede de Atenção Psicossocial é constituída pelos seguintes com-


visã
ponentes: I – atenção básica em saúde, formada pelos seguintes pontos
de atenção: a) Unidade Básica de Saúde; b) equipe de atenção básica
para populações específicas: 1. Equipe de Consultório na Rua; 2. Equipe
de apoio aos serviços do componente Atenção Residencial de Caráter
itor

Transitório; c) Centros de Convivência; II – atenção psicossocial especia-


a re

lizada, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) Centros de Atenção


Psicossocial, nas suas diferentes modalidades; III – atenção de urgência e
emergência, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) SAMU 192; b)
Sala de Estabilização; c) UPA 24 horas; d) portas hospitalares de atenção
à urgência/pronto socorro; e) Unidades Básicas de Saúde, entre outros;
par

IV – atenção residencial de caráter transitório, formada pelos seguintes


pontos de atenção: a) Unidade de Recolhimento; b) Serviços de Atenção
Ed

em Regime Residencial; V – atenção hospitalar, formada pelos seguintes


pontos de atenção: a) enfermaria especializada em Hospital Geral; b)
serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com sofrimento
ão

ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack,


álcool e outras drogas; VI – estratégias de desinstitucionalização, formada
pelo seguinte ponto de atenção: a) Serviços Residenciais Terapêuticos; e
VII – reabilitação psicossocial (BRASIL, PORTARIA Nº 3.088, 23 DE
s

DEZEMBRO DE 2011).
ver

25 Devo justificar que nesse momento o foco da pesquisa está em compreender o segmento hospitalar da Rede
de Atenção Psicossocial, sem que com esse destaque, estejamos esquecendo a importância da implantação
da saúde mental através dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e dos demais dispositivos de Atenção
Básica de Saúde. Nesse sentido consultar: Roberta Rodrigues (2013), Sâmea Quebra (2011) ou Magda
Dimenstein (2005).

Flávia Lemos - 21982.indd 216 28/02/2020 13:13:16


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 217

A rede de atenção psicossocial, constituída por diferentes serviços capa-


zes de sustentar uma proposta de assistência e cuidado adequados para as
condições graves de sofrimento psíquico, é o mais importante projeto de
reforma de atenção ao dispositivo de intervenção, como mediador de um
projeto terapêutico, como parte da clínica das psicoses ou quadros agudos de
alteração psíquica no âmbito das políticas de saúde no SUS (FEITOSA, 2017).
Segundo Paulo Amarante (2014), os serviços podem ser considerados

or
tanto mais de base territorial no cuidado psicossocial, quanto mais desen-

od V
volver relações com os vários recursos existentes no âmbito de sua comu-

aut
nidade. Nesse sentido, relacionado ao princípio da integralidade no SUS,
de estratégias que perpassem os vários setores sociais da Rede de Atenção
Psicossocial, da saúde, assistência social, segurança, educação, sociedade

R
civil, bem como, da sociedade como um todo, em sua relação com o processo
de adoecimento mental.

o
O cuidado psicossocial em saúde mental implica em um constante ques-
aC
tionamento do lugar ocupado pela loucura nas comunidades, no empreendi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mento de ações coletivas visando transformação das práticas dominante de


deslegitimação do sujeito em sofrimento mental. Os processo de trabalho
em saúde mental precisam atuar através da desconstrução e convocação de
visã
mudanças de atitude da sociedade diante do processo de adoecimento em
saúde mental, da clínica dos profissionais de saúde integrada à sociedade, na
substituição das lógicas de voltadas ao isolamento, por práticas de cuidado
itor

em saúde produtoras de autonomia e protagonismo de sujeitos em sofrimento


a re

intenso, da clínica voltada ao sujeito em atendimento que, precisa estar inte-


grada com a relação subjetiva de cuidado em saúde.

3. Urgência e emergência em saúde mental


par

Para entendermos as formas de atendimento em rede de serviços no


Ed

SUS, no tocante ao funcionamento do atendimento às urgências e emergên-


cias em saúde mental, precisamos entender melhor o conceito de urgência e
emergência em saúde.
ão

Como nos ajudar a explicar Jardins (2017), as situações de urgência


derivam de uma ocorrência imprevista de agravo à saúde, podendo apresentar
ou não risco de vida. Nesses casos, de atendimento em saúde de urgência, o
s

sujeito apresenta uma demanda de assistência à saúde imediata por parte de


ver

profissionais da equipe multiprofissional de saúde especializada, porém, são


situações consideradas com possibilidade de espera para atendimento, não
necessariamente relacionadas ao risco de morte eminente.
Contudo, podem ocorrer casos de agravos em que, a equipe técnica
durante o atendimento de urgência, constata tratar-se de emergência, situação

Flávia Lemos - 21982.indd 217 28/02/2020 13:13:16


218

com potencial risco eminente de vida. Assim, o atendimento de emergência


evidencia-se em casos de risco de morte eminente, fruto da constatação téc-
nica de condições de agravo à saúde. A diferença entre estes tipos de agravo
de saúde, advém da gravidade e possibilidade de espera para atendimento, da
necessidade em ambos os casos, de uma otimização do tempo nos cuidados26.
A Política Nacional de Atenção às Urgências tem como seu marco a
promulgação da Portaria GM 2048 de 05 de novembro de 2002, que dispõe

or
sobre a criação e funcionamento dos serviços de urgência e emergência no

od V
país. Composta por sete portarias, vale destacar dentre estas atribuições men-

aut
cionadas, algumas que nos ajudam a definir as competências técnicas dos
serviços de urgência em saúde mental (Apud JARDINS, 2017).

R
Urgências Psiquiátricas: são as que circunscrevem as psicoses, tentativas
de suicídio, depressões, síndromes cerebrais orgânicas. Procedimentos:

o
reconhecer sinais de gravidade das patologias psiquiátricas em situações
aC
de urgência na cena da ocorrência. Descrever ao médico regulador os

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sinais observados no paciente em atendimento. Reconhecer a necessi-
dade de acionar outros atores no atendimento às urgências psiquiátrica;
adotar medidas no manejo dos pacientes agressivos, psicóticos e suicidas
visã
(BRASIL, 2006, p. 168).

A Portaria GMS 1863/03, no seu Art. 2º §1º atesta que a Política Nacional
de Atenção às Urgências deve ser organizada de forma que permita garantir
itor

atendimento segundo as prerrogativas do SUS, de universalidade, equidade


a re

e integralidade no atendimento aos usuários no âmbito das urgências em


saúde mental. Da mesma maneira, adotando critérios de seleção com base
em temas relacionados à emergência psiquiátrica, a Portaria GMS 1864/03
aponta que existem sete núcleos prioritários de produção da qualidade de
par

vida e saúde: traumatismos não intencionais; violências e suicídios; urgências


cardiovasculares; urgências ginecológicas e obstetrícias; urgências pediátri-
Ed

cas; urgências psiquiátricas; urgências metabólicas; urgências respiratórias


(Apud JARDINS, 2017). Esses foram alguns parâmetros para se afirmar que
o atendimento às urgências saúde mental está estruturado por meio de duas
ão

redes principais, a RAPs e também a REUE.


A partir desse entendimento, fica-nos claro que a REUE, além de fazer
s

parte da RAPs, também é responsável por outros tipos de atendimento de


ver

urgência e emergência, mas que, estas redes estão associadas ao atendimento


integral de necessidade dos usuários e seus familiares, quando em sofrimentos
mentais intensos. Embora buscando uma nova abordagem no cuidado em

26 Etapas previstas de um determinado caso, desde a identificação até a finalização do procedimento realizado
na urgência/emergência (MS, BRASIL, 2002).

Flávia Lemos - 21982.indd 218 28/02/2020 13:13:16


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 219

saúde, as práticas de cuidado neste segmento da saúde mental, estão ainda


bastante associadas com aspectos dos conhecimentos da psiquiatria, naquilo
que esta agrupa de saberes e classificações sobre tipos de transtornos mentais
atendidos. Assim é interessante ponderamos este viés, como nos ajudam a
entender a base nos autores a seguir.

As psicoses esquizofrênicas, os transtornos delirantes persistentes, os cha-

or
mados transtornos do humor, dependências à substancias psicoativas, as sín-
dromes associadas ao stress, e aos transtornos de personalidade, com base

od V
nas classificações americanas (DSM) (ROCHA; TENÓRIO, 2009, p. 3).

aut
A REUE apresenta estrutura e funcionamento baseados em estratégias

R
de resolutividade imediatas às demandas apresentadas nos agravos de saúde,
as urgências buscam seguir uma proposta biomédica de intervenção, de res-

o
taurar o funcionamento do organismo (JARDINS, 2017). Nesse sentido, a
aC
autora argumenta que, a demanda dos serviços de saúde é sempre voltada à
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

resolução de um agravo de saúde de forma imediata.

A formação dos profissionais que atuarão na urgência e emergência vem


visã
carimbada por esse funcionamento imediatista. Além disso, a Rede de
Urgência e Emergência (REUE) é, talvez, a rede mais medicalizada de
todas e funciona com base em protocolos de atendimento nos serviços
(JARDINS, 2017, p. 66).
itor
a re

Nesse contexto, pensamos como torna-se possível associar REUE e as


estratégias de suporte psicossocial em saúde mental, que surgem enquanto
medidas de fortalecimento da necessidade de triagem na internação em qua-
dros agudos de crise, bem como, acompanhamento continuado no momento
par

de alta hospitalar de usuários, ou ainda, de atuar preventivamente no início


do cuidado ambulatorial de novos casos (BRASIL, 1992).
Ed

As situações de emergência em saúde mental estão relacionadas com


situações de graves conflitos emocionais vivenciados em meio a crise nas
psicoses, em geral, no momento em que estas, estão ligadas a riscos de morte
ão

eminente ou a graves prejuízos biopsicossociais. Nesse sentido, o atendimento


ao paciente no auge de uma crise aguda nas emergências pretende conside-
rar os casos de pessoas assoladas por alucinações, submergidas em delírios
s

e ameaçadas diante de uma perspectiva de si que é geradora de sofrimento


ver

(FEITOSA, 2017). São diversas as possibilidades que podem ocasionar agra-


vos à saúde, consideradas como produtoras dos sinais e sintomas de intenso
sofrimento mental. Nesse sentido, tendo cuidado de não generalizá-las ou
resumir quadros diversos em uma nomenclatura, a autora Cristiane Barros
(2010) argumenta sobre situações mais comuns no atendimento às psicoses.

Flávia Lemos - 21982.indd 219 28/02/2020 13:13:17


220

Emergências psiquiátricas podem ser caracterizadas como uma condição


em que há um distúrbio de pensamento, emoções ou comportamento, na
qual um atendimento se faz necessário imediatamente, objetivando evitar
maiores prejuízos à saúde psíquica, física e social do indivíduo ou eliminar
possíveis riscos à sua vida ou à de outros. Fazem parte dessa clientela tanto
indivíduos que possuem história de um transtorno psiquiátrico crônico, que
se apresentam num momento de recaída, como pacientes sem história psi-

or
quiátrica pregressa, apresentando uma crise aguda (BARROS, 2010, p. 72).

od V
A portaria SAS/MS nº 189/91 iniciou o processo de normatizar a siste-

aut
mática para as internações em instituições de tratamento em saúde mental no
Brasil, inserindo-as nos critérios de assistência à saúde no SUS. A portaria

R
determina que o usuário, ao chegar ao serviço de Emergência Psiquiátrica
deve ser atendido por uma equipe multiprofissional, composta de médicos

o
psiquiatras e clínicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais,
educador físico, enfermeiros e técnicos de enfermagem, com admissão de
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


internação sob responsabilidade formal do profissional da categoria médica
(BRASIL, 1991).
Nesta nova conjuntura, os serviços de EP tem objetivo de atendimento
visã
rápido e ágil, buscando caracterizar aspectos diagnósticos, relativos às etio-
logias e necessidades psicossociais do quadro apresentado, viabilizando seu
tratamento em curto prazo e definindo o tipo de tratamento no qual o paciente
seria mais bem cuidado em médio e longo prazos (BARROS, 2010). Com
itor

destaque apontado pela autora, para a necessidade de constante comunicação


a re

entre os profissionais, bem como, com os demais dispositivos da rede inter-


setorial para determinar este diagnostico diferenciado, ou seja, para além de
instituições do setor de saúde, com a sociedade em geral, na assistência à
urgência em saúde mental, no contato com comunidade e familiares desses
par

sujeitos, territórios e redes de cuidado em saúde.


A portaria SAS/MS nº 224/92 normatizou o funcionamento dos serviços
Ed

assistenciais de cuidado em saúde mental no Brasil. Determina que urgência


e emergência psiquiátrica em prontos-socorros e hospitais gerais, funcionem
diariamente durante 24 horas e contem com o apoio de leitos de internação
ão

para até 72 horas, podendo neste último caso, o atendimento ser estendido
mediante solicitação da equipe assistente do serviço (BRASIL, 1992).
Assim, como forma de nos explicar mais da importância da porta-
s

ria 224/92, Barros (2010) afirmar que o surgimento de unidades de emergên-


ver

cias psiquiátrica em hospitais gerais, assim como a inserção da saúde mental


no segmento de atenção básica de saúde, ou ainda, o modelo de cuidado
psicossocial, fortaleceram uma maior necessidade de aproximação da saúde
mental com as outras especialidades de saúde em geral, determinando uma
forma de intervenção no cuidado mais integral, próximo aos usuários no SUS.

Flávia Lemos - 21982.indd 220 28/02/2020 13:13:17


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 221

Serviços de emergência ligados a hospitais gerais incorporam esta proposta


de tratamento mais amplo, mantendo um direcionamento baseado em
evidências para os cuidados de saúde, pois avaliam e buscam o manejo
de comorbidades clínicas, além dos transtornos psiquiátricos primários.
SEPs em hospitais gerais são os serviços de escolha para o encaminha-
mento de casos que necessitem de um melhor suporte clínico e cirúrgico,
como síndromes de abstinência alcoólica, tentativas de suicídios, esta-

or
dos confusionais agudos, além de pacientes psiquiátricos acometidos por
doenças clínicas e cirúrgicas que necessitem de retaguarda de unidades

od V
de tratamento semi-intensivo ou intensivo (p. 74).

aut
As portarias de n.189/91 e n. 224/92, ajudaram no estabelecimento e
regulamentação dos novos procedimentos em atenção psiquiátrica na rede de

R
atenção psicossocial. Além de regularem as consultas ambulatoriais e as inter-
nações psiquiátricas, passaram a tornar possível o atendimento em serviços

o
de atenção psicossocial fora dos hospitais, como nos Naps/Caps, ou ainda,
aC
em novos modelos hospitalares, como o Hospital-Dia e oficinas terapêuticas.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Nesse sentido, a Portaria de n. 336, acrescenta novos parâmetros aos definidos


pela Portaria n. 224 para a área ambulatorial de atendimento, ampliando a
abrangência dos serviços substitutivos de atenção psicossocial, estabelecendo
visã
portes diferenciados a partir de critérios populacionais para os CAPs, direcio-
nando novos serviços específicos para área de álcool e outras drogas, infância
e adolescência. Criam, ainda, mecanismo de financiamento próprio, dos tetos
financeiros municipais e estaduais, porém mais relacionados aos CAPs.
itor

A internação psiquiátrica na atualidade, convida-nos ao debate sobre o


a re

lugar da saúde na clínica das psicoses, do cuidado em saúde ao sofrimento


ou transtorno mental. Cabe esclarecer neste cenário, que o debate sobre a
crise é controverso entre os autores. Optamos assim, por nesta pesquisa, com-
preendermos que, o momento da crise é entendido dentro de um contexto e
par

processo social de vida de sujeitos que, durante um período podem demandar


intervenção clínica em saúde (AMARANTE, 2014).
Ed

No contexto de atenção psicossocial o usuário perde seu lugar de sujeito


passivo, sendo convocado a participar de sua assistência, é dessa forma
ão

que se torna produtor. É um processo articulado de práticas (sustentado por


uma trama de conceitos), que não se deteria até que a pessoa acometida
por problemas mentais, pudesse sedimentar uma relação mais autônoma
s

com a instituição (GOLDBERG, 1992, p. 34).


ver

Contudo, percebeu-se na literatura, que uma prática comum e recorrente


no processo de trabalho no atendimento à crise, é o uso da contenção física
e química pelos profissionais. A imobilização seria o fim do problema, ou de
um comportamento de agressividade manifestado. Paes, Maftum e Mantovani
(2010) perceberam em seu estudo a dificuldade da equipe de enfermagem em

Flávia Lemos - 21982.indd 221 28/02/2020 13:13:17


222

realizar cuidados específicos na área psíquica. O que detectaram no estudo


realizado, é que o atendimento em saúde mental é fracionado nos serviços
de emergência. Notaram ênfase somente à queixa psíquica dos quadros, em
prejuízos, do atendimento às necessidades físicas também apresentadas.

4. Cuidado psicossocial à crise

or
A Reforma Psiquiátrica considera a loucura como uma questão política
e social, não sendo uma exclusividade da técnica dos profissionais produzir

od V
respostas a essas demandas (ROCHA; TENÓRIO, 2009). Tal pensamento,

aut
significa a importância de contato com o meio social nas intervenções de
saúde mental integradas à sociedade, da constante problemática que envolve

R
o cuidado em saúde, relativo à compreensão sobre os modos de vida das pes-
soas, como determinantes sociais do processo de adoecimento e manutenção
das enfermidades.

o
aC
O tratamento consiste em levar o paciente a um funcionamento mais favo-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


rável ao seu pertencimento à convivência social, na família, com os vizi-
nhos, num trabalho, nas relações sociais possíveis, uma maior autonomia
pessoal, etc. (ROCHA; TENÓRIO, 2009, p. 3).
visã

O modelo de cuidado psicossocial contrapõe-se ao modelo psiquiátrico


clássico, ao considerar fatores políticos e sociais no processo de adoecimento,
considera a loucura, não como fenômeno individual, mas sim parte de um
itor

coletivo de pessoas e instituições.


a re

O tratamento visa a um reposicionamento do sujeito de tal modo que


ele, em vez de apenas sofrer efeitos dos conflitos e contradições que o
atravessam, passe a reconhecer-se como um dos agentes implicados nesse
‘sofrimento’ e como um agente da possibilidade de mudança (WET-
par

ZEL, 2005, p. 102).


Ed

Nesse sentido, compreende-se, tal como Eduardo Rocha e Fernando


Tenório (2009), que saúde mental é um campo de cuidado voltado a pessoas
em sofrimento mental, proposição que ressalta o entendimento crítico dos
ão

autores, sobre as necessidades práticas de cuidado integral nos estabelecimen-


tos de saúde mental, que estas devem ser complementadas pela intervenção
no meio social, no entorno comunitário dos usuários e seus familiares.
s
ver

Das terapêuticas do viver, dirigido principalmente aos psicóticos, mas


também aos usuários de álcool e drogas na ‘fronteira dos laços sociais’
(cujo uso de álcool e drogas os leva a estarem num certo ‘’fora’’ das coi-
sas que constituem a vida social instituída), de alguns níveis de retardo,
e de ‘neuróticos graves’, que são neuróticos que vieram a requerer um
tratamento psiquiátrico institucional (ROCHA; TENÓRIO, 2009, p. 2).

Flávia Lemos - 21982.indd 222 28/02/2020 13:13:17


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 223

Os autores explicam que é importante contextualizarmos as histórias


de vida das pessoas durante o acompanhamento do caso, criarmos vínculos
de confiança, acolhermos o sofrimento e construirmos juntos estratégias de
enfrentamento para a vida. E para isso, precisamos de tempo, um longo tempo
para construir essa relação de confiança entre pessoas.

Na saúde mental e atenção psicossocial, o que se pretende é uma rede de

or
relações entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam, médicos, enfermei-
ros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, dentre muitos

od V
outros autores que são evidenciados neste processo social complexo, com

aut
sujeitos que vivenciam as problemáticas – os usuários familiares e outros
atores sociais (AMARANTES, 2014, p. 84).

R
Kondo et al. (2011) afirmam a importância fundamental da criação do
vínculo entre profissional-paciente para o sucesso do atendimento em saúde.

o
Pois segundo as autoras, em um atendimento de qualidade, a comunicação
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ativa dos participantes, garantiria maior efetividade e continuidade ao trata-


mento, pautado na participação ativa dos usuários. Esta é uma direção que
busca atuar para possibilitar sobrepor o isolamento psíquico advindo das psi-
coses, pela atuação multiprofissional na escolha autônoma dos usuários e fami-
visã
liares diante dos acontecimentos do processo de adoecimento e tratamento.

Dentro deste debate, é importante compreender algumas das característi-


itor

cas fundamentais no contexto de atendimento multiprofissional em saúde


a re

mental nas EPs, parte das funções deste tipo de estabelecimento de saúde
na rede de serviços a que está relacionada. Há situação e momentos em
que a internação entra como exigência de limites ao sujeito, de lei, de
lugar intermediário que possa garantir distância e uma mediação para o
desatino do mesmo (FEITOSA, 2017, p. 455).
par

Em contraponto à lógica da urgência, a lógica de cuidado em saúde men-


Ed

tal prevê um tempo relativo às necessidades subjetivas do usuário do serviço.


A loucura enquanto sofrimento psíquico, neste entendimento, não tem mais de
ser removida a qualquer custo da vida das pessoas, assim também dos espaços
ão

sociais (FEITOSA, 2017). Estes espaços sociais são reintegrados como partes
da existência de cada um na sociedade, buscando formas e estratégias distintas
de produção de suas subjetividades, vistas como elementos componentes do
s

patrimônio da diferença individual, da clínica dos profissionais no cuidado


ver

em saúde.
Ao contrário do que se espera da atuação na alta complexidade, em hospi-
tais e suas complexas máquinas, como diz Lancetti (2006), quando ao cuidado
em saúde mental, a grande complexidade se encontra no território de produção
da saúde, em acessar os lugares onde as pessoas vivem, relacionamento com

Flávia Lemos - 21982.indd 223 28/02/2020 13:13:17


224

a família e amigos, vizinhos e estratégias de vida destes sujeitos, que buscam


forma diferente de existir.
A crise em saúde mental nas psicoses é uma situação de extremos, em
que o sujeito e seus familiares atravessam um momento de angústia e sofri-
mento intenso, a ponto de necessitar de ajuda profissional para restituir a
rotina em suas vidas (BONFADA; GUIMARÃES; BRITO, 2012). A crise
não é um diagnostico com terapêutica rígida delimitada previamente, pois

or
é fundamental conseguir enxergar suas potencialidades para o atendimento,
procurar descobrir o sentido que a pessoa que passa por este sofrimento con-

od V
fere ao ocorrido, e a partir deste encontro entre sujeitos, pactua estratégias de

aut
cuidado coletivas para resolução dos problemas e de novas formas de levar
a vida (JARDINS, 2017).

R
Nesse sentido, o momento de crise é entendido como o resultado de uma
série de fatores que envolvem os modos de vida de pessoas em sociedade, com

o
seus familiares, amigos ou consigo mesmos (AMARANTES, 2015). O foco
aC
está na complexidade de determinação social do processo de adoecimento

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nos sofrimentos psíquicos, em dizer o que é grave, moderado ou leve, onde
foi iniciada a crise e como lidar com esses sinais e sintomas. Compreende-
se a implantação de um modelo de atenção especializada nas emergências
visã
psiquiátricas em hospitais gerais, enquanto pontos da rede de serviços, onde
as pessoas possam dispor de leitos de suporte à crise psiquiátrica nas psico-
ses, com internação por um breve período, de acordo com as necessidades e
trabalhadas em conjunto pelos profissionais da equipe de assistência multi-
itor

profissional e familiares dos usuários dos serviços.


a re

Os serviços de emergências psiquiátricas relacionam-se com todos os


serviços hospitalares e extra-hospitalares, possibilitando a organização do
fluxo das internações e evitando sobrecarga da rede de saúde mental. As
funções dos serviços de emergências psiquiátricas são amplas e extrapolam
par

o simples encaminhamento para internação integral, pois estabilização


clínica e suporte psicossocial podem ser alcançados em serviços de emer-
Ed

gências psiquiátricas bem estruturados (BARROS, 2010).

Para Feitosa (2017) a crise é a simplificação da nomenclatura para a


ão

existência de sofrimento intenso, mas apresenta significado para cada pessoa,


na tentativa de representar, de espelhar com palavras as experiências vividas.
A autora afirma que, precisamos quebrar o tradicionalismo que liga a crise
s

somente aos hospitais e enfermarias. Precisamos ampliar o sentido de crise,


ver

vê-la como um momento de mudança, que pode transformar e reinventar as


formas de vida das pessoas e das sociedades.

O sujeito em crise deve ser acolhido. Quando submerso pela inva-


são psicótica, o sofrimento é intenso, é avassalador. O paciente fica

Flávia Lemos - 21982.indd 224 28/02/2020 13:13:17


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 225

totalmente a mercê de sua própria loucura, mas de forma despedaçada


e fragmentada, necessitando de ajuda e cuidado. Para tal, a internação
deve servir como espaço de acolhimento e de recolhimento do sujeito
(FEITOSA, 2017, p. 72).

Nessa problemática apresentada, quando passamos à delegar somente aos


médicos e medicamentos a responsabilidade em relação ao cuidado na crise,

or
estamos desconsiderando as diretrizes do cuidado integral normatizadas pelo
SUS. A loucura não é uma doença, e sim, uma forma de funcionamento dife-

od V
renciado de alguém que demandará um cuidado em subjetividade visando não

aut
somente o seu corpo físico, mas tudo aquilo que envolve o conceito ampliado
de saúde integral. A medicação deve ser vista como mais um instrumento pos-

R
sível no cuidado e não como única solução dos problemas (SANTOS, 2010;
apud JARDINS, 2017).

o
aC
Exatamente porque viver é correr riscos, que podemos desconfiar das
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sagradas escrituras das bulas de remédios, das prescrições técnicas traves-


tidas na assepsia e neutralidade, dos saberes cuidadosamente embalados
com papel de presente cientifico, das teorizações totalizantes e totalitá-
visã
rias. Podemos nos arriscar a inventar lugares onde a vida não seja mera
retórica ou vocábulo démodé, mofando na prateleira tecnocrática de saber
(SANTOS, op. cit., p. 175).
itor

Contudo, o paradoxo do poder médico na área da saúde está relacionado à


a re

problemática de falta de preparo das equipes para lidar com essas situações de
sofrimento intenso, mas que, as causas identificáveis no processo de trabalho
são relativas ao medo de entrar em contato com as demandas, do que pode
acontecer nestes casos, o que contribui para maior quantidade no cuidado aos
par

usuários em crise (SANTOS, 2010; Apud JARDINS, 2017). Um modelo


substitutivo tem seu funcionamento distinto do funcionamento do hospital
Ed

psiquiátrico e seus técnicos precisam ter clarezas das razões que sustentam a
crítica à instituição psiquiátrica tradicional (JARDINS, 2017). Se enquanto
técnicos nos colocamos acima dos usuários e familiares, nos vangloriamos
ão

de uma determinada sabedoria, será difícil nos comunicarmos antes, durante


e mesmo depois da crise.
s

O acolhimento da pessoa em crise pode gerar uma cooperação mútua


ver

para que profissional e usuário possam produzir sentido àquele momento


É provável que presos a regras e condutas na clínica em saúde, tentando
aplicar moldes aos comportamentos e tipos de pessoas, teremos problemas
em estabelecer um nível de comunicação apropriado ao atendimento e
formulação de vinculo para o trabalho em saúde (JARDINS, 2017, p. 102).

Flávia Lemos - 21982.indd 225 28/02/2020 13:13:18


226

Nesse sentido, com base nos pensamentos defendidos pelas autoras


(SANTOS, 2010; JARDINS, 2017) compreendemos que uma boa saída para
o dilema da clínica em saúde, é a valorização das estratégias e escolhas da pró-
pria pessoa para lidar com seus sofrimentos no momento de crise. Defendemos
assim que, não é de supressão que alguém na crise precisa, mas sim, de um
espaço de vinculação que possa proporcionar acolhimento e em certa medida
autoconfiança para lidar com as condições de vida que lhe são impostas. Além

or
de coletivo, esse é um processo audacioso e sem precedentes, como defende
Katita Jardins (2017), a Reforma Psiquiátrica é um modelo de implementação

od V
de civilidade nas sociedades, que não deve se restringir aos ambientes de

aut
saúde e aos locais de ensino das profissões, devendo ser exercido e discutido
em todos os espaços de coletividade.

5. Considerações disparadoras R
o
aC
Argumentamos a função da clínica para os profissionais na área da saúde

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


como situada na dicotomia entre o individual e o social, em uma forma de
atuação, ao mesmo tempo técnica e política do profissional no cotidiano de
cuidado nos estabelecimentos de saúde. Tal perspectiva, está estruturada pela
visã
compreensão do processo de cuidado aos agravos em saúde, como procedi-
mentos relacionados à complexidade dos adoecimentos, da produção de saúde,
como determinada pelo desenvolvimento de autonomia e protagonismo dos
sujeitos, da qualidade de vida na sociedade, dos direitos e acesso aos lugares
itor

de circulação das pessoas.


a re

Quando trabalhamos com alterações psicóticas em sua fase aguda, é


preciso considerar as dificuldades de frequentar o laço social em meio a
crise, problemáticas relacionadas, em muitos casos, aos momentos de intenso
sofrimento apresentados pelos sujeitos. Nesse sentido, na medida em que
par

lidamos com a assistência em saúde, temos de estar cientes, da função dessa


intervenção, dessa estratégia de cuidado utilizada para cada pessoa envolvida
Ed

(FEITOSA, 2017). A autora nesse momento, ajuda-nos a pensar a clínica em


saúde mental como relacionada em um tipo de responsabilidade social dos
profissionais, bem como, de toda a comunidade envolvida na convivência
ão

com os usuários em sofrimento mental.


Dessa maneira, por vezes, o atendimento de urgência e emergência em
saúde mental poderá funcionar como um recolhimento e suporte contra a
s

invasão alucinatória e/ou delirante dos sintomas manifestados, da interna-


ver

ção para observação do usuário, vista como um lugar muito importante na


intervenção aos quadros de crise na psicose (FEITOSA, 2017). A internação,
nesse momento, propõe a convergência entre o social e a dimensão subjetiva
para, exatamente, pensar um lugar social para loucura, uma vez que a clínica
é intrínseca aos laços dos sujeitos com as comunidades e territórios.

Flávia Lemos - 21982.indd 226 28/02/2020 13:13:18


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 227

A proposta de internação em alta complexidade na saúde mental baseia-


se na organização do fazer em equipe multiprofissional, do atendimento de
ambulatório e internação como um serviço organizado por uma multiplicidade
de saberes técnicos. Onde compete ao técnico com seu referencial profissional,
voltado para um mesmo objetivo, acolher o singular que, considera a dimensão
particular do processo de adoecimento de cada sujeito, comprometendo-se
em não somente valorizar sua singularidade na escuta, mas também sustentar

or
intervenções clínicas construídas coletivamente, a partir daquilo que o próprio
usuário produz, problematiza e escolhe para sua vida.

od V
Sendo um formato de clínica em saúde, precisamente orientada pelo

aut
trabalho em equipes multiprofissionais, a internação em emergências de saúde
mental, enquanto instituição de tratamento, deve estabelecer ferramentas que

R
possam não somente interrogar suas intervenções, mas também reorientá-las
em prol da clínica do sujeito. As palavras ditas, os gestos esboçados, os inte-

o
resses despertados, precisam ser acolhidos. Devemos pensar não somente em
aC
relação aos motivos que acarretaram a internação, mas também sobre aqueles
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que sustentam sua duração e reincidências (FEITOSA, 2017). O objetivo do


atendimento em equipe deve ser exatamente o de compartilhar elementos que
cada membro pode recolher ao escutar o paciente, é por meio da consideração
visã
da complexidade do lugar do sujeito na clínica que, torna-se possível construir
os balizadores do atendimento em saúde.

Não é o sujeito que “deve” respeitar as instituições, mas a instituição que


itor

será respeitada só se tiver vontade de dar ao sujeito uma representação,


a re

um lugar no vínculo social (VIGANÓ, 2012, p. 101).

Se não houver uma escuta qualificada, um comprometimento, além da


real preocupação com o que acarretou a situação de crise, o profissional não
consegue a confiança do paciente e cria um bloqueio que impede um aten-
par

dimento. Com isso, o indivíduo precisa ser compreendido e acolhido dentro


das estratégias de cuidado dos estabelecimentos de saúde, recebendo um
Ed

atendimento que supra suas necessidades mais especificas de manutenção


do cuidado/tratamento em saúde (PAES; MAFTUM; MANTOVANI, 2010).
Quando são criadas barreiras no atendimento, o vínculo essencial ao cuidado
ão

em saúde dificilmente será criado.


Quando nos contrapomos à lógica manicomial nos estabelecimentos de
s

saúde, estamos optando por outro modelo de assistência em saúde mental,


ver

voltado não mais a perspectiva de intervir apenas com a função de internação,


mas principalmente, pela preocupação em conseguir acolher o sujeito em seu
sofrimento biopsicossocial, dar encaminhamento no sentido de solucionar as
demandas do momento e não mais tentar padronizar sujeitos.

Flávia Lemos - 21982.indd 227 28/02/2020 13:13:18


228

REFERÊNCIAS
AMARANTE, Paulo. Algumas observações críticas sobre a formação em
saúde mental. 2017. In: LOBOSQUE, A. M. Caderno Saúde Mental: Os
Desafios da Formação. ESP-MG, 2017.

or
______. Saúde Mental, desinstitucionalização e novas estratégias de cuidado.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ. In: Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil.

od V
GIOVANELLA L, et al. (Orgs.). 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Centro

aut
Brasileiro de Estudos de Saúde; 2012.

R
______. Saúde Mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.
2014.

o
aC
BARROS, Régis Eric Maia; TUNG, Teng Chei; MARI, Jair de Jesus. Serviços

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de emergência psiquiátrica e suas relações com a rede de saúde mental Brasi-
leira. Rev. Bras. Psiquiatr. v. 32, suppl. 2, p.S71-S77. 2010. ISSN 1516-4446.
Disponível online: <. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462010000600003>.
visã

BONFADA, Diego; GUIMARAES, Jacileide. Serviço de atendimento


móvel de urgência e as urgências psiquiátricas. Psicol. estud. [online].
itor

v. 17, n. 2, p. 227-236, 2012. ISSN 1413-7372. <http://dx.doi.org/10.1590/


a re

S1413-73722012000200006>.

BRASIL. Lei 10.216. (2001). Dispõe sobre a proteção e os direitos das pes-


soas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial
em saúde mental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legisla/htm>.
par

Acesso em: 20 jun. 2015.


Ed

______. Ministério da Saúde. Coordenação de saúde mental/Coordenação


de Gestão da Atenção Básica. Saúde Mental e Atenção Básica: vínculos e
diálogos necessários. In: BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas Sobre
ão

Drogas. Prevenção de Problemas Relacionados ao uso de drogas: capa-


citação para conselheiros e lideranças comunitárias/ Ministério da Justiça,
s

Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. 6. ed. Brasília, DF: SENAD-


ver

-MJ/NUTE-UFSC, 2014.

______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Mental. 2008. Dis-


ponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.
cfm?idtxt=24134&janel a=1>. Acesso em: 01 set 2015.

Flávia Lemos - 21982.indd 228 28/02/2020 13:13:18


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 229

BRASIL. Ministério da Saúde (1991). Portaria 189/91. Estabelece diretrizes


e normas para o atendimento em saúde mental. Disponível em <http://www.
planalto.gov.br/legisla/htm>. Acesso em: 25 out. 2016.

______. Ministério da Saúde (1992). Portaria 224/92. Estabelece diretrizes


e normas para o atendimento em saúde mental. Disponível em <http://www.
planalto.gov.br/legisla/htm>. Acesso em: 27 set. 2015.

or
od V
______. Ministérios da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento

aut
de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde Mental no SUS: centros de
atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2006, p. 77-84.

R
______. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
– SGEP Departamento Nacional de Auditoria do SUS – DENASUS. Avaliação

o
dos Hospitais Psiquiátricos no Âmbito do Sistema Único de Saúde Ação
aC
Nacional - PT GM/MS nº 2.398/2011, novembro de 2011.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

DIMENSTEIN, Magda. O desafio da política de saúde mental: a (re)inser-


ção social dos portadores de transtornos mentais, 2005. Mental, Barba-
visã
cena,  v. 4, n. 6,  jun. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S198402922011000300004&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 11  ago.  2016.
itor
a re

FEITOSA, A. C. O Acompanhamento Terapêutico como dispositivo clínico


na internação psiquiátrica. In: PASSOS, R. G.; COSTA, R. A.; SILVA, F. G.
Saúde Mental e os Desafios Atuais da Atenção Psicossocial. GRAMMA,
Rio de Janeiro, 2017.
par

GOLDBERG, J.I. A doença mental e as instituições - a perspectiva de


Ed

novas práticas [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: Faculdade de Medicina,


Universidade de São Paulo; 1992. Disponível em: <http://www.teses.usp.br >.
ão

JARDINS, K. Porque a crise não cabe no sistema? Divagações sobre a inter-


face entre a Rede de Saúde Mental e a Rede de Urgência e Emergência. In:
PASSOS, R. G.; COSTA, R. A.; SILVA, F. G. Saúde Mental e os Desafios
s

Atuais da Atenção Psicossocial. GRAMMA, Rio de Janeiro, 2017.


ver

KONDO, Érika Hissae et al. Abordagem da equipe de enfermagem ao usuário


na emergência em saúde mental em um pronto atendimento. Rev. esc. enferm.
USP [online]. v. 45, n. 2, p. 501-507. 2011, ISSN 0080-6234. <http://dx.doi.
org/10.1590/S0080-62342011000200028>.

Flávia Lemos - 21982.indd 229 28/02/2020 13:13:18


230

LANCETTI, Antonio. Saúde Mental e Saúde da Família. São Paulo, Huci-


tec, 2006.

PAES, Marcio Roberto; MAFTUM, Mariluci Alves and MANTOVANI, Maria


de Fátima. Cuidado de enfermagem ao paciente com comorbidade clínico-
-psiquiátrica em um pronto atendimento hospitalar. Rev. Gaúcha Enferm.
[online]. v. 31, n. 2, p. 277-284, 2010, ISSN 1983-1447. <http://dx.doi.

or
org/10.1590/S1983-14472010000200011>.

od V
aut
QUEBRA, Samea C. Ferreira. Discurso Moderno e Psiquiatria Reformada:
considerações sobre um centro de atenção psicossocial (CAPS), 2011. Dis-
ponível em: <http://www.ppgp.ufpa.br>.

R
ROCHA, F.; TENÓRIO, E. C. A psicopatologia como elemento da atenção

o
psicossocial. In: ALBERTI, S.; FIGUEIREDO, A. C., Psicanálise e saúde
aC
mental: Uma aposta. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2009.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


RODRIGUES, Márcia Roberta. Com a voz, os usuários: discursos sobre
as práticas de cuidado em saúde mental em um CAPS do Estado do Pará.
visã
Belém, 2013. Disponível em: <http://www.ppgp.ufpa.br/M%C3%81RCIA%20
ROBERTA%20DE%2RIGUES.pdf>.
itor

VIGANÒ, C. Novas Conferências. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.


a re

WETZEL, C. Avaliação de serviço em saúde mental: a construção de um


processo participativo. USP - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, 2005.
Disponível em: < http://www.teses.usp.br >.
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 230 28/02/2020 13:13:18


O ESVAZIAMENTO DA FUNÇÃO
DOCENTE NOS PROJETOS DE
CORREÇÃO DE FLUXO ESCOLAR

or
V
Marli Lucia Tonatto Zibetti

aut
Élida Furtado do Nascimento
Patrícia Guedes Nogueira

1. Introdução
CR
do
Estudar as políticas educacionais, a partir de referenciais críticos do
campo da psicologia escolar, tem nos permitido compreender os processos
de escolarização como historicamente constituídos e decorrentes de determi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
nações políticas e econômicas mais amplas, mas também marcados por apro-
priações realizadas pelos sujeitos que materializam no dia a dia das escolas a
ra
educação oferecida aos estudantes que frequentam as instituições educativas
i
em nosso país.
rev

Partimos da premissa que uma perspectiva crítica em Psicologia e Edu-


cação deve analisar as políticas educacionais considerando sua capacidade de
to

garantir a apropriação de conhecimentos sistematizados e não apenas o acesso


à escola. Para isso, nossa análise se sustenta no aporte teórico da Psicologia
ara

Histórico-Cultural e da pedagogia histórico-crítica, cujos referenciais, além


de levar em conta os vários fatores envolvidos no processo de implantação
ver di

e implementação dessas políticas, consideram a escola como instituição res-


ponsável por garantir às novas gerações a apropriação dos conhecimentos
op

historicamente produzidos pela humanidade.


Nessa perspectiva, o objetivo deste capítulo é analisar o papel atribuído
E

aos professores que atuam em projetos de correção de fluxo que se utilizam da


metodologia telessala. Nesses projetos, nos anos finais do ensino fundamental

e no ensino médio, o conteúdo é transmitido aos estudantes por meio de vídeo


aulas e um único docente é responsável por todas as disciplinas do currículo.
A análise apresentada é decorrente de duas pesquisas de mestrado (NAS-
CIMENTO, 2016; NOGUEIRA, 2016), que investigaram o mesmo programa
desenvolvido nos Estados de Rondônia e Acre; programa esse concebido
e comercializado pela Fundação Roberto Marinho (FRM) e desenvolvido
por meio de parceria público-privada, com a justificativa de superar os
altos índices de distorção idade-série entre os estudantes dos anos finais do
ensino fundamental.

Flávia Lemos - 21982.indd 231 28/02/2020 13:13:18


232

Nas duas pesquisas foram analisados documentos que orientam e nor-


matizam o funcionamento do programa (nomeados como Projeto Poronga e
Projeto Salto) nos respectivos Estados e também foram realizadas entrevistas,
durante o ano de 2015, com professores e coordenadores que atuavam no
projeto em Porto Velho – RO e em Cruzeiro do Sul – AC.
Análises como a que propomos neste texto, que abordam o papel atri-
buído aos professores em programas em que são utilizadas vídeo aulas como

or
as principais ferramentas para transmissão do conteúdo escolar, ganham rele-

od V
vância no momento em que se defende essa forma de escolarização para

aut
parcelas significativas da população como solução para a falta de docentes,
principalmente em áreas específicas27.
Desta forma, neste texto apresentamos, inicialmente, argumentos teó-

R
ricos que denunciam as transformações nas formas de exclusão na escola
pública brasileira referindo-se à negação do direito de acesso ao conhecimento,

o
situando os projetos de correção de fluxo como ações políticas que suposta-
aC
mente enfrentariam essa exclusão. Em seguida descrevemos os projetos ana-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


lisados quanto à sua organização e funcionamento, enfocando principalmente
a função atribuída aos docentes nesses projetos e que são materializadas por
meio da formação de professores.
visã

2. Acesso à escola ou acesso ao conhecimento?


itor

As mudanças educacionais das últimas décadas no Brasil contribuíram


a re

para a abertura da escola a um grande contingente de pessoas que por muito


tempo esteve dela excluída. Diferentes autores têm se posicionado sobre a
forma pela qual se deu essa ampliação do acesso, apontando o agravamento
da exclusão; outros destacam os avanços que esse acesso representa e buscam
identificar as novas bandeiras de luta que precisam ser levantadas para garantir
par

escolarização de qualidade, conforme estabelece a legislação brasileira.


Ed

Para Gentili (1995, p. 244) o direito à educação, defendido desde a Decla-


ração dos direitos Humanos de 1948 e assumido pela Constituição Federal
brasileira de 1988, continua sendo negado quando se oferece o acesso à escola
ão

sem a garantia da qualidade do ensino e da aprendizagem. Ainda, segundo


o autor, as estratégias de privatização da educação que vieram no bojo das
diretrizes do Banco Mundial e tiveram grande aceitação na educação brasileira
s

são formas de ataque do neoliberalismo à escola pública, feitas “[...] mediante


ver

uma política de reforma cultural que pretende apagar do horizonte ideológico


de nossa sociedade a possibilidade mesma de uma educação democrática,
pública e de qualidade para as maiorias”.
27 Um exemplo de programa dessa natureza é o “Ensino Médio com Mediação Tecnológica” implantado em
Rondônia no ano de 2016, conforme normatiza a Lei 3.346, de 04 de julho de 2016.

Flávia Lemos - 21982.indd 232 28/02/2020 13:13:18


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 233

Na mesma perspectiva Patto (2010, p. 186) enfatiza que em substituição


à negação do acesso, a educação brasileira tem oferecido aos estudantes um
ensino que não garante aprendizagens.

Cresce a olhos vistos o número de analfabetos que passaram pela escola.


Antes eram as altas taxas de crianças fora da escola e de analfabetismo
crônico que resultava da falta de acesso à escola ou de impossibilidade

or
de completar a escola fundamental, sobretudo por processos de exclusão
existentes no interior das escolas: descontinuidade técnica e administra-

od V
tiva, permanente, por motivos político-partidários; equívocos tecnicistas;

aut
preconceito étnico e social de educadores contra o usuário típico da escola
pública; despreparo docente; remanejamentos constantes dos alunos;

R
classes especiais onde eram depositados os indesejáveis; reprovações
frequentes por critérios que iam além do rendimento e que se tornavam
condenações ao fracasso permanente; impossibilidades dos usuários de

o
arcar com despesas exigidas pela escola “gratuita” e assim por diante. Hoje
aC
assiste-se ao crescimento de um novo tipo de analfabeto: o analfabeto que
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

concluiu a escola fundamental e, muitas vezes, a escola média, para não


falar dos semi-analfabetos que, em número cada vez maior, concluem o
ensino superior em faculdades e universidades particulares, verdadeiras
visã
fábricas de profissionais desqualificados.

Por outro lado, Oliveira (2007), embora reconheça os limites apontados


por Gentili (1995) e Patto (2010), chama a atenção para a necessidade de
itor

compreender as mudanças ocorridas na história da educação brasileira dos


a re

últimos anos a partir da especificidade das contradições do terreno onde se


engendram as políticas educacionais. Ou seja, identificar as mudanças permite
perceber que as necessidades educacionais do Brasil são outras, pois mesmo
considerando que a exclusão educacional é endêmica na nossa história, a
par

ampliação do acesso à escola sem garantia de aprendizagem se configura


como um novo tipo de exclusão, carecendo de explicitação objetiva para que
Ed

possa ser enfrentada.


Desse modo, o processo de inclusão educacional promovido pelas polí-
ticas educacionais após os anos 1990, por um lado garantiu a universalização
ão

do ensino em algumas regiões do país, mas por outro contribuiu para gerar
um novo tipo de exclusão escolar, conforme conceitos cunhados por Ferraro
em 1985, denominados de exclusão DA escola e NA escola. Para o autor, o
s

uso de tais categorias “[...] no estudo do fenômeno escolar representa uma


ver

mudança de perspectiva tanto no plano científico como no político” (FER-


RARO, 1999, p. 24) por implicar na compreensão de que:

[...] a noção de exclusão, desdobradas nas categorias exclusão da escola


e exclusão na escola, podia dar unidade teórica a toda uma série de

Flávia Lemos - 21982.indd 233 28/02/2020 13:13:19


234

fenômenos, correntemente conhecidos como não-acesso à escola, evasão,


reprovação e repetência, todos relacionados com o processo escolar, mas
tratados com freqüência de forma estanque. A exclusão escolar na forma
de exclusão da escola compreende tanto o não-acesso à escola, quanto o
que habitualmente se denomina evasão da escola. Já a categoria exclusão
na escola dá conta da exclusão operada dentro do processo escolar, por
meio dos mecanismos de reprovação e repetência. Dessa forma, as distin-

or
tas realidades captadas de forma imediata como o não-acesso, a evasão, a
reprovação e a repetência ganhariam unidade primeiramente sob as cate-

od V
gorias analíticas de exclusão da escola e exclusão na escola e finalmente

aut
sob o conceito mais geral de exclusão escolar (FERRARO, 1999, p. 24).

R
Desse modo, consideramos que a exclusão, não mais somente da escola,
mas na escola aparece como o novo desafio da educação brasileira após os

o
anos 2000, pois as políticas educacionais que têm objetivado compensar o
grande déficit de vagas gerado pelo descaso com a educação, por meio da
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


inserção do alunado na escola, têm se mostrado insuficientes. Ainda de acordo
com Gentili (2009, p. 1060), “[...] em alguns casos, inócuas para reverter
os processos de isolamento, marginalização e negação de direitos que estão
visã
envolvidos em todo processo de segregação social, dentro e fora das institui-
ções educacionais”.
De acordo com Oliveira (2007), de um lado, temos um sistema educa-
itor

tivo em franca ampliação, por vagas e qualidade, por outro lado, a agenda
política conservadora e fortemente alinhada ao ideário neoliberal coloca para
a re

o momento atual o desafio da superação de novos conflitos, pois “[...] deba-


temo-nos com a tensão entre o direito à educação de qualidade para amplos
contingentes da população ou sua negação, o que pode tornar inócua a demo-
cratização do acesso” (OLIVEIRA, 2007, p. 666).
par

Portanto, diante desse quadro, propor a Psicologia Histórico-Cultural


como vertente teórica para discutir as políticas educacionais é assumir de
Ed

antemão uma postura crítica frente à forma como elas são planejadas e imple-
mentadas, tomando como principal aspecto para análise sua efetividade em
ão

relação à garantia de aprendizagens. Tal perspectiva tem em sua base a crítica e


a superação da visão dicotômica e reducionista do ser humano que por séculos
dividiu opiniões sobre o sujeito do conhecimento em diferentes abordagens
s

da psicologia. Como um dos principais defensores dessa vertente, Vygotski


ver

defende a unidade entre a hereditariedade e o social no desenvolvimento


humano, portanto “estuda o papel do social e o significado de sua participa-
ção e influência no desenvolvimento” (PRESTES; TUNES, 2018, p. 73), por
considerar que a “cultura é um produto da vida social e da atividade social do
ser humano” (VYGOTSKI, 2012, p. 151).

Flávia Lemos - 21982.indd 234 28/02/2020 13:13:19


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 235

Nesse sentido, a qualidade das interações sociais é um dos determinantes


na formação da subjetividade humana e no desenvolvimento das funções psi-
cológicas superiores. Alexei Leontiev (1978, p. 264) endossa tal perspectiva
quando afirma “[...] que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a
natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe
ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento
histórico da sociedade humana”. Contudo, o alcance do que já foi desenvol-

or
vido pela humanidade não ocorre de forma natural, ou seja, pelo simples

od V
fato de estar em sociedade, mas o desenvolvimento das aptidões humanas é

aut
produzido por meio da comunicação entre humanos, no processo de educação
sistemático e intencional.
A educação escolar, portanto, de acordo com a Psicologia Histórico-Cul-

R
tural, se insere na forma intencional de garantir a cada indivíduo a apropriação
do que de mais desenvolvido a capacidade criadora humana já produziu.

o
Assim, essa concepção psicológica possibilita novo e diferente olhar à edu-
aC
cação pública, pois proporciona a reflexão sobre seu papel na transformação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

humana. Para isso, a escola, mais do que preparar para o mercado de trabalho,
deve garantir o acesso ao conhecimento que possibilita a participação social
dos sujeitos como atores da história humana, capazes de compreender os
visã
processos de trabalho, de forma ampla e, principalmente, os seus modos de
organização na sociedade capitalista. Para Vygotsky (1930/2004) a educação:
itor

[...] deve desempenhar o papel central na transformação do homem, nesta


estrada de formação social consciente de gerações novas, a educação deve
a re

ser a base para alteração do tipo humano histórico. As novas gerações e


suas novas formas de educação representam a rota principal que a história
seguirá para criar o novo tipo de homem.
par

Para tanto, os processos de escolarização são considerados essenciais à


apropriação dos saberes históricos e culturalmente construídos, para possi-
Ed

bilitar ao sujeito formação crítica, em situações concretas, culturais e histó-


ricas. Desse modo, para que a aprendizagem promova o desenvolvimento é
necessária sua correta organização, a qual é considerada por Vigotskii (2010,
ão

p. 115) como “[...] um momento intrinsicamente necessário e universal para


que se desenvolvam na criança essas características humanas não-naturais,
mas formadas historicamente”.
s

Tendo em vista que na perspectiva vigotskiana a aprendizagem não é


ver

dependente do desenvolvimento, mas o promove, estamos diante de uma teoria


que defende o ensino como primordial para esse desenvolvimento. Para tanto,
o ensinar não deve perder de vista o horizonte do gênero humano, ou seja,
o ensino deve partir do nível real de desenvolvimento e ter como ponto de
chegada as capacidades mais desenvolvidas que um ser humano pode alcançar.

Flávia Lemos - 21982.indd 235 28/02/2020 13:13:19


236

Tal horizonte não deve estar apenas na prática de cada professor no con-
texto de escolarização, mas também na forma como as políticas educacionais
são planejadas, evidenciando-se nas diretrizes pedagógicas e curriculares, nos
materiais didáticos, na formação continuada dos professores, entre outras.
Logo, a concepção de sujeito do conhecimento, pela qual as políticas educa-
cionais são concebidas e de cada professor que as materializa no espaço da
sala de aula, tem implicações diretas, na garantia, ou não, do desenvolvimento

or
do humano.

od V
aut
3. A metodologia telessala e a formação de
professores em projetos de correção de fluxo

R
As pesquisas de Nascimento (2016) e Nogueira (2016), desenvolvidas
no Programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de

o
Rondônia, analisaram dois projetos de correção de fluxo desenvolvidos nos
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Estados do Acre e de Rondônia respectivamente, que utilizam a metodologia
telessala e são realizados em parceria entre a Fundação Roberto Marinho e
as secretarias de estado da educação.
visã
Presente em mais de dez estados brasileiros, o programa recebe deno-
minações específicas em cada unidade da federação; assim, em Rondônia foi
denominado como Projeto Salto e foi implantado em 2013 e, no Acre, recebeu
o nome de Poronga e é desenvolvido desde 2002.
itor

O público alvo dos projetos são estudantes dos anos finais do ensino
a re

fundamental, com idade mínima de 13 anos, aos quais se propõe garantir a


superação da distorção idade-série, por meio da aceleração de estudos. Essa
metodologia é caracterizada como telessala e unidocente, pois com o apoio
de vídeo aulas do Telecurso 2000, um único professor acompanha os estu-
par

dantes no desenvolvimento das diferentes disciplinas. Os professores contam


também com o material impresso elaborado pela Fundação Roberto Marinho
Ed

e adquirido pelos governos estaduais.


De acordo com o documento “Incluir para Transformar: Metodologia
Telessala em Cinco Movimentos” elaborado pela Fundação Roberto Mari-
ão

nho (2013, p.53), a metodologia telessala, além de ter como característica


a flexibilidade no uso do tempo, atende à legislação brasileira, ao oferecer
escolarização aos que “[...] não têm condição de cursar a educação básica
s

no tempo normalmente solicitado”. Por isso a proposta de correção de fluxo


ver

prevê que é possível aprender os conteúdos dos anos finais do ensino fun-
damental em até 12, 18, 24 ou 30 meses. Trata-se, ainda segundo o mesmo
documento, de “Uma proposta pedagógica voltada para o mundo do trabalho,
para o desenvolvimento de competências e para formação da cidadania, que
possibilita ao estudante completar a educação básica, com qualidade e um

Flávia Lemos - 21982.indd 236 28/02/2020 13:13:19


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 237

tempo flexível, com a mediação pedagógica de um professor” (FUNDAÇÃO


ROBERTO MARINHO, 2013, p. 33).
Além de focar na dimensão “amorosa” da relação ensino-aprendizagem,
busca resgatar a autoestima desses estudantes “[...] como base para construção
de conhecimentos, permeada por uma convivência fraterna fundada em vín-
culos afetivos éticos” (FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO, 2013, p. 139).
Assim, a metodologia telessala é apresentada aos gestores “[...] empenhados

or
na luta por uma educação básica de qualidade” que buscam uma estratégia

od V
para enfrentar desafios educacionais como meio capaz de “[...] motivar os

aut
estudantes, elevar a autoestima dos estudantes, trabalhar projetos; formar
educadores, implementar a cultura de paz e do diálogo; conectar a escola e
comunidade; criar comunidade de aprendizagem e outros [...]” (FUNDAÇÃO

R
ROBERTO MARINHO, 2013, p. 171).
No mesmo documento, defende ainda, que os investimentos aplicados

o
na metodologia telessala são justificados pelos seus resultados. Assim,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

[...] ela não tem preço. [...] vem possibilitando que os governos invistam
no tratamento dos grandes problemas da educação - tais como repetên-
cia, evasão e distorção idade ano - com inovações eficazes e viáveis. De
visã
fácil aplicação, considerando os materiais disponíveis e procedimentos
já sistematizados, essa abordagem tem impacto social comprovado por
avaliações qualitativas e quantitativas (FUNDAÇÃO ROBERTO MARI-
itor

NHO, 2013, p. 30).


a re

Para a garantia da adequada aplicação da metodologia, os estados con-


tratam também a formação dos professores, uma vez que a prática unidocente
pressupõe que “[...] o professor deixa de ser especialista em conteúdos espe-
cíficos, fonte principal de conhecimentos, aquele que ensina, um verificador,
par

e passa a ser um especialista em dinâmicas de construção de conhecimento”


(ACRE, 2011, p. 28). A função esperada dos professores é de facilitadores dos
Ed

processos de aprendizagem, por meio da organização e coordenação do grupo


de estudo, como criadores de “[...] condições para que o aluno desenvolva
habilidades que facilitem a aprendizagem; orientador do processo de apren-
ão

der a aprender. [...] o professor modifica a sua prática e desenvolve formas


diferenciadas de pensar, de sentir e de agir” (ACRE, 2011, p. 28).
s

De acordo com os dados levantados por Nascimento (2016) e Nogueira


ver

(2016), por ocasião da implantação do projeto, a Fundação Roberto Marinho


realiza cursos de formação de professores e das equipes que serão responsáveis
pelo acompanhamento do projeto nos estados. Posteriormente, tanto a forma-
ção quanto o acompanhamento são realizados pelas equipes locais que ainda
contam com o apoio da Fundação, mas ficam a cargo da coordenação local.

Flávia Lemos - 21982.indd 237 28/02/2020 13:13:19


238

A metodologia Telessala é usada na formação dos professores. Assim, eles


passam a construir as mesmas competências e habilidades que precisam
desenvolver nos estudantes. [...] O desenho dos cursos de formação de
professores é o mesmo que esses professores irão desenvolver na sala de
aula. A mesma metodologia, as mesmas dinâmicas, os mesmos materiais
são utilizados (FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO, 2013, p. 137-138).

or
No estudo de Nascimento (2016) sobre o Projeto Poronga desenvolvido
no Acre as professoras apontaram que, no início de cada módulo, são realiza-

od V
dos encontros de formação. Inicialmente essas formações eram oferecidas por

aut
profissionais da Fundação Roberto Marinho e, posteriormente por formadores
da própria secretaria de educação estadual:

R
O processo de formação ele acontece, assim: a gente é convidada quando

o
termina o módulo e vai iniciar o bloco de matemática. São cinco dias: três
dias para matemática e dois dias para geografia. Aquela capacitação é o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


que? É sugestões de dinâmicas, sugestões de problematização, sugestões
de tudo. E muitas coisas a gente traz para dentro da sala da gente. Vêm
dramatizações, são sugestões; o que eu gosto do projeto é isso. A gente
visã
realmente recebe sugestões interessantes que vêm de lá (Professora Joa-
quina, AC).28

Além dos encontros de formação, são realizadas reuniões semanais de


itor

planejamento que se orientam pela mesma metodologia a ser desenvolvida


a re

pelas professoras em sala de aula:

[...] o que tu vês no planejamento é a vivência da sala. Nós, os professores,


somos divididos em equipes de socialização, coordenação, avaliação e
síntese. Quando tu chegas lá tem um professor fazendo a síntese. A coor-
par

denação organiza as cadeiras do jeito que estava ali e quando termina ela
retira e guarda. As equipes que trabalham em sala, nós professores também
Ed

trabalhamos. [...]. E quando tem capacitação a gente é dividida do mesmo


jeito para fazer o trabalho (Professora Luzia, AC.).
ão

O dia de planejamento é visto pelas professoras como o momento da


semana que lhes possibilita aprender, desabafar, renovar energias e unir forças
frente aos desafios vivenciados em sala de aula:
s
ver

Ah, eu acho que é muito importante, porque é a partir dali que a gente
vai para sala de aula preparada. Além disso, como se trata de disciplinas
diferentes, a gente precisa desse planejamento para poder tirar as dúvidas.

28 As participantes ouvidas no Acre foram identificadas com as iniciais AC. As de Rondônia com RO.

Flávia Lemos - 21982.indd 238 28/02/2020 13:13:19


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 239

A gente se reúne com as outras professoras e vivencia; porque tem pro-


fessores que tem dificuldade. Quem já está mais tempo no projeto, nem
tanto, porque já está acostumado. Mas, quem não está, a gente precisa
tirar as dúvidas (Professora Graça, AC).

Dessa forma, o encontro de planejamento é também de formação, con-


forme explica a assessora Antônia:

or
A nossa sequência ela é bem detalhada, então se o professor vai colocar

od V
aquela tarjeta lá no quadro, tem que estar aqui no cartaz. [...] a vivência

aut
é ir lá fazer o cálculo, tirar as dúvidas do professor, por que que deu esse
resultado? Por que não aquele? Então, é uma aula mesmo. A gente trabalha

R
todo o plano, passo a passo, na vivência, que é para o professor ir para sala
de aula preparado. Então o professor tem que ir para a sala seguro, e esse

o
momento de estudo, dentro do planejamento, é muito importante para que
aC
o professor vá com segurança para a sala de aula (Assessora Antônia, AC).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O estudo de Nogueira (2016) realizado em Porto Velho, também consta-


tou que a formação dos professores que participam do Projeto Salto é realizada
visã
a cada módulo, que corresponde a um grupo de disciplinas a serem executadas
no período de seis meses. “Então, em cada módulo que as disciplinas são
divididas, por exemplo, você estuda o conteúdo todo da disciplina em um
itor

módulo” (Professora Magnólia, RO). Portanto, a cada seis meses, a equipe


a re

da Fundação Roberto Marinho comparece no estado para fornecer a formação


continuada que dura em média uma semana.

Eles formam turmas. Pegam o pessoal e dividem em turmas de 30 pro-


fessores. Nós temos dois formadores para cada turma. Esses formadores,
par

não entram em detalhe de conteúdo. A formação dele é sobre como agir,


como se comportar, como conduzir a sala, como fazer para motivar o
Ed

aluno. Eles trabalham muito isso. Muitas técnicas de como você vai tra-
balhar determinado conteúdo. Eles não vão ensinar o conteúdo que você
vai trabalhar (Professor Floriano, RO).
ão

Além de vivenciar a metodologia Telessala, eles trazem coisas novas.


Uma análise do mundo. Uma análise da realidade. E também procuram
trazer pessoas para fazer as abordagens do que vai ser tratado. Algumas
s

pessoas de renome que vão falar sobre o assunto. Por exemplo, nesse
ver

módulo, veio uma pessoa de história. Uma pessoa já de renome nacional


(Professora Flora, RO).
Como trabalhar no dia-a-dia. Leitura de imagem. Vendo toda a meto-
dologia e o passo-a-passo de como dar essa aula. Porque os livros são
explicativos. Eles já vêm dando a sequência, norteando como você deve

Flávia Lemos - 21982.indd 239 28/02/2020 13:13:19


240

fazer. Aí eles vão repassando toda essa prática, para você repassar para
seus alunos (Professora Camélia, RO).

Os fragmentos destacados das entrevistas com os professores evidenciam


que o foco da formação é metodológico. Além de receberem o material do
programa em formato de módulos, nos quais tanto o conteúdo a ser trabalhado
quanto sua sequência e metodologia já estão estabelecidos, a formação também

or
orienta “o passo-a-passo” de cada aula.

od V
Conforme destaca uma das professoras, o conteúdo não é o foco da for-

aut
mação, e sim as técnicas e a “análise de mundo” com pessoas de “renome”
(Professora Flora, RO). Por meio das entrevistas, identificamos que o material
disponível, bem como o processo formativo orientam os professores a desen-

R
volver um trabalho flexível que incentive a participação, desafie o pensamento
e melhore a autoestima dos alunos. Isso deve ser feito com a divisão da turma

o
em equipes, a organização das cadeiras em círculos, ensinando os alunos a
aC
lerem imagens, investindo na criação de vínculos com os alunos, buscando

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sempre fortalecer a autoestima. Tais orientações são descritas pelos professores
como “inovadoras” e próprias da metodologia. De acordo com a professora
Magnólia, os estudantes estão tendo a oportunidade “[...] de estar estudando
visã
de uma maneira diferente”.
A partir do exposto, evidenciamos que nessa metodologia o afeto e o
conhecimento científico não são valorizados da mesma forma. Pelo contrá-
itor

rio, o conhecimento, não comparece na fala dos professores e nem é o foco


a re

das formações.
Conforme apontado por Nascimento (2016) em Cruzeiro do Sul o acom-
panhamento dos professores no processo de planejamento é constante, o que
parece minimizar as dificuldades com a falta de domínio dos conteúdos espe-
par

cíficos. Mas o mesmo não ocorre na realidade de Porto velho, conforme


apontado por Nogueira (2016), uma vez que a formação é realizada a cada seis
Ed

meses e os professores não contam com outro tipo de apoio, limitando suas
possibilidades de contribuir com a formação dos estudantes, conforme explica
uma das professoras: “[...] quando chega naquela matéria de tabela periódica,
ão

chega nessa parte, quem não é da área tem um pouco de dificuldade. Quando
vai entrando para química eu tenho dificuldade só que procuro pesquisar. Eu
sei que eu não consigo alcançar todo o objetivo” (Professora Magnólia, RO).
s

Durante a semana de formação, em Porto Velho, os formadores visitam


ver

as salas do Projeto Salto para acompanhar o andamento da rotina e verificar


a execução da metodologia.

Sempre vem. Comigo eles estão sempre vindo. Antes de começar uma
capacitação, eles vêm e quando termina a capacitação, eles vêm de novo.

Flávia Lemos - 21982.indd 240 28/02/2020 13:13:19


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 241

O ano passado, acho que vieram umas quatro ou cinco vezes. Esse ano já
estiveram aqui. É de acordo com a capacitação. [...]. Eles entram e con-
versam com os alunos. Pedem para ver o memorial dos alunos e pedem
para ver meu memorial. Eu tenho recebido muitos elogios [risos], pena
que não dá dinheiro [risos] (Professora Rose, RO).

Sobre as visitas, o professor Floriano (RO) aponta outros dados. Ele

or
afirma que elas acontecem a cada módulo e, às vezes, contam com a presença
dos formadores durante as aulas. Em sua concepção, trata-se de uma entrevista

od V
“[...] sobre o que está acontecendo, sobre que conteúdo que estou dando, é

aut
mais com o professor mesmo.”
Em Cruzeiro do Sul, o processo de acompanhamento se dá nos encontros

R
semanais e também em visitas as salas de aula. Para a maioria das professoras
esse acompanhamento é de fundamental importância para que as atividades do

o
Projeto apresentem resultados positivos. No entanto, alguma delas reconhecem
aC
haver nessa forma de acompanhamento certo mecanismo de controle por parte
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

do Estado: “[...] há uma fiscalização muito grande, porque toda semana tem
uma coordenadora na nossa sala. Você sabe que a coordenadora vai, não é só
para saber se os alunos estão bem, elas vão para fiscalizar mesmo, para ver
visã
se a metodologia está sendo colocada em prática”. (Professora Graça, AC).

3. Esvaziamento do trabalho docente na proposta


itor

de professor unidocente na telessala


a re

Utilizamos a expressão “esvaziamento do trabalho” docente no sentido


atribuído por Facci (2004) quando adverte que muitas perspectivas que des-
valorizam o conhecimento científico na formação e no trabalho do professor,
embora defendam sua valorização, contribuem para desvalorizá-lo, uma vez
par

que o esvaziam de sua tarefa primordial, ou seja, o ensino dos conhecimentos


mais elaborados.
Ed

As análises do projeto Poronga e Salto de Correção de Fluxo, indicam a


exigência de que os professores sigam o passo-a-passo proposto pela meto-
ão

dologia telessala. Ao se limitar a cumprir o que está estabelecido em projetos


que desconhecem as necessidades de seus alunos, os professores abrem mão
de um dos aspectos fundamentais da profissão docente: a autonomia intelec-
s

tual e pedagógica. O trabalho docente torna-se esvaziado, pois desprovido da


ver

capacidade de avaliar os alunos e propor intervenções necessárias à apropria-


ção dos conhecimentos. Torna-se, portanto, um ensino limitado na promoção
de desenvolvimento e de aprendizagem. Logo, a proposta pedagógica da
metodologia telessala é contraditória, uma vez que se propõe formar sujeitos

Flávia Lemos - 21982.indd 241 28/02/2020 13:13:20


242

autônomos com a intermediação de professores que não vivenciam a própria


autonomia no exercício da sua prática.
Conforme adverte Saviani (1999, p. 24), esses professores tornam-se
“[...] executores de um processo cuja concepção, planejamento, coordenação
e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados, neutros,
objetivos, imparciais”. Visando garantir a eficiência do projeto, durante a
formação, propõe-se corrigir as “deficiências” do professor e, ao fazer isso,

or
maximizam-se os efeitos de sua intervenção (SAVIANI, 1999, p. 24).

od V
Peroni (2010) esclarece que o limite à autonomia docente é comum nas

aut
parcerias público-privadas e se estendem a outras instâncias dos processos
educativos com grandes prejuízos à gestão democrática da educação.

R
[...] a diminuição da autonomia do professor, que entre outros fatores
fica minimizada, desde quando recebe o material pronto para utilizar em

o
cada dia na sala de aula e tem um supervisor que verifica se está tudo
aC
certo, até a lógica da premiação por desempenho, que estabelece valores

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


como o da competitividade entre alunos, professores e escolas, como
se a premiação dos mais capazes induzisse a qualidade via competição
(PERONI, 2010, p. 550).
visã

Além da formação focada em reproduzir o passo-a-passo da metodo-


logia, os documentos orientadores do programa sugerem que um professor
bem formado e motivado fará bom uso dos materiais e da metodologia que
itor

são capazes de produzir aprendizagens e mudanças poderosas quando bem


a re

explorados. “Quanto mais preparação e entusiasmo o professor tiver, mais


proveito ele vai tirar das ferramentas. [...] Já um professor iniciante, porém
igualmente motivado, utilizará os materiais para superar eventuais lacunas
de formação e construir conhecimentos junto com os seus estudantes” (FUN-
par

DAÇÃO ROBERTO MARINHO, 2013, p. 133).


Ao afirmar que as ferramentas disponibilizadas aos professores e aos
Ed

alunos (livros, vídeos, filmes e internet) podem operar mudanças poderosas


nas mãos de um professor entusiasmado, o programa atribui unicamente aos
professores a responsabilidade pelo sucesso do processo de ensino. Ou seja,
ão

caso os resultados obtidos com o desenvolvimento dos projetos não sejam


satisfatórios, isso pode ser explicado pela falta de entusiasmo dos professores
ou da falta de cuidado na execução da proposta. Essas afirmações tornam os
s

professores reféns da situação, levando-os a adotar uma postura de defesa dos


ver

projetos e atuar para que apresentem ótimos resultados, pelo menos enquanto
índices de aprovação.
Somadas ao material didático, a formação e o acompanhamento peda-
gógico são tidos pela FRM como suficientes para que o professor unido-
cente se aproprie de uma rotina estruturante tornando-se capaz de orientar a

Flávia Lemos - 21982.indd 242 28/02/2020 13:13:20


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 243

aprendizagem dos estudantes em todas as disciplinas, independentemente de


sua área de formação.
Os argumentos contidos no material distribuído aos professores se mate-
rializam na prática dos professores unidocentes, que, em suas falas, demons-
tram alguns posicionamentos valorativos do lema “aprender a aprender”,
citado por Duarte (2001, p. 56-58). O primeiro princípio defende que “[...] as
aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais está ausente

or
a transmissão, por outros indivíduos, de conhecimentos e experiências, é

od V
tida como mais desejável.” Portanto, aprender sozinho contribuiria para a

aut
autonomia do estudante, diferentemente da transmissão de conhecimen-
tos realizada por outra pessoa que seria, muitas vezes, um obstáculo para
essa aprendizagem.

R
A visão de professor como centro do conhecimento já está ultrapassada.

o
[...] Eu achava que era só para encher linguiça, mas agora, a partir de toda
aC
essa formação que nós tivemos e de todas as pesquisas que a gente tá
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

fazendo na educação eu acho que ela é válida. Porque tira aquela ideia do
professor como único sabedor. Como único dono da verdade (Professora
Magnólia, RO).
visã

A despreocupação com a transmissão de conhecimentos, de acordo com


Saviani (1999, p. 22), rebaixa o nível do ensino das camadas populares que
itor

dependem da escola para ampliar os conhecimentos do senso comum para


conhecimentos mais elaborados. Em contrapartida, o ensino destinado às eli-
a re

tes, além de fornecer condições para que os estudantes, de fato, possam buscar
o conhecimento em outras fontes, ainda assim não abrem mão do papel do
professor como aquele que ensina conhecimentos fundamentais à formação
de todo e qualquer cidadão.
par

No cenário em que o professor não precisa ensinar nem ter domínio


de conteúdo, pois o estudante aprende sozinho, a unidocência é a resposta
Ed

mais econômica e interessante. Ela secundariza o papel do professor, e esse


é o objetivo de políticas educacionais neoliberais, que querem manter sob a
guarda dos dominadores os instrumentos que serviriam para emancipação das
ão

classes populares. Assim, como explica Saviani (1999), o escolanovismo que


se fundamentou no construtivismo piagetiano, ao se contrapor à pedagogia
s

tradicional, deslocou o eixo da questão pedagógica:


ver

Do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico;


dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos;
do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para
a espontaneidade; do diretivismo para o não-diretivismo; da quantidade

Flávia Lemos - 21982.indd 243 28/02/2020 13:13:20


244

para a qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na


ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseada
principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia. Em suma,
trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o importante não é
aprender, mas aprender a aprender (SAVIANI, 1999, p. 20-21).

Para o autor, o lema do aprender a aprender, que nega a transmissão

or
de conhecimentos e valoriza as famosas aprendizagens significativas, está
presente tanto no movimento escolanovista como no construtivismo. Saviani

od V
(1999, p. 53) explica que a pedagogia tradicional, a pedagogia da essência,

aut
que vai fazer uma defesa intransigente da igualdade essencial dos homens,
não serve à burguesia que acaba por propor a pedagogia da existência (escola

R
nova). Nela, “os homens não são essencialmente iguais; [...] Então, há aqueles
que têm mais capacidade e aqueles que têm menos capacidade; há aqueles que

o
aprendem mais devagar.” Desta forma, a metodologia com base nesse tipo
aC
de pedagogia acaba por legitimar a dominação e as desigualdades, ao mesmo

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tempo em que esvazia o trabalho do professor, quando nega a importância do
conhecimento científico na sua formação.
Outro posicionamento valorativo do lema “aprender a aprender” apon-
visã
tado por Duarte (2001, p. 58) defende que é “[...] mais importante o aluno
desenvolver um método de aquisição, elaboração, descoberta, construção de
conhecimentos, do que aprender os conhecimentos que foram descobertos e
itor

elaborados por outras pessoas”.


Este posicionamento foi identificado em outros trechos das entrevistas,
a re

conforme evidencia o discurso de uma das participantes quando afirma que


“[...] eles acabam, eles mesmos, produzindo seu conhecimento. A cada hora
eles estão trabalhando em grupo e um ajuda o outro, no grupo.” (Professora
Flor, RO)
par

Para a FRM, o professor mediador é aquele que promove a colaboração


em sua sala de aula, alimentando-a de diversas formas; ele deve transformar
Ed

“[...] uma turma de estudantes desvinculados entre si em um grupo colabora-


tivo de aprendizagem que canta uníssono as belezas da vida” (FUNDAÇÃO
ROBERTO MARINHO, 2013, p. 139). Em outras palavras, a organização
ão

dos grupos colaborativos, bem como a utilização dos vídeos tentam resgatar
a ideia de que o estudante não está sozinho no processo de aprendizagem
s

quando na verdade está, uma vez que o “fazer em colaboração” não inclui o
ver

professor. A este cabe apenas organizar os grupos.


Para Duarte (2001), o fazer em colaboração serve para medir o nível
de desenvolvimento intelectual do estudante, sendo um excelente critério
de avaliação da eficácia do processo de ensino-aprendizagem. Mas, para
chegar a essa conclusão, o professor precisa atuar no âmbito da zona de

Flávia Lemos - 21982.indd 244 28/02/2020 13:13:20


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 245

desenvolvimento próximo, para identificar o que o estudante, num determi-


nado momento, não faz sozinho, mas o faz apenas com a ajuda de outros,
inclusive, e principalmente, com o professor.
Fundamentadas nas contribuições da Psicologia Histórico-Cultural, enten-
demos que os aprendizes são sujeitos ativos no processo de conhecimento,
porém a aprendizagem que garante o desenvolvimento não resulta da atividade
espontânea dos seres humanos e sim da apropriação sistemática da cultura

or
humana por meio dos processos de escolarização, os quais farão a mediação

od V
entre níveis mais elementares de desenvolvimento e níveis superiores.

aut
Nessa perspectiva, também defendemos que o processo de ensino seja
criativo, inovador, desafiador. Entretanto, o foco principal do processo de
ensino deve ser a apropriação de novos conhecimentos, pois eles são condição

R
imprescindível para que os seres humanos desenvolvam as formas humanas
mais elaboradas de conduta. Conforme Leontiev (1978, p. 273), “Quanto mais

o
progride a humanidade, mais rica é a prática socio-histórica acumulada por ela,
aC
mais cresce o papel específico da educação e mais complexa é a sua tarefa”.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Segundo o autor, mudanças no desenvolvimento da humanidade exigem tam-


bém mudanças nos processos de educação, mas mudanças que garantam a
inserção dos seres humanos na cultura que, cada vez mais elaborada, depende
visã
de processos de ensino também cada vez mais exigentes.

4. Considerações finais
itor
a re

Para compreender os elementos envolvidos na análise da função docente


nos projetos de correção de fluxo investigados pelos dois estudos que deram
base a este texto, é fundamental considerar as concepções que sustentam as
políticas públicas educacionais e sua influência na materialização das ações
par

no cotidiano escolar, principalmente em propostas de formação e em mate-


riais pedagógicos.
Ed

Por meio da parceria público-privada na oferta de serviços educacionais


ocorre a retirada do Estado do papel de proposição e concepção das modali-
dades de ensino a serem oferecidas à população. O Estado passa a exercer o
ão

papel de fiscalizador dessas ações que são vendidas como mercadoria ao poder
público por meio dos seus resultados, considerados apenas como impacto nos
índices de escolarização, progressão na escolarização e correção da distorção
s

idade-série.
ver

Ao adotar a proposta de professores unidocentes, sem formação espe-


cífica nas diversas disciplinas do currículo, que passam a ensinar com base
em materiais produzidos por especialistas e colocados à disposição dos pro-
fessores, por meio de vídeos e planejamentos prontos, o conhecimento é

Flávia Lemos - 21982.indd 245 28/02/2020 13:13:20


246

desvalorizado e a autonomia do professor é reduzida. Esses programas defen-


dem um saber mínimo para os estudantes e professores das escolas públicas.
Podemos explicar, dessa forma, a elevação dos índices de acesso e pro-
gressão na escolarização, sem que a eles correspondam avanços na apren-
dizagem e participação social dos sujeitos escolarizados. Essas políticas
educacionais concebem ensino e formação de professores como mercado-
rias que assim são adquiridas: pacotes prontos, infalíveis e que resolverão

or
os problemas da escola, desde que os professores desempenhem, de forma

od V
competente e entusiasmada a parte que lhes foi atribuída.

aut
As análises mais aprofundadas dessas relações, entretanto, evidenciam
que a adesão acrítica ao discurso milagroso das soluções fáceis, contribui para
a manutenção e o reforço a estereótipos sobre o fracasso escolar que persiste

R
na escola pública. Sem acesso ao conhecimento, recebendo um arremedo de
escolarização, os egressos desses programas não conseguem acompanhar o

o
ensino regular e se constituem em público potencial para novos programas
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dessa natureza. E, além disso, continuam sendo responsabilizados pelo pró-
prio fracasso, pois “não souberam” ou “não quiseram” aproveitar as “novas”
oportunidades que lhes foram dadas.
Diante do exposto, questionamos: o que pode a Psicologia? Entendemos
visã
que as ferramentas construídas por referenciais críticos em Psicologia escolar
têm contribuído de forma significativa para a leitura crítica da realidade edu-
cacional a qual permite compreender os determinantes políticos e econômicos
itor

que estão na origem das desigualdades sociais que se materializam, no interior


a re

da escola, como desigualdades escolares.


Porém, compreender o processo de produção da escola não é suficiente, é
preciso contribuir para sua transformação e isso só será possível se nos guiar-
mos por referenciais teóricos sobre aprendizagem e ensino que explicitem o
par

papel do conhecimento no desenvolvimento do psiquismo, posicionando-nos


e agindo em favor de uma escola que garanta o acesso às produções humanas
Ed

mais elaboradas como direito de todos e como ferramenta necessária à luta


pela transformação social.
Para isso, é fundamental atuar coletiva e politicamente de forma a com-
ão

bater o uso de recursos públicos em políticas educacionais de resultados


pífios que em nada contribuem para a constituição de coletivos docentes mais
empoderados e capazes de produzir, juntamente com a sociedade, escolas
s

potentes na garantia da apropriação do conhecimento, tanto de professores,


ver

quanto de estudantes.

Flávia Lemos - 21982.indd 246 28/02/2020 13:13:20


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 247

REFERÊNCIAS
ACRE. Diretrizes do Poronga. Estabelece as diretrizes e orientações para o
Projeto Poronga, [2011?]. Documento recebido por: < n_furtado@hotmail.
com>. em: 11 set. 2015.

or
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituica-

od V
ocompilado.htm>. Acesso em: 16 set. 2018.

aut
DUARTE, Newton. As pedagogias do “aprender a aprender” e algumas ilu-

R
sões da assim chamada sociedade do conhecimento. Revista Brasileira de
Educação, n. 18, p. 35-40 set./out./nov./dez. 2001. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/rbedu/n18/n18a04>. Acesso em: 10 fev. 2016.

o
aC
FERRARO, Alceu Ravanello. Diagnóstico da escolarização no Brasil. In:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

XXII REUNIÃO ANUAL DA ANPED, Caxambu, setembro de 1999. Anais...


Disponível em: <http://anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE12/RBDE12_04_
ALCEU_RAVANELLO_FERRARO.pdf>. Acesso em: 30 out. 2015.
visã

FACCI, Marilda Gonçalves Dias. Valorização ou esvaziamento do trabalho


do professor? Um estudo crítico-comparativo da teoria do professor refle-
itor

xivo, do construtivismo e da psicologia vigotskiana. Campinas, SP.: Autores


a re

Associados, 2004.

FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO. Incluir para transformar: metodo-


logia Telessala em cinco movimentos. Concepção e supervisão pedagógica
de Vilma Guimarães. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2013.
par

GENTILI, Pablo. Adeus à escola pública: a desordem neoliberal, a violência


Ed

do mercado e o destino da educação das minorias. In: ______ (Org.). Peda-


gogia da exclusão: o neoliberalismo e a crise da escola pública. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1995.
ão

______. O direito à educação e as dinâmicas de exclusão na América Latina.


Educação e sociedade, Campinas, v. 30, n. 109, p. 1059-1079, set./dez. 2009.
s

Disponível em:<http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 28 set. 2015.


ver

LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Hori-


zonte, 1978. p. 261-284. Disponível em: <http://www.partes.com.
br/2013/11/12/o-homem-e-a-cultura>. Acesso em: 13 dez 2015.

Flávia Lemos - 21982.indd 247 28/02/2020 13:13:20


248

NASCIMENTO, Élida Furtado. “Inclusão excludente”: a experiência do


Projeto Poronga à luz da Psicologia Histórico-Cultural. Porto Velho, 2016, 183
f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Fundação Universidade Federal
de Rondônia, Porto Velho, 2016.

NOGUEIRA, Patrícia Guedes. O Projeto “Salto” de correção de fluxo e


o acesso ao conhecimento: um estudo em Porto Velho/RO, 2016, 137 f.

or
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Fundação Universidade Federal de

od V
Rondônia, Porto Velho, 2016.

aut
OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Da universalização do ensino fundamen-

R
tal ao desafio da qualidade: uma análise histórica. Educação e Sociedade,
Campinas, v. 28, n. 100 - Especial, p. 661-690, out. 2007. Disponível em:

o
<http://www.cedes.unicamp.br.> Acesso em: 30 dez. 2015.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos
Humanos. 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/pt/resour-
ces_10133.htm> Acesso em: 16 set. 2018.
visã

PATTO, Maria Helena Souza. A cidadania negada: políticas públicas e for-


mas de viver. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
itor

PERONI, Vera Maria Vidal. A parceria entre sistemas públicos de educação


a re

e o Instituto Ayrton Senna: implicações para o trabalho docente. In: XVIII


SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
PARA O MERCOSUL/ CONE SUL, 2010, Anais ... Florianópolis: Univer-
sidade Federal de Santa Catarina, 2010.
par

PRESTES, Zoia; TUNES, Elizabeth. (Org.). Sete aulas de Vigotski sobre


Ed

os fundamentos da pedologia. Tradução Cláudia da Conceição Guimarães


Santana. Rio de Janeiro: E-Papers, 2018.
ão

RONDÔNIA. Lei n. 3.346, de 04 de julho de 2016. Institui o Projeto Ensino


Médio com Mediação Tecnológica no âmbito da Secretaria de Estado da Edu-
s

cação e dá outras providências. Disponível em: <http://ditel.casacivil.ro.gov.


ver

br/cotel/Livros/Files/L3846.pdf> Acesso em: 05 out. 2018.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura


da vara, onze teses sobre educação e política. 32. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 1999. (Coleção polêmicas do nosso tempo).

Flávia Lemos - 21982.indd 248 28/02/2020 13:13:20


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 249

VIGOTSKII, Lev Semenovich. Aprendizagem e desenvolvimento intelec-


tual na idade escolar. In: VIGOTSKII, Lev Semenovich; LURIA, Alexander
Romanovich; LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e apren-
dizagem. 11. ed. São Paulo: Ícone, 2010. p. 103-117.

______. Obras escogidas, Tomo III. Madrid: Pedagógica, 1984/2012.

or
______. Transformação Socialista do Homem. Psychology and Marxism

od V
Internet, 1930/2004. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/

aut
vygotsky/1930/mes/transformacao.htm>. Acesso em: 29 out. 2015.

R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 249 28/02/2020 13:13:21


Flávia Lemos - 21982.indd 250
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:21
GÊNERO, DIREITOS HUMANOS E
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA: há
possibilidades de diálogo em tempos precários?

or
V
Eliz Marine Wiggers

aut
1. Introdução

CR
Este capítulo tem o intuito de estabelecer inicialmente um diálogo sobre

do
gênero, diante de tempos precários em que se afirma por todos os cantos a
lógica da heteronormatividade. Ainda, temos vivenciado tempos precários do
ponto de vista da violação de direitos, do ódio contra as expressões de gênero
e muitas vezes isso sendo exercido por profissionais de saúde. Se discute,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
numa segunda parte de discussão, se é possível romper com a lógica da pato-
logização na Psicologia. Para apontar algumas possibilidades são apontadas
ra
algumas legislações brasileiras, que tem afirmado a promoção de direitos
humanos, o enfrentamento à discriminação e aos preconceitos. Ainda, são
i
rev

citadas as resoluções do Conselho Federal de Psicologia, que regulamentam a


atuação do profissional da Psicologia frente à orientação sexual, e em relação
às pessoas transexuais e travestis.
to

Para finalizar, se apresenta um relato de experiência vivenciado no


âmbito da formação em Psicologia, para dialogar se tem sido possível rom-
ara

per preconceitos e defender os Direitos Humanos no contexto da formação


de Psicóloga(o)s. Neste sentido, a partir de uma pesquisa documental e de
ver di

um relato de experiência se tem o intuito de defender a despatologização das


diversas expressões de gênero e a afirmação dos direitos humanos no âmbito
op

da Psicologia, como resistência aos tempos precários.


Este capítulo se apresenta como uma proposta de “desnaturalização”, ao
E

olhar para os documentos e para as práticas psicológicas. Como um fôlego


para continuar resistindo às práticas de individualização e de normalização

que foram exercidas, no decorrer da história, em nome de saberes e fazeres


da Psicologia. Em que individualizou o louco, o criminoso, o deficiente, o
doente, o que não aprende, e o que possui uma anormalidade sexual. E coube
discipliná-los e normalizá-los. A isso, é preciso resistir, ainda mais em tem-
pos precários.

2. Diálogos sobre gênero


Cabe destacar que vivemos em um contexto sócio histórico e contempo-
râneo marcado pela lógica da heteronormatividade. Como nos aponta Lanz

Flávia Lemos - 21982.indd 251 28/02/2020 13:13:21


252

(2017, p. 44) a heteronormatividade, denominada por Judith Butler, tem sido


entendida como

[...] essa relação absoluta, linear e direta entre sexo, gênero e orientação
sexual, que a sociedade estabelece e “naturaliza”, fazendo que pareça
determinação da natureza. Não passa, porém, de um recurso discursivo,
do domínio da linguagem, transformado em dispositivo totalitário e hege-

or
mônico, fruto da aplicação compulsória das normas binárias de condutas
de gênero.

od V
aut
Assim, se vive em um cenário marcado pela homofobia, lesbofobia e
transfobia. Em que qualquer sujeito que se reconhece fora deste padrão con-

R
siderado “normal” da heterossexualidade, merece vivenciar sofrimentos e
sofrer processos de exclusão. Mas, que conceitos estão em jogo? O que se

o
caracteriza como sendo Sexo, gênero e orientação sexual? Lanz (2017, p. 38)
aC
argumenta que quando se cita sobre sexo “o primeiro significado que está

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


embutido na fala, e de longe, o mais poderoso e influente de todos, é o sexo
biológico, ou genital de cada pessoa, representado principalmente pelo órgão
genital que cada pessoa traz entre as pernas ao nascer”.
visã
Já o gênero extrapola o que é do âmbito da natureza. Apesar de que
a concepção que perpassa o entendimento sobre sexo se tenha o intuito de
estender também sobre gênero, com o intuito de o “naturalizar”, e que se con-
itor

tinue estabelecendo um pensamento binário, de modo que aquele de possui


um pênis tenha que ser, e somente, um homem, e aquele ser que possua uma
a re

vagina, tenha que ser, e somente, uma mulher.


Não há como negar que esta racionalidade está presente em muitos modos
de agir, e que sustenta uma engrenagem organizada sobre a subjetividade e
a concepção de que os indivíduos “tem que ser normalizados”. Esta racio-
par

nalidade está presente na família, e se estende para as instituições escolares


e, assim, para o contexto da sociabilidade, sendo explícita ou de modo sutil.
Ed

Assim, as diversas ciências da saúde e os saberes sobre a individualização


possibilitam normatizações, que se articularam às práticas de normalização
e estas a instituições concretas. Que instituições são estas? A construção do
ão

hospital, da escola, da indústria, e da prisão. Todas seguem os mesmos padrões


arquitetônicos de vigilância e de disciplina sobre os indivíduos.
s

Contudo, tais instituições organizadas pelo Estado, hoje estão dissemina-


ver

das, pois os dispositivos destas instituições passam a estarem mais sutis entre
todos nós e todos nós os legitimamos. Os lugares, os saberes e as práticas
mudam, mas as estratégias de individualização permanecem e se perpetuam,
principalmente em tempos precários que temos vivido. Rosato (2011, p. 15)
argumenta, ao atentar a história da profissionalização da Psicologia no Brasil,

Flávia Lemos - 21982.indd 252 28/02/2020 13:13:21


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 253

que “[...] não há como se furtar de que a Psicologia veio como um lugar de
saber/poder, muitas vezes, a serviço da repressão e da lógica normatizadora
do sujeito” (ROSATO, 2011, p. 15). Mas, Lanz (2017, p. 40-41) é enfática
ao afirmar:

Gênero não existe na natureza. Ao contrário do sexo, que pode ser consi-
derado como uma produção da natureza, o gênero é uma construção social

or
que varia intensamente de cultura para cultura e de época para época. [...]
até meados da década de 1960, gênero não existia, nem como conceito,

od V
nem como categoria de análise sociológica. [...] O conceito de gênero veio

aut
para descontruir, desautorizar e combater a milenar visão essencialista de
que as diferenças entre homens e mulheres, assim como seu lugar político,

R
cultural, religioso e econômico na sociedade já são determinados biolo-
gicamente, junto com o seu sexo genital.

o
Bento (2014), nesta mesma direção, enfatiza que refletir sobre gênero
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

exige pensar para além da dicotomia entre a natureza (corpo) e a cultura


(gênero), pois elementos que definem homem/mulher não podem ser emba-
sados através de hormônios e diferenças de cromossomos. Mas, o que é
visã
orientação sexual? Lanz (2017, p. 43), afirma que “A Orientação sexual está
relacionada ao desejo erótico-afetivo de uma pessoa: com quem ela gosta na
namorar e/ou manter relações sexuais”.
Como temos construído saberes e práticas de saúde? Ou temos mais
itor

atentado mais para o doente e para a doença? Aqui cabe considerar que muitas
a re

vezes os profissionais da saúde têm realizado suas práticas fundamentadas na


patologização, bem como na medicalização da vida e da educação, e ainda, se
inscrevem no âmbito da criminalização das condutas cotidianas. Cabe ressaltar
que ser contra a medicalização não é ser contra a indicação de medicamentos,
par

ou contra as práticas exercidas no contexto da medicina, nem tampouco des-


conhecer o sofrimento de pessoas diante de situações apresentadas e denomi-
Ed

nadas como “distúrbios” ou “transtornos”. É, sobretudo, se posicionar contra


um processo de culpabilização de indivíduos, por estes serem diferentes de
um padrão determinado de humanidade. Padrão que tem sido propagado pela
ão

sociedade como um evento “natural” e “benéfico”, mas que, ao final, produz


mais sofrimento do que saúde, mais controle do que liberdade.
Os documentos de referência utilizados amplamente por profissionais de
s

saúde para realizar diagnósticos são o CID-10 e o DSM-V, que se referem a


ver

convenções médicas internacionais que classificam e apontam estatísticas das


doenças psiquiátricas e problemas relacionados com a saúde. O CID-10 aponta
os transexuais como portadores de “transexualismo”, e o DSM-V substitui
o “transexualismo” pelo “transtorno de identidade de gênero”, sendo que os
sujeitos intitulados estes códigos são considerados como doentes mentais,

Flávia Lemos - 21982.indd 253 28/02/2020 13:13:21


254

independente das variáveis históricas, culturais, sociais e econômicas que


apresentam (BENTO; PELÚCIO, 2012). Sobre estas referências utilizadas
pelos profissionais da saúde, Lanz (2017, p. 374) denuncia

A tendência, amplamente dominante, tanto na educação, na medicina,


na psicoterapia e na justiça quanto nos meios acadêmicos brasileiros,
continua sendo tratar a condição transgênera – ou trangeneridade – como

or
mera variação da homossexualidade e como patologia, mais precisamente
como “transtorno mental”, ou nos termos “amasiados” do DSM V como

od V
“Disforia”. Essa tendência reflete o atraso da sociedade brasileira no reco-

aut
nhecimento dos direitos civis das pessoas transgêneras, como já ocorreu
em diversas partes do mundo, inclusive nas vizinhas Argentina e Uruguai.

R
Respaldada por um machismo exacerbado e por doutrinas evangélicas
fundamentalistas, a sociedade brasileira continua submetendo as pessoas

o
gênero-divergentes a uma elevadíssima carga de estresse físico e mental
resultante do intenso e contínuo constrangimento sociopolítico-cultural
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a que elas estão expostas. Essa tortura cruel e mesquinha, praticada em
nome de coisas como “cura” e “reajustamento social”, leva as pessoas
transgêneras a um quadro de total esgotamento físico e mental, que pode
resultar em suicídio, modalidade eleita com muita frequência como forma
visã
da pessoa se livrar de uma carga existencial que se tornou insuportável.

3. Como romper com a patologização na psicologia?


itor
a re

Em tempos precários como os que vivemos na contemporaneidade,


marcados por movimentos de patologização das expressões de gênero e de
orientação sexual, são necessários posicionamentos e resistências à patolo-
gização e à violação de direitos. Nessa direção, de resistência, correntes de
profissionais e militantes em várias partes do mundo se organizam a favor da
par

retirada da transexualidade do rol das doenças identificadas como transtor-


Ed

nos mentais e defendem um movimento de “despatologização” de gênero.


Assim, é possível destacar na luta pelo fim do diagnóstico de gênero a cam-
panha denominada de “Stop Trans Pathologization (Pare a Patologização!)
ão

que se internacionalizou e envolvia, até o início de 2012, mais de 29 países”


(BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 569).
Mas, além do movimento da despatologização, temos legitimado sofri-
s

mentos, mesmo sendo profissionais da Psicologia e das áreas da saúde? Rosato


ver

(2011, p. 25) chama a atenção para a violação de direitos humanos exercidas


pelos profissionais, pois

Considerando ainda que o sofrimento humano tem sido um dos principais


objetos de estudo e intervenção da Psicologia, infere-se que frequentemente

Flávia Lemos - 21982.indd 254 28/02/2020 13:13:21


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 255

violações de Direitos Humanos são colocadas aos profissionais, tendo em


vista que, muitas vezes, violações vêm acompanhadas de sofrimento e
adoecimento psíquico. Nessa lógica, fica o questionamento sobre o que
foi e tem sido feito pelos profissionais nessas situações de violações?

Cabe termos um olhar amplo e histórico, para analisarmos de elementos


estão em jogo para que profissionais da Psicologia passem, ainda hoje, a exer-

or
cer violação de direitos na sua atuação. E destacamos os aspectos fundantes
da Psicologia como profissão, em pleno contexto ditatorial, em que foi pro-

od V
mulgada a Lei nº 4.119/1962. Rosato (2011, p. 14) denuncia que

aut
[...] que não é à toa que exatamente num governo ditatorial se gesta uma

R
profissão que busca criar perfis e trabalhar para o ajustamento de pessoas
que não se enquadram ao “normal”. Fatos como esse revelam as constru-
ções históricas que são feitas, de acordo com seus respectivos contextos

o
e possibilidades.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Fica mais evidente que os aspectos fundantes da profissão exigiram o


ajustamento das pessoas. Contudo, cabe resistir a estes posicionamentos pato-
lógicos, disciplinares, violadores de direitos, e promotores de ajustamento na
visã
atuação da(o) Psicóloga(o) na atualidade, ainda mais em tempos precários.
Assim, cabe destacar as legislações vigentes, e que temos ferido quando
praticamos a violações de Direitos Humanos.
itor

No âmbito da garantia de direitos, podemos destacar que na Constituição


a re

Federal Brasileira assegura-se a promoção do bem-estar de todos, de modo a


combater preconceitos e qualquer forma de discriminação, pois como consta
no Título I, que se refere aos “Princípios Fundamentais”, e em seu Art. 3º,
que se refere aos “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
par

idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988, s,p.).


Além disso, a Lei nº 8.080/1990 afirma, no âmbito do Sistema Único
Ed

de Saúde, o direito à universalidade de acesso aos serviços, e a assistência


total de saúde, ou seja, ações e serviços preventivos e curativos, preservando
a autonomia e integridade física e moral, sem preconceitos ou alguma forma
ão

de privilégio aos usuários. Ainda, cabe ser levada em consideração a diver-


sidade subjetiva da pessoa a fim de garantir o direito constitucional à saúde,
ao atendimento humanizado e livre de qualquer discriminação, conforme
s

conta na Portaria do Ministério de Saúde de Portaria nº 1.820/2009, a qual


ver

dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, em que se destaca


no Artigo 4º, em seu parágrafo único:

Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter


atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação,

Flávia Lemos - 21982.indd 255 28/02/2020 13:13:21


256

restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orien-


tação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais,
estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe:
I – identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo
documento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social,
independente do registro civil sendo assegurado o uso do nome de pre-
ferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da

or
doença ou outras formas desrespeitosas ou preconceituosas.

od V
Cabe destacar que tanto as legislações relativas aos profissionais da saúde

aut
já contemplam também a(o) Psicóloga(o), pois o Ministério da Saúde promul-
gou a Resolução CNS nº 218/1997, que reconhece a Psicologia como uma

R
das treze categorias que compõem a área da Saúde. No âmbito específico da
Psicologia, que se refere ao Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o),

o
cabe destacar o que consta nos Princípios Fundamentais:
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liber-
dade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado
nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
visã
II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida
das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quais-
quer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, cruel-
dade e opressão (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2005, p. 7).
itor
a re

Assim, fica mais do que evidenciado de que a atuação da(o) Psicóloga(o),


bem como dos profissionais da saúde, não cabe seguir um modelo patologi-
zador ou corretivo dos indivíduos, mas servir como ferramenta de apoio ao
sujeito para auxiliá-lo na compreensão de sua demanda, além de considerar
seu contexto social e promover a qualidade de vida.
par

No âmbito dos procedimentos de saúde, assegurados no âmbito do Sis-


Ed

tema Único de Saúde, e quanto à realização do processo transexualizador,


de necessidade e direito aos transexuais, este é regulamentado pela Portaria
nº 2.803/2013 do Ministério da Saúde, onde define a Unidade de Atenção
ão

Especializada, como a unidade de saúde que oferece assistência diagnóstica


e terapêutica aos indivíduos, devidamente indicados para a realização do
processo transexualizador, considerando o acompanhamento terapêutico nas
s

condições psíquicas, social, além de médico-biológica, onde o profissional


ver

de Psicologia inclui-se na equipe multidisciplinar.


Segundo esta mesma Portaria do Ministério da Saúde, acima citada, a
psicoterapia é solicitada no acompanhamento do usuário ou usuária no pro-
cesso de elaboração da sua condição de sofrimento, podendo ser feita antes,
ou depois da tomada de decisão da cirurgia de transgenitalização, e demais

Flávia Lemos - 21982.indd 256 28/02/2020 13:13:21


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 257

alterações hormonais, sendo que não se restringe a somente esses processos


biológicos. Assim, a(o) psicóloga(o) cabe ser um mediador, e promotor da
qualidade de vida da pessoa, mediante o acolhimento e apoio, compreendendo
que a transexualidade, e outras vivências trans, são apenas algumas das mais
variadas possibilidades de vivência da dimensão de gênero, sem necessidade
de conceituação e nem mesmo qualquer enquadramento (LANZ, 2017).
Contudo, cabe a(o) profissional de Psicologia o desafio de garantir à

or
população trans, bem como à qualquer pessoa a sua livre expressão de gênero,

od V
ou orientação sexual, exercendo o respeito à dignidade e o acesso aos servi-

aut
ços públicos de saúde. Além disso, a assegurar a toda(o)s a(o)s Transgentes,
como propõe Lanz (2017), que não sejam considerada(o)s a partir de uma
condição patológica, justamente por transgredirem a concepção normativa de

R
coerência entre sexo biológico, gênero e orientação sexual, conforme consta
em Nota Técnica publicada pelo Conselho Federal de Psicologia em 2013,

o
sobre a atuação da(o) Psicóloga(o) frente ao processo transexualizador, e
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

demais formas de assistência às pessoas trans.


Ainda, cabe destacar as resoluções do Conselho Federal de Psicologia
que tem sido instrumentos de resistência, pois estas têm sido constantemente
atacadas, ainda mais em tempos precários, se circunscrevendo como uma
visã
afronta à luta pelos Direitos Humanos. Entre elas, a Resolução nº 01/1999,
que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da
orientação sexual e se fundamenta no fato de que desde 1990 a Homossexua-
itor

lidade deixou de ser considerada como doença pela Classificação Estatística


a re

Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde – CID. Esta


resolução é muito enfática ao afirmar que:

Art. 2° – Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para


par

uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações


e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou
Ed

práticas homoeróticas.
Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a pato-
logização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão
ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não
ão

solicitados (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 1999, p. 2).


s

Já a Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 01/2018 estabelece


ver

normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas


transexuais e travestis. Esta resolução aponta para a direção de qualificar a
prática profissional da(o) Psicóloga(o)s para a promoção da cidadania e a
garantia dos direitos. No mesmo ano, em 1º de abril de 2018, houve decisão
do Supremo Tribunal Federal no sentido de alterar o art. 58 da Lei 6.015/73,

Flávia Lemos - 21982.indd 257 28/02/2020 13:13:21


258

que se refere à Lei de Registros Públicos, de modo a reconhecer aos trangê-


neros, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil.
Diante da legislação brasileira citada anteriormente e das resoluções
específicas no âmbito da Psicologia, Rosato (2011, p. 23) argumenta que
[...] independente do país ou do contexto sócio-histórico vivido, podemos
perceber hoje que os Direitos Humanos funcionam como termômetro ou

or
bússola norteadora que indica o grau de civilidade de uma sociedade. Isso
não se refere apenas ao respeito formal, pois importantes textos foram assi-

od V
nados pelo Brasil, conforme já colocado anteriormente, sendo referências

aut
no assunto. Trata-se aqui da construção de uma cultura que respeite os
Direitos Humanos efetivamente para todas as pessoas.

R
4. E, na formação da(o) psicóloga(o) como romper
com preconceitos e defender direitos humanos?

o
aC
A partir de experiência vivenciada no âmbito do Estágio Específico

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Supervisionado do Curso de Psicologia da Faculdade Avantis, localizado
em Balneário Camboriú – SC, foram possíveis de serem acolhidos e aten-
didos psicologicamente Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais, ou seja,
visã
o público LGBT, sem distinção. Esta experiência foi iniciada no primeiro
semestre de 2015, e continua sendo realizada atualmente, no ano de 2019.
Cabe enfatizar que no ano de 2019 vivemos outro cenário da profissão da
itor

Psicologia, em que temos mais resoluções e documentos que sustentam e


a re

regulamentam a atuação.
Num contexto em que para ser possível a mudança de nome e sexo em
todos os documentos, bem como tratamentos de hormonioterapia, no caso
do público Trans, se demandavam atendimentos psicológicos, e autorização
judicial, e para que isso fosse possível no âmbito acadêmico, houve articulação
par

dos atendimentos entre o Núcleo de Práticas de Psicologia e o Núcleo de Aten-


dimento Jurídico. Cabe destacar que os atendimentos psicológicos realizados
Ed

tinham o intuito de promoção de saúde e minimização de sofrimentos. Do


ponto de vista jurídico havia o suporte para mudança de nome e sexo, e soli-
citações para processos transexualizadores. Além disso, se realizou parceria
ão

com uma médica especializada em Saúde da Família, que já havia vivenciado


atendimentos ao público Trans em uma Estratégia de Saúde da Família.
Para suporte social, presente no Município, se realizou articulação com os
s

movimentos sociais e militantes “Amigos e Tribos”, “Mães pela Diversidade”


ver

e “Semear Diversidade”, que também estão presentes em outros Estados e


Municípios brasileiros. Esta relação com os movimentos sociais foi estabe-
lecida com o objetivo de que as “gentes” LGBT, atendidas psicologicamente
no Núcleo de Práticas Psicológicas, pudessem vivenciar relações sociais com
os grupos que militavam pela garantia dos direitos e pela visibilidade LGBT.

Flávia Lemos - 21982.indd 258 28/02/2020 13:13:22


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 259

A partir destes diálogos entre instâncias acadêmicas, movimentos sociais, e


profissionais de saúde, produções críticas e práticas éticas foram possíveis.
Assim, como discussões sobre expressões diversas de gênero, a afirmação
da diversidade e a dimensão subjetiva foram possíveis no âmbito acadêmico,
tanto no Curso de Graduação de Direito, como de Psicologia.
Mas, quando se dialoga e se pratica no âmbito acadêmico sobre Direitos
Humanos, a que nos referimos? Benevides (2007, p.337) aponta que

or
Direitos humanos são aqueles comuns a todos, a partir da matriz de direito

od V
à vida, sem distinção alguma decorrente de origem geográfica, caracteres

aut
do fenótipo (cor da pele, traços do rosto e cabelo), da etnia, nacionali-
dade, sexo, faixa etária, presença de incapacidade física ou mental, nível
socioeconômico ou classe social, nível de instrução, religião, opinião

R
política, orientação sexual ou de qualquer tipo de julgamento moral. São
aqueles que decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca de todo

o
ser humano.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ao nos questionarmos como romper preconceitos na formação da(o)


Psicóloga(o), já apontamos um norte à medida que praticamos, no âmbito
acadêmico, o enfrentamento ao preconceito e à discriminação no exercício da
profissão. Mas, qual a interface entre Psicologia e Direitos Humanos? Rosato
visã
(2011, p.25) aborda esta relação.
Elegendo a dignidade humana como eixo fundante dos Direitos Humanos,
itor

torna-se possível pensar nessa meta também para a Psicologia, na medida


em que esta trabalha para o desenvolvimento e a melhoria do ser humano
a re

e suas condições de vida nas mais diversas esferas. A constatação de que


ambos os campos buscam, direta ou indiretamente, a dignidade humana
reforça a similaridade entre a Psicologia e os Direitos Humanos. Ou seja,
o pensar teórico e a práxis cotidiana de ambos os campos possibilita uma
aproximação fundamental.
par

Pensando a relação intrínseca entre Psicologia e Direitos Humanos, Bock


Ed

e Gianfaldoni (2010) realizaram um levantamento documental e qualitativo,


evidenciando a relação entre Direitos Humanos e o ensino de Psicologia.
Ainda, enfatizam que em 2003, o Ministério de Educação e a Secretaria
ão

Especial dos Direitos Humanos lançaram o Plano Nacional de Educação em


Direitos Humanos, que visa ser um instrumento orientador e que dá nortes
s

para efetivação de práticas educativas.


E a educação em Direitos Humanos pode ser um caminho para tempos
ver

precários? Apontamos mais alguns caminhos, Bock e Gianfaldoni (2010, p.


100) abordam que

[...] educação em direitos humanos implica acesso ao saber acumulado


e também crítica, reflexão permanente e ação; significa mais do que

Flávia Lemos - 21982.indd 259 28/02/2020 13:13:22


260

conteúdos disciplinares, mas um currículo de formação de Psicologia,


entendido de maneira ampla, como conjunto de experiências a que educa-
dores e educandos se expõem. É preciso que a Psicologia, como ciência e
profissão no Brasil, se desenvolva a partir de uma ética de direitos huma-
nos; é preciso que o sujeito, objeto de trabalho e pesquisa dos psicólogos,
seja sempre concebido como um sujeito de direitos.

or
Mas, ainda enfatizam que “Resta-nos, como psicólogos, tomarmos nas
mãos nosso projeto de uma formação em Psicologia guiada pelos direitos

od V
humanos, sabendo que isso exigirá uma revisão corajosa de nossas teorias e de

aut
procedimentos tradicionais de formação” (BOCK, GIANFALDONI, 2010, p.
101). Pois, a supremacia da técnica, a rasa ou falta de posicionamento crítico,

R
terá que ser deixado de lado para dar espaço a uma educação efetivamente
crítica. Como nos escreve Freire (2006, p. 45)

o
[...] é preciso que a educação esteja - em seu conteúdo, em seus pro-
aC
gramas e em seus métodos – adaptada ao fim que se persegue: permitir

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar
o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade,
fazer a cultura e a história [...] uma educação que liberte, que não adapte,
visã
domestique ou subjugue.

Assim, cabe ao profissional de psicologia o desafio de garantir à popula-


ção trans, “como de toda gente”, o respeito à dignidade e o acesso aos serviços
itor

públicos de saúde, e assegurar que a transexualidade, a travestilidade e as


a re

demais expressões de gênero, não sejam consideradas condição patológica.

4. Como fechar em tempos precários?


par

Fechar uma proposta de diálogos em tempos precários já avisa que não


se fechará. Porque é uma proposta de estar aberto, e se dispor a sempre lutar,
Ed

não desistir, e continuamente resistir. Mas, ao resistir é também defender


incansavelmente onde estivermos a garantia de direitos, seja em espaços de
formação de Psicóloga(o)s, ou onde seja lá que estivermos. Como uma pro-
ão

posta de discussão, nada fechada, se aponta: cabe a(o) psicóloga(o) atuar como
um mediador da promoção da qualidade de vida mediante o acolhimento.
Promover que a diversidade de gênero seja expressão das mais variadas pos-
s

sibilidades de vivência das relações humanas. Praticar o cuidado, o respeito,


ver

o acesso a direitos, a minimização de sofrimentos. Mas, também romper com


ciclos de violência, e praticar atenção ao vivido e aos afetos. Ainda, enfrentar e
romper com o modelo patologizador ou corretivo. Assim, deixando em aberto
pra se posicionar, pode ser um norte diante de tempos precários, ainda mais
relativo aos temas de Gênero, Direitos Humanos e Formação em Psicologia.

Flávia Lemos - 21982.indd 260 28/02/2020 13:13:22


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 261

REFERÊNCIAS
BENEVIDES, M.V. Direitos humanos: desafios para o século XXI. In: SIL-
VEIRA, R. M. G. et al. (Orgs.). Educação em direitos humanos: funda-
mentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.
p. 335-350.

or
BENTO, Berenice. O que pode uma teoria? Estudos transviados e a despato-

od V
logização das identidades trans. Florestan, n. 2, 2014, p. 46-66.

aut
BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. Despatologização do gênero: a poli-

R
tização das identidades abjetas. Estudos feministas, 2012. p. 569-581.

o
BOCK, Ana Mercês Bahia Bock; GIANFALDONI, Mônica Helena Tieppo
aC
Alves. Direitos Humanos no Ensino de Psicologia. Psicologia: Ensino &
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Formação, v. 1, n. 2, p. 49-67, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


visã
Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 16 set. 2016.

_____. Ministério da Saúde. Lei 8.080/1990. Dispõe sobre as condições para a


itor

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento


a re

dos serviços correspondentes. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 19 ago. 2019.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.820/2009. Dispõe sobre os direi-


par

tos e deveres dos usuários da saúde. Disponível em: <http://bvsms.saude.


gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt1820_13_08_2009.html>. Acesso em: 19
Ed

ago. 2019.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 2803 de 19 de Novembro de 2013.


ão

Política Nacional de Atenção Básica redefine e amplia o Processo Transexua-


lizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: <http://bvsms.
saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html>. Acesso
s

em: 16 set. 2016.


ver

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Nota técnica sobre pro-


cesso transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans.
CFP: Brasília, 2013. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/

Flávia Lemos - 21982.indd 261 28/02/2020 13:13:22


262

uploads/2013/09/Nota-t%C3%A9cnica-processo-Trans.pdf>. Acesso em:


19 ago. 2019.

______. Resolução CFP n° 001/99. Estabelece normas de atuação para os psi-


cólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Disponível em: <https://
site.cfp.org.br/wpcontent/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>. Acesso
em: 19 ago. 2019.

or
od V
______. Resolução CFP nº 001/2018. Estabelece normas de atuação para

aut
as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis.
Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wpcontent/uploads/2018/01/Resolu%-
C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2019.

R
______. Resolução nº 010/2005. Código de Ética Profissional do Psicó-

o
logo, Brasília, 2005. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/
aC
uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2019.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2006.
visã

ROSATO, Cássia Maria. Psicologia e Direitos Humanos: cursos e percursos


comuns. Psic. Rev. São Paulo, v. 20, n. 1, p. 11-27, 2011.
itor
a re

SCAVINO, S. Direito humano à educação no Brasil: uma conquista para todos/


as? In: SILVEIRA, R. M. G. et al. (Orgs.). Educação em direitos humanos:
fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.
p. 457-467.
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 262 28/02/2020 13:13:22


PSICOLOGIA CLÍNICA, POLÍTICAS
PÚBLICAS E VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER – UM DIÁLOGO A PARTIR

or
DO PLANTÃO PSICOLÓGICO

V
aut
Adriana Alcântara dos Reis
Emanuel Meireles Vieira

CR
do
1. Introdução

A Psicologia Clínica brasileira vem passando por profundas transfor-


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
mações nas últimas três décadas. Há 30 anos, quando o Conselho Federal
de Psicologia publicou resultados de uma pesquisa que perguntava quem
ra
era o psicólogo brasileiro, a resposta era muito atrelada a um perfil clara-
mente liberal, feminino, muito concentrado no Sul e Sudeste do país, com
i
predominância em consultórios particulares (CONSELHO FEDERAL DE
rev

PSICOLOGIA, 1988).
Fazer psicologia clínica e fazer psicoterapia eram sinônimos, de modo
to

que a clínica, mais até do que uma área de atuação, era pensada como um lugar
físico, o espaço da clínica propriamente dito. Fazer clínica, portanto, signifi-
ara

cava ter um consultório particular, num serviço acessível apenas para poucos,
a fim de trabalhar problemas emocionais numa perspectiva que, segundo Lo
ver di

Bianco e colaboradores (1994), afirmava o valor de um modelo intrapsíquico,


individualista e que se guia por parâmetros psicopatológicos, numa prática
op

claramente herdeira do modelo médico-curativo. A própria etimologia da


palavra clínica, que nos remete a estar à beira do leito (DUTRA, 2004), invoca
E

essa herança e coloca muito do que há de compreensão e expectativa em torno


da atuação do profissional dessa área.


É possível afirmarmos que tal herança encontro contornos históricos
muito bem definidos a partir do que Figueiredo (1992, 1995) chama de ter-
ritório da ignorância, que seria o lugar destinado ao que “fura” a imagem
do eu contemporâneo como senhor de si, autorreferente, capaz de conhecer
plenamente o mundo. O território da ignorância nada mais é do que a neces-
sidade de acolher aquilo que na experiência humana é pathos, desmesura,
que põe do avesso o sujeito epistêmico pleno fundador da Modernidade. É
exatamente esse o lugar das Psicologias, segundo Figueiredo. Ocorre que esse
lugar não é ocupado sem resistência, sem a necessidade de controlar aquilo

Flávia Lemos - 21982.indd 263 28/02/2020 13:13:22


264

que, por si, é incontrolável. Afinal, como controlar as paixões, nosso medo
da finitude, nossa impotência diante das intempéries da existência? A tradição
médica, de controle, de cura do que Figueiredo (1992) chama de dejeto do
sujeito da modernidade acompanha o lugar atribuído de extirpação ou adap-
tação do mal-estar. E às abordagens de Psicologia, tão marcantes nas práticas
psicoterápicas, cabe decidir eticamente o rumo que desejam seguir – se o da
adequação ou do acolhimento.

or
Embora a psicoterapia mantenha sua importância e lugar, a partir da

od V
inserção da Psicologia nas políticas públicas, o perfil do profissional mudou

aut
consideravelmente, e a noção do que é fazer clínica acompanhou esse pro-
cesso. Antes tida como lugar, conforme dito acima, a clínica passa a ser
compreendida como uma abordagem, um modo de cuidar dos aspectos da

R
experiência humana descritos acima e que não encontram eco num campo
social mais amplo, ou, dito de outro modo, de experiências de desamparo.

o
Isso ganha contornos ainda mais específicos quando pensamos, por exem-
aC
plo, em trabalhos cuja reprodução de um modelo psicoterápico é, inclusive,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


operacionalmente inviável.
Tomemos como exemplo a inserção de um psicólogo no Sistema Único
da Assistência Social (SUAS). Regulamentado em 2005, através da Política
visã
Nacional de Assistência Social (PNAS), o SUAS delimita muito claramente
princípios, diretrizes e objetivos que inviabilizam a reprodução do modelo
em que tradicionalmente a clínica foi pensada, pois giram em torno de noções
itor

como: cidadania e garantia de direitos com centralidade na família e na con-


a re

vivência comunitária. A incompatibilidade da política com a reprodução de


práticas que se limitam à realização de psicoterapia fica ainda mais evidente
quando se observam os objetivos da PNAS:

• Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção


par

social básica e, ou, especial para famílias, indivíduos e grupos que


deles necessitarem.
Ed

• Contribuir com a inclusão e a equidade dos usuários e grupos espe-


cíficos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais
básicos e especiais, em áreas urbana e rural.
ão

• Assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham


centralidade na família, e que garantam a convivência familiar e
comunitária (BRASIL, 2005, p. 33).
s
ver

Como se percebe, fazer clínica em políticas como a PNAS exige o enten-


dimento do termo para além de um sinônimo de psicoterapia, ou da pretensão
de tomar o discurso do outro a partir de uma lógica psicologizante, interna-
lista, que toma a dinâmica psíquica do outro como única referência para sua

Flávia Lemos - 21982.indd 264 28/02/2020 13:13:22


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 265

atuação. Vale dizer que o mesmo raciocínio pode ser aplicado ao trabalho no
Sistema Único de Saúde (SUS) e outras políticas públicas.
A própria noção de escuta ganha características muito peculiares. Escu-
tar, nesse caso, não pode se limitar a tomar o discurso do outro como início e
fim, mas pô-lo em diálogo com formas de cuidado que a Psicologia sozinha
não alcança, embora faça parte delas. A uma família desassistida do básico
pelo Estado, é muito importante ser ouvida, acolhida, ter sua dignidade como

or
pessoas escutada, mas isso precisa se articular a outras formas de cuidado
que o Estado tem obrigação de prover e que a escuta por si só jamais será

od V
capaz de transformar. A escuta nesse cenário, portanto, parte daquilo que a

aut
pessoa que procura ajuda diz e caminha em direção ao que existe de possi-
bilidade de cuidado fora do âmbito físico em que a relação ocorre. Trata-se,

R
portanto, de uma escuta que parte da relação, valoriza-a, mas reconhece que
aquela frequentemente é insuficiente como forma de cuidado e dialoga com a

o
cidadania, com a garantia de direitos, com o fomento à participação popular,
aC
etc. Escutar, nesse caso, parte do ouvido e caminha em direção a um contato
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

político com o mundo, com um contexto maior em que a pessoa se encontra


inserida (DUTRA, 2004, MOREIRA, 2007).
visã
2. O plantão psicológico
Um dos serviços que têm contribuído para pensar a inserção da Psicologia
Clínica nas políticas públicas é o plantão psicológico (VIEIRA; BORIS, 2012;
itor

AMORIM; ANDRADE; CASTELO BRANCO, 2015; BEZERRA; MON-


a re

TEIRO, 2013; ROCHA, 2013). Inicialmente surgido no Serviço de Aconse-


lhamento Psicológico (SAP) da Universidade de São Paulo (USP), no começo
dos anos 1970 (MAHFOUD, 2013), o plantão psicológico é um serviço de
porta aberta (portanto, que não precisa de inscrição prévia), que oferece regu-
par

larmente escuta a quem sentir essa necessidade, sem compromisso com a


continuidade do atendimento, que ocorre o mais próximo possível do momento
Ed

em que a pessoa o demanda. Traz mudanças importantes na medida em que o


movimento de buscar ajuda não é atendido apenas com o preenchimento de
uma ficha (como muitas vezes ocorre em clínicas-escola, por exemplo), mas
ão

com uma escuta atenta e intensa. Além disso, indica que, em vez de procurar
um serviço quando este comunicar que é possível, aquele que o deseja deve
fazê-lo quando sentir necessidade.
s

De acordo com Perches (2009), o objetivo do plantão psicológico é “[...]


ver

o esclarecimento da demanda da pessoa que procurou por esse atendimento


quanto à queixa, ao problema e ao que foi ressignificado, mudando, ou mesmo,
ampliando a percepção da própria situação e da problemática em que ela se
encontrava” (p. 52). Assim, não se trata apenas de um momento catártico,
mas uma oportunidade de, através de uma escuta empática e sem julgamentos,

Flávia Lemos - 21982.indd 265 28/02/2020 13:13:23


266

diminuir os níveis de ansiedade e, assim, travar um contato mais realista com


a própria experiência.
Vale destacar também que o atendimento de plantão psicológico pode ou
não se encerrar em si mesmo. Assim, é possível que o encontro se desdobre em
outros encontros, sessões de psicoterapia, ou, muitas vezes, serviços que não
estão diretamente ligados à Psicologia, mas que podem prestar uma melhor
assistência à situação apresentada. O atendimento de plantão, portanto, não é

or
apenas uma triagem para a psicoterapia e não tem compromisso com encami-
nhar todos os que o procuram para se submeter a um processo psicoterápico.

od V
Segundo Perches (2009), por essas características, o plantão tem como

aut
princípios norteadores: uma maior abrangência do serviço, na medida em
que abre o leque de possibilidades de situações em que as pessoas procuram

R
imediatamente ajuda psicológica; uma consequente ampliação de demandas
a serem atendidas, uma vez que não há um centramento no problema, mas na

o
pessoa que busca ajuda; e uma tentativa de diminuição da cronicidade, uma
aC
vez que, antes de o sofrimento se agravar, a pessoa tem a possibilidade de ser

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ouvida e devidamente cuidada.
Para Mahfoud (2013), o primeiro desafio do plantão psicológico é ins-
titucional, pois entende que, por vezes, há uma defasagem entre o modo de
visã
funcionamento dos serviços, muitas vezes com uma estrutura que afasta a
pessoa da possibilidade de elaborar sua experiência enquanto está mobilizada,
e o momento de tomada de decisão por buscar ajuda, que requer algo mais
que um momento de apenas um preâmbulo, por exemplo. Seria necessário
itor

o serviço em função do movimento da pessoa, e não o contrário. O segundo


a re

desafio, ainda segundo Mahfoud, é o da abertura ao imprevisível, uma vez


que um serviço de porta aberta requer uma disponibilidade ainda mais apro-
fundada do que a psicoterapia, por exemplo. Vieira e Dos Anjos (2013) corro-
boram esse pensamento por verificarem na formação de jovens plantonistas o
par

desenvolvimento de uma gradual habilidade de se abrir à alteridade em vez de


tentar apenas controlar tecnicamente o desenrolar de uma relação terapêutica.
Ed

Do ponto de vista da relação com a contemporaneidade, Mahfoud (2013)


aponta que um dos grandes desafios é a pouca sintonia das pessoas com aquilo
que se passa consigo, pouca clareza quanto a seu próprio mal-estar. Não é
ão

raro que pessoas cheguem objetificando o que sentem, sem tanta implicação
quanto ao que se passa consigo. Nesse sentido, Mahfoud ainda aponta a
necessidade de, mesmo mantendo respeito à autonomia do outro diante de
s

seu sofrimento, o plantonista ser capaz de se engajar com o outro no exame


ver

de sua experiência, o que funcionaria como uma afirmação de que somente


no encontro com a diferença é possível realizar esta tarefa. Tal relação só faz
sentido num contexto de abertura, de acolhimento àquilo que o outro nos traz,
e não a partir de respostas ou caminhos pré-fabricados.

Flávia Lemos - 21982.indd 266 28/02/2020 13:13:23


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 267

O plantão, portanto, trata de criar condições mínimas para que a pessoa


se encontre diante de sua experiência num momento de raro cuidado e se
posicione, compreenda de que modo ela pode agir diante da dor que a fez
procurar o serviço. Experiência, aqui, é tomada no sentido definido por Bondía
(2002), segundo quem “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece,
o o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”.
Experiência, portanto, é aqui compreendida como algo que faz sentido, que

or
mobiliza, que de algum modo atravessa e toca a pessoa que dela fala. Bondía
(2002) compreende que o excesso de informação, o excesso de opinião, a

od V
falta de tempo e o excesso de trabalho são inimigos da possibilidade de uma

aut
experiência nos ocorrer. Isso “requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar”

R
(p. 24). O sujeito da experiência, portanto, é capaz de parar, olhar atentamente
para si, acolher e compreender o que ocorre consigo e só então se posicionar.

o
O plantão psicológico é, portanto, espaço de elaboração da experiência na
aC
medida em que é oferecido a quem procura ajuda exatamente a possibilidade
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de, sem pressa, sem nenhum compromisso de psicologizar o seu sofrimento,


acolher o que ocorre consigo, identificar o que há de mais significativo ali e
buscar alternativas para cuidar dessa experiência – muitas vezes uma expe-
visã
riência de desamparo, de dor. Pode ser pensado em diversos contextos e, por
isso mesmo, não está atrelado a um lugar, se não a oferecer a possibilidade
de que essa ajuda ocorra onde quer que haja pessoas.
Assim, é possível dizer que o plantão é um serviço que valoriza a escuta
itor

como ferramenta importante de trabalho da Psicologia ao mesmo tempo em


a re

que reconhece nela limites (VIEIRA; BORIS, 2012). É nesse sentido de reco-
nhecer no que podemos chamar de humildade da escuta seu potencial e não
um problema que o plantão encontra possibilidade de dialogar com o trabalho
da Psicologia com diversas políticas públicas. Entre esses diálogos possíveis,
par

está o atendimento à mulher vítima de violência.


Ed

3. O plantão psicológico como uma ferramenta de


atendimento à mulher em situação de violência
ão

A violência contra a mulher consiste em qualquer ação que viole a inte-


gridade física e emocional da mulher, caracterizando-se como uma violação
de direitos humanos. Tal situação de violação de direitos implica em danos à
s

saúde da mulher, podendo culminar em sérios agravos, além de interferir de


ver

modo abrangente na sua vida e na de seus familiares próximos. As mulheres


estão expostas ao risco de sofrer algum tipo de violência em diversos espaços.
Porém, a violência doméstica e familiar, aquela que é cometida dentro do
espaço de convivência, por alguém com quem possui algum tipo de vínculo
familiar ou afetivo, é uma das violências de maior prevalência, indicando que

Flávia Lemos - 21982.indd 267 28/02/2020 13:13:23


268

a mulher pode estar sob risco tanto fora (situações de violência urbana, por
exemplo), quanto dentro de casa.
De acordo com a pesquisa “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e
Privado”, da Fundação Perseu Abramo (2010), 01 em cada 05 mulheres brasilei-
ras já sofreu alguma forma de violência doméstica cometida por um homem. No
Brasil, estima-se que 80% dos casos de agressão contra mulheres foram cometi-
dos por parceiros ou ex-parceiros. No balanço dos relatos de violência registra-

or
dos de janeiro a outubro de 2015 pelo Ligue 180 – Central de Atendimento à
Mulher em Situação de Violência, serviço gratuito instituído desde 2005 com

od V
o objetivo de receber denúncias de violência e orientar as mulheres sobre seus

aut
direitos, a legislação vigente e os serviços disponíveis em seu território, 85,85%
dos casos atendidos eram situações de violência doméstica e familiar contra as

R
mulheres, 67,36% dos relatos tratavam-se de violências cometidas por homens
com quem as mulheres tinham ou já haviam tido algum vínculo afetivo. Dados

o
mais recentes do Ligue 180 (janeiro a julho de 2018) apresentaram o registro
aC
de 27 feminicídios, 51 homicídios, 547 tentativas de feminicídios e 118 tentativas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de homicídios. Entre os relatos de violência, 63.116 foram classificados como
violência doméstica (BRASIL, 2018).
Uma melhor compreensão a respeito das origens da violência contra a
visã
mulher e de sua prevalência na sociedade pode ser obtida a partir da concep-
ção de que trata-se de um tipo de violência de gênero. Isso significa que é
uma violência baseada na concepção de desigualdade e de assimetria entre
os gêneros (masculino e feminino), fruto de um complexo aprendizado social
itor

para a determinação das atribuições de papéis de gênero rígidos, sem origem


a re

em determinantes biológicos (SCHRAIBER e colaboradores, 2005).


Desde o final da década de 1970 e início dos anos 1980, a partir do pro-
cesso de redemocratização do Brasil e inflamado pela ocorrência de “crimes
passionais” de grande repercussão nacional, que custaram a vida de muitas
par

mulheres e não levaram à punição efetiva de seus autores, o movimento de


mulheres pressionou o poder público para o reconhecimento da violência
Ed

contra a mulher como violação de direitos. Cobrou-se a efetivação de políticas


públicas para proteção e garantia de direitos às mulheres.
Uma das primeiras conquistas foi a criação das Delegacias Especializadas
ão

no Atendimento à Mulher (DEAM). Porém, estas efetivavam uma legislação que


continuava considerando os atos de violência contra mulher como crimes de menor
potencial ofensivo (geralmente punido com o pagamento de cestas básicas) e não
s

como uma violação de direitos. Além disso, ainda havia a manutenção da crença
ver

de que os casos de violência contra a mulher deveriam ser resolvidos no âmbito


do ambiente doméstico, sem interferência do Estado, tal qual o ditado popular:
“em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.”
Felizmente, no âmbito internacional, desde a década de 1970 até mea-
dos dos anos 1990, foram realizadas várias conferencias e convenções para

Flávia Lemos - 21982.indd 268 28/02/2020 13:13:23


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 269

debater sobre os direitos das mulheres e sobre a violência contra a mulher,


destacando-se a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher. Ocorrida em 1979, foi primeiro tratado
internacional sobre os direitos humanos das mulheres tendo como objetivos
promover os direitos da mulher na busca da igualdade de gênero e reprimir
quaisquer discriminações contra as mulheres. Destaca-se também a Conven-
ção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a

or
Mulher, conhecida como a Convenção de Belém do Pará. Ocorrida em 1994,

od V
conceitua a violência contra as mulheres, reconhecendo-a como uma violação

aut
aos direitos humanos, e estabelece deveres aos Estados signatários, com o
propósito de criar condições reais de rompimento com o ciclo de violência
identificado contra mulheres em escala mundial.

R
Impulsionado pelas deliberações desses eventos internacionais, fruto
da articulação internacional do movimento de mulheres do mundo inteiro,

o
o Brasil iniciou o processo de elaboração das políticas públicas hoje vigen-
aC
tes voltadas para a garantia dos direitos das mulheres. No período de 1992
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a 2012 muitas alterações institucionais e legais ocorreram no Brasil no que


concerne às políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulhe-
res. Uma das conquistas mais importantes em relação à garantia dos direitos
visã
das mulheres e do combate à violência, foi a promulgação da Lei 11.340/06,
conhecida como Lei Maria da Penha. Esta lei cria mecanismos para coibir e
prevenir a violência contra a mulher, ela é produto de muitos anos de luta do
itor

movimento de mulheres e desde sua criação suscitou debates sobre o tema


a re

da violência contra a mulher na sociedade como um todo, dando visibilidade


para uma realidade que já afetava as mulheres há muitos anos, mas que per-
manecia relegada a uma condição de pouca importância por ser uma questão
que deveria ser resolvida no âmbito doméstico-familiar.
O conceito de violência que norteia a Lei Maria da Penha é o de Violência
par

Doméstica e Familiar, definida como: “Qualquer ação ou omissão baseada


Ed

no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicoló-
gico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006). A lei Maria da Penha
especifica como formas de violência contra a mulher os seguintes tipos de
ão

violência: violência física – “qualquer conduta que ofenda sua integridade


ou saúde corporal, violência psicológica – “qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe
s

o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, com-


ver

portamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humi-


lhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo
à saúde psicológica e à autodeterminação”, violência sexual – “qualquer

Flávia Lemos - 21982.indd 269 28/02/2020 13:13:24


270

conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação


sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexuali-
dade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chan-
tagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos”, violência patrimonial “qualquer conduta

or
que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,

od V
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou

aut
recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”
e violência moral – “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou
injúria” (BRASIL, 2006).

R
Uma rede de serviços especializados e políticas públicas voltadas para as
mulheres em situação de violência foram criadas no Brasil, a partir da criação

o
da Secretaria de Políticas para as Mulheres (2003) e em função do que foi
aC
estabelecido pela Lei Maria da Penha (2006). Além de Juizados de Violência

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal,
criados nos Estados para fins de processo, julgamento e execução das causas
relativas à prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, também
visã
foram criados Núcleos nas Defensorias Públicas, destinados exclusivamente
para o atendimento de casos de violência doméstica contra a mulher, com
base na lei Maria da Penha, Centros de Referência no Atendimento à Mulher
itor

(CRAM), oferecendo atendimento integral com equipe multidisciplinar para


a re

as mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Serviços já existen-


tes, como os abrigos para mulheres e as delegacias especializadas, passaram
a integrar uma rede de atendimento especializado no atendimento à mulher
em situação de violência.
Em 2011, a Secretaria de Políticas para Mulheres, vinculada ao Governo
par

Federal, publicou o documento “Rede de Enfrentamento à Violência Contra


Ed

as Mulheres”, no qual estão definidos dois importantes conceitos relacionados


às ações de prevenção e de combate à violência contra a mulher: “rede de
enfrentamento” e “rede de atendimento”. O primeiro termo refere-se à “atua-
ão

ção articulada entre as instituições e serviços (governamentais, não governa-


mentais e da sociedade civil) para o desenvolvimento de estratégias efetivas
de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento das mulheres
s

e seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência


ver

qualificada às mulheres em situação de violência” (BRASIL, 2011, p. 8). Já


ao referirmo-nos à “rede de atendimento” tratamos do conjunto de ações e
serviços de diferentes setores (assistência social, justiça, segurança pública,
saúde etc.), que têm como objetivo a identificação, o atendimento e o encami-
nhamento adequado das mulheres em situação de violência (BRASIL, 2011;

Flávia Lemos - 21982.indd 270 28/02/2020 13:13:24


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 271

OLIVEIRA, DELZIOVO; LACERDA, 2014), corresponde ao eixo de assis-


tência da rede de enfrentamento. A organização de serviços em uma rede de
atendimento especializado criou possibilidades de atuação para profissionais
de diversas áreas em equipes multiprofissionais voltadas para o atendimento
integral de mulheres em situação de violência.
A violência acarreta impactos na saúde física e emocional das mulheres
(SILVA e cols., 2015). A própria delimitação de uma violência especifica-

or
mente psicológica, conforme definida na Lei Maria da Penha, evidencia que,

od V
para além dos riscos e efeitos visíveis no corpo das mulheres, a violência

aut
apresenta múltiplas configurações e acarreta impactos de ordem emocional.
Desta forma, está associada como fator desencadeante de casos de depressão,
ansiedade, Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), além de ser fator

R
de risco para o suicídio em mulheres, conforme levantamento realizado por
Medeiros (2010). É diante deste cenário que a atuação de psicólogxs assume

o
um papel importante nos diferentes serviços da rede de atendimento à mulher
aC
em situação de violência.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O atendimento psicológico é uma importante ferramenta no processo


de compreensão acerca do ciclo da violência no qual a mulher está inserida e
nas suas implicações a curto, médio e longo prazo, podendo contribuir para
visã
que a mulher elabore possibilidades de saída deste ciclo. Mais do que um
tratamento vinculado à tradição médica que por vezes o atendimento psi-
cológico esteve atrelado, esta modalidade exercida no contexto em questão
itor

implica num tipo de relacionamento que propicie à mulher em situação de


a re

violência uma experiência de exame de outras possibilidades de resolução


para a questão que a faz sofrer.
Observa-se que as mulheres em situação de violência configuram uma
demanda que tem características e um “tempo” de urgência muito específicos
e que, portanto, não podem estar atreladas à reprodução de uma lógica que
par

guia, por exemplo, a atuação em consultório privado. Geralmente, apresentam


Ed

sentimento de culpa e vergonha pela situação vivida, e, por conta disto, têm
dificuldade para pedir ajuda e relatar os episódios de violência já vivencia-
dos. Tal panorama exige que os serviços que se destinam ao atendimento de
ão

mulheres em situação de violência se adéquem a essas especificidades e de


alguma forma atendam a esse perfil de urgência no cuidado.
A busca por serviços da rede de atendimento à mulher em situação de
s

violência geralmente ocorre em função de uma crise, de uma situação de


ver

risco e/ou de ameaça a essa mulher. Neste momento, quanto mais qualificado
e completo for o atendimento prestado, maiores as chances de garantir a
segurança física e psicológica da mulher em situação de violência, podendo
inclusive evitar as situações de reincidência, tão comuns no que diz respeito
à violência contra mulher.

Flávia Lemos - 21982.indd 271 28/02/2020 13:13:24


272

Destarte, a lógica de agendamentos psicológicos, posteriores a um pri-


meiro momento de busca por ajuda em um serviço da rede de atendimento,
pode não acompanhar o tempo de urgência dessa demanda, apesar de serem
importantes para fins de acompanhamento do caso a médio e longo prazo e
se apresentarem como uma das alternativas possíveis de cuidado (embora
não a única). Um indicativo disto são as faltas aos atendimentos psicológicos
agendados nos serviços de atendimento especializado à mulher em situação

or
de violência. Isto pode estar associado a fatores diversos, dentre eles ao fato
de que após um intervalo de tempo a situação-problema pode ser resolvida

od V
de alguma forma que, mesmo não sendo a ideal, traz algum tipo de alívio

aut
imediato, ainda que implique em possível reincidência na busca pelo serviço.
Além disso, ainda há o receio do estigma atrelado ao atendimento psicológico

R
como “coisa de doido” e a possibilidade de falta de dinheiro ou outras difi-
culdades pessoais para retornar ao serviço em um outro momento.

o
Diante das dificuldades apontadas, o plantão psicológico é uma moda-
aC
lidade de atendimento psicológico que se adapta aos fatores mencionados e

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


deve ser considerada pelos profissionais da psicologia. O plantão psicológico,
conforme já discutido, é uma modalidade de atendimento que pode adequar-se
à necessidade de urgência dessa demanda. Se, de acordo com Mahfoud (1987),
visã
plantão psicológico “é aquele tipo de serviço exercido por profissionais que
se mantém à disposição de qualquer pessoa que deles necessitem em perío-
dos de tempo previamente determinados e ininterruptos (p. 75)”, pensar essa
modalidade de atendimento num serviço que acolha mulheres em situação
itor

de violência significa deixar a equipe à disposição para atender a quem chega


a re

demandando pelo serviço. Em vez de um modelo fechado, com um compro-


misso com a continuidade, tem-se um modelo que comunica desde seu início
a radicalidade do acolhimento em sua dimensão de cuidado.
É nesse sentido que Tassinari (2009) especifica o plantão psicoló-
par

gico como:
Ed

Um tipo de atendimento psicológico que se completa em si mesmo, reali-


zado em uma ou mais consultas sem duração predeterminada, objetivando
receber qualquer pessoa no momento exato (ou quase exato) de sua neces-
sidade e, se necessário, encaminhá-la a outros serviços. Tanto o tempo da
ão

consulta quanto os retornos dependem de decisões conjuntas do plantonista


e do cliente, tomadas no decorrer da consulta (p. 176).
s

Acompanham-se o movimento e o tempo da mulher através de uma


ver

relação que, por curta que seja, pode ser bastante significativa na busca de
alternativas para lidar com a situação que desencadeou o processo de busca
por ajuda. Em vez dos julgamentos que ela mesma faz sobre sua própria
situação, oferece-se a compreensão, convida-se a mulher a narrar e (re)avaliar
sua própria experiência sem as interjeições que, por uma série de condições

Flávia Lemos - 21982.indd 272 28/02/2020 13:13:24


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 273

culturais, atravessam a escuta de quem convive com ela no cotidiano e, por


que não dizer, de boa parte da sociedade.
Para Mahfoud (1987), “O trabalho do plantonista é no sentido de facilitar
ao cliente uma visão mais clara de si mesmo e da problemática que vive e gera
um pedido de ajuda” (p. 76). Nesse sentindo, de acordo com as características
que já descrevemos do plantão psicológico, inseri-lo nos serviços de aten-
dimento especializado à mulher pode atender às necessidades das mulheres

or
em situação de violência, ao chegarem em busca de ajuda, geralmente após
a ocorrência de situação de violência. Assim, elas teriam acesso mais rapida-

od V
mente a um acolhimento adequado, caracterizado por uma escuta aceitadora,

aut
pautada pela compreensão de sua experiência. O trabalho funcionaria como
um auxílio no processo mais imediato de resolução de problema e de tomada

R
de decisão, que envolve a vivência de situação de violência.
A despeito disso, não é a resolução do problema ou a tomada de decisão

o
o foco, mas a experiência da mulher que procura ajuda. Compreender, nesse
aC
caso, é adotar uma postura de empatia, ou seja, de capacidade de se colocar
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

no lugar do outro e, assim, tentar perceber seu mundo tal como ela o percebe.
Evidentemente os desdobramentos que esta compreensão pode ter são muito
importantes e desejáveis, mas tomá-los como o fim do trabalho pode significar
visã
ignorar uma situação de sofrimento presente que pede para ser cuidada no
agora, e não apenas um meio para que se chegue uma situação ulterior. O plan-
tonista comunica, através de suas ações (e não de palavras), que aquele é um
espaço diferenciado para olhar para aquela questão. Possivelmente, um lugar
itor

inédito, em que a pergunta sobre “como você está” não é uma mera formali-
a re

dade, mas um convite a um posicionamento a respeito do próprio sofrimento.


Não é só falar da violência em si, mas tomá-la como um mote para falar de
si diante da experiência de violência. O conteúdo, muitas vezes, é o mesmo,
mas a perspectiva de onde se aborda esse conteúdo muda radicalmente.
par

Como já dissemos acima, isso exige um passo para trás do psicólogo


em sua relação com a própria Psicologia. Não cabe psicologizar, pensar em
Ed

análises mais profundas, tomar o outro como um texto a ser decifrado ao


longo do tempo. Acolher como requer o plantão numa situação de violência
contra a mulher significa estar disponível para se abrir e receber o que o outro
ão

tem para contar. A primazia é da experiência da mulher, nunca do saber do


terapeuta, embora, claro, esse saber possibilite o manejo do próprio formato
da relação que se estabelece entre uma parte e outra.
s

Como já destacamos, outra vantagem do plantão psicológico é que este


ver

configura-se como uma modalidade de atendimento que pode ser realizada


em diferentes contextos, de acordo com o referencial teórico do profissional
que o realiza e com as diferentes peculiaridades de cada um destes contextos.
De acordo com Rebouças e Dutra (2010), o plantão psicológico é uma prática
da clínica contemporânea que se adéqua às demandas atuais da sociedade e

Flávia Lemos - 21982.indd 273 28/02/2020 13:13:24


274

que amplia o campo de prática da psicologia, oferecendo uma postura clínica


na oferta de escuta e acolhimento para os sujeitos, independente do lugar
onde seja realizado. A clínica passa a ser entendida, portanto, como atitude,
e não como sinônimo de consultório. Assim, embora as mulheres atendidas
num serviço como o discutido não estejam necessariamente em psicoterapia,
seguramente há uma forma de clínica configurada pelo plantão e que toma o
cuidado como referência.

or
4. Considerações finais

od V
aut
Discutiu-se neste texto o cenário de profundas transformações por que
vem passando a Psicologia Clínica no Brasil – de uma lógica privativista e

R
liberal em direção a uma maior contextualização de práticas de cuidado com
o sofrimento do outro. Neste sentido, diferenciou-se Psicologia Clínica de Psi-

o
coterapia – até bem recentemente sinônimos. Fundamental neste processo foi a
aC
inserção de profissionais de Psicologia em políticas públicas. Nelas, conforme

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


se pôde ver, é impossível e ineficiente a reprodução do modelo clínico-pri-
vatista e psicologizante a respeito da produção do sofrimento humano. Isso
implica na necessária mudança de parâmetros de atuação e de entendimento
visã
do que seria a escuta – não mais atrelada apenas a um grande ouvido, mas a
um contexto mais amplo produtor de sofrimento.
Uma das práticas possíveis de serem desenvolvidas no contexto citado
acima é o plantão psicológico, no qual não há a necessidade de agenda-
itor

mento prévio, nem um compromisso efetivo com o retorno. O acolhimento


a re

da situação que leva a pessoa a procurar ajuda se dá o mais próximo possível


do momento em que essa necessidade se manifesta. O plantão, conforme se
discutiu aqui, é uma profícua possibilidade de interlocução da Psicologia
Clínica com as políticas públicas, na medida em que reconhece a necessidade
par

de haver outros desdobramentos para o acolhimento do sofrimento alheio


que não apenas a psicoterapia. Uma das áreas de atuação do plantão, e de
Ed

necessário diálogo com as políticas públicas e outras formas de cuidado, é o


acolhimento à mulher em situação de violência, que tem suas especificidades
aqui abordadas. Nessa prática, a forma de acolher e compreender a experiência
ão

da mulher não pode se reduzir a uma perspectiva que não dialoga com ques-
tões culturais, legais, educativas, enfim, de toda a formação social que leva
a situações de violência de gênero. É esse olhar amplo que torna o plantão
s

uma forma alternativa de cuidado com a experiência de estar em situação de


ver

violência pelas quais muitas mulheres passam. Acreditamos que a implemen-


tação de serviços que tomem os parâmetros de escuta acolhedora e ao mesmo
tempo contextualizada, tal qual no atendimento em plantão psicológico, pode
auxiliar no avanço para o cuidado mais integral e efetivo com a mulher em
situação de violência.

Flávia Lemos - 21982.indd 274 28/02/2020 13:13:25


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 275

REFERÊNCIAS
AMORIM, F. B. T; ANDRADE; A. B. de; CASTELO BRANCO, P. C. Plantão
psicológico como estratégia de clínica ampliada na atenção básica em saúde.
Contextos clínicos, v. 8, n. 2, 141-152, 2015.

or
BEZERRA; E. N.; MONTEIRO, C. A. S. Serviço de plantão Psicológico
para Idosos: um espaço afetivo de promoção de saúde e qualidade de vida.

od V
In: TASSINARI, M. A.; CORDEIRO, A. P. da S.; DURANGE, W. T. (Org.).

aut
Revisitando o plantão psicológico centrado na pessoa. Curitiba: CRV, 2013.
p. 145-157.

R
BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista

o
brasileira de educação, n. 19, p. 20-28, 2002.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei n. 11.340/2006. Coíbe a violência domés-


tica e familiar contra a mulher. Presidência da República, 2006.
visã
______. MDH divulga dados sobre feminicídio. Disponível em: <https://
www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/agosto/ligue-180-recebe-e-enca-
minha-denuncias-de-violencia-contra-as-mulheres. Ministério dos Direitos
itor

Humanos>. Acesso em: 03 jun. 2019.


a re

______. Política nacional de assistência social – PNAS/2004. Secretaria


nacional de Assistência Social: Brasília, 2005.

______. Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília:


par

Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2011.


Ed

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Quem é o psicólogo brasileiro?


São Paulo: EDICON, 1988.
ão

DUTRA, E. (2004). Considerações sobre as significações da psicologia clínica


na contemporaneidade. Estudos de Psicologia. Natal, v. 9, p. 381-387, 2004.
s
ver

FIGUEIREDO, L. C. M. A invenção do psicológico: quatro séculos de sub-


jetivação. São Paulo: Escuta, 1992.

______. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e


discursos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1995.

Flávia Lemos - 21982.indd 275 28/02/2020 13:13:25


276

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Mulheres brasileiras e gênero nos espa-


ços público e privado. São Paulo: SESC, 2010.

LO BIANCO, A. C. et al. Concepções e atividades emergentes na psicologia


clínica: implicações para a formação. In: ACHAR, R. Psicólogo brasileiro:
práticas emergentes e desafios para a formação. São Paulo: Casa do Psicó-
logo, 1994. p. 7-79.

or
MAHFOUD, M. A Vivência de um Desafio: plantão psicológico. In: ROSER-

od V
NBERG, R. L. (Org.). Aconselhamento Psicológico Centrado na Pessoa

aut
São Paulo: EPU, 1987, p. 75-83.

R
______. Desafios sempre renovados: plantão psicológico. In: TASSINARI,
M. A.; CORDEIRO, A. P. da S.; DURANGE, W. T. (Org.). Revisitando o
plantão psicológico centrado na pessoa. Curitiba: CRV, 2013. p. 33-50.

o
aC
MEDEIROS, Marcela Novais. Violência conjugal: repercussões na saúde

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mental de mulheres e de suas filhas e seus filhos adultas/os jovens. 2010. 251
f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura) - Universidade de
Brasília, Brasília, 2010.
visã

MOREIRA, Jacqueline de Oliveira; ROMAGNOLI, Roberta Carvalho;


NEVES, Edwiges de Oliveira. O surgimento da clínica psicológica: da prática
itor

curativa aos dispositivos de promoção da saúde. Psicol. cienc. prof., Brasília,


a re

v. 27, n. 4, p. 608-621, dez. 2007.

OLIVEIRA, Caroline Schweitzer; DELZIOVO, Carmem Regina; LACERDA,


Josimari Telino de. Redes de Atenção à Violência [Internet]. Florianópolis:
UFSC; 2014. Disponível em: <https://ares.unasus.gov.br/acervo/bitstream/
par

handle/ARES/1882/Redes.pdf?sequence=1>. Acesso em: 03 jun. 2019.


Ed

PERCHES, T. H. F. Plantão psicológico: O processo de mudança psicológica


sob a perspectiva da psicologia humanista. 2001. Tese (Doutorado em Psico-
logia). Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontificia Universidade
ão

Catolica de Campinas, Campinas.

REBOUÇAS, M. S. S.; DUTRA, E. Plantão psicológico: uma prática clínica


s

da contemporaneidade. Rev. abordagem gestáltica, v. 16, n. 1, p. 19-28, 2010.


ver

ROCHA, M. C. Plantão psicológico em instituições de defesas de direitos.


In: TASSINARI, M. A.; CORDEIRO, A. P. da S.; DURANGE, W. T. (Org.).
Revisitando o plantão psicológico centrado na pessoa. Curitiba: CRV, 2013.
p. 211-227.

Flávia Lemos - 21982.indd 276 28/02/2020 13:13:25


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 277

SILVA, Susan de Alencar et al. Growth and Development, v. 25, n. 2, p.


182-186, 2015. Retirado de: <https://dx.doi.org/10.7322/JHGD.103009>.
Acesso em: 03 jun. 2019.

SCHRAIBER, Lilia Blima et al. Violência dói e não é direito: a violência


contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Unesp, 2005.

or
TASSINARI, M. Plantão psicológico como promoção de saúde. In: BACEL-

od V
LAR, A. A psicologia humanista na prática: reflexões sobre a abordagem

aut
centrada na pessoa. Palhoça: Editora da UNISUL, 2009.

VIEIRA, E. M.; BORIS, G. D. J. B. O plantão psicológico como possibilidade

R
de interlocução da psicologia clínica com as políticas públicas. Estudos e
Pesquisas em Psicologia (UERJ), v. 12, p. 883-896, 2012.

o
aC
VIEIRA, E. M.; DOS ANJOS, K. P. L. Tornar-se plantonista: o fluxo das
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

atitudes facilitadoras a partir da experiência de plantonistas iniciantes. In:


TASSINARI, M. A.; CORDEIRO, A. P. da S.; DURANGE, W. T. (Org.).
Revisitando o plantão psicológico centrado na pessoa. Curitiba: CRV, 2013.
visã
p. 101-124.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 277 28/02/2020 13:13:25


Flávia Lemos - 21982.indd 278
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:25
PERCEPÇÃO DE PROFISSIONAIS DA
ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE DE
UMA METRÓPOLE DA AMAZÔNIA

or
BRASILEIRA SOBRE VIOLÊNCIA

V
CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

aut
CR Milene Maria Xavier Veloso
Celina Maria Colino Magalhães

do
Isabel Rosa Cabral

1. Introdução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
A decisão em intervir em casos de violência e consequentemente realizar
ra
os procedimentos necessários pode ser uma tarefa árdua para os profissionais de
saúde, tanto por receio em ter feito uma avaliação imprecisa e, portanto a sus-
i
rev

peita não ser confirmada, quanto à decisão sobre o momento que se deve inter-
ferir em situações que envolvem casos de violência doméstica/ intrafamiliar. 29
Adicionado a esse contexto, tem-se a questão do vínculo de confiança
to

que em geral se estabelece entre os profissionais de saúde e as famílias, prin-


cipalmente na Estratégia Saúde da Família (ESF). Segundo Franco e Bastos
ara

(2002) a agenda orientadora para a reorganização da saúde pela abordagem da


vigilância da saúde indica que o primeiro passo se constitui na elaboração de
ver di

um processo de conhecimento do território a ser objeto de atenção. A unidade


mínima de informação deste território é a família. As famílias moradoras do
op

local são as primeiras informantes de si mesmas e do lugar e do ambiente per-


cebido. Podem dessa forma, serem parceiras e não apenas usuárias eventuais
E

dos serviços de saúde e das intervenções dos profissionais (DESLANDES,


ASSIS; SILVA, 2004).

O estudo de Brito et al. (2005) apontou, que a intervenção junto as famí-


lias pode ser satisfatória, desde que a violência possa ser compreendida em
seus vários aspectos, ou seja, um sintoma presente no grupo familiar modelado
29 Nesse trabalho estamos considerando o conceito de violência doméstica do Ministério da Saúde que define
que a mesma adquire variadas formas da chamada violência interpessoal (agressão física, abuso sexual,
abuso psicológico, negligência, outras) que ocorrem no âmbito da família (intrafamiliar), sendo perpetradas
por um (a) ou mais autores (as) com laços de parentesco consanguíneo ou por afinidade (vínculo conjugal
formal ou informal) com a vítima. Também se considera violência doméstica quando há vínculos afetivos
e/ou relações de poder (física, etária, social, psíquica e/ou hierárquica) entre autor (es) e vítima (s). Ela
independe do local de ocorrência, pois pode acontecer tanto dentro, como fora do domicílio (BRASIL, 2010).

Flávia Lemos - 21982.indd 279 28/02/2020 13:13:25


280

por dificuldades de diferentes naturezas: cultural, social, econômica e das rela-


ções interpessoais. Além disso, esse estudo também demonstrou, as famílias
consideraram as visitas domiciliares uma intervenção efetiva na interrupção
ou diminuição da intensidade da violência o que reforça a importância da ESF,
na prevenção dos maus tratos contra crianças e adolescentes e suas famílias.
Mas aqui cabe destacar que as atribuições dos setores da saúde no Brasil,
assim como da educação, quanto a questão dos maus-tratos contra crianças e

or
adolescentes, foram estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) que receberam incumbências específicas como: a identificação, a noti-

od V
ficação da situação de maus tratos e a busca de formas para proteger as vítimas

aut
e dar apoio às famílias. Segundo Bourroul (2005), em consonância ao que
estabelece o ECA, a Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por

R
Acidentes e Violência (Portaria nº 737, publicada pelo Ministério da Saúde
em 16 de maio de 2001), preconizou a realização do atendimento específico às

o
vítimas de acidentes e da violência e os fundamentos do processo de promoção
aC
da saúde e da qualidade de vida das vítimas, tendo como estratégia básica a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


intersetorialidade das medidas e o fortalecimento da ação comunitária.
Nessa perspectiva a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) elegeu
a Saúde da Família como estratégia de reorientação do modelo de Atenção à
visã
Saúde em todo o território nacional. O modelo centrado na família, entendida
e percebida a partir de seu ambiente físico e social, poderia possibilitar às
equipes que trabalham junto a estes sujeitos uma compreensão ampliada do
processo saúde/doença e da necessidade de intervenções que transcendem as
itor

práticas curativas (BRASIL, 2000, 2004; ROSA; LABATE, 2005). A atenção


a re

básica, nesse sentido, é a porta de entrada preferencial dos usuários na rede de


atenção à saúde (BRASIL, 2004, 2009). Registre-se que deve estar articulada
com os demais níveis da assistência do sistema, de forma a garantir, após a
triagem inicial, o acesso da população aos serviços de média e alta comple-
par

xidade, através de referência e contrarreferência, visando à integralidade do


atendimento (BRASIL, 2013).
Ed

Segundo dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), em


junho de 2019 existiam 56.501 equipes de saúde da família, em 5 570 municí-
pios, com uma cobertura de 204.450.380 milhões de habitantes (208.494.900/
ão

confirmar a porcentagem da população), o que significa 96, 29% da população


(BRASIL, 2018). Essas Equipes de Saúde da Família (ESF) devem ser com-
postas, no mínimo, por um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enferma-
s

gem e seis Agentes Comunitário de Saúde (ACS), que são responsáveis pelo
ver

atendimento de, em média, quatro mil residentes em uma área geográfica


delimitada. Quando ampliada, essa equipe conta ainda com um dentista e um
auxiliar de consultório dentário.
O público atendido pela (ESF) compreende a população residente em uma
área determinada mediante processo de territorialização realizado no âmbito

Flávia Lemos - 21982.indd 280 28/02/2020 13:13:25


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 281

do município. Portanto, são definidos recortes territoriais, que correspondem


à área de atuação das equipes, segundo agregados de famílias a serem aten-
didas (no máximo 1.000 famílias ou 4.500 pessoas), que podem compreen-
der um bairro, parte dele, ou vários bairros, nas áreas urbanas ou em várias
localidades, incluindo população esparsa em áreas rurais. (BRASIL, 2011);
(MONKEN; BARCELLOS, 2007). Em relação ao ACS, esse profissional,
deve cumprir alguns requisitos formais tais como: residir na comunidade onde

or
atua; ter idade mínima de dezoito anos; ter ensino fundamental completo, ter
disponibilidade de tempo integral para exercer suas atividades e ter concluído,

od V
com aproveitamento, curso introdutório de formação inicial e continuada.

aut
Algumas dessas prerrogativas não são exigidas para a contratação de outros
profissionais da ESF, como ser residente na área onde atuam (BRASIL, 2006;
SANTOS et al., 2011).
R
É válido ressaltar ainda que os profissionais são agentes de proteção,

o
com a responsabilidade de notificar os casos suspeitos ou confirmados de
aC
violência e encaminhar às instituições que fazem parte do Sistema de Garantia
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), (SOUZA et al., 2014).


Segundo Faleiros e Faleiros (2001) o SGDCA engloba vários fluxos tais
como: os fluxos de defesa: que se ocupam com a garantia da cidadania e é
visã
operacionalizado pelos Conselhos Tutelares, Varas da Infância e da Juventude,
Ministério Público, Defensoria Pública e Centros de Defesa), os fluxos de
atendimento: que se ocupam com as vítimas, familiares e agressores e os danos
causados e é constituído por executores das políticas sociais, saúde, educação
itor

assistência, trabalho, cultura, lazer, profissionalização e programas de proteção


a re

e os fluxos de responsabilização: que se ocupam da violação da lei, da pena-


lização dos agressores e é composto pelas Delegacias de Polícia, Delegacias
Especializadas de proteção à criança e ao adolescente, do Instituto Médico
Legal, Varas Criminais, Vara da Infância e Juventude e o Ministério Público.
par

Dessa forma, Souza et al. (2014) ressaltam que o profissional tem respon-
sabilidades tanto com os aspectos relacionados ao atendimento das vítimas,
Ed

quanto com os aspectos relacionados a ética pessoal e profissional. Apesar


disso, os autores pontuam ainda que, embora o reconhecimento das vítimas
e a atuação no enfrentamento da violência faça parte das atribuições desses
ão

profissionais, muitas vezes os mesmos ainda não se encontram familiarizados


com os procedimentos legais a serem adotados diante dos casos, sobretudo
a notificação dos casos. Em função desse contexto, foi objetivo deste traba-
s

lho, caracterizar a percepção de profissionais de saúde sobre violência contra


ver

crianças e adolescentes e os fatores que interferem no manejo desse fenômeno,


em sua rotina de trabalho, para sugerir estratégias a serem adotadas para o
fortalecimento das equipes de saúde da família em relação a essa temática.

Flávia Lemos - 21982.indd 281 28/02/2020 13:13:25


282

2. Contexto da pesquisa 30
Após a aprovação pelo CEP do Instituto de Ciências da Saúde (ICS), sob
o protocolo (CAAE 0078.0.073.073-11 e parecer nº087/11 CEP-ICS/UFPA),
bem como ser autorizado pela Secretaria de Saúde do Município de Belém-PA,
foram realizadas as atividades necessárias para o desenvolvimento da pesquisa,
seguindo as etapas relacionadas a seguir: (1) estudo piloto (2) estruturação

or
dos questionários, (3) contato com os gestores das unidades de saúde e com
os participantes para agendar as entrevistas (4) aplicação dos instrumentos

od V
com os profissionais de saúde que aceitaram participar, (5) Elaboração e

aut
alimentação do banco de dados em planilhas do Excel® (6)
Foram entrevistados 174 profissionais de saúde, mas para esse capítulo,

R
selecionamos para análise, 129 profissionais de saúde da família que atuam
em um Distrito Sanitário do município de Belém-PA. Todos os entrevistados

o
assinaram o Termo de Compromisso Livre e Esclarecido, sendo uma amostra
aC
não probabilística, obtida por conveniência.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


3. Instrumentos
visã
1) Questionário 1: objetivou levantar informações sócio demográficas
dos profissionais de saúde, tais como idade, sexo, renda, estado civil, número
de filhos, tempo de atuação, aspectos da formação profissional, graduação, os
dados sobre a renda dos profissionais foram investigados a partir do Critério
itor

de Classificação Econômica (BRASIL, 2010), que tem a função de estimar o


a re

poder de compra das pessoas e famílias urbanas, sem a pretensão de classificar


a população em termos de classes sociais. A divisão de mercado é definida a
partir da presença e quantidade de alguns itens domiciliares de conforto e grau
escolaridade do chefe de família, ou seja, a pretensão neste estudo foi apenas
par

de utilização desse critério como um indicador de renda e para diferenciar


a população. Esse critério atribui pontos em função de cada característica
Ed

domiciliar e realiza a soma destes pontos. É feita então uma correspondência


entre faixas de pontuação do critério e estratos de classificação econômica
definidos, em ordem, A2, B1, B2, C1, C2, D e E.
ão

2) Questionário 2: objetivou investigar o conhecimento e a percepção dos


profissionais de saúde sobre maus-tratos contra crianças e adolescentes, carac-
terizar as atitudes diante de casos de maus-tratos, o processo de notificação e
s
ver

30 O presente capítulo é uma parte da Tese de Doutorado intitulada “Maus tratos contra crianças e ado-
lescentes: limites e possibilidades de atuação dos profissionais de saúde” desenvolvida pela Professora
Milene Maria Xavier Veloso, docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), orientada pela Profa. Dra.
Celina Magalhães vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento, da
UFPA e coorientada pela profa. Dra. Isabel Rosa Cabral da Faculdade de Biomedicina também da UFPA,
defendida em 2015.

Flávia Lemos - 21982.indd 282 28/02/2020 13:13:25


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 283

as dificuldades enfrentadas pelo profissional em relação a temática. As per-


guntas foram construídas a partir da literatura disponível sobre o tema, como
o estudo de Luna et al. (2010); Granville-Garcia et al. (2008) e Rossi (2004).
Esse último serviu de base para elaboração do referido questionário, mas
não foi utilizado na íntegra. O instrumento desenvolvido por Rossi (2004)
apresentava os conceitos de violência doméstica, a saber, a violência física, a
violência psicológica, a violência sexual e a negligência nos enunciados das

or
perguntas do questionário, o que foi suprimido na presente pesquisa, pois, o
objetivo era analisar a percepção desse profissional de forma não induzida.

od V
O questionário 2, portanto, apresenta um elenco de 51 perguntas, algumas

aut
abertas como as quatro primeiras questões, que solicitava ao entrevistado a
descrição de três sinais que poderiam chamar a atenção que uma criança e ou

R
adolescentes estaria sofrendo violência física, sexual, psicológica e negligên-
cia. A sexta questão foi organizada elencando situações de maus-tratos também

o
envolvendo os tipos de violência. Pedia-se que os profissionais indicassem se a
aC
sentença descrita era ou não violência ou se tinham dúvidas quanto a questão.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

As demais perguntas versaram sobre a identificação e notificação de casos


de maus tratos em sua rotina de trabalho e outras questões direcionadas ao
conhecimento desses profissionais sobre o tema, como a ficha de notificação,
visã
o ECA, encaminhamentos e órgãos responsáveis, se haviam sido vítimas de
violência em sua infância ou adolescência. Por fim, foi perguntado se gos-
tariam de participar de capacitação, suas dúvidas e sugestões. A maioria das
questões elaboradas era de multirresposta.
itor
a re

4. Análise dos dados


Os questionários foram codificados e os dados inseridos em uma base
de dados para posterior análise. Os dados quantitativos, ou seja, as variá-
par

veis tais como idade, número de filhos e renda familiar, foram organizados,
tabulados e submetidos à análise estatística descritiva. Os demais dados do
Ed

questionário foram organizados e analisados através de testes de comparação


e frequência (teste do Chi quadrado e teste G do programa BioEstat 5.3).
Também foi investigada a relação entre algumas variáveis como: idade, sexo,
ão

função na unidade, local de atuação, critério de classificação econômica,


tempo de formado (AYRES et al., 2007). Foram utilizados como referência
para análise dos dados os conceitos definidos pelo MS (BRASIL, 2010) na
s

Linha de cuidado para atendimento de crianças, adolescentes e suas famílias,


ver

por se tratar de documento direcionado à atuação dos profissionais de saúde


em todo o território brasileiro. Buscou-se estabelecer as categorias a partir
de aproximações com as definições e orientações dirigidas aos profissionais
de saúde quanto à questão.

Flávia Lemos - 21982.indd 283 28/02/2020 13:13:26


284

5. Principais resultados
Dos 129 profissionais entrevistados, 101 eram do sexo feminino (78,29%)
e 28 do sexo masculino (21,70%). Em relação a idade os profissionais tinham
em sua maioria entre 20 e 40 anos e os ACS tinham em média 36,89 (±10,46).
Não foram encontradas diferenças significativas entre idade e sexo na amostra
da ESF, cujos dados são apresentados na Tabela 1.

or
Tabela 1 – Distribuição dos profissionais da Estratégia Saúde da Família,

od V
segundo a faixa-etária e sexo, de um distrito administrativo em Belém-PA

aut
SEXO
FAIXA ETÁRIA TOTAL %
Feminino % Masculino %
20 |- 30
30 |- 40
33
26
R 32,7
25,7
10
13
35,7
46,4
43
39
33,3
30,2

o
40 |- 50 29 28,7 4 14,3 33 25,6
50 |- 60 12 11,9 1 3,6 13 10,1
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


60 |- 70 1 1,0 0 0,0 1 0,8
Total 101 100 28 100 129 100

P > 0,05 (Teste G de independência, p = 0,2081)


visã
No que se refere ao Critério Brasil, foi observada uma prevalência de
profissionais nas classes C1 (26,2%) e C2 (21,4%), totalizando 47,6%. Em
seguida aparecem as classes B1, B2 e A2, com 19%, 11,9% e 10,3% cada.
itor

Quando perguntados sobre identificação de maus tratos contra crianças


a re

e adolescentes em sua rotina de trabalho, cinquenta dos profissionais da ESF


(38,75%), disseram ter identificado violência física em sua rotina de traba-
lho, 23 (17,82%), a violência sexual, 26 (20,15%) a violência psicológica
e 69 (53,48%), a negligência, ou seja, 32,55% da amostra afirmaram já ter
identificado pelo menos uma vez algum tipo de violência.
par

Por outro lado, 87 profissionais disseram não ter identificado violência, o


Ed

que corresponde a 67,44%. Apenas 7,5% disseram ter notificado algum órgão
responsável. A resposta conversar com a mãe da vítima foi a mais indicada
por todos os profissionais de saúde da ESF, independente do tipo de violência,
ão

com 56% dos profissionais fazendo essa afirmativa em relação à violência


física, 47,83%, em relação à violência sexual, 65,38%, em relação à violência
psicológica e 50,72% quanto à negligência. Alternativas como conversar com
s

o chefe imediato ou conversar com colegas para buscar um encaminhamento


ver

foi apontado por 12,01% e 11,24% respectivamente. Chamou atenção que em


relação à violência sexual, não foi apontado por nenhum dos profissionais o
medo de represálias por parte do agressor e atitudes como conversar com o
pai da vítima. Além disso, nenhum profissional da ESF disse não saber iden-
tificar com exatidão em se tratando de violência psicológica e negligência.

Flávia Lemos - 21982.indd 284 28/02/2020 13:13:26


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 285

As frequências referentes a identificação de sinais de violência e atitudes dos


profissionais pode ser visualizada na Tabela 2. Em relação ao ECA, 50,38%
dos profissionais da ESF disseram ter lido em parte, 41,08% disseram já ter
ouvido falar por meio da mídia, mas não leu e apenas 6,20% deles disse ter
feito capacitação ou treinamento sobre essa temática.

Tabela 2 – Frequência relativa de profissionais da Estratégia

or
Saúde da Família (n= 129) que identificaram sinais de violência
durante atendimento de crianças e adolescentes, e as atitudes

od V
identificadas em uma questão multirresposta, Belém-PA

aut
Tipos de violência Física Sexual Psicológica Negligência MÉDIA
Identificou ou suspeitou

Sim

R
50 (38,75%)
23
(17,82%)
26
(20,15%)
103
69
(53,48%)
60
42 (32,55%)

o
Não 79 (61,24%) 106 (82,17%) 87 (67,44%)
(79,4%) (46,51%)
aC
8 4
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Notificou 17 (34,8%) 10 (14,49%) 7,5%


(34%) (15,38%)
8
Conversou com o chefe imediato 17 (34%) 7 (30,43% 26 (37,68%) 11,24%
(30,77%)
Conversou com os
20 (40%) 9 (39,13%) 10 (38,46%) 23 (33,33%) 12,01%
visã
colegas de trabalho
9
Conversou com o pai da vítima 6 (12%) 0 17 (24,64%) 6,20%
(34,62%)
Conversou com a mãe da vítima 28 (56%) 11 (47,83%) 17 (65,38%) 35 (50,72%) 17,63%
itor

Teve medo de represálias 1 1


7 (14%) 0 1,74%
pelo agressor (3,85%) (1,45%)
a re

Teve medo de represálias por 2 2


6 (12%) 3 (13,04%) 2,51%
parte da família da vítima (7,69%) (2,90%)
Não soube identificar sinais 2 2
0 0 0,77%
de violência com exatidão (4%) (8,70%)
Teve medo de sofrer 2 1 2 2
1,35%
consequências no trabalho (4%) (4,35%) (7,69%) (2,90%)
par

5 2 2
Não soube o que fazer 2 (8;70%) 2,13%
(10%) (7,69%) (2,90%)
Ed

*O total é superior a 100% porque a questão permitia múltiplas respostas.**


Quanto as respostas referentes ao item “Não se envolveu porque acha que é
um problema de família” foi referida por dois profissionais da ESF em relação a
violência física e apenas por um profissional em relação a negligência.
ão

6. O Agente Comunitário de Saúde (ACS)


s

Apesar dos dados do presente estudo terem considerado todos os pro-


ver

fissionais da ESF de forma conjunta, as especificidades de atuação dos ACS


mereceram uma descrição a parte, visto que esse profissional da equipe realiza
visitas domiciliares de forma mais sistemática e grande parte deles mora na
comunidade onde atua. Como mencionado anteriormente foi entrevistado um
total de 87 ACS na amostra, sendo 64 do sexo feminino (73,56%) e 23 do sexo

Flávia Lemos - 21982.indd 285 28/02/2020 13:13:26


286

masculino (26,44%). A média de idade foi de 32,72 anos, variando de 20 a 52


anos, sem diferença detectável segundo o sexo. A faixa etária mais prevalente
foi de 21 a 40 anos, que abrigou 81,60% da amostra. Verificou-se que 84% dos
ACS atuam no próprio bairro de residência. Quanto a escolaridade, 68,96%
dos ACS participantes da pesquisa possuem o nível médio completo, o que foi
observado em 56,52% no sexo masculino e 73,43%, no feminino. Observou-
-se ainda que 14,95% dos ACS concluíram o ensino superior. Analisando-se

or
segundo o sexo, tem-se que 39,13% dos ACS do sexo masculino possuem o
ensino superior completo ou em curso, enquanto somente 18,75% do sexo

od V
feminino encontram-se nessa condição. Esses dados apontam para maior

aut
escolaridade no sexo masculino, todavia essa diferença não é sustentada em
teste estatístico, possivelmente pelo tamanho da amostra do sexo masculino

R
(teste G: G= 9,414; p= 0,094). Em relação ao estado civil, os solteiros corres-
pondem a 47,12% em ambos os sexos, nas outras categorias: os casados do

o
sexo masculino somam 13,04% e no sexo feminino 20,31%. Aparece apenas
aC
no sexo feminino um percentual de 4,68% como separadas/divorciadas. Em

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


união estável 26,08% no sexo masculino e 26,56% no sexo feminino.
Quanto ao Corte Brasil, 40,22% da amostra encontra-se na classe C1,
porém, ao se analisar essa variável segundo o sexo observa-se maior represen-
visã
tatividade do sexo masculino (52,1%) em relação ao sexo feminino (38,3%).
Obteve-se ainda que 8=,6% das mulheres estão na categoria B2 contra 22% dos
homens. A distribuição da amostra de ACS nas classes econômicas, segundo
o sexo, apresentou diferença estatisticamente significativa (G= 14,259; p=
itor

0,047). As características sociodemográficas estão descritas na Tabela 3.


a re

Tabela – 3 Características sociodemográficas dos Agentes Comunitários


de Saúde de um distrito administrativo em Belém-PA
Variável SEXO
par

Masculino % Feminino %
Sexo
Ed

23 26,44% 64 73,56%
Estado Civil
13 56,52% 28 43,75%
solteiro(a)
casado(a) 3 13,04% 13 20,31%
em união estável 6 26,09% 17 26,56%
ão

separado(a)/divorciado(a) 0 0,00% 3 4,69%


Não respondeu
1 4,35% 3 4,69%
Critério Brasil*
2 8,70% 0 0,00%
s

B1
ver

B2 5 21,74% 5 7,81%
C1 12 52,17% 23 35,94%
C2 3 13,04% 22 34,38%
D 1 4,35% 9 14,06%
E 0 0,00% 1 1,56%

*p<0,05

Flávia Lemos - 21982.indd 286 28/02/2020 13:13:26


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 287

A maioria dos ACS (66,6%) trabalha entre dois a três anos na ESF. O
percentual de 8,75% tem outra atividade econômica e estão divididos segundo
o sexo sendo 13,04% para o sexo masculino e 6,25% para o feminino. Em
relação a questão de capacitação para atuação no tocante a violência, 62,06%
disseram não ter realizado treinamento sobre maus-tratos contra crianças e
adolescentes e 33,33% disseram que sim. Entre os que disseram ter realizado
treinamento 19,54% o fizeram entre os anos de 2010 a 2013.

or
od V
7. Percepção dos ACS sobre maus tratos

aut
contra crianças e adolescentes

R
Foram apresentadas questões objetivas para identificação de situações
incluindo os diferentes tipos de violência, sem tipificação. Os resultados indi-
caram que a violência sexual com contato físico foi a única que não gerou

o
dúvida em qualquer ACS. A exposição das crianças e/ou adolescentes às
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

situações de violência sem contato físico tais como: intimidades do casal ou


responsáveis, falar sobre experiências sexuais, exibição de material erótico e
o uso de roupas que exponham o corpo da criança como apelo à sensualidade,
visã
gerou dúvidas em 8,43% dos ACS, em média. Destaca-se que 4,60% não
considera violência falar de suas experiências sexuais na frente de crianças.
Foi semelhante a identificação de situações referentes à negligência,
violências psicológica e física, com uma média de 87,84% de acertos. Merece
itor

destaque que a violência física como forma de disciplinar, é aceita por 5,75%
a re

da amostra, enquanto o mesmo tema gera dúvida em 17,24%. Outras formas de


violência, como o uso de punições tais como dar tapas, palmadas, cinturadas,
e outras formas de punição por falhas, desobediência, ou para disciplinar as
crianças parece ser mais tolerada tanto que 16,09% dos entrevistados, afirmam
par

ter dúvidas quanto esta forma de violência, e 4,06% dizem que não é violência.
As questões que avaliaram a identificação dos diferentes tipos de vio-
Ed

lência na rotina de trabalho revelaram que 77,01% dos ACS nunca identi-
ficaram ou suspeitaram de casos de violência física. Dentre os 22,98% que
identificaram esse tipo de violência, em questões de multirresposta, 37,84%
ão

relataram ter conversado com o chefe imediato ou colegas, buscando um


encaminhamento; 37,84% conversaram com os pais da vítima; 13,52% rela-
taram ter medo de represálias por parte da família da vítima ou do agressor;
s

e 10,81% não souberam o que fazer. Além da pequena taxa de percepção da


ver

violência física, somente 20,00% dos que a identificaram disseram ter reali-
zado a notificação.
Sobre a identificação de casos de violência sexual, 90,82% responde-
ram nunca ter identificado ou suspeitado de casos em sua rotina de trabalho,
enquanto 9,18% relataram ter identificado essa situação. Dos que responderam

Flávia Lemos - 21982.indd 287 28/02/2020 13:13:26


288

já ter suspeitado de casos de violência sexual em sua rotina de trabalho, 30%


conversaram com o chefe imediato ou colegas de trabalho buscando um enca-
minhamento; 10% conversaram com a mãe da vítima; 20% teve medo de
represálias por parte da família da vítima; 20% não soube identificar sinais
de violência com exatidão e somente 25,00% relataram ter notificado.
Quanto à identificação de casos de violência psicológica em sua rotina
de trabalho, 82,75% dos profissionais responderam nunca tê-la identificado

or
ou suspeitado. Quanto ao que fez ou sentiu, somente 6,66% desses referem

od V
ter realizado a sua notificação; 33,33% conversaram com a mãe da vítima;

aut
24,24% conversaram com o pai da vítima; 15,15% conversaram com os cole-
gas buscando um encaminhamento; 12,12% conversaram com o chefe ime-
diato; 3,03% tiveram medo de represálias por parte do agressor; 3,03% teve

R
medo de represália por parte da família da vítima; 3,03% teve medo de sofrer
consequências no trabalho e 6,06% não soube o que fazer.

o
Quanto à percepção da negligência, 54,02% responderam nunca ter,
aC
enquanto 45,96% responderam que a perceberam ao menos uma vez. Quanto

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ao que fez ou sentiu, as categorias mais prevalentes foram: 39,13% conversa-
ram com a mãe da vítima; 27,54% responderam ter conversado com o chefe
imediato; 17,39% conversaram com os colegas buscando um encaminhamento
visã
e 10,14% conversaram com o pai da vítima. Em relação à notificação dos
casos, apenas 15,62% disseram ter feito a notificação.
A despeito da baixa frequência de notificação referida, cuja média ficou
itor

em 23,85%, 56,32% dos ACS disseram que notificar casos suspeitos e/ou
a re

confirmados de violência é função do profissional da saúde e 83,90% disse


que concorda que a notificação seja realizada na atenção básica. Quando
perguntados sobre se haviam sofrido violência na infância, 50,58% disseram
não ter sofrido e 26,44% disse que sim, os demais 22,98% disseram que não
lembravam ou que preferiam não responder sobre essa questão. Em relação
par

a questão se a violência era profissionalmente discutida na unidade onde


Ed

atuam 42,27% dos ACS disse que sim, 36,78% disseram que não e 8,04%
disseram não saber.
Dentre os motivos apresentados pelos ACS para a não realização da
ão

notificação encontram-se o medo de represália por parte da família (29,03%),


o desconhecimento do processo de notificação (22,58%) e a decisão de não se
envolver em problemas familiares (12,90%). Adicionalmente, 58,62% deles
s

desconhecem se há um protocolo na unidade para casos envolvendo violência


ver

contra crianças e adolescentes, 14,94% disseram que existe um protocolo, mas


não o conhecem, 13,79% disseram que não há um protocolo e apenas 5,74%
disseram conhecer o protocolo da unidade.
Também foi observado que 8,04% dos ACS disseram não concordar
que a notificação seja realizada na atenção básica, entre os motivos alegados
estão: 1) “ficamos expostos com as famílias”; 2) “não tivemos capacitação

Flávia Lemos - 21982.indd 288 28/02/2020 13:13:27


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 289

para isso”; 3) “porque não tem meio de influência na forma que a criança é
tratada”; 4)“porque na atenção básica é para prevenir e promover a saúde e
não é dever nosso”; 5) “por inúmeras situações de não se envolver a famí-
lia”; 6) “tem órgãos específicos para isso”. No entanto, 96,55% dos ACS não
conhece a ficha de notificação para casos de violência. Quanto ao conheci-
mento sobre o ECA, 47,12% deles disseram que leram em parte, 45,97%
disse que já ouviu falar através a mídia, mas não leu e apenas 4,59% deles

or
disseram ter realizado capacitação sobre o ECA. Quanto aos órgãos da rede

od V
de proteção, o Conselho Tutelar foi o mais citado (70,11%), seguido da

aut
Divisão de Atendimento ao Adolescente (DATA) com 26,43%, do PROPAZ
(Fundação Santa Casa de Misericórdia) com 16,09% e o Centro de Referência
de Assistência Social (CRAS), com 14,94%. Vale ressaltar que 32,18% deles
não responderam a questão.
R
o
8. Discussão dos principais resultados
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A amostra foi composta predominantemente por profissionais de saúde do


sexo feminino. Esse perfil era esperado, visto que na área da saúde é histórica
a participação feminina. Adicionalmente o censo do Instituto Brasileiro de
visã
Geografia e Estatística (IBGE, 2010) demonstrou que a taxa de atividade entre
as mulheres, indicador que considera as pessoas em idade ativa empregadas
ou que estão procurando trabalho, passou de 50,1%, em 2000, para 54,6%,
itor

em 2010, o que sugere o incremento da participação das mulheres no mercado


a re

de trabalho. As faixas etárias mais presentes foram formadas por adultos


jovens, o que sugere que esses profissionais estão iniciando sua carreira pro-
fissional na atenção básica. Além disso, grande parte se declarou como casada
ou vivendo em união estável e metade deles, disse ter um ou dois filhos. Um
par

estudo de Luna et al. (2010) encontrou perfil semelhante em Fortaleza (CE),


com uma maioria de mulheres (74,6%), predominantemente jovens, com ida-
Ed

des entre 20 e 40 anos (69,9%); 53,2% eram casados e 45,1% tinham filhos.
Na ESF houve a predominância da classe C1 e C2 seguida da classe
B. Cabe ressaltar que na ESF havia um número significativo de ACS, o que
ão

pode explicar em parte o grande número de participantes nessa categoria. Em


sua maioria, os profissionais demonstraram adaptação às rotinas de trabalho
nas unidades de saúde. Dentre os que relataram dificuldades de adaptação,
s

as principais estavam relacionadas à infraestrutura da unidade e aplicação


ver

do modelo de prevenção e promoção da saúde em detrimento do modelo


biomédico/curativista.
Verificou-se que os ACS atuam no próprio bairro de residência o que está
de acordo com o que é preconizado pela Lei 11.350 de 05/10/2006 em seu
Art. 6º inciso I (BRASIL, 2006). Além disso, esse fato é essencial para que

Flávia Lemos - 21982.indd 289 28/02/2020 13:13:27


290

seja estabelecido o sentimento de confiança entre eles e a comunidade. Outro


ponto a se considerar, quanto à importância de se trabalhar onde reside, é o
fato de compartilhar os mesmos problemas, a mesma cultura e mesma reali-
dade, o que segundo Nunes, traduzido por Almeida, Homem e Melo (2002),
contribui para o papel de “tradutor” que os ACS assumem, pois participam
do mesmo contexto físico e social da comunidade.
Observou-se ainda que alguns ACS concluíram o Ensino Superior, o

or
que demonstra uma ampliação do nível de escolaridade desses profissionais,

od V
embora também tenha sido identificado um ACS que não havia concluído

aut
o Ensino Fundamental. Apesar de grande parte declarar que não identificou
casos de maus-tratos contra crianças e adolescentes em sua rotina de trabalho,
estudos como os de Palmezoni e Miranda (2011); Scaranto, Biazevic e Crosato

R
(2007) enfatizam a ideia de que a natureza da relação do ACS para com as
comunidades com as quais estão envolvidos pode ser um aspecto relevante

o
para a atuação profissional frente aos casos de violência, logo, fornecer infor-
aC
mações adequadas sobre a temática para estes profissionais é passo importante

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


à favor desta proposição. Fato que merece maior atenção do poder público
e das políticas de saúde, voltadas para o desenvolvimento profissional das
equipes de saúde em especial na ESF.
visã
A questão referente a se os profissionais haviam sido vítimas de algum
tipo de violência na infância ou na adolescência, identificou em 25,82% deles
essa característica, o que também foi semelhante no estudo de Luna et al.
itor

(2010). Ainda nesse contexto, uma pesquisa realizada por Pires (2005) em
a re

Porto Alegre, com 92 pediatras, apontou que 11,0% relataram terem sido víti-
mas de maus-tratos na infância e, desses, apenas 50,0% notificaram casos de
maus-tratos na sua prática. Além disso, parece que as experiências pessoais
de violência podem tanto influenciar na mobilização do profissional de saúde
para a temática, quanto inibir sua atuação, como forma de evitar o contato
par

com experiências dolorosas do seu passado (LUNA et al., 2010).


Ed

Segundo Noguchi, Assis e Santos (2004) não se pode negar que este
tema desperta em muitos profissionais sentimentos intensos, que são muitas
vezes difíceis de manejar. No entanto, é necessário que o profissional da
ão

saúde não perca de vista seu compromisso ético e procure estabelecer uma
relação de cooperação sem angústia ou culpabilidade no trato com as vítimas
e seus familiares. O compromisso ético não precisa ultrapassar as fronteiras
s

do que está estabelecido enquanto função dos profissionais de saúde. Apesar


ver

disso, a questão dos maus-tratos contra crianças e adolescentes, pode ser tão
ameaçadora para o profissional que sua única possibilidade pode ser a nega-
ção (ANDRADE et al., 2011). O que não seria difícil de compreender visto
que a identificação dessas situações irá mobilizar a realização de diversos

Flávia Lemos - 21982.indd 290 28/02/2020 13:13:27


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 291

procedimentos, que vão da notificação dos casos, encaminhamentos à rede


de serviços, acompanhamento das famílias, dentre outros.
Nessa direção, Polaro, Gonçalves e Alvarez (2013), a partir de um estudo
realizado com profissionais da enfermagem que atuam no mesmo distrito, alvo
da pesquisa, no município de Belém-PA, chamaram atenção para o impacto
que a violência pode causar na atuação da Enfermagem na ESF, como senti-
mentos de medo e frustração profissional pelo constrangimento e limitação

or
de suas funções. Segundo as autoras vários tipos e níveis de violência estão

od V
imbricados na atuação dos profissionais da enfermagem e são reconhecidos

aut
por eles como tal, sejam as violências territoriais/estruturais, institucionais e
a violência intrafamiliar.
Esse processo implica em um reconhecimento de limites pessoais, para

R
que o papel profissional não cause prejuízos à sua saúde física e emocional.
Assim, precisam compreender e se aproximarem dos processos aos quais

o
estão submetidos no seu ambiente de trabalho, bem como estar atento a fatores
aC
como a tensão emocional, o sentimento de impotência e a pressão frente ao
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sofrimento do outro que precisa de seus cuidados.


Segundo Ramos e Teodoro (2012) além do aspecto técnico, os profis-
sionais precisam estar preparados psicologicamente para o contato com essa
visã
população. Sentimentos como raiva, dor, impotência, nojo, agressividade
e pena deixam os profissionais desconfortáveis e inseguros em relação ao
manejo dos casos. As autoras ressaltam que os aspectos emocionais dos tra-
itor

balhadores podem interferir negativamente no desempenho em relação ao


a re

diagnóstico e aos encaminhamentos dos casos. Além disso, apontam que é


necessário que o profissional identifique a presença de sua própria ansiedade
em relação ao seu trabalho e avalie também suas emoções.
Ainda em relação às características dos profissionais de saúde, foi obser-
vado que poucos já haviam realizado capacitação específica, envolvendo a
par

questão da violência contra crianças e adolescentes. O que permite inferir


Ed

que a política de educação permanente voltada para qualificação desses pro-


fissionais de saúde em relação a questão, ainda precisa ser intensificada no
município de Belém-PA.
ão

As atitudes dos profissionais, frente à abordagem dos maus-tratos contra


a criança e o adolescente, estão intimamente relacionadas com a visibilidade
ou não que o problema assume em seu cotidiano. A reflexão sobre a percepção
s

dos diferentes tipos de maus-tratos e as ideias e experiências a elas associada,


ver

contribuem para se entender os possíveis encaminhamentos que esses profis-


sionais dão aos casos de violência quando identificáveis.
Nessa perspectiva Gomes et al. (2002) sugerem que a efetivação de um
atendimento depende da possibilidade do profissional em ser capaz de iden-
tificar a presença ou a suspeita da violência nos diferentes casos atendidos,

Flávia Lemos - 21982.indd 291 28/02/2020 13:13:27


292

mas, por outro lado, ter ou não visibilidade depende, dentre outros aspectos,
da escuta e do olhar ampliados que o profissional consegue imprimir em
seu atendimento.
Merece destaque, que em sua maioria os profissionais da ESF, mesmo
os profissionais de nível superior, não destacaram seu receio quanto a sofrer
represálias, das famílias das vítimas, do suposto agressor, tampouco no tra-
balho. Fica a questão quanto às limitações do instrumento para avaliar essa

or
questão, ou mesmo o temor dos profissionais em admitir que manejar os casos

od V
de violência pode ser fonte de sofrimento e, portanto, preferem “negar” ou

aut
mesmo não entrar em contato com essa problemática. Apesar disso, quase
todos afirmam que tanto notificar, quanto realizar esse tipo de atendimento
na atenção básica é obrigação e compromisso do profissional de saúde, ou

R
seja, estão cientes de suas atribuições.
Percebeu-se que a negligência, a violência psicológica e a física, são as

o
formas de violência mais identificadas pelos ACS, em sua rotina de trabalho.
aC
Mas há um importante percentual daqueles que mesmo em visitas constan-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tes em sua área delimitada, não conseguem identificar ou suspeitar de casos
de maus tratos contra crianças e adolescentes. O que chama atenção, pois
o contexto e os indicadores sociais das comunidades assistidas por esses
visã
profissionais revelam situações de desigualdade social, violência urbana,
tráfico de drogas, dentre outros. Ainda que a pobreza não seja causa direta
dos maus-tratos cometidos contra crianças e adolescentes, e nem deve ser
itor

considerada como tal, ela pode ser fator de risco para a ocorrência de vários
a re

tipos de violência (AZEVEDO; GUERRA, 2002).


Essa invisibilidade pode estar associada a muitas variáveis, dentre elas a
negação para evitar o contato com essa temática, o medo das consequências
que tal identificação pode gerar a partir de sua constatação, a insegurança
que a falta de infraestrutura nas unidades pode causar, a descrença de que sua
par

atitude pode gerar resultados positivos para as vítimas, o medo de perder a


Ed

confiança das famílias, e até mesmo por achar que essas ações não são de sua
responsabilidade, o que foi mencionado por alguns profissionais no momento
da entrevista.
ão

Um estudo de Nunes et al. (2008) observou que os profissionais de saúde


associam a violência à conjuntura econômica, social e política e a aspectos
culturais, ou seja, para alguns, os atos violentos fazem parte do ciclo inter-
s

geracional e da dinâmica familiar, no entanto, para outros a punição física,


ver

apesar de ser vista como tal é defendida como “medida educativa”. Consta-
taram ainda, que os profissionais de saúde têm dificuldade em compreender
a violência como consequência de uma dinâmica relacional complexa.
Holge-Hazelton e Tulinius (2010) também chamam atenção para a cons-
tatação de que muitos casos não se originam em problemas das crianças, mas

Flávia Lemos - 21982.indd 292 28/02/2020 13:13:27


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 293

de conflitos entre os adultos e as crianças, ou seja, as intervenções podem


estar focadas na resolução de sintomas apresentados pelas crianças e ou ado-
lescentes, mas que não atingem a família. O que provavelmente, pode resultar
em mudanças pouco efetivas das situações de violência. A concomitância e
complexidade entre os tipos de violência e suas formas de expressão, também
podem explicar as diferenças entre as formas de identificação, os procedi-
mentos a serem adotados, assim como as decisões quanto aos encaminha-

or
mentos necessários.
Outro contexto importante diz respeito à atuação do Conselho Tutelar,

od V
pois foi o órgão mais identificado como parte da rede de enfrentamento da

aut
violência contra crianças e adolescentes. Aparentemente, a prática adotada
pelos profissionais de saúde é, dependendo do caso, comunicar o Conselho

R
Tutelar sobre os casos, ainda que não haja um protocolo na unidade quanto
aos procedimentos a serem adotados. Outros profissionais conversam entre

o
si, ou com a chefia imediata, embora de forma isolada e desarticulada, o que
aC
dificulta ainda mais a notificação, pois não parece haver um consenso na sua
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

prática, nem discussão desta problemática na equipe.


No caso dos profissionais da saúde entrevistados, parece que notificar
significa encaminhar a criança ou adolescente para o Conselho Tutelar, o
visã
que está de acordo com o ECA. No entanto, essa limitação pode gerar con-
sequências negativas para a proteção integral da criança e do adolescente,
bem como para o setor de vigilância em saúde. Apesar de ser uma medida
itor

importante a ser tomada, pois o Conselho Tutelar deverá tomar as providências


necessárias para dar o melhor encaminhamento aos casos, esse procedimento
a re

isolado, poderá não trazer o resultado desejado, pois a manutenção dos ciclos
de violência podem se repetir ao longo do tempo e sem uma intervenção mais
ampla e contínua poderá impactar de forma ainda mais severa na saúde e no
desenvolvimento das vítimas. Alguns autores sugerem que isso se deve em
par

parte pela descrença dos profissionais de saúde que sua intervenção trará
benefícios concretos para as vítimas, visto que não confiam na capacidade dos
Ed

órgãos em dar a retaguarda necessária (GONÇALVES; FERREIRA, 2002;


GOMES et al., 2002; LUNA et al., 2010).
Outros estudos têm mencionado que a falta de clareza quanto aos pro-
ão

cedimentos adotados pelos Conselhos Tutelares e a desarticulação da rede de


proteção, são entraves para que o profissional realize a notificação e os devidos
encaminhamentos (ASSIS, 2012; DESLANDES, 1993; DAY, 2003; RAMOS;
s

SILVA, 2011). Em relação a essa questão, Gomes et al. (2002) identificaram


ver

que há uma oscilação por parte dos profissionais entre a crença e a descrença
da resolubilidade dos casos e a presença de medo e insegurança emocional.
Também foram destacados os problemas relacionados à lacuna desse tema
na formação profissional e a reprodução de padrões culturais de que não se
deve interferir em assuntos familiares.

Flávia Lemos - 21982.indd 293 28/02/2020 13:13:28


294

O estudo de Marcon, Tiradentes e Kato (2001) também demonstrou


semelhança com alguns dos resultados da pesquisa em tela, pois o diagnós-
tico de violência era baseado na presença de sinais físicos de agressão tais
como: hematomas, arranhões, queimaduras, lesões corporais, fraturas. Esses
resultados também demonstram que os profissionais de saúde conseguem
descrever sinais de violência física, no entanto isso parece não subsidiar a
decisão em notificar os casos identificados em sua rotina de trabalho, apesar

or
das evidências físicas.

od V
Para que os profissionais dos serviços se sintam mais seguros quanto

aut
à notificação de suspeita de violência, o Ministério da Saúde (Brasil 2010)
recomenda a busca de apoio dos serviços definidos pelo gestor como unidade

R
de referência para atenção integral às vítimas de violência que integram a
rede de cuidados e proteção social, de modo a tornar mais adequadas as

o
ações necessárias para a proteção da criança ou do adolescente. Caberia,
portanto, à coordenação dos serviços de saúde definir o(s) responsável (eis)
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pela assinatura da ficha de notificação, os protocolos de atendimento e os
encaminhamentos, de acordo com a realidade regional de cada município
(BRASIL, 2010). Além disso, precisam de retaguarda adequada para poderem
visã
realizar os atendimentos em parceria com outros setores da rede de proteção,
como os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), por exemplo.
A parceria com o Núcleo de Atenção a Saúde da Família também pode forta-
itor

lecer essa intervenção realizando o matriciamento, caso as referências técnicas


a re

mobilizem essa articulação.

9. Considerações finais

As diretrizes da atenção básica devem nortear as ações dos profissionais


par

dessa esfera de atenção, no que se refere aos cuidados em saúde. No entanto,


é possível observar nos resultados do presente estudo que muitos desses pres-
Ed

supostos esbarram em diferentes tipos de entraves para sua efetivação. Apesar


de demonstrado que os profissionais de saúde possuem bom repertório de
ão

informação sobre o tema, esse fato isolado, pode não garantir uma interven-
ção efetiva e principalmente resolutiva. Também é necessário que o debate se
faça no campo da ética e da cidadania, pois muitos se perguntam: quando o
s

profissional de saúde ultrapassa a porta da casa, está invadindo a privacidade


ver

ou protegendo as possíveis vítimas? Está sendo invasivo ou estendendo a


cidadania? Se omitir em nome da privacidade das famílias também não parece
razoável, pois onde há vitimização falta cidadania. É especialmente importante
ter em mente esse dilema, na medida em que treinamentos têm sido efetivados
no sentido de fornecer aos profissionais os instrumentos necessários para o

Flávia Lemos - 21982.indd 294 28/02/2020 13:13:28


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 295

reconhecimento de famílias de risco, mas parece que isso não é suficiente.


Frutificar o conhecimento é muito relevante, mas não se pode cair na armadi-
lha de gerar novas formas de vitimização nos procedimentos realizados pelos
profissionais de saúde e nos desdobramentos dos casos.
A alegação de falta de conhecimento, ou mesmo na descrença de reso-
lutividade dos casos por parte das redes de atendimento, não podem justificar
a omissão em casos de maus-tratos contra crianças e adolescentes, mesmo

or
quando suspeitos, mas principalmente, para a tomada de decisão quanto aos

od V
encaminhamentos subsequentes. No entanto, é de suma importância que as

aut
famílias sejam acompanhadas, e que os canais de comunicação sejam estabe-
lecidos a partir de um vínculo de confiança. Devem ser evitadas as posturas
de cunho moralista, assim como, a tendência em julgar e apontar culpados.

R
Os profissionais devem propiciar um ambiente favorável ao desenvolvimento
de parcerias, ou seja, evitar o isolamento e a reprodução de padrões abusivos

o
ou omissos, semelhantes àqueles vivenciados pelas famílias.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Como seres históricos podemos criar novas possibilidades de presente e


de futuro, pois temos a nosso alcance muitos dispositivos sociais e de cuidado,
que podem ser criados e recriados. Um desses dispositivos no enfrentamento
da violência pode ser o fortalecimento das equipes de saúde da família em
visã
seu território de atuação.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 295 28/02/2020 13:13:28


296

REFERÊNCIAS
ANDRADE, E. M. et al. A visão dos profissionais de saúde em relação à
violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo.
Saúde e Sociedade, 2011. p. 147-155.

or
ASSIS, S. G.; DESLANDES, F.; MARQUES, M. A. B. “Violência contra
crianças e adolescentes – em busca de uma definição”, In: MARQUES (Org.).

od V
Violência contra crianças e adolescentes. Petrópolis, RJ, Vozes, 1994.

aut
BOURROUL, M. L. M. A violência doméstica contra a criança e o ado-

R
lescente e o ensino de pediatria na residência médica. (Dissertação de
Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria de

o
Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2005.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia
prático do Programa Saúde da Família. Brasília/DF, 2004.

______. Ministério da Saúde. Linha de cuidado para atenção integral à


visã
saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência:
orientações para 144 gestores e profissionais de saúde. Secretaria de Aten-
ção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Brasília,
itor

DF, 2010, p. 91.


a re

______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº737 de 16/05/2001. Polí-


tica Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências.
Diário Oficial da União. Brasília, DF, 18 de maio de 2001.
par

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.271, de 6 de junho de 2014.


Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e
Ed

eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo


o território nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2014, p. 67.
ão

______. Saúde mais perto de você – Acesso e qualidade Programa Nacio-


nal de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ).
Manual Instrutivo, Brasília/DF. Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/
s

docs/portaldab/publicacoes/manual_instrutivo_PMAQ_AB2013.pdf>. Acesso
ver

em: 14 maio 2014.

BRITO, A. M. M. et al. Violência doméstica contra crianças e adolescentes:


estudo de um programa de intervenção. Revista Ciência & Saúde Coletiva,
v. 10 n. 1, p. 143-149, 2005.

Flávia Lemos - 21982.indd 296 28/02/2020 13:13:28


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 297

DAY, V. P. et al. Violência doméstica e suas diferentes manifestações.


Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 25, supl. 1,
p. 9-21, 2003.

DESLANDES, S. F. Prevenir a violência: um desafio para profissionais de


saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz/ENSP/Claves, 1993. p. 39.

or
FALEIROS,V. P.; FALEIROS, E. T. S. Circuitos e curtos-circuitos. Aten-

od V
dimento, defesa e responsabilização do abuso sexual contra crianças e

aut
adolescentes. Brasília: Veras Editora, 2001.

R
GOMES, R., et al. A abordagem dos maus-tratos contra a criança e o adoles-
cente em uma unidade pública de saúde. Revista Ciência & Saúde Coletiva,

o
v. 7 n. 2, p. 275-283, 2002.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

GONÇALVES, H. S.; FERREIRA, A. L. A notificação da violência intrafa-


miliar contra crianças e adolescentes por profissionais de saúde. Cadernos
de Saúde Pública. v. 8, n. 1, p. 315-19, 2002.
visã

GRANVILLE-GARCIA, A. F.; SILVA, M. J. F.; MENEZES, V. A. Maus-Tra-


tos a Crianças e Adolescentes em São Bento do Una, PE, Brasil. Pesquisa
Brasileira Odontopediatria Clinica Integrada, João Pessoa. Doi: 10.4034
itor

/1519.0501.2008.0083.0008. v. 8, n. 3, p. 301-307, 2008.


a re

HOLGE-HAZELTON, B.; TULINIUS, C. Beyond the specific child. What


is ‘a child’s case’in general practice? British Journal of General Practice;
v. 60, n. 570. Doi: 10.3399/bjgp10X482059, 2010.
par

IBGE. Censo 2010. Rio de janeiro. Disponível em: <www.ibge.gov.br>.


Ed

Acesso em: 13 jan. 2012.

LUNA, G. L. M.; FERREIRA, R. C.; VIEIRA, L. J. E. de S. Notificação de


ão

maus-tratos em crianças e adolescentes por profissionais da Equipe Saúde da


Família. Revista Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 2, p. 481-491, 2010.
s
ver

MARCON, S. S.; TIRADENTES, L. K.; KATO, E. S. Conhecimento, atitudes


e crenças de profissionais de saúde de Maringá frente a violência familiar
contra a criança e o adolescente. Revista Família Saúde e Desenvolvimento.
Curitiba, v. 3, n. 1, p. 35-47, 2001.

Flávia Lemos - 21982.indd 297 28/02/2020 13:13:28


298

MONKEN, M.; BARCELLOS, C. O Território na Promoção e Vigilância


em Saúde. In: FONSECA, A. F.; CORBO, A. M. D. (Org.). O território e o
processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.

NOGUCHI, M. S.; ASSIS, S. G. de; SANTOS, N. C. Entre quatro paredes:


atendimento fonoaudiológico a crianças e adolescentes vítimas de violência.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 9, n. 4, p. 963-973, 2004.

or
od V
NUNES. Trad. Almeida, Homen e Melo. Saúde Mental na Atenção Básica:

aut
Sentidos Atribuídos pelos Agentes Comunitários de Saúde. Psicologia: Ciência
e Profissão. Print version ISSN 1414-9893. Psicol. cienc. prof. v. 35, n. 1,
jan./mar. 2015. Brasília.

R
PALMEZONI, V. P.; MIRANDA, F. J. S. A identificação da violência intra-

o
familiar contra crianças e adolescentes pelo agente comunitário de saúde.
aC
Revista Saúde Coletiva. v. 49, n. 8, p. 88-92, 2011.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


PIRES, J. M. A. Barreiras, para notificação pelo pediatra, de maus-tratos infan-
tis. Revista Brasileira Saúde Materno Infantil. v. 5, n. 1, p. 103-108, 2005.
visã

POLARO, S. I.; GONÇALVES, L. H. T.; ALVAREZ, A. M. Enfermeiras desa-


fiando a violência no âmbito de atuação da Estratégia de Saúde da Família.
itor

Revista Texto Contexto Enfermagem. v. 22, n. 4, p. 935-42, 2013.


a re

RAMOS, M. da S.; TEODORO, M. L. M. A importância da capacitação dos


profissionais da saúde que trabalham com vítimas de violência na infância
e adolescência. In: HABIGZANG, L. F.; KOLLER, S. H. (Org.). Violência
contra crianças e adolescentes teoria, pesquisa e prática. Porto Alegre:
par

Artmed, 2012. p. 242-254.


Ed

ROSA W. A. G.; LABATE R. C. Programa Saúde da Família: a construção de


um novo modelo de assistência. Revista Latino Americana de Enfermagem,
ão

v. 13, n. 6, p.1027-34, 2005.

ROSSI, D. Notificação da violência doméstica contra crianças e adolescen-


s

tes: Procedimentos de profissionais de saúde do setor público de Campinas


ver

SP. Tese de Doutorado. UNICAMP/SP, 2004.

SANTOS, K. T. et al. Agente comunitário de saúde: perfil adequado a rea-


lidade do Programa Saúde da Família. Revista Ciência & Saúde Coletiva,
v. 16, p. 1023-1028, 2011.

Flávia Lemos - 21982.indd 298 28/02/2020 13:13:28


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 299

SCARANTO, C. A. A.; BIAZEVIC, M. G. H.; CROSATO, E. M. Percepção


dos Agentes Comunitários de Saúde sobre a Violência Doméstica contra a
Mulher. Revista Psicologia, Ciência e Profissão, v. 27, n. 4, p. 694-705, 2007.

SOUZA, C. S. et al. Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes/VIVA


e a notificação da violência infanto-juvenil, no Sistema Único de Saúde/SUS
de Feira de Santana-Bahia, Brasil. Revista Ciência & Saúde Coletiva, v. 19,

or
n. 3, p. 773-784, 2014. Doi: 10.1590/1413-81232014193.18432013.

od V
aut
R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 299 28/02/2020 13:13:28


Flávia Lemos - 21982.indd 300
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:28
AS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO
DA EXPLORAÇÃO SEXUAL CONTRA
CRIANÇAS E ADOLESCENTES

or
NO MUNICÍPIO DE JURUTI (PA)

V
A PARTIR DA IMPLANTAÇÃO

aut
DO PROJETO ALCOA

CR Marilene Maria Aquino Castro de Barros

do
Genylton Odilon Rêgo da Rocha

1. Exploração e sexual de crianças adolescentes


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
Eva Faleiros (1994), ao fazer uma análise sobre o fenômeno da explo-
ra
ração sexual de crianças e adolescentes, conceitua tal violência como uma
relação de mercantilização (exploração/dominação) e abuso (poder) do corpo
i
rev

de crianças e adolescentes (oferta) por exploradores sexuais (mercadores)


organizados em redes de comercialização local e global (mercado), ou por pais
ou responsáveis, e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda).
to

De conformidade com Scoltz e Walger (2008), a exploração do sexo


inclui o abuso sexual, as diferentes formas de prostituição, o tráfico e a venda
ara

de pessoas, as interdições e o lucro baseados na oferta e demanda de serviços


sexuais das pessoas. Segundo o Guia de Referência: Construindo uma cultura
ver di

de prevenção à violência sexual (SANTOS, 2009, p. 99), “[...] a exploração


sexual é caracterizada pela relação sexual de uma criança ou adolescente com
op

adultos, mediada pelo pagamento em dinheiro ou qualquer outro benefício.”


Para melhor esclarecimento do conceito de exploração sexual, esse Guia uti-
E

liza o entendimento adotado durante o Primeiro Congresso Mundial contra a


Exploração Sexual Comercial, realizado em Estocolmo, 1996, o qual enfatiza:

A exploração sexual comercial é uma violação fundamental dos direitos


humanos. Esta compreende o abuso sexual por adultos e a remuneração em
espécie ao menino ou menina e a uma terceira pessoa ou várias. A criança
é tratada como objeto sexual e uma mercadoria. A exploração sexual de
crianças constitui uma forma de coerção e violência contra crianças, que
pode implicar o trabalho forçado e formas contemporâneas de escravidão
(DECLARAÇÃO APROVADA DURANTE O PRIMEIRO CONGRESSO
MUNDIAL CONTRA A EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL, Esto-
colmo, 1996).

Flávia Lemos - 21982.indd 301 28/02/2020 13:13:28


302

A exploração sexual contra crianças e adolescentes é praticada por pes-


soas de todas as classes sociais e, na maioria dos casos, por indivíduos do sexo
masculino. Em certas ocasiões, as crianças e os adolescentes são afastados
de suas famílias e comunidades, com o pretexto de promessa de um futuro
melhor e, por conta de tal promessa, um número considerado dessa parcela
da população acaba sendo vítima de exploração sexual.
Salienta Vicente de Paula Faleiros:

or
od V
A exploração sexual comercial é uma violência sexual sistemática que se

aut
apropria comercialmente do corpo, como mercadoria para auferir lucro.
Mesmo inscrito como “autônomo” sem intermediários, o uso (abuso)
do corpo, em troca de dinheiro, configura uma mercantilização do sexo

R
e reforça os processos simbólicos, imaginários e culturais machistas,
patriarcais, discriminatórios e autoritários. Essa “imagem de marca”,

o
parafraseando o moderno marketing, não é só característica das zonas de
garimpo, mas de modernas redes que oferecem nos anúncios “corpinho
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de adolescente”, “cara de criança”, “loirinha”, “moreninha” (FALEI-
ROS, 1998, p. 83).
visã
Pesquisadores como Leal (1999) e Libório (2004) afirmam que esse
fenômeno se constitui enquanto um mercado de dimensão assustadora, onde
a indústria funciona por meio de quatro modalidades: produção e divulgação
de pornografia, prostituição infantil, tráfico para fins sexuais e turismo sexual.
itor

Stoltz e Walger (2008) argumentam também que a exploração sexual


a re

comercial está ligada ao turismo portuário e de fronteiras e é encontrada nas


regiões banhadas por rios navegáveis da Região Norte, fronteiras nacionais e
internacionais da Região Centro-Oeste e Sul e zonas portuárias. Está direcio-
nada à comercialização do corpo infantojuvenil e também tem, como usuários,
par

os turistas estrangeiros. Por outro lado, são os próprios residentes desses locais
os principais exploradores de crianças e adolescentes das regiões ribeirinhas.
Ed

Já nos portos, destina-se, sobretudo, à tripulação de navios cargueiros.


Alguns estudos têm procurado desvelar as causas que levam à exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes. Leal (1999, p. 10-11) assevera que
ão

a exploração sexual contra crianças e adolescentes se configura por meio de


uma relação de poder e de sexualidade, mercantilizada, que visa à obtenção de
proveito por adultos, que causa danos biopsicossociais aos explorados, que são
s

pessoas em processo de desenvolvimento. Implica o envolvimento de crianças


ver

e adolescentes em práticas sexuais, através do comércio de seus corpos, por


meios coercitivos ou persuasivos, o que configura uma transgressão legal e
a violação de direitos e liberdades individuais da população infantojuvenil.
Para Faleiros (1994), a exploração sexual transforma o corpo em
objeto, ou seja, a mercadorização do sexo representa uma relação complexa

Flávia Lemos - 21982.indd 302 28/02/2020 13:13:29


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 303

e entrelaçada, de produção do corpo como objeto, de violência de gênero e


de discriminação, de circulação de dinheiro e aquisição de lucro e de atuação
criminal, indiscutivelmente, na situação de crianças e adolescentes. O con-
trato sexual aparente entre duas pessoas está condicionado por relações de
exploração e relações de poder.
Faleiros (1994) ressalta que a participação de crianças e adolescentes,
as quais são usadas no mercado da exploração sexual, deve ser diferenciada

or
da forma de exploração sexual de pessoas adultas, pois se trata de um modo

od V
particular de exploração sexual, por apresentar elementos de ordem cultu-

aut
ral e de ordem econômica: de ordem cultural, há o caráter adultocêntrico,
pedófilo/hebéfilo31, sexual e de gênero simbólico. Quanto aos componen-

R
tes de ordem econômica, a autora cita: a classe social e o trabalho infanto-
juvenil. Ela salienta que a violência sexual contra crianças e adolescentes

o
praticada por adultos se perfaz numa relação de poder, autoritária, na qual
aC
estão presentes e se confrontam autores/forças com pesos/poderes desiguais
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de conhecimento, autoridade, experiência, maturidade, recursos, estratégias


(FALEIROS, E., 2004).
visã
2. Exploração sexual contra crianças e
adolescentes no município de Juruti (PA)
itor

O município de Juruti está localizado na margem direita do rio Ama-


a re

zonas, Região Oeste do Estado do Pará, Mesorregião do Baixo-Amazonas e


Microrregião de Óbidos, tendo sido fundado no ano de 1883. De acordo com
o Censo de 2010 (JURUTI, 2011b), tem uma população estimada em 47.086
habitantes, sendo 15.852 moradores no meio urbano e 31.234 no meio rural;
par

além disso, mais de 50% da população está entre a faixa etária de 0 e 19 anos.
De acordo com o documento denominado Indicadores de Juruti: moni-
Ed

toramento (JURUTI, 2011a), elaborado com base em um levantamento rea-


lizado pelo Conselho Tutelar de Juruti, no período de 2000 a 2010, entre
os anos de 2002 a 2004 não foi feito nenhum registro de exploração sexual
ão

contra crianças e adolescentes, porém, a partir de 2005, houve registros que


começaram com apenas um caso, aumentando gradativamente o número de
denúncias e ocorrências, os quais atingiram a quantidade de 16 casos denun-
s

ciados no ano de 2010.


ver

31 Efebofilia ou hebefilia (do grego ¨efhebos¨) é uma orientação ou preferência sexual, na qual um adulto tem
uma atração sexual primária por adolescentes. As atividades efebofílicas podem ser fantasiadas durante a
masturbação ou ato sexual com parceiros adultos. A pedofilia (preferência sexual por crianças até a puber-
dade) é classificada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma doença, enquanto a efebofilia
não é listada como doença ou desordem sexual.

Flávia Lemos - 21982.indd 303 28/02/2020 13:13:29


304

É oportuno observar que outras formas de violência sexual se fazem


presentes, obedecendo s uma conexão ascendente do quantitativo de casos
relacionados ao mesmo período investigado (2002 – 2010). No que se refere
ao abuso sexual, há notificação de 4 casos denunciados em 2002, oscilando
os números para mais e para menos, entre os anos de 2003 a 2009, e tendo
um acréscimo substantivo de casos em 2010, ou seja, 24 denúncias. Situação
similar ocorre com os casos de estupro, com o diferencial de que, no ano

or
de 2005, houve 11 situações desse tipo de violência sexual em relação aos 10
casos notificados no ano de 2010. Vejamos o quadro abaixo:

od V
aut
Quadro 01 – Número de notificações de exploração e abuso sexual
contra crianças e adolescentes no município de Juruti (PA)

Ano 2002 2003 2004


R EXPLORAÇÃO SEXUAL
2005 2006 2007 2008 2009 2010

o
Nº de
0 0 0 1 5 7 12 12 16
casos
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ABUSO SEXUAL
Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Nº de
4 3 3 1 1 7 3 6 24
casos
visã
ESTUPRO
Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Nº de
2 0 5 11 6 2 6 8 10
casos
itor

Fonte: Indicadores de Juruti: monitoramento 2011 (JURUTI, 2011a).


a re

Pode-se verificar que a evolução do fenômeno coincide com o período


de implantação do Projeto ALCOA (Aluminum Company of America), no
município, a partir dos anos 2000.
De acordo com os Indicadores de Juruti (JURUTI, 2011a), no ano
par

de 2000, a população local estava estimada em torno de 31.198 habitantes,


sendo que, no ano de 2010, com base no Censo Demográfico implementado
Ed

pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população atingiu


o índice de 47.086 habitantes, gerando um aumento significativo de 51% de
pessoas vivendo em Juruti.
ão

Conforme o que está expresso no Plano Decenal Municipal: Enfren-


tamento à Violência e Sexual contra Crianças e Adolescentes/2010- 2019
s

(JURUTI, 2010), a chegada do projeto de construção da mina a Juruti desen-


cadeou um cenário de significativas mudanças sociais, econômicas, ambientais
ver

e culturais, dentre as quais está a alteração do cenário da violência contra


crianças e adolescentes. Assim esclarece o documento:

O número de notificações ao Conselho Tutelar de casos de violência sexual


(incluindo abuso e exploração) aumentou de 6 para 30, entre 2000 e 2008.

Flávia Lemos - 21982.indd 304 28/02/2020 13:13:29


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 305

Num contexto mais amplo, as notificações de casos de maus tratos pas-


saram de uma média de 30 por ano entre 2002 e 2004 para 136 por ano,
entre 2005 e 2008. Também é possível observar alterações nos números
de notificações de trabalho infantil (que pode incluir a exploração sexual)
e de gravidez na adolescência (JURUTI, 2010).

Os números acima apresentados pelo Plano Decenal Municipal: Enfren-

or
tamento à Violência e Sexual Contra crianças e Adolescentes, Juruti-Pará, 2010
– 2019 (JURUTI, 2010) nos mostra a estatística no período de 2000 a 2008,

od V
sendo que o número de crianças vítimas de violência sexual, considerando o

aut
período de 2000 a 2010, aumentou de 4 para 40 casos, de acordo com o Conse-
lho Tutelar de Juruti. À guisa de exemplificação do cenário de violência sexual

R
contra crianças e adolescentes, no município de Juruti, apresentamos alguns
elementos afetos ao fenômeno investigado junto ao Centro de Referência de

o
Assistência Social (CRAS), tendo em vista o período de 2007 a 2012. Vejamos:
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Quadro 02 – Quantitativo de casos de violência sexual praticada


contra crianças e adolescentes em Juruti - PARÁ
TIPO DE VIOLÊNCIA SEXUAL 2007 2008 2009 2010 2011 2012
visã
Abuso sexual 05 04 06 08 09 08
Exploração sexual 02 05 11 07 05 04
Tráfico humano com fins de exploração sexual 00 00 00 00 00 00
Total 07 09 17 15 14 12
itor

Fonte: Indicadores de Juruti: monitoramento 2011 (JURUTI, 2011a).


a re

O quadro de representação do fenômeno da violência sexual contra crian-


ças e adolescentes vitimizados no município de Juruti, atendidos pelo CRAS,
no período de 2007 a 2012, evidencia que a prática do abuso sexual (40 casos)
é mais notificada do que os casos de exploração sexual (34 casos). Esses
par

dados corroboraram a perspectiva de Vicente Faleiros (2004), para quem a


Ed

exploração sexual contra crianças e adolescentes é pouco denunciada, entre


outras causas, devido a esse fenômeno ser tipificado como crime:
ão

O que se tornou concretizado a medida que à mesma foi abordada como


uma forma de proveito sexual e econômico de um explorador sobre uma
criança ou adolescente. [...] A exploração sexual, encarada na relação
s

explorador-vitimizado/explorado, traz à tona, no processo de dominação


e violência, o benefício comercial de um serviço que é prestado de forma
ver

imposta pelas condições sociais para proveito e lucro de outrem, direta


ou indiretamente (FALEIROS, 2004, p. 64).

Observa-se também que, nos anos de 2009, 2010 e 2011, houve signi-
ficativo aumento dos casos notificados. Técnicos do CRAS atribuem essa

Flávia Lemos - 21982.indd 305 28/02/2020 13:13:29


306

situação ao fato de que, no período de pico da exploração do minério, haver


um significativo aumento da violência sexual contra crianças e adolescentes
– e esses anos são bem representativos dessa correlação:

Quadro 03 – Perfil das crianças e adolescentes vítimas


de violência sexual em Juruti-Pará

or
IDADE DAS VÍTIMAS 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Criança (0 a 11 anos) 02 01 04 05 03 03

od V
Adolescente (12 a 18 anos) 05 08 13 10 11 09

aut
Total 07 09 17 10 14 12
GÊNERO DAS VÍTIMAS 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Masculino 00 00 00 00 00 01
Feminino
Total

R 07
07
09
09
17
17
15
15
14
14
11
12

o
Fonte: Indicadores de Juruti: monitoramento 2011 (JURUTI, 2011a).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Nota-se que as crianças (18 casos) são menos vitimizadas do que os
adolescentes (56 casos) e que as vítimas do sexo feminino imperam sobre o
sexo masculino (01 caso). Os dados revelados nesse quadro demonstram que a
visã
realidade do fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes, no
município de Juruti, no quanto à idade e gênero das vítimas, reflete a realidade
do mapa dessa violência no Brasil, conforme podemos comparar, ao lermos o
Relatório Disque Direitos Humanos, Módulo Criança e Adolescente, da Secre-
itor

taria de Direitos Humanos da Presidência da República/2011. O documento


a re

destaca que, em todas as modalidades de violência sexual apresentadas, as


vítimas de sexo feminino são a grande maioria, chegando a 80% nas situações
de exploração sexual (BRASIL, 2011, p. 13).
Bassols et al. (2011, p. 68) assinalam que o abuso sexual é provavel-
par

mente uma das violências menos relatadas e diagnosticadas, dentre os abusos


cometidos contra crianças e adolescentes. Os autores consideram que uma,
Ed

entre cada três a quatro meninas, e um, a cada sete a oito meninos, são sexual-
mente agredidos até os 18 anos. Acrescentam que, embasados nos dados da
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescên-
ão

cia (ABRAPIA, 2003), entre janeiro de 2000 e janeiro de 2003, de um total


de 1.547 denúncias de vítimas de abuso sexual, em todo o país, 76,29% eram
meninas, 17, 5% eram meninos e de 6,66% não foi informado o sexo.
s

Conforme o Guia Escolar (SANTOS, 2011), não existem estatísticas


ver

sobre o número de crianças e adolescentes envolvidos em prostituição, no


Brasil. Todavia, há estudos feitos localmente, o que resulta em informações
fragmentadas e isoladas. Como em outras áreas sociais, os números não são
confiáveis e podem ser exagerados. Ao tentar separar crianças de adolescen-
tes, pode-se afirmar que o número de adolescentes expostos em prostituição

Flávia Lemos - 21982.indd 306 28/02/2020 13:13:29


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 307

é imensamente superior ao de crianças. Apesar de não ser possível precisar


se o fenômeno está crescendo ou diminuindo, pela falta de estudos históri-
cos que apontem seu quadro evolutivo, os especialistas relatam tendência de
aumento, a partir da década de 1980, tanto nos países industrializados como
naqueles em fase de consolidação do processo industrial, embora sua extensão
seja difícil de avaliar.
Já em relação ao gênero das vítimas, o Guia Escolar (SANTOS, 2011)

or
esclarece que o número de meninas envolvidas em prostituição é significativa-

od V
mente maior do que o de meninos, mas o número destes é também expressivo,

aut
particularmente na oferta de trabalho sexual para o público homoafetivo, com
aumento da população de adolescentes travestis.
Observando-se o próximo quadro, referente ao perfil das pessoas que

R
praticam a violência sexual contra crianças e adolescentes, no município de
Juruti, percebe-se que os adultos do gênero masculino, na faixa etária de 26

o
a 59 anos, são os que mais cometem esse tipo de violência. Essa realidade não
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

se distingue dos dados revelados pelo Relatório Disque Direitos Humanos,


Módulo Criança e Adolescente, da Secretaria de Direitos Humanos da Presi-
dência da República (BRASIL, 2011, p. 18), de que, entre o(a)s suspeito(a)s
de violência sexual recebidos pelo Disque Denúncia/2011, 68% são do sexo
visã
masculino e 32% do sexo feminino. Essa proporção se mantém, tanto na
situação de exploração como nas situações de abuso sexual.
itor

Quadro 04 – Perfil dos que praticam violência sexual


a re

contra crianças e adolescentes em Juruti – Pará


FAIXA ETÁRIA DOS AGRESSORES 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Adolescentes (12 a 18 anos) 00 00 00 01 02 01
Jovens (19 a 25anos) 04 02 04 04 05 03
Adulto (26 a 59 anos) 03 05 08 05 06 05
par

Idoso (acima de 60 anos) 00 02 05 05 01 03


Total 07 09 17 15 14 12
Ed

GÊNERO DOS AGRESSORES 2007 2008 2009 2010 2011 2012


Masculino 07 09 17 15 14 12
Feminino 00 00 00 00 00 00
ão

Total 07 09 17 15 14 12

Fonte: Indicadores de Juruti: monitoramento 2011 (JURUTI, 2011a).


s

O Guia Escolar (SANTOS, 2011) assegura que traçar o perfil dos clien-
ver

tes da prostituição de adolescentes é um desafio. De acordo com estudo feito


por Santos (2007), nas grandes cidades, os clientes das meninas tendem a ser
homens casados, na faixa etária entre 35 e 50 anos, oriundos das classes média
e baixa. Nas áreas de garimpo, é basicamente a população masculina local. Já
os clientes da prostituição masculina costumam ser homens de estratos sociais

Flávia Lemos - 21982.indd 307 28/02/2020 13:13:29


308

médio e alto. Infelizmente, estudos dessa natureza ainda não foram realizados
em cidades impactadas por grandes projetos, como é o caso de Juruti.
O próximo quadro mapeia a situação socioeconômica das famílias das
vítimas atendidas pelo CRAS do município de Juruti. Os dados revelam que
as famílias que possuem renda entre ½ e 1 salário mínimo (33 famílias) são
aquelas que mais tiveram, em seu contexto, crianças e adolescentes vítimas
de violência sexual, seguidas das famílias com salários de referência de 1

or
a 5 salários mínimos (26 famílias). Em terceiro lugar estão as famílias que

od V
recebem até ½ salário de referência (15 famílias):

aut
Quadro 5 – Situação socioeconômica da família das
vítimas atendidas pelo serviço CRAS
RENDIMENTO
Abaixo de ½ salário de referência
R2007
00
2008
00
2009
00
2010
00
2011
00
2012
00

o
Até ½ salário de referência 01 03 04 03 02 02
aC
Acima de ½ a 1 salário de referência 03 03 07 06 08 06

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


De 1 a 5 salários de referência 03 03 06 06 04 04
De 5 a 10 salários de referência 00 00 00 00 00 00
Acima de 10 salários de referência 00 00 00 00 00 00
visã
Total 07 09 17 15 14 12

Fonte: Indicadores de Juruti: monitoramento 2011 (JURUTI, 2011a).

Segundo o Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito


itor

de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (BRA-


a re

SIL, 2006), são as consequências da desigualdade social e da pobreza que


contribuem sobremaneira para o estado de violência sexual que muitas crian-
ças e adolescentes vivem. Enfatiza o referido documento:
par

A produção de crianças vitimadas pela fome, por ausência de abrigo ou


por morar em habitações precárias, por falta de escolas, por doenças con-
Ed

tagiosas, por inexistência de saneamento básico, que refletem diretamente


na relação entre crianças, adolescentes e violência no cotidiano de famílias
brasileiras. Essa situação de vulnerabilidade, denominada vitimação, pode
desencadear a agressão física e/ou sexual contra crianças e adolescen-
ão

tes, haja vista que a cronificação da pobreza da família contribui para a


precarização e deterioração de suas relações afetivas e parentais. Nesse
s

sentido, pequenos espaços, pouca ou nenhuma privacidade, falta de ali-


mento e problemas econômicos acabam gerando situações estressantes
ver

que, direta ou indiretamente, acarretam danos ao desenvolvimento infantil


(BRASIL, 2006, p. 27).

Conforme expressa reportagem no jornal O Estado de S. Paulo (2008,


p. 5), numa edição onde se publicou uma matéria denominada “Os Novos

Flávia Lemos - 21982.indd 308 28/02/2020 13:13:30


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 309

El Dourados da Amazônia”, na qual os repórteres Leonencio Nossa e Celso


Júnior investigaram a realidade de Coari (AM), Juruti (PA) e Parauapebas
(PA), a respeito do fenômeno da exploração sexual de crianças e adolescentes,
no caso de Juruti, com a chegada da mina Alcoa, quem era agricultor no meio
rural migrou para a cidade, em busca de melhores ganhos nas dependências
do projeto. Porém, essa investida foi frustrada, devido à circunstância de a
empresa não dar trabalho para quem não tem instrução. Estima-se que, em

or
decorrência da não possibilidade de trabalho e possível remuneração para

od V
o sustento da família, muitos pais passaram a “fechar os olhos” diante do

aut
comércio da exploração infantojuvenil.

3. O enfrentamento da exploração sexual de

R
crianças e adolescentes no Município de Juruti

o
No ano de 2009, a Prefeitura Municipal de Juruti, em parceria com o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Instituto ALCOA, lançou o Guia de Referência: construindo uma cultura de


prevenção à violência sexual, o qual foi desenvolvido pela Childhood Brasil
(Instituto WCF-Brasil). Essa publicação foi inspirada no Guia Escolar: méto-
visã
dos para identificação e sinais de abuso e exploração sexual de crianças e
adolescentes, produzido pelo Ministério da Educação, pela Secretaria Especial
de Direitos Humanos e pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas
para a Mulher – UNIFEM (2004).
itor

O objetivo do Guia de Referência é disponibilizar aos profissionais que


a re

atuam na área da infância e da adolescência informações sobre o marco legal


que protege os direitos das crianças e dos adolescentes e oferecer subsídios
para que eles possam dar uma assistência digna, no caso de identificarem ocor-
rências de violência sexual. Esse referencial apresenta, também, informações
par

e dados sobre o fenômeno da violência sexual no Brasil, além de sugestões


de metodologias de desenvolvimento de atividades e oficinas com crianças,
Ed

adolescentes e comunidades, as quais poderão ser aplicadas por profissionais


da Educação (escolar e não escolar), Saúde e Assistência Social.
Ainda em 2009, o Ministério Público Estadual, por meio da Promotoria
ão

de Justiça de Juruti, na pessoa de suas Promotoras de Justiça da Infância e da


Juventude dessa Comarca, instituiu a Recomendação nº 004/2009-MP/PJJ,
de 26 de novembro de 2009, considerando que, entre outras prerrogativas:
s
ver

• O Art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que


“nenhuma criança e adolescente será objeto de qualquer forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido, na forma da Lei, qualquer atentado, por ação ou
omissão aos seus direitos fundamentais”;

Flávia Lemos - 21982.indd 309 28/02/2020 13:13:30


310

• A violência contra crianças e adolescentes se dá, dentre outras for-


mas, através de agressões físicas, agressões psicológicas, maus-
tratos, negligência e abandono, abuso e exploração sexual;
• Que o abuso sexual consiste em todo ato ou jogo sexual, relação
heterossexual ou homossexual cujo agressor está em estágio de
desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o
adolescente e tem por intenção estimulá-la sexualmente ou utilizá-la

or
para obter satisfação pessoal [...].

od V
Recomenda aos dirigentes e professores do Ensino Fundamental integran-

aut
tes da rede pública municipal e estadual de ensino de Juruti (Zona Urbana e
Rural) que comuniquem ao Conselho Tutelar, mediante oficio ou outro meio

R
eficiente, os casos de suspeita ou confirmação de violência (agressões físicas,
agressões psicológicas, maus-tratos, negligência, abuso e exploração sexual)

o
contra crianças ou adolescentes, de que tenham conhecimento, para adoção
aC
das providências legais.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Em 2011, foi lançado o documento Indicadores de Juruti
(JURUTI, 2011a). Esse documento é uma realização da Fundação Getúlio
Vargas, em parceria com a Prefeitura Municipal de Juruti e apoio da ALCOA.
visã
Uma primeira edição desse documento ocorrera em 2007, tendo sido derivada
do modelo Juruti Sustentável, uma proposta de desenvolvimento local para o
município que, no momento, vivenciava a chegada de um empreendimento
da mineração da ALCOA à região.
itor

A iniciativa da publicação dos Indicadores de Juruti fundamenta-se na


a re

lógica de que o processo de construção de indicadores e o acompanhamento


das transformações sociais, econômicas e ambientais de uma região estimulam
a reflexão coletiva sobre a realidade local, promovendo um ambiente de apren-
dizado que favorece o empoderamento humano e social, instrumentalizando o
par

planejamento estratégico das instituições públicas e privadas. Conforme consta


no referido documento (JURUTI, 2011a, p. 7), o município de Juruti está usando
Ed

seus indicadores em diversas situações e para diferentes fins, incluindo aí as


escolas, onde houve a inserção dos indicadores no currículo escolar, com o obje-
tivo de promover discussões que levam à conscientização de crianças e jovens,
ão

fortalecendo a cidadania e despertando o envolvimento nas questões locais.


Em 18 de maio de 2010, sob a égide da Resolução Conjunta nº 01, o
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conselho
s

Municipal de Assistência Social e o Conselho Municipal de Saúde, no uso


ver

de suas atribuições conferidas legalmente, resolvem aprovar o Plano Decenal


Municipal de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual contra Crian-
ças e Adolescentes do Município de Juruti, constituído por um conjunto de
princípios, objetivos e eixos estratégicos consubstanciados em metas e ações
a serem implementadas no decênio 2010-2019.

Flávia Lemos - 21982.indd 310 28/02/2020 13:13:30


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 311

Esse Plano tem como referência fundamental o Plano Nacional de Enfren-


tamento à Violência Sexual Infantojuvenil, o Plano Estadual de Enfrentamento
à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes do Pará e o Estatuto da
Criança e do Adolescente. Assim, o citado documento reafirma, como prin-
cípios fundamentais: a proteção integral; a condição de sujeitos de direitos;
a prioridade absoluta; a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento; a
participação e solidariedade; a mobilização e articulação; a gestão paritária; a

or
descentralização político-administrativa; a regionalização; a municipalização;

od V
a sustentabilidade; e a responsabilização.

aut
A construção do Plano Decenal Municipal de Enfrentamento à Vio-
lência Doméstica e Sexual contra Crianças e Adolescentes do Município
de Juruti, 2010-2019 (JURUTI, 2010) foi o resultado de um processo de

R
sensibilização e informação de profissionais que atuam junto a crianças e
adolescentes do município e de representantes da sociedade civil, acerca da

o
violência sexual, no contexto local, o qual foi acentuado na última década, em
aC
decorrência da instalação de uma unidade de extração de bauxita na região.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Conforme consta no Plano (JURUTI, 2010, p. 22), o contato com profis-


sionais das áreas de Assistência Social, Saúde e Educação, além de organiza-
ções da sociedade civil, como a Pastoral da Criança, traz relatos preocupantes
visã
em que crianças e adolescentes se envolvem com a exploração sexual, com
a ilusão da possibilidade de “melhoria de vida”.
Ao fazer um estudo sobre o Plano Decenal Municipal de Enfrentamento
itor

à Violência Doméstica e Sexual contra Crianças e Adolescentes do Muni-


a re

cípio de Juruti, 2010-2019 (JURUTI, 2010), observamos que a Secretaria


Municipal de Educação de Juruti, juntamente com outras Secretarias, possui
várias responsabilidades de ação e atuação no enfrentamento desses tipos de
violência, dentre as quais citamos:
par

• Ano 2010: Elaboração de questionários para aplicar a alunos da


Ed

Rede Pública Municipal e Estadual, a fim de identificar a vulnera-


bilidade da violência;
• Ano 2010: Realização de cursos de capacitação para profissionais
ão

da saúde, educação, segurança pública, guarda municipal, justiça,


ONGs, CMDCA e Conselhos Tutelares;
• Ano 2011 a 2019: Realização de oficinas e seminários temáticos
s

sobre violência doméstica e sexual para todos do Sistema de Garan-


ver

tias de Direitos;
• Ano 2011: Inclusão de temas sobre a violência doméstica e sexual
nos conteúdos transversais;
• Ano 2011: Capacitação de adolescentes e jovens multiplicadores
para falar sobre o tema com outros jovens e adolescentes;

Flávia Lemos - 21982.indd 311 28/02/2020 13:13:30


312

• Ano 2010 a 2019: Em parceria com a Secretaria Municipal de Cul-


tura, Desportos e Turismo (SECDET), contribuir para a criação
de arte, cultura e lazer para crianças e adolescentes vulneráveis à
violência, para fortalecimento da autoestima;
• Ano 2011 a 2019: Em parceria com as Secretarias Municipais de
Saúde e de Assistência Social - SEMSA e SEMAS, respectivamente,
cooperar para a criação de um programa de orientação e apoio

or
sociofamiliar para a prevenção da violência doméstica e sexual;
• Ano 2011: Em parceria com a Guarda Municipal, promover a

od V
implantação da Ronda Escolar;

aut
• Ano 2011 a 2019: Elaboração de cartilha informativa para crianças
e adolescentes.

R
A partir dos planos e políticas existentes no município de Juruti relacio-

o
nados ao enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes,
aC
observamos que há em todos eles a responsabilidade do envolvimento da

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


escola no combate à violência sexual. Inclusive, no documento Indicadores
de Juruti (JURUTI, 2011a), é asseverado que as informações nele contidas
estão inseridas nos conteúdos do currículo escolar, objetivando fomentar
visã
estudos e discussões sobre a realidade social local. Dentre tais informações,
há a contextualização dos grupos sociais vulneráveis, onde estão incluídas
as crianças e os adolescentes e todas as formas de problemas que enfrentam,
como, por exemplo, violência, exploração e abuso sexual e gravidez precoce.
itor
a re

4. Conclusão
O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos
é uma conquista recente, na sociedade brasileira. A família e a sociedade con-
par

tinuam lutando em direção à efetivação, de fato, da garantia desses direitos, a


fim de que esses sujeitos tenham um crescimento e desenvolvimento saudáveis
Ed

e dignos, no contexto social do qual fazem parte. Dentre esses direitos estão
os direitos sexuais. As crianças e os adolescentes têm o direito de dizer não a
toda forma de abuso e exploração sexual, seja intrafamiliar, seja extrafamiliar,
ão

seja ainda institucional ou comercial.


Esta é uma luta que não deve parar: as ações públicas precisam ser
constantes e o fortalecimento da rede de enfrentamento à violência sexual
s

contra crianças e adolescentes é absolutamente necessário, posto que este é


ver

um fenômeno multicausal, complexo e de raízes históricas profundas. Tam-


bém é um problema perpassado pela cultura da impunidade dos agressores. A
criança e o adolescente têm o direito de não ter seu corpo profanado e nem sua
integridade moral, afetiva, emocional e psicológica fissurada pelas talhas frias
da violência sexual. Esta é uma prática perversa que precisa ser enfrentada.

Flávia Lemos - 21982.indd 312 28/02/2020 13:13:30


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 313

No município de Juruti (PA), por meio dos dados obtidos nos documen-
tos e da pesquisa realizada no Centro de Referência de Assistência Social,
verificou-se uma intensificação da violência sexual contra crianças e adoles-
centes, desde a instalação do projeto ALCOA no território do município, colo-
cando muitas vidas púberes em permanente estado de risco social, sofrendo
maus-tratos, abuso sexual e tornando-se “mercadoria humana” no processo
de exploração sexual.

or
Infelizmente, como em outras cidades brasileiras impactadas por grandes
projetos, politicas públicas voltadas ao enfrentamento da violência sexual

od V
contra crianças e adolescentes não foram implementadas antes da instalação

aut
do empreendimento. As políticas por nós identificadas foram elaboradas após
a chegada do grande projeto e dos problemas sociais que dele decorreram.

R
Por meio desta investigação, consideramos que o aumento da violência
sexual contra crianças e adolescentes no município de Juruti (PA), sobre-

o
tudo dos casos de exploração sexual, deve-se, entre outras causas, ao fato
aC
de a instalação de um grande projeto no território do município ter trazido
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

impactos sociais significativos, sobretudo em razão do descompasso entre a


sua implantação e a elaboração, implementação e monitoramento de planos
e projetos de mitigação ou prevenção da violência sexual contra crianças e
visã
adolescentes, ocorrido a posteriori à chegada do grande projeto ao município.
Concordamos com Faleiros (2004), quando destaca que, geralmente, as
crianças e o(a)s adolescentes que são vítimas da violência sexual pertencem às
categorias sociais historicamente dominadas e que são excluídas dos direitos
itor

à escolarização, à saúde, à habitação, à profissionalização, ao mercado de


a re

trabalho, à renda, à cultura, ao consumo. A instalação de um grande projeto


em uma região periférica, marcada pela vulnerabilidade social, exige que
ações preventivas sejam antecipadamente implementadas.
Em relação, especificamente, ao município de Juruti-Pará, quanto aos
par

planos e políticas relacionados ao enfrentamento da violência sexual contra


crianças e adolescentes, constatamos que o poder público, a sociedade civil,
Ed

as organizações não governamentais e o próprio projeto ALCOA executaram


ações para enfrentar o fenômeno em questão, porém, estas ocorreram, de forma
mais significativa, após a chegada do projeto no município e as consequências
ão

negativas dele decorrentes.


A chegada desse grande projeto gerou a intensificação das situações de
risco e vulnerabilidade que existiam no município, bem como fez surgir outras,
s

como é o caso da exploração sexual de crianças e adolescentes. Por terem sido


ver

implementadas após os impactos sociais desse grande projeto serem sentidos,


essas ações não tiveram caráter preventivo da violência social previsível, dado
o modelo econômico adotado. Faz-se necessário que tanto o poder público
quanto a sociedade brasileira atentem para essa realidade, para que a história
não volte a se repetir, primeiro como tragédia e depois como farsa.

Flávia Lemos - 21982.indd 313 28/02/2020 13:13:30


314

REFERÊNCIAS
ABRAPIA. Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e
Adolescência. Relatório anual do sistema nacional de combate à explora-
ção sexual infanto-juvenil. Rio de Janeiro, RJ: Autor, 2003.

or
BASSOLS, A. M. et al. A visão do psiquiatra de criança e adolescente na
avaliação e no atendimento de crianças abusadas sexualmente. In: AZAM-

od V
BUJA, M. R.; FERREIRA, M. H. et al. Violência Sexual contra Crianças

aut
e Adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.

R
BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cida-
des. 2017. Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.
php?codmun=150390>. Acesso em: 17 jun. 2014.

o
aC
______. Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto/

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Juvenil. 3. ed. Brasília: SEDH/DCA, 2002.

______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídi-


visã
cos. Lei nº 10.764, de 12 de novembro de 2003. Altera a Lei no 8.069, de 13
de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e
dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
itor

leis/2003/l10.764.htm>. Acesso em: 12 jul. 2014.


a re

______. Proteger para educar: a escola articulada com as redes de proteção


de crianças e adolescentes. HENRIQUES, Ricardo, FIALHO; Leandro, Lean-
dro; CHAMUSCA, Adelaide. (Org.). Ministério da Educação. Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD/MEC.
par

Caderno SECAD 5. Brasília, maio de 2007.


Ed

______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Dis-


que 100: Quatro mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescen-
tes foram registradas no primeiro trimestre de 2015, aos órgãos competentes
ão

para apuração das responsabilidades. Disponível em: <http://www.sdh.gov.


br/noticias/2015/maio/disque-100-quatro-mil-denuncias-de-violencia-sexual-
-contra-criancas-e-adolescentes-foram registradas-no-primeiro-trimestre-
s

-de-2015>. Acesso em: 28 out. 2015.


ver

______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Rela-


tório Disque Direitos Humanos: Módulo Criança e Adolescente. SDH: Bra-
sília, 2011. Disponível em: <http://www.recrianacional.org.br> Acesso em:
01 maio 2014.

Flávia Lemos - 21982.indd 314 28/02/2020 13:13:30


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 315

DIOCESE DE ÓBIDOS. Projeto Ação e Proteção: enfrentamento ao abuso


e exploração sexual de crianças e adolescentes. Diocese de Óbidos, 2011.

FALEIROS. E. T. S. A exploração sexual comercial de crianças e adolescen-


tes no mercado do sexo. In: LIBÓRIO, R.; SOUZA, S. (Org.). A exploração
sexual de crianças e adolescentes no Brasil: reflexões teóricas, relatos de
pesquisa e intervenções psicossociais. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004;

or
Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2004. Disponível em: <http://www.
books.google.com.br>. Acesso em: 14 abr. 2014.

od V
aut
______. (Org.). O abuso sexual contra crianças e adolescentes: os (des)
caminhos de denúncia. Brasília: Presidência da República, Secretaria Especial
de Direitos Humanos, 2003.
R
o
______. Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual
de crianças e de adolescentes. Brasília: MJ-SEDH-DCA/FBB/UNICEF, 2000.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

FALEIROS, V. P. A violência sexual contra crianças e adolescentes e a cons-


trução de indicadores: a crítica do poder da desigualdade e do imaginário, cap.
visã
I. In: LEAL, M. F. P.; CÉSAR, M. A. Indicadores de Violência Intra-Fami-
liar e Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes. CECRIA
– Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, 1998.
itor

______. Infância e processo político no Brasil. In: RIZZINI, I.; PILOTTI,


a re

F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da


legislação e da assistência à infância. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

______. O fetiche da mercadoria na exploração sexual. In: LIBÓRIO, R.


par

SOUZA, S. (Org.). A exploração sexual de crianças e adolescentes no


Brasil: reflexões teóricas, relatos de pesquisa e intervenções psicossociais.
Ed

São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004; Goiânia: Universidade Católica de


Goiás, 2004. Disponível em: <http://www.books.google.com.br> Acesso
em: 14 abr. 2014.
ão

FALEIROS, V. P.; FALEIROS, E. T. S. (Coord.). Circuito e curto-circuitos:


atendimento, defesa e responsabilização do abuso sexual contra crianças e
s

adolescentes no Distrito Federal. São Paulo: Veras, 2006.


ver

FALEIROS, V P.; FALEIROS, E. T. S. Escola que protege: enfrentando a


violência contra crianças e adolescentes. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2007.

Flávia Lemos - 21982.indd 315 28/02/2020 13:13:30


316

JURUTI. Estatística Municipal – Juruti, 2011b. Disponível em: <http://


www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang...para%7Cjuruti>. Acesso em:
06 mar. 2014.

______. Guia Turístico de Juruti, Ano I, jul. 2014, 1. ed. Juruti/Pará/Bra-


sil, 2014.

or
______. Histórico do Município de Juruti. 2012. Disponível em: <http://

od V
www.pmjuruti.pa.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdmun=100115063>.

aut
Acesso em: 15 maio 2012.

______. Plano Decenal Municipal de Enfrentamento à Violência Domés-

R
tica e Sexual Contra Crianças e Adolescentes em Juruti –Pará: 2010- 2019.
Juruti – PA, maio 2010.

o
aC
______. Projeto Indicadores de Juruti: para onde caminha o desenvolvi-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mento do município. Juruti: Prefeitura Municipal; Fundação Getúlio Var-
gas, 2011a.
visã
______. Projeto Conexão Local: desenvolvimento sustentável de Juruti, 2008.

______. Promotoria de Justiça de Juruti. Recomendação nº 004/2009-MP/


itor

PJJ, de 26 nov. 2009.


a re

LEAL, M. F. P. A exploração sexual comercial de meninos, meninas e


adolescentes na América Latina e Caribe (Relatório Final – Brasil) Brasí-
lia: CECRIA, Ministério da Justiça, UNICEF, CESE, 1999. Disponível em:
<http://www.comitenacional.org.br/files/biblioteca/88NURRB8AOESKV83T-
par

FUN.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2014.


Ed

LEAL, M. F. P.; CÉSAR, M. (Org.). Indicadores de violência intrafami-


liar e exploração sexual comercial de crianças adolescentes. Brasília:
ão

CECRIA, 1998.

LIBÓRIO, R. M. C. Exploração sexual comercial infanto-juvenil: catego-


s

rias explicativas e políticas de enfrentamento. In: LIBÓRIO, R.; SOUZA, S.


ver

(Org.). A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. reflexões


teóricas, relatos de pesquisa e intervenções psicossociais. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004; Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2004. Disponível
em: <http://www.books.google.com.br> Acesso em: 14 abr. 2014.

Flávia Lemos - 21982.indd 316 28/02/2020 13:13:31


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 317

O TEMPO é da infância. O Curumim. 1. ed. Ano I, jul. 2011. Comitê de


Desenvolvimento Comunitário de Juruti(PA). Instituto Camargo Corrêa. Dis-
ponível em: <http://www.institutocamargocorrea.org.br/Documents/Bole-
timCDCJuruti-1.pdf>. Acesso em: 03 maio 2014.

PACTO visa Pará sem abusos sexuais contra crianças. Diário do Pará, 20
jul. 2014. Disponível em: <http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/

or
noticia-294440-pacto-visa-para-sem-abusos-sexuais-contra-criancas.html>.

od V
Acesso em: 27 ago. 2014.

aut
PROJETO Tecendo a Rede. 2014. Disponível em: <http://www.childhood.
org.br>Acesso em: 21 set. 2014.

R
SANDERSON, Christiane. Abuso sexual em crianças: fortalecendo pais

o
e professores para proteger crianças contra abusos sexuais e pedofilia. São
aC
Paulo: M. Books do Brasil, 2005.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

SANTOS, B, R. Guia de referência: construindo uma cultura de prevenção


à violência sexual. São Paulo: Childood – Instituto WCF-Brasil: Prefeitura
visã
da Cidade de São Paulo. Secretaria de Educação, 2009.

______. Guia escolar: métodos para identificação de sinais de abuso e explo-


itor

ração sexual de crianças e adolescentes. Rita Ippólito: Coordenação Técnica.


2. ed. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos e Ministério da
a re

Educação, 2011.

STOLTZ, T.; LOPES, J. A exploração sexual comercial de crianças e adoles-


centes em Foz do Iguaçu e possibilidades de intervenção. Revista Eletrônica
par

Ciência da Educação, v. 3 , n. 1, 2004. Disponível em: <http://www.revistas.


facecla.com.br/index.php//reped/article/view/512>. Acesso em: 08 abr. 2014.
Ed

STOLTZ, T.; WALGER, A. A. R. Violência contra crianças: exploração e


abuso sexual. In: SILVA, P. V. B.; LOPES, J. E.; CARVALHO, A. Por uma
ão

escola que protege: a educação e o enfrentamento à violência contra crianças


e adolescentes. Ponta Grossa: Editora UEPG; Curitiba, Cátedra UNESCO de
Cultura da Paz UFPR, 2008. p. 161-174.
s
ver

WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2012: crianças e adolescentes no


Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos Latino-America-
nos: Flaco Brasil, 2012. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.
br/pdf.2012/MapaViolencia2012_Crianca_e_Adolescente.pdf>. Acesso em:
14 abr. 2014.

Flávia Lemos - 21982.indd 317 28/02/2020 13:13:31


Flávia Lemos - 21982.indd 318
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:31
“A CULPA DEVE SER DO SOL” –
BIOPOLÍTICA DA EXCLUSÃO DA
JUVENTUDE E ESVAZIAMENTO

or
ESCOLAR EM BELÉM-PA (2000-2017)

V
aut
Carlos Jorge Paixão
Letícia Carneiro da Conceição

CR
1. “O suor que embaça os olhos e a razão”

do
O suor amontoado nas sobrancelhas
correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são e cobriu-as com um véu morno e espesso.


Os meus olhos ficaram cegos,
por detrás desta cortina de lágrimas e de sal.
ra
“O Estrangeiro”, Albert Camus, 1957.
i
rev

A música “As Caravanas” de Chico Buarque32 – que empresta alguns de


seus versos aos títulos de nosso texto – dá nome ao álbum em que é lançada,
to

em 2017. Retratando o confronto de corpos indesejados (ou “negros torsos


nus”) que descem os morros cariocas para ir às praias, a canção narra um
ara

embate que ocorre não apenas fisicamente, com os corpos das forças policiais,
mas também simbolicamente, com os corpos de “gente ordeira e virtuosa”
ver di

da chamada área nobre da cidade. Gente que “apela pra polícia despachar de
volta o populacho pra favela. Ou pra Benguela, ou pra Guiné” e, assim, opera
op

a segregação sócio-espacial e legitima a violência à beira-mar.


Para além do cenário das praias da Zona Sul carioca descrito na canção,
E

também podemos observar a disputa territorial - física e simbólica, entre


corpos dos moradores dos bairros nobres da cidade e corpos dos jovens das

32 “É um dia de real grandeza, tudo azul/Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos/Um sol de torrar
os miolos/Quando pinta em Copacabana/A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba/A caravana do
Irajá, o comboio da Penha/Não há barreira que retenha esses estranhos/Suburbanos tipo muçulmanos do
Jacarezinho/A caminho do Jardim de Alá/É o bicho, é o buchicho, é a charanga/Diz que malocam seus
facões e adagas/Em sungas estufadas e calções disformes/É, diz que eles têm picas enormes/E seus sacos
são granadas/Lá das quebradas da Maré/Com negros torsos nus deixam em polvorosa/A gente ordeira e
virtuosa que apela/Pra polícia despachar de volta/O populacho pra favela/Ou pra Benguela, ou pra Guiné/
Sol/A culpa deve ser do sol que bate na moleira/O sol que estoura as veias/O suor que embaça os olhos
e a razão/E essa zoeira dentro da prisão/Crioulos empilhados no porão/De caravelas no alto mar/Tem que
bater, tem que matar, engrossa a gritaria/Filha do medo, a raiva é mãe da covardia/Ou doido sou eu que
escuto vozes/Não há gente tão insana/Nem caravana do Arará/Não há, não há”

Flávia Lemos - 21982.indd 319 28/02/2020 13:13:31


320

periferias – nas escolas da área urbana central de Belém e nos sujeitos que a
frequentam. Ou deveriam frequentar.
A diminuição do quantitativo de alunos jovens matriculados nas esco-
las das redes públicas (federal, estadual e municipal) e privada da cidade de
Belém-PA é perceptível, desde aproximadamente a metade da década de 2000.
De maneira empírica, o fenômeno se manifesta na diminuição crescente de

or
carga horária disponível para a lotação de professores na educação básica nas
unidades escolares em questão. Como desdobramento da diminuição de alunos

od V
e turmas, turnos e até escolas vem fechando e deixando, definitivamente, de

aut
ofertar as vagas ociosas.
No campo empírico, professores e demais trabalhadores da educação

R
(dos diretores aos porteiros das escolas) apresentam em suas falas cotidianas
um cenário passado bem diverso: salas de aula e turnos cheios, filas na porta

o
da escola, ainda de madrugada, nos dias de matrícula. Surpreendentemente,
aC
eles não falavam de um passado remoto: esta espécie de “Era de Ouro” do

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Ensino Médio havia ocorrido há pouco mais de uma década.
Apenas em uma das escolas analisadas – central, tradicional e, portanto,
paradigmática desta transformação – havia, até o ano letivo de 2003, 45 turmas
visã
com média de 60 alunos, em cada um de seus três turnos, totalizando cerca
de 7.500 matrículas, maior quantitativo de toda Rede. No ano de 2017, o turno
da Manhã (único em que a Escola ainda funciona, já que os turnos da Tarde
itor

e Noite não atingiram o quantitativo mínimo de matrículas desde 2016) teve


a re

menos de 700 alunos.


Ampliando para o cenário nacional, a diminuição de alunos foi reforçada
quando o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep) divulgou em 29 de maio de 2018 o “Balanço das inscrições
par

e perfil dos participantes” do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no


ano de 201833. As 5,5 milhões de inscrições fizeram desta a edição com menor
Ed

índice de participantes desde 2011, quando o exame teve 5.380.857 inscritos.


É uma redução de 18% em relação à edição passada, em 2017, que teve 6,7
milhões de participantes confirmados. A mudança na finalidade da prova pode
ão

ajudar a explicar a queda registrada nas duas últimas edições: desde 2017 o
exame deixou de servir para certificação de conclusão do ensino médio. Mas
s

considerando a relevância do exame para o ingresso na educação superior, os


dados divulgados são alarmantes: qual será o custo social, a longo prazo, da
ver

não continuidade dos estudos de tantos egressos do ensino médio?

33 A divulgação foi realizada através de Assessoria de Comunicação Social, com uma coletiva de imprensa no
Ministério da Educação (MEC) com transmissão ao vivo nas redes sociais. A apresentação está disponível
em: <icoes_enem2018.pptx.pdf>.

Flávia Lemos - 21982.indd 320 28/02/2020 13:13:31


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 321

2. “Não há barreira que retenha esses estranhos”


Censurava-me por não ter prestado atenção
suficiente às histórias de execuções.
Devíamos interessar-nos sempre por estas questões...
Nunca se sabe o que pode acontecer.
“O Estrangeiro”, Albert Camus, 1957.

or
São popularmente chamadas de escolas “do corredor” as que se localizam

od V
nas principais vias do centro urbano de Belém. Não por acaso, são também as

aut
mais antigas e tradicionais da cidade. Enquanto foram as únicas, atenderam
aos filhos das elites econômicas – classe social que, como era costume até

R
aproximadamente o período de nossa redemocratização, na década de 1980,
frequentava a rede pública – e também atenderam à diversidade que passava

o
pelas barreiras de acesso existentes na oferta educacional de então.
aC
Remanescentes do período anterior à universalização do acesso, ocorrida
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9394/9634, estas são


exatamente as instituições que filtravam o ingresso décadas atrás, quando a
demanda de alunos era muito maior que a oferta de vagas e a prática de “exa-
visã
mes de admissão” era institucionalizada. Com a expansão urbana ocorrida
nas últimas décadas, estas escolas passaram a atender uma clientela que, no
geral, não morava nos seus arredores, mas se deslocava até lá diariamente.
itor

Seriam, então, alunos como as caravanas dos “estranhos”, “suburbanos tipo


a re

muçulmanos” para os quais “não há barreira que retenha”.


A partir dos anos 2000, entre outras mudanças, as políticas públicas de
expansão física da rede envolveram a construção de novas unidades escolares
fora da área central da cidade. As mesmas construções imponentes – e, em
grande medida, elitistas e segregadoras – do passado passaram a se tornar
par

prédios esvaziados, espaços físicos silenciosos guardando a memória da uti-


lização para qual foram projetados e exibindo, no centro da cidade, vestígios
Ed

de uma remota função social da escola.


Protegidos por tradição e nostalgia, os edifícios não se escondem da
ão

“perda”: a análise da evolução das matrículas do Ensino Médio e da moda-


lidade presencial da EJA na última década evidencia esta diminuição, tanto
no âmbito estrito da instituição escolar em questão quanto na rede estadual
s
ver

34 Uma série de acréscimos e subtrações ao texto original da LDB vai construir, ao longo de anos, a legislação
atual acerca da universalização do acesso ao Ensino Médio e a garantia de oferta da EJA. Vale mencionar a
Lei nº 12.061, de 2009, que trata da universalização do Ensino Médio gratuito e a Lei nº 12.796, de 2013 que
inclui esta etapa na definição de educação básica exposta no Art. 4., inciso I. Sobre a oferta de EJA, a Seção
V apresenta suas normativas referentes à oferta da modalidade. Um intenso debate vai, posteriormente,
acrescentar limites de idade à conclusão do curso e a Lei nº 13.415, de 2017, sinaliza que os sistemas de
ensino disporão sobre a oferta “adequada às condições do educando”, de EJA e de ensino noturno regular.

Flávia Lemos - 21982.indd 321 28/02/2020 13:13:31


322

da qual a escola faz parte e nos dados gerais do município. A oferta pública
de Ensino Médio das redes estadual (atualmente realizada em 57 escolas) e
municipal (em uma única) nos limites físicos da cidade evidenciam a dimi-
nuição com mais ênfase que as três instituições federais que, por sua natureza
diferenciada, costumam ainda ter demanda altíssima, fila de espera e seleção
de ingresso através de teste admissional.
A rede privada não demonstra a queda de matrículas de maneira tão signi-

or
ficativa, tendo apresentado ao longo do período analisado a diferença de 4.398

od V
matrículas entre o ano com maior (2006, com 16.940) e menor número (2009,

aut
com 12.542). Não é perceptível na rede, no entanto, a absorção da perda de
alunos da rede pública – dado que descarta a hipótese do esvaziamento da
escola pública significar a migração de alunos para a rede particular.

R
Gráfico 1 – Evolução das matrículas iniciais do ensino

o
médio regular na cidade de Belém-PA (2010-2015)
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


120.000

100.000
Quantitativo de matrículas

80.000
visã
60.000

40.000

20.000

0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
itor

Anos

Estadual Federal Municipal Privada TOTAL


a re

Fonte: Censo Escolar / INEP 2000-2015.

Gráfico 2 – Evolução das matrículas iniciais em turmas presenciais


de EJA nas redes públicas na cidade de Belém-PA (2005-2017)
par
Ed

60.000
Quantitativo de matrículas iniciais

50.000
ão

40.000

30.000
s

20.000
ver

10.000

0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

Anos
Fundamental Médio

Fonte: Censo Escolar / INEP 2000-2017.

Flávia Lemos - 21982.indd 322 28/02/2020 13:13:32


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 323

A evolução das matrículas de EJA, na modalidade presencial, evidencia


um crescimento sutil na oferta da etapa de Ensino Médio e uma diminuição
acentuada na oferta de Ensino Fundamental.
Importante salientar que o município de Belém e o estado do Pará apre-
sentam índices alarmantes de distorção idade/série, o que frequentemente
vem sendo anunciado pela imprensa e utilizado como crítica política aos
gestores públicos. Lançado em 2015 por órgãos da iniciativa privada, o IOEB

or
– Índice de Oportunidades da Educação Brasileira35 – cruza os dados de fluxo e

od V
desempenho do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, criado

aut
em 2007, pelo Inep) com os dados do Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e
classificou Belém como a pior das capitais e o Pará como o pior dos estados
brasileiros em oportunidades educacionais. Na edição de 2017, Belém subiu
duas posições, se tornando a antepenúltima capital, e o Pará permaneceu como R
o
a última unidade da federação no ranking. Nas notas técnicas, a defasagem
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

idade/série e também o quantitativo populacional em idade escolar maior


que o quantitativo de matrículas são apresentados como fatores de impacto
negativo às chamadas oportunidades educacionais.
As inscrições no Enem, já mencionadas como possível indicador da
visã
exclusão social da juventude, permitem análise da evolução ao longo de duas
décadas, compreendendo o período desde o início da aplicação do Exame
até o ano de 2018, divulgado em 29 de Maio junto com o Boletim do Inep.
itor
a re

Gráfico 3 – Evolução do total de inscrições confirmadas no


Exame Nacional do Ensino Médio (1998-2018)

10000000
Quantitativos de inscrições confirmadas

9000000
par

8000000
7000000
6000000
5000000
Ed

4000000
3000000
2000000
1000000
0
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
ão

Anos

Inscrições

Fonte: INEP.
s

É perceptível a ruptura no processo crescente de adesão ao Exame desde


ver

sua instituição, à medida em que ele foi sendo mais e mais utilizado no
acesso ao ensino superior em todo país. E, mesmo com a perda da função de
certificação do Ensino Médio, suas inscrições ainda nos dizem muito sobre
35 Disponível em: <http://www.ioeb.org.br/>.

Flávia Lemos - 21982.indd 323 28/02/2020 13:13:32


324

a população de egressos desta etapa da escolarização – ou os que desejavam


concluí-la. Ainda que não sejam dados específicos de nosso recorte geográfico
– a cidade de Belém – esta evolução das inscrições nos lembra que os fatores
de ameaça à juventude também não estão restritos ao município.
A análise dos dados de matrícula do Estado do Pará, como um todo, não
sinaliza o mesmo processo de esvaziamento que se evidencia na capital, o
que nos mostra que se trata de um fenômeno essencialmente relacionado às

or
dinâmicas sociais da vida urbana.
Quer se trate das dimensões simbólica do espaço da casa ou da

od V
cidade, Foucault nos lembra que a organização do espaço alcança objetivos

aut
econômico-políticos.

R
É preciso [...] não ficar somente dizendo que o espaço predetermina uma
história que por sua vez o modifica e que se sedimenta nele. A fixação

o
espacial é uma forma econômico-política que deve ser detalhadamente
estudada (2012, p. 322).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Indo além da concepção de espaço como substrato ou fronteira, Le Goff
(1988, p. 124.) defende que “é a sociabilidade, o prazer de estar com o outro,
visã
que estabelece em definitivo, a diferença urbana, a urbanidade. [...] Os termos
relacionados à cidade denotam a educação, a cultura, os bons costumes, a
elegância: urbanidade vem do latim urbs; polidez, da polis grega.” O conceito
de cidade na Idade Antiga remetia ainda à cidadania, à liberdade e todos os
itor

seus derivados, como a própria racionalidade.


a re

Para tentar alcançar as contradições de nossa vida urbana contemporânea


lembramos que, para Léfèbvre, urbano é a simultaneidade, a reunião, é uma
forma social que se afirma e a cidade é um objeto espacial que ocupa um lugar
e uma situação. O urbano seria, então, um fenômeno que se impõe a partir do
processo de construção e desconstrução da cidade. Após a inflexão do agrário
par

para o industrial através do comércio, teríamos agora uma segunda inversão:


Ed

do urbano, ou sociedade urbana, suplantando a sociedade industrial (LÉFÈ-


BVRE, 2004). Em um contexto de crise social, a cidade – ou “a projeção da
sociedade sobre um local” (LÉFÈBVRE, 2001, p. 56) não está imune e expõe,
ão

ela própria, suas contradições:

[...] a natureza das políticas públicas focalizadas para as cidades tem


s

sido menos a de considerar temporalidades e espacialidades cotidianas


ver

e muito mais de propor modelos que acompanhem o ajustamento das


formas urbanas a tendências mais homogeneizadoras e hegemônicas. É
assim que se têm apresentado, por exemplo, as políticas de renovação
urbana implementadas no contexto neoliberal, assim como os processos
de gentrificação que têm se generalizado nos modelos de cidades que se
pretendem competitivas (TRINDADE JÚNIOR, 2004, p. 251).

Flávia Lemos - 21982.indd 324 28/02/2020 13:13:33


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 325

Estas dinâmicas de gentrificação36 – ou elitização do espaço urbano,


valorizando interesses privados sob o público – nos ajudam a entender o
processo vivenciado pelas escolas ditas “tradicionais”. Várias décadas de dife-
rentes políticas públicas educacionais refletindo diferentes funções sociais da
educação e visões da escola pública geraram diferentes olhares sobre aquelas
estruturas físicas imóveis, no centro de uma cidade em movimento.
A respeitável escola pública que atendia, inclusive, os filhos da elite

or
econômica da cidade continuam no mesmo lugar. Mas sua potência, os alunos

od V
que lhe dão vida e sentido, já não representam esta classe. São jovens que pre-

aut
cisam vir de um “longe” que as contradições sociais expressas nas dinâmicas
urbanas estão deslocando para cada vez mais longe, acrescentando gastos de
tempo e dinheiro cada vez maiores à atividade cotidiana de ir para a escola.

R
As instituições escolares permanecem em localização privilegiada – que
a especulação imobiliária costuma tornar cada vez mais privilegiada, até fazer

o
do conceito de privilégio um valor agregado aos imóveis da região. A escola,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

no decorrer deste processo, estará rodeada por uma vizinhança cujos filhos
já não a frequentam. Vizinhança que, possivelmente, não se reconhece nos
sujeitos que a utilizam – e não os quer no seu projeto de vizinhança.
Mais que a estrutura física, normalmente imponente, é a função social
visã
da escola que parece destoar dos interesses que determinam o funcionamento
da cidade. A escola Lauro Sodré, por exemplo, foi construída em 1893 como
“Instituto Paraense de Educando Artífices”. Diversos (des)caminhos leva-
itor

ram o palacete neoclássico a um desabamento parcial, até ser inteiramente


a re

reformado – e deixar de ser escola para virar, em 2006, a sede do Tribunal de


Justiça do Estado do Pará, agora impecavelmente mantida…
Estariam os micropoderes econômico-políticos operando na constituição
de um “problema dos espaços” com as antigas escolas?
par

Seria preciso fazer uma “história dos espaços” – que seria ao mesmo tempo
Ed

uma “história dos poderes” – que estudasse desde as grandes estratégias da


geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional,
da sala de aula ou da organização hospitalar, passando pelas implantações
ão

econômico-políticas. É surpreendente ver como o problema dos espaços


levou tanto tempo para aparecer como problema histórico-político (FOU-
CAULT, 2012, p. 322).
s
ver

36 Termo cunhado pela socióloga britânica Ruth Glass em 1964. Segundo Rangel (2015, p. 40), “as primeiras
definições de gentrificação têm maior foco na questão do mercado imobiliário e na substituição da população
mais pobre pela nova classe média”. Definições posteriores, como as de Neil Smith, vão ressaltar “o fato de
que envolve não apenas uma mudança social, mas uma mudança física de habitação local, combinando a
higienização social com a reabilitação das áreas para que a classe média possa habitá-las.” O fenômeno,
portanto, provoca aumento do custo de vida e na especulação imobiliária, orientado por interesses econô-
micos privados.

Flávia Lemos - 21982.indd 325 28/02/2020 13:13:33


326

Ordenamento operando através da disciplina que, para Foucault, “é, antes


de tudo, a análise do espaço. E a individualização pelo espaço, a inserção
dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. A
disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre
seu desenvolvimento” (2012, p. 181).
Na lógica da governamentalidade neoliberal, de inspiração norte-ame-
ricana, a educação se articula com a teoria do capital humano e se mercado-

or
riza, como “princípio e método de racionalização do exercício de governo
– racionalização que obedece, e aí está a sua especificidade, à regra interna

od V
da economia máxima [...] orientada para objetivos e se regulando através de

aut
uma reflexão contínua” (FOUCAULT, 1997, p. 90) Logo, a sociedade – e a
educação, a escola e seus sujeitos - estarão orientadas para essa economia

R
máxima e mercadorização. Se prédios públicos têm seus destinos traçados
em gabinete e a função social da escola não pesa na balança, o que dizer de

o
seus sujeitos? A quem interessa que mereçam permanecer como sujeitos?
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


3. “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”
O primeiro deles sabia contar histórias, a tal ponto
visã
que conseguiu fazer com que o seu crime fosse esquecido,
enquanto o segundo era um pobre analfabeto que Deus pôs no mundo,
ao que parece, unicamente para levar um
tiro de revólver e retornar ao pó,
itor

um anônimo que não teve nem sequer tempo de ter um nome.


a re

“O caso Meursaurt”, Kamel Daoud, 2003.

Diante de um “poder espacial” que segrega e alija, prédios suntuosos


tem seu destino e existência manipulados. Para além de construções físicas e
seus usos, os seus sujeitos nos interessam: alunos que convergem de vários
par

pontos de origem para aquelas escolas, em “caravanas” tal qual o passeio às


Ed

praias na canção buarqueana. Ainda no embate de corpos descrito por Chico


Buarque em “As Caravanas”, o calor é um personagem – e combustível do
confronto. O sol “que bate na moleira, o sol que estoura as veias, o suor que
ão

embaça os olhos e a razão” é o provável culpado da violência.


Com este elemento, a música faz referência à obra “O Estrangeiro”, de
Albert Camus. Publicado em 1942, o livro se passa na Argélia e relata um
s

crime cometido por Meursault, um pied-noir37 (como o próprio autor) contra


ver

um árabe, também em uma praia. Num dia em que “o sol excessivo que fazia
estremecer a paisagem, tornava-a deprimente e inumana”, o calor parecia
mesmo ser o culpado pela violência irracional.

37 “pé negro” em tradução literal, a expressão designa os franceses das então colônias da região Norte do
continente africano.

Flávia Lemos - 21982.indd 326 28/02/2020 13:13:33


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 327

Sentia apenas as pancadas do sol na testa e indistintamente, a espada


de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder
corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que
tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me
que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de
fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver.
O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um

or
barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi
o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio

od V
excepcional de uma praia onde havia sido feliz (CAMUS, 2018, p. 64).

aut
Na obra de Camus, o julgamento de Meursault vai se concentrar mais na

R
apatia dele diante da morte da mãe, imprevisto que o levou à cidade, do que
no ser humano que foi assassinado na praia, sob o calor do sol. Sobre este,
só sabemos que se trata de “um árabe”. O escritor argelino Kamel Daoud

o
explica, voltando à história através do irmão do personagem assassinado, a
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

necessidade de retomar a narrativa de Camus:

Devo dizer que é uma história que remonta a mais de meio século. Ela
aconteceu de fato, e foi muito comentada. As pessoas ainda falam dela,
visã
mas, com o maior descaramento, evocam apenas um morto, sendo que
havia dois: não um morto, mas mortos. Sim, dois. Qual o motivo dessa
omissão? (DAOUD, 2016, p. 7).
itor
a re

Ao nomear a vítima e trazer sua narrativa, Daoud dá voz ao silenciado


e explicita o omitido, levando a luz do sol também às sombras do enredo de
Meursault. E elas são, de fato, muitas:

um homem que sabe escrever mata um árabe que nesse dia não tem nem
par

mesmo um nome — como se ele o tivesse pendurado em um prego ao


entrar no cenário — e se põe a explicar que foi culpa de um Deus que
Ed

não existe e por causa daquilo que ele acabara de compreender sob o sol
e porque o sal do mar o obrigou a fechar os olhos. De repente, o assassi-
nato se torna um gesto absolutamente impune e deixa de ser um crime,
ão

pois não existem leis em vigor entre o meio-dia e as duas horas da tarde
(DAOUD, 2016, p. 10).
s

Meursault, o personagem de Camus, parece realmente não se abalar pela


ver

violência do crime cometido. Descrevendo mais o torpor causado pelo calor do


sol na ocasião do que remorso pela morte, o narrador reforça a ideia de bana-
lização do mal, analisada por Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém”,
de 1963. Nos cinco artigos que escreveu sobre a cobertura do julgamento do
oficial responsável pelo planejamento e execução do programa de assassinato

Flávia Lemos - 21982.indd 327 28/02/2020 13:13:33


328

massivo e industrial nazista, realizada para o jornal The New Yorker, a autora
o retrata como alguém terrível e horrivelmente normal. “Eichmann não era
senão um burocrata comum, o funcionário que se limitava a cumprir zelosa
e eficazmente as ordens recebidas [...] com zelo, por amor ao dever, sem
considerações acerca do bem e do mal” (GIACOIA JUNIOR, 2011, p. 8).

“Trata-se de um caso exemplar de má-fé, de autoengano misturado a

or
ultrajante burrice? Ou é simplesmente o caso do criminoso que nunca
se arrepende (Dostoiévski conta em seu diário que na Sibéria, em meio

od V
a multidões de assassinos, estupradores e ladrões, nunca encontrou um

aut
único homem que admitisse ter agido mal), que não pode se permitir olhar
de frente a realidade porque seu crime passou a fazer parte dele mesmo?

R
No entanto, o caso de Eichmann é diferente do criminoso comum, que
só pode se proteger com eficácia da realidade do mundo não criminoso

o
dentro dos estreitos limites de sua gangue. Bastava a Eichmann relembrar
o seu passado para se sentir seguro de não estar mentindo e de não estar
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


se enganando, pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em
perfeita harmonia (ARENDT, 1999, p. 64-65).

Retomando e politizando a questão do mal radical kantiano, Arendt ana-


visã
lisa o mal quando este atinge grupos sociais ou o próprio Estado.

essa linha de pensamento permite modalizar, em outro diapasão, a atua-


itor

lidade da filosofia de Arendt. Para tanto, é indispensável revisitar suas


a re

conhecidas teses sobre a banalidade do Mal, em oposição e complementa-


ção à hipótese kantiana do mal radical [...]. Em que sentido, podemos dizer
que o mal se enraíza na natureza humana? Como sabemos, a fecundidade
desse tema em Arendt é devida tanto a seu confronto com as novas modali-
dades de mal extremo – tornadas figuras do mundo com a monstruosidade
par

dos crimes nazistas – quanto de sua discussão permanente com a filosofia


prática de Kant (GIACOIA JUNIOR, 2011, p. 8).
Ed

A trivialização da violência corresponde, para Arendt, ao vazio de pen-


samento, onde a banalidade do mal se instala. Para a autora, o mal – nem
ão

categoria ontológica, nem natureza nem metafísica, mas político e histórico,


produzido por homens e presente apenas onde, em função de escolha política,
encontra espaço institucional para se manifestar. No caso da exclusão social
s

de jovens nas escolas das redes públicas de Belém, analisada aqui através
ver

da diminuição de matrículas, o espaço institucional é mais que a oferta de


vagas, envolvendo também a própria dinâmica da vida urbana. Para enten-
der os micropoderes que operam no fenômeno do esvaziamento, Gadelha
nos lembra que “o poder não pode ser concebido como uma coisa passível
de ser (des)apropriada – por uma classe social, por exemplo – , mas trata-se

Flávia Lemos - 21982.indd 328 28/02/2020 13:13:33


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 329

mais propriamente de uma relação, ou melhor, de um exercício relacional e


estratégico” (2013, p. 38). Peter Pál Pelbart, refletindo sobre os mecanismos
de poder, nos lembra:

Se imaginávamos, algumas décadas atrás, ter espaços preservados da


ingerência direta dos poderes, por exemplo, o corpo, o inconsciente,ou a
natureza, e tínhamos com isso a ilusão de preservar nessas esferas alguma

or
autonomia em relação aos poderes, hoje nossa vida parece integralmente
submetida a esses mecanismos de modulação da existência. Até mesmo o

od V
sexo, a linguagem, a comunicação, a vida onírica, mesmo a fé, nada disso

aut
preserva já qualquer exterioridade em relação aos mecanismos de controle
e de monitoramento. Para resumi-lo numa frase simples: o poder já não se

R
exerce desde fora, desde cima, mas sim como que por dentro, ele pilota
nossa vitalidade social de cabo a rabo (2007, p. 57-58).

o
Transposta para as escolas do corredor, podemos perceber essa “vita-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

lidade social” na potência dos alunos: existências moduladas que resistem


- insistem em existir e marcam presença, mesmo em espaços interditos.
Diante da urgência em garantir a vida, convém entender melhor esse “poder
visã
sobre a vida”:

Já não estamos às voltas com um poder transcendente, ou mesmo com um


poder apenas repressivo, trata-se de um poder imanente, trata-se de um
itor

poder produtivo. Este poder sobre a vida, vamos chamar assim, biopoder,
a re

não visa mais, como era o caso das modalidades anteriores de poder, barrar
a vida, mas visa encarregar-se da vida, visa mesmo intensificar a vida,
otimizá-la. Daí também nossa extrema dificuldade em resistir. Já mal sabe-
mos onde está o poder e onde estamos nós (PELBART, 2007, p. 57-58).
par

As conceituações de biopolítica38 e suas acoplagens surgiram ao fim das


análises de genealogia dos micropoderes disciplinares, estando todos intima-
Ed

mente relacionados. O biopoder utiliza as técnicas dos poderes disciplinares,


mas com outra escala, outro suporte e outros instrumentos, já que se aplica
à vida dos indivíduos e não apenas aos seus corpos – considerados no que
ão

possuem em comum, o pertencimento a uma espécie. “Se o poder discipli-


nar fazia uma anátomo-política do corpo, o biopoder faz uma biopolítica da
s

espécie humana” (VEIGA-NETO, 2011, p. 73).


ver

Corpo, vida e espécie humana não estão aqui sendo empregados apenas
em sentido metafórico. “O homem, durante milênios, permaneceu o que era
para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política;
38 conjugam os dispositivos complementares de disciplina e sexualidade por meio dos biopoderes dos processos
de normalização e regulamentação (GADELHA, 2013).

Flávia Lemos - 21982.indd 329 28/02/2020 13:13:33


330

o homem moderno é um animal, em cuja política sua vida de ser vivo está
em questão” (FOUCAULT, 2012, p. 156). Estamos falando de vidas de seres
vivos que, literalmente, estão em questão, sob ameaça. O Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública (FBSP) analisou os números e as taxas de homicídio no país
e divulgou os resultados no dia 5 de junho, no Atlas da Violência 201839. De
acordo com o Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da

or
Saúde (SIM/MS), o Brasil teve 62.517 homicídios em 2016, o que gera uma

od V
taxa de 30,3 mortes por 100 mil habitantes, bem acima do quantitativo de 50

aut
mil a 58 mil mortes, ocorridas entre 2008 e 2013.

Esse índice crescente revela, além da naturalização do fenômeno, a pre-

R
mência de ações compromissadas e efetivas por parte das autoridades
nos três níveis de governo: federal, estadual e municipal. [...] Além de

o
outras consequências, essa tragédia traz implicações na saúde, na dinâ-
aC
mica demográfica e, por conseguinte, no processo de desenvolvimento

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


econômico e social. Um dado emblemático que caracteriza bem a questão
é a participação do homicídio como causa de mortalidade da juventude
masculina (15 a 29 anos), que, em 2016, correspondeu a 50,3% do total
visã
de óbitos. Se considerarmos apenas os homens entre 15 e 19 anos, esse
indicador atinge a incrível marca dos 56,5% (IPEA, 2018, p. 21).

O documento revela que a evolução das taxas de homicídios ao longo


itor

do período se deu de forma diferenciada entre as regiões brasileiras. Todos os


a re

estados com crescimento superior a 80% nas taxas de homicídios e dez dos
onze estados que apresentaram crescimento gradativo da violência letal nos
últimos 10 anos fazem parte das regiões Norte e Nordeste do país. Enquanto
as regiões Sudeste e Centro-Oeste estabilizaram seus dados, houve um cres-
par

cimento nas demais regiões e, de forma mais acentuada, na região Norte.


Temos, então, no Pará a taxas de 50,8 homicídios por 100 mil habitantes,
Ed

uma das maiores do país,

A vitimização por homicídio de jovens (15 a 29 anos) no país é fenômeno


ão

denunciado ao longo das últimas décadas, mas que permanece sem a


devida resposta em termos de políticas públicas que efetivamente venham
a enfrentar o problema. Os dados de 2016 indicam o agravamento do
s

quadro em boa parte do país: os jovens, sobretudo os homens, seguem


ver

prematuramente perdendo as suas vidas. No país, 33.590 jovens foram


assassinados em 2016, sendo 94,6% do sexo masculino. Esse número
representa um aumento de 7,4% em relação ao ano anterior. Se, em 2015,

39 Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_


da_violencia_2018.pdf>.

Flávia Lemos - 21982.indd 330 28/02/2020 13:13:33


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 331

pequena redução fora registrada em relação a 2014 (-3,6%), em 2016


voltamos a ter crescimento do número de jovens mortos violentamente
(IPEA, 2016, p. 32).

Articulando os dados oficiais de evolução das matrículas iniciais com


estes índices de violência sofrida pela população ainda em idade escolar, per-
cebemos a gravidade deste processo acelerado de exclusão social da juventude

or
da escolarização formal na cidade de Belém. Tal processo articula o município
com a realidade apresentada nos demais centros urbanos, o que evidencia uma

od V
política pública educacional segregatória e elitista, com diretrizes orientando

aut
práticas que sistematicamente expõem tal faixa etária à reprodução do ciclo
da pobreza e a vulnerabilidades que, neste início de século, representam a

R
negação do direito à própria vida. Com uma concepção social de escola enfra-
quecida, nutrida por discursos oficiais contrários à potência de transformação

o
da educação, nossos jovens estão esvaziando as salas de aula e preenchendo
aC
as mais perversas estatísticas de evasão escolar e genocídio da juventude –
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

principalmente nas camadas mais empobrecidas nas periferias da cidade.


Como o Atlas da Violência 2018 aponta, “A juventude perdida trata-se de um
problema de primeira importância no caminho do desenvolvimento social do
visã
país e que vem aumentando numa velocidade maior nos estados do Norte”
(BRASIL, 2018, p. 4). É preciso resistir:
itor

as oportunidades são múltiplas porque [...] as crises irrompem repetida-


a re

mente em torno da urbanização, tanto local como globalmente, e porque


a metrópole é o ponto de colisão massiva – à coragem chamamos luta de
classes? – contra a acumulação por despossessão, que beneficiou o mínimo
de felizardos, e o ímpeto desenvolvimentista que procura colonizar o
espaço para os ricos. Um passo na direção de unificar essas lutas é adotar
par

o direito à cidade tanto como lema operacional quanto ideal político, justa-
mente porque ele enfoca a questão de quem comanda a conexão necessária
Ed

entre a urbanização e a utilização do produto excedente. A democratização


deste direito e a construção de um amplo movimento social para fortalecer
seu desígnio é imperativo (HARVEY, 2012, p. 89).
ão

A resistência, potente, se expressa no “corpo que recusa este biopoder


que se abate sobre ele e que exige, reinvidica o direito de nascer de novo. Essa
s

recusa do nascimento dado, em favor de um autonascimento, não equivale ao


ver

desejo de dominar seu próprio começo, mas de recriar um corpo que tenha o
poder de começar” (PELBART, 2007, p. 65). Assim, o poder pode ser pensado
“inversamente, e sobretudo, em sua positividade, ou seja, em sua capacidade
construtiva, instituinte, criadora de novas realidades – valores, práticas, sabe-
res, funcionamentos, subjetividades, etc.” (GADELHA, 2013, p. 41).

Flávia Lemos - 21982.indd 331 28/02/2020 13:13:34


332

Para Agamben (2008), de acordo com a lógica da biopolítica e do biopo-


der, a soberania moderna como poder de fazer viver e deixar morrer funciona
de acordo com uma lógica de ‘abandono’. O autor nos apresenta, então, o
conceito de “homo sacer” – uma forma de vida “matável” e exposta per-
manentemente à morte. Um corpo sobre o qual se determina que “tem que
bater, tem que matar”. Um corpo que aparece na narrativa para ser morto,
por culpa do sol.

or
od V
Homo sacer é aquele que foi excluído da comunidade religiosa e de toda

aut
vida política: não pode participar dos ritos de sua gens, nem (se foi decla-
rado infamis et intestabilis) cumprir qualquer ato jurídico válido. Além
disto, visto que qualquer um pode matá-lo sem cometer homicídio, a sua

R
inteira existência é reduzida a uma vida nua despojada de todo direito, que
ele pode somente salvar em uma perpétua fuga ou evadindo-se em um país

o
estrangeiro. Contudo, justamente por ser exposto a todo instante a uma
aC
incondicionada ameaça de morte, ele encontra-se em perene relação com

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


poder que o baniu. Ele é pura zoé, mas a sua zoé é capturada como tal no
bando soberano e deve a cada momento ajustar contas com este, encontrar
o modo de esquiválo ou de enganá-lo. Neste sentido [...] nenhuma vida é
visã
mais ‘política’ do que a sua (AGAMBEN, 2007, p. 189).

Para Giacoia (2004, p. 25), “essa ocupação tanatológica do espaço biopo-


lítico, que insere a gestão da vida natural nos cálculos estratégicos da decisão
itor

soberana, fornece subsídios para uma compreensão particularmente rica das


a re

relações entre a democracia liberal e os totalitarismos contemporâneos”. Para


que seja possível existir e resistir, seria necessária uma espécie de “ocupação
erótica” que trouxesse pulsão de vida a este mesmo espaço biopolítico. Nova-
mente Hannah Arendt nos apresenta a filosofia da natalidade como base da
par

filosofia da educação: cada nascimento se expressa em termos de uma radical


capacidade de começar algo novo e surpreendente. Ainda que sejamos mortais,
Ed

viemos ao mundo para iniciar algo novo, posto que “a essência da educação é
a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo” (ARENDT, 2005, p.
223). A educação é, essencialmente, ação e criação de uma novidade radical.
ão

Como elemento do que a autora vai chamar de vita activa, a ação humana
carrega consigo a imprevisibilidade e a irreversibilidade, que a distingue do
trabalho e do labor. Que esta vida ativa, imprevisível e irreversível, possa ter
s

lugar ao sol - inclusive nos corredores ensolarados das escolas vazias. Que
ver

a filosofia da natalidade possa ser o (re)nascimento de uma novidade radical


na educação.

Flávia Lemos - 21982.indd 332 28/02/2020 13:13:34


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 333

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.

______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer

or
III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

od V
ARENDT, H. A condição humana. São Paulo/Rio de Janeiro: Forense Uni-

aut
versitária, 1995.

R
______. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.

o
aC
______. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

BRASIL. Ipea e FBSP. Atlas da Violência 2018.


visã
______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira 9.394/96.

CAMUS, A. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2018.


itor

DAOUD, K. O caso Meursault. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.


a re

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 22. reimpr.


Rio de Janeiro: Edições Graal, 2012.
par

______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2012.


Ed

______. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
ão

GADELHA, S. Biopolítica, governamentalidade e educação: Introdução e


conexões a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
s

GIACOIA JUNIOR, O. O mal como resultado do processo civilizatório


ver

moderno. Revista IHU On-Line, edição 438, 2014.

GIACOIA JUNIOR, O. O Mal Radical e o Mal Banal. O Que nos Faz Pensar
(PUCRJ), v. 29, p. 137-178, 2011.

Flávia Lemos - 21982.indd 333 28/02/2020 13:13:34


334

HARVEY, D. O Direito à Cidade. Lutas Sociais, São Paulo, v. 29, p-73-89,


jul./dez. 2012.

LE GOFF, J. Por amor às cidades. Conversações com Jean Lebrun. São


Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

LÉFÈBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: EDUFMG, 2004.

or
od V
______. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

aut
PELBART, Peter Pál. Biopolítica. Sala Preta, Brasil, v. 7, p. 57-66, nov. 2007.

R
RANGEL, N. F. A. O esvaziamento do conceito de gentrificação como estra-
tégia política. Cadernos NAU, v. 4, p. 39-57, 2015.

o
aC
TRINDADE JÚNIOR, Saint-Clair Cordeiro da. ESPACIALIDADES E TEM-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


PORALIDADES NA DINÂMICA DAS FORMAÇÕES URBANAS. Revista
Cidades, v. 1, n. 2, 2004.
visã
VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 334 28/02/2020 13:13:34


PSICOLOGIA E POLÍTICAS
EDUCACIONAIS EM DISSERTAÇÕES E
TESES NO BRASIL: uma revisão sistemática

or
V
Leilanir de Sousa Carvalho

aut
Fauston Negreiros

1. Introdução
CR
do
A realização desse estudo tem a intenção de agregar os dados do estado
da arte sobre a psicologia e as políticas educacionais, através de uma visão
mais próxima e compreensiva de como elas se contextualizam. Portanto,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
objetivou-se levantar e analisar as produções acadêmicas que relacionam a
psicologia com as políticas educacionais. Visando a elaboração de uma visão
ra
crítica sobre essas políticas a qual sustentam ações articuladas e construtivas.
i
Os estudos relativos ao “estado da arte” podem ser definidos como uma
rev

modalidade de pesquisa bibliográfica que traz o desafio de mapear e de dis-


cutir produções acadêmicas em diferentes campos do conhecimento, tentando
to

responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e produzidos.


Também é reconhecida por realizar uma metodologia de caráter descritiva
ara

da produção acadêmica e científica sobre o tema que busca investigar (Fer-


reira, 2002).
ver di

É importante investigar o estado de coisas em vigor numa área de pes-


quisa, eles podem identificar teoria e método dominantes; evidenciar aspectos
op

do objeto de estudo nas pesquisas atuais na medida em que ela se relaciona


com pesquisas do passado; permite avanços reais, acréscimos e superações
E

das informações que se tem hoje. E assim avalia-se a necessidade de conti-


nuação ou ruptura teórica e metodológica, tornando o conhecimento e o fazer

pesquisa em algo dinâmico.

2. Psicologia e políticas educacionais:


uma breve contextualização

A Psicologia brasileira através das Diretrizes Curriculares Nacionais –


DCN vem sofrendo reformulações (Brasil, 2004). Sendo as políticas públicas,
no respectivo caso, as que envolvem a educação, aquelas mais citadas como
o papel de propostas inovadoras, cuja finalidade é suprir as necessidades do

Flávia Lemos - 21982.indd 335 28/02/2020 13:13:34


336

psicólogo, de mudança desse perfil de profissional e a formação de psicólo-


gos críticos.
Entende-se como políticas públicas sociais a forma institucionalizada que
o Estado encontra de ampliar, direta ou indiretamente, o bem-estar e assegurar
os direitos sociais dos cidadãos. Elas refletem, em diversos graus, as pressões
dos grupos de interesse e os movimentos da sociedade civil organizada, sendo,
portanto, resultantes da atividade política. A maioria se organiza por setor e

or
são divididas em programas, como os de Saúde, Educação ou Assistência

od V
Social. Outras se organizam em categorias com temas transversais aos seto-

aut
res, como o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.
O desempenho por área é por ciclos dinâmicos e de aprendizagem, abran-
gendo processos macro e micropolíticos (Barreyre, Bouquet, Chantreau &
Lassus, 2006; Souza, 2007).
R
O semelhante em todos esses processos de descentralização das políticas

o
públicas, como: saúde, assistência social, educação, qualificação profissional,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


desenvolvimento rural e urbano dentre outros é a condição de transferência dos
recursos financeiros, que ocorrem através de fóruns participativos da admi-
nistração pública em nível federal, estadual e municipal, com participações
visã
que crescem gradativamente nas discussões sobre a temática, envolvendo e
criando condições para os conselhos nos processos decisórios (Côrtes, 2007).
E entende-se como política educacional o conjunto de políticas públicas
de corte social que são materializadas em programas e projetos educacionais
itor

encarregados de promover os atores escolares (Azevedo & Aguiar, 2001).


a re

Ciente de tais situações, a presença do psicólogo é solicitada para con-


tribuir através de intervenções junto à equipe multiprofissional, e suas ações
vão muito além da tradicional atuação clínica. O psicólogo irá se deparar
com situações que demandarão encaminhamentos, atendimentos comparti-
par

lhados, visitas domiciliares, produção de documentos, registro e manuseio


de prontuários, dentre outras atividades. O reflexo do trabalho do psicólogo
Ed

será ligado à esfera política e aquela atmosfera conflitiva, mas com uma infi-
nidade de princípios e diretrizes, que são estabelecidos democraticamente sob
a influência de movimentos sociais (Souza, Yamamoto, & Galafassi, 2014).
ão

Repensando o papel do psicólogo escolar, vê-se a entrada da psicologia


em um campo interdisciplinar de análises sobre políticas públicas, na área da
s

educação. Essas ciências se cruzam e estabelecem construções teóricas sobre


ver

temas amplos e específicos (Souza, 2010).


A psicologia adentra nessa área assumindo um compromisso social,
como também produzindo conteúdos científicos que superem as discussões
sobre a dicotomia e a ilusão sobre a polarização entre a concepção de homem
(Sawaia, 2009).

Flávia Lemos - 21982.indd 336 28/02/2020 13:13:34


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 337

Gradativamente a psicologia passa a dar suporte à educação a fim de


desenvolver a sociedade brasileira, destacando as políticas públicas como
uma representação maior que um campo de trabalho, mas um instrumento
com funções de promover a formação e a ocupação de lugares e horizontes
investigativos. Sendo assim, assume o poder de ultrapassar o estatuto de con-
teúdo de um dado campo, reorganizando estratégias de ensino-aprendizagem
(Coimbra, 1995).

or
Entretanto, há muito que fazer, pois as políticas educacionais estão ainda

od V
tomando consistência. Sua difusão se faz necessária à medida que o psicólogo

aut
escolar assumir a luta e o trabalho, com o propósito de construir uma profis-
são moderna, comprometida com a sociedade e focada na transformação das
práticas cotidianas na escola (Guzzo, 2008).

R
A produção científica em Psicologia concentra esforço para entrar no
ritmo da interdisciplinaridade solicitada na análise da prática. A subjetividade

o
é cada vez mais valorizada, incluindo as estratégias de potencialização. Entre-
aC
tanto, é cada vez mais atual na literatura a preocupação em não se empreender
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

com rótulos os problemas. E não reproduzir a dicotomia subjetividade-ob-


jetividade tem sido um desafio, mesmo que epistemologicamente existam
grandes variações (Sawaia, 2009).
visã
Os profissionais da área da psicologia escolar têm responsabilidade ética
de influenciar as políticas educacionais, promovendo a certeza da criação de
ambientes educacionais respeitosos, que valorizam e protegem seus alunos,
através da análise e desafio às opressões que ocorrem dentro das escolas e que
itor

essas ações estejam relacionadas à cultura e capacidade de cada aluno, com


a re

profissionais atentos aos prejuízos psicológicos, intervenções direcionadas


ao contexto e o planejamento realizado pelos profissionais (Guzzo, 2008).

3. O estado da arte da pesquisa sobre psicologia


par

e políticas educacionais (2013-2017)


Ed

Para maior compreensão do tema, parte-se para os estudos que abordam a


relação entre a psicologia e as políticas educacionais, buscou-se explorar como
essa temática tem sido abordada na atualidade. Visando fazer o levantamento
ão

da produção acadêmico-científica sobre o campo teórico-prático da psicologia


e a política educacional. A busca foi realizada junto às produções acadêmi-
cas de Teses e Dissertações da CAPES e da Biblioteca Brasileira Digital de
s

Teses e Dissertações – BDBTD acerca da psicologia e políticas educacionais.


ver

O objetivo do levantamento é investigar o estado do conhecimento sobre a


temática a partir das produções realizadas nos Programas de Pós-Graduação
e compreender como está configurado esse campo de pesquisa.
A busca por pesquisas semelhantes, ou coerentes, ao objeto de estudo aqui
investigado contribui não só para informar o que foi explorado e identificar

Flávia Lemos - 21982.indd 337 28/02/2020 13:13:34


338

as possíveis lacunas, mas também para uma melhor delimitação do objeto.


Portanto, pretende-se analisar publicações, considerando como fontes impor-
tantes de discussões na área, sobre a relação da psicologia com as políticas
educacionais. A partir desse tópico serão expostas as produções e o que elas
revelam a respeito da presença da psicologia no âmbito da educação.
Como critério de busca utilizou-se nos respectivos bancos de dados,
os descritores “Psicologia” e “Políticas Educacionais”, no período de 2013

or
a 2017. As informações foram selecionadas com base nos seguintes indicado-

od V
res pré-estabelecidos: grau de titulação, distribuição anual, região brasileira

aut
que faz parte o programa de pós-graduação, programas de pós-graduação em
que as pesquisas foram produzidas, e eixo temático, os quais foram suficientes
para obter as principais características dos títulos selecionados.

R
Os critérios de inclusão no banco de teses e dissertações da CAPES
foram às teses e dissertações defendidas nos últimos cinco anos, pertencentes a

o
grande área de conhecimento das ciências humanas, área de conhecimento da
aC
psicologia, área de concentração na psicologia e psicologia escolar. Já o crité-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


rio utilizado na biblioteca digital brasileira de teses e dissertações – BDBTD
foram teses e dissertações defendidas nos últimos cinco anos.
Através desse crivo foram encontradas 2.104 teses e dissertações, no
visã
primeiro momento foram excluídos todos os trabalhos que não tinham relação
com a psicologia e nem com as políticas educacionais e que não tiveram o
acesso liberado. No segundo momento foram excluídos todos os trabalhos
itor

que não se relacionavam com o tema principal, sobre psicologia e políticas


a re

públicas, para maior compreensão da busca segue figura 1:

Figura 01 – Levantamento das Bases


Levantamento inicial das bases: 2.104
par

Banco de Teses e Dissertações da CAPES Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações


1.954 150
Ed

Exclusão

1º Acesso liberado, Resumo e Título 1º Acesso liberado, Resumo e Título


1.868 49
ão

2º Relação com o tema principal 2º Relação com o tema principal


65 69
s
ver

Seleção Final

CAPES BDBTD
21 32

Fonte: Pesquisadores.

Flávia Lemos - 21982.indd 338 28/02/2020 13:13:35


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 339

Segundo Bittencourt (2017) as políticas públicas para a educação no


Brasil demonstram interesse em encontrar resposta para questionamentos
relevantes, utilizando como fonte as universidades brasileiras e seus núcleos de
pesquisa, comprovando o volume significativo de produções acerca da temá-
tica, principalmente após a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional e das leis criadoras dos fundos de financiamentos da educação

or
como: Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Fundamental
e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEF (Brasil, 1996)

od V
e Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valo-

aut
rização dos Profissionais da Educação – FUNDEB (Brasil, 2007), além dos
marcos regulatório norteado pelos princípios democráticos.

R
Com base no critério de exclusão restaram 21 teses e dissertações no
banco de teses e dissertações da CAPES e 32 teses e dissertações na biblio-

o
teca digital brasileira de teses e dissertações – BDBTD que serão analisadas
aC
e primeiramente, assim distribuídas no que tange ao grau de titulação:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Quadro 1 – Teses e dissertações relacionadas à psicologia e políticas


educacionais, defendidas no período de 2013 a 2017
visã
Base Titulação Número %
Mestrado 18 56%
BDBTD
Doutorado 14 44%
itor

Total BDTD 32
a re

Mestrado 20 95%
CAPES
Doutorado 1 5%
Total CAPES 21

Fonte: Banco de teses da CAPES: http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses e Biblioteca


par

Digital Brasileira de Teses e Dissertações: <http://bdtd.ibict.br/vufind/>. Acesso em jul. 2018.


Ed

De acordo com o quadro 1, a maioria dos trabalhos corresponde às


dissertações de mestrado, o que permite concluir que o tema da psicologia
e políticas educacionais vem sendo pesquisado e discutido entre pesqui-
ão

sadores nos programas de pós-graduação, em contrapartida, apresenta


baixa incidência de teses defendidas nesse período quando relacionada
aos números de dissertações. Segundo Guzzo (2008), espera-se que o
s

psicólogo escolar se envolva com pesquisas, planejamento educacional e


ver

elaboração de políticas sociais. Espera-se que esses profissionais estejam


sintonizados com as necessidades sociais, produzindo conhecimentos e
tecnologias para sua atuação no ensino aprendizagem que sofre constantes
mudanças ao longo dos tempos.

Flávia Lemos - 21982.indd 339 28/02/2020 13:13:35


340

Em síntese os psicólogos escolares no Brasil encontram-se envolvi-


dos com questões relacionadas ao sistema educacional, mas nem sempre
tendo como local de atuação a escola. Trata-se de profissionais que estão
em constantes especializações para atender as demandas solicitadas no
exercício da prática profissional (Guzzo & Wechsler, 2001).
Em relação à distribuição das pesquisas, em agrupamentos de anos,

or
conforme figura 2, apresentada a seguir, nota-se coerência no número de
pesquisas ao longo dos últimos cinco anos, apresentando um número maior

od V
no ano de 2016, em que foi registrado um total de 07 dissertações defen-

aut
didas tendo como foco de estudo a psicologia e políticas educacionais.
Tal fato pode estar relacionado às políticas públicas ligadas à educação,

R
despertando interesse aos pesquisadores e também ao aumento da oferta
de pós-graduação no Brasil, que foram amplamente acessadas em anos

o
anteriores e, consequentemente, chegaram aos períodos de defesas nesse
aC
referido ano, destacando-se entre os demais anos.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Nos outros anos que fizeram parte da pesquisa, apesar da produção
não ter destaque significativo, houve pelo menos uma tese ou dissertação
defendida ao logo dos últimos 05 anos no Brasil.
visã

Figura 2 - Distribuição do número de teses e dissertações abordando


psicologia e políticas educacionais, no período de 2013 a 2017
itor

8
a re

7
BDBTD Dissertações
6
5
BDBTD Teses
par

4
3
Ed

CAPES Dissertações
2
1
CAPES Teses
0
ão

2013 2014 2015 2016 2017

Fonte: Banco de teses da CAPES: <http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses e Biblioteca


s

Digital Brasileira de Teses e Dissertações: <http://bdtd.ibict.br/vufind/>. Acesso em jul. 2018.


ver

No que se refere às regiões brasileiras que os estudos foram desen-


volvidos e defendidos, verifica-se a predominância da região sudeste,
como mostra a figura 3:

Flávia Lemos - 21982.indd 340 28/02/2020 13:13:35


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 341

Figura 3 – Regiões brasileiras em que as teses e


dissertações foram defendidas (2013-2017)

24

or
9 9

od V
6

aut
5

Norte

R
Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul

o
Fonte: Banco de teses da CAPES: http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses e Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações: http://bdtd.ibict.br/vufind/>. Acesso em jul. 2018.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A região com maior número de trabalhos defendidos entre os anos


de 2013 a 2017 foi a região sudeste, seguida pelas regiões centro-oeste e
norte com o mesmo número de defesas, posteriormente a região nordeste e,
visã
por fim, a região sul. Pela análise de tempo em que essas teses e dissertações
foram desenvolvidas e defendidas, encontramos o Estado de São Paulo como
destaque, demonstrativo de local onde a psicologia tem concentração de mais
itor

de 96 mil psicólogos inscritos e ativos no Conselho Federal de Psicologia – 6ª


a re

região40, sendo a maior entre todos os 22 conselhos regionais que atuam no


país, além de representar o Estado brasileiro com maior número de cursos
de psicologia (Souza, Yamamoto, & Galafassi, 2014). Consequentemente,
o número de produções está relacionado a esse contingente de profissionais
psicólogos, onde parte significativa dos estudos aborda essa temática.
par

No que se refere aos Programas de pós-graduação em que as pesquisas


Ed

foram produzidas (ver quadro 2), verifica-se que a maioria dos estudos é
oriunda de Programas da área da Psicologia, seguida pela de Educação.
ão

Quadro 2 – Programas de pós-graduação em que as teses


e dissertações foram defendidas (2013-2017)
Programa Número %
s

Psicologia 22 41%
ver

Educação 11 21%
Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano 3 6%
continua...
40 Conselho Regional de Psicologia 6ª Região. Profissionais por regional. Atualizado em: 23 jul. 2018 às
03:00:05. Disponível em: <https://transparencia.cfp.org.br/crp06/psicologo/psicologos-por-regional/>. Acesso
em: 25 jul. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 341 28/02/2020 13:13:35


342
continuação

Programa Número %
Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde 3 5%
Desenvolvimento Humano 3 5%
Distúrbios do Desenvolvimento 2 4%
Políticas Públicas 1 2%
Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações 1 2%
Saúde Coletiva 1 2%

or
Sociedade, Cultura e Fronteiras 1 2%
Ciência da Informação 1 2%

od V
Psicanálise 1 2%

aut
Teologia 1 2%
Mudança Social e Participação Política 1 2%
Integração da América Latina 1 2%

R
Fonte: Banco de teses da CAPES: <http://www.capes.gov.br/servicos/
banco-de-teses> e Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações:

o
<http://bdtd.ibict.br/vufind/>. Acesso em: jul. 2018.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


No Brasil, consideram-se promissores os investimentos realizados pelas
universidades na discussão do currículo de formação e na produção de conhe-
cimento através da pesquisa nessa área (Guzzo, 2008). Como visto no Qua-
visã
dro 3, os programas de pós-graduação em psicologia e educação, nos anos
de 2013 a 2017 realizaram estudos pertinentes sobre políticas educacionais
em interface a psicologia, confirmando que o país investiu e agora colhe os
frutos, através de estudos coerentes e, ao mesmo tempo, analisando demandas
itor

contextualizadas no meio em que estão inseridos.


a re

No que concerne os eixos temáticos dos estudos declarados nas pesqui-


sas, dividiu-se em seis eixos para melhor discussão e análise dos materiais
encontrados, são eles: políticas para educação inclusiva, políticas de formação
e atuação do psicólogo escolar, políticas de melhoria da educação, políticas
par

de formação de professores, políticas de atendimento à diversidade, e polí-


ticas intersetoriais.
Ed

O primeiro aspecto a ser apontado é que os eixos mais estuda-


dos∕pesquisados são: políticas de melhoria da educação, com 15 estudos
ão

abordando o tema, investigando e/ou discutindo políticas (programas,


projetos) que objetivam a melhoria da qualidade da educação, tanto em
relação ao acesso e permanência, quanto ao enfrentamento de proble-
s

mas no processo de escolarização. Inclui ainda trabalhos que investi-


ver

gam e/ou discutem a organização e estruturação do sistema de ensino,


incluindo-se processos de exclusão, tecnologias digitais, profissionali-
zação, violência, saúde e educação (Pedroso, 2017; Albuquerque, 2016;
Lucca, 2016; Nascimento, 2016; Ferreira, 2015; Oyama, 2015; Albuquer-
que, 2014; Matheus, 2014; Miguel, 2014; Nascimento, 2014; Silva, 2014;

Flávia Lemos - 21982.indd 342 28/02/2020 13:13:36


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 343

Brasil, 2013; Campos, 2013; Gemelli, 2013; & Kinpara, 2013); políticas de
atendimento à diversidade, com 12 trabalhos que apontam a investigação e/
ou discussão sobre as políticas de direitos humanos, políticas educacionais
de gênero, etnias indígenas, populações afrodescentes, LGBT, Educação de
Jovens e Adultos e Cotas nas universidades (Santos, 2017; Bonfim, 2016;
Camargo, 2016; Melo, 2016; Moura, 2015; Barros, 2014; Braz, 2014;

or
Cunha, 2014; Palma, 2014; Meirelles, 2013; Rocha, 2013; & Silva, 2013);
e políticas para educação inclusiva, com 10 trabalhos abordando o tema

od V
através da investigação e/ou discussão da política de inclusão escolar,

aut
geral ou de algum segmento específico, como: acessibilidade, deficiência
visual, deficiência auditiva, deficiência intelectual, Transtornos do Espectro

R
Autista – TEA – o ensino especial, geral ou de alguma especialidade, bem
como atendimentos educacionais em geral para estas pessoas e formas de

o
atuação profissional no atendimento a esses alunos (Zanetti, 2017; Gar-
aC
cia, 2016; Leonel, 2014; Martins, 2014; Ribeiro, 2014; Tibyriçá, 2014;
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Batistão, 2013; Malaquias, 2013; Oliveira, 2013; & Souza, 2013).


Seguindo com os eixos que foram moderadamente estudados, temos:
políticas de formação e atuação do psicólogo escolar, com 07 trabalhos
visã
que investigam e/ou discutem políticas de formação, inserção e atuação
de psicólogos escolares nos diversos níveis de educação (Antunes, 2017;
Digiovanni, 2016; Silva, 2016; Feitosa, 2015; Silva, 2015; Geoffroy, 2014; &
itor

Urnau, 2013); políticas de formação de professores, também com 06 trabalhos


a re

que investigam e/ou discutem a formação inicial e/ou continuada de professo-


res (Rodrigues, 2017; Almeida, 2017; Vital, 2016; Costa, 2015; Eugenio, 2013;
& Pedrinho, 2013); e políticas intersetoriais, com 03 trabalhos que investigam
e/ou discutem as políticas que estabelecem interfaces entre a saúde, a educação
par

e a assistência social, tais como trabalhos que tratem da saúde dos profissionais
da educação, escolarização da infância em abrigos, adolescentes em conflito
Ed

com a lei (socioeducação), educação em contextos domiciliar, hospitalar e


prisional (Gonçalves, 2016; Santos, 2016; Nogueira, 2013).
Para maior compreensão dos resultados expostos, segue abaixo o qua-
ão

dro 3, que expõe em quais eixos temáticos as teses e dissertações se organizam:

Quadro 3 – Eixos temáticos em que foram organizadas as teses


s

e dissertações defendidas no período entre 2013 e 2017


ver

n Eixo Temático Principais Resultados


As políticas públicas inclusivas que deliberaram o acesso às instituições de ensino
Políticas para regular a todos os alunos com necessidades educacionais especiais, abordada
1
Educação Inclusiva por: Zanetti, 2017; Garcia, 2016; Leonel, 2014; Martins, 2014; Ribeiro, 2014;
Tibyriçá, 2014; Batistão, 2013; Malaquias, 2013; Oliveira, 2013; & Souza, 2013.
continua...

Flávia Lemos - 21982.indd 343 28/02/2020 13:13:36


344
continuação
n Eixo Temático Principais Resultados
Concepções e práticas dos psicólogos escolares na direção de uma
Políticas de
perspectiva de atuação, que considera a gênese social do desenvolvimento
Formação e
2 humano a partir das relações interpessoais e do contexto histórico-cultural.
Atuação do
Discussão presente nos trabalhos de: Antunes, 2017; Digiovanni, 2016;
Psicólogo Escolar
Silva, 2016; Feitosa, 2015; Silva, 2015; Geoffroy, 2014; & Urnau, 2013.
Apresentação e discussão de programas e projetos educacionais que foram
executados como medidas de melhoria ao atendimento das demandas
Políticas de

or
escolares em prol de resultados satisfatórios ao desenvolvimento dos
3 Melhoria da alunos. Discussão presente nos trabalhos de: Pedroso, 2017; Albuquerque,
Educação 2016; Lucca, 2016; Nascimento, 2016; Ferreira, 2015; Oyama, 2015;

od V
Albuquerque, 2014; Matheus, 2014; Miguel, 2014; Nascimento, 2014; Silva,

aut
2014; Brasil, 2013; Campos, 2013; Gemelli, 2013; & Kinpara, 2013.
A partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Políticas de
Nacional (Lei Nº. 9394/96), que aponta com maior nitidez e compromisso a
4 Formação de
Professores

R
formação e a prática do professor, discutido em: Rodrigues, 2017; Almeida,
2017; Vital, 2016; Costa, 2015; Eugenio, 2013; & Pedrinho, 2013.
Trabalhos que discutem os modos pelos quais se ampliam as possibilidades

o
Políticas de de participação da sociedade nos processos políticos, promovendo
5 Atendimento à a democracia. Discussão presente em: Santos, 2017; Bonfim, 2016;
aC
Diversidade Camargo, 2016; Melo, 2016; Moura, 2015; Barros, 2014; Braz, 2014;

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Cunha, 2014; Palma, 2014; Meirelles, 2013; Rocha, 2013; & Silva, 2013.
Evidenciam os estudos sobre a política educacional nas esferas da
Políticas saúde, assistência social e educação. Promovendo a reflexão sobre a
6
Intersetoriais desigualdade social na educação e a dimensão subjetiva dessa realidade.
visã
Nos textos de: Gonçalves, 2016; Santos, 2016; Nogueira, 2013.

Fonte: Pesquisadores.
itor

Para a análise dos eixos presentes no objeto de pesquisa, indicado na


formulação do objetivo que compõem este estudo foi adotado o referencial
a re

da teoria crítica da sociedade brasileira, visto que todas as teses e dissertações


foram desenvolvidas e defendidas no Brasil, portanto serão utilizados auto-
res que apresentam publicações com os conceitos essenciais para a análise
proposta, de fácil compreensão dos processos subjetivos e objetivos pela
par

sociedade e das tendências que nela se imprimem.


Assim, no eixo temático (1) políticas para educação inclusiva, desta-
Ed

cam-se as discussões sobre acessibilidade, onde foi avaliada a percepção de


alunos com deficiência sobre as condições de acessibilidade e o impacto em
ão

sua formação acadêmica (Garcia, 2016); sobre deficiência intelectual, através


do processo de escolarização do deficiente intelectual nas escolas de educação
básica na modalidade de educação especial, identificando se este processo
s

promove o desenvolvimento psíquico do aluno, permitindo-lhe avanços nos


ver

níveis de escolarização (Leonel, 2014); sobre deficiência visual, através da


reflexão de como é efetivada e efetiva a educação para pessoas com deficiência
visual (Zanetti, 2017); condições de desenvolvimento da educação inclusiva,
realização de mapeamentos de situações e dinâmicas de inclusão, através da
investigação dos processos de implementação, desenvolvimento, avaliação

Flávia Lemos - 21982.indd 344 28/02/2020 13:13:36


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 345

de políticas educacionais através de programas e projetos desenvolvidos nas


escolas para promover a integração dos seus membros efetivos, seus limites
e suas possibilidades (Martins, 2014; Batistão, 2013; Malaquias, 2013 &
Souza, 2013), Transtorno do Espectro Autista – TEA, através do mapea-
mento das situações, dinâmica de inclusão e serviços públicos de educação
disponibilizados aos alunos com TEA (Tibyriçá, 2014 & Oliveira, 2013), e
deficiência auditiva, promovendo a compreensão de como ocorre o processo

or
de escolarização dos surdos, sob a perspectiva deles, evidenciando suas arti-

od V
culações com as políticas e filosofias educacionais e como o cotidiano escolar

aut
se relaciona aos processos formativos (Ribeiro, 2014).
A psicologia precisa focar no desenvolvimento e fortalecimento de todos

R
que fazem parte da escola, assumindo um compromisso ético e político com
a sociedade. E não mais assumir a postura de profissional preocupado com a

o
desordem e patologias. Essa postura se consolidará a partir da formação do
psicólogo crítico, que construa ferramentas apropriadas para o contexto em
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que atua (Guzzo, 2015).


O conhecimento defasado sobre a possibilidade de uma pessoa com
deficiência é uma das barreiras que impede a construção de escolas inclusivas.
visã
Assumir uma postura consciente e certa de que a base dessa construção são
as atitudes positivas, ao assumir a diversidade e o papel social do aluno com
deficiência (CORDE/SDH/Brasil, 2007).
itor

O sistema educacional deve adequar-se para atender às demandas da


pessoa com deficiência, pois muitas vezes acaba não conseguindo, e deixando
a re

de atender questões importantes, como o cotidiano escolar, os conflitos his-


tóricos, culturais, políticos e sociais que constituem essa instituição social
(Laplane, 2004). Assim, a educação inclusiva brasileira se insere em um país
marcado pela desigualdade; de um governo de ações ambíguas; das políticas
par

de responsabilização social, descentralização, flexibilização e controle pelas


médias e pelo mérito no campo educacional, no escopo da padronização da
Ed

educação básica (Kassar, 2004).


No eixo temático (2) políticas de formação e atuação do psicólogo esco-
lar, investigou-se o processo de tornar-se psicólogo em e para a diversidade no
ão

âmbito escolar (Antunes, 2017 & Silva, 2016); realização de um comparativo


entre Brasil e Cuba sobre o papel do psicólogo na implementação das políticas
s

educacionais (Digiovanni, 2016); investigação sobre a atuação do psicólogo


ver

escolar junto a equipes multidisciplinar e bases teóricas, refletindo sobre possi-


bilidades de atuação, relacionando teoria e prática (Silva, 2015; Geoffroy, 2014
& Urnau, 2013); discussão os avanços e retrocessos nas leis estaduais com-
plementares no cotidiano de trabalho dos psicólogos (Feitosa, 2015).

Flávia Lemos - 21982.indd 345 28/02/2020 13:13:36


346

Novaes (2008) aponta o despreparo na formação do psicólogo como um


dos maiores riscos que a psicologia pode sofrer, assim como a falta de profis-
sionalismo, deficiência nas pesquisas, falta de liderança entre os profissionais
psicólogos, indefinição na descrição do papel do psicólogo, além do preparo
ético, prático e profissional.
O caminho percorrido pelo psicólogo escolar durante o seu processo de
formação é de contradições e dificuldades, exige-se especialidades no título

or
profissional, restringindo e dificultando uma prática competente, consequen-

od V
temente, uma formação profissional refinada. Nota-se uma diferença entre

aut
ser psicólogo no Brasil e ser psicólogo para o Brasil, e essa diferença está
justamente na formação desse profissional e na forma como ele atua, pois se
faz necessário que os psicólogos mudem suas posturas tradicionais e assumam

R
posições de maior risco e desafios na defesa de questões sociais e políticas
(Guzzo, 2008). Atualmente, a Psicologia Escolar tem sido alvo de discussões

o
no que se refere à atuação do profissional, onde se defende que seja consciente
aC
e transformadora, além de discussões sobre a ampliação de práticas voltadas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ao coletivo e que atenda a todos os que compõe a instituição escolar (Bisinoto
& Marinho-Araújo, 2014; Marinho-Araujo & Neves, 2007).
No eixo temático (3) políticas de melhoria da educação, com políti-
visã
cas ofertadas através de programas para o atendimento educacional espe-
cializado – AEE (Albuquerque, 2014) e políticas de transferência de renda
(Kinpara, 2013); avaliação da funcionalidade de instrumentos para a aná-
itor

lise de dados educacionais e diferentes aspectos do sistema educacional


a re

(Matheus, 2014); como ocorre a relação entre saúde e educação por meio de
políticas que propõem melhorias nas condições de vida do público escolar,
tomando por referência programas no Brasil e Portugal (Lucca, 2016) além
das políticas brasileiras de álcool e outras drogas (Pedroso, 2017); análise
par

das dinâmicas de comportamento antissocial na escola, e as relações estabe-


lecidas entre os alunos e os membros que compõem a escola (Ferreira, 2015;
Ed

Oyama, 2015 & Nascimento, 2014); investigação sobre as potencialidades


e limites de programas que garantem os direitos à educação, enfrentamento
da exclusão escolar e acesso aos conhecimentos historicamente construídos
ão

(Albuquerque, 2016; Furtado, 2016 Nascimento, 2016 & Gemelli, 2013);


processos de ensino e aprendizagem mediados pela utilização de laptops por
professores e alunos (Silva, 2014 & Brasil, 2013); diagnósticos das vulnera-
s

bilidades de jovens, por via das Políticas Públicas de Juventude, promovendo


ver

uma reflexão sobre como ocorre a sua execução no âmbito do seu público
alvo (Miguel, 2014 & Campos, 2013).
Embasada nesses dados, percebe-se a educação como fonte para um
mecanismo estratégico para suprir as novas necessidades da sociedade em

Flávia Lemos - 21982.indd 346 28/02/2020 13:13:36


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 347

pleno avanço. Em face disso, é importante analisar como as políticas edu-


cacionais são apropriadas nos espaços escolares a partir dos seus processos
diários de produção de relações, e transformar aquilo que for revelado, em
atividades pedagógicas, práticas docentes, práticas institucionais, e práticas
políticas (Souza, 2010). Com o propósito de contextualizar e potencializar o
enfrentamento da efetivação das políticas de melhoria da educação é impor-
tante atuar sob os planos de vida, identidades dos indivíduos e dos grupos,

or
desenvolver estratégias sócio-educacionais comprometidas com a comunidade

od V
(Góes & Machado, 2013).

aut
O eixo temático (4) políticas de formação de professores, demanda
o debate da formação e atuação docente frente às demandas e às premis-

R
sas educacionais inclusivas (Rodrigues, 2017); compreensão das políticas
educacionais como um espaço de constituição de sentidos e de que modo

o
estão articuladas ao sistema de ensino e compõem a subjetividade docente
(Costa, 2015; Eugênio, 2013 & Pedrinho, 2013); Investigação sobre a matriz
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

curricular dos cursos de graduação, cujo formato contribui para a formação


inicial dos futuros professores (Almeida, 2017); formação e atuação docente
frente às demandas e as particularidades da educação integral (Vital, 2016).
visã
As práticas profissionais dos educadores e psicólogos são influenciadas pelas
ações pedagógicas, isso resulta no desenvolvimento das ações praticadas
pelos psicólogos na escola, o que justifica a importância dos profissionais da
educação e psicólogos terem conhecimento e propriedade sobre a visão de
itor

homem e educação contextualizando com as práticas realizadas (CFP, 2013).


a re

Os psicólogos colaboram com a formação de professores promovendo


o desenvolvimento de práticas pedagógicas humanizada, realista e atualizada
constantemente, compreendendo as mudanças sociais e ressignificando as
suas práticas (Novaes, 2008). Neste eixo, como na maioria dos eixos citados,
par

defende-se uma psicologia escolar crítica e contextualizada. É preciso que o


psicólogo considere a todas as especificidades escolares e desenvolva estra-
Ed

tégias que sempre favoreçam o grupo, apresente uma postura compreensiva


sobre a rotina da escola, dando atenção às complexidades deste espaço, con-
siderado como um lugar de convivência e inserção social, valorizando todos
ão

os protagonistas da escola, participando ativamente das análises e construção


das ações sempre éticas, com teor político e pedagógico (Guzzo, 2015).
s

O eixo temático (5) políticas de atendimento à diversidade, por meio da


investigar das políticas educacionais de gênero, promoveu a reflexão acerca
ver

dos processos que contribuem para uma formação cultural genuína e eman-
cipatória, além de analisar as políticas educacionais voltadas para a sexuali-
dade (Santos, 2017; Bonfim, 2016; Barros, 2014 & Palma, 2014); o processo
de implementação da Lei de Cotas nas instituições de ensino, bem como

Flávia Lemos - 21982.indd 347 28/02/2020 13:13:37


348

o seu desenvolvimento entre o público negro e indígena (Camargo, 2016;


Melo, 2016; Moura, 2015; Meirelles, 2013 & Rocha, 2013); contextualiza
a educação do campo, suas competências direcionadas pelas políticas edu-
cacionais como propostas de adequação da escola com a vida no campo
(Braz, 2014); analisa de forma sistemática a Educação de Jovens e Adultos
– EJA, através da identificação desta modalidade de educação nos seus mais
variados aspectos: político, pedagógico, psicológico, histórico, curricular, ava-

or
liativo, ensino-aprendizagem, teórico e em outras dimensões que a constituem

od V
como medida para superar o analfabetismo (Cunha, 1980 & Silva, 2013).

aut
O Brasil é caracterizado pela sua diversidade, na educação se faz
necessário refletir formas de valorizar essa diversidade. Neste sentido, Nardi
(2018) discute a necessidade de considerar o pluralismo dos contextos esco-

R
lares e reforça a importância do posicionamento contra as tendências padro-
nização dos indivíduos não potencializando suas particularidades. A criação

o
de espaços de representatividade na escola é uma tarefa indispensável para a
aC
democratização da escola e da sociedade como um todo.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Nas últimas décadas, as leis que garantem os direitos e o respeito à diver-
sidade cultural, étnica e social avançaram. Esses grupos sempre existiram em
nossa sociedade, mas, por muito tempo, permaneceram à margem de direitos
visã
e políticas públicas sociais, e atualmente as políticas educacionais passaram a
se responsabilizar e abordar a educação de forma diferenciada para atender a
todos respeitando as especificidades sociais (Zanin, Silva & Cristofoli, 2018).
itor

Por fim, o eixo temático (6) políticas intersetoriais, aborda questões relati-
a re

vas a práticas educacionais nomeadas por desescolarização adentrando na


experiência de grupos específicos (Gonçalves, 2016); problematização da
desigualdade em termos de ofertas e condições de permanência nas políticas
educacionais no Brasil (Santos, 2016 & Nogueira, 2013).
Identificou-se um número pequeno de publicações abordando de forma
par

direta a intersetorialidade, embora seja presente como um dos equipamentos


Ed

públicos, e que a área da educação vem se constituindo em mais um impor-


tante espaço para o desenvolvimento de práticas oriundas de diversas ciên-
cias e experiências, a intersetorialidade encontra-se em construção enquanto
ão

conceito, mas entende-se como um exemplo de interdisciplinaridade que se


realiza na relação entre as políticas pública (Romagnoli, 2016).
A política intersetorial é recente e surge como possibilidade para resolver
s

problemas que ocorrem sobre uma população que ocupa um local específico.
ver

A partir de uma visão integrada dos problemas sociais e de suas soluções,


tem como objetivo otimizar os recursos escassos procurando soluções inte-
gradas, pois a complexidade da realidade educacional exige um olhar que não
se esgota no âmbito de uma única política social (Góes & Machado, 2013).
Segundo Martinez (2003), para contextualizar e potencializar, eficazmente, o

Flávia Lemos - 21982.indd 348 28/02/2020 13:13:37


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 349

enfrentamento de tais desafios é importante trabalhar planos de vida, identi-


dades dos indivíduos e de suas comunidades, desenvolver estratégias socioe-
ducacionais comprometidas com a gestão social local.
No Brasil, após reivindicações e lutas sociais, houve a compreensão da
necessidade de unir as esferas políticas, econômicas, educacionais e sociais, a
fim de estimular o desenvolvimento local, tendo como base a sustentabilidade
ambiental, qualidade de vida e democracia social. Desde então as políticas

or
públicas educacionais, vêm se responsabilizando, de maneira gradual, pela
hipótese e fortalecimento de ações através de planos, programas e projetos

od V
que possibilitem melhorias nas condições de vida de todos que compõem a

aut
escola. Busca-se a participação social nos processos decisórios e a democrati-
zação das informações e do acesso aos bens e serviços públicos, o resgate da

R
autonomia e da identidade local, bem como a implementação de programas
intersetoriais, que visem ao atendimento do indivíduo em todas as dimensões

o
supracitadas (Senhoras & Silva Neto, 2014).
aC
A escola assumindo condições de diálogos para aqueles que a frequentam
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e permitindo que eles se tornem os protagonistas nos processos decisórios


será um avanço no que se refere à inclusão educacional, social e, sobretudo,
política. Percebe-se, portanto, a necessidade de tornar visível a diferença,
visã
valorizar e oportunizar a presença desses indivíduos e de suas culturas em
diferentes ambientes educacionais. A ampliação do acesso aos níveis de ensino
é um dos exemplos que comprovam o aumento dos índices educacionais ofi-
itor

ciais, porém esse aumento se compara a luta por uma educação de qualidade
e que cumpra com seus propósitos, como o desenvolvimento e humanização
a re

dos indivíduos.
Considera-se que a escola atende aos padrões e tendências da sociedade
em que está inserida e carrega sua característica de forma social ou na trans-
missão dos conteúdos, suas contradições, incluindo a ausência de liberdade
par

e os obstáculos à experiência.
Ed

4. Algumas considerações

Os aspectos aqui levantados objetivam ampliar e contribuir com a dis-


ão

cussão em defesa de uma escola, principalmente a pública, de qualidade que


seja um canal de possibilidades, criatividade, provocações e resistência, além
s

de oferecer ao aluno oportunidade de fazer parte dessa construção no processo


ver

de formação. Nesse contexto, o psicólogo escolar tem espaço para atuação


na luta por uma escola democrática, de qualidade, que garanta os direitos de
cidadania a crianças, jovens e profissionais da Educação (CFP, 2013), ressal-
tando que a psicologia é política, e seu papel no espaço escolar é sempre do
coletivo e para o coletivo.

Flávia Lemos - 21982.indd 349 28/02/2020 13:13:37


350

O estudo proposto, cuja discussão trás o levantamento das produções


científicas que relacionam a psicologia e a política educacional nos Programas
de Pós-Graduação, evidencia entre os seus resultados, o cenário da temática
no campo educacional. A análise realizada permite afirmar a existência de um
significativo acervo produzido na área de política educacional nos últimos
cinco anos aqui considerados. Evidenciaram-se pesquisas voltadas para polí-
ticas de melhoria da educação, indicando um aprofundamento acadêmico de

or
conhecimento sobre o referido eixo, em contrapartida é indicada a carência

od V
de discussões científicas significativas sobre as políticas intersetoriais, o que

aut
pode incidir na limitação de quadros analíticos desses segmentos.
Diante disso, o levantamento bibliográfico realizado permitiu destacar

R
alguns aspectos que poderão nortear pesquisas futuras de ambas as áreas.
Como a sistematização do estudo sobre cada eixo abordado, mas de forma

o
independente, verificando o motivo de quando o número de publicações encon-
tradas foram muito baixo, enquanto outros eixos o número foi muito elevado.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Outro aspecto interessante é o espaço ocupado por essas pesquisas, visto que
na região Sudeste o número de estudos sobre a temática é elevado e na região
Sul do Brasil o número é baixo, área complexa e que necessitam de estudos
visã
que tragam fundamentos adequados para a compreensão real sobre o interesse
nessa temática em determinadas localidades.
A significativa contribuição que os programas de pós-graduação oferecem
itor

para a sociedade através da construção, discussão e consolidação do campo


a re

de 2.104 investigações sobre políticas educacionais, que foi o resultado inicial


desse levantamento de produções, mas sabendo que muitos outros materiais
fazem parte dessa discussão, visto que se restringiu em considerar apenas as
produções dos últimos cinco anos. Portanto, a diversidade de temas registrados
é um indicador de avanços da área, sinalizando o progressivo amadurecimento
par

acadêmico, científico e profissional, consolidando essa temática, no Brasil.


Assim, têm-se como resultado apenas produções brasileiras, sendo que
Ed

a origem do trabalho não foi um critério de inclusão e exclusão para análise.


Relacionado a esse resultado, julgamos que o levantamento foi realizado não
ão

apenas com a intenção de obter resultados de diálogos e/ou teorias desen-


volvidas, mas, também, ter acesso aos diferentes enfoques e caminhos já
percorridos por pesquisas sobre psicologia e política educacional. Pretende-se
s

que este trabalho estimule o desenvolvimento de estudos sobre o mapeamento


ver

de fontes ainda não divulgadas academicamente, assim como a análise sobre


a constituição das políticas educacionais relacionada com a psicologia, sua
produção e a sua contribuição para o aprofundamento teórico e metodológico
da psicologia.

Flávia Lemos - 21982.indd 350 28/02/2020 13:13:37


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 351

REFERÊNCIAS
Azevedo, J. M. L. de, & Aguiar, M. A. da S. (2001). Políticas de educação:
concepções e programas. In: Wittmann, L. C. & Gracindo, R. V. (Org.). O
estado da arte em política e gestão da educação no Brasil (1991-1997). Bra-
sília: ANPAE; Campinas, SP: Autores Associados.

or
Barreyre, J. Y., Bouquet, B., Chantreau, A., & Lassus, P. (Org.). (2006). Nou-

od V
veau dictionnaire critique d’action sociale. Paris: Bayard.

aut
Bisinoto, C., & Marinho_Araujo, C. M. (2014). Sucesso acadêmico na edu-

R
cação superior: contribuições da psicologia escolar. Revista Eletrônica de
Psicologia, Educação e Saúde. 1. ano. 4, Disponível em: https://revistaepsi.

o
com/artigo/2014-ano4-volume1-artigo2/ . Acesso em: 20 jul. 2018.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Bittencourt, E. de S. (2017). Políticas de educação na atualidade como desdo-


bramento da constituição federal e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
In Moraes, B. M. de., Gonçalves, C. F., Vicente, D. da S., & Julião, E. F.
Políticas públicas de educação. (pp. 29-42). Rio de Janeiro, RJ: Ministério
visã
Público do Estado do Rio de Janeiro; Universidade Federal Fluminense.

Brasil. (2004). Constituição da República Federal do Brasil: Texto consti-


itor

tucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas


a re

pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 44/2004 e pelas Emendas Consti-


tucionais de Revisão nos 1 a 6/94. – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria
de Edições Técnicas.

Brasil. (2007). Resolução CNE/CES 8/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais


par

para os cursos de Psicologia. Diário Oficial da União, Brasília. Disponível


em: http://portal. mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rces08_04.pdf. Acesso em:
Ed

23 jul. 2018.

Brasil. (1996). Congresso Nacional. Lei Federal n°.: 9.394/96 das Diretrizes
ão

e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF.

Coimbra, C. (1995). Os guardiões da ordem: uma viagem pelas práticas psi


s

no Brasil do “Milagre”. Rio de Janeiro, RJ: Oficina do autor.


ver

Conselho Federal de Psicologia - CFP (2013). Referência técnicas para atua-


ção de psicólogas(os) na educação básica. Brasília, DF: CFP. Disponível em:
https://site.cfp.org.br/documentos/confira-o-novo-codigo-de-etica-profissio-
nal-do-psicologo/. Acesso em: 20 jun. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 351 28/02/2020 13:13:37


352

CORDE∕SDH∕Brasil. (2007). Convenção sobre os direitos da pessoa com


deficiência e protocolo facultativo à convenção sobre os direitos da pessoa
com deficiência. Brasília, DF: SICORDE.

Côrtes, S. V. (2007). Viabilizando a participação em conselhos de política


pública municipais: arcabouço institucional, organização do movimento
popular e policy communities. In Hochman, G., Arretche, M., & Marques, E.

or
(Orgs.). Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Editora FIOCRUZ.

od V
aut
Cunha, L. A. (1980). Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de
Janeiro, RJ: F. Alves.

R
Ferreira, N. S. (2002). As pesquisas denominadas “estado da arte”. Educa-

o
ção & Sociedade, 79, 257-272. Disponível em: http://www.scielo.br/ scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302002000300013&lng=pt &nrm=i-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


so&tlng=pt. Acesso em: 22 jul. 2018.

Góes, F. T., & Machado, L. R. de S. (2013). Políticas educativas, intersetoria-


visã
lidade e desenvolvimento local. Educação & Realidade, 38(2), 627-648. Dis-
ponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S2175-62362013000200016. Acesso
em: 27 jul. 2018.
itor

Guzzo, R. S. L. (2015). Critical psychology & American continent: From


a re

colonization and domination to liberation and emancipation. In Parker, I.


(Org.), Handbook of critical psychology (pp. 406-414). New York, NY:
Routledge.
par

Guzzo, R. S. L. (2008). Formando psicólogos escolares no Brasil, dificulda-


des e perspectivas. In Wechsler, S. M. (Org.). Psicologia escolar: pesquisa,
Ed

formação e prática. (3ª ed., pp. 75-91). Campinas, São Paulo: Editora Alínea.

Guzzo, R. S. L., & Wechsler, S. M. (2001). O psicólogo escolar no Brasil:


ão

padrões, práticas e perspectivas. In Guzzo, R. S. L., Almeida, L. da S., &


Wechsler, S. M. (Org.). Psicologia escolar: padrões e práticas em países
s

de língua espanhola e portuguesa. (pp. 40-46). Campinas, São Paulo: Edi-


ver

tora Alínea.

Kassar, M. C. M. (2004). Integração∕Inclusão: desafios e contradições. In


Baptista, C. R, & Beyer, H. O. (Orgs.). Inclusão e escolarização: múltiplas
perspectivas. Porto Alegre, RS: Mediações.

Flávia Lemos - 21982.indd 352 28/02/2020 13:13:37


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 353

Laplane, A. L. F. (2004). Notas para uma análise dos discursos sobre inclusão
escolar. In Góes, M. C. R., & Laplane, A. L. F. (Orgs.). Políticas e práticas
de educação inclusiva. Campinas, SP: Autores Associados.

Machado, A. M. (2003). Os psicólogos trabalhando com a escola: intervenção


a serviço do quê?. In Meira, M. E. M. & Antunes, M. A. M (Org.). Psicologia
escolar: práticas críticas. (pp. 63-85). São Paulo, SP: Casa do psicólogo.

or
od V
Marinho-Araujo, C. M., & Neves, M. M. B. J. (2007). Psicologia escolar:

aut
perspectivas e compromissos com a formação continuada. In Campos, H.
R. (Org.), Formação em psicologia escolar: realidades e perspectivas. (pp.

R
69-87). Campinas, São Paulo: Editora Alínea.

Nardi, E. L. (2018). Gestão democrática do ensino público na educação básica:

o
dimensões comuns e arranjos institucionais sinalizados em bases normativas
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de sistemas municipais de ensino. Educar em Revista, 34(68), 123-136. Dispo-


nível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010440602018000200123&s-
cript=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 26 jul. 2018.
visã

Novaes, M. H. (2008). Perspectivas para o futuro da psicologia escolar. In


Wechsler, S. M. (Org.). Psicologia escolar: pesquisa, formação e prática.
Campinas, São Paulo: Editora Alínea.
itor
a re

Romagnoli, R. C. (2016). Relações macropolíticas e micropolíticas no


cotidiano do CRAS. Psicologia & Sociedade, 28(1), 151-161. Disponível
em: https://dx.doi.org/10.1590/1807-03102015v28n1p151. Acesso em: 25
jul. 2018.
par

Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre


Ed

liberdade e transformação social. Psicologia e Sociedade, 21,(3), 364-372.


Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v21n3/a10v21n3.pdf. Acesso
em: 18 jul. 2018.
ão

Senhoras, E. M., Silva Neto, T. A. (set. 2014). Diplomacia e paradiplomacia


s

educacional brasileira no contexto da ciência, tecnologia e inovação. Boletim


ver

Mundorama, 1-2, Disponível em: http://www.mundorama.net/2014/09/06/


diplomacia-e-paradiplomacia-educacional-brasileira-no-contexto-da-ciencia-
-tecnologia-e-inovacao-por-eloi-martins-senhoras-tercio-araujo-da-silva-neto/.
Acesso em: 29 jul. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 353 28/02/2020 13:13:37


354

Souza, C. (2007). Estado da arte da pesquisa em políticas públicas. In


Hochman, G., Arretche, M., & Marques, E. (Orgs.). Políticas públicas no
Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Editora FIOCRUZ.

Souza, M. P. R. de., Yamamoto, K., & Galafassi, C. (2014). Atuação do psicó-


logo na rede pública de educação em sete estados brasileiros: caracterização,
práticas e concepções. In Souza, M. P. R. de., Silva, S. M. C. da., & Yamamoto,

or
K. (Org.). Atuação do psicólogo na educação básica: concepções, práticas e

od V
desafios. (pp. 223-256). Uberlândia, MG: EDUFU.

aut
Souza, M. P. R. de. (2010). Psicologia Escolar e políticas públicas em Edu-
cação: desafios contemporâneos. Em Aberto, 23,(83), 129-149. Brasília,

R
DF. Disponível em: http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/
view/2255/2222. Acesso em: 20 jul. 2018.

o
aC
Zanin, N. Z., Silva, I. M. M., & Cristofoli, M. S. (jan./mar. 2018). Espaços

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


escolares indígenas no Brasil: políticas, ações e atores envolvidos. Educação
& Realidade, Porto Alegre, 43(1), 201-222. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.1590/2175-623662535. Acesso em: 26 jul. 2018.
visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 354 28/02/2020 13:13:37


CONTROVÉRSIAS HISTORIOGRÁFICAS
EM TORNO DO INSTITUTO DAS
ELEIÇÕES DIRETAS NAS ESCOLAS41

or
V
Glaybe Antônio Sousa Pimentel

aut
Luiz Miguel Galvão Queiroz
Paulo Sérgio de Almeida Corrêa

1. Introdução
CR
do
No Brasil, a implementação da gestão democrática e das eleições diretas
nas escolas públicas é fenômeno muito recente. Todavia, nos anos de 1990,
ganhou notoriedade no campo científico e nas reivindicações dos movi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
mentos sociais, o que resultou em sua expansão para diversas Unidades
Federadas do Brasil, tanto nas Capitais, quanto nos espaços Municipais
ra
(PARO, 1996, p. 377).
Atualmente o tema das eleições diretas nas escolas provoca muitos confli-
i
rev

tos e impasses e, com isso, diversas legislações foram aprovadas e sancionadas


pelos Chefes do Executivo, de modo a regulamentar esse fenômeno. Porém,
são frequentes as controvérsias flagradas dos textos normativos.
to

Informações extraídas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,


no ano de 2014, revelam que a indicação política de diretores das escolas públi-
ara

cas atingiu o percentual de 74% das cidades brasileiras. De um total de 5.570


ver di

municípios existentes à época, havia uma parcela de 4.146 em que o poder


público era responsável pela livre indicação dos ocupantes dessa função42.
Nota-se, que a escolha democrática, via processo eletivo, dos diretores
op

e vice-diretores das escolas públicas no Brasil, não é unanimidade e ainda


E

está massivamente subordinada à interferência do Chefe do Poder Executivo,


o qual realiza o preenchimento dessas vagas, preferencialmente, mediante a

livre nomeação.
41 Este artigo científico derivou da pesquisa CONTROVÉRSIAS E INCONSTITUCIONALIDADES SOBRE
O INSTITUTO DAS ELEIÇÕES DIRETAS PARA ESCOLHA DE DIRETORES DAS ESCOLAS PÚBLICAS
NO BRASIL, desenvolvida entre os meses de setembro de 2017 a maio de 2018, por ocasião do trabalho
docente na Disciplina História da Educação Brasileira e da Amazônia, ofertada no Curso de Licenciatura
Plena em Pedagogia da Faculdade de Educação do Instituto de Ciências da Educação, no 3º Período do
Calendário Acadêmico da Universidade Federal do Pará.
42 74% das cidades usam só indicação política para nomear diretor de escola. Nomeação por livre esco-
lha do poder público é comum na rede municipal. Governo federal quer priorizar outras formas de seleção
para o cargo. <http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/08/74-das-cidades-usam-so-indicacao-politica-
-para-nomear-diretor-de-escola.html>. Acesso em: 21 nov. 2017.

Flávia Lemos - 21982.indd 355 28/02/2020 13:13:38


356

Nos dias atuais, está-se diante de um impasse quanto à forma adotada


para escolha do diretor e vice-diretor das instituições escolares públicas bra-
sileiras: deve resultar de lei que o autorize, da realização de concurso público
para provimento dessas funções, ou é uma opção designativa, cuja indicação
depende da vontade de quem esteja no efetivo exercício do Poder Executivo,
seja ele em nível do Distrito Federal, das Unidades Federadas ou Municípios?
Tornou-se relevante investigar as dimensões históricas e atuais desse

or
fenômeno no contexto nacional brasileiro. Logo, considerando-se os escri-
tos de autores implicados com a historiografia educacional brasileira, quais

od V
são as controvérsias das quais se revestem o tema das eleições diretas nas

aut
escolas públicas?
Esta pesquisa foi conduzida com apoio na leitura de parte da produção

R
científica existente sobre o assunto, colhida a partir de busca dos textos na
internet, ocasião em que foram acessados trabalhos em diversos veículos,

o
tais como: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, REALIZ Editora; na
aC
ANPAE, o XXIV Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educa-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ção III Congresso Interamericano de Política e Administração da Educação;
o IV Fórum Internacional de Pedagogia; a RBPAE; uma Dissertação (Mes-
trado) defendida na Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da
visã
Educação, Belém, 2017, Programa de Pós-Graduação em Educação; o 26º
Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação – ANPAE; e
a 23ª Reunião Anual da ANPEd.
No exame dessa produção teórica, o período definido para análise do
itor

objeto de estudo teve seu início no ano de 1996 e final em 2017. O início da
a re

série histórica decorre da data em que incidiu a produção bibliográfica mais


antiga acionada como referência analítica, enquanto o termo final fora fixado
em razão da pesquisa mais recente sobre a temática examinada neste trabalho.
Desse modo, definiu-se como objetivo desta pesquisa identificar as prin-
par

cipais controvérsias sobre as eleições diretas para escolha de diretor escolar,


apontadas pelos autores da historiografia educacional brasileira.
Ed

2. Gestão democrática e qualidade do ensino


na historiografia educacional
ão

Uma análise da produção existente na historiografia educacional brasi-


leira, demonstra o quanto o estudo acerca do instituto das eleições diretas nas
s

escolas tem sido debatido em conexão com a gestão democrática e a qualidade


ver

do ensino na educação básica. Basta verificar os trabalhos desenvolvidos


por: Paro (1996), Freitas et al. (2012), Silva (2000), Santos; Prado (2013),
Medeiros (2006), Maia; Manfio (2010), Oliveira (2017).
Entre os anos de 1996 a 2017, portanto, a historiografia educacional
tematizou de forma recorrente o instituto das eleições diretas para escolha

Flávia Lemos - 21982.indd 356 28/02/2020 13:13:38


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 357

dos diretores das escolas públicas no Brasil. Logo, o exame de um fragmento


dessa opulenta literatura foi o que consubstanciou nosso estudo.
Dos autores e trabalhos selecionados para compor a amostra
A utilização da internet foi fundamental à captura dos trabalhos que
serviram de apoio a este estudo. Mediante a operação de busca, chegou-se à
composição dos autores e trabalhos expressos no quadro abaixo:

or
Quadro 2 – Autoria, Trabalhos e Veículos de circulação da produção científica

od V
Ano da
Autores Título da produção Veículo de circulação

aut
publicação
Eleições Diretas para
FREITAS, Priscila Alves de; In: IV Fórum Internacional de
Diretores Escolares:
ALEXANDRE, Francisca Pedagogia, Parnaíba- Piauí. A
Romelha; SILVA, Ciclene Ales
da.Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte UERN
R
o caminhar da
democracia no interior
da escola pública
pesquisa na graduação: emancipação 2012
humana, práxis docente, trabalho e
educação.

o
brasileira.
In: Maria Beatriz Luce e Isabel Letícia
MEDEIROS, Isabel Letícia
aC
Gestão democrática e Pedroso de Medeiros. (Org.). Gestão
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Pedroso de.
escolha do diretor de Escolar democrática: concepções e 2006
Secretaria Municipal de
escola. vivências. Porto Alegre: Editora da
Educação de Porto Alegre
UFRGS.
O Instituto das eleições Dissertação (Mestrado) -
OLIVEIRA, Patrícia Soraya
visã
diretas para diretor de Universidade Federal do Pará,
Cascaes Brito de.
escolas municipais da Instituto de Ciências da Educação, 2017
Universidade Federal do Pará
Região Metropolitana Belém, 2017. Programa de Pós-
UFPA
de Belém. Graduação em Educação.
Eleição de Diretores
PARO, Vitor Henrique.
itor

de Escolas Públicas: R. bras. Est. pedag., Brasília, v.77,


Universidade de São Paulo 1996
avanços e limites da n.186, p. 376-395, maio/ago.
a re

(Usp)
prática.
SANTOS, Javan Araújo Gestão democrática In: 26º Simpósio Brasileiro de
dos; PRADO, Edna Cristina do. & eleição de diretores Política e Administração da
2013
Universidade Federal de escolares nos Educação - ANPAE, 2013, Recife/PE.
Alagoas – UFAL municípios alagoanos. Comunicações Orais G-J, v. 14.
Escolha de dirigentes
par

In: 23ª Reunião Anual da ANPEd,


SILVA, Marcelo Soares Pereira escolares em Minas
2000, Caxambu. Anais da 23ª
da.Universidade Federal de Gerais: trajetória 2000
Reunião Anual da ANPEd, 2000. v. 1.
Uberlândia histórica, impasses e
Ed

p. 191-192.
perspectivas.
MAIA, Graziela Zambão
Abdian; MANFIO, Aline.
Universidade Paulista, UNIP-
ão

O provimento do cargo
campus de Assis.
de gestor escolar e a Revista Brasileira de Política e
Secretaria Municipal de
qualidade de ensino: Administração da Educação - RBPAE 2010
Educação de Assis. Membro
análise de publicações – v.26, n.3, p. 477-494, set./dez.
do Conselho Municipal de
s

nacionais (1990-2005).
Educação de Assis como
ver

representante do ensino
superior privado.

Iria Brzezinski Eleições de diretores XXIV Simpósio Brasileiro de Política


Universidade Católica de Goiás para as escolas e Administração da Educação III
- UCG estaduais de Goiás: Congresso Interamericano de Política 2009
Orita de S. Medrado da Mata CEE/GO e SINTEGO e Administração da Educação
Faculdades Padrão inimigos ou aliados? ANPAE

Flávia Lemos - 21982.indd 357 28/02/2020 13:13:38


358

Os autores dos trabalhos estão vinculados a diferentes instituições, sendo


que 9 deles pertencentes a Universidades (Estadual, Católica, Privada e Fede-
ral), 1 deles atua em Faculdade, 1 era estudante de pós-graduação (Mes-
trado), 1 pertence ao quadro docente da Secretária Municipal de Educação de
Porto Alegre, e 1 está ligada à Secretaria Municipal de Educação de Assis (SP).
A sequência relacionada à publicação dos trabalhos, segundo sua cro-
nologia, ficou assim constituída: 1996, 2000, 2006, 2009, 2010, 2012, 2013,

or
e 2017. Entre 2000-2010, deu-se a publicação de 4 trabalhos, o que represen-
tou 50% da amostra, enquanto no intervalo 2012-2017, houve o acúmulo de 3,

od V
atingindo a média de 37,5%. Considerando-se tais incidências, verificou-se

aut
que no contexto do ano 2000 em diante, ampliou-se o interesse investigativo
sobre o assunto das eleições diretas nas escolas, seja sob a forma de trabalhos

R
apresentados em eventos ou configurados como artigos, capítulo de livro
ou dissertações.

o
Dentre o total dos 8 trabalhos escolhidos, estão representados 13 autores,
aC
sendo que 10 deles constituídos por mulheres (76,92%) e 3 do sexo masculino

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(23,07%). A historiografia educacional abordando a temática das eleições dire-
tas na escola, conta com atuação das mulheres no protagonismo das produções
científicas, mas os homens também participam na contabilidade dos escritos.
visã
No âmbito da coautoria, 4 trabalhos (30,76%) foram realizados em par-
ceria, reunindo 9 autores, sendo que apenas um (7,69%) deles contou com a
presença masculina, e nos demais houve identificação de 8 mulheres (88,88%).
itor

Um total de 4 autores optaram pela autoria individual dos trabalhos, tendo


ocorrido dois casos para o sexo feminino (50%) e, na mesma proporção, deu-
a re

se a incidência masculina (50%).


A partir do exame dos títulos dos trabalhos, percebeu-se que o instituto
das eleições diretas nas escolas ganhou visibilidade e se consolidou enquanto
objeto de estudo na produção científica expressa na historiografia educacio-
par

nal, sobretudo a partir do ano de 2000, momento em que se intensificaram


as investigações provenientes de diferentes instituições e regiões do Brasil.
Ed

Diante desse panorama, obtivemos uma amostra que se dispersa por diferentes
Regiões do território brasileiro: Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste.
São 4 os tipos de veículos por onde circularam os trabalhos objeto deste
ão

estudo: Eventos, Artigo em Periódico, Capítulo de Livro, Banco de Disser-


tações e Teses. No primeiro caso, houve publicação de 4 trabalhos, dissemi-
nados nos espaços do IV Fórum Internacional de Pedagogia, Parnaíba- Piauí.
s

A pesquisa na graduação: emancipação humana, práxis docente, trabalho e


ver

educação, ocorrido no ano de 2012; do 26º Simpósio Brasileiro de Política e


Administração da Educação – ANPAE, 2013, Recife/PE; da 23ª Reunião Anual
da ANPEd, 2000, Caxambu. Anais da 23ª Reunião Anual da ANPEd, 2000;
e do XXIV Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação III
Congresso Interamericano de Política e Administração da Educação – ANPAE.

Flávia Lemos - 21982.indd 358 28/02/2020 13:13:38


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 359

Houve a circulação de 1 Capítulo de Livro e de 2 Artigos em Periódicos,


sendo um deles veiculado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, e
outro oriundo da Revista Brasileira de Política e Administração da Educação.
De outra parte, identificamos a presença de uma Dissertação proveniente do
Banco de Dissertações e Teses, do Programa de Pós-Graduação em Educação,
do Instituto de Ciências da Educação, da Universidade Federal do Pará.
Assim, 50% dos estudos tiveram suas exposições e discussões em Fórum,

or
Simpósio, Reunião Anual, Congresso. Outros 25% foram atribuídos aos Arti-

od V
gos Científicos, enquanto 12% foi a representatividade do Capítulo de Livro e

aut
com esse mesmo valor percentual a Biblioteca Digital de Dissertações e Teses.
Portanto, os trabalhos são provenientes de veículos com grande inserção
social no meio da comunidade científica, logo, desfrutam de reconhecimento

R
e prestígio junto aos pesquisadores e estudiosos dos diversos assuntos propa-
gados nesses dispositivos adotados para publicação.

o
aC
3. Aspectos controversos no instituto das eleições diretas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Para efeito da análise nesta subseção, os textos foram examinados con-


forme a cronologia de sua publicação, de modo a perceber a evolução his-
visã
tórica de algumas das principais controvérsias ressaltadas pelos autores dos
estudos realizados.
Estudo histórico feito por Paro (1996), demonstrou “alguns limites da
itor

experiência eletiva nas escolas, bem como discutir aspectos relacionados


a re

ao impacto das eleições sobre o papel desempenhado pelo diretor e sobre a


prática democrática na gestão da escola pública”.
Os limites operacionais, decorrentes da adoção das eleições diretas na
realidade das escolas brasileiras, segundo Paro (Op. Cit.), estariam projeta-
par

dos em três eixos analíticos: o sistema eletivo; a nova situação do diretor; e


a democracia na escola.
Ed

Quanto ao sistema eletivo, as eleições teriam contribuído com a diminui-


ção ou eliminado por completo as influências de agentes políticos na nomeação
dos diretores, mas o clientelismo não deixou de ter influência nas escolas;
ão

as práticas clientelistas e as influências político-partidárias passaram a fazer


parte também do interior da própria escola; por meio de sua experiência os
agentes políticos também cometem assédio para burlar as regras instituidoras
s

da eleição e interferir nos resultados; o pessoal escolar ainda está marcado


ver

por posturas clientelistas e busca contrapartida no processo eleitoral; como


também a falta de participação dos segmentos escolares na distribuição do
poder; diretivismo e autoritarismo do diretor; resistência de professores e
diretores em aceitar os Grêmios Estudantis; a eleição de diretores não está
imune ao corporativismo, por parte dos grupos que interagem na escola; a

Flávia Lemos - 21982.indd 359 28/02/2020 13:13:38


360

escolha de diretores pelo voto é uma oportunidade de jogar sobre os ombros


do diretor toda a responsabilidade que envolve a prática escolar.
E prossegue o autor demonstrando que sobre a nova situação a que fora
exposto o diretor, tem-se que ocorrem dificuldades para terem acesso a órgãos
centrais, pois ele se movimenta entre os interesses do Estado e as reivindi-
cações da escola; ele se percebe em meio a situações contraditórias porque
passa a ser cobrado por quem o elegeu; exige melhor tratamento dos governos

or
em relação aos movimentos grevistas; a escola e o diretor ainda são frágeis

od V
no poder de barganha frente ao Estado; a eleição de diretor tem permitido o

aut
acesso ao cargo a um novo contingente de professores que, pelo critério da
nomeação clientelista, dificilmente viriam a se tornar dirigentes escolares; a
dimensão pedagógica ganha maior visibilidade nas ações do diretor.

R
Com relação à democracia na escola, as eleições passaram a mobilizar
vários setores; isto resultou em maior consciência política do pessoal escolar

o
e dos usuários da escola; a eleição tem sido privilegiada enquanto critério
aC
de escolha dos diretores, uma vez que a participação trouxe maior controle

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


democrático do Estado, por parte dos usuários de seus serviços; ainda que o
impacto das eleições na escola tenha ficado abaixo do esperado, houve maior
consciência dos direitos e deveres, e por isso a prática democrática deu nova
visã
qualidade aos rumos das ações no interior da escola.
Silva (2000), ao estudar o processo de escolha de dirigentes escolares
ocorrido em Minas Gerais, pontuou aspectos históricos, mas também identi-
itor

ficou muitos impasses dele decorrentes.


a re

Os resultados da pesquisa acima referida, expuseram que as eleições


diretas nas escolas padecem de vários limites, dentre os quais: as barreiras
interpostas pelos Governadores para encaminhar Projeto de Lei; os impasses
gerados entre os Deputados Estaduais ocupantes dos cargos na Assembleia
Legislativa e a morosidade no trâmite, análise e aprovação da lei; os embates
par

entre Governadores, Deputados e o Sindicato dos Trabalhadores da educação;


Ed

estes últimos, defendem a escola púbica, de qualidade e democrática, bem


como que a escolha do diretor ocorra com a participação da comunidade, uma
vez que a eleição direta representa uma experiência inovadora no campo da
ão

educação; ainda prevalecia o entendimento de que a escola pública se consti-


tuía espaço para viabilizar práticas do clientelismo político; embora o instituto
das eleições diretas nas escolas tenha sido previsto no texto da Constituição do
s

Estado de Minas Gerais de 1989, sua regulamentação ocorreu no ano de 1991,


ver

e as eleições transcorreram em 1993, 1996 e 1999; além disso, ainda perma-


necem no interior das instituições educativas práticas e discursos autoritários.
Na investigação de Medeiros (2000), a escolha de diretor também foi
alvo das análises, deixando evidente que a gestão educacional se dá em meio a
mecanismos formais e práticas cotidianas envolvendo os atores sociais. Assim,

Flávia Lemos - 21982.indd 360 28/02/2020 13:13:38


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 361

são considerados instrumentos essenciais da gestão democrática: processos


de construção e gestão participada das políticas educacionais; a existência
de conselhos com representação de diferentes segmentos sociais (em nível
de sistema e de escola) com caráter deliberativo e fiscalizador; participação
da comunidade escolar na escolha do diretor de escola; além da garantia e
descentralização de recursos financeiros públicos.
Medeiros (Op. Cit.), ressalta ainda que a escolha de diretor das escolas no

or
Brasil, assume diferentes tipificações: nomeação pelo poder público; concurso

od V
público; eleição; esquema misto. A eleição seria a forma mais democrática,

aut
devido possibilitar a participação da comunidade e por isso defende que a
mesma precisa ser articulada a processos de democratização com participação
direta na escolha, no planejamento e organização da instituição. Contudo, há

R
polaridades entre os defensores do concurso para provimento desse cargo e
aqueles que optam pela eleição. Nessa perspectiva, destaca:

o
aC
Os defensores do concurso público apontam muitas fragilidades nos pro-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

cessos organizados através de eleição: despreparo e desconhecimento dos


candidatos acerca das tarefas inerentes ao cargo; desqualificação nas cam-
panhas eleitorais, com promessas corporativas, populistas e clientelistas;
visã
disputa e cisão do coletivo docente, que pessoaliza o debate e é incapaz de
agregar-se em torno do projeto vitorioso, após às eleições. Por outro lado,
os defensores da eleição, ainda que reconhecendo como pertinentes todas
essas críticas, creditam os problemas à debilidade da cultura democrática,
itor

ou seja, é a falta de democracia que produz esses problemas, que tendem


a re

a ser superados com o tempo pelo próprio processo de enraizamento de


uma cultura democrática (p. 3).

No caso específico de Porto Alegre, a eleição direta de diretor resultou


par

de Projeto de Lei convertido em Lei sancionada e regulamentada, e da inter-


ferência do poder executivo e legislativo municipal, e contou com a efetiva
Ed

participação dos trabalhadores da educação que passaram a fomentar políti-


cas de democracia participativa na composição do orçamento, planejamento
e controle mediante atuação dos Conselhos e do cidadão na gestão. Trouxe
ão

nova correlação de força e perfil dos candidatos, com impacto, sobretudo, na


hegemonia do docente que desfrutavam de voto universal.
Medeiros (Idem.), percebeu que as escolhas dos diretores ainda seguem
s

práticas corporativas, clientelistas, populistas, mescladas em arranjos de lin-


ver

guagem ambígua que incorporam novos elementos. São identificadas gestões


que buscam promover a eficácia administrativa, outras comprometidas com
a defesa de uma escola como espaço cultural da comunidade, como havia
movimentos contraditórios fazendo mescla das duas tendências. A formação
dos gestores promovida pela Secretaria de Educação, consistia em estratégia

Flávia Lemos - 21982.indd 361 28/02/2020 13:13:38


362

para coibir a ocorrência do clientelismo, corporativismo, e o descumprimento


da lei. Isto significa que o processo eleitoral para escolha dos dirigentes esco-
lares, contribuiu para dar evidência à função do diretor como indispensável
na arena político-administrativo-pedagógica da escola e do próprio sistema.
Destaca ainda Medeiros (Idem.), que no processo de realização da elei-
ção direta na escola, a participação do Estado é essencial para consolidar o
processo, sendo esse um mecanismo capaz de permitir o envolvimento dos

or
gestores com as comunidades. Contudo, isoladamente, a eleição não seria

od V
suficiente para assegurar a democracia, porém eleva o exercício da educa-

aut
ção para a cidadania, para a democracia e na democracia. Assim, é para o
Projeto Político-Pedagógico e a gestão democrática que devem convergir os
interesses dos diversos setores envolvidos na organização e funcionamento
de cada unidade escolar.
R
No caso das escolas estaduais de Goiás, Brzezinski e Mata (2009) des-

o
tacam que as eleições diretas nas escolas resultaram de lutas sociais que
aC
impulsionaram governos estaduais e municipais a propor sua efetivação como

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


forma de consolidar a democracia no contexto da Nova República, sendo
uma forma de combater as práticas ditatoriais disseminadas pelo Regime
Militar pós-1964, no Brasil. Assim, o processo se equipara a um movimento
visã
pendular com pelo menos três formas de escolha do diretor: eleições diretas,
indicação política, e a indicação feita pelo partido político. Por outro lado, as
mudanças de governos influenciam a realização ou não das eleições diretas,
itor

comprometendo a gestão democrática das escolas.


a re

Brzezinski e Mata (2009) reconhecem que as eleições diretas nas escolas


são componentes importantes para que se promova a gestão democrática,
com impacto na redução do poder de mando dos políticos e dos partidos na
indicação dos gestores, mas isto não é suficiente para assegurar a plenitude
do exercício democrático nas instituições escolares. Além do diretor, vice-
par

diretor, secretário, os conselhos escolares e grêmios estudantis são essenciais


Ed

nesse processo.
Embora alunos e pais representem a maioria na comunidade apta a votar
nos pleitos eleitorais para escolha de diretores, os trabalhadores da educação
ão

são os eleitores com maior média percentual do registro de comparecimento.


Por mais que algumas escolas não tenham atingido o valor necessário para
validar as eleições realizadas, houve casos em que os eleitos foram devida-
s

mente empossados. Verificou-se, portanto, que a gestão democrática, participa-


ver

tiva e colegiada, requer a participação de todos os segmentos na formulação do


Projeto político-pedagógico, bem como a educação atual demanda uma outra
concepção de organização do trabalho educativo, onde a democracia, auto-
nomia, participação, responsabilidade, elaboração do projeto pedagógico da
instituição escolar e do controle social dos investimentos públicos realizados.

Flávia Lemos - 21982.indd 362 28/02/2020 13:13:39


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 363

Em estudo historiográfico que abrangeu os anos de 1990 a 2005, Maia e


Manfio (2010) analisaram a forma de provimento do cargo de gestor escolar
e sua relação com a qualidade do ensino. Ficou evidenciado na produção
bibliográfica consultada, que não existe consenso sobre o tipo de procedimento
de escolha do gestor escolar (se eleição direta, concurso, ou esquema misto),
porém, grande parte dos trabalhos indica a importância de realização das
eleições diretas, uma vez que ela implicará na democratização da gestão e na

or
qualidade do ensino. Todavia, deve-se assegurar a participação da comunidade

od V
nas tomadas de decisões e na escolha dos dirigentes.

aut
Na pesquisa de Freitas, Alexandre e Silva (2012), a eleição de diretores
das escolas foi percebida enquanto fenômeno resultante de processo democrá-
tico com impacto positivo no desenvolvimento educacional, mas isso não basta

R
para instaurar melhorias na qualidade total dos diversos processos educativos
envolvendo o ensino-aprendizagem. Defendem que no Estado representativo,

o
tal como ocorre no do Brasil, a participação popular é fundamental ao exercí-
aC
cio da democracia, particularmente da gestão escolar, uma vez que os espaços
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

escolares precisam funcionar como promotores da democracia.


As eleições diretas para diretores, são expressões de lutas sociais pela
democratização do espaço escolar. Além disso, representariam a constru-
visã
ção de uma cultura da inclusão da comunidade nas decisões das instituições
educativas; logo, acultura democrática participativa se opõe à verticalização
hierárquica, evitando-se a concentração do poder, já que a escola deve fun-
itor

cionar segundo os pressupostos da democracia representativa. Por meio dessa


a re

forma de escolha dos gestores a comunidade passou a decidir sobre questões


pedagógicas, administrativas e financeiras, e impulsionou nos sujeitos o exer-
cício da livre cidadania.
Ressaltam que o processo eleitoral deve ser desvinculado da partidari-
zação, de modo a não correr o risco de priorizar os interesses do Estado em
par

detrimento aos da coletividade reunida na sociedade escolar, sendo o diálogo


Ed

essencial para se chegar ao consenso quanto às atitudes a serem democratica-


mente encaminhadas pela gestão escolar, visando a qualidade da educação,
do ensino-aprendizagem e das relações profissionais e interpessoais. Além da
ão

colaboração dos agentes estatais, deve-se fortalecer a participação dos pais,


alunos, professores e do corpo administrativo na equipe de trabalho coletivo,
de modo a viabilizar a gestão democrática nos processos educacionais.
s

Santos e Prado (2013) discorreram sobre a gestão democrática e a elei-


ver

ção de diretores escolares nos municípios alagoanos. Ponderam que a gestão


democrática auxilia a romper com práticas autoritárias e clientelísticas que
impedem a escola de construir um ambiente favorável à cultura democrática.
Embora a gestão democrática esteja prevista na Constituição Federal de 1988
e na Lei nº 9.394 de 1996, existem dificuldades e desafios que os Secretários

Flávia Lemos - 21982.indd 363 28/02/2020 13:13:39


364

de Educação enfrentam para tornar efetiva a participação de todos na demo-


cratização dos espaços escolares, tais como: o aumento nos processos de
democratização da gestão coexiste com número reduzido de sistemas e uni-
dades escolares democráticas; é preciso avançar na gestão democrática para
além da lei; a educação deve estar voltada à formação humana e a cidadania
de homens e mulheres capazes de decidir e participar da sociedade; a gestão
democrática das escolas públicas requer participação ativa da comunidade

or
sobre a educação e a escola; a gestão democrática implica em descentralização

od V
e autonomia das instituições escolares; deve-se inserir a comunidade na escola,

aut
a fim de que participe das decisões e na cultura organizacional da escola.
Embora a escolha dos diretores das escolas públicas ainda seja predo-
minantemente marcada pela indicação política, a eleição direta e a gestão

R
democrática constituem meios para promover a transformação social, já que
o diretor escolar também contribui com a consciência crítica dos educandos

o
e da comunidade escolar. Afinal, a eleição direta é apenas um meio para se
aC
efetivar a democracia, mas não é o único, portanto não se pode considerar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


como sinônimo de gestão democrática. Tanto a forma de escolha do diretor
e a participação dos atores envolvidos com a escola, são imprescindíveis à
consciência política, o que repercute na construção da gestão democrática e
visã
da qualidade do ensino ofertado.
Pesquisa recente desenvolvida por Oliveira (2017), abordou o instituto
das eleições diretas para diretor de escolas municipais da Região Metropo-
itor

litana de Belém, em período histórico que abrangeu os anos de 1980, 1990


a re

e 2000. Averiguou-se as conformações das eleições diretas instituídas em


nível federal, estadual e municipal, com destaque aos municípios situados na
Região Metropolitana de Belém/Pará. Existem formas diferentes adotadas para
preenchimento do cargo/função de diretor escolar, sofrendo grande interferên-
cia do poder político, daí porque a eleição direta é defendida como requisito
par

à democratização da escola pública, mas pode resultar em autoritarismo e


Ed

promoção de interesses pessoais e partidários, a depender de quem estiver


na ocupação do Poder Executivo. Fazer constar em lei as eleições diretas não
assegura a participação e tampouco a gestão democrática nas escolas, uma
ão

vez que é necessário romper om as estruturas autoritárias ainda vigentes e que


se projetam nas escolas, nas Secretarias de Educação, das esferas do Poder
Executivo, e da comunidade em geral.
s

As mudanças político-econômicas do Estado brasileiro, impulsionaram


ver

a gestão democrática, a participação e a autonomia na educação e nas ins-


tituições educativas, redesenhando as formas de gestão dos espaços escola-
res públicos.
Por mais que tenha sido uma conquista dos movimentos sociais em
defesa da educação pública, o instituto das eleições diretas para escolha do

Flávia Lemos - 21982.indd 364 28/02/2020 13:13:39


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 365

diretor, também tem servido enquanto estratégia para manipulação do poder,


impondo limites e revelando contradições à gestão democrática, uma vez que
a democracia representativa não garante a democracia participativa, pois ainda
predomina a indicação política, procedimento esse julgado incompatível com
o princípio da democratização da gestão escolar.

4. Conclusões

or
od V
O estudo da temática envolvendo as eleições diretas nas escolas, demons-

aut
trou que a historiografia educacional sobre o assunto abrange um longo período
histórico, o qual se estende desde os anos de 1960 até o ano de 2017, sendo
essa produção de autoria de pesquisadores de ambos os sexos, mas com pre-

R
dominância feminina e proveniente de instituições diversas.
A leitura e análise dessa produção, deixou evidente as diversas contro-

o
vérsias envolvendo o instituto das eleições diretas nas escolas, como foi o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

caso da promulgação da Constituição de 1988 e da atual Lei de Diretrizes e


Bases da Educação Nacional que nos termos da lei anunciam a gestão demo-
crática enquanto princípio, mas a realidade de várias Unidades Federadas
evidencia que houve longo tempo para que fossem criadas leis específicas
visã
visando regulamentar o processo de eleição para escolha dos diretores das
instituições escolares.
Além disso, tornou-se flagrante que o clientelismo e o corporativismo
itor

ainda permanecem nessas instituições, mesmo após a implementação da lei,


a re

uma vez que políticos continuam tendo ingerência e poder de interferência


na escolha dos diretores e as indicações políticas insistem em funcionar como
critério prioritário no momento de preencher esse cargo/função.
Existem polêmicas quanto à paridade ou não do voto entre os integrantes
par

da comunidade escolar, assim como há divergências em relação ao critério


de escolha do gestor, podendo, concurso público, processo eletivo, indicação
Ed

política ou misto, predominando na realidade brasileira a segunda forma.


Constatação importante foi o fato de que o processo eletivo não signifi-
cou a plena democratização, mas contribuiu para ampliar a participação nas
ão

tomadas de decisões, mobilizar pais, alunos, técnicos e docentes em torno do


Projeto Político Pedagógico das escolas públicas. Por sua vez, a temática elei-
ção direta tem sido associada à discussão da gestão democrática ou à qualidade
s

de ensino, contudo aquela sozinha não produz efeitos positivos sobre esta.
ver

Parte expressiva da produção examinada indica a existência de Unidades


Federadas e Municípios com maior lastro na realização dos processos eleti-
vos, enquanto outros apenas recentemente passaram a fazer constar em leis
suas previsões e regulamentações. Assim, as mudanças nas composições do
Poder Executivo, afetam o instituto das eleições diretas, pois a depender do

Flávia Lemos - 21982.indd 365 28/02/2020 13:13:39


366

Partido Político (ou coligação partidária) que esteja à frente, poderá defender
a consolidação ou impedir que ocorram os processos eletivos, inclusive com
perseguição aos desafetos e favorecimento aos seus aliados.
Embora os agentes envolvidos com a escola tenham ampliado seu poder
nas decisões em razão da gestão democrática representativa, a participação
ainda é um princípio a ser fortalecido, pois muitas vezes a manifestação da
comunidade escolar resulta de compromissos corporativistas envolvendo

or
políticos, diretores, alunos, pais, técnicos, professores e conselheiros, não

od V
visa ao interesse público em defesa da qualidade do ensino.

aut
O desenvolvimento deste estudo permitiu constatar a histórica luta dos
movimentos sociais a fim de instituir as eleições diretas nas escolas públicas
do Brasil. Todavia, somente nos anos de 1980 e 1990, tornaram-se efetivas em

R
diversas capitais do país. Dentre as Unidades Federadas eleitas para servir de
referência nesta pesquisa, Rio Grande do Sul é aquela em que esse processo

o
foi desencadeado há mais tempo, enquanto no Estado do Pará a aprovação
aC
da lei na Assembleia Legislativa, deu-se no ano de 2014 e em Minas Gerais

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


no ano de 2015.
Do ponto de vista teórico, os pesquisadores implicados com as elei-
ções diretas nas escolas enquanto objeto investigativo, ressaltam os embates
visã
históricos empreendidos pelos movimentos sociais em face da intervenção
dos Poderes Executivos na indicação dos diretores das escolas; também evi-
denciam que o concurso público, a indicação política e a eleição, constituem
itor

a tríplice forma adotada para alçar os gestores dessas instituições ao cargo/


a re

função comissionado; por outro lado, as análises expuseram de modo con-


tundente que a implementação das eleições diretas não rompeu com o ciclo
autoritário, clientelístico e populista presente na cultura escolar; além disso,
a possibilidade aberta para eleger os diretores das escolas oficiais, não teve
o efeito de melhorar o processo de ensino aprendizagem e a qualidade da
par

educação, e foi de pouca utilidade ao aprimoramento da democracia plena-


Ed

mente participativa, uma vez que se ateve a assegurar representatividade dos


segmentos da comunidade escolar na estrutura de poder vigente.
Se, de um lado, tem-se como vantajoso o esmero das lutas sociais no
ão

intuito de assegurar a legalidade dos processos de escolhas de diretores das


unidades escolares, de outro, no contexto dos anos de 1988 aos dias atuais,
a regulamentação do instituto das eleições diretas nas escolas já se revestia
s

de matéria extemporânea e marcada pelo anacronismo dessa pauta reivindi-


ver

catória, visto que, no mês de setembro do ano de 1988, quando ainda vigia
a outorgada Constituição do Brasil de 196743, o STF, pela primeira vez, com
43 Em pleno recesso do Congresso Nacional, que desde 13 de dezembro de 1968 estava impedido de funcionar,
tal Constituição sofreu Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, passando a matéria a ser
regulamentada na Seção VIII Dos Funcionários Públicos, no art. 97, §§ 1º e 2º.

Flávia Lemos - 21982.indd 366 28/02/2020 13:13:39


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 367

fundamento no art. 95, § 2º, decidiu sobre a inconstitucionalidade da escolha


de diretores mediante eleição direta com participação da comunidade esco-
lar, pois competia ao Chefe do Poder Executivo a liberdade para nomear ou
exonerar a qualquer tempo.
A pesar da existência desse julgamento na órbita do STF e da produção
de seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro, vários Estados pareciam
seguir na contramão da história e fizeram constar em suas normas (expressas

or
em Constituição Estadual, Lei, Decreto, Resolução) a realização do pleito

od V
eleitoral para escolher o ocupante do cargo de diretor, atribuindo-lhe forma

aut
jurídica mediante lei expressa.

R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 367 28/02/2020 13:13:39


368

REFERÊNCIAS
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Tramitação
do Projeto de Lei nº 811, de 2005. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.
br/propositura/?id=606927>. Acesso em: 21 nov. 2017.

or
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 74% das cidades
usam só indicação política para nomear diretor de escola. Nomeação por

od V
livre escolha do poder público é comum na rede municipal. Governo fede-

aut
ral quer priorizar outras formas de seleção para o cargo. <http://g1.globo.
com/educacao/noticia/2015/08/74-das-cidades-usam-so-indicacao-politica-

R
para-nomear-diretor-de-escola.html>. Acesso em: 21 nov. 2017.

o
______. Supremo Tribunal Federal – STF. Jurisprudências.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


______. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Jurisprudências.

BRZEZINSKI, Iria; MATA, Orita de S. Medrado da Mata. Eleições de dire-


visã
tores para as escolas estaduais de Goiás: CEE/GO e SINTEGO inimigos
ou aliados? XXIV Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educa-
ção III Congresso Interamericano de Política e Administração da Educação.
Direitos Humanos e Cidadania: desafios para as políticas públicas e a gestão
itor

democrática da educação. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro


a re

de Educação. Programa de Pós-Graduação (PPGE), nos dias 12, 13 e 14 de


agosto de 2009. Disponível em: <http://www.anpae.org.br/congressos_antigos/
simposio2009/143b.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2017.
par

FREITAS, Priscila Alves de; ALEXANDRE, Francisca Romelha; SILVA,


Ciclene Ales da. Eleições Diretas para Diretores Escolares: o caminhar da
Ed

democracia no interior da escola pública brasileira. In: IV Fórum Internacional


de Pedagogia, 2012, Parnaíba-Piauí. A pesquisa na graduação: emancipação
humana, práxis docente, trabalho e educação, 2012.
ão

MAIA, Graziela Zambão Abdian; MANFIO, Aline. O provimento do cargo


de gestor escolar e a qualidade de ensino: análise de publicações nacionais
s

(1990-2005). RBPAE – v. 26, n. 3, p. 477-494, set./dez. 2010.


ver

MEDEIROS, Isabel Letícia Pedroso de. Gestão democrática e escolha do


diretor de escola. In: Maria Beatriz Luce e Isabel Letícia Pedroso de Medeiros.
(Org.). Gestão Escolar democrática: concepções e vivências. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2006, v. , p. -.

Flávia Lemos - 21982.indd 368 28/02/2020 13:13:39


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 369

OLIVEIRA, Patrícia Soraya Cascaes Brito de. O Instituto das eleições dire-
tas para diretor de escolas municipais da Região Metropolitana de Belém.
2017. 249 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto
de Ciências da Educação, Belém, 2017. Programa de Pós-Graduação em
Educação. <http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8716>. Acesso em:
22 nov. 2017.

or
PARO, Vitor Henrique. Eleição de Diretores de Escolas Públicas: avanços e

od V
limites da prática. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 77, n. 186, p. 376-395,

aut
maio/ago. 1996.

SANTOS, Javan Araújo dos; PRADO, Edna Cristina do. Gestão democrática

R
& eleição de diretores escolares nos municípios alagoanos. In: 26º SIMPÓSIO
BRASILEIRO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO -

o
ANPAE, 2013, Anais... Recife/PE. Comunicações Orais G-J, 2013. v. 14.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

SILVA, Marcelo Soares Pereira da. Escolha de dirigentes escolares em Minas


Gerais: trajetória histórica, impasses e perspectivas. In: 23ª REUNIÃO
ANUAL DA ANPEd, 2000, Anais ... Caxambu, v. 1. p. 191-192.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 369 28/02/2020 13:13:40


Flávia Lemos - 21982.indd 370
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:40
AS INTERFACES ENTRE AS POLÍTICAS
PÚBLICAS E O CAMPO DA SAÚDE DO
TRABALHADOR: ressonâncias no presente

or
V
Anaclan Pereira Lopes da Silva

aut
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Laura Soares Martins Nogueira
Ana Carolina Secco de Andrade Mélou

CR
do
1. As Origens do campo da Saúde do Trabalhador:
contexto histórico e as Conferências Nacionais
de Saúde Mental – primórdios
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
A constituição do campo da Saúde do Trabalhador apresenta um imbrin-
camento com o momento histórico o qual o Brasil atravessou nos anos 1980,
ra
propiciado pela abertura política pós-ditadura de mais de vinte anos e o for-
i
talecimento da política sindical após anos de repressão. Neste cenário mais
rev

auspicioso, as reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras começaram a


ganhar espaço e as possibilidades de se pensar em políticas públicas voltadas
to

à saúde do trabalhador germinavam. Mais atrás, na década de 1970, indo


até a década de 1980, a área da saúde pública, com seu viés revolucionário
reconstruído pela resistência política aos eventos que estavam ocorrendo,
ara

aliava-se e dava potência ao campo da saúde do trabalhador, por reconhecer


ver di

nesta última área, a possibilidade de protagonismo dos trabalhadores e das


trabalhadoras na defesa de seus direitos.
Desta forma, as bases para a constituição do campo da saúde do trabalha-
op

dor apresentam raízes históricas associadas às mudanças no cenário político


E

brasileiro, assim como ao movimento de Reforma Sanitária que ocorria no


início dos anos 1980, que acabou por questionar os paradigmas da área da

saúde como um todo. Paralelamente, o movimento sindical se fortalecia,


assim como a academia começava a pesquisar este campo, junto com os
profissionais que atuavam na área da saúde. Muitas forças convergiram para
que transformações ocorressem no âmbito da saúde, dentre elas, o início do
debate da “saúde dos trabalhadores” para um círculo mais amplo, da reforma
do sistema de saúde.
Como reforça Oliveira & Vasconcellos (2000, p. 94):

Nos primeiros anos da década de 80, simultaneamente ao processo gra-


dual de distensão política, diversas iniciativas, no movimento sindical,

Flávia Lemos - 21982.indd 371 28/02/2020 13:13:40


372

no âmbito da academia e dos serviços de saúde [...] tentavam levar a


questão da saúde do trabalhador para o palco das discussões da reforma
do sistema de saúde.44

Houve marcos claros nessas conquistas rumo à formulação do projeto


de saúde do trabalhador que vamos delinear, passo a passo, com o intuito de
compreender essas etapas. Segundo Ramminger e Nardi (2007)45, o debate a

or
respeito da constituição de serviços voltados à saúde do trabalhador inseriu-
se no contexto mais amplo de discussão sobre saúde de forma mais extensa,

od V
fomentada mais detidamente a partir da I Conferência Nacional de Saúde

aut
Mental, realizada em 1987 no Rio de Janeiro que ocorreu após a VIII Con-
ferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, em 1986. Tais encontros,

R
vinham a cabo das necessidades que emergiam dos trabalhadores da área
da saúde de discutirem temas atrelados à sua prática laboral, às mudanças

o
econômicas e sociais que começavam a impactar na saúde dos trabalhadores
aC
e, principalmente, ao debate a respeito da saúde mental com relação ao tra-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tamento dispensado aos pacientes de então, em manicômios e com práticas
médicas questionáveis em termos de direitos humanos. Tais debates redun-
daram, posteriormente, no Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.
visã
Esta I Conferência estabelece um marco político na configuração da saúde
do trabalhador, tendo em vista que buscava “incorporar neste campo os prin-
cípios do SUS na perspectiva da saúde como um direito de todos” (KARINO,
itor

Marcia et al., 2011,p. 395)46. Deixando claro que o Sistema Único de Saúde
a re

(SUS) só foi efetivamente criado no ano de 1988, mesmo ano de promulgação


da Constituição Federal Brasileira. Na verdade, estes dois “marcos históricos”
propiciaram as bases sociais e políticas no que tange às condições básicas de
vida, trabalho e emprego que colaboraram para a constituição do campo da
saúde do trabalhador em nosso país. Mesmo assim, não houve, nesta ocasião,
par

uma referência clara ao debate na área da saúde do trabalhador, ainda.


Na II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1992 em
Ed

Brasília, já com a implantação do SUS efetivada e a Constituição vigorando,


as discussões a respeito da criação de redes de atenção em saúde mental come-
çaram a ser tratadas, assim como, o debate a respeito da saúde do trabalhador
ão

começa a ser delineado ante aos impactos claros que o trabalho ocasionava
na saúde de seus trabalhadores e trabalhadoras. Na referida Conferência,
s
ver

44 OLIVEIRA, Maria Helena Barros de; VACONCELLOS, Luiz Carlos Fadel de. As Políticas Brasileiras de
Saúde do Trabalhador: tempos de avaliação. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 24, n. 55, p. 92-103,
maio/agosto 2000.
45 RAMMINGER, Tatiana; NARDI, Henrique Caetano. Saúde Mental e Saúde do Trabalhador: análise das
conferências nacionais brasileiras. Psicologia Ciência e Profissão, v. 27, n. 4, p. 680-693, 2007.
46 KARINO, Marcia Eiko et al. Reflexão sobre as políticas de saúde do trabalhador no Brasil: avanços e desafios.
Ciência Cuidado e Saúde, v. 10, n. 2, p. 395-400, abr./jun. 2011.

Flávia Lemos - 21982.indd 372 28/02/2020 13:13:40


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 373

procurava-se salvaguardar o direito ao trabalho por parte das pessoas em


sofrimento psíquico. Agregava-se então a luta no campo da saúde mental à
luta pela saúde dos trabalhadores, da mesma forma que se fomentava, neste
momento, a discussão sobre o nexo causal do aparecimento de doenças men-
tais relacionadas ao trabalho para que houvesse uma responsabilização das
empresas pelos agravos provocados.
A III Conferência Nacional de Saúde Mental, que ocorreu em 2001 em

or
Brasília, tratava das ressonâncias que a implantação do SUS trouxe ao sistema

od V
de saúde nacional, assim como discutia a recente aprovação da Lei Federal de

aut
Saúde Mental, em abril de 2001. Além disso, versava sobre a reorganização
do trabalho em saúde mental, assim como da relação entre saúde e trabalho
(RAMMINGER; NARDI, 2007). O relatório desta Conferência ratifica a

R
importância do trabalho multiprofissional e interdisciplinar nas equipes de
saúde e ressalta também a preocupação com a saúde mental do trabalhador.

o
Desta forma, podemos perceber que há uma relação íntima entre o debate
aC
da saúde mental de forma mais ampla com a constituição do debate no campo
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da saúde do trabalhador, em particular, a partir da II Conferência Nacional de


Saúde Mental, com destaque para a saúde mental na saúde do trabalhador e,
posteriormente, na III Conferência Nacional de Saúde Mental com a aborda-
visã
gem mais direta da saúde do trabalhador como campo diferenciado e impor-
tante para compor o panorama de estudos e intervenções no âmbito da saúde.
É possível perceber, através dos debates nos eventos aqui tratados que
itor

a discussão a respeito da saúde do trabalhador começa a ser fomentada no


a re

âmbito da saúde mental de maneira mais ampla, configurando a primeira área


como pertencente ao campo da saúde mental, como deve ser. Foi como se
as conferências de saúde mental fizessem eclodir esse interesse pela saúde
do trabalhador.
Nesta intersecção fundadora, percebemos a constituição da área espe-
par

cífica da saúde do trabalhador em sua forma embrionária e irá ser melhor


tratada a seguir.
Ed

2. As Conferências de Saúde do Trabalhador


e a constituição de um novo campo
ão

A I Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador (CNST), ocorrida


s

de 17 a 23 de março de 1986 em Brasília, de acordo com Ramminger e Nardi


ver

(2007, p. 688), “teve, como principal marca, a formulação de conteúdos para


a Política de Nacional de Saúde do Trabalhador, que foram incorporados
na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 8.080, de 199047”. Além disso,

47 A Lei 8.080 de 1990, “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes”. Trata da organização do Sistema Único

Flávia Lemos - 21982.indd 373 28/02/2020 13:13:40


374

foi empreendido enorme esforço para desvincular o debate da saúde do tra-


balhador da área do Ministério do Trabalho, que cedia aos interesses dos
empresários e não privilegiava os interesses dos trabalhadores em si, para a
área da saúde.
Após a realização de pré-conferências em vinte estados do Brasil, as
questões norteadoras do debate a ser travado na 1ª CNST, condensou-se em
três temas principais:

or
od V
1. Diagnóstico da situação de Saúde e Segurança dos Trabalhadores;

aut
2. Novas Alternativas e Atenção à Saúde dos Trabalhadores;
3. Política Nacional de Saúde e Segurança dos Trabalhadores48.

R
Um dado relevante desta Conferência foi o fato de ter estabelecido o
consenso de que a saúde dos trabalhadores vai além dos limites da saúde ocu-

o
pacional, o que a faz introduzir o conceito de saúde de forma mais ampliada.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


A cabo dessa nova visão, houve a necessidade de rever a legislação e ampliar
as listas de doenças ditas ocupacionais, criando uma legislação única que
ofereça os mesmos direitos a todos os trabalhadores, de área rural ou urbana;
visã
pública ou privada.
Ressalta ainda a necessidade de criação do Sistema Único de Saúde
(SUS), desvinculando-se da rede privada, além da criação de programas espe-
cíficos de atendimento ao trabalhador. Delineia-se assim, uma “nova ordem”
itor

no campo da saúde do trabalhador... com mais direitos e condições dignas de


a re

exercício das atividades laborais e de saúde por parte do trabalhador. Iremos


discutir, posteriormente, se este projeto realmente se concretizou neste campo.
Uma das maiores contribuições da 1ª CNST foi ter afirmado a saúde como
um direito de cidadania e dever do Estado, o que foi ratificado na 8ª Confe-
par

rência Nacional de Saúde (CNS), além do que a grande mobilização social


provocada pelas resoluções da 1ª CNST colaboraram com a incorporação das
Ed

reivindicações sobre a saúde do trabalhador na Constituição Federal de 1988.


Em 20 de abril de 1993, a Portaria Interministerial nº 01, institucio-
nalizou a criação de um Grupo Executivo Interministerial (GEISAT), com
ão

representantes dos ministérios da Saúde, da Previdência Social e do Trabalho


e Emprego, já que passou-se a conceber que a abordagem com relação à saúde
do trabalhador seria intrassetorial, multiprofissional e interdisciplinar, além
s

de envolver todas as esferas e níveis de atenção do SUS, contando também


ver

de Saúde (SUS). Lei No. 8080/90, de 19 de setembro de 1990. Brasília: DF. 1990. Disponível em: <https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8080.htm>. Acesso em: 12 ago. 2018.
48 Cf. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Tra-
balhar Sim! Adoecer, Não!: o processo de construção e realização da 3ª Conferência Nacional de Saúde
do Trabalhador. Relatório Ampliado. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.

Flávia Lemos - 21982.indd 374 28/02/2020 13:13:40


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 375

com os diversos ministérios, diferentes setores do governo e a participação


ativa das/dos trabalhadoras/es.
A II Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador ocorreu oito
anos depois da primeira, de 13 a 16 de março de 1994, em Brasília, já com a
efetivação da Constituição Federal e da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080)
e, nesta última, há a incorporação da atenção à saúde dos trabalhadores como
papel do Sistema Único de Saúde (SUS). Teve como tema central: “Cons-

or
truindo uma Política de Saúde do Trabalhador”.

od V
Os grandes marcos desta II Conferência foram “a unificação das ações de

aut
Saúde do Trabalhador no SUS e a discussão das dimensões políticas, sociais,
econômicas, técnicas e gerenciais dessa política pública” (RAMMINGER;
NARDI, 2007, p. 689). Esses elementos são os pilares da constituição da

R
política da saúde do trabalhador e que, como veremos, ainda hoje estão em
processo de implementação.

o
Somente a partir da década de 1980, os pesquisadores brasileiros do
aC
campo da saúde mental começaram a realizar estudos na área da saúde do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

trabalhador e iniciaram suas contribuições neste último campo, ao realizar


ampliações de atuação na saúde pública e nos sindicatos. As referidas pesqui-
sas indicavam a relação entre as condições de trabalho e seus efeitos na saúde
visã
mental dos trabalhadores, como por exemplo, nas categorias dos bancários e
metroviários, estudos esses encomendados por sindicatos.
Tais estudos buscavam compreender quais condições de trabalho seriam
itor

geradoras de agravos à saúde, para que se aprofundasse os conhecimentos em


a re

formas de aplacar esses impactos e estabelecer ações a serem tomadas. Essas


pesquisas, evidentemente, envolviam aprofundar o conhecimento a respeito
dos próprios trabalhadores. Desta forma, esta perspectiva apontava para a
necessidade de que se enfocasse a subjetividade do trabalhador para que se
pudesse compreender melhor a relação entre trabalho e saúde. Este ponto de
par

vista inaugura uma nova forma de se pensar a pesquisa na área do trabalho


Ed

e da saúde. Até então e até mesmo naquele momento histórico (anos 1980),
muitos sofrimentos psíquicos do trabalhador eram traduzidos na forma de
doenças físicas, orgânicas ou por problemas relacionais com as chefias, assim
ão

como problemas domésticos que repercutiam no trabalho. Até mesmo atual-


mente podemos identificar este tipo de “disfarce” dos problemas psicológicos
ocasionados pelos impactos das atividades laborais.
s

Com o avanço da tecnologia aplicada aos processos de trabalho, algumas


ver

pesquisas apontavam para o impacto desses novos instrumentos intermediado-


res do trabalho na subjetividade dos trabalhadores e que era necessário parar
de tentar buscar as razões dos problemas psicológicos que os trabalhadores
apresentavam somente em suas predisposições individuais, sem relacionar
com as condições de trabalho que afetam o trabalhador sobremaneira, podendo

Flávia Lemos - 21982.indd 375 28/02/2020 13:13:40


376

eliciar o início de um agravo psíquico (RAMMINGER; NARDI, 2007). Além


disso, é bastante difícil para um trabalhador em sofrimento mental “provar”
que seu problema tem nexo causal com o trabalho que desempenha. Contra
essas evidências, há o médico da empresa que não irá comprovar esta conexão;
há os sindicatos que não têm suporte para ampará-lo; há os profissionais da
rede pública muitas vezes também sem preparo para identificar essas conexões
entre sofrimento mental e trabalho. Mesmo quando há um reconhecimento

or
dessa associação, quando o trabalhador é encaminhado aos peritos do Instituto

od V
Nacional do Seguro Social (INSS), enfrenta mais barreiras ainda, pois esses

aut
profissionais costumam desconsiderar o nexo causal entre trabalho e doença
mental, determinando que o trabalhador está apto a voltar às suas atividades,
ignorando que o próprio trabalho o/a adoeceu.

R
Para que essas dissonâncias fossem aplacadas, a Plenária Final da II
Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, indicou a necessidade de

o
as ações com relação à Saúde do Trabalhador fossem unificadas através do
aC
Sistema Único de Saúde (SUS).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Sabemos que essas ações devem ser implementadas sim pelo SUS, porém
os trabalhadores da área da saúde nos locais os quais recebem os trabalhado-
res devem estar preparados para acolher e encaminhar essas demandas. Para
visã
tanto, é preciso que haja uma formação inicial e continuada com o objetivo
de propiciar um respaldo teórico e técnico a esses profissionais para que,
efetivamente, possam auxiliar os trabalhadores em sofrimento mental em
itor

suas demandas.
a re

Nesta II Conferência, ficou bem alicerçado o entrelaçamento entre o


discurso da Saúde Mental e da Saúde do Trabalhador, pois o trabalhador não
comparece ao seu trabalho somente com seu corpo, pronto para o exercício
laboral, mas também e, principalmente, com seu aparato psíquico, que não
pode ser apartado de seu corpo físico. Isto parece óbvio, mas não é, pois para
par

a maioria das empresas, privada e pública, a subjetividade, o significado que


Ed

cada um dá a seu trabalho, os impactos do trabalho nas pessoas, o relaciona-


mento dos trabalhadores entre si, só “atrapalham” a produção. Quem dera,
para eles, agíssemos como máquinas: sem conflitos, sem problemas, sem
ão

dificuldades. Quem dera fôssemos regidos por mecanismos pré-ordenados...


que fácil seria... porém não somos assim. Somos seres do conflito, atribuímos
significados aos nossos relacionamentos e ao nosso trabalho; não trabalha-
s

mos só pelo salário e sim também por reconhecimento; somos afetados pelas
ver

condições de trabalho de maneira muito peculiar e cada um terá uma reação


a essas condições. Enfim, é difícil padronizar e prever radicalmente os com-
portamentos das pessoas diante do seu contexto laboral e isto se torna o pavor
dos empresários e campo de pesquisa fecundo para estudiosos desta área, para
que possamos não prever e aplacar todas as manifestações de sofrimento, pois

Flávia Lemos - 21982.indd 376 28/02/2020 13:13:41


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 377

não seria possível, mas sim diminuir os impactos maléficos do trabalho sobre
as pessoas, para que elas possam trabalhar de forma digna, saudável e produ-
tiva. A academia em muito contribuiu e contribui com estudos neste sentido.
A III Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador ocorreu de 24
a 27 de novembro de 2005 em Brasília e teve como tema “Trabalhar sim,
Adoecer Não! ”, com o intuito de ressaltar a positividade do trabalho, um
tanto perdida com a associação entre trabalho e sofrimento bastante arraigada

or
no discurso vigente. Esta Conferência, nas palavras dos próprios autores do

od V
relatório final, teve o seguinte cunho:

aut
“A 3ª CNST representou o resultado de um acúmulo histórico que tem
como marco o final dos anos 1970, traduzido em ações de defesa do tra-

R
balho digno e saudável, da participação dos trabalhadores nas decisões
quanto à organização e gestão dos processos produtivos e na busca da

o
garantia da atenção integral à saúde de todos” (BRASIL. Ministério da
aC
Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalha-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

dor. Trabalhar Sim! Adoecer, Não!: o processo de construção e realização


da 3ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador. Relatório Ampliado.
Brasília: Ministério da Saúde, 2011, p. 9).
visã
Houve uma articulação entre os Ministérios da Saúde, do Trabalho e
Emprego e Previdência Social, estabelecendo um diálogo necessário e opor-
tuno para que as diretrizes e decisões a respeito do campo da saúde do tra-
itor

balhador fossem tomadas de forma conjunta. Esta perspectiva integradora já


a re

havia sido iniciada desde a 2ª CNST.


Foram estabelecidos três eixos temáticos para conduzir o debate desta
Conferência. Eram eles:
par

1. Como garantir a integralidade e a transversalidade da ação do Estado


em saúde dos/as trabalhadores/as?
Ed

2. Como incorporar a saúde dos/as trabalhadores/as nas políticas de


desenvolvimento sustentável do país?
3. Como efetivar e ampliar o controle social em saúde dos/as
ão

trabalhadores/as?

O primeiro eixo objetivava avaliar as políticas públicas nacionais, em


s

especial, as políticas voltadas à saúde do trabalhador (PNSST), assim como


ver

buscava instituir modos de ação integrados entre as diferentes instâncias públi-


cas de saúde, como a melhoria da articulação interinstitucional e dos recursos
financeiros e técnicos.
O segundo eixo propunha refletir sobre as transformações no mundo
do trabalho e a necessidade de se pensar em novas formas de produção que

Flávia Lemos - 21982.indd 377 28/02/2020 13:13:41


378

mantenham o homem no presente, mas que não comprometa as gerações


futuras. Inclui, em seu seio, uma posição política que assuma uma postura
produtiva que inverta prioridades e crie alternativas de produção “includentes,
harmônicas com o ambiente e compatíveis com a saúde” (IDEM, BRASIL,
p. 15) Além disso, buscava otimizar os mecanismos regulatórios de conflitos
ambientais e com relação à saúde também.
Já o terceiro eixo almejava propor formas de participação popular e como

or
avaliar essa participação na constituição das políticas públicas para que os/

od V
as trabalhadores/as assumissem um coprotagonismo nas propostas e ações a

aut
serem tomadas.
A 3ª CNST concluiu que houve um maior compromisso com a dimensão
política para que dispositivos constitucionais possam ser cumpridos efetiva-

R
mente com o intuito de garantir condições de trabalho adequadas, com garantia
de saúde aos seus/suas trabalhadores/as. Ocorreu uma participação maior de

o
trabalhadores na Conferência, assim como maior participação feminina, o que
aC
trouxe para o debate as especificidades do mundo do trabalho para as mulheres,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


além de ter envolvido diferentes setores do universo laboral, combatendo a
ideia de que a saúde do trabalhador é assunto para sindicalistas e entidades
patronais. Mais ainda, muitas resoluções com relação à saúde do trabalhador
visã
foram aprovadas para apoiar cada um/uma em seus processos de trabalho.
Já a IV Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Traba-
lhadora49 ocorreu novamente em Brasília, no período de 14 a 18 de dezembro
itor

de 2014 e teve como tema central “Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora,


a re

Direito de Todos e Todas e Dever do Estado” e eixo principal “Implementação


da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora”.
Esta Conferência organizou quatro subeixos que conduziram o debate
realizado ao longo dos dias do evento, são eles:
Subeixo 1 – O desenvolvimento socioeconômico e seus reflexos na saúde
par

do trabalhador e da trabalhadora;
Subeixo 2 – Fortalecer a participação dos trabalhadores e das trabalha-
Ed

doras, da comunidade e do controle social nas ações de saúde do trabalhador


e da trabalhadora;
Subeixo 3 – Efetivação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e
ão

da Trabalhadora, considerando os princípios da integralidade e intersetoria-


lidade nas três esferas de governo;
s

Subeixo 4 – Financiamento da Política Nacional de Saúde do Trabalhador


ver

e da Trabalhadora, nos Municípios, Estados e União.


Tais eixos procuraram, em debates específicos, buscar caminhos para a
implantação efetiva da política nacional de saúde do trabalhador, assim como

49 Notemos aqui a referência à diferenciação de gênero nunca antes frisada nas Conferências anteriores, ao
qualificar “trabalhadores” e “trabalhadoras”.

Flávia Lemos - 21982.indd 378 28/02/2020 13:13:41


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 379

envolver as diferenciadas esferas do governo (municipal, estadual e federal)


para apoiar as ações necessárias para que todos caminhemos rumo a trilhas
mais seguras e saudáveis para o trabalhador e trabalhadora brasileiros.
Até então, são essas as Conferências que foram organizadas e que contri-
buíram muito para a efetivação da referida política, ainda que, como assinala
Gomes e Lacaz (2005), não exista uma real política de saúde do trabalhador
no Brasil.

or
Iremos, a seguir, tratar do tema das políticas públicas associadas ao

od V
debate sobre a saúde do trabalhador no Brasil.

aut
3. Políticas Públicas e a Política de Saúde
do Trabalhador no Brasil

R
3.1 Políticas Públicas: um breve olhar

o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O campo das políticas públicas como área de conhecimento e disciplina


acadêmica surgiu nos Estados Unidos com roupagem diversa daquela formu-
lada na Europa, já que nos EUA, de acordo com Souza50 (2006, p. 22), “a área
surge no mundo acadêmico sem estabelecer relações com as bases teóricas
visã
sobre o papel do Estado, passando direto para a ênfase nos estudos sobre a
ação dos governos”. Diferentemente desta perspectiva, o estudo das políticas
públicas na Europa enfocava a análise sobre o Estado e suas instituições e
itor

não na produção dos governos.


a re

Na área das políticas públicas, o pressuposto analítico que fundamentou


a constituição e consolidação de seus estudos baseou-se no fato de que nas
democracias estáveis, tudo o que o governo faz ou deixa de fazer pode ser
formulado cientificamente e analisado por pesquisadores não pertencentes ao
estado (SOUZA, 2006). Desta forma, a disciplina “políticas públicas”, que
par

surge como uma subárea da ciência política, inaugura um caminho para este
último campo, de estudo do mundo público. O Estado (representado por seu
Ed

governo), como produtor principal dessas políticas, torna-se foco essencial


de seus estudos.
ão

Em resumo, o enfoque do estudo sobre políticas públicas na Europa, está


mais centrado nas teorias explicativas sobre o papel do Estado e de uma de
suas mais importantes instituições, que é o governo, que efetiva as políticas
s

públicas. Já a abordagem americana, emerge do universo acadêmico, sem


ver

associação direta com as ações governamentais.


Mas, afinal, qual a definição de políticas públicas que devemos empregar
nesta análise que estamos empreendendo? De acordo com Souza (2006, p. 24),

50 SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16,
p. 20-45, jul./dez. 2006.

Flávia Lemos - 21982.indd 379 28/02/2020 13:13:41


380

“Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que seja política
pública. Mead (1995)51 a define como um campo dentro do estudo da
política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas e Lynn
(1980)52, como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos
específicos. Peters (1986)53 segue o mesmo veio: política pública é a soma
das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delega-
ção, e que influenciam a vida dos cidadãos [...] A definição mais conhecida

or
continua sendo a de Lasswell (1958)54, ou seja, decisões e análises sobre
política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha

od V
o quê, por quê e que diferença faz”

aut
Existem outros vieses analíticos da temática que enfatizam o papel das

R
políticas na solução de problemas, porém esta perspectiva é criticada por não
atentar para o fato de que o território de debate das políticas públicas dá-se em
torno de disputas de ideias e interesses diversos, sendo que as “soluções” são

o
fruto de uma longa jornada de debates, tensões, rompimentos e acordos. Mas,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de modo geral, os autores e autoras convergem para o fato de que o campo
das políticas públicas gira em torno do lócus onde essas disputas de interesses
ocorrem: nos governos. Além disso, a visão que os estudiosos têm do tema
é holística e seus estudos são multidisciplinares, até pela complexidade de
visã
fatores que as políticas envolvem. Ou como nos esclarece Souza (2006, p. 25):
“as políticas públicas repercutem na economia e nas sociedades, daí por que
qualquer teoria da política pública precisa também explicar as interrelações
itor

entre Estado, política, economia e sociedade”.


a re

Outra questão importante a ser tratada neste campo, refere-se à diferen-


ciação entre os estudos sobre políticas públicas (policy studies) e análise
de políticas (policy analysis). O estudo sobre as políticas públicas, como nos
respalda Farah55 (2016, p. 960): “[é] voltado ao conhecimento do processo de
política pública, [já] a análise de políticas, [é] orientada para a prática, para
par

a política pública”.
Ed

A raiz desta diferenciação se origina dos estudos do sociólogo e cientista


político americano Harold Lasswell, que no seio da ciência política, estabe-
leceu duas vertentes para a análise política: a primeira voltada para a busca
ão

de conhecimentos sobre o processo de política pública (policy studies) e a


segunda direcionada para as políticas (policy analysis). A primeira teoriza
s

51 MEAD, Lawrence M. Public Policy: vision, potential, limits. Policy Currents, fev. 1995. p. 1-4.
ver

52 LYNN, Laurence E. Designing Public Policy: a casebook on the role of policy analysis. Santa Monica,
California: Goodwear. 1980.
53 PETERS, B. Guy. American Public Policy. Chatham, N. J.: Chathan House, 1986.
54 LASSWELL, Harold D. Politics: who gets that, when, how. Cleveland: Meridian Books, 1936/1958.
55 FARAH, Marta Ferreira Santos. Análise de políticas públicas no Brasil: de uma prática não nomeada à
institucionalização do “campo de públicas”. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro v. 50, n. 6, p. 959-979, nov./
dez. 2016.

Flávia Lemos - 21982.indd 380 28/02/2020 13:13:41


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 381

sobre este campo, formula propostas e a segunda busca analisar e formular


propostas em cima de uma realidade existente de políticas públicas efetivas;
tem caráter prático. É uma aplicação de pesquisas científicas e de outras for-
mas de conhecimento na formulação, implementação e avaliação de políticas.
Como nos esclarece Farah (2016, p. 962):

Os estudos de políticas, segundo esta tradição, são desenvolvidos por aca-

or
dêmicos e dizem respeito à natureza das atividades do Estado, procurando

od V
entender e explicar o processo da política pública assim como os modelos

aut
utilizados pelos pesquisadores para analisar o processo de formulação e
implementação de políticas. A análise de políticas, por sua vez, corres-
ponde a estudos para políticas, envolvendo a geração e a mobilização de

R
conhecimento para subsidiar políticas públicas (grifos da autora).

o
Desta forma, fica claro o caráter de conselheiro/a que o/a analista polí-
aC
tico/a possui para os/as governantes (do Executivo) para ajudá-los/las na
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

formulação de políticas. Este campo se organizou nos Estados Unidos no


final da década de 1960 e início da década de 1970, transformando os cursos
de mestrado em administração pública em cursos de política pública com o
visã
intuito de propiciar uma formação adequada aos servidores públicos com o
objetivo de encontrarem soluções satisfatórias para problemas públicos. Pos-
teriormente, esta atividade mais analítica foi tomando contornos mais práticos,
itor

“[...] ao se redefinirem o lócus onde a análise se dá, os atores envolvidos, o


a re

foco da atividade e sua audiência” (Idem, 2016, p. 963).


O lócus mudou quando não só agentes governamentais atuaram para
aconselhar políticos eleitos, mas organizações não governamentais, entidades
e organizações privadas também passaram a atuar neste papel de analista das
par

políticas. Os atores se modificaram no momento em que avaliadores e imple-


mentadores também começaram a realizar análises políticas, assim como os
Ed

atores se transformaram quando organizações não governamentais, entidades


privadas e movimentos sociais precisaram cada vez mais da utilização de aná-
lises políticas para influenciar a tomada de decisões por políticas públicas. Por
ão

fim, a audiência desse processo de escolhas foi sendo modificada em meio a


maior participação dos atores sociais neste processo de escolhas de políticas
s

que irão atingir a todos e todas.


ver

O campo das políticas públicas no Brasil surgiu em sua vertente de


análise das políticas públicas nos anos 1930 no Brasil, com o intuito de mobi-
lizar conhecimentos para respaldar o processo de constituição de políticas
públicas, especialmente nas tomadas de decisão e formulação das políticas,
como também para avaliá-las. A formação dos profissionais que realizaram

Flávia Lemos - 21982.indd 381 28/02/2020 13:13:41


382

essas análises era variada, já que não havia cursos de formação em políticas
naquele momento.
Na verdade, a formação e pesquisa no campo das políticas públicas são
recentes no Brasil. Datam dos anos 1990 e não tiveram, naquele momento,
o eixo de análise de políticas como um fator preponderante, como também
não foram acompanhadas da criação de cursos de formação de analistas de
políticas públicas, tal qual em outros países. Mesmo assim, as atividades de

or
análise de políticas públicas tomaram lugar sim em todo país.

od V
Ao longo do tempo foi ocorrendo uma ampliação dos lócus de desenvol-

aut
vimento e dos atores envolvidos, mesmo não tendo se constituído de imediato
em um campo de formação autônomo. Atualmente, vimos o surgimento de
diversos cursos de políticas públicas no Brasil (administração pública, gestão

R
pública, gestão social, gestão de políticas públicas), configurando um novo
cenário nesta área de estudo em nosso país, com muitas produções sobre esta

o
temática, a institucionalização de um novo campo de estudo e pesquisa, o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


“campo das públicas”, com dois eixos centrais: a gestão pública e a política
pública (FARAH, 2016).
Após esta breve discussão a respeito da área das políticas públicas, ire-
mos adentrar no tema da política da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
visã
no Brasil.

3.2 A política de saúde do trabalhador e da trabalhadora no brasil


itor
a re

O processo de redemocratização do Brasil a partir dos anos 1980, após


longo período de ditadura militar, revitalizou o incremento das políticas de
saúde no país. Sabemos que o investimento que um país faz com relação à
saúde de sua população denota a qualidade de vida que ele proporciona a
par

seu povo, assim o processo de investimento em políticas de saúde no país a


partir deste contexto de abertura política e de transformações sociais ocorreu
Ed

de forma paulatina em relação às políticas de proteção social, dentre elas, a


política de saúde do trabalhador.
As chamadas “políticas públicas no campo da saúde e segurança no
ão

trabalho” são formadas pelas ações desenvolvidas pelo Estado para que

[o] trabalho, base da organização social e direito humano fundamental, seja


s

realizado em condições que contribuam para a melhoria da qualidade de


ver

vida, a realização pessoal e social dos trabalhadores, sem prejuízo para sua
saúde, integridade física e mental (SOUSA, M. I. F, et al., 2014, p. 63).56

56 SOUSA, Maria Iderlânia de Freitas et al. Uma Reflexão sobre as Políticas Públicas na Saúde do Traba-
lhador. Revista Ciência e Tecnologia, 1. ed. 2014, referindo-se à Política Nacional de Saúde do Trabalhador:
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas

Flávia Lemos - 21982.indd 382 28/02/2020 13:13:41


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 383

Na verdade, como nos aponta Sousa et al. (2014), durante décadas a


saúde do trabalhador constituiu-se um elemento de exclusão social, já que,
efetivamente, havia baixa cobertura do sistema de proteção social e uma
desarticulação entre os ministérios da Saúde, do Trabalho e Emprego e da Pre-
vidência Social para efetivar esta política direcionada aos/às trabalhadores/as.
Até hoje, ainda percebemos ações pontuais relacionadas às interven-
ções no âmbito da saúde do trabalhador/a e dificuldade de articulação com o

or
SUS para atendimentos dos/das trabalhadores/as. Os pesquisadores apontam,

od V
ainda, dificuldades para a implementação de políticas no âmbito da saúde

aut
ocupacional, já que as políticas formuladas acabam não resultando em ações
concretas direcionadas ao público de trabalhadores/as. O mesmo cenário não
é percebido com relação às outras políticas de saúde, como a da mulher, de

R
combate a doenças como AIDS, hipertensão ou diabetes.
Em importante e já clássico artigo datado no ano de 2005, Gomez e

o
Lacaz57 indicavam o fato de que até aquele momento não havia sido implan-
aC
tada de fato uma Política Nacional de Saúde do/a Trabalhador/a no Brasil.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Os autores pontuaram diversos fatores que contribuíram para este cenário,


que podem ser aqui mencionados, devido à sua atualidade. Citaremos alguns
deles no presente trabalho.
visã
Primeiramente, a ausência da implementação da referida política tem
relação com as dificuldades históricas no país para a efetivação de políticas
públicas e sociais, além da baixa cobertura do sistema de proteção social e
itor

fragmentação do sistema de seguridade social de 1988. Somava-se a este


a re

quadro, a reestruturação produtiva que imputou rápidas mudanças no mundo


do trabalho que dificultavam mais ainda a aplicação de um modelo de atenção
à saúde (GOMEZ; LACAZ, 2005).
Paralelamente a este panorama, os autores criticam a atuação do Minis-
tério da Saúde brasileiro, que não assumiu o protagonismo e nem constitui
par

um corpo técnico efetivo capaz de tomar a frente e buscar implementar ações


Ed

para efetivar a saúde do trabalhador no país. Além disso, segundos os autores,


o Ministério da Saúde não se articulou de maneira eficiente com os ministérios
do Trabalho e Emprego e da Previdência para consolidar ações concernentes
ão

à política de saúde do trabalhador.


Há de se reconhecer, no entanto, que houve esforços ministeriais para que
esta política pudesse se efetivar. Citaremos algumas dessas importantes inicia-
s

tivas. Em 1991, foi apresentada pelo Ministério da Saúde a primeira proposta


ver

de plano de trabalho em saúde do trabalhador, instituindo a organização de

Estratégicas. Área Técnica de Saúde do (a) Trabalhador (a) – COSAT Política Nacional de Saúde do (a)
Trabalhador (a). Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
57 GOMEZ, Carlos Minayo; LACAZ, Francisco Antônio de Castro. Saúde do Trabalhador: novas-velhas questões.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 4, p. 797-807, 2005.

Flávia Lemos - 21982.indd 383 28/02/2020 13:13:42


384

Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), posteriormente


(2002) foi criada a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalha-
dor (RENAST). Esta Rede, de abrangência nacional, tem como papel atuar
como uma ferramenta estratégica para a divulgação dos princípios e práticas
do campo da Saúde do Trabalhador no SUS (SOUSA at al., 2014).
Em 1999, houve uma convocação ampliada de profissionais da área da
saúde nos três níveis de gestão, além de pesquisadores da área, parceiros do

or
setor do trabalho e previdência, assim como representantes dos trabalhado-

od V
res para a elaboração de documento básico sobre a política de saúde dos/as

aut
trabalhadores/as. Em 2004, um documento construído em parceria entre os
ministérios da Saúde, Trabalho e Emprego e Previdência com o título de Polí-
tica Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador (PNSST) foi divulgado

R
para consulta pública. Porém, tais iniciativas não redundaram em execução
e efetividade da nova política de saúde do/da trabalhador/a.

o
Gomez e Lacaz (2005, p. 798) ratificam este posicionamento, no
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


seguinte trecho:

Quando falamos da ausência de uma Política Nacional, referimo-nos à


inexistência de um quadro referencial de princípios norteadores, de dire-
visã
trizes, de estratégias, de metas precisas e de um corpo profissional técni-
co-político preparado, integrado e estável, capaz de garantir a efetividade
de ações para promover a saúde dos trabalhadores, prevenir os agravos e
itor

atender aos problemas existentes.


a re

De acordo com Sousa et al. (2014), este cenário não mudou muito desde
o estudo de Gomez e Lacaz de 2005, já que, como aponta os próprios autores
Souza et al. (2014, p. 70):
par

Percebe-se, infelizmente, no que se refere às políticas públicas voltadas à


saúde do trabalhador ações pontuais e fragmentadas, isoladas das demais
Ed

ações de saúde, desenvolvidas de modo desigual nos estados e municí-


pios onde a maioria dos trabalhadores sequer conhece a existência física
do local (CEREST). Esses trabalhadores, geralmente, também não têm
ão

conhecimento das políticas públicas voltadas ao atendimento de sua saúde,


afirmação confirmada pelos altos índices de acidentes e doenças laborais.
s

A efetivação das políticas públicas voltadas à saúde do trabalhador/a


ver

parece ainda longe de ser plenamente realizada em nosso país, o que não
significa que não tenham ocorrido avanços neste processo de implantação e
atuação. É evidente que o país caminhou em direção à uma proteção e cuidado
aos/às trabalhadores/as brasileiros/as, com tropeços, idas e vindas, mas com
conquistas visíveis.

Flávia Lemos - 21982.indd 384 28/02/2020 13:13:42


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 385

Ao longo deste tempo, o mundo do trabalho mudou muito... a reestrutu-


ração produtiva ocasionou uma série de modificações nas formas de trabalhar.
Como Antunes (2018)58 nos assinala, cada vez mais os/as trabalhadores/as se
deparam com situações de instabilidade, de precariedade ou de desemprego.
A precarização do trabalho se instalou no novo cenário laboral e cons-
tituiu o que o autor intitula de a nova “morfologia do trabalho”. O paradoxo
do trabalho como peça fundamental para a sobrevivência das pessoas, mas,

or
ao mesmo tempo, com essas novas condições estruturais, muitas vezes, pro-

od V
vocadores de mortes dos trabalhadores, seja pelas condições de trabalho, seja

aut
pelo impacto psíquico que causa, abalando as boas condições de saúde física
e mental dos mesmos, volta à baila com intensidade. A intensidade talvez se
deva à “promessa de paraíso” que os avanços tecnológicos aventaram para

R
os trabalhadores, que não se efetivaram de forma global.
Assim, pensando também nessas modificações estruturais do mundo do

o
trabalho e no contexto social, econômico e político do Brasil, sabemos que a
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

luta pelas conquistas no que tange às políticas públicas de saúde do trabalhador


será contínua, já que o princípio da saúde integral do trabalhador se refere
à saúde no seu sentido pleno ou como nos assinala Andrade et al59 (2012, p.
10), “na prática, se traduz em ações que incluem a promoção, a prevenção e
visã
a assistência, a serem executadas de forma integrada e sempre através de uma
abordagem interdisciplinar e intersetorial”.
A abordagem dessa política situa o trabalho e a saúde no contexto da
itor

vida, indo além da relação com o emprego, o que estabelece um olhar diferen-
a re

ciado ao objeto central da saúde do trabalhador, definido “pela relação entre o


processo de trabalho e a saúde inserida no cotidiano [do trabalhador/a], para
além das relações de emprego” (IDEM, p. 7).
Desde temos imemoriais o homem constituiu o trabalho e se constituiu
par

através do trabalho. Relação complexa e que passou por vários desdobramen-


tos, modos de produção, de organização do trabalho, de flexibilização, de
Ed

precarização, de tantos percalços e glórias, o trabalho fez e parece que sempre


fará parte do universo humano. Assim, é essencial que pesquisas, estudos,
novos olhares e novas políticas públicas sejam criadas e recriadas sempre neste
ão

contexto do trabalho para que possamos fazer dele não só um instrumento de


nossa sobrevivência, mas da criação de laços afetivos, de solidariedade e de
construção de um mundo menos desigual.
s
ver

58 ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão – o novo proletariado de serviços na era digital. São
Paulo: Boitempo, 2018
59 ANDRADE, Elsa Thomé de et al. O Processo de Construção da Política de Saúde do Trabalhador no Brasil
para o setor público. Revista de Sociologia Configurações – Políticas Públicas, 10/2012.

Flávia Lemos - 21982.indd 385 28/02/2020 13:13:42


386

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Elsa Thomé de et al. O Processo de Construção da Política de
Saúde do Trabalhador no Brasil para o setor público. Revista de Sociologia
Configurações – Políticas Públicas, 10/2012.

or
ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão – o novo proletariado de
serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

od V
aut
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departa-
mento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde do (a)

R
Trabalhador (a) – COSAT Política Nacional de Saúde do (a) Trabalhador (a).
Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

o
aC
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde Ambien-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tal e Saúde do Trabalhador. Trabalhar Sim! Adoecer, Não!: o processo de
construção e realização da 3ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador.
Relatório Ampliado. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.
visã

______. Relatório da 4ª Conferência Nacional do Trabalhador e da Trabalha-


dora. Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, direito de todos e todas
itor

e dever do Estado. Brasília, 2015.


a re

FARAH, Marta Ferreira Santos. Análise de políticas públicas no Brasil: de


uma prática não nomeada à institucionalização do “campo de públicas”. Rev.
Adm. Pública, Rio de Janeiro v. 50, n. 6, p. 959-979, nov./dez. 2016.
par

GOMEZ, Carlos Minayo; LACAZ, Francisco Antônio de Castro. Saúde do


Trabalhador: novas-velhas questões. Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 4,
Ed

p. 797-807, 2005.

KARINO, Marcia Eiko et al. Reflexão sobre as políticas de saúde do traba-


ão

lhador no Brasil: avanços e desafios. Ciência Cuidado e Saúde, v. 10, n. 2,


p. 395-400, abr./jun. 2011.
s

LACAZ, Francisco Antonio de Castro. O Campo da Saúde do Trabalha-


ver

dor: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde.


Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 757-766, abr. 2007.

LASSWELL, Harold D. Politics: who gets that, when, how. Cleveland:


Meridian Books, 1936/1958.

Flávia Lemos - 21982.indd 386 28/02/2020 13:13:42


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 387

LEÃO, Luís Henrique da Costa & CASTRO, Alexandre de Carvalho. Políticas


Públicas de Saúde do Trabalhador: análise da implantação de dispositivos de
institucionalização em uma cidade brasileira. Ciência & Saúde Coletiva,
v. 18, n. 3, p. 769-778, 2013.

LYNN, Laurence E. Designing Public Policy: a casebook on the role of policy


analysis. Santa Monica, California: Goodwear. 1980.

or
od V
MEAD, Lawrence M. Public Policy: vision, potential, limits. Policy Currents,

aut
fevereiro: p. 1-4. 1995

OLIVEIRA, Maria Helena Barros de; VACONCELLOS, Luiz Carlos Fadel

R
de. As Políticas Brasileiras de Saúde do Trabalhador: tempos de avaliação.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 24, n. 55, p. 92-103, maio/ago. 2000.

o
aC
PETERS, B. Guy. American Public Policy. Chatham, N. J.: Chathan
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

House, 1986.

RAMMINGER, Tatiana; NARDI, Henrique Caetano. Saúde Mental e Saúde


visã
do Trabalhador: análise das conferências nacionais brasileiras. Psicologia
Ciência e Profissão, v. 27, n. 4, p. 680-693, 2007.
itor

SOUSA, Maria Iderlânia de Freitas et al. Uma Reflexão sobre as Políticas


a re

Públicas na Saúde do Trabalhador. Revista Ciência e Tecnologia, 1. ed. 2014.

SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias,


Porto Alegre, ano 8, n. 16, p. 20-45, jul./dez. 2006.
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 387 28/02/2020 13:13:42


Flávia Lemos - 21982.indd 388
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:42
ATENÇÃO À SAÚDE DO IDOSO
(A) INSTITUCIONALIZADO: perdas,
ganhos e necessidades ocupacionais

or
V
Mara Daniele de Sousa Sarmento

aut
Karla Maria Siqueira Coelho
Airle Miranda de Souza
Victor Augusto Cavaleiro Corrêa

CR
do
1. Introdução

O envelhecimento é um processo cercado de muitas concepções falsas,


as quais foram construídas em culturas e tempos antigos (LORDA; SAN-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
CHEZ, 2004). Em seus estudos, estes pesquisadores destacam estereótipos
que devem sofrer mudanças como: o idoso é sinônimo de doença, os velhos
ra
se sentem miseráveis e a melhor forma de adaptação é o isolamento da vida
social, os idosos não são produtivos, as pessoas idosas não são criativas e
i
rev

não tem capacidade de aprender, os idosos são teimosos e irritados (LORDA;


SANCHEZ, 2004).
Para as autoras, o estigma de envelhecimento ancora-se em definições
to

sociais que se modificam a cada época. Estas concepções geram um efeito


negativo nas pessoas que estão envelhecendo e naquelas que já se enquadram
ara

como idoso (LORDA; SANCHEZ, 2004). A partir do século XX, o envelheci-


mento da população vem sendo tão intenso que está se tornando um fenômeno
ver di

universal e, notadamente, se faz importante implementar as políticas públicas


e promover estratégias eficientes para lidar com as demandas da população
op

idosa (GARCIA, 2011).


Dados de um relatório de 2015 da Organização Mundial de Saúde (World
E

Health Statistics 2015, com dados de 2013) revelam que a Europa apre-

senta 21% da sua população com pessoas na terceira idade e, na África, ape-
nas 5% da população têm mais de 60 anos, esses são os extremos em números
de idosos por continente. Cerca de 22 milhões de pessoas já tenha ultrapassado
os 60 anos no Brasil, algo em torno de 11% do total, estando a maioria em
contextos urbanos (MEDEIROS, 2018). Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística) (2017), no Brasil, cresceu 18% o número de Idosos
durante os últimos 05 anos, ultrapassando 30 milhões no ano de 2017 (PARA-
DELLA, 2018). Entre 2012 e 2017, o número de idosos teve um aumento em
todos os estados brasileiros, com destaque na proporção para o Rio de Janeiro
e o Rio Grande do Sul, que revelaram 18,6% de suas populações com pessoas

Flávia Lemos - 21982.indd 389 28/02/2020 13:13:42


390

de 60 anos ou mais. Já o Estado do Amapá, possui o menor percentual de


idosos, com apenas 7,2% da população (PARADELLA, 2018).
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (2015), desde 2000, a
expectativa de vida no Brasil aumentou em 05 anos, porém, a desigualdade
permanece, causando baixa qualidade de vida e o aumento de vulnerabilidade
social, pois a população está vivendo por mais tempo, mas em condições
desfavoráveis para a média da expectativa de vida no país (75 anos), uma

or
evolução rápida comparado com outras décadas (THE WORLD BANK, 2016).

od V
Estima-se que, em 2060, o percentual de habitantes com 65 anos ou mais será

aut
de 26,8% (NETO et al., 2017). O aumento dos idosos ocorreu mais precoce-
mente nos países desenvolvidos, indicando uma melhor qualidade da atenção

R
à saúde nesses locais, porém esse aumento também chegou a acontecer nos
países pobres, gerando problemas os quais requerem resoluções de forma

o
arriscada, por ser em locais onde os recursos são mais escassos (LEBRÃO;
LAURENTI, 2005).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Criar uma expectativa de vida longa e livre de incapacidade é um dos
desafios da sociedade brasileira. Segundo Garcia (2011), o envelhecimento
bem sucedido, livre de doenças neuropsiquiátricas, multimorbidades e baixa
visã
capacidade funcional, consomem muitos recursos financeiros. Alcança-se um
envelhecimento com qualidade, aqueles que estão em uma melhor situação
econômica, com acesso fácil aos serviços de saúde de qualidade (FILHO;
itor

KIKUCHI, 2011). Portanto, em razão desse processo acelerado do enve-


a re

lhecimento, torna-se necessário o aumento de estratégia que assegurem o


cuidado necessário que a pessoa idosa necessita. Para o IPEA (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada) (2011), a Residência, a qual denominou de
ILPI (Instituição de Longa Permanência para Idosos), torna-se aliada nesse
processo de garantia dos direitos da pessoa idosa. Desse modo, uma parcela
par

dos idosos em vulnerabilidade, tanto sociais como de saúde, são encaminhados


para viver em lugares como as ILPI, que às vezes estão lotadas, com risco
Ed

de isolamento e/ou insatisfação com a vida. Em geral, a população foco são


pessoas de faixa etária mais avançada, com capacidade funcional reduzida,
ão

de classes menos favorecidas economicamente, vítimas de violências e/ou


sem vinculação familiar (CAMARGOS, 2014).
As ILPI, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil
s

(ANVISA, 2005) e a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (2003)


ver

são instituições governamentais ou não governamentais de caráter residencial,


considerados domicílios coletivos, cujo público-alvo é dar suporte (liberdade,
dignidade e cidadania) e acolher pessoas de 60 anos ou mais, dependentes ou
independentes nas atividades de vida diária, que não dispõem de condições
para permanecer com a família (FAGUNDES et al., 2017).

Flávia Lemos - 21982.indd 390 28/02/2020 13:13:43


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 391

De acordo com Mello (2011), uma ILPI caracteriza-se como um esta-


belecimento com denominações diversas, que prestam atendimento integral
institucional, para a população na faixa etária a partir de 60 anos, sob regime
de internação, podendo ser paga ou não, durante um período indeterminado.
Segundo a autora, esse estabelecimento deve dispor de um quadro de cola-
boradores que atendem as necessidades de cuidado com assistência e saúde,
garantindo, dessa forma, a promoção da qualidade de vida. Camargos (2014)

or
chama atenção que a institucionalização é a modalidade de serviço mais

od V
comum, entre as pessoas sem familiares, apresentando-se como um recurso

aut
para idosos que precisam de cuidados de longa duração. A mesma autora
declara que, por mais que esteja crescendo a procura por esse tipo de serviço,
ainda existem conceitos negativos a respeito das ILPI, colocando como justi-

R
ficativa o processo histórico da constituição desse tipo de residência.
As Instituições de Longa Permanência, específicas para Idosos, tiveram

o
início no Cristianismo, pelo Papa Pelágio II, entre os anos 520 e 590, nos hos-
aC
pitais prestadores de assistência aos pobres, que ofertavam tratamento físico
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e apoio espiritual (FAGUNDES et al., 2017). Percebemos que as primeiras


Instituições que acolhiam idosos, foram elaboradas pensando assistência de
modo geral, na formação espiritual e também como estratégia para amenizar a
visã
exclusão social sofrida por essas pessoas. No Brasil, existem 3.548 Instituições
de Longa Permanência, nas quais moram 83.870 idosos. Estas são encontradas
em 28,8% dos municípios brasileiros (OLIVEIRA; ROZENDO, 2014). De
itor

acordo com o IBGE (INSTITUTO..., 2010), aproximadamente 84 mil idosos


a re

brasileiros estavam distribuídos em 2.072 Instituições de Longa Permanência


para Idosos (ILPI), em 2009.
Segundo o site do Sistema Indicador de Saúde e Acompanhamento de
Políticas do Idoso citado por Fiocruz (2010), na região paraense, tem cres-
cido a proporção de idosos em situação de pobreza, os quais possuem renda
par

domiciliar até meio salário mínimo, alertando quanto aos cuidados necessário
Ed

para gerar a vida de qualidade, longe da negligência, abandono e violência.


Frente a esta realidade, vale destacar que a existência de instituições de longa
permanência para idosos de baixa renda não deve se manter estável, mas
ão

sofrer ajustes estruturais, assistenciais e de especializações, principalmente


no Norte do Brasil.
Por mais que em 2003, o Estatuto do Idoso apresente os avanços na
s

discussão dos direitos da pessoa idosa, pouco se fez em relação aos idosos
ver

institucionalizados (VECCHIA et al., 2005). No Brasil, embora as políticas


priorizem a família como os que devem assumir os cuidados com a pessoa
idosa, a tendência é que ocorra um aumento da demanda por Instituições de
Longa Permanência para Idosos (FERREIRA, 2011). Isso pode ser observado
ao longo do processo histórico, visto que a família costuma ser referendada

Flávia Lemos - 21982.indd 391 28/02/2020 13:13:43


392

como provedora do cuidado de seus membros. Contudo, na contemporanei-


dade, observa-se a inserção da mulher no mercado de trabalho, as transfor-
mações na configuração familiar, uma instabilidade financeira, assim como,
a cronicidade dos mais velhos, o que têm impulsionado a responsabilidade
do cuidar para além do domicílio (CAMARANO; KANSO, 2010; CASTRO;
VAZ, 2011).
Destacam Polaro et al. (2012) que na região metropolita de Belém-Pará,

or
existem aproximadamente 130.000 idosos, dos 23.940.814 que residem no

od V
Brasil afirma que no Pará, o maior número de idosos está concentrado na

aut
capital paraense, Belém. O perfil social dessa população é de pessoas de baixa
renda, maioria mulheres, analfabetos, e mais da metade não possuem família,
os que possuem, não recebem visitas, e quando recebem, é comum à prática

R
torna-se escassa com o tempo (LOUREIRO; SILVA, 2015). Comparar esses
resultados com todo o esforço de mudança desde a promulgação da Política

o
Nacional do Idoso, em destaque a Política de Saúde da Pessoa Idosa (2006),
aC
assim como as meta e conquistas descritas nesses documentos, percebe-se

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


que as demandas que surgem das pessoas idosas, não têm sido privilegiadas
de maneira adequada. Isso se torna um dos fatores para a necessidade de
institucionalização, pois é o local que mesmo de maneira precária ou não,
visã
oferece subsídios para sobrevivência dos mesmos (POLARO et al., 2012;
OLIVEIRA; ROZENDO, 2014).
Camargos (2014) também chama atenção que mesmo quando detectado
itor

melhorias na saúde da população, o que possibilita envelhecer com autonomia


a re

e independência, ainda assim, o envelhecimento populacional, o aumento


da expectativa de vida e os novos arranjos familiares, tendem a aumentar
sobremaneira a busca por vagas nessas instituições. Lembra ainda esse autor
que cabe a nós respondermos o que fazer com a demanda atual a fim de que
possamos planejar o futuro, considerando que para cada cinco pessoas, uma
par

será idosa (CAMARGOS, 2014). Tirado, Barreto e Assis (2013) discorrem


Ed

sobre a importância do aumento de uma equipe interdisciplinar no tratamento


de idosos, tornando-se indispensável à entrada de Terapeutas Ocupacionais,
os quais buscam “proporcionar uma vida mais independente, com autonomia,
ão

autoestima, motivação e bem-estar tanto para o paciente quanto para seus


familiares” (TIRADO; BARRETO; ASSIS, 2013).
Sabe-se que nas Instituições de Longa Permanência, as atividades são rea-
s

lizadas em um mesmo ambiente, sob uma única autoridade e com uma prática
ver

de rotina igual para todos, e em muitos casos, não levam em consideração as


diferenças individuais e históricas, estudos mostram que é comum à pessoa
idosa, ao ser institucionalizado, entrar em confronto com sua autonomia, tor-
nando-se passiva ao ambiente (OLIVEIRA; ROZENDO, 2014; TOMASINI;
ALVES, 2007). Esse fator somado com o processo natural da senescência pode

Flávia Lemos - 21982.indd 392 28/02/2020 13:13:43


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 393

interferir na identidade do idoso. A identidade que é formada ao longo da vida,


com as mudanças provocadas pelo envelhecimento e pela institucionalização,
podem gerar perdas, frustações e situações que podem desencadear outras
patologias, Polaro et al. (2012) destacam que a maioria dos idosos residentes
em uma ILPI, cerca de 60%, possui mais de uma doença, e todos utilizam em
torno de 1 a 4 tipos de remédios. Oliveira e Rozendo (2014) declaram que a
institucionalização na concepção dos idosos, é um local ambíguo, pois, ao

or
mesmo tempo em que acolhe e abriga, aprisiona e mortifica.

od V
Logo, promover ocupações que gerem mudanças no cotidiano dos idosos

aut
institucionalizados, assim como, elaborar estratégias com objetivo de estimular
os vínculos entre os próprios idosos e com a equipe, pode contribuir ao manejo

R
do sofrimento biopsicossocial resultante do processo de envelhecimento,
institucionalização, ausência do grupo familiar, contribuindo a melhoraria de

o
vida desses idosos (FERREIRA, 2011). Conhecer, fornecer condições de vida
e saúde para essas pessoas é necessário para o aperfeiçoamento e funciona-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mento das Institucionalizações de Longa Permanência (POLARO et al., 2012).


A pesquisa de Loureiro e Silva (2015) demonstrou a melhoria nas relações
dos idosos, atribuindo à participação deles em atividades nas instituições,
visã
colocando em vista como um dispositivo de autoajuda e da ressignificação
dos vínculos sociais. Visando contribuir para amenizar o sofrimento psicoe-
mocional e melhorar a qualidade de vida e bem-estar das pessoas idosas, são
itor

importantes à realização de atividades sociais, lúdicas, recreativas, culturais


a re

e de lazer (LOUREIRO; SILVA, 2015).


Um dos pontos essenciais a ser trabalhado nesse contexto, segundo Lou-
reiro e Silva (2015), é buscar conhecer como as pessoas idosas percebem
sua saúde e o modo como esta última se relaciona e interage no cotidiano,
de maneira que as possibilitam pensar as diretrizes dos cuidados prestados.
par

Conhecer os interesses, assim como as atividades exercidas antes e depois


do processo de acolhimento, oportuniza analisar as mudanças ocupacionais,
Ed

podendo mudar suas condições fisiológicas, mentais e físicas.


No estudo de Ferretti et al. (2014), os idosos destacaram que viver a
ão

velhice em um ambiente de institucionalização é conviver com a perda e a


quebra dos laços familiares, é não ter liberdade, autonomia e independência,
porém, é ter acesso a serviços de saúde e cuidados diários que não possuíam
s

antes. Quando analisamos a comparação de saúde dita pelos idosos insti-


ver

tucionalizados com o conceito de saúde trazido pela OMS (ORGANIZA-


ÇÃO..., 2005), a qual descreve saúde muito além do que ausência de doença,
mas a relação de bem estar físico, mental e social, torna-se perceptível à
distância do completo bem-estar, pois mesmo recebendo os cuidados físicos e
suas enfermidades, os idosos institucionalizados enfrentam situações psíquicas

Flávia Lemos - 21982.indd 393 28/02/2020 13:13:43


394

difíceis de serem mudadas, pois vários fatores influência nessa mudança, e


cada idoso carrega uma história.
Para Costa et al. (2017), toda pessoa torna-se completa e sente-se per-
tencente ao mundo quando exercem o seu fazer, e as suas ocupações com
qualidade e rica em significados. É através de suas atividades que os indivíduos
podem demonstrar quem são, ou o que esperam ser. A ocupação, geralmente,
resulta em autodesenvolvimento e crescimento.

or
A Associação Americana de Terapia Ocupacional apresenta vários con-

od V
ceitos de ocupação, destaca a importância da mesma para gerar identidade e

aut
senso de competência, pois ao ser executada da melhor maneira, a ocupação
gera um significado revertido de valores pessoais (ASSOCIAÇÃO..., 2015).
Essa oportunidade e engajamento em realizar essa ação, podem resultar em

R
satisfações únicas, bem como a realização pessoal (PIERCE, 2001). Para
Crepeau, Cohn e Schell (2011), as ocupações devem satisfazer o ser humano,

o
pois somos um ser ocupacional, eles citam evidências baseada na teoria evo-
aC
lucionista, observáveis no processo de evolução da sociedade, onde o ser

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


primata na necessidade de sobrevivência satisfazia a sua vontade a partir de
uma ocupação. Townsend (1997) descreveu a ocupação como um processo
ativo, que vai desde o início até o fim da vida, destacando que elas são ati-
visã
vas ao cuidado pessoal e ao cuidado do próximo, a apreciação da vida, e a
produtividade do ponto de vista social e econômico em diversos contextos.
A respeito da etimologia do termo ocupação, Yerxa (1993) ressalta que
itor

ocupação deriva da raiz latina “occupatione” fazendo referência ao significado


a re

de tomar posse; dedicar seu tempo a algo; trabalho, afazeres com que nos
ocupamos; modo de vida. Também faz referência ao sentido de manter-se ou
manter algo, executar uma ação em um determinado tempo e espaço, além do
investimento em recursos para alcançar um domínio específico. Diante disso,
percebemos que o conceito de ocupação expõe inúmeras definições (MAGA-
par

LHÃES, 2013). Sendo prioritariamente voltadas para ideias associadas a um


Ed

modo de vida idealizado pela maioria, em que o bem-estar e a qualidade do


viver está diretamente associado (KANTARTZIS; MOLINEUX, 2012). O
bem-estar, encontrado através do fazer permite ao indivíduo a ser criativo,
ão

bem como aventurar-se e principalmente, encontrar sentido nas emoções


humanas que experimenta e explora. Bem-estar significa ainda, habituar-se
de maneira adequada e sem interrupções, através do seu fazer, ao que suas
s

vidas apresentam como demanda (MAGALHÃES, 2013).


ver

A Sociedade Internacional de Ciência Ocupacional (INTERNATIO-


NAL..., 2013) apresenta como definição de ocupação, as diversas ativida-
des cotidianas que as pessoas realizam como indivíduo, em família e nas
comunidades, a qual busca trazer significado e propósito à vida, incluindo
aquilo que as pessoas precisam, querem e esperam que façam. “A ocupação

Flávia Lemos - 21982.indd 394 28/02/2020 13:13:43


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 395

constitui um objeto de extrema complexidade, que não somente requer uma


perspectiva verdadeiramente plural e democrática, mas também um refi-
nado conjunto de instrumentos de análise, necessariamente interdisciplinar”
(MAGALHÃES, 2013, p. 261).
Percebemos que independente de local, cultura e ambiente, a realização
de uma ação, sempre estará ligado, seja como meio ou fim, aos interesses
pessoais, vinculado com aquilo que se torna significativo e traz sentido para

or
o indivíduo. Uma das primeiras investigações desenvolvidas para estudar e

od V
fomentar o assunto sobre esses aspectos da ocupação e fazer humano, é a

aut
Ciência Ocupacional (COSTA et al., 2017). Como uma disciplina emergente, a
ciência da ocupação realiza um estudo sistemático de comportamento humano,
com objetivo de desenvolver uma base estruturada de estudo que descreva

R
a participação em ocupações do ser humano (ARAÚJO et al., 2011). Desta
forma, podemos compreender a ligação da ocupação como fonte da Ciência

o
Ocupacional. Para Carrasco e Olivares (2008), a Ciência Ocupacional ou a
aC
Ciência da Ocupação é denominada como complexa, pois busca compreender
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

fenômenos de múltiplas causas e fenômenos relacionais, considerando as


interações como algo dinâmico.
O foco da Ciência da ocupacional, não é apenas a ação em si, mas tam-
visã
bém os sujeitos que participam dentro de seus contextos sociais, culturais e
históricos, ou seja, em como as pessoas vivem e aprendem na vida cotidiana;
dando importância à relação entre ação, participação e saúde. Destaca-se a
itor

participação social e as suas estruturas como meios permitidos que promovam


a re

saúde, participação, qualidade de vida e experiência humana (ARAÚJO et


al., 2011). A Ciência Ocupacional estrutura a ocupação humana em forma,
função e significado. A Forma refere-se aos aspectos que são identificados
com clareza; a Função compreende o modo de como a ocupação influencia o
desenvolvimento, a adaptação, a saúde e a qualidade de vida; já o significado
par

diz respeito à experiência subjetiva do ocupar-se, os quais são associados


Ed

aos valores pessoais, culturais e sociais da pessoa (ARAÚJO et al., 2011).


As ocupações estão inseridas em uma cultura sendo interpretadas a partir do
contexto e da história de vida das pessoas (COSTA et al., 2017; FRIZZO;
ão

CORRÊA, 2018).
É na interação entre ocupação com o ambiente que emerge a Forma
ocupacional, isto é, quando as ideias mentais adquirem um tempo, um espaço
s

físico e social. A forma refere-se às características “visíveis” de uma ocupação,


ver

podendo assumir diferentes formas em diferentes pessoas. A Função ocupa-


cional, diz respeito ao “para que” uma pessoa se envolve em uma ocupação
determinada (ESPINOSA; GÓMEZ, 2006). Para Wilcock (1993), a ocupação
não é apenas a função humana em si, mas a relação que a pessoa busca ter
com mundo, o realizar ocupações de seu interesse, para o autor, é uma maneira

Flávia Lemos - 21982.indd 395 28/02/2020 13:13:44


396

de suprir sua necessidade humana de fazer, considerando a pessoa como um


ser ocupacional, que precisa se envolver em ocupações para assim crescer
e florescer. O Significado corresponde à experiência interna da participação
em certas ocupações e por isso, não é fácil o acesso para o observador. No
significado, percebe-se que as experiências anteriores podem influenciar as
condições inatas da pessoa, e essas escolhas ocupacionais, pode estar relacio-
nado ao significado construíram ao longo da do ciclo de vida (ESPINOSA;

or
GÓMEZ, 2006). Por isso, a Ocupação fornece mecanismos para a interação

od V
e desenvolvimento do indivíduo dentro da sociedade, formando sua identi-

aut
dade tanto pessoal, como do local o qual está inserido, visto que a pessoa não
apenas se envolve em ocupações, mas também planejam e executam suas
ações em grupo, gerando resultados coletivos, mútuos e comunitários (WIL-

R
COCK, 1993). Nesse sentido, esta pesquisa buscou compreender o ocupar de
idosos em uma instituição de Longa Permanência.

o
aC
2. Percurso metodológico

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Trata-se de uma pesquisa do tipo qualitativa, entendendo-se que a pes-
quisa qualitativa busca aprofundar-se nas ações das pessoas em seu ambiente,
visã
contextualizando e interpretando os dados a partir da perspectiva dos próprios
participantes. De acordo com O método possibilitou identificar com clareza
as potencialidades e as limitações no momento da pesquisa, onde Dal-farra
itor

e Lopes (2014) consideram um método eficiente para contribuir, alcançar e


a re

fomentar discussões futuras.


Participaram da pesquisa 07 (sete) idosos residentes de uma Unidade de
Atendimento à Pessoa Idosa. Foram incluídos os idosos residentes há mais
de seis meses, que concordaram participar da pesquisa por meio da leitura e
par

assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram


excluídos idosos que não residiam na Unidade, aqueles que apresentaram
Ed

perdas cognitivas significativas, sem condições de comunicação verbal e/ou


que não aceitaram participar.
A pesquisa foi encaminhada ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
ão

envolvendo seres humanos do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da UFPA.


Após aprovação do projeto pelo Comitê de Ética, parecer 2.858.271, foi dado
o início a pesquisa. Foram atendidos todos os preceitos da Declaração de
s

Helsinque e do Código de Nuremberg, respeitadas as Normas de Pesquisa


ver

Envolvendo Seres Humanos das Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho


Nacional de Saúde (BRASIL 2012, 2016).
Após a aprovação do CEP, primeiramente, foi realizada a ambientação
no local, por parte do pesquisador, como forma de entender como se apre-
senta a estrutura da Unidade, horário de funcionamento, a rotina, de modo,

Flávia Lemos - 21982.indd 396 28/02/2020 13:13:44


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 397

a criar relações às quais aproximassem o mesmo do contexto e das pessoas


envolvidas. Após a fase de ambientação dos pesquisadores, foi realizada uma
entrevista semiestruturada, dividida em duas etapas: A primeira etapa continha
informações sobre a identificação: iniciais do nome, sexo, data de nascimento,
estado civil, contato telefônico, condições econômicas, religião, escolaridade,
e profissão. Na segunda etapa da entrevista, continham informações sobre a

or
entrada na instituição: Como você conheceu? Há quanto tempo mora aqui?
Quais projetos você participa dentro da unidade?; Informações sobre as ocu-

od V
pações: Como eram suas ocupações antes de entrar na unidade? Por que você

aut
realizava essas atividades? O que essas atividades significam para vocês? E
agora, como são suas ocupações? Por que você realiza essas ocupações? O

R
que elas significam para vocês? As entrevistas foram registradas em áudios
e transcritos para análise.

o
Para análise dos dados de cunho qualitativo, foi desenvolvido etapas de
aC
análise: a primeira foi à transcrição na integra das respostas aos questiona-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mentos trazidos na entrevista semiestruturada, o que possibilitou a pré-análise


do material coletado. Esses textos transcritos, quando necessário, passaram
por correções linguísticas, mas sem eliminar o caráter espontâneo das falas.
visã
Foi relacionado às respostas da entrevista com o diário de campo, o que
possibilitou construir o conteúdo da pesquisa e destacar os tópicos/assuntos
mais abordados pelos idosos.
itor

As informações apresentadas na pesquisa foram analisados através da


a re

Técnica de Análise de Conteúdo, um método investigativo, criado por Lau-


rence Bardin (FARAGO; FOFONCA, 2010). Para Gomes (1994), a análise
de conteúdo é compreendida como um conjunto de técnicas, podendo des-
tacar duas funções na aplicação da mesma, uma se refere à verificação de
par

hipóteses e a outra diz respeito às descobertas. Ou seja, podemos encontrar


resposta para perguntas formuladas, assim como confirmar ou não afirmações
Ed

estabelecidas antes da investigação, nesse sentido, descobre-se algo por trás


dos conteúdos manifestos, possibilitando ir a uma análise além do que está
sendo comunicada.
ão

No que diz respeito aos procedimentos de análise, foram considerados as


três etapas referidas por Bardin (1979), ou seja, a Pré-análise que compreende
s

à organização do material oral e escrito coletado, visando a observação e a


comparação das mensagens; a Descrição analítica que trata de descrever os
ver

conteúdos das respostas, inserindo as citações literais das falas dos sujeitos;
e, por fim a Interpretação referencial, ou seja, às interpretações das respostas
vinculadas aos conceitos que emergem nas entrevistas considerando os enfo-
ques teóricos, concomitantemente à descrição analítica.

Flávia Lemos - 21982.indd 397 28/02/2020 13:13:44


398

3. Perfil dos colaboradores

Participaram da pesquisa 07 idosos colaboradores, os quais são iden-


tificados neste estudo por nomes próprios aleatórios, são 42,8% do gênero
feminino e 57,2% masculino, sendo com idade média correspondente a 67,6
para mulheres e 70,8 para homens, onde 57,2 % declararam-se solteiros, 14,3%
denominaram-se casado, viúvo e separado em cada categoria. As pessoas

or
entrevistadas, em sua maioria eram oriundas de municípios do Pará (85,7%),

od V
quanto à religião 71,4% católicos e 28,6% evangélicos. 85,7% dos idosos

aut
recebem renda mensal de até um salário-mínimo, apenas 14,3% dos ido-
sos declarou não receber auxílio financeiro. Com relação à escolaridade, a
porcentagem para sem escolaridade e com ensino fundamental incompleto

R
foram iguais, representado 42,8% em cada. E 71,4% dos idosos não possuem
contato com a família, mas 28,6% relataram receber visita ou receber ligações

o
telefônicas de familiares.
aC
Pesquisas mostram que o número de mulheres institucionalizadas é supe-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


rior ao dos homens (LOUREIRO; SILVA, 2015), no presente estudo o número
de idosos apresentou uma diferença moderada, sendo o número maior de
idosos do sexo masculino, o que influenciou a média de idade ser maior para
visã
os homens do que para as mulheres, o que também, não apresenta na maioria
das pesquisas (DUARTE, 2014). Polaro et al. (2012) apresentaram que nas
ILPI da região metropolitana de Belém, 72% são idosas. Para Alencar et al.
itor

(2012), a prevalência do número de mulheres resulta do fato de maior expec-


a re

tativa de vida em relação aos homens, assim como, uma maior propabilidade
de ficarem viúvas e em condições socioeconômicas desfavorável, necessitando
com mais frequência cuidados.
A baixa escolaridade encontrada no estudo é previsível quando con-
sideramos a realidade da falta de oportunidades educacionais, bem como a
par

discrepância socioeconômica há mais de 60 anos atrás. A constatação de 57,2%


Ed

solteiro e 71% serem católicos é caraterístico, Polaro et al. (2012) relatam que
é uma peculiaridade da Região Norte e principalmente de idosos homens em
vulnerabilidade social, por estarem sujeitos as mazelas da rua, não consegui-
ão

rem manter-se em relacionamentos, enquanto a religião católica ser a mais


frequente na região do Norte de maneira geral.
Oriundos da vulnerabilidade social, 82,7% desses idosos recebem renda
s

auxílio de até 1 salário mínimo, confirma esse dado no estudo comparativo


ver

de idosos residentes de uma ILPI com os atendidos a domicílios. O estudo foi


realizado com 387 idosos de Passo Fundo (Rio Grande do Sul), onde 49,4%
eram institucionalizados, apresentando 60,7% dessa renda de até 1 salário
mínimo, enquanto o grupo de atendimento domiciliar, 86% apresentou entre 1
a 3 salário mínimos (LINI; PORTELLA; DORING, 2016).

Flávia Lemos - 21982.indd 398 28/02/2020 13:13:44


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 399

Estudos mostram que a configuração familiar vem se modificando, e essa


mudança pode acarretar significativamente na vida dos idosos, pois, restringe a
possibilidade do idoso (a) morar junto a família como outrora, implicando em
que essa more em uma ILPI (LOUREIRO; SILVA, 2015; DUARTE, 2014).
Esses dados justificam o motivo desses idosos não terem contato com a famí-
lia, e em seus discursos, aqueles que apresentam interesse e cuidado por eles,
são conhecidos, amigos que os ajudaram a entrar na Unidade, mas que com

or
o tempo vão se distanciando.

od V
aut
4. Perdas, ganhos e necessidades ocupacionais
do idoso institucionalizado

R
De acordo com pesquisas realizadas com idosos institucionalizados, a

o
prevalência dos motivos que levam os idosos a residirem em um ambiente
como uma ILPI são as perdas, como vínculos familiares fragilizados, o avanço
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da idade, as debilidades das funções físicas, fisiológicas e cognitivas, bem


como a ausência de suporte social, a vida solitária, e a decisão de parentes ou
amigos (LOUREIRO; SILVA, 2015; DUARTE, 2014; SILVA; SCORSOLINI;
visã
SANTOS, 2013). Compreender que no decorrer da vida, situações fisiológicas
e psicossociais irão mudar, e essa mudança pode agregar valor, construir e
reconstruir significados de maneira simples e voluntária, assim como, de forma
complexa e fora do poder de escolha pessoal, favorece ao indivíduo identi-
itor

ficar que perdas, ganho e necessidades de realizar ações significativas irão


a re

acontecer (TIRADO; BARRETO; ASSIS, 2013; LOUREIRO; SILVA, 2015).


A esse respeito, mais da metade dos idosos colaboradores desse estudo
referem que com o passar dos anos mudanças ocupacionais foram perdendo
o seu significado, o que os direcionaram a criar estratégias para buscar a
par

mudança, entre essas, perdas funcionais, devido à idade, perda de ente que-
rido, outros a necessidade de cuidados básicos de vida, após acidente físico ao
Ed

desempenhar o seu trabalho, e vulnerabilidade social, sendo eles direcionados


a buscar um novo lugar de maneira voluntária ou por decisões e busca ativa
de conhecidos e amigos:
ão

“Eu vim procurar moradia. Me lembro, eu vim procurar aqui porque eu


estava cansado de morar lá fora [...]. Eu morava com minha mãe, depois
s

ela faleceu, fiquei morando com a minha irmã” (Edy, 78 anos).


ver

“Minha mãe morreu, ai eu não tinha pra onde ir, ai vim pra cá”
(Laura, 73 anos).
“Foi pelo Estado. Foram no Ministério público e me botaram aqui. Antes
eu morava com uma família. Ai depois me botaram aqui, Há três anos tô
por aqui” (Wandeléa, 63 anos).

Flávia Lemos - 21982.indd 399 28/02/2020 13:13:44


400

“Perdi tudo! Perdi tudo das minhas ferramentas. Fiquei mesmo bagun-
çado [...] bebendo cachaça, dormindo por cima do papelão, apanhando
tapa dos outros, às vezes sujos mesmo. Aí, eles acharam graça. Aí eles me
botaram no carro e me trouxeram [...]” (Vicente, 67 anos).

Vicente foi morador de rua por muitos anos, mas por ter habilidades e
boa comunicação, mesmo morando e dormindo pelas calçadas, desempenhava

or
algumas atividades remuneradas, como assar frango aos domingos e limpar
banheiro de lanchonetes, porém, gastava seu dinheiro com bebidas alcoólicas.

od V
Segundo Silva e Gutierrez (2013), morar nas ruas durante a velhice implica

aut
em uma série de males futuros, incluindo a exposição à violência e à crimi-
nalidade, morbidade, acesso precário a serviços sociais e de saúde e baixa
ex­pectativa de vida.
R
Outros chegaram ao Abrigo após se depararem com a necessidade de

o
suporte de assistência a saúde como Jorge e Fagner:
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


“Eu cheguei com problema da AVC me colocaram no quarto 19, depois
que me deu o passa tempo, fiquei um tempo desacordado. Aí me deu von-
tade de levantar, me levantei, fui pra mesa me sentei, até hoje fico naquela
visã
mesa [...] Alguém me trouxe pra cá, não me lembro como, mas alguém me
trouxe. Tá fazendo uns 06 anos. Não lembro quem foi” (Jorge, 72 anos).
“Quando eu adoeci, me coisaram, aí me trouxeram pra cá com a mulher”
(Fagner, 66 anos).
itor
a re

No estudo desenvolvido por Lima, Silva e Galhardoni (2008), há relatos


sobre o envelhecimento e a trajetória dos idosos e os motivos que os levaram
a chegar a uma ILPI, um refúgio à saída das ruas e de atenuar as situações de
desamparo, tanto pela violência como pela dependência do álcool e/ou outras
par

drogas. Os idosos relataram como se sentiam após a estadia dentro do abrigo,


sendo esse discurso semelhante com outros estudos, bem como as respostas
Ed

trazidas pelos idosos deste estudo, que apresentam a valorização positiva da


instituição, pois são vistas como possibilidade de usufruir de serviços ofe-
recidos, bem como suporte das necessidades básicas, como comida, roupa
ão

limpa, bem-estar. O que minimiza as perdas que a vulnerabilidade os acometia


(LIMA; SILVA; GALHARDONI, 2008). Como destaca um colaborador: “Eu
tenho certeza o que mudou muito foi o fator principal a saúde” (Vicente). A
s

institucionalização pode manter esse suporte, atender a satisfação necessidades


ver

básicas, mas por outro lado gerar certo conformismo:

“É melhor aqui, porque eu estou bem. Aqui que é a minha casa, não
tenho casa mesmo. Aqui o que eu faço é comer, dormir, tomar banho”
(Wanderléa).

Flávia Lemos - 21982.indd 400 28/02/2020 13:13:44


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 401

“Aqui eu não faço nada, acordo, lavo meu dente, minha boca, café, tomo
banho, mudo de roupa. Eu faço porque tenho que fazer ficar cheirosa
importante” (Laura).

Segundo Oliveira e Rozendo (2014) e Duarte (2014), a instituição pode


atender as necessidades desses idosos, porém, ao longo da sua estadia, que
duram anos, a permanência dessas pessoas acaba por gerar sentimento de

or
conformismo, de ter uma boa assistência, diante da inexistência de outra
possibilidade de ser cuidado. Também no presente estudo observou-se que,

od V
durante a entrevista, poucos idosos relataram sobre o suporte básico como uma

aut
das ocupações que realizavam, a maioria destacou as atividades realizadas
com os colegas, técnicos e conhecidos, sendo a principal o assistir televisão:

R
“Tenho amigos aqui dentro, converso com eles, converso sobre o assunto

o
da televisão que tá tendo. Eu me sinto bem fazendo isso. É boa minha
aC
relação com os técnicos. Todo mundo é igual. Aqui dentro eu me sinto
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

bem” (Edy).
“Assisto televisão, gosto de assistir a novela, no globo. Programa do Faus-
tão, passa um monte de coisa, cantor cantando. Gosto de Filme” (Laura).
visã
“O que eu mais gosto de brincar é de dominó [...] Eu jogava pra tá se
distraindo [...] fico no quarto olhando a TV, eu me sinto bem. olhando a
TV, significa porque o nego se distrai. Assim como no dominó” (Fagner).
“Ai isso eu que gosto de fazer mesmo, molhar planta, andar, lavar o que
itor

é meu, lavar o apartamento lá que a gente mora, tem que fazer alguma
a re

coisa, que negócio de ficar só o corpo ainda não pede” (Vicente).

Os idosos apresentam a autoanálise de que necessitam fazer algo para se


sentir útil, pertencente ao ambiente, pois reivindicam em seus discursos auto-
nomia, dignidade e principalmente a oportunidade para executar ocupações
par

que lhes sejam escolhidas. Esse comportamento é diretamente relacionado


aos fatores que a idade acarreta, alguns idosos necessitam de auxílio para
Ed

mover-se de um lugar para outro, outros não podem sair sozinhos por perdas
funcionais, e a maioria não saem ou se promovem a algo diferente, por saber
que terá que contar com a ajuda de um monitor, os que os fazem sentir um
ão

fardo, em certas situações (OLIVEIRA, ROZENDO, 2014).


s

“Ah minha filha, aqui no abrigo o nego vive por viver, mas não é como
ver

a gente tá liberto. [...] Aqui não faço nada porque não deixam eu fazer
nada” (Fagner).
“Antes era mais liberdade, agora é mais desse jeito, restrito. Tá muito
triste! Ah,..., inutilidade, é. Porque a gente se sente inútil. Era muita feli-
cidade, saber da capacidade que eu tinha de poder realizar tudo sozinha,
sem depender do outro” (Celly).

Flávia Lemos - 21982.indd 401 28/02/2020 13:13:45


402

“Aqui eu não trabalho, aqui o que eu faço é morar, só mesmo ficar por
aqui, mesmo [...] eu faço é por que não tem outra coisa pra fazer” (Edy).
“Aqui eu não faço nada, Eu faço porque tem que fazer” (Laura).
“Não significa uma coisa muito boa, porque eu quero fazer e não
posso. Mas tá tudo bem! Eu quero fazer as coisas, mas tem quem faça”
(Wanderléa).

Para Rissardo (2012), os idosos de alguma forma sentem-se infringidos,

or
porque em algumas instituições, não conseguem manter um mínimo aceitável

od V
de privacidade. O idoso passa por perder autonomia, pois é levado a adaptar

aut
seus hábitos, horários, dietas com o de outras pessoas e de acordo com as nor-
mas do local. Para Lima, Silva e Galhardoni (2008), um dos maiores almejos
no decorrer da vida e principalmente na velhice é a autonomia, a qual segundo

R
Gomes e Diogo (2004) abrange liberdade de escolha de ação, a privacidade,
a capacidade de buscar suprir as suas necessidades, bem como satisfação e

o
autocontrole sobre a vida.
aC
Reconhecer que os idosos são seres dotados de particularidades e his-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tórias que os tomam com valores pessoais, trazendo sentido, significado e
que isso influencia na forma como eles realizam suas ações, o lidar com o
outro e com o ambiente, possibilita aos profissionais, como Terapeuta Ocupa-
visã
cional, utilizar dessa singularidade, mecanismos que os auxiliem a resgatar,
reconfigurar e gerar de maneira autônoma estratégia que amenizem os fatores
negativos da institucionalização (COSTA et al., 2017; TIRADO; BARRETO;
itor

ASSIS, 2013).
a re

5. Considerações finais
Relacionar as perdas, bem como os ganhos e necessidades dos idosos
institucionalizados, acaba por resumir as relações que o homem tem com
par

aquilo que executa, bem como a forma, os motivos e os significados atre-


lados a esse fazer. Cada idoso entrevistado apresentou um histórico pessoal
Ed

único, que deve ser considerado ao planejarmos estratégias de promoção da


saúde. Desse modo, os resultados deste estudo, possibilitou identificar perdas
e ganhos referentes ao processo de institucionalização da pessoa idosa.
ão

O estudo aponta a necessidade de outras pesquisas na área, de projetos


e políticas públicas com o objetivo de prestar melhores serviços, sendo estes,
humanizados e sensíveis à raiz do problema, como a vulnerabilidade social de
s

idosos, as estruturas e os tipos de assistência dada a essas pessoas. Destaca-se,


ver

portanto, que a ocupação é uma variável relevante na prevenção e promoção


de saúde, em especial aos que há anos sofrem com a discriminação. Estudos
como este, possibilitam a eles a esperança da quebra de estereótipos, assim
como, a mudança da situação social e ocupacional enquanto cuidado e assis-
tência à pessoa idosa.

Flávia Lemos - 21982.indd 402 28/02/2020 13:13:45


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 403

REFERÊNCIA
ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução nº. 283, 26
de Setembro de 2005. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://por-
tal.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RDC_283_2005_COMP.pdf/
a38f2055-c23a-4eca-94ed-76fa43acb1df>. Acesso em: 10 abr. 2019.

or
ALENCAR, M. A. et al. Perfil dos idosos residentes em uma instituição

od V
de longa permanência. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, v.

aut
15, n. 4, p. 785-796, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbgg/
v15n4/17.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2018.

R
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE TERAPIA OCUPACIONAL. Estrutura

o
da prática da Terapia Ocupacional: Domínio & Processo. Revista de Terapia
aC
Ocupacional da Universidade de São Paulo, v. 26, p. 1- 49, 2015. Disponí-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

vel em: <http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v26iespp1-49>. Acesso


em: 12 nov. 2017.
visã
ARAÚJO, L. S. et al. Ciencia de la ocupación y terapia ocupacional: sus
relaciones y aplicaciones a la práctica clínica. Revista Chilena de Terapia
Ocupacional, v. 11, n. 1, p. 79-91, 2011. Disponível em: <https://revistas.
itor

uchile.cl/index.php/RTO/article/view/17084>. Acesso em: 05 nov. 2018.


a re

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1979.

BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução nº 466. Conselho Nacional de


Saúde. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.
par

pdf. Acesso em: 12 maio 2018.


Ed

______. Ministério da Saúde. Resolução nº 510. Conselho Nacional de


Saúde. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.
pdf. Acesso em: 12 maio 2018.
ão

CAMARGOS, M. C. S. Instituições de Longa Permanência para Idosos: um


s

estudo sobre a necessidade de vagas. Revista Brasileira de Estudos de Popu-


ver

lação. Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p. 211-217, 2014.

CAMARANO, A. A; KANSO, S. As instituições de longa permanência


para idosos no Brasil. Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de
Janeiro, v. 27, n. 1, p. 233-235, 2010.

Flávia Lemos - 21982.indd 403 28/02/2020 13:13:45


404

CARRASCO, J. M.; OLIVARES, D. A. Haciendo camino al andar: cons-


trucción y comprensión de la Ocupación para la investigación y práctica de
la Terapia Ocupacional. Revista Chilena de Terapia Ocupacional. n. 8,
p. 5-16, 2008.

CASTRO, J. A.; VAZ, F. M. (Org.). Situação social brasileira: monitora-


mento das condições de vida. Brasília: Ipea, 2011.

or
od V
COSTA, E. F. et al. Ciência Ocupacional e Terapia Ocupacional: Algumas

aut
reflexões. Revisbrato, Rio de Janeiro, v. 1, n. 5, p. 650-663, 2017. Disponível
em: <https://www.researchgate.net/publication/324862727>. Acesso em: 12
nov. 2018.

R
o
CREPEAU, E. B; COHN, E. S; SCHELL, B. A. B. Willard & Spackman:
Terapia Ocupacional. 11. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


DAL-FARRA, R. A; LOPES, P. T. C. Métodos mistos de pesquisa em educa-
ção: pressupostos teóricos. Nuances: estudos sobre Educação, v. 24, n. 3,
visã
p. 67-80, 2014.

DUARTE, L. M. N. O processo de institucionalização do idoso e as territo-


rialidades: espaço como lugar?. Estudos Interdisciplinares sobre o Enve-
itor

lhecimento, v. 19, n. 1, 2014.


a re

ESPINOSA, I. M.; GÓMEZ P. S. Ocupaciones de tiempo libre: una aproxi-


mación desde la perspectiva de los ciclos vitales, desarrollo y necesidades
humanas. Revista Chilena de Terapia Ocupacional Santiago. v. 6, n. 6,
par

p. 39-45, 2006. Disponível em: https://revistas.uchile.cl/index.php/RTO/arti-


cle/download/110/95/0. Acesso em: 9 nov. 2018.
Ed

FAGUNDES, K. V. D. L. et al. Entidades de larga permanencia como alter-


nativa para acoger adultos mayores. Revista de Salud Pública, [s.l.], v. 19,
ão

n. 2, p. 210-214, 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.15446/rsap.


v19n2.41541>. Acesso em: 6 nov. 2018.
s
ver

FARAGO, C. C; FOFONCA, E. A análise de conteúdo na Perspectiva de


Bardin: do rigor metodológico à descoberta de um caminho de significações.
2010. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao18/
artigos/007.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 404 28/02/2020 13:13:45


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 405

FERRETTI, F. et al. Viver a Velhice em Ambiente Institucionalizado. Estu-


dos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, Porto alegre, v. 19, n. 2,
p. 423-437, 2014.

FERREIRA, Z. Percepção do estado de saúde da pessoa idosa instituciona-


lizada. 2011. Dissertação de mestrado em saúde e envelhecimento. Universi-
dade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Médicas, Lisboa-Portugal, 2011.

or
FIOCRUZ. Sistema de Indicadores de Saúde e acompanhamento de polí-

od V
ticas do Idoso. 2010. Disponível em: <https://sisapidoso.icict.fiocruz.br/

aut
consulta-por-municipio>. Acesso em: 17 nov. 2017.

R
FILHO, W. J; KIKUCHI, E. L. Geriatria e Gerontologia Básicas. Rio de
Janeiro, RJ: Elsevier, 2011.

o
aC
FRIZZO, H. C. F.; CORRÊA, V. A. C. Terapia Ocupacional em Contextos Hos-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

pitalares: atribuições, competências e fundamentos. Revista Família, Ciclos


de Vida e Saúde no Contexto Social, Triângulo Mineiro, v. 6, n. 1, 2018.
Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=497955422016>.
visã
Acesso em: 05 nov. 2018.

GARCIA, Y. M. Epidemiologia do Envelhecimento. In: FILHO, W. J; KIKU-


itor

CHI, E. L. Geriatria e Gerontologia Básicas. Rio de Janeiro, RJ: Else-


vier, 2011.
a re

GOMES, R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M.


C. S. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade, 1994.
par

GOMES, G. C.; DIOGO, M. J. D. E. Função motora, capacidade funcional e


sua avaliação em idosos. In: DIOGO, M. J. D’E.; NERI, A. L.; CACHIONI,
Ed

M. (Org.). Saúde e qualidade de vida na velhice. Campinas: Alínea, p. 107-


132, 2004.
ão

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de


indicadores sociais uma análise das condições de vida da população brasi-
leira. Censo Demográfico. Rio de Janeiro, RJ, 2010. Disponível em: <https://
s

censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=26&uf=15#topo_piramide>.
ver

Acesso em: 06 nov. 2017.

INTERNATIONAL SOCIETY OF OCCUPATIONAL SCIENCE - ISOS.


Conceito de Ocupação, 2013. Disponível em: http://www.isoccsci.org/.
Acesso em: 10 mai. 2019.

Flávia Lemos - 21982.indd 405 28/02/2020 13:13:45


406

IPEA. Infraestrutura Social e Urbana no Brasil: subsídios para uma agenda de


pesquisa e formulação de políticas públicas. Condições de funcionamento
e infraestrutura das instituições de longa permanência para idosos no
Brasil. 2011. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/
pdfs/comunicado/110524_comunicadoipea93.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2018.

KANTARTZIS, S.; MOLINEUX, M. Understanding the discursive develop-

or
ment of occupation: Historico-political perspectives. In: WHITEFORD, G.;
HOCKING, C. (Ed.). Occupational science: Society, inclusion, participation.

od V
aut
Oxford: Blackwell Publishing Ltd., p. 38-53, 2012.

LEBRÃO, M. L; LAURENTI, R. Saúde, bem-estar e envelhecimento: o estudo

R
SABE no Município de São Paulo. Revista brasileira de epidemiologia,
v. 8, n. 2, p. 127, 2005.

o
aC
LIMA, A. M. M.; SILVA, H. S.; GALHARDONI, R. Envelhecimento bem-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


-sucedido: trajetórias de um constructo e suas novas fronteiras. Interface:
Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 12, n. 27, p. 795-807, 2008.
visã
LINI, E. V.; PORTELLA, M. R.; DORING, M. Factors associated with the
institutionalization of the elderly: a case-control study. Revista Brasileira de
Geriatria e Gerontologia, [s.l.], v. 19, n. 6, p.1004-1014, 2016. Disponível
itor

em: <http://dx.doi.org/10.1590/1981-22562016019.160043>. Acesso em: 20


dez. 2018.
a re

LOUREIRO, R. S.; SILVA, H. P. Potenciais impactos na saúde de idosos ins-


titucionalizados pelo seu afastamento do convívio familiar. Revista Kairós
Gerontologia, n. 18, v. 3, p. 367-380, jun./set. 2015.
par

LORDA, C. R; SANCHEZ, C. D. Recreação da Terceira Idade. 4. ed. Rio


Ed

de Janeiro: Sprint, 2004.

MAGALHÃES, L. Ocupação e atividade: tendências e tensões conceituais na


ão

literatura anglófona da terapia ocupacional e da ciência ocupacional. Cader-


nos de Terapia Ocupacional da Ufscar, São Carlos, v. 21, n. 2, p. 255-
263, 2013. Disponível em: <http://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.
s

br/index.php/cadernos/article/download/812/437>. Acesso em: 14 nov. 2018.


ver

MEDEIROS, L. Os Números da Terceira Idade no Brasil e no Mundo. Agên-


cia Soma. Rio de Janeiro, 18 abr. 2018. Disponível em: <http://www.soma.
org.br/terceira-idade/4123-estatisticas-idosos-no-brasil-e-no-mundo>. Acesso
em: 05 nov. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 406 28/02/2020 13:13:45


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 407

MELLO, M. A. F. Terapia Ocupacional Gerontológica. In: SOUZA, A. C.


A.; GALVÃO, C. R. C. Terapia Ocupacional: fundamentos e prática. Rio
de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011. Cap. 39. p. 367-376.

NETO, A. V. L. et al. Estimulação em idosos institucionalizados: efeitos da


prática de atividades cognitivas. Rer. Fund. Care Online. Rio de Janeiro,
v. 9, n. 3, p. 753-759, jul./set. 2017.

or
od V
OLIVEIRA, J. M.; ROZENDO, C. A. Instituição de Longa Permanência para

aut
Idosos: um lugar de cuidado para quem não tem opção? Revista Brasileira
de Enfermagem. Maceió, AL, v. 67, n. 5, p. 773-779, set./out. 2014.

R
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Envelhecimento ativo: uma

o
política de saúde. Organização Pan-Americana da Saúde, Brasília, 2005.
Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/envelhecimento_
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ativo.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2018.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL NA SAÚDE. Expectativa de vida


visã
subiu 05 anos desde 2000. Disponível em: http://www.paho.org/bra/index.
php?option=com_content&view=article&id=5102:oms-expectativa-de-vida
-subiu-5-anos-desde-2000-mas-desigualdades-na-saude persistem& Ite
itor

mid=839 Acesso em: 27 set. 2017.


a re

PARADELLA, R. Número de Idosos cresce 18% em 5 anos e ultrapassa 30


milhões em 2017. Estatísticas Sociais, 26 abr. 2018. Disponível em: <https://
agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/
noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-
par

milhoes-em-2017>. Acesso em: 05 nov. 2018.


Ed

PIERCE, D. Untangling Occupation and Activity. American Journal of


Occupational Therapy, v. 55, n. 2, p. 138–146, 2001. Disponível em: <http://
ão

dx.doi.org/10.5014/ajot.55.2.138>. Acesso em: 12 maio 2019.

POLARO, S. H. I. et al. Idosos residentes em instituição de longa permanên-


s

cia para idosos da região metropolitana de Belém-PA. Revista Brasileira de


ver

Geriatria Gerontologia, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 777-784, 2012.

RISSARDO, L. K. et al. Sentimentos de residir em uma instituição de longa


permanência: percepção de idosos asilados. Revista de Enfermagem UERJ,
v. 20, n. 3, p. 380-385, 2012.

Flávia Lemos - 21982.indd 407 28/02/2020 13:13:45


408

SILVA, J. D.; SCORSOLINI, F.; SANTOS, M. A. Idosos em instituições de


longa permanência: desenvolvimento, condições de vida e saúde. Psicologia:
reflexão e crítica, v. 26, n. 4, 2013.

SILVA, H. S.; GUTIERREZ, B. A. O. Dimensões da qualidade de vida de


idosos moradores de rua do município de São Paulo. Saúde e Sociedade,
v. 22, p. 148-159, 2013.

or
od V
TIRADO, M. G. A.; BARRETO, K. M. L.; ASSIS, L. O. Terapia Ocupacional

aut
em Gerontologia. In: FREITAS, Elizabeth Viana de. Tratado de Geriatria e
Gerontologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, Cap. 127. p. 1422-
1427. 2013

R
THE WORLD BANK. Life Expectacy at birth. 2016. Disponível em:

o
<https://data.worldbank.org/indicator/SP.DYN.LE00>. Acesso em: 27 set.
aC
2017.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


TOMASINI, S. L; ALVES, S. Envelhecimento bem-sucedido e o ambiente
das Instituições de Longa Permanência. Passo Fundo-RS, Revista Brasileira
visã
de Ciências do Envelhecimento Humano, v. 4, n. 1, p. 88-102, 2007.

TOWNSEND, E. Occupation: Potential for Personal and Social Transformtion.


itor

Journal of Occupational Science, v. 4, n. 1, p. 18-26, 1997. Disponível em:


a re

<https://doi.org/10.1080/14427591.1997.9686417>. Acesso em: 12 maio 2019.

VECCHIA, R. D. et al. Quality of life in the elderly: a subjective con-


cept. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 8, n. 3, p. 246-252, 2005.
par

WILCOCK, A. A theory of the human need for occupation. Journal Of Occu-


pational Science, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 17-24, 1993. Disponível em: <https://
Ed

www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14427591.1993.9686375>. Acesso
em: 12 nov. 2018.
ão

YERXA, E. J. Occupational Science: A new source of power for participants


in occupational therapy. Journal of Occupational Science. Melbourne; v. 1,
s

n. 1, p. 3-10, 1993. Disponível em: 10.1080/14427591.1993.9686373. Acesso


ver

em: 12 mai. 2019.

Flávia Lemos - 21982.indd 408 28/02/2020 13:13:45


CARACTERÍSTICAS DEMOGRÁFICAS
DE FAMÍLIAS POBRES DE UMA
METRÓPOLE DA AMAZÔNIA

or
V
Thamyris Maués dos Santos

aut
Edson Marcos Leal Soares Ramos
Fernando Augusto Ramos Pontes
Simone Souza da Costa Silva

CR
do
1. Introdução

O objetivo deste estudo é apresentar características familiares de pessoas


em condição de vulnerabilidade econômica, residentes no município de Belém
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
(PA). Para tanto, foram realizadas entrevistas sociodemográficas com 488 par-
ticipantes residentes no município, utilizando o Inventário de Pobreza Familiar
ra
(IPF – BARROS et al., 2016) e o Inventário Socio Demográfico, construído
pelo Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento da Universidade Federal
i
rev

do Pará (LED-UFPA). Foram realizadas análises descritivas de variáveis com


o intuito de caracterizar aspectos que sejam importantes para a reflexão das
dinâmicas e da organização de famílias pobres.
to

Compreender a pobreza em termos teóricos é uma tarefa complexa,


em função das múltiplas variações de interpretação que jazem na discussão
ara

acerca do conceito. Todavia, as múltiplas definições coadunam-se em dire-


ção à compreensão de que a pobreza diz respeito a condições de privação de
ver di

necessidades básicas para a sobrevivência dos indivíduos, que, além do mais,


impossibilitam ou prejudicam o desenvolvimento saudável e o bem-estar dos
op

indivíduos, além de poder ser somente material ou incluir elementos culturais


e sociais (SILVA et al., 2017). A fim de aferir a magnitude da pobreza entre as
E

populações, os governos e demais interessados utilizam medidas que, geral-


mente, restringem-se à análise da renda para definir quem são os indivíduos


e famílias pobres (FAHEL et al., 2016). Porém, as medidas circunscritas à
renda, embora práticas, tendem a negligenciar vários aspectos envolvidos
com a condição, como a falta de acesso à educação, à saúde, ao trabalho,
à alimentação, dentre outros, produzindo uma visão estática e reduzida do
fenômeno (OLIVEIRA et al., 2017; SILVA et al., 2017).
No Brasil, as análises realizadas atualmente utilizam ainda critérios mone-
tários, em especial o critério estabelecido pelo Banco Mundial, para o qual os
pobres são as pessoas que sobrevivem com menos de $5,50 dólares por dia.
De acordo com medidas oficiais, os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro

Flávia Lemos - 21982.indd 409 28/02/2020 13:13:46


410

de Geografia e Estatística (IBGEa) demonstram que cerca de 52 milhões de


pessoas vivem em condição de pobreza no Brasil, sendo que aproximada-
mente 13 milhões estão em condição de extrema pobreza (IBGEa, 2017).
Considerando as especificidades do país, a pobreza fundamenta-se na grande
desigualdade social existente, que o coloca na segunda posição da escala
mundial de desigualdade, com 1% da população detendo cerca de 28% da
renda total (BANCO MUNDIAL, 2017). Como consequência desta distribui-

or
ção, 25,4% dos brasileiros possuía menos de R$ 387 por mês para sobreviver,

od V
em 2016 (IBGEa, 2017).

aut
Uma vez que as medidas escolhidas para avaliar a pobreza baseiam-se
nas concepções dos atores sociais que formulam as políticas públicas focadas
no fenômeno (PONTES, 2010), a fim de engloba-lo de modo mais amplo e

R
preciso, estudiosos ocupam-se com a construção de medidas multidimensio-
nais. O pioneiro nesta proposta foi o economista indiano Amartya Sen, para

o
quem a pobreza é a privação das capacidades básicas individuais e não apenas
aC
a inferioridade de um limite pré-estabelecido de renda (SEN, 2000). Suas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


teorias originaram o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), atualmente
utilizado para comparar os níveis de desenvolvimento dos países considerando
também fatores de Educação e de Saúde, além da Renda (FAHEL et al., 2016;
visã
SILVA et al., 2017).
No contexto brasileiro, o Índice de Pobreza Familiar (IPF – BARROS
et al., 2006) propõe-se a investigar as dimensões múltiplas envolvidas com
itor

a pobreza, sendo criado para atender a demanda de escalas de medição que


a re

sejam sensíveis às características complexas desta condição. As dimensões que


constituem esta medida são: vulnerabilidade vivenciada pela família, escas-
sez de acesso ao trabalho e à educação, renda familiar, desenvolvimento das
crianças e dos adolescentes e condições de habitação (BARROS et al., 2006).
Dentre os grupos populacionais mais vulneráveis aos efeitos deletérios
par

da pobreza os mais afetados são as famílias nas quais vivem mulheres pretas
Ed

ou pardas sem cônjuge e com filhos de até 14 anos, que perfazem um total
de 7,4 milhões de indivíduos no país (IBGEa, 2017). Estes grupos também
são mais propensos a viver na pobreza quando se consideram as dimensões
ão

de acesso à educação, de proteção social, de moradia adequada, de serviços


de saneamento básico e de internet (IBGEa, 2017).
Coerente com esta realidade, cabe ressaltar a influência da monoparen-
s

talidade feminina no contexto de muitas famílias pobres (MAIA et al., 2015;


ver

YUNES et al., 2007). Isto porque, em geral, mães que são sobrecarregadas
com a criação e educação dos filhos e subsistência doméstica precisam lidar
com o acúmulo de tarefas fundamentais e exigentes. Esta sobrecarga conduz
ao processo de feminização da pobreza, no qual ocorre o aumento da pobreza
feminina em função das desigualdades sociais de gênero, tornando as mulheres

Flávia Lemos - 21982.indd 410 28/02/2020 13:13:46


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 411

mais pobres que os homens ao longo dos anos (MAIA et al., 2015). Deste
modo, torna-se ainda mais desafiador lidar com as condições de pobreza, con-
siderando a falta de suporte social, em especial do companheiro que dividiria
as tarefas parentais (ATTREE, 2005).
Além dos aspectos intrafamiliares, também é importante atentar para
aspectos macrossociais que influenciam na vida de quem vive na pobreza
(BRONFENBRENNER, 1979/1996). O Brasil caracteriza-se por ser um país

or
no qual a desigualdade de renda é uma das maiores do mundo, sendo conside-
rada uma característica estrutural, dada a transgeracionalidade do fenômeno

od V
(OLIVEIRA et al., 2017; SILVA et al., 2017). Tal diferença de disponibili-

aut
dade e de utilização de recursos socioeconômicos também se expressa entre
as regiões do país, sendo a região Norte mais empobrecida, expressando esta

R
desigualdade regional (OLIVEIRA et al., 2017).
Um dos aspectos que se destaca na pobreza brasileira diz respeito a uma

o
tendência de metropolização, que é definida como o aumento dos índices de
aC
pobreza em ambientes metropolitanos (MONTALI; TAVARES, 2008). Con-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

siderando o período de 1995 a 2003, houve um crescimento da proporção de


pobres nas regiões metropolitanas e a redução do número de pobres identifi-
cada a partir de 2004 mostrou-se mais tênue nas regiões metropolitanas que
visã
nas rurais e nas urbanas não-metropolitanas (MONTALI; TAVARES, 2008).
Este processo de metropolização da pobreza deve-se a quatro fatores, a saber:
“fraca criação de postos de trabalho, evolução desfavorável do rendimento do
itor

trabalho, aumento relativamente forte do custo de vida dos pobres e menor


impacto positivo dos programas de transferência de renda com valores fixados
a re

com base em parâmetros nacionais (MONTALI; TAVARES, 2008).


Dentro da região Norte, o estado do Pará possuí um histórico de cresci-
mento econômico que não foi acompanhado pela diminuição da desigualdade
social. Deste modo, o crescimento econômico reduziu a pobreza medida em
par

termos monetários, sem proporcionalmente beneficiar os mais pobres (OLI-


VEIRA et al., 2017). Além disso, não obstante as regiões metropolitanas
Ed

serem, em geral, mais desenvolvidas que as regiões rurais (SILVA et al., 2017),
na região metropolitana de Belém, ocorreu o mesmo padrão encontrado na
análise estadual, no qual o crescimento econômico não favoreceu necessaria-
ão

mente as camadas mais pobres da população (OLIVEIRA et al., 2017). Por


conseguinte, a Região Metropolitana de Belém possui a maior quantidade de
domicílios em aglomerados subnormais, com 54% do total de residências,
s

sendo que na capital este percentual é de 52% (PONTE et al., 2013).


ver

Portanto, tendo em vista as peculiaridades regionais e as influências


que a pobreza pode exercer em famílias que vivenciam esta experiência, o
objetivo deste estudo é descrever características de famílias pobres residentes
na área continental do município de Belém (PA), apresentando as medidas
sociodemográficas e de pobreza multidimensional.

Flávia Lemos - 21982.indd 411 28/02/2020 13:13:46


412

2. Método

2.1 Delineamento

Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo, de corte transversal.

2.2 Participantes

or
od V
Participaram deste estudo 448 mães/ responsáveis de famílias pobres

aut
residentes na porção continental do município de Belém (PA). Para alcançar
esta quantidade de participantes, foi realizado um planejamento amostral,
cujos critérios para a inclusão das famílias foram: (a) Famílias inscritas no

R
Cadastro Único (CadÚnico) do Governo Federal até o mês de agosto de 2015,
residentes na porção continental do município de Belém. Este critério foi

o
estabelecido em função de que para as famílias estivessem inscritas no CadÚ-
aC
nico, sua renda per capita deveria ser de até meio salário mínimo, o que as

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


caracterizaria como famílias pobres monetariamente. Foram selecionadas as
residentes na porção continental do município pelo maior acesso a estas; (b)
Famílias com no mínimo uma criança ou adolescente, com idade entre cinco
visã
e 18 anos, sendo esta faixa etária estabelecida em função dos instrumentos
utilizados na pesquisa mais ampla da qual esse estudo faz parte.
itor

2.3 Ambiente
a re

A pesquisa foi realizada com famílias residentes na porção continental


da cidade de Belém, capital do estado do Pará. O município compunha-se
por 1.446.042 habitantes no momento da coleta de dados, sendo a segunda
cidade mais populosa da região Norte. Quanto aos aspectos econômicos,
par

cerca de 70% da população estava em idade ativa, com apenas 30,5% vin-
culado a um emprego formal. Como consequência, a taxa percentual da
Ed

população que sobrevivia com rendimento nominal mensal per capta de até
meio salário mínimo, ou seja, em situação de pobreza monetária, era de 39%
(IBGEb, 2017). Deste modo, em 2016, havia 144 mil famílias residindo
ão

em condição de vulnerabilidade pessoal e social no município de Belém.


(IBGEb, 2017).
O órgão municipal responsável pela assistência social no município é
s

a Fundação Papa João XXIII (FUNPAPA). Para a prestação de serviços de


ver

assistência social básica, a FUNPAPA estava estruturada em 12 Centros de


Referência em Assistência Social (CRAS), localizados em áreas periféricas
e que apresentavam vulnerabilidade, nos seguintes bairros: Aurá, Barreiro,
Bengui, Cremação, Icoaraci, Guamá, Jurunas, Mosqueiro, Outeiro, Pedreira,
Terra Firme, Tapanã.

Flávia Lemos - 21982.indd 412 28/02/2020 13:13:46


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 413

2.4 Instrumentos

2.4.1 Inventário Sociodemográfico (ISD)

O Inventário Sociodemográfico teve o objetivo de caracterizar as famílias


participantes do estudo em termos sociodemográficos. É utilizado tradicio-
nalmente pelo grupo de pesquisa do Laboratório de Ecologia do Desenvol-

or
vimento, sendo constituído por 41 itens (SILVA et al. 2010), demarcando o

od V
primeiro contato com as famílias. Deste modo, possibilitou o início da relação

aut
entre pesquisador e pesquisado. Neste estudo, foram utilizadas as informações
referentes ao status familiar, estado civil, situação laboral, idade, escolaridade
e quantidade de filhos das participantes, além de informações acerca da estru-

R
tura familiar e da participação no PBF.

o
2.4.2 Índice de Pobreza Familiar (IPF)
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O Índice de Pobreza Familiar (IPF) (BARROS et al., 2006) mede a


pobreza multidimensional, podendo ser calculado tanto em grupos demográfi-
cos quanto em nível familiar. É composto por seis dimensões, 26 componentes
visã
e 48 indicadores, permitindo que seja obtido o grau de pobreza conside-
rando cada dimensão. No artigo no qual foi proposto, não foi apresentado
alfa de crombach.
itor

Cada resposta positiva às perguntas do instrumento representa um ponto


a re

na contagem do nível de pobreza familiar. Assim, cada família pode apresentar


um resultado que varia de zero, o que representaria a ausência de fatores que
estão relacionados à pobreza familiar, a 48, o que representaria a pobreza
extrema. A ponderação do instrumento é realizada de modo que o grau de
pobreza de cada família possa variar entre zero (para aquelas famílias sem
par

qualquer traço de pobreza) e 100 (para as famílias absolutamente pobres), a


Ed

partir de cálculos de porcentagens para cada nível.


As seis dimensões da pobreza avaliadas pelo IPF são: (a) vulnerabilidade,
que diz respeito ao volume adicional de recursos que uma família demanda
ão

para satisfazer suas necessidades básicas. Nesta dimensão são avaliadas a


fecundidade familiar, a atenção e os cuidados especiais com crianças, ado-
lescentes, jovens e idosos, a dependência demográfica e a presença da mãe;
s

(b) acesso ao conhecimento, que se refere à avaliação do analfabetismo, da


ver

escolaridade formal e da qualificação profissional dos membros da família; (c)


acesso ao trabalho, que se relaciona com as oportunidades que a família possui
de utilizar sua capacidade produtiva, como a disponibilidade e a qualidade
dos postos de trabalho e a remuneração obtida; (d) escassez de recursos, no
qual são avaliadas medidas de extrema pobreza, de pobreza e de capacidade

Flávia Lemos - 21982.indd 413 28/02/2020 13:13:46


414

de geração de renda; (e) desenvolvimento infantil, que avalia a existência de


trabalho precoce, de evasão escolar, de atraso escolar e de mortalidade infan-
til; e (f) carências habitacionais, que são avaliadas em função de guardarem
estreitas relações com as condições de saúde.
As estatísticas e categorizações utilizadas para o IPF neste estudo são
apresentadas na Tabela 1. Uma vez que o instrumento não apresenta pontos de
corte padronizados, os resultados foram ordenados em função do IPF geral e

or
divididos em quartis, sendo estabelecidas as seguintes divisões: famílias mais

od V
pobres (correspondentes ao quartil 1 ou as 25% mais pobres), famílias em

aut
média pobreza (correspondente aos quartis 2 e 3 ou as famílias localizadas
entre 26% a 75% na distribuição ordinal) e famílias menos pobres (corres-
pondentes ao quartil 4 ou as 25% menos pobres).

R
Tabela 1 – Estatísticas e Categorias referentes ao Índice de Pobreza Familiar e

o
suas dimensões em Famílias Pobres Residentes no Município de Belém (PA)
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Estatísticas Níveis
Dimensões
Média (DP) Mín. Máx Baixa Pobreza Média Pobreza Alta Pobreza
Vulnerabilidade 4,16 (1,31) 1 10 1a3 3,01 a 4,99 5 a 10
Conhecimento 2,43 (1,19) 0 6 0a2 2,01 a 2,99 3a6
visã
Trabalho 2,85 (1,33) 0 6 0a2 2,01 a 3,99 4a6
Renda 0,51 (0,87) 0 3 0a0 0,01 a 0,99 1a3
Desenvimento 0,54 (0,75) 0 4 0a0 0,01 a 0,99 1a4
Habitação 3,91 (1,71) 0 9 0a3 3,01 a 4,99 5a9
itor

IPF Total 14,40 (3,89) 5 27 5 a 12 12,01 a 16,99 17 a 27


a re

Fonte: Banco de dados GEFAVS-LED-UFPA.

2.5 Procedimentos de Coleta

A execução desta pesquisa ocorreu concomitante a outras pesquisas,


par

estando todos inseridos no macroprojeto “Pobreza e Ecologia do Desenvolvi-


Ed

mento”. Inicialmente foi realizada a submissão do macroprojeto ao Comitê de


Ética em Pesquisas Científicas, do Núcleo de Medicina Tropical da Universi-
dade Federal do Pará, que o aprovou sob parecer CAAE 21653814.4.0000.5172.
ão

A fim de estabelecer o critério para elegibilidade das famílias participan-


tes, foram realizadas discussões teóricas no Grupo de Estudos de Famílias
em Vulnerabilidade Social, do Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento
s

(GEFAVS-LED), sendo estabelecido que o critério seria a inscrição efetivada


ver

no CadÚnico. Isto porque famílias cadastradas neste sistema são famílias


pobres ou em vulnerabilidade econômica e social. Posteriormente, solicitou-
se à Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (SENARC) do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) o banco de dados de
famílias inseridas no CadÚnico do município de Belém, até o mês de agosto

Flávia Lemos - 21982.indd 414 28/02/2020 13:13:47


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 415

de 2015. Após a obtenção deste material, foi realizado o cálculo amostral da


quantidade de famílias participantes por bairro do município de Belém, com
base na população de 154.779 famílias cadastradas no sistema federal.
Deste modo, o estudo foi realizado a partir da análise de uma amostra
representativa da população de famílias pobres residentes na área continental
do município de Belém (PA), sendo utilizados procedimentos de Amostra-
gem Aleatória Simples e Amostragem Aleatória Estratificada (Bolfarine &

or
Bussab, 2005). Após os cálculos estatísticos realizados para a produção do
plano amostral, foi possível obter a quantidade necessária de participantes,

od V
que foi de 426 famílias.

aut
No tocante à preparação da equipe de pesquisa para a coleta de dados,
após a seleção dos instrumentos a serem aplicados, foi realizado um estudo

R
piloto com famílias de perfis semelhantes aos das participantes deste estudo.
Após o estudo piloto, foi decidido que as coletas seriam feitas através de

o
entrevistas individuais, para facilitar a supressão de dúvidas dos participantes.
aC
Posteriormente, foi realizado contato com a FUNPAPA, solicitando auto-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

rização para a realização de entrevistas nos ambientes dos CRAS. Com esta
permissão, foram feitos contatos com os coordenadores dos CRAS, explicando
o objetivo da pesquisa, os procedimentos que seriam adotados e solicitando os
visã
dias de atendimento a pessoas que tivessem demandas de CadÚnico/ Programa
Bolsa Família. Tendo em vista que a população participante deste estudo
residia apenas na área continental do município de Belém, foram excluídos
os CRAS das ilhas de Mosqueiro e de Outeiro, além de famílias ribeirinhas
itor

atendidas no CRAS Guamá. A fim de não enviesar os dados, optou-se por


a re

entrevistar famílias que estivessem no CRAS apenas para confirmação ou


ajuste de informações referentes ao CadÚnico e/ou Programa Bolsa Família,
não participando de outras atividades oferecidas pelo centro.
Estando no CRAS, a equipe dividia-se em duplas e dirigia-se a um indi-
par

víduo, que poderia ser possível participante, apresentando-se e perguntando


inicialmente: (a) Qual o motivo que a direcionou ao CRAS? (b) Qual o bairro
Ed

em que morava? (c) Se possuía filhos ou crianças sob as quais era responsável
com idade entre cinco e 18 anos incompletos. Uma vez que as respostas a
estas perguntas estavam de acordo com o requerido pela pesquisa, solicitava-
ão

se anuência da participante para realização da entrevista através da leitura e


assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A duração média
da entrevista era de uma hora e a coleta de dados estendeu-se durante todo
s

o ano de 2016.
ver

2.6 Procedimentos de análise


Para realizar a análise dos dados, os instrumentos preenchidos foram
inseridos em um arquivo do programa SPSS 20.0. Após a inserção, foram
avaliadas as medidas estatísticas descritivas das variáveis sociodemográficas

Flávia Lemos - 21982.indd 415 28/02/2020 13:13:47


416

selecionadas, do IPF geral e suas respectivas dimensões para todas as famílias


participantes e o IPF geral por bairro do município de Belém (BARROS et
al., 2006).

3. Resultados e discussão
Nos resultados constam informações acerca de características sociode-

or
mográficas e do IPF das famílias, bem como a distribuição da frequência e
do IPF médio por bairro do município de Belém. Na Tabela 2 são expostos os

od V
dados acerca do status familiar, do estado civil, da situação laboral, da idade,

aut
da escolaridade e da quantidade de filhos das participantes, além da estrutura
familiar e da inserção no PBF das 448 famílias.

R
Tabela 2 – Características sociodemográficas das famílias
pobres residentes no município de Belém (PA) (n=448)

o
Status familiar
aC
Mãe Pai Avó Outro Não informado

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


406 (90,6%) 14 (3,1%) 13 (2,9%) 12 (2,7%) 3 (0,7%)
Estado civil
Divorciadas/
Casadas/ União estável Solteiras Viúvas Não informado
visã
Separadas
202 (45,1%) 206 (46%) 30 (6,7%) 7 (1,6%) 3 (0,7%)
Tipo Familiar
Biparental Monoparental
itor

Chefiada Reconsti- Chefiada Chefiada Chefiada


Nuclear intacta Estendida Estendida
pelos avós tuída pela mãe pelo pai por avó
a re

132 (29,4%) 12 (2,6%) 25 (5,5%) 28 (6,2%) 145 (32,3%) 4 (0,8%) 16 (3,5%) 86 (19,1%)
Situação Laboral
Empregada Desempregada
259 (57,8%) 189 (42,2%)
Beneficiária do PBF
par

Sim Não
411 37
Ed

Idade
20-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70-79 Não informado
88 (19,6%) 217 (48,4%) 98 (21,8%) 32 (7,1%) 8 (1,7%) 1 (0,2%) 4 (0,8%)
Escolaridade
ão

EF EMC ESC Analfabeto Não informado


206 (45,9%) 229 (51,1%) 7 (1,5%) 4 (0,8%) 2 (0,4%)
Quantidade de filhos
s

1 filho 2 filhos 3 filhos 4 filhos 5 filhos 6 filhos


ver

105 (23,4%) 183 (40,8%) 103 (22,9%) 43 (9,5%) 8 (1,7%) 6 (1,3%)

De acordo com as informações da Tabela 2, a maioria das participan-


tes eram mães (90,6%) e estavam empregadas (57,8%), além de receberem
o benefício do Programa Bolsa Família (91,7%). Famílias monoparentais

Flávia Lemos - 21982.indd 416 28/02/2020 13:13:47


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 417

chefiadas pela mãe foram as mais frequentes (32,3%), seguidas por famílias
nucleares (29,4%). Em consonância a esta informação, a maioria das parti-
cipantes não apresentava um companheiro afetivo, sendo solteiras (46%),
separadas (6,7%) ou viúvas (1,6%). Além do mais, a maior concentração
etária estava na faixa de 30 a 39 anos (48,4%), sendo que a maior frequência
foi de dois filhos (40,8%). Com relação à escolaridade, a maioria das par-

or
ticipantes tinha o Ensino Médio Completo (51,1%), seguido de perto pelo
Ensino Fundamental (45,9%).

od V
As informações a respeito da idade média das mães participantes, de seu

aut
nível de escolaridade e da quantidade de filhos refletem tendências encontra-
das no cenário brasileiro atual (CABRAL, 2015). Tais propensões incluem

R
maior distância de tempo para que as famílias tenham filhos, que são em
menor quantidade, além de aumento da escolaridade dos membros fami-

o
liares, especialmente entre as mulheres (CABRAL, 2015). Estas alterações
aC
decorrem de mudanças na perspectiva cultural difundida na sociedade acerca
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da melhor forma de lidar com a parentalidade, sendo embasadas também


por políticas públicas, como a expansão de vagas para o Ensino Básico e o
planejamento familiar, dentre outras (CABRAL, 2015; FAHEL et al., 2016;
visã
MAIA et al., 2015; MOURA; GOMES, 2014).
Outra característica relevante das famílias participantes do estudo é o
papel central das mulheres nesta configuração familiar, evidente na quantidade
itor

de participantes do sexo feminino e que chefiam suas famílias. Considerando o


a re

fenômeno de feminização da pobreza (MAIA et al., 2015), a presença maciça


de participantes do sexo feminino está possivelmente relacionada à estrutura
da política de assistência social brasileira que inclui o Programa Bolsa Família
(PBF). No PBF, é dada uma ênfase ao papel da mulher como responsável pelo
par

benefício monetário recebido, sendo então vista como a principal cuidadora do


bem-estar doméstico e central no funcionamento familiar (MAIA et al., 2015).
Ed

A feminização da pobreza inicia-se quando uma mulher se depara com a


necessidade de criar seus filhos sem o apoio ou auxílio do marido ou compa-
nheiro, sobrepondo o sustento financeiro e os cuidados domésticos e parentais
ão

(MAIA et al., 2015). No presente estudo, cerca de 32% das participantes


estavam em uma família na qual eram as únicas responsáveis pela subsistência
s

e pelo cuidado dos filhos, além de 55% das participantes não possuírem com-
panheiro afetivo. Este cenário pode constituir uma base para a permanência
ver

da pobreza, dados os vários elementos coexistentes.


Reforçando a noção da importância feminina, os dados referentes à
situação laboral das participantes demonstram que cerca de 60% estavam
empregadas, seja em empregos formais ou informais. Porém, no Brasil, a

Flávia Lemos - 21982.indd 417 28/02/2020 13:13:47


418

inserção feminina no mercado de trabalho ocorreu em paralelo às altas taxas


de empregos informais e de desemprego, bem como a condições precárias
de trabalho (MAIA et al., 2015), o que possibilita a reflexão de que estas
mulheres estejam inseridas em empregos de menor qualidade e remuneração.
Acerca do funcionamento de famílias pobres, dificilmente estas passarão
por suas etapas de desenvolvimento sem vivenciar rupturas e instabilidades,

or
como separações conjugais (SARTI, 1994). Consequentemente, a tendência
é que as famílias pobres não apresentem um padrão nuclear e sim, de funcio-

od V
namento em rede, no qual o parentesco mais amplo é inserido em uma cadeia

aut
de obrigações morais (SARTI, 1994). Esta característica também é expressa
nos dados deste estudo, no qual cerca de 30% das famílias estudadas residia
com outros parentes além do pai ou da mãe.
R
Com relação às características de pobreza familiar medidas pelo IPF,

o
foram produzidos gráficos que permitem a visualização da distribuição das
aC
famílias quanto à medida geral e às dimensões do IPF. Estes gráficos são

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


apresentados na Figura 1:
Figura 1 – Distribuição da quantidade de participantes por dimensão e no IPF geral
visã
no IPF geral

IPF Geral
187
200
itor

164
150
a re

100
49 42
50
0 6 0 0 0 0
0
0 - 10,1% 20,1% 30,1% 40,1% 50,1% 60,1% 70,1% 80,1% 90,1%
par

10% - 20% - 30% - 40% - 50% - 60% - 70% - 80% - 90% - 100%
Ed

IPF - Renda IPF - Desenvolvimento

264
ão

305
141

32
s

84 9 2 0 0 0 0 0 0 0
ver

9,10%
0

32
18,20%
27,30%

45,50%
54,50%
36,40%

63,60%
72,70%
81,80%
90,90%

27
100%

0 33% 67% 100%

Flávia Lemos - 21982.indd 418 28/02/2020 13:13:48


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v� 9 419

IPF - Trabalho IPF - Vulnerabilidade

157 121
112119
80 77
63 59
35 38
8 4 19

r
0 1 2 0 1
0%

0%
%
0%

0%

0%
0

0%
10%
20%

40%

60%

90%
uto
100%
30%

50%

70%
80%
50

,7

,3

RV
,7

,3

10
66

83
16

33

IPF - Conhecimento IPF - Habitação

oa
210
100
82 88
55 58
86 32
52 59
aC
20
od 9
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

18 14 9 2 2 0 0 0

100%
16,70%
25%
33,30%
41,70%
50%
58,30%
66,70%
75%
83,30%
91,70%
8,30%
0
%

%
%
%

0%
,70

,30
0

50
,70

,30

10
66

83
16

33

visã
Na análise exposta na Figura 1, cerca de 80% das famílias participantes (351
famílias) apresentou nível de pobreza familiar de 20% a 40%, o queaos coloca
em uma posição na qual a vulnerabilidade econômica e social pela qual passam
itor

não é extrema, concentrando-se abaixo da média estabelecida pelo instrumento.


a re

Em termos paramétricos, a média nacional do IPF, em 2003, era 25% (BARROS


et al., 2006). Considerando o contraste existente no país, no qual os estados do
Norte e do Nordeste são caracterizados por uma pobreza multidimensional mais
acentuada, estudos regionais apontam que, não obstante a queda ocorrida nos
níveis multidimensionais de pobreza na região Norte, de modo semelhante ao
par

que ocorreu nas demais regiões do Brasil, os índices nesta região são os maiores
de todo o Brasil. Com relação aos estados que compõem esta região, destacam-se
Ed

o Pará e o Amapá como os dois estados nos quais a pobreza é mais acentuada
(FAHEL et al., 2016; OLIVEIRA et al., 2017; SILVA et al., 2017).
Analisando as dimensões que compõem o instrumento, no Acesso ao
são

Conhecimento e na Habitação, a maior concentração de participantes foi


em torno de 30% do nível de pobreza. Com relação ao Acesso ao Trabalho
e à Vulnerabilidade, houve maior concentração em torno dos 30% a 50% de
nível de pobreza, e a Renda e o Desenvolvimento são as dimensões nas quais
ver

a maioria das famílias apresentou nível zero de pobreza.


Em uma análise mais minuciosa, a importância da dimensão Conhe-
cimento é acentuada em vários estudos, sendo os indicadores educacionais
os mais influentes na construção do atual quadro de pobreza multidimen-
sional existente no Brasil (FAHEL et al., 2016; GONÇALVES; SILVEIRA

Flávia Lemos - 21982.indd 419 28/02/2020 13:13:49


420

NETO, 2013; SILVA et al., 2017). Isto porque existe uma tendência à trans-
missão intergeracional da pobreza, na qual indivíduos com níveis educacio-
nais mais elevados melhoram suas perspectivas de probabilidade de emprego,
salário e qualidade do trabalho, além de aumentarem as chances de que seus
filhos tenham níveis educacionais mais elevados. Tendência semelhante ocorre
com indivíduos com menores níveis educacionais, o que mantém o alto grau de
desigualdade que existe no Brasil (GONÇALVES; SILVEIRA NETO, 2013).

or
Indo além de um prisma individual, as políticas de redução das desigualdades
que atravessam o campo educacional perpassam a existência de cotas para o

od V
ensino superior, bem como maior apoio ao trabalho docente em todos os níveis.

aut
Porém, especialmente para a região Norte, bem como para o Nordeste, os
indicadores relacionados a saneamento básico e condições de habitação apre-

R
sentavam um peso maior que para as demais regiões do país. Nestas regiões,
as condições de acesso aos três sistemas fundamentais para o mínimo sanea-

o
mento, a saber, esgoto, água e coleta de lixo, não estão acessíveis a muitos
aC
moradores (IBGEa, 2017). Além disso, dentre as regiões metropolitanas exis-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tentes no país, a região metropolitana de Belém é a que possui o maior número
de aglomerados subnormais, sendo que no município de Belém este número
é de 52% (PONTE et al., 2013). Nestes locais, as condições de moradia, de
visã
saneamento e de mobilidade são mais deficientes que nas regiões centrais da
cidade. Estes resultados são condizentes com os encontrados neste estudo à
medida que os níveis de Acesso ao Conhecimento e de condições de Habi-
tação encontram maior concentração em torno do nível de 30% de pobreza.
itor

Nas análises de Silva et al. (2017), além da educação, também destaca-se a


a re

importância das dimensões trabalho e demografia para os níveis de pobreza pre-


sentes na região Norte, que correspondem ao Acesso ao Trabalho e às condições de
Vulnerabilidade familiar neste estudo. Com relação ao Trabalho, considera-se que
a expansão trabalhista decorrente do aumento do trabalho formal e da diminuição
par

do desemprego e as políticas de redistribuição de renda são as principais causas


da redução da desigualdade observada nos anos 2000 (FAHEL et al., 2016). Por
Ed

conseguinte, é possível hipotetizar que, na população estudada, estes elemen-


tos de inclusão produtiva encontram-se ausentes ou deficientes. Com relação à
Vulnerabilidade encontrada nas famílias, estas correspondem às características
ão

demográficas expostas anteriormente, como a monoparentalidade feminina e a


existência de crianças, adolescentes e jovens nas famílias, o que as caracteriza
como necessitando de maior suporte para o exercício saudável de suas funções.
s

Por fim, é importante ressaltar que as dimensões Desenvolvimento e Renda


ver

apresentaram uma grande quantidade de famílias com nível zero de pobreza.


Com relação ao Desenvolvimento, no qual 59% das famílias não apresen-
tou pobreza nesta dimensão, os itens avaliados – trabalho precoce, evasão e
atraso escolar e mortalidade infantil – são alvo de políticas públicas, especial-
mente do PBF. Deste modo, considerando que a população alvo deste estudo

Flávia Lemos - 21982.indd 420 28/02/2020 13:13:49


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 421

compunha-se majoritariamente por pessoas que são beneficiárias do programa,


estas condicionalidades são cumpridas e afetam a dimensão Desenvolvimento.
No que diz respeito à Renda, 68% das famílias não apresentou nível de pobreza.
Este resultado expõe importante característica da pobreza, na qual não obstante
estas famílias não apresentem pobreza de renda, apresentam vulnerabilidades
que as colocam em uma situação na qual merecem atenção das políticas públi-
cas, como condições de trabalho, saneamento e moradia, educação e saúde.

or
Por fim, o último grupo de resultados deste estudo diz respeito à distri-
buição da condição de pobreza por bairro da porção continental do município

od V
de Belém, conforme apresentado na Figura 2:

aut
Figura 2 – Mapas representativos da distribuição de pobreza por

R
bairro no município de Belém (PA). No Mapa 1 os bairros estão
divididos em função da quantidade de famílias pobres participantes

o
do estudo. No Mapa 2, os bairros estão divididos em função do
nível de pobreza familiar das participantes do estudo
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Mapa 1
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 421 28/02/2020 13:13:50


422

Mapa 2

or
od V
aut
R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re

A Figura 2 apresenta dois mapas do município de Belém dividido por


bairros. No Mapa 1 os bairros são assinalados em função da quantidade de
par

famílias pobres participantes do estudo (Mapa 1). No Mapa 2, a divisão ocor-


reu em função do nível médio de pobreza encontrado em cada bairro.
Ed

A partir da análise dos mapas da Figura 2, observa-se que os bairros que


estão em amarelo no Mapa 1, que possuem menor quantidade de famílias
pobres, apresentam uma concentração maior em bairros considerados “nobres”
ão

de Belém, como Cidade Velha, Campina, Batista Campos, Reduto, Umarizal,


Nazaré e São Brás. Além destes bairros, também há o bairro de São Clemente,
s

o qual foi criado recentemente, o que pode ocasionar confusão dos moradores
ver

com relação ao seu local de moradia. Nos bairros de Miramar, Maracangalha


e Souza, não obstante serem bairros afastados do Centro da cidade, residem
principalmente militares, o que diminui a quantidade de famílias pobres. Por
fim, os bairros do Aurá, Atalaia/ Guanabara e Una são fronteiriços com o
município de Ananindeua, sendo que a maior parte de sua população pobre

Flávia Lemos - 21982.indd 422 28/02/2020 13:13:50


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 423

é assistida pelo município vizinho, do que decorre a menor quantidade de


pessoas pobres participantes deste estudo.
Por outro lado, no Mapa 2 não é possível observar qualquer divisão orga-
nizada dos bairros em função no nível de pobreza que apresentam. Isto porque
bairros considerados “nobres” na cidade, como Batista Campos, apresentam
nível de pobreza familiar alto, ao passo que bairros com maior quantidade

or
de pessoas pobres, como o Bengui, apresentaram nível de pobreza familiar
mais baixo, por exemplo. Deste modo, no município de Belém, não obstante

od V
haja uma concentração maior de famílias pobres em alguns bairros e locais,

aut
o nível de pobreza das famílias não é equiparável à quantidade das mesmas,
o que leva à consideração de que a quantidade de famílias pobres residentes

R
em um bairro não define a intensidade da pobreza vivenciada pelas mesmas.
Esta característica da condição de pobreza do município de Belém

o
é concernente aos altos níveis de pobreza encontrados nas fontes oficiais
aC
(IBGEa, 2017). Sendo Belém, com sua Região Metropolitana, a capital bra-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sileira com os piores índices de aglomerados subnormais e pior infraestru-


tura para proporcionar o bem-estar urbano (PONTE et al., 2013), a pobreza
familiar existente no município não é concentrada em poucos bairros, estando
visã
espalhada em vários locais, com intensidades diferentes.

4. Considerações finais
itor
a re

As famílias que vivenciam a pobreza experimentam circunstâncias


adversas que se tornam desafios maiores em função de seus contextos. No
município de Belém (PA), uma metrópole da Amazônia, as famílias pobres
têm como principal característica a liderança eminentemente feminina, que
necessita trabalhar e cuidar dos afazeres domésticos e parentais. Além disso,
par

a distribuição do nível de pobreza das famílias por bairro do município não é


Ed

equivalente à quantidade de famílias que residem em tais bairros.


A feminização da pobreza demonstrada neste trabalho sobrecarrega as
mulheres que são as chefes de família, podendo gerar consequências para o
ão

exercício de suas funções. A pobreza das famílias está eminentemente ligada


ao Trabalho e às Vulnerabilidades apresentadas, sendo que possivelmente a
participação no PBF faz com que um menor número de famílias apresente
s

pobreza de Renda e no Desenvolvimento das crianças e adolescentes. O nível


ver

da pobreza familiar não está atrelado à quantidade de famílias pobres resi-


dentes nos bairros da cidade, sendo que bairros com poucas famílias pobres
podem apresentar nível alto de pobreza familiar.

Flávia Lemos - 21982.indd 423 28/02/2020 13:13:50


424

A pesquisa quantitativa representativa da população de famílias pobres de


Belém visou garantir a robustez dos dados acerca das condições destes grupos.
A descrição das características sociodemográficas permitiu a elucidação de
aspectos que favoreçam a compreensão do fenômeno de viver na pobreza e
que se façam relações com outros aspectos da dinâmica intra e extrafamiliar.
Dentre as possibilidades para estudos futuros, sugere-se que a população

or
se amplie às famílias que residem nas ilhas do município, comparando os
ambientes continental e insular a fim de avaliar diferenças entre os cotidianos

od V
e manifestações da pobreza e da vulnerabilidade.

aut
Por fim, as contribuições deste trabalho permitem compreender quais os
principais elementos envolvidos no cotidiano de famílias pobres, demarcando

R
formas de funcionamento que impactam diretamente no desenvolvimento
dos indivíduos. Além disso, auxiliam a formulação de políticas direcionadas

o
a estas populações de modo mais eficiente, uma vez que sejam específicas
aC
para suas principais problemáticas.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 424 28/02/2020 13:13:50


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 425

REFERÊNCIAS
ATTREE, P. Parenting support in the context of poverty: a meta-synthesis of
the qualitative evidence. Health and Social Care in the Community, v. 13,
n. 4, p. 330-337, 2005.

or
BANCO MUNDIAL. Banco de dados de riqueza e renda. 2017. Disponí-
vel em: <http://wid.world/world#sptinc_p99p100_z/BR/last/eu/k/p/yearly/s/

od V
false/24.8625/30/curve/false>.

aut
BARROS, R. P.; CARVALHO, M.; FRANCO, S. Pobreza multidimensional

R
no Brasil. IPEA, TD 1227, 2006.

o
BOLFARINE, H.; BUSSAB, W. Elementos de Amostragem. São Paulo:
aC
Edgar Blücher, 2005.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano:


Experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed, 1979/ 1996.
visã

CABRAL, D. W. A. Família e vulnerabilidade social: análise de dados esta-


tísticos brasileiros. In: SUTTER,C.; BUCHER-MALUSCHKE, J. S. N. F.;
itor

PEDROSO, J. S. (Orgs.). Família e vulnerabilidade social: pesquisas e


a re

intervenções. Curitiba: Appris, 2015. p. 271-294.

FAHEL, M.; TELES, L. R.; CAMINHAS, D. A. Para além da renda: Uma


análise da pobreza multidimensional no Brasil. Revista Brasileira de Ciên-
cias Sociais, v. 31, n. 92, p. 1-21, 2016.
par

GONÇALVES, M. B. C.; SILVEIRA NETO, R. M. Persistência intergeracio-


Ed

nal de educação no Brasil: o caso da Região Metropolitana do Recife. Estudos


em Economia, v. 43, n. 3, p. 435-463, 2013.
ão

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades -


Pará - Belém. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/v4/brasil/pa/belem/
s

panorama, 2017b.
ver

______. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da


população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2017a. Disponível em: <https://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101459.pdf>.

Flávia Lemos - 21982.indd 425 28/02/2020 13:13:50


426

MAIA, K. et al. O papel das mulheres pobres brasileiras na estrutura familiar


monoparental feminina: uma análise do ano 2012. Revista Econômica – UFF,
v. 17, n. 2, 2015.

MONTALI, L.; TAVARES, M. Família, pobreza e acesso a programas de


transferência de renda nas regiões metropolitanas brasileiras. Revista Bra-
sileira de Estudos Populacionais, v. 25, n. 2, p. 211-231, 2008.

or
MOURA, L. N. B.; GOMES, K. R. O. Planejamento familiar: uso

od V
dos serviços de saúde por jovens com experiência de gravidez. Ciên-

aut
cia & Saúde Coletiva, v. 19, n. 3, p. 853-863, 2014. https://doi.
org/10.1590/1413-81232014193.10902013

R
OLIVEIRA, C. D. C.; SIMÕES, J. E. M.; SILVA, D. C. C. Análise da desi-

o
gualdade de renda e pobreza no estado do Pará. Revista Contribuciones a
las Ciencias Sociales, p. 1-18, fev. 2017.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


PONTE, J. P. X. et al. Análise do IBEU Local – Região Metropolitana de
Belém-PA. 2013. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.
visã
net/new/images/abook_file/ibeu_belem.pdf>.

PONTES, R. N. Concepções de pobreza dos atores sociais na política de assis-


tência social no período FHC. Revista Katálysis, v. 13, n. 2, p. 181-190, 2010.
itor
a re

SARTI, C. A. A família como ordem moral. Cadernos de Pesquisa, v. 91,


p. 46-53, 1994.

SEN, A. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das


Letras, 2000.
par

SILVA, S. S. C. et al. Rede social e papeis de gênero de casais ribeirinhos


Ed

de uma comunidade amazônica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 26, n. 4,


p. 605-612, 2010. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102- 37722010000400004
ão

SILVA, A. F.; SOUSA, J. S.; ARAUJO, J. A. Evidências sobre a pobreza mul-


tidimensional na região Norte do Brasil. Revista de Administração Pública,
v. 51, n. 2, p. 219-239, 2017.
s
ver

YUNES, M. A. M.; GARCIA, N. M.; ALBUQUERQUE, B. de M. Mono-


parentalidade, pobreza e resiliência: entre as crenças dos profissionais e as
possibilidades da convivência familiar. Psicologia: Reflexão E Crítica, v. 20,
n. 3, p. 444-453, 2007.

Flávia Lemos - 21982.indd 426 28/02/2020 13:13:50


RELAÇÕES DE GÊNERO E A
POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL: lutas feministas em debate

or
V
Rafaele Habib Souza Aquime

aut
Fernanda Teixeira de Barros Neta
Maria Lúcia Chaves Lima

1. Introdução
CR
do
O objetivo desse artigo foi abordar, teoricamente, as relações de gênero
inseridas nas práticas de saber-poder do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), ou seja, analisar os modos como as feminilidades e masculinida-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
des são performatizadas em torno dos benefícios e serviços previstos, nesta
política pública.
ra
A política de assistência social se ancora como política de seguridade
social não contributiva a partir da Lei Orgânica de Assistência Social (1993),
i
rev

sendo esta seguridade formada em um tripé com a saúde e previdência social.60


Levando em consideração a história das políticas de assistência social
no Brasil durante o século XX, os ranços ainda presentes por conta do viés
to

assistencialista que perdurou de forma oficial e legítima, e o (s) lugar (es)


que as mulheres ocupa (m) nessa política pública serão as problematizações
ara

provocadas neste artigo, transversalizadas as lutas do movimento feminista no


enfrentamento do sistema patriarcal que oprime as mulheres e as subalterniza
ver di

de diversos modos, assim como na construção e execução das políticas sociais.


Portanto, de acordo com Cisne (2007), na atualidade, visualiza-se um
op

processo de feminização na assistência, em ambos os níveis de complexidade,


tanto em relação aos usuários – o público majoritário do SUAS são “mulhe-
E

res chefas de família”, “avós chefas de família” – quanto às trabalhadoras


desta política. Nesse movimento de feminização, as políticas são dirigidas às


mulheres, todavia, não contempla a perspectiva de gênero de forma autônoma
e emancipatória, como veremos ao longo das discussões neste capítulo.
Buscou-se indagar também neste artigo em que medida a instituição
do Estado, na formulação de políticas públicas, com enfoque na assistência

60 Historicamente, a assistência social brasileira foi operada por meio de ações descontínuas e de cunho filan-
trópico direcionadas às camadas mais pobres, sendo as mulheres, por meio do primeiro damismo, uma das
principais personagens na gestão de tais ações. Um dos motivos se relacionava ao estigma de que o espaço
privado era de responsabilidade da mulher, sendo as intervenções assistencialistas localizadas em torno da
família, por meio do cuidado e caridade ao outro, em um panorama moralista e mantenedor do patriarcado.

Flávia Lemos - 21982.indd 427 28/02/2020 13:13:51


428

social, está confrontando-se ao papel ideológico-normativo na elaboração e


reprodução dos valores, preconceitos e comportamentos baseados na diferença
biológica entre os sexos?
O cenário neoliberal e a imposição do capital financeiro por meio dos
organismos multilaterais ditam as funções estatais, voltadas bem mais para a
lógica de mercado do que para os investimentos em políticas sociais, sendo
que essas ao invés de serem ampliadas, são enfraquecidas, dificultando o

or
enfrentamento das desigualdades sociais.

od V
Assim, este trabalho foi construído a partir de inquietações do cotidiano

aut
das autoras, as quais são servidoras públicas do Sistema Único de Assistência
Social e do Sistema Único de Saúde e pesquisadoras no campo da psicologia
social. Este trabalho teórico utilizou como ferramentas analíticas as diretrizes

R
gerais da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) e dos escritos do Ministério do Desenvolvimento

o
e Combate à Fome (MDS) para pensar as articulações dessa política com o
aC
debate sempre atual acerca dos Movimentos Feministas e das desigualdades

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


das relações de gênero, entendendo que o gênero é um marcador que promove
um modo de organização social mediante as diferenças sexuais.
Deste modo, questiona-se: quais são os saberes convocados, entrelaça-
visã
dos na política de assistência social que trazem a dimensão das relações de
gênero? De que forma o fazem? Que papel cumprem as mulheres dos/nos
programas sociais?
itor
a re

2. As políticas de assistência social no brasil:


entre a benesse e a seguridade social

A trajetória da assistência social no Brasil tem sido marcada por práticas


par

assistencialistas e clientelistas. Russo, Cisne e Brettas (2008) destacam que


até meados da década de 1930 a questão social no país era encarada por um
Ed

aparato policialesco, ou seja, por medidas repressoras que de modo geral não
almejam o enfrentamento das diversas desigualdades sociais, pelo contrário,
somente acirravam e ampliavam tais problemáticas. Segundo as autoras, a
ão

igreja, além de outras instituições inseriu-se para atuar nesse campo social por
meio do trabalho voluntariado e ações pontuais com viés caritativo.
Com o desenvolvimento extensivo do sistema capitalista nas décadas
s

de 1920 e 1930, houve um quantitativo crescente de trabalhadores/as inseridos


ver

na indústria e manufatura. Diante das contradições produzidas pelo capital e


vivenciadas cotidianamente, essa classe trabalhadora passou a se organizar
politicamente e cobrar do Estado intervenções mais sistemáticas com relação
as condições de trabalho e outras demandas sociais. Deste modo, durante o
governo de Getúlio Vargas a assistência social pública foi tratada como questão

Flávia Lemos - 21982.indd 428 28/02/2020 13:13:51


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 429

política e legal enquanto plano de governo, trazendo enfoque nas questões


trabalhistas, interferindo através de medidas paliativas e restritas na organi-
zação sindical, pois desta forma poderia atuar para cooptar e enfraquecer tais
movimentos. Portanto:

A assistência social ao ficar sob a responsabilidade do Estado, ao mesmo


tempo em que aponta para a conquista de direitos, despolitiza a luta por

or
uma sociedade verdadeiramente igualitária. Isso ocorre porque a reivin-

od V
dicação não contesta as raízes estruturais do sistema gerador de desigual-

aut
dades. Dessa forma, ao conquistar um direito, cria-se a ilusão de que as
relações, por meio da ação do Estado, passam a ser justas e igualitárias.
Tudo ocorre como se a luta perdesse o sentido (RUSSO; CISNE; BRET-

R
TAS, 2008, p. 134).

o
Cisne (2007) considera a Legião Brasileira de Assistência (LBA) a grande
aC
instituição pioneira da assistência social no Brasil, em 1942, durante o governo
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de Vargas. Era destinada às famílias cujos chefes (destaque nosso) haviam


sido mobilizados para a segunda guerra mundial, sendo a presidência a cargo
de Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, e posteriormente as presidências
visã
da LBA foram assumidas pelas posteriores primeiras damas.
Este ponto suscita uma análise da questão de gênero com a assistên-
cia social por incumbir à mulher estar à frente da questão social desde esse
itor

período, e tal vinculação com essa figura da mulher se refere a um dos pilares
a re

do positivismo no Brasil, uma vez que os princípios positivistas defendiam


um culto à feminilidade, colocando a mulher como base da família e como
importante mantenedora da moral e bons costumes na sociedade. As vertentes
positivistas também defendem uma ordem social na qual todos e todas devem
ajustar-se, sendo os desvios controlados, “os problemas e desigualdades não
par

eram analisados” (CISNE, 2007, p. 3). Tais princípios também estavam pre-
Ed

sentes na política de assistência social pública pensada nesta época.


Diante do exposto, a assistência social brasileira foi se constituindo como
uma política a ser operada primordialmente pelas mulheres, como extensão à
ão

vida familiar, já que este era o papel social esperado. A caridade, o trabalho
voluntário e as ações fragmentadas traziam historicamente esse cunho assis-
tencialista à política. Depreende-se, dessa forma, que a Assistência Social
s

emergiu como um espaço de atuação feminina, uma alternativa à vida domés-


ver

tica/familiar que possibilitava uma profissionalização da mulher.


Essa construção histórica contribui para que se mantenha ranços assis-
tencialistas a essa política pública nos dias atuais, pois, apesar da Consti-
tuição Federal de 1988 ter trazido significativas mudanças na concepção da
assistência social brasileira, deixando-a atrelada a noção de bem-estar social

Flávia Lemos - 21982.indd 429 28/02/2020 13:13:51


430

e compondo junto à Saúde e à Previdência Social a tríade base da Seguri-


dade Social, ainda há dificuldades de entendimento e instrumentalização para
fins clientelistas.
A partir dessa mudança de concepção, a Assistência Social foi legalmente
retirada do “lócus” da caridade e da ajuda, transpondo-a para a questão do
direito, da cidadania e dever do Estado, por meio da articulação de políticas
públicas de proteção social (CRUZ; SCHIEFFERDECKER, 2011).

or
Seguindo tais princípios constitucionais, a Lei Orgânica da Assistência

od V
Social (Lei 8.742/1993) é promulgada em 1993, definindo que a assistência

aut
social é uma política de seguridade social não contributiva, que provê os
mínimos sociais, garantindo assim o atendimento às necessidades básicas
(BRASIL, 1993).

R
Segundo Cruz, Rodrigues e Santos (2014) a Política Nacional de Assis-
tência Social, estruturada em 2004, indica eixos para operacionalização dos

o
serviços socioassistenciais, dentre os quais são: territorialidade, financia-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mento, controle social, monitoramento, avaliação e recursos humanos. Porém,
a política se consolida, em 2005, com o Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), sistema nacional organizado por meio de uma estrutura descentra-
lizada, participativa e articulada às outras políticas públicas setoriais.
visã
O SUAS estabeleceu dois níveis de atenção para a política de assistência
social: o primeiro, direcionado à Proteção Social Básica (baixa complexidade),
objetivando a prevenção e a inclusão social de famílias em condição de vul-
itor

nerabilidade social. Em se tratando de prevenção, nessas situações ainda não


a re

aconteceram violações de direitos, e objetivando tais medidas preventivas,


ofertam-se projetos, serviços e benefícios para este fim. O segundo nível é
a Proteção Social Especial (média e alta complexidade), em que famílias e
indivíduos já se encontram em situação de risco, como abandono, uso de
par

drogas, abuso sexual, ou seja, seus direitos foram violados (BRASIL, 2005).
Diante do breve histórico sobre as práticas assistenciais no país e a apre-
Ed

sentação da configuração atual do SUAS em torno das duas proteções, é visível


constatar um percurso da assistência social marcado por práticas e interesses
diversos, legitimando a participação política da mulher neste campo da assis-
ão

tência social, como era o caso da LBA, por este ser considerado uma extensão
do âmbito familiar. O positivismo carregava em si práticas discursivas que
colocavam à mulher a responsabilização com práticas de cuidado a família
s

e aos (as) filhos (as).


ver

Deste modo, é de suma importância discutir os contrapoderes de tais


discursos, a partir das lutas dos movimentos feministas em torno dos papéis
sociais impostos às mulheres em diferentes momentos históricos.

Flávia Lemos - 21982.indd 430 28/02/2020 13:13:51


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 431

3. Breve histórico dos movimentos feministas


Pode-se situar, de acordo com Silva (2008), que as bandeiras de lutas
feministas foram se tornando mais expressivas a partir do século XVIII e no
decorrer do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Oficialmente, a
história do movimento feminista dividiu-se em ondas (primeira, segunda e
terceira); Uma “onda” feminista refere-se a um momento histórico relevante de

or
efervescência militante e acadêmica onde determinadas pautas e questões das
mulheres se insurgiram. Cabe ressaltar que tal divisão é meramente didática

od V
e é uma versão da história desse movimento, o qual é pulsante e movente,

aut
desta forma, deve-se falar em histórias dos feminismos. Porém, no esforço
de compreensão foi apresentada neste ensaio a história oficial.

R
Os primórdios da primeira onda do feminismo encontraram terrenos
férteis na França, durante a Revolução Francesa quando as mulheres lançaram

o
manifestos e atos públicos reivindicando direitos políticos e de educação,
aC
denunciando, portanto, a subordinação dessas mulheres nessa sociedade.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Contudo, pode-se dizer que esta onda se estabeleceu de forma mais efetiva,
temporalmente, no século XIX, na Europa. Como principal pauta e bandeira
de luta estavam a busca pelo direito ao voto, pela participação na política e
visã
o acesso à vida pública, conhecido como movimento sufragista. Também se
questionou a submissão e a passividade das mulheres.
Célia Pinto (2009) coloca que a primeira onda de feminismo, no Brasil
itor

foi também em torno do direito ao sufrágio, direito este conquistado, em 1932.


Assinala que esse feminismo foi perdendo força de forma geral no Brasil,
a re

Europa e os Estados Unidos nas décadas posteriores e que ganhará mais força
na década de 1960, sendo o livro “Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir
um marcador importante que caracterizará e impulsionará a segunda onda.
Logo, a década de 1960 no Brasil marcará o início da ditadura militar e um
par

regime de opressão de lutas políticas, todavia, a década de 1970 vai se tornar


uma década com ebulição de diversas manifestações das mulheres (CÉLIA
Ed

PINTO, 2009).
Na segunda onda do feminismo, destacou-se, sobretudo, a corrente deno-
minada: Feminismo Radical, que teve seu berço nos Estados Unidos, a qual
ão

trouxe como bandeiras de luta a discussão sobre direitos e controle sobre o


corpo, sobre sexualidade, o combate ao patriarcado, a legalização do divórcio,
s

a criminalização da violência contra a mulher, politização da esfera privada


ver

– “o pessoal é político” (SILVA, 2008). Foi uma época de grandes questiona-


mentos e reivindicações quanto às opressões sofridas pelas mulheres.
No Brasil, o país vivenciava um período distinto do resto do mundo,
pois na Europa e Estados Unidos movimentos libertários ganhavam mais
força nesse período, enquanto que aqui o cenário era ditatorial, o que não

Flávia Lemos - 21982.indd 431 28/02/2020 13:13:51


432

impossibilitou resistências, principalmente motivadas pelo cenário desses


outros países. Destaca-se que no ano de 1975 ocorreu I Conferência Inter-
nacional da Mulher, no México, e a Organização das Nações Unidas (ONU)
declarou os próximos dez anos como a década da mulher (2009).
Nas décadas de 1980 e 1990 o mundo deparou-se com diversos aconte-
cimentos históricos sócio-geo-políticos importantes como o fim da URSS, a
queda do muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, duras ditaduras na América

or
Latina e sua dissolução, descolonização da África, e viu emergir a terceira

od V
onda do feminismo que trouxe em seu bojo, sobretudo, a pauta da intersec-

aut
cionalidade com a grande contribuição das mulheres negras e do feminismo
negro. A interseccionalidade surgiu como uma ferramenta analítica a qual
alertou as mulheres sobre a conjugação de outras opressões sofridas – raça,

R
classe, sexualidade – e, segundo Tiburi (2018), acrescenta-se a idade e a plas-
ticidade. É no seio da terceira onda que é lançada o início da Teoria Queer.

o
Com a redemocratização política em meados da década de 1980 o femi-
aC
nismo alcançou uma dimensão mais ampla, temas, tais como: sexualidade,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


violência, direito ao trabalho, luta contra o racismo, dentre outras, foram
discutidos pelos inúmeros coletivos. Com a criação do Conselho Nacional
da Condição da Mulher (CNCM), em 1984 e articulação com movimentos
visã
sociais ocorreu campanhas para incluir os direitos das mulheres na Carta cons-
titucional, sendo assim a Constituição Federal de 1988 mudou radicalmente
o status jurídico da mulher no Brasil (CARNEIRO; PINTO, 2009).
itor

Os novos estudos advindos após a terceira onda atestaram a noção de


transversalidade, a possibilidade do diálogo na diferença. Logo, há diversas
a re

histórias, lutas e movimentos feministas que carregam as condições diversas


de mulheres, bem como, contradições no movimento. Lugones (2014) alertava
que a mulher europeia burguesa inserida no movimento sufragista encontrava-
se submissa, porém pertencia à categoria civilizatória de humanos, pois uma
par

marca de civilização foi estabelecida sobre os povos indígenas das Américas


e os/as escravizados/as e classificados como não-humanos.
Ed

Já Davis (2016) nos sinaliza sobre o racismo no movimento sufragista


feminino norte-americano, pois foi um movimento de mulheres brancas e
instruídas, sendo que as mulheres negras não foram inseridas nas pautas de
ão

luta. Além disso, grande parte das lideranças feministas não apoiaria a luta
pelo sufrágio de homens negros, movimento que ocorria em paralelo, por
acreditarem não ser interessante estimular a supremacia masculina. Mesmo
s

nesse movimento negro, as mulheres negras não foram incluídas.


ver

Essas mulheres negras encontravam-se bem menos na indústria ou manu-


fatura, e muito mais no trabalho de empregadas domésticas, e no trabalho no
campo, em que a servidão ao proprietário e as diversas formas de violências
vivenciadas não eram expostas. O movimento sufragista defendia a conquista
do voto das mulheres brancas e, depois, de outras lutas, e ao associarem-se

Flávia Lemos - 21982.indd 432 28/02/2020 13:13:51


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 433

aos democratas como apoio político para alcançar o sufrágio, seguiram a


bandeira “primeiro a mulher, por último o negro” (DAVIS, 2016). Em outras
palavras, lutavam pela igualdade de direitos com o homem branco, burguês,
mas defenderam a supremacia racial em práticas eugênicas.
Carneiro (2003) sintetiza que o movimento feminista historicamente foi
tomado por uma visão eurocêntrica e universalizante das mulheres, sendo de
fundamental importância descolonizá-lo e enegrecê-lo, pois mulheres indí-

or
genas e negras, por exemplo, possuem demandas específicas. Os avanços

od V
alcançados com as lutas feministas pela igualdade de gênero e liberdade

aut
são absolutamente inquestionáveis, mas Lugones (2014) pontua desafios ao
feminismo frente à opressão ainda presente ao gênero racializado, colonial e
capitalista heterossexualizado. É necessário resistir a esses sistemas de opres-

R
são que são heranças da modernidade.
Mayorga et al. (2013) destacam, na atualidade brasileira, os movimentos

o
das trabalhadoras rurais, das jovens negras feministas, de lésbicas, a rede bra-
aC
sileira de prostitutas, o movimento de travestis e transexuais, dentre outros,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que pautam bandeiras específicas, mas também ponderam que a articulação


de determinadas bandeiras não se processa de forma harmônica, uma vez que
carregam posições desiguais. Considera a articulação de certas lutas como
visã
ferramenta de fortalecimento de tais movimentos, todavia, pondera que a
análise do lugar de fala e relações de poder entre as mulheres é importante
para resguardar a diversidade e não haver a simples soma de opressões em
itor

um caráter homogêneo: “deve, de forma radical, reconhecer as tensões e os


a re

antagonismos que marcam a emergência dessas categorias dentro e fora do


feminismo” (p. 465).
Desta forma, os movimentos feministas em fronts de luta as diversas
faces do patriarcalismo, também problematiza e denuncia as funções estatais
nas políticas públicas com relação aos papeis das mulheres, como é o caso
par

da Política Nacional de Assistência Social (PNAS).


Ed

4. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS)


e a presença da mulher-mãe como estratégia
ão

O movimento feminista em suas diferentes frentes vem, ao longo do per-


curso histórico, encontrado dilemas políticos em sua relação com o Estado, no
s

que concerne principalmente em manter pautas feministas diante do sistema


ver

patriarcal capitalista, subalternizando a condição das mulheres. A estrutura


patriarcal foi absorvida pelas funções estatais estão presentes nas políticas
públicas, que não cumprem de modo geral, a autodeterminação da mulher na
sociedade, como nos constata Cisne e Gurgel (2008).

Flávia Lemos - 21982.indd 433 28/02/2020 13:13:51


434

As autoras também chamam atenção para a ofensiva neoliberal e as


mudanças no papel do Estado com relação às demandas sociais, pois reduz os
investimentos em políticas sociais e transferem a sociedade grande parte dessa
responsabilidade. A institucionalização de muitos movimentos sociais em
Organizações Não-Governamentais (ONG’s) e a aliança dessas com o Estado a
fim de garantir ações pontuais e paliativas foi uma das estratégias neoliberais,
recomendadas pelo Banco Mundial no decorrer da década de 1990.

or
Assistimos a um momento de redução do papel social do Estado, com

od V
o processo de desregulamentação das relações de trabalho – terceirização e

aut
precarização – e a flexibilização dos direitos sociais, onde as políticas sociais
adquirem, cada vez mais, a ideia de políticas para pobres.

R
Neste sentido, ao articular a Política de Assistência Social às discussões
das relações de gênero e feminismo, devem ser pensadas políticas que con-

o
tribuam para a eliminação da desigualdade e da hierarquia entre homens e
mulheres ao propor e formular ações, projetos e programas que versem sobre
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


as condições estruturais das desigualdades de gênero.
Foi a partir deste movimento que, segundo Cisne e Gurgel (2008), em
meados da década de 1980 houve uma forte iniciativa dos governos, em âmbito
visã
continental, e no Brasil, em particular, quanto à incorporação das relações
sociais de gênero como base ou como “tema transversal” em suas ações ou
políticas (p. 10).
itor

É importante demarcar, portanto, as contradições que o feminismo já


vivenciava na sociedade brasileira desde a década de 1980, pois com a rede-
a re

mocratização política e reformas estatais, este movimento social juntamente


com outros se inseriu em debates para implementação de políticas públicas, e
um conjunto de organismos de controle social foram pensados e construídos
nesse período. Porém, durante a década de 1990 o avanço das ONG’s ora
par

mencionado estas passaram ocupar o lugar de modo substancial da represen-


tatividade política dos movimentos feministas (CISNE; GURGEL, 2008).
Ed

A Política de Assistência Social em voga foi incorporada no tripé da


seguridade social poder atuar com uma diretriz principal de centralidade da
ão

família, direcionada, entre outros ordenamentos, pela matricialidade sociofa-


miliar; ou seja, de acordo com Carloto e Mariano (2008), há um foco no grupo
familiar no oferecimento dos serviços, benefício e programas. As feministas,
s

deste modo, criticam esse enfoque familialista e os seus efeitos, uma vez
ver

que, apesar de ser colocada a centralidade na família, há, na realidade, uma


centralidade na mulher-mãe.
Essa mulher-mãe ainda é convocada para participar das ações da política
junto aos filhos e filhas e a ela é colocada uma responsabilidade pelo cum-
primento das condicionalidades dos programas, como é o caso do programa

Flávia Lemos - 21982.indd 434 28/02/2020 13:13:52


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 435

de transferência de renda Bolsa Família. É a ela que é depositada a figura de


mediação dos conflitos, de participação nos grupos, responsável pela constru-
ção da ‘boa família’, pela manutenção dos vínculos afetivos e cuidados. Des-
tacam-se alguns pontos da Política Nacional de Assistência Social, de 2004,
a respeito da centralidade familiar:

A situação atual para a construção da política pública de assistência social

or
precisa levar em conta três vertentes de proteção social: as pessoas, as

od V
suas circunstâncias e dentre elas seu núcleo de apoio primeiro, isto é, a

aut
família (MDS, 2004, p.15). A proteção social deve garantir as seguintes
seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia);
de acolhida; de convívio ou vivência familiar (p. 31). A organização da

R
Assistência Social tem as seguintes diretrizes, baseadas na Constituição
Federal e na LOAS: II – Participação da população, por meio de orga-

o
nizações representativas, na formulação das políticas e no controle das
aC
ações em todos os níveis; III – Primazia da responsabilidade do Estado
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

na condução da Política de Assistência Social em cada esfera de governo;


IV – Centralidade na família para concepção e implementação dos bene-
fícios, serviços, programas e projetos (p.33). O SUAS, cujo modelo de
visã
gestão é descentralizado e participativo, constitui-se na regulação e orga-
nização em todo o território nacional das ações socioassistenciais. Os
serviços, programas, projetos e benefícios têm como foco prioritário a
atenção às famílias, seus membros e indivíduos e o território como base
itor

de organização (p. 39).


a re

E no que se refere à responsabilização da mulher como pessoa de referên-


cia da família, destaca-se dois documentos do Ministério do Desenvolvimento
e Combate a Fome, o primeiro é o Manual do Entrevistador, do Cadastro dos
Programas Sociais (MDS, 2011, p. 13) e outro o Folder de Divulgação do
par

CadÚnico (MDS, s/n):


Ed

Responsável pela Unidade Familiar (RF): deve ser um dos componentes


da família e morador do domicílio, com idade mínima de 16 anos. Reco-
ão

menda-se que seja, preferencialmente, mulher; como a minha família


pode entrar para o Cadastro Único? Você deve procurar um posto de
cadastramento da prefeitura, que muitas vezes funciona no CRAS. Para
s

ser cadastrado, é necessário: ter uma pessoa responsável pela família para
ver

responder às perguntas do cadastro. Essa pessoa deve ser parte da família,


morar na mesma casa e ter pelo menos 16 anos. Recomenda-se que essa
pessoa seja, de preferência, mulher.

Nesse sentido:

Flávia Lemos - 21982.indd 435 28/02/2020 13:13:52


436

As mulheres/mães, a partir da titularidade nos programas de transferência


de renda, responsabilizam-se pelo cumprimento das condicionalidades.
Uma delas é a participação nas reuniões; caso não possa por motivo de
trabalho, por exemplo, tem de apresentar a justificativa ou, mandar alguém
em seu lugar, na maioria das vezes outra mulher do mesmo arranjo fami-
liar. As reuniões ocorrem sempre no período diurno o que dificulta a
participação de quem trabalha fora de casa. Isso é revelador de como se

or
parti-se ainda, em muitos casos, do modelo de mãe dona de casa e pai
provedor (CARLOTO; MARIANO, 2008, p. 160).

od V
aut
A perda do benefício recai então sobre essa mulher, pessoa de refe-
rência da política por não manter os filhos na escola e não acompanhá-los
na política de saúde, condicionalidades do programa Bolsa Família. Os

R
homens, por conseguinte, não se tornam os responsáveis legais da família.
A centralidade na mulher é reforçada por “estereótipos da condição feminina

o
dentro de um viés biologicista que coloca como predisposições naturais
aC
a função de boa cuidadora no âmbito privado/doméstico” (CARLOTO;

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


MARIANO, 2008, p. 161).
Logo, é urgente compreender o lugar social da mulher como cidadã e
não como representante do ambiente doméstico, somente. As políticas sociais
visã
devem equitativamente convocar homens e mulheres à participação e não uma
subordinação de gênero. Ampliar as possibilidades de escolha da mulher é
de suma importância.
itor

É possível então pontuar que é um campo de tensões, pois há vantagens


nessa titularidade a mulher nas práticas do SUAS no que se refere a autonomia,
a re

uma vez que pode administrar o benefício do Bolsa Família, por exemplo,
pode ser uma importante figura no enfrentamento as diversas situações de vul-
nerabilidade social e fortalecimento dos vínculos familiares e/ou comunitários,
todavia, pontua-se que esta participação não pode estar associado a uma res-
par

ponsabilização unidirecional a mulher a respeito da família, outros membros


precisam ser convocados e ser responsabilizados de forma compartilhada.
Ed

3.1 Relações de gênero e os desafios postos pelo movimento


feminista à política de assistência social
ão

As políticas sociais, segundo Detoni e Nardui (2012) dentre elas a assis-


tência social, reproduzem performances paternalistas, cristalizando feminilida-
s

des e masculinidades. Tal política padroniza os papeis sociais esperados para


ver

mulheres e homens, no âmbito privado e público, respectivamente. Homens


e mulheres vivenciam os impactos da desigualdade de gêneros, em que pese
seja vivido de forma desigual.
Os autores salientam que o foco na família também repercute essas
cristalizações, já que as famílias na contemporaneidade ainda se constituem

Flávia Lemos - 21982.indd 436 28/02/2020 13:13:52


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 437

por modelos patriarcais e paternalistas, logo, é relevante ampliar o leque de


sociabilidades para além do âmbito familiar, pois as funções de cuidado e
proteção não são exclusivas da família como a política defende e se estrutura.
Reconhecer as diversidades nas relações de gênero e ampliar as possibilidades
performáticas de feminilidades e masculinidades é um caminho interessante
a ser traçado.
Mariano e Carloto (2009) assinalam que o movimento feminista ques-

or
tiona as contradições da PNAS no tocante à maternidade, por exemplo, pois
esta não é problematizada, apesar de ser um ponto central nas práticas viabi-

od V
lizadas no combate à pobreza. A mulher torna-se em grande medida objeto de

aut
intervenções e interlocutora da família. Além disso, além do elemento classe
social, o elemento raça precisa ser amplamente discutido, pois as mulheres

R
negras vivenciam de forma mais intensa os processos de desigualdade social
devido às heranças históricas escravocratas, logo: “sexo e cor são também

o
definidores das desigualdades sociais” (p. 902).
aC
Outro ponto apresentado pelos autores é que o Estado ao reforçar este-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

reótipos nas relações de gêneros e fixar mulheres no âmbito privado, também


contribui para menor disponibilidade de trabalho remunerado a elas, acirrando
mais as desigualdades entre homens e mulheres no sistema de trabalho pelas
visã
divisões sexuais.
Diante do levantamento de tais questionamentos, será que essa polí-
tica visa o empoderamento, a emancipação e a divisão sexual do trabalho
doméstico mais justo? Preceitos tão caros ao movimento feminista. É preciso
itor

estar atento para não reforçar discursos sexistas, racistas. Há uma necessi-
a re

dade “de projetos e programas que visem o empoderamento de mulheres e a


sensibilização de homens para questões relacionadas à equidade de gênero”
(CARNEIRO, 2014 p. 8).
Ao trazer a mulher para a cena pública – para administradora do dinheiro
par

do benefício, por exemplo – inaugura-se um movimento pendular de uma


suposta autonomia x tutela e sobrecarga de responsabilidades. A centralidade
Ed

da mulher, a priori, pode dar a falsa impressão de um empoderamento dela,


de uma maior participação política, contudo, a que custo? De maior respon-
sabilidade, de maior cobrança, de mais uma tarefa. Tem-se aí a mostra do
ão

problema da “supermulher” - nesta dupla jornada não há igualdade nem no


mundo público nem no mundo privado.
Interessa evidenciar que perdura a compreensão, por parte das políticas
s

públicas, pelo Estado, de que a família é o lócus de atuação da mulher e o


ver

mercado de trabalho é o lócus de atuação do homem – mesmo sabendo que


homens e mulheres estão presentes nos mesmos espaços. Nota-se uma forte
vinculação da mulher à maternidade, essencializando-a.

Flávia Lemos - 21982.indd 437 28/02/2020 13:13:52


438

4. Considerações finais

Este trabalho buscou realizar breves interlocuções entre a Política de


Assistência Social, as discussões sobre relações de gênero, juntamente, com
as contribuições e problematizações dos feminismos. Dessa forma, refletiu
sobre as relações de gênero no SUAS, no tocante ao papel ao qual é mulher
convocada, pois a política lança mão de estratégias para alcançar as famílias

or
reforçando a reprodução ideológica de que as mulheres cumpririam a missão

od V
sagrada de responsabilidade pela gestão no âmbito doméstico/familiar, favo-

aut
recendo o equilíbrio e a harmonia familiar concentrada na figura de cuidado
que é a mulher-mãe.

R
Conforme já apontado por Carloto e Mariano (2008), “as misturas entre
o público e o privado, entre o direito e o favor, entre direito e obrigação e a

o
fixação da mulher à maternidade definem os contornos desta cidadania fra-
aC
gilizada e sexuada” (p. 162).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Nesse sentido, analisou-se se a presença feminina nesta política marca
uma forma de participação política ativa e/ou é um modo de instrumentali-
zação estereotipada da mulher em uma extensão do ambiente doméstico. Tal
visã
questionamento alça-se de fundamental importância quando se pensa que o
ponto nevrálgico e de tensionamento para os feminismos diz respeito, justa-
mente, à problemática da autonomia.
itor

Paralelamente, o movimento feminista se reinventou e trouxe vitais ele-


a re

mentos interseccionais como classe, raça, religião, para a discussão, em um


esforço de abarcar a diversidade e a subjetividade dessas mulheres. Como
nos diz Carneiro (2003) “o feminismo esteve, também, por longo tempo,
prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres” (p. 118).
par

Nesta direção, os estudos decoloniais, as contribuições do movimento negro


de mulheres, vieram somar grande importância tanto para a construção da
Ed

epistemologia feminista quanto para o movimento.


Transversalizar marcadores como gênero e raça nas políticas de assistên-
cia social tem sido uma pauta importante do movimento feminista, do movi-
ão

mento negro e do movimento feminista negro, no intuito de que as políticas


sociais realizem tal debate para além de combater a concentração de renda,
e sim alcançar a redução das desigualdades sociais. As situações de vulne-
s

rabilidade, de opressão e de discriminações, em virtude da desigualdade de


ver

gênero, as quais as mulheres, sobretudo as negras, estão submetidas, ainda


são discutidas e abordadas de forma tímida na política de assistência social.
Os movimentos feministas discutem, portanto, as contradições presentes
nas políticas sociais e postulam desafios aos quais devem ser pautados, no que

Flávia Lemos - 21982.indd 438 28/02/2020 13:13:52


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 439

concernem as problematizações sobre a condição feminina e o alcance de mais


espaços autônomos e equitativos, pois, neste percurso vê-se a continuidade de
produções discursivas que legitimam desigualdades de gênero e normatizam
papeis e lugares de gênero nas relações afetivas, sexuais, familiares.
Em suma, ampliar as discussões sobre essa temática em outros estudos
se faz necessário para que não sejam reforçadas e seguidas padronizações e

or
homogeneizações nas políticas públicas como um todo, pois apesar de haver
um público-alvo ao qual a ações são destinadas, há várias performances pos-

od V
síveis de feminilidades e masculinidades, e para além do enfoque familialista

aut
como preconiza o SUAS.

R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 439 28/02/2020 13:13:52


440

REFERÊNCIAS
BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 3 out. 2017.

CARLOTO, Cássia Maria; MARIANO, Silvana. A Família e o Foco nas

or
Mulheres na Política de Assistência Social. Sociedade em Debate. Pelotas,

od V
p. 153-168, 2008.

aut
CARNEIRO, Anni de Novais. Reflexões Feministas sobre Políticas Públicas,
Gênero e Raça. Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, 2014.

R
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, 2003.

o
aC
CISNE, Mirla. A “Feminização” da Assistência Social: apontamentos histó-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ricos para uma análise de gênero. In: III JORNADA INTERNACIONAL DE
POLÍTICAS PÚBLICAS – QUESTÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO
NO SÉCULO XXI, Anais... 2007.
visã

CISNE, Mirla; GURGEL, Telma. Feminismo, Estado e políticas públicas:


desafios em tempos neoliberais para a autonomia das mulheres. SER Social,
itor

Brasília, v. 10, p. 69-96, 2008.


a re

CRUZ, Lílian Rodrigues da; SCHIEFFERDECKER, Márcio André. Práticas


Psicológicas e Políticas Públicas de Assistência Social: algumas interroga-
ções. JORNADA DE PESQUISA EM PSICOLOGIA: DESAFIOS ATUAIS
par

NAS PRÁTICAS DA PSICOLOGIA, IV. Anais... UNISC - Santa Cruz do


Sul, novembro 2011. Disponível em: <http://www.unisc.br/anais/>. Acesso
Ed

em: 6 jan. 2018.

DA CRUZ, Lilian Rodrigues; RODRIGUES, Luciana; DOS SANTOS, Najara


ão

Lourenço. Políticas Públicas de Assistência Social: o que dizem as Psicólo-


gas?. In: XI SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE DEMANDAS SOCIAIS E
POLÍTICAS PÚBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA. Anais...
s

Disponível em: <https://online.unisc.br/>. Acesso em: 25 jan. 2018.


ver

DA SILVA, Elizabete Rodrigues. Feminismo Radical – Pensamento e Movi-


mento. Revista Travessias, 4. ed. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.
br/index.php/travessias/article/viewFile/3107/2445>. Acesso em: 24 jan. 2018.

Flávia Lemos - 21982.indd 440 28/02/2020 13:13:52


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 441

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Ed. Boitempo, 2016.

DETONI, Priscila Pavan; NARDI, Henrique Caetano. Proteção Social Básica


e Relações de Gênero. Niterói, v. 13, p. 61-73, 2012.

LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas,


Florianópolis, 2014.

or
od V
MAYORGA, Cláudia. et al. As críticas ao gênero e a pluralização do femi-

aut
nismo: colonialismo, racismo e política heterossexual. Estudos Feministas,
Florianópolis, 2013.

R
MARIANO, Silvana, Aparecida; CARLOTO, Cássia, Maria. Gênero e Com-
bate à Pobreza: Programa Bolsa Família. Estudos Feministas, Florianópo-

o
lis, 2009.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME.


Política Nacional de Assistência Social- PNAS/ 2004 e Norma Operacional
Básica- NOB/ SUAS, Brasília, nov. 2005. Disponível em: <http://www.mds.
visã
gov.br/>>. Acesso em: 5 nov. 2017. <http://www.mds.gov.br/>.

PINTO, Célia Regina Jardim. Feminismo, História e Poder. Revista Socio-


itor

logia Política, Curitiba, v. 18, p. 15-23, 2010.


a re

RUSSO, Gláucia; CISNE, Mirla; BRETTAS, Tatiana. Questão social e media-


ção de gênero: a marca feminina na Assistência Social. SER Social, Brasília,
v. 10, p. 129-159, 2008.
par

TIBURI, Marcia. Feminismo em comum. Ed. Rosa dos Tempos, Rio de


Janeiro, 2018.
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 441 28/02/2020 13:13:52


Flávia Lemos - 21982.indd 442
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:52
SEM MUROS E SEM BARREIRAS
NA AMAZÔNIA: programa
asas da florestania infantil

or
V
Kelly Cristina Costa Albuquerque

aut
Maria Ivonete Barbosa Tamboril

1. Introdução

CR
do
O capítulo trata do relato de uma pesquisa realizada sobre o programa
de ensino o “Asas da Florestania Infantil”, mais conhecido como “Asinhas”,
proposto pela Secretaria Estadual de Educação e Esporte (SEE), do Estado
do Acre, em 2009, para atender crianças de quatro e cinco anos residentes em
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
locais longínquos, sem acesso à Educação Infantil. Este trabalho, resultado
de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, analisou o Programa
ra
“Asinhas”, no período de 2009 a 2015, a partir de uma análise interpretativa
i
dos discursos, coletados com entrevistas semiestruturadas e das informações
rev

obtidas através da pesquisa documental.


O estudo teve como colaboradoras duas agentes educacionais, uma téc-
to

nica, uma gestora e uma familiar de criança atendida pelo “Asinhas”, todas
residentes em Rio Branco, capital do Acre. A seleção destas, realizada de forma
ara

aleatória, foi autorizada tanto pela SEE como pelas próprias participantes que
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
ver di

A pesquisa demonstrou através dos discursos, que para as participantes,


o “Asinhas” é eficaz, e acreditam na necessidade de permanência do mesmo,
op

bem como o consideram como uma alternativa para sanar a deficiência de


atendimento ao público de quatro e cinco anos do campo que não tem acesso à
E

educação infantil. Os dados trazem, ainda, as diversas dificuldades encontradas


para a execução do programa, dentre elas a dificuldade de acesso às comuni-

dades e o pouco interesse de alguns gestores municipais em aderir ao projeto.


O programa não possui todas as características previstas pela legislação
educacional para a educação infantil, no entanto, sua proposta de atuação
apresenta vários fatores positivos, dentre eles: o atendimento personalizado, o
envolvimento da família, o contato com a natureza e a ênfase na cultura local,
favorecendo, desta forma, o processo de escolarização através do estímulo ao
desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial da segunda infância. A ini-
ciação ao letramento e o desenvolvimento psicomotor e cognitivo fazem parte
dos objetivos das atividades desenvolvidas pelos agentes junto às crianças.

Flávia Lemos - 21982.indd 443 28/02/2020 13:13:52


444

Tendo em vista os aspectos observados neste estudo, espera-se que ações


inclusivas como o Programa “Asinhas” sejam fomentadas para atender as
comunidades excluídas e privadas de seus direitos, e que se tornem referência
para reflexão, revisão e formulação das Políticas Públicas Educacionais para
a Educação Infantil.
Dessa forma, ainda se fazem necessários a discussão, reflexão e formu-
lação de políticas públicas voltadas a atender a essas comunidades bem como

or
o desenvolvimento de intervenções concretas, com base em metas estipuladas

od V
pelos nossos dirigentes e a partir da realidade e necessidades que aquelas

aut
apresentam. O Asas da Florestania, no Acre, é uma ação inclusiva que pode
vir a ser referência para outros lugares com especificidades que comprometem
o acesso ao direito educacional.

2. O “Asinhas” R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


O “Asinhas” é um programa de educação infantil, criado em 2009 pela
SEE/AC e ofertado até os dias atuais, quando realizávamos a pesquisa (2015)
exclusivamente, para atender a crianças de quatro e cinco anos, residentes
em locais de difícil acesso, no Estado do Acre, e reconhecido pelo Conselho
visã
Estadual de Educação por meio da resolução CEE/AC161/201161.
O seu grande diferencial é o atendimento domiciliar, justificado pela
gerente do ensino rural (SEE, 2009): “não dá para exigir que as crianças e
itor

os pais cruzem a floresta e atravessem rios” para que cheguem a uma escola.
a re

O público-alvo do programa são crianças que moram em lugares de difícil


acesso, onde não existem escolas, e mesmo as escolas mais próximas acabam
sendo muito distantes e a chegada a estas, muito difícil (mata, ramais intra-
fegáveis, rios, lagos, pontes, bichos, dentre outros).
par

O programa tem sua equipe formada pelos agentes de educação (os


educadores que realizam o trabalho com as crianças), quatro técnicos da SEE
Ed

(profissionais que coordenam o programa, e os supervisores (fazem parte do


ensino infantil da Secretaria Municipal de Educação(SEME)) que acompa-
nham sua execução. Os responsáveis institucionais são as Secretarias Estadual
ão

e Municipal de Educação, com a assessoria externa do Instituto Abaporu de


Educação e Cultura62.
Em 2005, o governo do Estado do Acre, em parceria com as prefei-
s

turas municipais, deu início ao projeto intitulado “Asas da Florestania”.


ver

Este propunha levar a crianças a partir de seis anos a escolarização voltada,

61 Apenas após o período experimental do programa, dezembro de 2010, é que o Conselho Estadual de
Educação do Acre o validou como uma modalidade de educação infantil ofertada pela SEE/AC.
62 Organização de promoção da educação e cultura, que desenvolve, desde 2002, assessoria a projetos
educacionQais e sociais em diferentes instituições e Estados do país.

Flávia Lemos - 21982.indd 444 28/02/2020 13:13:53


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 445

inicialmente, para a segunda etapa do ensino fundamental. Em 2008, o aten-


dimento abrangeu, também, o ensino médio, e em 2009, a educação infantil,
com o “Asinhas”.
Até 2009, início do programa, a população infantil da primeira e segunda
infâncias encontrava-se excluída pelas políticas públicas e autoridades, no
Acre. No entanto, não podemos deixar de apontar que, levando em conta a
história educacional do país e, mais especificamente, do Estado do Acre, de

or
exclusão, instabilidades, (des)organização, programas como o “Asinhas”

od V
significam grande avanço para a educação infantil.

aut
Vale destacar que o Asas da Florestania Infantil, fundamental e médio
tem uma regularidade na oferta, garantida pelo CEE. A coordenadora entre-
vistada nos diz: “A gente já tinha investido no ensino fundamental, no ensino

R
médio, mas o nosso déficit com educação infantil no Estado é muito grande,
mesmo na zona urbana”.

o
A importância do “Asinhas” está relacionada à diminuição da margi-
aC
nalização vivenciada pelos povos da floresta na efetivação dos seus direitos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

constitucionais, como o acesso à educação. Mesmo com a existência de escolas


rurais em muitas comunidades, estas ainda não contemplam as necessidades,
pois a distância, as condições das estradas e outros perigos que o percurso
visã
pode oferecer tornam-se empecilhos para a escolarização de muitos jovens
e crianças brasileiras que fazem parte de comunidades ribeirinhas, reservas
extrativistas, assentamentos, seringais e outros locais distantes das cidades.
itor

A significação dada à infância no contexto amazônico está relacionada


a re

diretamente às dificuldades que o amazônida vivencia. A criança neste con-


texto vive em condições que devem ser compreendidas, e, além dos fatores
ambientais (calor, estiagem, chuvas e alagações), ainda temos de considerar
as características socioeconômicas, as influências culturais e familiares.
Seguem algumas características presentes em uma amostra de 28 comu-
par

nidades, apresentadas pela SEE. Em relação à distância de uma casa à outra,


Ed

“Em 5 delas as casas são próximas umas das outras (poucos metros), em 19
a distância é de 1 a 5 km aproximadamente e em 4 as casas ficam em mais
de 5 km distantes umas das outras”. A principal atividade econômica é a agri-
ão

cultura, em 26 comunidades, a pesca em apenas uma e em outra atividade no


seringal. Outra característica importante é o grande índice de analfabetismo
entre os pais das crianças (SEE, 2010).
s

Todo esse conjunto de fatores, e outros mais, caracterizam a criança


ver

amazônida, em sua identidade, e apontam as suas necessidades. Identidade que


percorreu as características de crianças indígenas, seringueiras, nordestinas e
imigrantes, construindo a significação que temos hoje.
Com a inexistência de outra forma de educação infantil que atenda às
crianças de quatro e cinco em locais de difícil acesso, vemos no “Asinhas” a

Flávia Lemos - 21982.indd 445 28/02/2020 13:13:53


446

possibilidade da não exclusão, do acesso e da possibilidade do desenvolvi-


mento dessas crianças, privadas de um direito pelas suas condições geográ-
ficas, socioeconômicas e culturais.
Assim, o programa surge, segundo a proposta pedagógica do “Asinhas”
(SEE, 2009, p. 15), com o objetivo de: “Garantir às populações rurais, resi-
dentes nas áreas de difícil acesso, a oferta de Educação Infantil para crianças
na faixa etária de quatro e cinco anos, acionando o “regime de colaboração” e

or
criando as condições durante 6 anos, para que as prefeituras, gradativamente,

od V
assumam sozinhas a Educação Infantil na zona rural”.

aut
Quanto à abrangência, dos 22 municípios do Estado, 18 já ofertam o
“Asinhas”, sendo que de forma geral, os dados aferidos demonstram que 2.083
matrículas foram realizadas em 2014, sendo que 667 crianças foram rema-

R
triculadas, e 496 saíram do “Asinhas” e ingressaram no ensino fundamental.
Em 2015, o número de crianças atendidas pelo programa subiu para 2.188.

o
A coordenadora entrevistada afirma: “[...] Parece pouco, mas se você
aC
visualizar o que a gente atende hoje, pro que a gente atendeu, e a gente

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


trabalha com população mais isolada, pra gente é um número significativo
[...]”. É salutar levar em conta que o número de pessoas residentes nas áreas
de difícil acesso é bem menor que a população urbana, e, no Acre, como
visã
aponta o Censo 2010 (IBGE, 2010), a população rural compreende 201.280
mil habitantes, enquanto que moram na zona urbana 532.279 mil pessoas.
Dessa forma, vemos como incoerente o poder dos gestores municipais
itor

de escolher ofertar ou não o programa “Asinhas”, já que a educação infantil


a re

regular não é ofertada a este público e também não atende às suas necessida-
des, e o programa está legalizado, aprovado pelo CEE/AC.
Destacamos ainda que, no programa, mesmo com o acompanhamento
da SEE, o pagamento dos agentes é de responsabilidade do município: “eles
são responsáveis de fazer o pagamento do agente, o Estado entra com todo
par

o material, formação, mas o município precisa pagar os agentes (técnica).


Ed

A possível falta de recursos, segundo as entrevistadas, finda por ser a mais


frequente justificativa de alguns gestores para a recusa em desenvolver o pro-
grama. No entanto esse discurso não é válido, já que os municípios recebem
ão

verba específica para investimento na educação.


Além do fator econômico, apontado pelos secretários municipais,
segundo as entrevistadas, e a dificuldade de acesso às casas dos estudantes,
s

outras dificuldades foram elencadas pelas representantes da SEE: a relação


ver

com os gestores dos municípios; a mobilidade territorial e as mudanças de


secretários municipais.
A proposta do “Asinhas” apresenta muitas especificidades, principal-
mente, o fato de não haver uma estrutura física para o atendimento das crian-
ças, a frequência com que acontecem as aulas, duas vezes por semana, e a

Flávia Lemos - 21982.indd 446 28/02/2020 13:13:53


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 447

qualificação profissional dos agentes de educação. No entanto, o programa


possibilita o contato das crianças com vivências, habilidades e conteúdos
estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e pelos princípios esta-
belecidos pela Unesco, na Conferência Mundial de Educação para Todos,
com as adequações para a realidade local, e, também, atendendo, em parte,
à Constituição Federal.
A psicologia reconhece a importância das especificidades contextuais e

or
socioculturais no processo de escolarização e fomenta a observância destas.

od V
Inserir temas relevantes ao desenvolvimento social, político e cultural é funda-

aut
mental para a construção ética e cidadã dos estudantes. Assim, o aprendizado
ocorrerá por meio de estímulos conhecidos, despertando o interesse, ao mesmo
tempo em que permeará conteúdos previstos pela legislação educacional, o

R
que resultará em conhecimento significativo para a vida das crianças.
Segundo a coordenadora e a técnica entrevistadas, o diferencial do “Asi-

o
nhas” será: “[...] Eu acho que a grande ‘sacação’ do ASINHAS é o atendi-
aC
mento domiciliar, eu acho muito legal” (coordenadora), e “O diferencial do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

programa pra mim é esse atendimento personalizado, individual, porque cada


criança é tratada como única, sendo o desenvolvimento delas muito rápido,
eu acho que é isso.” (Técnica). Já na visão da familiar da criança: “Rapaz, é
visã
bom porque já começa a aprender, né, desde pequeno... Quando for pra escola
já sabe alguma coisa! Tá bem avançado já?! E isso é bom...”.
Ainda quanto aos ganhos, na fala dessa familiar entrevistada, percebemos
itor

a satisfação em relação aos resultados, destacando o quanto a criança tem se


a re

desenvolvido com as aulas e o quanto esta gosta.

Uhum... Percebo, porque ela não sabia, é... Diferenciar as cores, né...
Assim, o que era verde, azul... Ela já sabe! Já conhece as letras do nome
dela... Já conhece direitinho... Só os números que ela não sabe ainda,
par

né?! Mas o quê... Ela não tem uns três meses de aula... [...] Ontem ela
tava me mostrando umas fichinhas, dizendo o que era verde, o que era
Ed

amarelo... Então eu acho que já tá tendo, né?! [...] Ela gosta muito! Por
ela, ela estudaria todo dia! (Risos) Todo dia, todo dia! Mas não pode, né?!
ão

No viés psicológico, podemos fundamentar a aprendizagem e o desen-


volvimento na metodologia utilizada pelo “Asinhas” com o construtivismo e
mesmo com a teoria histórico-cultural. O construtivismo, por haver a interação
s

das crianças com o meio em que vivem, por meio da ludicidade, psicomo-
ver

tricidade e atividades direcionadas a aspectos do desenvolvimento, levando


em conta as características da segunda infância; já a teoria histórico-cultural
pode ser percebida com a valorização da própria cultura para o ensino, utili-
zando-se de elementos do contexto em que vivem, assim como da interação
com o agente, com a família e, quando possível, com outras crianças.

Flávia Lemos - 21982.indd 447 28/02/2020 13:13:53


448

O programa possibilita vivências que propiciam o desenvolvimento cog-


nitivo de crianças de quatro e cinco anos de lugares que não ofertam outras
oportunidades, garantindo o acesso à educação, mas não da mesma forma
das que moram na zona urbana, que têm disponíveis uma série de recursos e
oportunidades para o seu aprendizado. No entanto, enquanto não se tem outra
forma que atenda por completo às necessidades e aos direitos das mesmas ao
processo de escolarização, é uma iniciativa plausível.

or
Em muitos locais, as crianças não têm contato com o mundo da escrita

od V
e da leitura. O programa oferece alguns materiais didáticos que possibilitam,

aut
além do contato da criança com a leitura, escrita e contação de histórias,
também o dos demais membros da família, que, de forma geral, apresentam

R
nenhuma ou baixa escolaridade. Prejuízos, com certeza essas ações não cau-
sarão, neste caso, só têm a somar para o estímulo ao desenvolvimento das
crianças, já que a linguagem, pensamento lógico e imaginação serão forte-

o
mente estimulados.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Tem lugar que a gente vai, que as crianças só têm acesso a material
escrito quando a gente leva, até então elas não tiveram acesso a nenhum
tipo de história, a nenhum tipo de material escrito, então essas crianças
visã
podem ser condenadas ao fracasso porque não têm estímulo. Então pra
mim, esse programa é oportunidade, oportunidade de desenvolvimento,
oportunidade de ter sucesso, oportunidade... (Técnica).
itor
a re

A criança, na segunda infância, está em pleno desenvolvimento cognitivo,


com a memória e a linguagem destacando-se dentre os ciclos que envolvem
seu crescimento. Dessa forma, a Psicologia do Desenvolvimento afirma que
existe grande necessidade de estimulação do meio para o desenvolvimento
de suas habilidades, neste caso, a contação de histórias, e mesmo o contato
par

com os livros, é fundamental.


Ed

A maior parte das atividades são desenvolvidas no quintal das casas,


em contato com a terra, o mato, o vento. Coletar da própria natureza objetos
para usar nas aulas é comum, como, por exemplo, catar semente para fazer
ão

colagem em uma figura, usar o barro para moldar as miniaturas dos membros
da família, o bambu para brincar de cavalinho e outras estratégias que estimu-
lam, também, a criatividade e psicomotricidade das crianças. As experiências
s

práticas fazem parte da metodologia do programa e são essenciais para o


ver

desenvolvimento como um todo e para o processo de escolarização.


A ausência da educação para crianças da floresta que não têm a opor-
tunidade de acesso é descrita por uma das agentes entrevistadas da seguinte
maneira: “Aí eles não têm essa questão da pré-escola... Não tem um prepara-
tivo pra chegar na escola... Eles chegam no primeiro ano, “nú e crús”. Essa

Flávia Lemos - 21982.indd 448 28/02/2020 13:13:53


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 449

visão aponta não somente para a necessidade de acesso à educação dessas


crianças, mas também para a significação que é dada pela agente ao “Asinhas”,
atribuindo a função de pré-escolar, “questão da pré-escola”.
E, quando nos deparamos com a significação de escolarização, com-
preendemos que o programa atende, em parte, às características de tal, pois,
se considerarmos a escolarização o processo de escolarizar-se, ter acesso à
educação formal e estruturada, com base na LDB, e, ainda, aquela é vista

or
como a transformação, organização e utilização de saberes. O “Asinhas”

od V
proporciona uma escolarização diferenciada a essa população que possui

aut
suas especificidades.

2.1 A proposta curricular

R
o
O “Asinhas” tem como base o princípio da oferta a todos, independen-
temente de quão difícil seja o acesso a estes, assim como levar em conta a
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

realidade em que vivem sua história, as situações a que estão expostas as


crianças do campo e a necessidade de adequação de conteúdo que sejam
significativos a suas vidas.
visã
Ainda que as leis da educação apontem as especificidades que devem
existir no ensino regular, há, por outro lado, certa resistência a ações que se
distanciem dos modelos padronizados. Programas como o “Asinhas” são
itor

propícios à inclusão dos que não estão inseridos nessa homogeneização, e


pode ser o início de um percurso que trará benefícios aos povos que não têm
a re

seus direitos atendidos por suas especificidades. Mudanças, aperfeiçoamentos


e retomadas podem (e devem) ser necessários e fazem parte do processo de
desenvolvimento e de movimento do sistema em que estamos inseridos.
Assim, o programa organizou o currículo, previsto nos Referenciais
par

Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI) e pelas Diretrizes


Curriculares para a Educação Infantil, em quatro grandes eixos: Linguagem
Ed

Verbal, Letramento e Conhecimento de Mundo; Conhecimento de Temas da


Natureza, da Sociedade e de suas Relações; Conhecimento Matemático; e
ão

Artes e Cultura Corporal. Estes eixos estão organizados em apostilas ela-


boradas especificamente para o programa e que são utilizadas durante os
módulos. Os agentes recebem orientações para a utilização das mesmas e do
s

desenvolvimento de atividades previstas para cada aula. Os materiais didáticos


ver

foram elaborados a partir da realidade local e os conteúdos organizados em


seis módulos. O ano letivo tem duração de sete meses.
Os encontros são organizados por momentos, a depender do tipo de ati-
vidade, que contemplam os vários saberes previstos na proposta curricular, o
que dinamiza a ação e torna a aprendizagem mais prazerosa, a saber:

Flávia Lemos - 21982.indd 449 28/02/2020 13:13:53


450

• “Prá começo de conversa” – momento inicial do encontro, quando


as crianças, e mesmo os familiares, são convidadas a participar rela-
tando o que sabem sobre o assunto. A intenção é deixar o momento
mais agradável e aproveitar as experiências do dia a dia da família;
• “Lá vem história” – momento de cotação de história infantil, “de
fadas, histórias indígenas, poemas, receitas, cantigas, parlendas...”;
• “Vamos cantar” – momento de exploração das músicas já conhecidas

or
pela família, para em seguida ensinar outras, com atenção para as

od V
rimas, ritmos, sons corporais e o movimento com a dança;

aut
• “Vamos brincar” – momento quando por meio das brincadeiras
são trabalhados os temas propostos pelo currículo e o estímulo do
desenvolvimento das crianças. Dessa forma, estas se interessam e

• R
participam com satisfação das atividades;
“Descobrindo coisas do mundo” – as atividades desse momento se

o
caracterizam pela exploração do meio em que vivem, de explorar
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


as coisas, de levantar questionamentos sobre tudo o que as rodeia
de forma a favorecer o pensamento e a aprendizagem;
• “Que número é esse” – nesse momento, são exploradas atividades
que envolvam números, medição, espaço, tempo e lógica. Utiliza-se
visã
de calendários, do próprio tamanho das crianças, de comparações,
de jogos, de quantidade e de maquetes;
• “Fazendo arte” – momento quando a criatividade é mais ainda esti-
itor

mulada, envolve a imaginação e poder de criação. Para tanto, são


a re

utilizados recursos do próprio ambiente como o barro, gravetos


e outros;
• “Lendo e escrevendo” – momento da leitura e escrita, quando não as
conseguem ainda, as crianças fazem a escolha do livro e na escrita
par

ficam livres para fazerem o que conseguirem;


• “Por hoje é só” – momento de encerramento, de orientações para
Ed

tarefas de casa e já uma programação para o encontro seguinte


(SEE, 2010).
ão

Ao tratarmos da organização estrutural de acompanhamento e super-


visão, vemos que existem os núcleos regionais e técnicos que coordenam
e dão o apoio necessário aos agentes do programa. Frequentemente, são
s

realizadas capacitações para o aprimoramento da prática pedagógica. É o


ver

que diz a agente B:

[...] nós temos a formação uma vez no mês, pra ver o ponto positivo, o
ponto negativo, o que pode ser melhorado... e a coordenadora sempre
está acompanhando pra saber se nós estamos trabalhando mesmo... Tá

Flávia Lemos - 21982.indd 450 28/02/2020 13:13:53


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 451

certo, né, porque isso é bom! Eu gosto que a coordenadora esteja presente,
porque sabe... eu não tenho muita experiência no Asinha... E quando a
coordenadora tá lá, ela tá dizendo: Olha, isso tá certo! Isso não tá! Então,
é bem melhor que a gente já começa corrigindo, a gente não fica no erro!

Destacamos que quem executa o programa é a Secretaria Municipal


de Educação, mas a Secretaria Estadual acompanha, realiza o planejamento

or
inicial, a capacitação continuada e fornece os materiais didáticos até que os
municípios tenham autonomia para dar continuidade, sozinhos, o que ainda

od V
não aconteceu. O programa tem em sua proposta um termo de cooperação

aut
entre Estado e município para o seu desenvolvimento.

2.2 O material didático


R
o
O material didático é elaborado pelo Instituto Abaporu de Educação e
aC
Cultura, que assessora o programa. É adaptado à realidade dessas comunidades
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e autoexplicativo, para o melhor manuseio dos próprios agentes. Vejamos o


relato da coordenadora entrevistada:
visã
[...] O material pedagógico é todo alicerçado nas diretrizes da Educação
Infantil nacional. Por isso o material traz os quatro eixos, desde as lin-
guagens, é... estimular linguagens, a linguagem matemática, estimular
itor

também a relação dele com a natureza e a parte artística. Então a gente


pensou num material autoexplicativo, porque esse jovem não teria forma-
a re

ção em magistério, mas a gente falaria com ele de Psicologia infantil, de


Desenvolvimento infantil, sem psicologizar muito... Sem usar uma lingua-
gem muito técnica, mas que ele compreendesse porque que essa atividade
aqui é mais significativa do que essa. Qual o diferencial dessa atividade
par

que estimula mais neurologicamente a criança, estimula o cérebro dela,


a criatividade, os movimentos e não essa (coordenadora).
Ed

Esses materiais são distribuídos pela Secretaria Estadual de Educação


aos agentes e às crianças a cada início de módulo. As listas são extensas e
ão

diversas, possibilitando a execução de inúmeras atividades, atendendo ao que


prevê a proposta pedagógica do programa. Essa disponibilidade de materiais
para uso individual, no “Asinhas”, acaba sendo um grande diferencial, levando
s

em conta que na oferta de educação infantil em pré-escolas isso não acontece.


ver

2.3 Os agentes de educação

Os chamados “Agentes de educação” exercem a função de educador/


educadora. Em 2015, o programa contou com 247 profissionais. Na educação

Flávia Lemos - 21982.indd 451 28/02/2020 13:13:54


452

infantil, são polivalentes e unidocentes. Diferente do Asas Fundamental e


Médio que possui professores por área. A seleção dos mesmos se dá por meio
de entrevistas; estes devem ser de preferência residentes da comunidade, por
causa da dificuldade de locomoção; muitos não possuem ensino superior, o que
ocorre com mais frequência nos municípios menores, pois em Rio Branco, a
capital, todos os agentes possuem graduação, alguns até mais de uma, como
no caso de uma das participantes da pesquisa.

or
A agente A se apresenta da seguinte forma:

od V
aut
Ah! Aqui eu tenho a função de Agente de Educação, né?! Que é o mesmo
de professor de pré-escola! A gente pode denominar assim...”, enquanto
que a Agente B diz que sua função é ser professora, e também que “Bom,

R
meu trabalho é agente da educação [...].

o
Para ser um agente de educação, segundo a proposta pedagógica do
aC
programa “Asinhas” (SEE, 2009), é necessário apresentar as seguintes carac-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


terísticas: Ter concluído o Ensino Médio ou estar cursando; Expressar-se
oralmente com clareza; Escrever com clareza e objetividade; Ser, de prefe-
rência, da comunidade; Ter afinidade com criança; Ter no mínimo 18 anos;
visã
Ser responsável; Ter capacidade de interação com as pessoas; Ser criativo;
Ter flexibilidade e dinamismo para o trabalho em equipe.
O fato de os próprios jovens da comunidade, ex-estudantes do Asas,
itor

serem agentes de educação é justificado, também, pelo favorecimento da


a re

geração de renda, pois, além de ser difícil para outros que não tenham esse
perfil chegar às comunidades, também é positivo o fato de já serem conhecidos
das famílias, de já saberem das vicissitudes dos locais e ainda ganham seu
salário, favorecendo o desenvolvimento social e regional.
Atentando-nos ao viés pedagógico, podemos refletir se não haveria pre-
par

juízos ao processo de ensino e de aprendizagem pelo fato de os agentes não


Ed

possuírem formação para tal. O que percebemos é que tal medida, adotada
pelo programa, possui, sim, pontos positivos como as citadas anteriormente,
e como negativo a não qualificação adequada dos profissionais. “Adequada”
ão

porque qualificação estes recebem, com os planejamentos, treinamentos e


supervisões, mas não possuem, em sua maioria, formação de nível superior.
No entanto, como ainda não há como atender a todas as comunidades com
s

profissionais graduados e o perfil atual tem atendido à demanda, segundo o


ver

discurso das entrevistadas, permanece como está e acaba sendo uma medida
mais favorável do que desfavorável.

[...] porque esse jovem não teria formação em magistério, mas a gente
falaria com ele de Psicologia infantil, de Desenvolvimento infantil, sem

Flávia Lemos - 21982.indd 452 28/02/2020 13:13:54


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 453

psicologizar muito... Sem usar uma linguagem muito técnica, mas que
ele compreendesse porque que essa atividade aqui é mais significativa
do que essa (Coordenadora).

Segundo a coordenadora entrevistada, o não envolvimento de agentes


graduados se dá pelo pouco interesse dos mesmos em lecionar nos lugares
distantes, sendo mais prático e fácil para aqueles que já moram e são conhe-

or
cidos nas comunidades. Em Rio Branco (Acre), por ser capital, o acesso às
comunidades finda por ser mais fácil, sem, inclusive, em muitos casos, os

od V
mesmos terem que fixar moradia nesses locais. Das duas agentes entrevistadas,

aut
uma voltava para a cidade todos os dias e a outra apenas nos finais de semana.
Os interessados em ser agentes de educação do programa realizam o pro-

R
cesso seletivo simplificado e, quando aprovados, são contratados temporaria-
mente, por período determinado, podendo este ser renovado por igual tempo. A

o
jornada de trabalho diária é de até 6h, e até 30h por semana. Quando contrata-
aC
dos, participam do planejamento inicial, dos mensais, além de serem acompa-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nhados quinzenalmente pela equipe de supervisão das secretarias municipais.


Para aqueles que já atuaram no programa, a Coordenação do Ensino
Rural (CER/SEE/AC) elaborou um instrumento próprio de seleção que conta
visã
com questões do tipo:

Durante o seu trabalho no Asinhas você aprendeu alguma coisa com as


itor

famílias? [...] Desde que trabalha no Asinhas, você passou a ler mais?
a re

[...] Relate brevemente como é que você se prepara para realizar o encon-
tro com as crianças e suas famílias. [...] Indique 4 aspectos que você
aprendeu nas reuniões pedagógicas realizadas pelo (a) supervisor (a)
do Asinhas. [...] A avaliação que você realizou sobre o processo de
desenvolvimento das crianças te ajudou a entender melhor como elas
par

aprendem? (CER/SEE/AC).
Ed

Após o processo de seleção, ao iniciar o trabalho de agente no programa,


há um estranhamento tanto em relação à metodologia adotada, como pelas
condições (físicas e psicológicas) que muitos agentes vivenciam, já expostas
ão

nas seções anteriores. As barreiras são muitas, mas não o suficiente para que
os mesmos desistam do compromisso que ora assumiram junto ao “Asinhas”,
como vemos no relato de um agente sobre a experiência em fazer parte do
s

programa. Esse relato encontra-se na cartilha do programa Asas da Florestania


ver

Infantil, elaborada pela Secretaria Estadual de Educação (SEE, 2009):

Então pé na estrada, foi isto que fiz. Olhos e ouvidos abertos, que aí vem
aventura. Na primeira visita na casa do Claudsson, eu nunca imaginava
que eu era capaz de fazer a entrega dos materiais e falar sobre o projeto

Flávia Lemos - 21982.indd 453 28/02/2020 13:13:54


454

depois de ser picada por uma cobra na porteira do terreiro. Foi um deses-
pero! Em uns vinte minutos realizei os primeiros cuidados. Vimos que
a cobra não era peçonhenta. A outra aventura foi correr para se livrar da
chuva e cair na lama...

As dificuldades de acesso às comunidades ou mesmo às casas das crian-


ças é um grande desafio enfrentado diariamente pela maioria dos agentes.

or
Além dos animais silvestres, a mata fechada, barrancos, rios, igarapés, lama,

od V
Sol forte e chuvas compõem os caminhos percorridos por esses profissionais

aut
em seu dia a dia, o que lhes exige força e determinação.
Por esse contexto, na execução do programa, pensado para atender a
essa população específica, muitos agentes demoram horas para chegar às

R
casas das crianças atendidas. Alguns utilizam bicicletas, motocicletas, canoas
ou mesmo cavalos, mas a caminhada é uma das principais formas de chegar

o
até os destinos. Várias são as histórias que escutamos nas visitas às famílias.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


A mais cabulosa delas foi a de um agente que escapou de ser comido por
uma onça, enquanto caminhava na mata fechada a caminho da residência da
criança, onde viu um homem que passava no mesmo local morrer nas garras
visã
do animal selvagem.
A psicologia escolar/educacional destaca a importância da motivação
tanto do professor, quanto dos estudantes, no processo de escolarização. E essa
motivação, que é intrínseca ao indivíduo, ocorrerá por diversas influências
itor

contextuais. No “Asinhas”, a motivação para o enfrentamento das dificuldades


a re

por parte dos agentes está relacionada, dentre outros, ao afeto desenvolvido
pelo programa e pelas crianças e à percepção de que as mesmas precisam
e, realmente, desenvolvem-se com as intervenções educacionais, propostas
pelo programa.
par

A agente B conta da oportunidade que teve de trabalhar em uma escola


em frente a sua casa, mas optou em permanecer no “Asinhas”, onde passa
Ed

a semana na comunidade, dormindo em um alojamento de escola para ir a


sua casa, que fica na cidade, apenas no final de semana.
ão

Não é uma jornada fácil! Porque é na Zona Rural, tudo é mais difícil...
mas vai da vontade de cada profissional, [...] eu tava dando aula em frente
a minha casa, mas eu tô gostando mais daqui, apesar de ficar longe de
s

casa, eu tô gostando de trabalhar com o “asinha” do que tá em frente


ver

lá de casa. Até tive a oportunidade, né, pra mim continuar, aí eu já tava


aqui, já tinha dado a minha palavra que ia ficar trabalhando aqui... [...]
eu falei que era melhor ficar aqui com meus alunos, do que... tá em frente
a casa da diretora Rosa? Só atravessar a rua! Eu falei: “Não, mãe! Eu tô
gostando de lá, eu tenho que permanecer lá...” (Agente B).

Flávia Lemos - 21982.indd 454 28/02/2020 13:13:54


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 455

O profissional motivado realizará seu trabalho de forma mais eficaz e


eficiente e poderá influenciar aqueles que estão envolvidos no mesmo pro-
cesso, como as crianças e as famílias, no “Asinhas”. Mas ressaltamos que,
como já afirmado, a motivação é um processo individual, não sendo possível
uma pessoa motivar a outra. Dessa forma, o que haverá será a influência no
comportamento, porém a motivação da criança e dos familiares estará rela-
cionada aos resultados, objetivos e metas que os mesmos possuem em relação

or
ao desenvolvimento e à aprendizagem da criança.

od V
2.4 A formação pedagógica

aut
No início de cada ano letivo do “Asinhas” há um encontro de planeja-

R
mento geral, e, no decorrer do ano, encontros mensais de acompanhamento,
quando os agentes trocam experiências, estudam os materiais didáticos e rece-

o
bem várias orientações dos supervisores. Quanto à metodologia de aplicação
aC
do que é apresentado nas formações, a agente A diz: “A gente trabalha com
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

módulo, através de módulos. Já vem tudo pronto os módulos. Aí o módulo já


tem os encontros, cada aula é um encontro, com atividades, com objetivos,
com avaliação, já tudo pronto e é só aplicar mesmo para as crianças”.
visã
Segundo a proposta pedagógica do “Asinhas”, a formação continuada
tem como objetivo “oferecer, tanto para os agentes como para os supervisores,
situações que favoreçam a construção das competências necessárias para o
itor

desenvolvimento do Programa Asas da Florestania Infantil”. Esta apresenta


quatro modalidades: grupo de estudo e planejamento; orientação pedagógica;
a re

acompanhamento e formação a distância (SEE, 2009).

• Grupo de estudo e planejamento – estudar e discutir aspectos do


desenvolvimento infantil articulados à proposta de cada encontro;
par

Trocar experiências, refletir e identificar os avanços e dificuldades;


Analisar as propostas das atividades a fim de identificar a eficiência
Ed

de cada uma para o desenvolvimento das habilidades esperadas da


criança; Participação em atividades culturais.
• Orientação pedagógica – onde acontecem trocas de experiências;
ão

levantamento de dúvidas e orientações acerca das mesmas; estudo


das atividades; leitura e discussão de partes dos relatórios; vivência
de algumas atividades; construção de materiais; avaliação da reunião.
s

• Acompanhamento – realizado pelo supervisor (in loco) e pelo repre-


ver

sentante responsável da SEE. “O acompanhamento deverá funcionar


como apoio efetivo aos agentes e supervisores e ajudar a encurtar
a distância entre as intenções e os resultados, se constituindo cada
vez mais um tipo de ajuda ‘personalizada’, uma resposta ajustada
às necessidades de ambos”.

Flávia Lemos - 21982.indd 455 28/02/2020 13:13:54


456

• Formação à distância – por meio de cartas mensais os agentes des-


creverão o desenvolvimento dos seus trabalhos, a fim de instru-
mentalizar a equipe para possíveis intervenções sobre o que está
acontecendo. As cartas informam e atualizam as equipes quanto a
como estão acontecendo as aulas (SEE, 2009).

Após o encontro inicial, planejamento geral, os agentes iniciam os tra-

or
balhos de visitas. Os encontros entre agentes e crianças acontecem na casa da

od V
criança, com atividades voltadas para a vida desta e suas experiências, com-

aut
pondo a base para a aprendizagem e desenvolvimento. A resolução 02/2008
CNE/CEB e o parecer 03/2008 CNE/CEB amparam tal metodologia.
A agente A descreve como desenvolve o seu trabalho:

R
Olha só! Tem um encontro que a gente trabalha... Quase todos os encon-

o
tros, tem uma brincadeira. Então, a gente vem brincar no quintal, aí a
aC
gente explora o quintal. Aí são as brincadeiras... Tem cantiga de roda,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tem as leituras dos livros que a gente tem, que é fornecido... Tem... Quê
mais? Ah! A gente brinca de fazer bonequinhos de barro, aí nesses bone-
quinhos de barro que a gente faz, a gente vai identificar o corpo humano
visã
pra eles, as partes do corpo, tudinho, direitinho... A gente faz desenho
no chão... A gente sempre procura um espaço na casa que seja possível
fazer o desenho no chão... Aí faz o desenho, fazendo a diferença do dia e
da noite... Tem uma aula, que foi interessante! Ela ainda vai chegar... É
itor

no encontro 5, ou é 6, se não me engano... Trabalha com o corpo humano


a re

e o processo digestivo... (Digestivo ou digestório?) Aí pede pra gente


desenhar a criança no chão e eles vão fazendo o caminho que a comida,
o percurso da comida até sair... Aí entrando na boca, mastigando, indo
pela faringe, passando pelo estômago, aí no intestino, até sair em forma
de cocô. Ah! Eles se amarram nessa parte! (Risos)
par
Ed

A preparação e acompanhamento dos agentes são fundamentais para


garantir a qualidade do ensino no “Asinhas”, dessa forma, os profissionais
trabalham com mais segurança e compreensão do processo de aprendizagem
ão

e desenvolvimento das crianças, estando atentos às propostas, objetivos e


resultados das suas intervenções.
Os agentes são orientados a registrar os encontros e atividades, não
s

apenas por meio de relatórios e lista de frequência escritos, mas por meio
ver

de fotografias e gravações de vídeos. Para tanto, os pais autorizam o uso de


imagem das crianças. Vale destacar que essa é uma forma de assegurar maior
efetividade das avaliações do processo de desenvolvimento da criança, aten-
dendo ao que está previsto no art. 31, inciso V, da LDB (9394/96, alterada pela
lei nº 12.796, de 2013) e de regulação desse fazer. Assim como acaba sendo

Flávia Lemos - 21982.indd 456 28/02/2020 13:13:54


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 457

um meio de dar à equipe de acompanhamento a segurança de que o trabalho


está sendo desenvolvido da forma como está previsto pela sua proposta.
A agente B discorre sobre os recursos utilizados para desenvolver
suas aulas:

É... são materiais concretos à realidade dos alunos, por exemplo: Zona
rural, né... Quando nós vamos fazer, por exemplo, uma brincadeira, tem

or
que ser brincadeira com que tenha o recurso é usado com que tenha lá,
por exemplo: massinha de modelar, a gente não tem massinha, a gente

od V
faz com barro. Quando é, por exemplo, o corpo humano, nós trabalha-

aut
mos o corpo humano, a gente utilizou o barro... Fez tipo uma massinha
de modelar, pra eles fazerem as atividades. E o jogo da trilha, quando é

R
na cidade, é diferente daqui. Aqui a gente faz um risquinho e faz aquela
brincadeira da trilha... (Agente B).

o
Aulas com atividades como a da trilha favorecem consideravelmente o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

desenvolvimento cognitivo, físico e psicossocial de crianças que estejam na


segunda infância, quando a memória, linguagem, inteligência, imaginação,
habilidades espaciais e motoras estão em pleno desenvolvimento. O conhe-
cimento de si, do seu corpo, do outro e do espaço a sua volta são mundos a
visã
serem explorados, e existe um anseio para tal por parte das crianças na faixa
etária de quatro e cinco anos.
Nos encontros, os estudantes têm a atenção e o material didático com-
itor

pletamente voltados para si por, no mínimo, 2h, o que, segundo a técnica


a re

entrevistada, torna esse tempo mais aproveitado do que se estivessem em


uma sala de aula convencional. Segundo o relato de uma das agentes, quando
não se consegue fazer as duas visitas semanais, a sexta-feira é destinada
para reposições.
par

Quando na casa da criança atendida há outras crianças que não possuem


quatro ou cinco anos, mesmo assim estas, normalmente, participam de algumas
Ed

atividades. Quando estão na mesma faixa etária e moram próximas, a agente


pode agrupá-las. Cada agente atende até a dez famílias.
ão

2.5 Avaliação

2.5.1 Avaliação das crianças


s
ver

O inciso I, do artigo 31, das Leis de Diretrizes e Bases da Educação,


aponta a forma de avaliação no ensino infantil, afirmando que este não tem
fins de aprovação, mas sim de desenvolvimento da criança, não sendo, dessa
forma, um pré-requisito para o ingresso no ensino fundamental. No entanto
é fundamental o acompanhamento do desenvolvimento das crianças, e, para

Flávia Lemos - 21982.indd 457 28/02/2020 13:13:54


458

isso, a equipe que coordena o programa elaborou um instrumento de avaliação


por módulo que ao final do ano letivo compõe a avaliação final, denominada
ficha de indicadores.
Na educação infantil, a avaliação deve ter como foco o desenvolvi-
mento das crianças, e será, assim como no ensino fundamental e no médio, de
forma contínua. Esse processo é de suma importância para a aprendizagem,
garantindo uma atuação docente pautada na realidade, avanços e desafios

or
que as crianças apresentam. Ressaltamos ainda que, para a educação infan-

od V
til, a avaliação não tem caráter de aprovação ou retenção e deve promover o

aut
desenvolvimento integral da criança.

2.5.2 Avaliação dos agentes

• R
Registro de acompanhamento nas comunidades

o
aC
O registro de acompanhamento é um dos instrumentos de avaliação

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do “Asinhas”. Ele é respondido pelas supervisoras, que fazem as visitas às
comunidades para acompanhar o trabalho desenvolvido pelas agentes. Ao
final de 14 itens respondidos, existe um espaço de devolutiva da agente que
visã
está sendo acompanhada.
A equipe da SEME faz acompanhamento semanal das aulas e em média
quinzenal para a mesma agente. Durante a coleta de dados, foi possível acom-
itor

panhar uma dessas visitas, que tem como objetivo supervisionar o trabalho
a re

realizado pelas agentes de educação. A Secretaria Estadual acompanha, tam-


bém, apenas com menos frequência, pois a execução é de responsabilidade
do município.
Na maioria das vezes, o acesso a essas famílias não é bom, até mesmo
par

quando já se avista a residência. Nesse caso, não havia porteira, assim, foi
necessário que a equipe pulasse a cerca de madeira e outra, mais adiante, de
Ed

arame, com as orientações da agente que já conhecia bem o caminho.


Na efetivação das aulas, a cada módulo, as agentes devem registrar o
desenvolver de cada encontro, com os pontos positivos e negativos, as dúvidas,
ão

as mudanças realizadas para adaptação e, depois, no planejamento colocar


em debate. Também é no planejamento que os agentes realizam a autoava-
liação. Esta possui nove questões discursivas sobre a prática dos mesmos e
s

das equipes de coordenação e supervisão.


ver

• Questionário de autoavaliação dos agentes de educação


Os agentes se autoavaliam e são avaliados pelos supervisores. Respon-
dem à autoavaliação e a entregam ao supervisor que acompanha o processo.

Flávia Lemos - 21982.indd 458 28/02/2020 13:13:54


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 459

Com base nas respostas, agente e supervisor elaboram intervenções a fim de


elevar o nível de qualidade de ensino ofertado pelo programa.
No questionário de autoavaliação, existem questões relacionadas não
apenas à prática dos agentes, mas de todos os envolvidos no “Asinhas”, as
crianças, os supervisores, a SEME e a SEE, o que demonstra o interesse em
ter acesso à visão do agente sobre todo o processo do programa.

or
2.5.3 Avaliação dos supervisores

od V
aut
Por meio da pesquisa documental foi possível ter acesso à ficha de avalia-
ção do agente e da autoavaliativa para o supervisor. Esta é denominada “Ava-
liar para melhorar: Avaliação do agente feita pelo supervisor”. Sua estrutura

R
é dividida em duas colunas, na primeira, tudo que deve ser observado pelo
supervisor em relação à prática do agente; na segunda coluna, indagações ao

o
próprio supervisor em relação a sua atuação durante a visita.
aC
As avaliações, de forma geral, apontam sempre para o fomento do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sucesso no desenvolvimento das aulas, buscando identificar os pontos nega-


tivos para superá-los e os positivos para aprimorá-los. É o que percebemos
quando vemos a proposta descrita.
visã
As autoavaliações e as que são realizadas pelos supervisores têm caráter
construtivo e reflexivo, no sentido de favorecer o desenvolvimento profis-
sional dos indivíduos. Essa concepção desconstrói a ideia de que há muito
itor

vigorou, na educação brasileira, a ideia de que a criança era a única responsá-


a re

vel pelo fracasso escolar. A psicologia escolar/educacional foi de encontro a


essa concepção, descontruindo-a e afirmando que os professores também são
ativos nesse processo, assim como toda a comunidade escolar. No “Asinhas”,
podemos considerar comunidade escolar os agentes, as crianças, os supervi-
sores e coordenadores, a família e a comunidade. Sendo, dessa forma, todos
par

responsáveis por esse processo de aprender e de se desenvolver das crianças.


Ed

3. Considerações finais
ão

No Brasil, a educação para a primeira e segunda infâncias, teve a atenção


do Estado bem mais tarde, com maior visibilidade no governo da presidenta
Dilma Roussef, a partir de 2011. E uma maior abrangência da educação infantil
s

no país ainda está em fase de implantação, já que o prazo para o cumprimento


ver

da meta estipulada pelo governo atual, através do Plano Nacional de Educação


(2014-2024), acaba neste ano de 2016. “Meta 1 – Universalizar, até 2016, o
atendimento escolar da população de quatro e cinco anos, e ampliar, até 2020,
a oferta de educação infantil de forma a atender a 50% da população de até
três anos”.

Flávia Lemos - 21982.indd 459 28/02/2020 13:13:55


460

Na instabilidade política e financeira por qual passa o país nos últimos


anos, algumas dificuldades têm surgido para pessoas da classe média, inter-
mediária, então, imaginemos o quão difícil tem sido para pessoas que vivem
com o básico ou menos que isso. Assim sobrevivem muitas famílias do campo,
muitas famílias da Amazônia. Desta forma, é necessário que alternativas sejam
apresentadas para que as mesmas tenham oportunidade de melhora de vida,
pois as famílias mais carentes e afastadas das cidades valorizam a escolari-

or
zação das suas crianças, almejando um futuro melhor, como disse a familiar

od V
entrevistada: “Quero que ela seja uma doutora”!

aut
Esta pesquisa é de grande relevância para o Estado do Acre e, especi-
ficamente, para a Educação Infantil em regiões de difícil acesso, pois traz
diversas reflexões sobre a situação atual da educação infantil e as políticas

R
que a norteiam, em contraponto ao que propõe o programa, analisando se
o mesmo atende ao mínimo do que está previsto pela Lei de Diretrizes e

o
Base da Educação. Também, porque, hoje, a Educação Infantil ganhou mais
aC
visibilidade, com a meta do Plano Nacional de Educação, recebimento de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


recursos e desenvolvimento de estratégias para que cada vez mais crianças
da primeira e segunda infâncias tenham acesso ao direito de educação, insti-
tuído constitucionalmente.
visã
No que diz respeito a como acontece o processo de escolarização de
crianças de quatro e cinco anos atendidas pelo “Asinhas”, este estudo iden-
tificou que acontece em parcial consonância com a LDB (9394/96), possui
itor

metodologia própria voltada à realidade do público alvo, com atendimento


a re

domiciliar, personalizado, planejado e organizado por uma equipe de profis-


sionais de educação e executado por agentes educacionais.
Quanto aos objetivos propostos, foram identificadas no estudo, através
dos discursos analisados, as concepções quanto ao diferencial do programa,
a saber: o atendimento domiciliar, individual, a melhor compreensão dos
par

processos devido ao atendimento personalizado, a participação efetiva da


Ed

família e o contato com a natureza. Além do favorecimento da compreensão


de si (criança) e do outro, o estímulo ao desenvolvimento físico, cognitivo e
psicossocial e a iniciação ao letramento.
ão

Como dificuldades para a sua execução, emergiram: a relação com os


gestores dos municípios, a mobilidade das famílias, a mudança de secretários
municipais e o acesso às casas das famílias. Destaco ainda, as perspectivas
s

de continuidade do “Asinhas” expostas pelas participantes desta pesquisa.


ver

Este estudo identificou que, a estrutura pedagógica e curricular do pro-


grama contempla ao que propõe a sua proposta pedagógica, ofertar educação
infantil diferenciada a crianças amazônidas que não têm acesso a este direito.
Também, que os conteúdos estão de acordo com as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil, organizados em eixos e executados de

Flávia Lemos - 21982.indd 460 28/02/2020 13:13:55


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 461

forma modular. Vale ressaltar que no “Asinhas” ainda existe uma carência de
profissionais com formação superior para a Educação Infantil, no entanto, os
agentes educacionais recebem supervisão e formação contínua como subsídio
para a sua prática.
As entrevistadas destacam que diante das dificuldades e inseguranças
na implementação do programa, eram surpreendidas pela realidade em que
viviam as crianças e com os resultados que aquelas poucas horas por semana

or
lhes proporcionavam. Assim, vencem seus medos, passando a acreditar e

od V
defender enfaticamente a sua validade e permanência. No entanto, a pes-

aut
quisa demonstra que existe uma concepção equivocada por parte das agentes
educacionais em relação à educação infantil, pois atribuem ao trabalho que
realizam a preparação das crianças para o Ensino Fundamental.

R
A pesquisa revela que na ausência de oferta da educação infantil regular
para a população mais afastada, o programa garante o acesso a este direito

o
constitucional. Não contemplando todas as exigências da legislação, mas
aC
ofertando o que é possível diante da especificidade em que vivem as crianças
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de famílias agricultoras, ribeirinhas, que moram em mata fechada, assenta-


mentos, reservas etc. A este respeito, ressalto que a LDB se torna contraditó-
ria, pois da mesma forma que flexibiliza a educação infantil para garantir o
visã
acesso a todos (art. 28), também a engessa, fixando carga horária, estrutura,
dias letivos (art. 30).
As dificuldades enfrentadas por essas pessoas são muitas e ter que se
itor

deslocar a escolas, pode levar horas e horas; sendo as crianças muito pequenas
a re

para enfrentar este desafio sozinhas, precisariam de um adulto que largaria


seus “afazeres” para acompanhá-las. Também existem os perigos no percurso,
como a presença de animais selvagens ou a ocorrência de acidentes. Daí a
justificativa para o atendimento domiciliar que oferece o programa.
O “Asinhas” já tem reconhecimento internacional, como uma iniciativa
par

que promove a inclusão, mas até o desenvolvimento deste trabalho, nenhum


Ed

estudo mais aprofundado havia sido realizado. Desta forma, esta pesquisa
se destaca ao abordar a escolarização das crianças amazônidas, incluídas na
educação através do programa, numa perspectiva da Psicologia, da educação
ão

e das políticas públicas, para compreensão da importância desta e do seu


desenvolvimento. Além de trazer, o contexto do Acre, de suas dificuldades e
desafios em atender toda a população infantil.
s

A Psicologia, ciência que estuda os processos mentais e de comporta-


ver

mento, tem grande interesse no desenvolvimento humano, é tanto que possui


uma área específica para o estudo de cada fase, a Psicologia do Desenvolvi-
mento. Esta afirma, através de seus estudos, que a infância necessita de estí-
mulos/influências para que a criança desenvolva todo o seu potencial. Desta
forma, foi identificado que a metodologia do programa oferta estímulos a

Flávia Lemos - 21982.indd 461 28/02/2020 13:13:55


462

processos psicológicos básicos da segunda infância para o aprimoramento da


memória, da inteligência, da linguagem, da lógica, da capacidade imaginativa,
da psicomotricidade, da autoimagem, das relações sociais e emocionais, o que
resultará no pleno desenvolvimento infantil.
Na segunda infância, que compreende crianças de quatro e seis anos,
incluindo assim o público alvo do programa estudado, o estímulo à apren-
dizagem é fundamental, a ponto de interferir nas fases posteriores da vida.

or
Estímulos ao movimento, exploração do ambiente, atividades direcionadas

od V
à linguagem, sinais e símbolos serão determinantes para o sucesso destas

aut
crianças na vida escolar e cotidiana. E através do programa “Asinhas” da
Florestania, as crianças de quatro e cinco anos, no Estado do Acre, estão tendo
acesso a estes estímulos.

R
Apontamos ainda que, uma das maiores dificuldades encontradas no
desenrolar deste estudo, foi ir a campo e realizar as entrevistas com as agentes

o
e familiar. No entanto, a disposição da equipe da SEE em ajudar tornou as
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dificuldades mais leves. Aí está um dos pontos positivos que posso destacar,
a total colaboração da Secretaria Estadual de Educação, de acompanhar nas
visitas e fornecer sempre o que lhe era solicitado de documentos e registros.
Finalizamos este trabalho, afirmando que o “Asinhas” não busca criar
visã
ou mesmo descaracterizar a Educação Infantil prevista pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, mas que se apresenta como uma forma diferenciada
desta, com pontos positivos e negativos, existente a uma população que anseia
itor

por estratégias que as ajudem em seu desenvolvimento. Destacamos que este


a re

projeto promove a inclusão e o acesso a estímulos para o desenvolvimento


físico, motor, cognitivo e, também, emocional, além de favorecer ao processo
de letramento com o acesso à linguagem escrita e oral, a números, cores,
formas e outros.
par

Enquanto não houver outra possibilidade de levar educação às crianças


que residem em locais longínquos e de difícil acesso, o Asas da Florestania
Ed

Infantil tem muito a contribuir para o desenvolvimento integral de crianças


na segunda infância, abrindo portas para possibilidades de sucesso no futuro.
ão s
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 462 28/02/2020 13:13:55


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 463

REFERÊNCIAS
BRASIL. Congresso Nacional. Constituição Federal da República Fede-
rativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.

______. Lei 9394 de 1996. Leis de Diretrizes e Base para a Educação Básica.

or
Brasília: 1996.

od V
______. Parecer. n. 3/2008. Reexame do Parecer CNE/CEB nº 23/2007, que

aut
trata da consulta referente às orientações para o atendimento da Educação
do Campo.

R
______. Plano Nacional de Educação - PNE/Ministério da Educação. Bra-

o
sília, DF: INEP, 2014.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

______. Resolução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008. Estabelece


diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento das
políticas públicas de atendimento da educação básica do campo.
visã

IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.


Censo Demográfico 2010/IBGE. Rio de Janeiro, RJ: O instituto, 2010.
itor

SEE. Secretaria de Estado de Educação e Esporte do Acre. Coordenação de


a re

Ensino Rural. Formação continuada de educadores: Módulo I – As crianças


e as suas coisas. Rio Branco: Instituto Abaporu de Educação e Cultura, 2010.

______. Secretaria Estadual de Educação e Esporte. Proposta pedagógica


par

Asas da Florestania Infantil. Coordenação de Ensino Rural. 2009.


Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 463 28/02/2020 13:13:55


Flávia Lemos - 21982.indd 464
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:55
A REVOLUÇÃO CABANA A
PARTIR DOS CONCEITOS DA
ANÁLISE INSTITUCIONAL

or
V
Evelyn Tarcilda Almeida Ferreira

aut
Lilian Lameira Silva
Luciano Imar Palheta Trindade
Merediane Barreto Gonçalves

CR Rafael Ventimiglia dos Santos


Yana Wanzeller Granhen

do
1. Apresentando a proposta analítica
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
Esse texto advém das reflexões produzidas no decorrer da Disciplina
“Análise Institucional”63 que aconteceu no período de outubro de 2015 a abril
ra
de 2016 na graduação de Psicologia, da Universidade Federal do Pará, sob a
docência da professora Evelyn Tarcilda Almeida Ferreira64. O trabalho final
i
rev

da disciplina consistiu em eleger um acontecimento analisador e realizar sua


problematização, utilizando o referencial teórico da Análise Institucional.
Acreditava-se que oferecer a oportunidade para os estudantes observa-
to

rem os acontecimentos ao seu redor e optar por detalhá-lo, fazendo uso do


referencial teórico estudado na disciplina, possibilitaria uma melhor con-
ara

solidação da aprendizagem. Desta forma, o artigo aqui apresentado foi um


ver di

dos trabalhos expostos ao final da matéria, cujo texto foi escolhido para ser
publicado nesta coletânea.
op

A Análise Institucional foi um movimento teórico e metodológico, que


perpassou por campos como a Sociologia, Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise
E

e Pedagogia da Libertação. Este movimento encontrou maior expressividade


após a década de cinquenta em países como a França, Itália, Brasil e Argentina,

63 No Curso de Psicologia da Universidade Federal do Pará, conforme o Projeto Político Pedagógico, a disciplina
Análise Institucional acontece no Bloco V, durante o 4º período e contempla uma carga horária de 60 horas.
Tem como ementa estudar o movimento institucionalista, como se deu a Análise institucional no Brasil,
articular os conteúdos da disciplina com as práticas de intervenção, analisar as lutas políticas e sociais no
contexto internacional e no Brasil e suas relações de saber/poder e as repercussões nas subjetividades.
Disponível em: : <http://www.faculdadepsicologia.ufpa.br/PPP%20-%20VERS%C3%83O%20APROVADA%20
PROEG%20MAIO%202011%20PROTOCOLADA%20e%20revista%20em%2004dejulhode2011.pdf. Acesso
em 27/01/2017>.
64 Foi professora substituta da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará no período de
30/06/2015 a 30/06/2017. É estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Pará, é Psicóloga Escolar da Secretaria de Estado de Educação.

Flávia Lemos - 21982.indd 465 28/02/2020 13:13:55


466

e adveio de uma premência em se intervir nos grupos e nas organizações,


pretendendo uma transformação social.
Segundo Lapassade apud Guirado (2012) a Análise Institucional é uma
forma de compreender e intervir nos grupos, uma maneira singular de avaliar
como as relações estão instituídas. Pode ser entendida também, enquanto um
método para decifrar as relações que indivíduos e grupos mantêm com as
instituições. É um modo de pensar as instituições, e, traz em seu bojo uma

or
maneira de intervir, transformar, provocar e revelar suas estruturas.

od V
Utilizar-se-á, neste artigo, a definição de Gregorio F. Baremblitt (2002)

aut
de que as instituições:

R
“São árvores de decisões lógicas que regulam as atividades humanas,
indicando o que é proibido, o que é permitido e o que é indiferente.
Segundo seu grau de objetivação e formalização, podem estar expressas

o
em leis (princípios-fundamentos), normas ou hábitos. Toda instituição
aC
compreende um movimento que a gera: o instituinte; um resultado: o

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


instituído; e um processo: da institucionalização. Exemplos de instituições
são: a linguagem, as relações de parentesco, a divisão social do trabalho,
a religião, a justiça, o dinheiro, as forças armadas etc. Um conglomerado
visã
importante de instituições é, por exemplo, o Estado. Para realizar concre-
tamente sua função regulamentadora, as instituições materializam-se em
organizações e estabelecimentos. As origens das instituições são difíceis
de determinar” (Ibidem).
itor
a re

Retomando a questão das mobilizações na Análise Institucional, também


nomeada de Institucionalismo, Baremblitt (2002) afirma que este movimento
se deu como efeito antagônico a uma perspectiva que considerava as relações
de trabalho sob uma predominância de teorias motivacionais65 ligadas a um
par

modelo fordista66, utilizado, sobretudo nos Estados Unidos. A concepção do


Institucionalismo era de ponderar sobre os grupos nas organizações de traba-
Ed

lho, se ancorando em um outro referencial teórico, que não tecesse a separação


entre sujeito-objeto, entre teoria-prática, argumentando que os acontecimentos
internos de uma organização sucedem de um modelo de produção econômica,
ão

65 Contemplam as teorias cognitivas que se fundamentam na racionalidade do homem e no uso que este faz
de sua vontade para atingir seus desejos e objetos conscientes e as teorias instintivas da motivação, que
s

emanam da teoria evolutiva de Darwin, que pontua que o instinto seria uma disposição psicofísica hereditária
ver

inata que determina que seu possuidor perceba ou tenha a atenção voltada para objetos de uma certa
classe. In: LOBOS, J. Teorias sobre a motivação no trabalho. Rev Adm Emp, Rio de Janeiro v. 15, n. 2, p.
17-25, mar./abr. 1975.
66 Consiste em um modelo de produção industrial em escala, tem como característica a produção em série, a
aceitação de certo nível percentual de defeito, a utilização de esteiras rolantes, a tecnologia eletro-mecânica.
In: <http://www.feati.edu.br/revistaeletronica/downloads/numero2/modelosProdutivosIndustriais.pdf>. Acesso
em: 28 jan. 2017.

Flávia Lemos - 21982.indd 466 28/02/2020 13:13:55


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 467

das relações políticas e de gestão do território em que estariam inseridas e, das


influências culturais dos membros que as compunham. O autor pontua que tal
movimento se oferecia a favorecer, apoiar e deflagrar nas comunidades, nos
coletivos e conjuntos de pessoas, os processos de autoanálise e de autogestão.
Para ele (Ibidem), a autoanálise consistia que as comunidades pudessem
compreender e pensar sobre suas vidas, seus desejos, interesses e problemas.
Tal autoanálise adviria como repercussão de um processo de organização

or
e articulação dessa comunidade, onde ela própria, conseguiria os recursos

od V
para a sustentação e o melhoramento de sua própria vida, culminando em um

aut
processo de auto-gestão.
A autoanálise e auto-gestão se dão dentro de condições desfavoráveis,

R
de tensão, de acirramento de disputas, envoltas em circunstâncias de con-
flito e assujeitamento, fazendo parte de um processo constante de construção

o
e desconstrução, buscando a estabilidade da organização social (MAN-
SANO, 2003). A fim de que a autoanálise seja praticada, é preciso que seja
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

construído um dispositivo no seio deste processo e através deste seria possível


desmistificar um saber dominante.
Retomando a necessidade de eclodir um dispositivo no seio do processo
visã
de autoanálise, busquemos Fonseca (2003) que versa que o dispositivo é um
conjunto heterogêneo de discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científi-
itor

cos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Para Deleuze, a tarefa do


a re

dispositivo não era analisar o uno, a razão, o sujeito, mas sim que se interes-
sava por analisar os mistos, os agenciamentos. Era preciso, não remontar os
pontos, mas seguir e desemaranhar as linhas: uma cartografia, que implicava
em uma microanálise (2013, p. 113).
Nesse sentido, é possível considerar o Movimento Institucionalista como
par

construções teóricas, que objetivavam contribuir com coletivos de várias natu-


rezas fundamentando-se no fato de que cada grupo possui, em sua essência,
Ed

um saber que lhe é inerente e singular, capaz de reconhecer aquilo que cons-
titui seus problemas e avaliando que esse conhecimento não deve ter origem
ão

vertical ou externa, mas, que se engendra das circunstâncias, sendo parte da


dinâmica do próprio grupo (BAREMBLITT, 2002).
Na perspectiva da Análise Institucional, o dispositivo é como uma monta-
s

gem de elementos heterogêneos, criado para situações específicas de interven-


ver

ção. Não aspira ser uma verdade ou uma técnica fechada, o dispositivo é um
operador de intervenção. Podemos entender que um dispositivo pode tornar-se
um analisador se conseguir pôr alguma situação em análise (PASSOS, 2015).
Em conformidade com o trajeto que este texto deseja perseguir, utilizaremos
mais adiante articulações entre os conceitos de analisador e dispositivo.

Flávia Lemos - 21982.indd 467 28/02/2020 13:13:55


468

O conceito de analisador é cunhado por Guattari (2005) apud Passos


(2014), seria aquilo que provoca análise, quebra, separação, explicitação dos
elementos de uma determinada realidade institucional. Provém de um ques-
tionamento das hierarquias e especialismos.
O analisador surge como uma ferramenta analítica que desloca ou des-
pessoaliza a intervenção, atravessa o campo de análise e o campo de inter-
venção, pode ser tomado tanto como um evento que denuncia, quanto aquele

or
portador da potência da mudança. Para Passos, o acontecimento analisador
tem materialidade expressiva totalmente heterogênea, podendo ser um acon-

od V
tecimento, uma enunciação, um indivíduo ou técnica, não tendo forma de

aut
irrupção privilegiada na fala. Caso decorrerem as condições necessárias, o
analisador tem potencial de intervenção. Ele tem talento para intervir, se

R
expressar, é um conceito que se materializa em ato, se constituindo enquanto
processo revolucionário.

o
Fazer uma análise institucional pressupõe pensar a complexidade dos
aC
acontecimentos sociais, das regras, das normas, dos lugares hierárquicos ocu-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pados e estabelecer uma relação destes com o modo de produção inserido no
modelo econômico capitalista. Como importantes agentes do Institucionalismo
podemos citar autores como Felix Guatarri, Georges Lapassade, José Bleger,
visã
Gregorio Barrenblitt, René Lorau. No Brasil, destacamos Heliana Conde,
Sônia Altoé, Marlene Guirado, Regina Benevides e Eduardo Passos.
Consonante ao referencial teórico da Análise Institucional, entendemos
itor

que A Revolução Cabana, também chamada de Movimento da Cabanagem,


ocorrido no Pará entre os anos de 1835 a 1840 foi um “analisador” que decor-
a re

reu por meio de um processo de autoanálise à auto-gestão na comunidade a ele


envolvida, produzindo inúmeros dispositivos que compuseram esse importante
movimento político e social na história do Pará. Durante o Movimento da
Cabanagem, que explicitaremos a seguir, segmentos dominados e explorados
par

conseguiram ser protagonistas e empreender ações antes nunca realizadas.


Assim, pretende-se com este trabalho, estabelecer ligações do que pen-
Ed

samos ser a instituição Cabanagem e quais foram os reflexos dos aconteci-


mentos que ela abarcou para o cenário político da época e como podem ser
feitas algumas relações com o sujeito da contemporaneidade e a Psicologia
ão

Social. Acreditamos que, com essa locomoção reflexiva utilizaremos saberes


envolvidos no contexto histórico, do início do século XIX, valorizando o
cenário local e operaremos com a memória de um dos momentos históricos
s

mais marcantes na história do Pará e da Amazônia.


ver

2. Percurso metodológico
Para a execução da análise utilizou-se documentos como fotografias
retiradas da internet e artigos que versavam sobre a revolução. A escolha do

Flávia Lemos - 21982.indd 468 28/02/2020 13:13:56


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 469

analisador Movimento da Cabanagem foi, também, em decorrência de uma


análise de implicação67 com o objeto, visto que, enquanto cidadãos paraenses,
está inscrito em nossas vivências, pedaços, lampejos, artifícios, resquícios
da Revolução Cabana. Em algum momento do ensino básico estudamos esse
tema ou, até mesmo, a ausência de um aprofundamento sobre ele, tem algo a
dizer sobre como foi tratado este acontecimento.
Estudar este material de determinada maneira, implica em um resgate de

or
uma história de resistência, de entendimento a respeito de uma batalha dos não

od V
heróis, da luta de todos os homens e não somente de reis e grandes homens

aut
como nos ensina Le Goff (2003), esse exercício nos concede a oportunidade
de melhor examinar o sujeito na sociedade em que vive.
Revisitar a Revolução Cabana, e articular com a Análise Institucional

R
é prover uma crítica a uma continuidade histórica com Portugal, rejeitando
uma identidade desdobrada deste país, reivindicando uma narrativa própria,

o
permitindo dar destaque para um contexto que por muitos anos foi apagado dos
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

arquivos paraenses, e narrado com a utilização de um viés bastante demarcado.


Com isso, tem-se até os dias de hoje uma face ofuscada desta revolução por
grande parte de historiadores, sobretudo no Brasil regencial (1831-1841) e
na época de ditadura militar (1964-1985), uma vez que contraria interesses
visã
políticos da época. Por isso, inúmeras publicações sobre a luta dos cabanos
foram proibidas, sobressaindo-se uma literatura dominante unilateral, como
afirma Benedicto Monteiro: “a Cabanagem ficou, por muito tempo, diminuída
itor

e denegrida na nossa historiografia” (GAZETA, 2009, p. 19).


a re

Delineado este objetivo, realizou-se uma pesquisa de cunho teórico-


documental com análise qualitativa dos dados encontrados, não para buscar
traçar uma métrica, mas sim, abranger e relatar os valores e os significados
existentes num dado meio social.
par

Considerou-se para a construção do trabalho, as subjetividades dos pes-


quisadores, advindas das discussões em grupo, por acreditarmos que tanto
Ed

àqueles que estudam quanto os que são estudados são parte do processo de
pesquisa. A investigação se desenvolveu seguindo as etapas:
ão

1. Pesquisa teórica: foi orientada no sentido de reconstruir teorias,


quadros de referência, condições explicativas da realidade e discus-
sões pertinentes, não implicando necessariamente em uma imediata
s

intervenção na realidade, porém não se torna menos importante, pois


ver

seu papel é decisivo na criação de condições para a intervenção. “O


67 Implicação para René Lourau era a necessidade de analisar os vínculos afetivo-libidinais, políticos, profis-
sionais e institucionais de qualquer pesquisador. A análise de implicação contempla as análises transferen-
ciais daqueles que fazem parte da intervenção, é a análise de todos atravessamentos ali presentes. Em:
ARANTES, E. (Org.). Práticas PSI inventando a vida. Niterói, Ed. UFF, 2007. p. 27-38.

Flávia Lemos - 21982.indd 469 28/02/2020 13:13:56


470

conhecimento teórico adequado acarreta rigor conceitual, análise


acurada, desempenho lógico, argumentação diversificada, capaci-
dade explicativa” (DEMO, 1994, p. 36).
2. Pesquisa documental: esta recorre a fontes mais diversificadas e dis-
persas, sem tratamento analítico, como: tabelas estatísticas, jornais,
revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias,
pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de programas

or
de televisão, etc. (FONSECA, 2002, p. 32).

od V
3. Discussão em grupo.

aut
4. Elaboração de trabalho escrito.
5. Devolutiva dos saberes perante a classe de Psicologia, a qual o grupo
de pesquisadores pertencia.

R
o
Na seção seguinte iniciaremos as articulações entre a ferramenta teórica
aC
e o objeto estudado.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


3. A Revolução Cabana
visã
O Movimento foi uma revolta popular, que ocorreu entre os anos de 1835
e 1840 na província do Grão-Pará, hoje estado do Pará. O nome Cabanagem
remete ao fato de que grande parte dos revoltosos era formada por pessoas
itor

pobres, moradoras de cabanas às margens dos rios da região. Nesta luta, que
durou vários anos, destacaram-se as figuras do cônego e jornalista João Gon-
a re

çalves Batista Campos, os irmãos Francisco Pedro Vinagre, Antônio Vinagre,


do fazendeiro e líder liberal Félix Antônio Clemente Malcher e de Eduardo
Angelim (RICCI, 2006, p. 6).
O movimento foi composto por grupos diferentes: índios, escravos,
par

negros e algumas elites locais, tal qual comerciantes brancos e fazendeiros


que, posteriormente, viriam a ser chamados de Cabanos. Estes se uniram
Ed

contra o governo numa revolta, cujo objetivo principal era a conquista da


independência da província do Grão-Pará, entre eles circulava uma máxima:
aclamação popular, morte aos portugueses e aos maçons. Haviam interesses
ão

diversos, entre os menos abastados almejava-se melhores condições de vida


(trabalho, moradia, comida), entre os fazendeiros, comerciantes, e integran-
s

tes do setor médio (intelectuais) aspirava-se maior participação nas decisões


ver

administrativas, políticas e investidura em cargos públicos (RICCI, 2015).


De acordo com Mota (1997) embora não diretamente, as influências
de acontecimentos antecedentes à Cabanagem vêm desde a implantação da
Corte portuguesa ao Brasil, que fez com que este país deixasse de ser apenas
uma colônia e passasse a ser “a colônia” que sediava uma Corte europeia. A

Flávia Lemos - 21982.indd 470 28/02/2020 13:13:56


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 471

partir da vinda da realeza, iniciou-se um processo de segregação ainda mais


acentuado, de modo que, grande parte do que se construía e produzia era
direcionado a elite, ficando a classe menos abastada à margem dos processos
de consumo e melhoria das suas condições de vida.
Entretanto, na então Província do Grão-Pará, a proclamação da inde-
pendência do Brasil, não foi muito bem aceita, visto que a elite da época
ainda era bastante ligada aos valores europeus firmados e, principalmente,

or
a Portugal. Durante o processo de independência do Brasil, o Grão-Pará foi

od V
dirigido por “Juntas governativas” subordinadas a Portugal, se isolando do

aut
governo regente do Rio de Janeiro. Enquanto isso, em todo território nacional
já se presenciavam forças insurgentes de grande proporção como a Balaiada
(1838-1841) e a Guerra dos Farrapos (1835-1845) que clamavam por justiça,

R
buscando novos gerenciamentos e possibilidades, e no Grão-Pará não seria
diferente (FAUSTO, 2003).

o
Durante o período da renúncia de D. Pedro I (1831) até D. Pedro II assu-
aC
mir o poder (1841), uma onda revolucionária se dava em todo o Pará, a partir
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da insatisfação com o governo português que se fazia bastante forte no estado.


Havia nas pessoas um grande descontentamento com o poder político centra-
lizado nas mãos dos portugueses, e com a adesão do Pará à independência, a
visã
resistência aumentou, e alguns revoltosos passaram a exigir a formação de um
governo popular sob a chefia do Batista Campos, configurando-se como um
movimento instituinte de caráter revolucionário. Em 15 de Outubro de 1823,
itor

uma parte da população se juntou a uma frente militar para iniciar uma revolta,
a re

saqueando estabelecimentos comerciais, invadindo casas e matando portu-


gueses como uma forma de se manifestar, contra o que estava instituído: o
poder político nas mãos dos portugueses.
Nesta manifestação, o governo prendeu 256 revoltosos, que foram apri-
sionados no porão de um navio denominado “Brigue Diligente”. A fome, a
par

sede e a falta de ar, faziam com que os prisioneiros começassem a gritar e,


então, como uma forma de “acalmar os ânimos”, a tripulação jogou sobre os
Ed

prisioneiros no interior desta embarcação uma substância denominada cal


viva68. No dia seguinte pela manhã, dia 22 de outubro de 1823, quando foi
aberto o porão da embarcação, na presença de seu Comandante, contabili-
ão

zou-se duzentos e cinquenta e dois corpos, que traziam sinais de longeva e


penosa agonia física. No total morreram 252 homens, sufocados e asfixiados,
s
ver

68 Cal viva ou óxido de cálcio designa uma grande variedade de produtos obtidos pela calcinação do calcário.
A Cal e o Calcário são materiais utilizados em grande número de indústrias, na agricultura, nas construções
civis e nas indústrias químicas. O uso do Cal é feito para a calagem do solo, estimula a produção, diminui
a acidez, e fornece nutrientes às plantas. O calcário é usado como agregado no concreto, como carga e
como rocha de construção. É usada como aglomerante em construção civil, no concreto e como estabiliza-
dor de solos. A dolomita tem sua aplicação principal como fonte de magnésio e material para produção de
refratários. In: <https://docs.ufpr.br/~gazda/oxi_ca.htm>. Acesso em: 28 jan. 2017.

Flávia Lemos - 21982.indd 471 28/02/2020 13:13:56


472

tal massacre ficou mundialmente conhecido como “O massacre do Brigue


Palhaço” (RICCI, 2006).
Apesar da chacina realizada com o intuito de deter as revoltas instituin-
tes, os Cabanos não desistiram de tentar mudar sua realidade. Ao invés de
enfraquecer o movimento, este foi aos poucos, se fortalecendo, e as forças
organizativas continuaram emergindo de modo a tentar fabricar novas rea-
lidades e novos agenciamentos, e a Cabanagem enquanto instituição acaba

or
se encontrando entre as duas movimentações, a rígida do poder português
instituído e a revolucionária suscitada pelos “cabanos”.

od V
Com a renúncia de D. Pedro I e a impossibilidade de seu filho assumir

aut
o poder, foi decretado o Período Regencial (1831-1840), que se manteria
até que D. Pedro II alcançasse a maioridade. Muitos dos regentes nomeados

R
pelo Rio de Janeiro e que foram enviados ao Grão-Pará foram depostos pela
população revoltada, liderada por Batista Campos.

o
Os motivos que levaram a esses conflitos não se limitavam apenas à
aC
insubordinação a Portugal e ao que a Coroa portuguesa pretendia à popu-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


lação, mas também porque os cidadãos ensejavam melhores de trabalho e
se inquietavam com o alto custo de vida. Vale ressaltar que, havia também
interesse ao poder por parte dos fazendeiros e latifundiários que se aliaram
visã
ao povo Cabano, a fim de garantir favoráveis acordos comerciais para a sua
categoria (CHIAVENATO, 1984).
Assim, os Cabanos lutavam por uma transformação naquilo que se
itor

estava imposto e nas próprias relações de poder. Desde 1831 ocorriam revol-
tas esporádicas em Belém, lideradas por Batista Campos. O então presidente
a re

da província, Bernardo Lobo de Souza, tentava reprimir estas revoltas o mais


violentamente possível. O assassinato de Batista Campos em 07 de janeiro
de 1835 deu origem a eclosão cabana, caracterizada pelo levante dos Caba-
nos, que ao executarem o governador Lobo de Souza e outras autoridades,
par

dominaram a capital, marcando então o primeiro governo dos Cabanos no


Pará. Estes nomearam como presidente um de seus líderes: Félix Antônio
Ed

Clemente Malcher. Entretanto, Malcher era fazendeiro e durante seu governo


demonstrou atitudes que contrariaram os interesses daqueles que o colocaram
no poder, reprimindo a própria rebelião, o que foi considerado traição pelos
ão

Cabanos, com um mês e meio de gestão foi deposto e, posteriormente, em


uma batalha na cidade de Belém foi executado (RICCI, 2006).
A partir disso, Francisco Vinagre fora nomeado como presidente, não
s

obstante, não se manteve fiel aos Cabanos, que novamente se rebelaram. Con-
ver

tudo, a Regência enviou tropas militares ao Pará, e os derrotaram com ajuda


do próprio Antônio Vinagre. Os Cabanos então se retiraram para o interior,
se reorganizaram e em agosto de 1835 atacaram Belém. Após dias de batalha,
mesmo com a morte de Antônio Vinagre, os revoltosos retornam ao poder e
proclamaram a república, desvinculando-se do império português.

Flávia Lemos - 21982.indd 472 28/02/2020 13:13:56


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 473

Raiol (1970) relatou que se organizou neste ano um novo governo


Cabano, tendo Eduardo Angelim como presidente. Entretanto, no ano seguinte,
a Regência enviou um novo presidente, o brigadeiro Francisco José de Sousa
Soares de Andréia que acompanhado por uma forte tropa de força militar
acabaram derrotando os Cabanos. No entanto, essa luta se estendeu por cinco
longos anos.
Magda Ricci (2006) nos mostra que durante os cinco anos do movimento,

or
as vilas e aldeias iam formando novos chefes, à medida que dentro da própria

od V
batalha estes homem vinham a falecer. Populações inteiras de índios e quilom-

aut
bolas foram chamadas à luta armada em um movimento vasto e complexo.

R
4. Convivem: Revolução Cabana e Análise Institucional

Sob o auxílio da Análise Institucional podemos explanar a Revolução

o
Cabana de diversos modos. Para tal, se faz importante elucidar o conceito de
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

instituído e instituinte. Consoante Lourau apud Romagnoli (2014), o insti-


tuinte gera ou transforma a instituição, ao passo que o instituído remete ao já
fixado, já organizado; a sociedade é união e tensão entre instituído e instituinte.
visã
Pereira (2000) pensa o instituído por meio das normas e regras dispostas pelo
império, que regulavam as relações trabalhistas, aquilo que representava a lei,
a ordem e o conhecimento. O Movimento da Cabanagem é caracterizado por
seu aspecto instituinte, por ter demonstrado uma perspectiva transformadora,
itor

criativa e revolucionária.
a re

É interessante notarmos como as forças instituintes – aquelas mobiliza-


das por forças produtivas, desejantes, revolucionárias, que tendem a fundar
instituições ou a transformá-las, como parte do devir das potências e materia-
lidades sociais – segundo Baremblitt (2002) vão sendo estabelecidas de modo
par

a tentar mudar aquilo que está instituído. O Movimento da Cabanagem, apesar


de não ter alcançado os seus objetivos de melhoria de condições de vida da
Ed

população, ainda é um grande exemplo do quanto o instituinte pode ser capaz


de romper com um poder centralizado, como nos mostra a citação a seguir:
ão

“Depois de cinco anos de luta, os cabanos criaram ódio aos brancos e às


autoridades impostas, aprendendo a amar a aclamação popular e a revo-
lução infinita. Cultuavam a beleza revolucionária, mas viveram outras
s

mazelas: a fome, as doenças, as mortes e a instabilidade da guerra”


ver

(RICCI, 2006, p. 28).

É importante frisar que antecede ao Movimento da Cabanagem, uma


ferramenta, que pode ser designada como um dispositivo, trata-se do Jornal
“O Paraense”, que sob responsabilidade de Fellipe Patroni, tinha como um de

Flávia Lemos - 21982.indd 473 28/02/2020 13:13:56


474

seus redatores, o cônego Batista Campos, relevante liderança do movimento.


Tal publicação expunha em suas páginas as condições em que parte da popu-
lação vivia, sujeitada ao domínio português. “O Paraense” foi, portanto, um
dispositivo incluso no analisador, engendrado por ele, no qual se expunha
a insatisfação do povo e a oposição à adesão da província ao governo de
Dom Pedro I.
Baremblitt (2002) assevera que os processos auto-analíticos e autoges-

or
tivos se dão em condições altamente desfavoráveis, severamente contrapro-

od V
ducentes. Isso decorre porque os coletivos insurgentes não são os detentores

aut
do saber, não são os donos da riqueza e dos recursos, ao contrário, servem ao
poder dos organismos e entidades de classe alta e grupos dominantes, fato
que foi observado na Revolução Cabana, levante este, composto por caboclos,

R
negros e índios, que carregavam estigmas de malvados e desobedientes.
Há estudos que esboçam que na segunda metade do século XIX, um

o
político e historiador paraense chamado Domingos Antônio Raiol, possui-
aC
dor do título nobiliárquico de Barão de Guajará correlacionou a insurgência

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dos Cabanos a seu perfil de baixa escolaridade (RICCI, 2015). Este excerto
corrobora a Baremblitt, que aponta que a auto autogestão não é tarefa fácil,
tanto que as iniciativas auto-analíticas e autogestivas não se caracterizam
visã
por seu sucesso. Elas têm aparecido na história e muitas vezes são destruídas
ou sufocadas e um modo de destruí-las é atribuir aos Cabanos um caráter de
deseducados, rudes e selvagens.
itor

Os componentes do movimento denominavam-se “patriotas” e contrários


a re

ao colonialismo português. O uso do nome “Cabanos” foi uma criação muito


posterior que visava mais uma vez a unificação de um povo que não era uno,
ou seja, devemos falar de “liberdades” e abarcar a pluralidade presente no
social, valorizando os diferentes processos de subjetivação encontrados no
movimento de negros, indígenas, população ribeirinha, grandes fazendeiros
par

e médios proprietários de terras (Ibid, 2006).


Ed

Em debate no grupo, quando da construção desta escrita, nos remetemos


às aulas de história (passando pelo ensino fundamental, médio e cursinho pré-
-vestibular), onde recordamos tendo tido diminuto contato com esta temática.
ão

Não houve relatos de vivências diretas com o movimento, ou a participação


de eventos culturais que celebrassem sua memória. Tal aspecto pode estar
relacionado com a montagem dos discursos, que neste caso, são os docu-
s

mentos históricos que pouco contam sobre o ele, são as práticas educacionais
ver

que parcamente destacam esse acontecimento, silenciando as forças locais e


seus deslocamentos, operando o que Foucault (1979) nomeia como técnicas
de dominação.
Como efeito destas técnicas decorrem o controle do discurso, tradu-
zido no modo como o conhecimento e a informação são disponibilizados,

Flávia Lemos - 21982.indd 474 28/02/2020 13:13:57


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 475

culminando em pouco ou nenhum sentimento de pertença a esta revolução,


devido à exposição superficial à essa história. Cabe flexionar como um povo
predominantemente oprimido conseguiu ocupar o governo, antes completa-
mente dominado por europeus, por um período considerável, e que mesmo
diante das mais violentas represálias e litígios internos concernentes ao próprio
movimento, não emudeceu e continuou reafirmando sua identidade cabana.
Recusando-se a continuar subjugado ao domínio português e/ou a lideranças

or
que ao chegarem ao poder, seguissem ordenamentos diferente dos interesses
do povo que os tinha aclamado. Tal afirmativa assegura a presença dos pode-

od V
res periféricos e moleculares que não foram confiscados e absorvidos pelo

aut
aparelho de Estado (FOUCAULT, 1979), que se organizam e insurgem na
forma como ocorreu a ação cabana.

R
Revoluções como estas são vistas para a organização do sistema como
um câncer, uma peste, algo de que temem o sistema social dominante. Visto

o
que os movimentos instituintes têm esse intuito, que os coletivos inventem
aC
suas soluções, se coloquem nos limites do possível e do impossível, como
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

pode ser notado nesta revolução, que explodiu em Belém do Pará, em 1835,
deixando mais de 30 mil mortos e uma população local que só voltou a crescer
significativamente em 186069.
visã
Outro aspecto que pode ser relacionado ao conceito de instituinte é que,
segundo Magda Ricci (2006), estes revolucionários fugitivos abriram outras
frentes de luta, ampliaram suas bandeiras e alteraram as formas de guerrear.
itor

Aprenderam a usar a natureza a seu favor, envenenando rios, queimando a


mata, espantando os animais e dizimando plantações de alimentos básicos
a re

para a subsistência das tropas inimigas, como a mandioca e o milho expres-


sando que instituintes iam sendo criados dentro do analisador, esboçando um
processo de produção contínua.
A importância deste levante repousa em seu desenvolvimento, na
par

ousadia que produziu, as diferentes produções de subjetividades que con-


gregou. A dinâmica de questionar, tensionar e oferecer a própria vida para
Ed

lidar com as insatisfações oriundas de uma colonização escravocrata. Permi-


tindo assim, analisar a Revolução Cabana como uma máquina de expressão
(DELEUZE, 2011) por meio de onde, a produção de subjetividade não ficou
ão

centrada nas lideranças ou em agentes individuais.

“A revolução cabana foi o estopim para contatos e trocas mais intensas


s

de mercadorias (armas e alimentos), mas também de ideias e práticas


ver

revolucionárias. É neste rico mundo que os cabanos criaram seus próprios


mecanismos construtores de sua cidadania” (RICCI, 2006, p. 28).

69 Dados retirados de Domingos Antonio Raiol, Motins políticos ou história dos principais acontecimentos
políticos da Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835, 2a edição, Belém, Universidade Federal do
Pará, 1970, v. 3, p. 1000 (1ª edição 1865-1891).

Flávia Lemos - 21982.indd 475 28/02/2020 13:13:57


476

Por meio da citação acima, podemos pensar a partir de Guattari (1996, p.


45), examinando a Revolução Cabana enquanto um atrevimento de singular,
resistência a um processo geral de serialização da subjetividade e uma tentativa
de produzir modos de subjetivação originais e singulares. Outro exemplo dessa
produção de singularidade foi que após o esvaziamento da batalha, os cabanos
se embrenharam nos rios e nas matas da Amazônia, ampliando quilombos ou
criando comunidades mistas de negros, índios e mestiços, exemplos ímpares

or
no Brasil (RICCI, 2006).

od V
aut
5. Alguns efeitos no território paraense

R
Nos anos de 1980, o movimento cabano renasceu e ganhou status popular
nas ruas e praças. O primeiro governador eleito depois da ditadura militar,

o
Jader Barbalho, se percebia como um novo líder cabano. Seu governo criou
o Memorial da Cabanagem70, financiou pesquisas, promoveu um concurso
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de monografias sobre o tema. Já na década de 1990, Edmilson Rodrigues a
frente da prefeitura de Belém pelo Partido dos Trabalhadores, no período
de 1996 a 2004, fez reviver a cena Cabana afirmando que seu governo era
visã
mais uma tomada da luta popular (Ibidem). Atualmente, este memorial está
longe de cumprir o seu papel de museu, pois é fechado à visitação pública e,
ao passar pelo local, percebemos o quanto ele é esquecido pelos governantes
itor

do estado e município.
a re

Embora os conflitos cabanos sejam marcados por transversalidades


de seus componentes cujos interesses eram antagônicos, a Cabanagem na
Amazônia é hoje um símbolo de ação popular de massa, de mudanças e de
movimentos sociais que nos permite analisar e perceber o quanto as forças ins-
tituintes podem estar presentes no “seio” de uma população. A cidade abriga
par

as mais variadas lutas políticas, organizada de modo institucionalizado ou


Ed

não. Temos aqui fortes expressões de movimentos nacionais como O Levante


Popular da Juventude, o Juntos, A Marcha das Vadias, o Movimento dos Tra-
balhadores sem Terra, Movimento pelo Direito das Mulheres, os Movimentos
ão

pelos direitos LGBTT, dentre outros.


70 O Memorial da Cabanagem foi inaugurado em 06 de janeiro de 1985, quando data de 150 anos deste
s

acontecimento histórico. Este monumento foi projetado pro Oscar Niemayer e abrigou por muitos anos
ver

os restos mortais dos líderes do movimento Cabano como o cônego Batista Campos e Eduardo Angelim.
Foi pensado para ser um símbolo do que foi a luta dos cabanos e sua relevância na história do povo para-
ense. O monumento se encontra no complexo do entroncamento, em Belém, tem 15 metros de altura e
20 metros de comprimento. O Memorial da Cabanagem, segundo a concepção de Niemeyer, representa a
luta heroica do povo cabano, que foi um dos movimentos mais importantes de todo o Brasil. Em SALLES,
V. Memorial da Cabanagem, esboço do pensamento político-revolucionário do grão Pará. Amazoniana: 3,
Edições CEJUP, 1992.

Flávia Lemos - 21982.indd 476 28/02/2020 13:13:57


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 477

Como estudantes e cidadãos paraenses, após este manejo do pensamento,


deixamos alguns questionamentos: em que grau sentimos a influência da
revolução cabana em nossas construções pessoais? O que temos de memória
e sentimento de pertença a este movimento? Enquanto atores no campo de
saber da Psicologia, como podemos utilizar esses acontecimentos e articulá-los
como nossas práticas? O conceito de burocracia por Lapassade apud Guirado
(2012) pode responder a alguns destes questionamentos, quando afirma que o

or
Estado produz uma burocracia que opera enquanto mecanismo organizador da

od V
separação, e essa compartimentação atravessa toda a vida social, refletindo-se

aut
em nossos modelos de educação e de produção de cultura, trabalhando para
que a historicidade cabana nos fosse alienada.
Atingindo a conclusão deste capítulo, pensamos ter tocado a ideia que

R
“inventamos”: dar fagulhas de luminosidade a memória cabana, formulando
proximidades entre História, pesquisa-ação e Psicologia Social. Ousamos

o
combinar a análise institucional e o movimento cabano, por pretender que
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a Psicologia se erga nesse entremeio, que olhe além dos objetos habituais e
veja ser possível estabelecer essas análises, elucidar os saberes produzidos
pela instituição Cabanagem, os dispositivos que disparou, esboçar o equi-
pamento monumento da cabanagem com a história da cidade e/ou com seus
visã
silenciamentos e sucateamentos.
Pensamos ser esta uma Psicologia possível em tempos de impossíveis,
em temporadas de ataques aos processos democráticos de participação social,
itor

de obras para uma suposta mobilidade urbana na cidade de Belém, em que


a re

se recobrem monumentos históricos com a concretude cinzenta de viadutos


e elevados. Intentamos neste desenho reflexivo, anunciar que envolve a Psi-
cologia enxergar na atualidade os símbolos e rastros desse sujeito Cabano,
esse que se apresenta e atualiza ao escolhermos a Revolução Cabana como
par

objeto de pesquisa.
Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 477 28/02/2020 13:13:57


478

REFERÊNCIAS
BAREMBLITT, G. F. Compêndio de Análise Institucional e outras cor-
rentes: teoria e prática. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.

______. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e

or
prática, 5. ed. Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari (Biblioteca Ins-
tituto Félix Guattari; 2), 2002.

od V
aut
CHIAVENATO, J. Cabanagem: O Povo no Poder. Ed. Brasiliense, São
Paulo, 1984.

R
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013.

o
DEMO, P. Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


no caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.

FAUSTO, Boris. História Concisa de Brasil. Buenos Aires: Impreso en la


Argentina, 2003.
visã

FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC, 2002.


itor

FONSECA, M. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo:


a re

EDUC, 2003.

FOUCAULT, M. Genealogia e poder. In: Microfísica do poder. Rio de


Janeiro: Graal, 1979.
par

GAZETA SANTARÉM. Disponível em: <http://www.calameo.com/


books/0002154336e81a6bfb312>. 2009. Acesso em: 22 abr. 18.
Ed

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4 ed.


Petrópolis, Vozes, 1996.
ão

GUIRADO. M. Psicologia Institucional, 2. ed. Ver e ampl. São Paulo:


E.P.U, 2012.
s
ver

LE GOFF, J. História e Memória. 6. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 2003.

LIMA, D.; RIANI, E. Análise e Intervenção Institucional. FGBBH: Minas


Gerais. 2004. Disponível em: <http://www.fgbbh.org.br/artigos/analise_e_
intervencao_institucional.htm>. Acesso em: 05 abr. 2016.

Flávia Lemos - 21982.indd 478 28/02/2020 13:13:57


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 479

MANSANO, S. R. V. Análise institucional: relato de uma experiência com


jovens. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 10, n. 14, p. 155-160, dez.
2003. Disponível em: <http://200.229.32.55/index.php/psicologiaemrevista/
article/view/191/199>. Acesso em: 04 abr. 2018.

MOTA, M. B. História: das cavernas ao terceiro milênio: volume único/


Myriam Becho Mota, Patrícia Ramos Braick. São Paulo: Moderna, 1997

or
od V
PASSOS, E.; ROSSI, A. Análise institucional: revisão conceitual e nuances

aut
da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista EPOS; Rio de Janeiro-RJ, v. 5,
n. 1, jan./jun. 2014; ISSN 2178-700X; p. 156-181.

R
PEREIRA, W. Algumas contribuições da análise institucional para estudar
as relações entre os serviços públicos de saúde e a sua clientela. Rev. bras.

o
enferm., Brasília, v. 53, n. 1, p. 31-38, mar. 2000.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

PINTO, L. Memória da Cabanagem. Cultura, 2015. Disponível em: <https://


lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/01/28/memoria-da-cabanagem/>.
Acesso em: 11 abr. 2016.
visã

RAIOL, D. Motins Políticos – ou história dos principais acontecimentos


políticos da Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835. 3 vols. Belém:
itor

Universidade Federal do Pará, 1970.


a re

RICCI, M. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o pro-


blema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo, Niterói,
v. 11, n. 22, p. 5-30, 2006.
par

______. Letrados da Amazônia Imperial e saberes das populações analfabetas


Ed

durante a Revolução Cabana (1835-1840). Revista Brasileira de Educação,


v. 20 n. 63 out./dez. 2015.
ão

ROMAGNOLI, R. C. O conceito de implicação e a pesquisa-intervenção


institucionalista. Psicologia & Sociedade, v. 26, n. 1, 2014.
s

SANTOS, S. C. Cabanagem: Crise Política e situação Revolucionária. 2004.


ver

133 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Cam-


pinas, SP, 2004.

Flávia Lemos - 21982.indd 479 28/02/2020 13:13:57


Flávia Lemos - 21982.indd 480
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:13:57
A LEI 10.639/03 E SEUS
DESDOBRAMENTOS SOBRE A
CULTURA E IDEOLOGIA NO QUILOMBO

or
DE NOVA JUTAI BREU BRANCO-PA

V
aut
Oberdan da Silva Medeiros

1. Introdução
CR
do
Com o objetivo de realizar a divulgação/valorização do legado cultural
africano que recebemos desde o século XVI na educação brasileira, a Presi-
dência da República sancionou a Lei 10.639/2003, que institui a obrigatorie-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
dade na educação básica pública e particular do ensino de História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira. Tal lei buscou ampliar o restrito conhecimento a
ra
respeito da cultura afro, supondo a necessidade de se desenvolver uma nova
visão sobre a história africana e afro-brasileira, suas possíveis relações com
i
a construção histórica do nosso país, além de influenciar positivamente na
rev

superação e das contradições que vão do campo material ao ideológico.


Importa dizer, inicialmente, que a inclusão desse tema nos conteúdos
to

escolares, em tese, reconstrói nos alunos e nos professores uma imagem posi-
tiva do continente africano, enquanto local de ascendência de uma grande
ara

massa de despossuídos que herda um legado de desigualdade. A lei aponta


o marco regulatório para a orientação e elaboração de projetos que se empe-
ver di

nhem na implementação de uma educação para as relações étnicas e raciais


de caráter positivo.
op

Apesar de sua relevância para os povos afro-brasileiros e africanos que


residem no território nacional, compete destacar que a referida lei não foi
E

sancionada de um dia para o outro, pelo contrário, antes passou por diver-
sos estágios que envolvem o repensar de elementos conjunturais dos povos

africanos, o desvendar uma história de lutas políticas, diferenças culturais,


processos educacionais desleais, construções ideológicas e relações étnico-ra-
ciais desfavoráveis, além de desigualdades sociais que datam da libertação
aos nossos dias.
Buscou-se perceber, à luz das contribuições de Eagleton(1997) e Wil-
liams (1992), se há ou não a ocorrência do processo de alienação, reificação
ou de imposição de ideologias que vão de encontro ao proposto na lei e se há
a elaboração de uma compreensão crítica na conjuntura atual do modelo de
educação em voga no país.

Flávia Lemos - 21982.indd 481 28/02/2020 13:13:57


482

Nesses termos fomos levados a refletir com base na utilização de instru-


mentos que sistematizaram as respostas dadas por um grupo de pessoas sobre
a relação entre as suas expectativas e visão de futuro, refletindo sobre como a
ideologia dominante impacta diretamente sobre esses processos, levantando
a seguinte questão: É possível uma educação antirracista?
Tomamos como fundamento metodológico uma abordagem interdis-
ciplinar com aporte no materialismo histórico dialético, inserido em uma

or
perspectiva qualitativa de estudo, proposto para a compreensão dos objetivos
da pesquisa a partir da análise das respostas de membros de uma comunidade

od V
quilombola amazônica, às questões levantadas num instrumento geral e em

aut
questões específicas que são foco deste estudo. Optar pelo materialismo his-
tórico dialético, como fundamentação metodológica, traz necessariamente

R
formas de estruturar e compreender o sujeito como um ser social, e ainda
mais importante, possibilita a construção de medidas efetivas no sentido de

o
rompimento com a opressão histórica dos homens sobre os homens.
aC
Aplicamos de questionário, a observação e a realização de entrevistas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


com o diretor, professor e o coordenador pedagógico. O questionário objetivou
conhecer o perfil dos envolvidos na pesquisa, os elementos de seu cotidiano,
suas relações sociais, pretensões de futuro em relação à educação para a
visã
diversidade e principalmente o entendimento sobre a educação étnico-racial
como premissa de uma educação de qualidade.
Os fundamentos deste trabalho são divididos em três eixos; o primeiro
itor

diz respeito da constituição histórica, social e ideológica da lei e a definição


do seu público-alvo como minoria excluída. Para Eagleton (1997), pode ser
a re

falso e pernicioso generalizar desigualdades particulares a raças ou classes


inteiras de pessoas, mas podemos entender muito bem a lógica que leva a isso.
No segundo, tratará do impacto da norma jurídica sobre os processos
educacionais dando ênfase nas estratégias ideológicas e seus desdobramentos
par

sobre a cultura.
O último eixo trata da relação da educação para as relações étnico e
Ed

raciais com um aporte num viés dialético da interlocução de Munanga (1996),


o homem é entendido como fruto de processos históricos de inserção no
mundo, cercado por ideologia dominante e exploradora, envolto na que a
ão

luta por libertação e emancipação, sobre tudo a categoria pobre e negra, que
adoece frente ao modelo econômico capitalista neoliberal.
s

2. Histórico da Lei 10.639/03


ver

A História do Brasil tem suas raízes do outro lado do Atlântico, pois de


lá vieram os negros africanos para aqui serem escravizados, vieram também

Flávia Lemos - 21982.indd 482 28/02/2020 13:13:57


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 483

suas tradições, seus costumes, suas cores. Com isso contribuíram imensamente
para a formação cultural e social do povo brasileiro.
A necessidade de se destacar esta temática é algo importante para o nosso
país. Segundo Silva (1992), a história da África é importante a nós brasileiros,
porque ajuda a explicar-nos. Ela é relevante por seu valor próprio e por nos
fazer compreender o grande continente de onde provem quase a metade de
nossos antepassados.

or
Todavia nota-se o florescimento de metanarrativas que ampliam os conhe-

od V
cimentos científicos em torno das diferenças culturais que se configuram com

aut
a ontologia das sociedades humanas. No Brasil, a partir da década de 1930
constituíram-se pressupostos políticos à luz da identidade de mestiçagem
brasileira, isto contribuiu de certa forma para a valorização das diferenças

R
culturais. A estrutura de miscigenação compreendeu a base sociocultural do
Brasil, dada pela interpelação das raças negras, indígenas e branca.

o
Para Cavalleiro (2005, p.58), o grande responsável por disseminar essa
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ideologia foi o sociólogo Gilberto Freyre, em suas palavras ela faz o seguinte
comentário a respeito do autor:

O sociólogo Gilberto Freyre, por meio do seu livro Casa-Grande e Senzala


visã
(1933), publicado na década de 30, tem sido apontado por vários autores
e autoras como um dos principais teóricos que interpretou, sistematizou
e divulgou o mito da democracia racial ao afirmar que, no Brasil, as três
itor

“raças” formadoras da nossa sociedade conviviam, desde a escravidão,


a re

de maneira mais amistosa, quando comparadas a outras sociedades mul-


tirraciais e/ou de colonização escravista existentes no mundo (CAVAL-
LEIRO, 2005, p. 58).

Nesta perspectiva, compreende-se que nos anos seguintes o movimento


par

negro impulsiona sua performance política. O Teatro Experimental Negro


(TEN) promoveu condições emancipadoras da cultura negra. Fundado em 13
Ed

de outubro de 1944, sobre a coordenação de Abdias do Nascimento, era com-


posto por indivíduos de vários setores sociais, a fim de inserir no teatro o
elemento negro.
ão

Nos anos de 1950, o movimento negro se direciona para inclusão edu-


cacional dos conhecimentos científicos que abarca a negritude brasileira. O
s

TEN promoveu muitos espetáculos sobre a temática negra. Em 1954, surge a


ver

Associação Cultural do Negro (ACN), que reuniu nomes como Abdias Nas-
cimento, Solano Trindade e Fernando Góes, tinham também como objetivo a
preocupação de construir uma ideologia para o negro brasileiro. A ideologia
aqui é empregada numa acepção positiva de “consciência de classe”, impri-
mida por Eagleton (1997), que significa um conjunto de crenças que reúne e

Flávia Lemos - 21982.indd 483 28/02/2020 13:13:58


484

inspira um grupo ou classe específicos a perseguir interesses políticos con-


siderados desejáveis.
Na década de 1960, o movimento desenvolveu reivindicações em prol
da Lei 4024/61 que defendia os princípios de liberdade e os ideais de soli-
dariedade humana. Legislou-se pela condenação de tratamento desigual por
motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a quaisquer
preconceitos de classe ou de raça (SILVA JUNIOR, 1998). Ainda na década

or
de 60, as escolas de samba tiveram um papel de destaque, sendo consideradas

od V
centros que congregavam negros, proporcionando um espaço de sociabilidade.

aut
Fatos como a luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis, as guerras
de libertação dos países africanos colonizados e o fechamento político da
sociedade brasileira imposta pela ditadura militar a partir do golpe de 1964,
espalharam a militância negra.
R
Nas décadas de 1970 e 1980, o movimento negro aponta um alerta sobre

o
a evasão e o déficit de alunos negros na educação básica, entre outras causas,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


algumas pesquisas concordam que seja devido à ausência de conteúdos afro
e valorização da cultura negra. Nesta fase proliferam organizações culturais
como: Sinba (Sociedade de Intercâmbio Brasil-África), no Rio de Janeiro, o
Movimento Negro Unificado (MNU) que se consolida como entidade negra
visã
nacional. Na Universidade de São Paulo, um grupo de funcionários e professo-
res da universidade fundou o Núcleo de Consciência Negra, que empreendeu
uma luta pelas cotas na universidade, isto em 1993. As mulheres negras tam-
itor

bém começam a se organizar, em várias partes do Brasil (PEREIRA, 2010).


a re

Nos anos de 1990, eclodiram muitos movimentos intensos em todo país


em prol da afirmação da identidade negra, com destaque para a Marcha Zumbi
dos Palmares, reunindo mais de 10 mil negros, que levou à Brasília um docu-
mento apontando várias reivindicações entregues ao então presidente Fernando
par

Henrique Cardoso71 (DIAS, 2005). No sentido de promover ações afirmativas


para o combate do preconceito e desigualdades sociais, em 31 de agosto a 07de
Ed

setembro de 2001, foi realizada a Conferência das Nações Unidas Contra o


Racismo em Durban na África do Sul. Como afirma o Artigo 113 da seção 5:
ão

Encoraja os Estados a adotarem estratégias, programas e políticas,


incluindo, interalia, ações afirmativas ou medidas positivas e estratégias
ou ações, para possibilitar que as vítimas de racismo, discriminação racial,
s

xenofobia e intolerância correlata exerçam plenamente seus direitos civis,


ver

culturais, econômicos, políticos e sociais, incluindo o melhor acesso a ins-


tituições políticas, judiciais e administrativas, e concedendo aos mesmos

71 Fernando Henrique Cardoso governou o Brasil entre os anos de 1994 a 2001, caracterizando-se por conferir
estabilidade econômica ao país e o fortalecimento da nova moeda nacional, implementada a partir do
Plano Real.

Flávia Lemos - 21982.indd 484 28/02/2020 13:13:58


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 485

maior oportunidade de participarem totalmente em todas as esferas de


vida das sociedades nas quais elas vivem (ONU, 2001).

Em várias localidades do Brasil, a partir de então, começam a ser cria-


dos Centros de Estudos Africanos (Bahia, São Paulo etc.). Foram criadas
na sequência várias leis municipais, em Belém, Aracajú e São Paulo, que
são resultados de um longo processo de ações realizadas pelo Movimento

or
Negro. A luta do movimento negro de intelectuais e diversos seguimentos da

od V
sociedade gerou uma série de medidas, particulares e oficiais, que resultaram

aut
na mudança da Lei nº. 9394 de 20 de dezembro de 1996 (que estabeleceu
as diretrizes e bases da educação nacional), sancionando a Lei nº. 10639/03.
Assim, a referida Lei passou a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

R
Art. 26-a. nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e

o
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre a história e cultura Afro-
aC
-Brasileira. §2º – Os conteúdos referentes à história e Cultura Afro-Brasi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

leira serão ministradas no âmbito de todo o currículo escolar, em especial


nas áreas de educação Artística e de Literatura e História Brasileira.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro “Dia Nacio-
visã
nal da consciência Negra”. (BRASIL, 2003).

O intuito da lei é a revisão dos currículos escolares e a qualificação de


professores e seu constante aperfeiçoamento pedagógico, considerando que
itor

era necessário não somente introduzir o ensino sobre História da Cultura


a re

Afro-Brasileira, mas também qualificar seu quadro docente. Nestes termos,


a complexidade deste processo está em se proporcionar efetivamente uma
alteração na estrutura de nosso processo educativo, que vai muito além de
mera adequação de conteúdo. A Lei 10.639/03 é uma conquista das lutas do
par

movimento negro que ajudou a legitimar o processo de promoção das ações


afirmativas enquanto:
Ed

[...] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório,


facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discrimi-
ão

nação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem


como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação pra-
ticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva
s

igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego


ver

(GOMES; SILVA, 2003, p. 94).

A lei 10.639/2003, enquanto ação afirmativa, visa ao reconhecimento dos


direitos e a contribuição da cultura negra em âmbito nacional. Isso contribui,
ainda, na possibilidade de haver maior liberdade de expressão, pensamento

Flávia Lemos - 21982.indd 485 28/02/2020 13:13:58


486

e a fomentação de visões de mundo próprias, além da contribuição com a


formação de cidadãos de fato.
Como foi possível percebermos, a Lei 10.639/2005, apesar de se con-
figurar como importante avanço em busca da disseminação da cultura e dos
valores da população afro-brasileira e africana no currículo escolar, esbarra
em processos ideológicos que visam dificultar a implementação de suas ações.
Neste sentido, abordaremos essas estratégias no próximo tópico.

or
od V
3. Estratégias ideológicas e seus desdobramentos na cultura

aut
Antes de prosseguir, talvez fosse bom indagar se o tópico da ideologia

R
realmente merece toda a atenção que lhe conferimos. Serão as ideias assim tão
importantes para o poder político? Segundo Eagleton (1997), a maior parte das

o
teorias da ideologia surgiu no interior da tradição de pensamento materialista,
e faz parte desse materialismo ser cético quanto a atribuir qualquer prioridade
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


muito elevada à “consciência” no âmbito da vida social. Eagleton (1997, p.
116), sobre ideologia, complementa que:
visã
Ideologia é uma forma de pensamento [razão] de identidade.
A ideologia homogeneíza o mundo, para promover a heterogeneidade é
preciso fazer a negação das ideologias: o paradigma que possibilita essa
realização é a arte, contra a tirania da totalidade única.
itor

A=B – o sujeito igual ao objeto – é a forma primária de ideologia


a re

O objeto se entrega ao sujeito e cria nele o idêntico nossa consciência rei-


ficada reflete um mundo de objetos congelados em seu ser monotonamente
idêntico e ao nos prender assim ao que é, ao puramente “dado”, ceganos
para a verdade de que “o que é, é mais do que é”.
par

Essa ideia pode ser abordada de outra forma. A ideologia é essencial-


mente uma questão de significado, mas a condição do capitalismo avançado,
Ed

conforme alguns poderiam sugerir, é a do não-significado que a tudo permeia.


Assim, a importância da ideologia pode ser questionada sob vários aspectos.
ão

Pode-se dizer que não há nenhuma ideologia dominante coerente, ou se há


então, ao contrário do que algumas vezes se pensou, ela é muito pouco eficaz
em moldar a experiência popular.
s

No que tange nossas relações étnico-raciais, existem inúmeras suposições


ver

a respeito das construções ideológicas que as regem. Em Eagleton (1997),


a ideologia é uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por
divergentes histórias. Podemos argumentar que a ideologia significa conjunto
de crenças motivadas por interesses sociais, então não pode simplesmente
representar as formas de pensamento dominantes.

Flávia Lemos - 21982.indd 486 28/02/2020 13:13:58


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 487

O sistema, ao que parece, mantém-se menos pela imposição de signifi-


cado ideológico que pela destruição completa do significado; e os significados
que as massas realmente levam em consideração podem divergir daqueles
de seus governantes sem que disso resulte qualquer ruptura mais séria. Num
sistema de ideologia racista o que prevalece é um trato de inferioridade com
relação às condições étnico-raciais do outro. Um racista é, segundo Eagleton:

or
[…] em geral, alguém dominado elo medo, pelo ódio e pela insegurança

od V
e não uma pessoa que imparcialmente chegou a certo juízo intelectuais

aut
sobre outras raças e mesmo que seus sentimentos não sejam motivados
por tais juízos, é provável que estejam profundamente entrelaçados a
estes juízos de que determinadas raças são inferiores. A ideologia, de fato,

R
pode ser basicamente uma questão de elocuções pejorativas (EAGLE-
TON, 1997, p. 26).

o
Nota-se que a consciência popular está longe de ser obediente irrestri-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tamente dos valores ideológicos dominantes, opondo-se a eles de maneiras


significativas. Essa divergência, revela-se provavelmente nos vários feitos
do movimento negro, já apontados acima, que deu origem a uma crise de
visã
legitimidade de uma imposição da categoria étnica não negra; é falso imagi-
nar que, contanto que as pessoas façam aquilo que lhes é solicitado, pouco
importa o que elas pensam acerca do que estão fazendo. De modo similar, e
itor

aqui utilizamos como comparativo o racismo a brasileira, Eagleton (1997)


argumenta acerca do comportamento racista:
a re

De modo semelhante, um racista que acredite que os asiáticos na Grã-


-Bretanha serão mais numerosos que os brancos por volta de 1995 pode
muito bem não ser dissuadido de seu racismo quando se mostra a ele que
par

essa suposição é empiricamente falsa, já que é provável que a proposição


seja mais um suporte para o seu racismo do que uma razão para este. Se
Ed

a afirmação é refutada ele pode simplesmente modificá-la, ou substituí-la


por outra, verdadeira ou falsa. Ê possível, portanto, pensar no discurso
ideológico como uma complexa rede de elementos empíricos e normativos,
ão

dentro da qual a natureza e organização dos primeiros é, em última análise,


determinada pelos requisitos dos últimos (EAGLETON, 1997, p. 27).
s

A busca do povo negro em se inserir numa sociedade racista, que exclui,


ver

discrimina e tem imensos abismos socioeconômicos, não deixa condição


alguma de se afirmar e sobreviver em nenhum aspecto que envolva sua origem
étnica e racial, tampouco pode haver condições saudáveis para a reconstrução
de sua identidade, neste ambiente ideologicamente dominado. Em detrimento,
criou-se um estereotipo do negro, como um ser de “raça inferior”, tornando

Flávia Lemos - 21982.indd 487 28/02/2020 13:13:58


488

explícito o preconceito racial que incentiva, segundo Munanga (1996), a ideo-


logia da superioridade do homem branco, ficando isso intacto e enraizado
no inconsciente coletivo brasileiro, e principalmente nas cabeças de negros
e mestiços. Essa ideologia prejudica a busca de identidade de ascendência
Afro, se o que é ideal seria o ingresso na identidade branca, por ser ideolo-
gicamente superior.
No caso brasileiro, nossa formação social é composta de negros, brancos,

or
indígenas e asiáticos, todos influenciando na construção histórica do país e

od V
que devem ser vistos de tal forma. O privilégio de um grupo em detrimento

aut
a outro, representa o racismo, evidenciá-lo significa cidadania. Em Munanga
(2005), podemos perceber que o resgate da memória e da história coletiva da
comunidade negra é importante não só para os afrodescendentes, é interes-

R
sante a pessoas de outras ascendências, visto que ao receber uma influência
ideológica preconceituosa em nossos processos educativos, estes também têm

o
suas estruturas psíquicas afetadas.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Outro ponto que merece ser destacado está associado ao fato de que essa
memória pertence a toda a humanidade. Aqui ideologia acaba por tomar molde
de “cultura”, passa ser fruto de todos os segmentos étnicos, mesmo que em
condições desiguais de desenvolvimento, suas contribuições são cada uma
visã
a sua maneira, e influenciam de modo marcante na formação da identidade
nacional. Neste aspecto, Eagleton (1997) é bastante enfático:
itor

Tal definição é política e epistemologicamente neutra, e assemelha-se


a re

ao significado mais amplo do termo “cultura”. A ideologia, ou cultura,


denotaria aqui todo o complexo de práticas significantes e processos sim-
bólicos em uma sociedade particular; aludiria ao modo como os indivíduos
“vivenciaram” suas práticas sociais, mais do que às próprias práticas,
que seriam o âmbito da política, da economia, da teoria da afinidade etc.
par

(EAGLETON, 1997, p. 35).


Ed

Neste processo a escola ganha espaço de destaque, uma vez que cabe
a ela a responsabilidade de legitimar normas morais e jurídicas por meio do
currículo escolar, determinando quem é incluído ou excluído na sociedade.
ão

A escola, neste sentido, é o ambiente em que se deve primar pelo cultivo de


uma ideia de democracia, claro que não racial, mas social e política. Isto
s

implica dizer que o racismo existe na sociedade brasileira de forma notória,


ver

e que ele está presente na escola, de maneira inquestionável. Parafraseando


Eagleton (1997), de nada adianta lembrar de nós mesmos, que somos contra
o racismo se quando vamos a escola só se vê e se aprende uma cultura e uma
história “só para brancos”; ao frequentar tal escola, apoiamos e perpetuamos
a ideologia racista. A ideologia, sendo assim, está na escola e não na minha

Flávia Lemos - 21982.indd 488 28/02/2020 13:13:58


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 489

cabeça. É necessário, portanto, ter clareza de que só iremos começar a traba-


lhar de forma mais pontual a superação do racismo, partindo do pressuposto
de sermos todos seres humanos, e nessa condição, somos todos iguais, mesmo
na diversidade, étnico, cultural, econômica, ideológica, social e religiosa.
Contudo, fez-se necessária à afirmação da identidade negra pelo próprio
negro, abastecido por uma ideologia própria, a fim de que pudesse ser visto
como sujeito e não como objeto da história. Fica claro aqui que a ideologia

or
pode ser imposta à força, como é o caso da ideologia racista da África do

od V
Sul, ou de forma simbólica, em nosso caso. Cabe citar que no primeiro caso a

aut
ideologia se torna hegemonia, que por sua vez é também uma categoria mais
ampla que inclui a ideologia, mas não pode ser reduzida a ela.

R
A categoria-chave no trabalho do colega marxista ocidental de Lukács,
Antônio Gramsci, não é a ideologia, mas a hegemonia, e vale a pena

o
ponderar a distinção entre esses dois termos. Gramsci normalmente usa a
aC
palavra hegemonia para designar a maneira como um poder governante
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

conquista o consentimento dos subjugados a seu domínio - apesar de, é


verdade, empregar o termo ocasionalmente para designar conjuntamente
o consentimento e a coerção (EAGLATON, 1997, p. 105).
visã

Um exemplo da luta contra essa coerção pode ser notada pela afirmação
do negro, na figura de Abdias do Nascimento, intelectual, autor, ator, drama-
itor

turgo e político que incorporou em seu trabalho a causa negra, seja por meio
de sua colaboração no próprio Movimento Negro, seja pela criação do Teatro
a re

Experimental Negro (TEN). Os movimentos sociais negros da década de 70,


entre eles o Movimento Negro Unificado (MNU), buscaram a revalorização
da história e cultura africana e afro-brasileira, procurando assim a constru-
ção e afirmação de sua identidade, forçando o reconhecimento do negro pela
par

sociedade e, consequentemente, sua inclusão social, de forma mais justa e


igualitária (PEREIRA, 2007). Uma das preocupações desses movimentos
Ed

voltava-se, principalmente, para a educação, histórica demanda do movimento,


segundo Gonçalves e Petronilha (2000, p. 145):
ão

Como os negros militantes buscavam reagir à precária situação educacio-


nal de seu grupo étnico exigiu deles um tipo de compromisso pessoal, de
engajamento direto para resolver um problema que não era exclusivamente
s

dos negros, mas era um problema nacional (GONÇALVES; PETRONI-


ver

LHA, 2000, p. 145).

Constata-se que a discriminação racial está presente no dia-dia da escola,


ela é uma das responsáveis diretas pelo aumento das desigualdades alunos
negros e brancos. Há na escola o convívio como preconceito e a desigualdade,

Flávia Lemos - 21982.indd 489 28/02/2020 13:13:58


490

na mesma época em que eram realizadas diversas pesquisas relacionadas ao


tema. Pelo que definimos enquanto processo ideológico, é importante a per-
cepção de que a educação pode ser vista enquanto possibilidade de alteração
da conjuntura do conflito inerente às relações étnico-raciais as quais estamos
expostos historicamente. Mas, por outro lado, temos esta instituição escola
como aparelho ideológico do Estado. Este seria o ambiente mais propício
para fazer a mudança que supra os anseios de uma categoria que se encontra

or
às margens dos nossos processos socioeconômicos e que tem isso avalizado

od V
pela difusão cultural. Devemos levar em consideração que a escola é um meio

aut
de transmissão cultural, o sentido empregado à cultura aqui é o de ideologia,
e como tal, são os fatores ideológicos que movem o processo educativo, e
neste caso são influenciados pela categoria social dominante.

R
Notadamente, Eagleton (1997) é categórico com relação aos meios de
transmissão de cultura:

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Esses canais de transmissão sem dúvida floresceram na fase posterior do
capitalismo, mas a conclusão de que as classes subalternas incorpora-
ram maciçamente a visão de mundo de seus governantes é desafiada por
Abercrombie, Hill e Turner. Por um lado, argumentam eles, a ideologia
visã
dominante nas sociedades capitalistas avançadas apresenta fissuras e con-
tradições internas e não oferece nenhum tipo de unidade inconsútil que
as massas possam internalizar; por outro, a cultura dos grupos e classes
itor

dominados preserva uma boa margem de autonomia. O discurso cotidiano


dessas classes, segundo afirmam os autores, forma-se em grande parte fora
a re

do controle da classe dominante, reunindo crenças e valores que estão em


desacordo com ela (p. 43).

O processo educativo é como um destes meios, constituindo-se em


par

valiosa ferramenta que serve, se bem utilizada, de corretivo para uma ideo-
logia que exagera a importância da cultura e que utiliza da ideologia na manu-
Ed

tenção do poder político e cultural hegemônico. No caso da Lei nº 10.639,


ainda na situação de proposta, foi considerada inconstitucional e rejeitada nos
despachos da Presidência da República, isso por que o texto desconsiderado
ão

tinha uma carga ideológica étnico-racial contra a hegemonia bem explícita, e


justamente podemos perceber onde seria a possibilidade de se encontrar uma
fissura, de acordo com o que lemos abaixo:
s
ver

O referido parágrafo [relativo à dedicação de dez por cento de seu conteúdo


programático à temática mencionada] não atende ao interesse público con-
substanciado na exigência de se observar, na fixação dos currículos míni-
mos de base nacional, os valores sociais e culturais das diversas regiões
e localidades de nosso país (BRASIL, 2003b, p. 01).

Flávia Lemos - 21982.indd 490 28/02/2020 13:13:59


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 491

Uma porcentagem dedicada ao debate étnico-racial traria a possibilidade


da convivência entre discursos distintos, o que alteraria o uso da nossa prática
educativa como aparelho legítimo apenas da classe hegemônica, este fator
além de ameaçador poderia potencializar uma contraideologia que teria espaço
reservado para ser desenvolvida no nosso Estado. Por este turno, o veto a esta
proposta é claramente uma estratégia para se cortar o mal pela raiz.
Outra situação bem curiosa se dá com relação à possível interferência

or
que a Lei nº 10.639 poderia trazer ao processo de elaboração de uma ideolo-
gia mais aberta aos fatores étnico-raciais, relacionada à não abertura para a

od V
participação de entidades da sociedade civil organizada ligadas ao movimento

aut
negro. Segundo Eagleton (1993), neste caso se a cultura perfaz o contorno de
uma ordem social não dominadora, ela o faz mistificando e legitimando as

R
reais relações sociais de dominação. O segundo veto relacionava-se à proposta
referente aos cursos de capacitação para professores, que deveriam contar com

o
a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e
aC
outras instituições de pesquisa vinculadas ao tema. Segundo Williams (1992),
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nenhuma cultura social dominante e, portanto, nenhuma cultura dominante,


jamais inclui ou esgota, na realidade, toda a prática humana, energia humana
e intensão humana. Essas provavelmente foram as razões do veto explicitadas
visã
nos seguintes termos:

Verifica-se que a lei nº 9.394, de 1996, não disciplina e nem tampouco faz
menção, em nenhum de seus artigos, a cursos de capacitação para professo-
itor

res. O art. 79-A, portanto, estaria a romper a unidade de conteúdo da citada


a re

lei e, consequentemente, estaria contrariando norma de interesse público


da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1988, segundo a qual
a lei não conterá matéria estranha a seu objeto (BRASIL, 2003b, p. 01).

No final foi aprovada a obrigatoriedade de inclusão, na educação básica,


par

do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, inserindo-se, ainda,


como parte do calendário escolar, o dia 20 de novembro como Dia Nacio-
Ed

nal da Consciência Negra. Foi ainda criada, neste mesmo ano, a Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), com o
objetivo de influenciar na correção dos efeitos da escravidão, discriminação
ão

e racismo no Brasil. A intenção foi promover assim uma democracia mais


justa e igualitária, conforme se verifica nas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
s

Cultura Afro-Brasileira e Africana, publicadas em 2004.


ver

4. Impressões dos sujeitos da pesquisa


Neste item versaremos sobre a história da comunidade a qual foi realizada
a pesquisa. Trata-se da comunidade quilombola de Jutaí, situada no município

Flávia Lemos - 21982.indd 491 28/02/2020 13:13:59


492

de Breu Branco – PA, já na região do Baixo Tocantins. É uma comunidade


pequena, que nos dias atuais conta com 103 famílias cadastradas na associação
quilombola Jutaí. Sua fundação data do início do século XIX, tendo como
fundadores negros que fugiram dos senhores de escravos e do alistamento
obrigatório para a Guerra do Paraguai (1864-1870). Também participaram
da formação da comunidade, negros vindos de municípios próximos como
Baião e Cametá.

or
Sua economia está assentada, principalmente, na atividade agrícola de

od V
pequeno porte onde se cultiva as culturas da mandioca, arroz, milho, feijão,

aut
cacau e frutas, que garantem a subsistência da comunidade. O excedente de
arroz, cacau e farinha de mandioca é vendido nas cidades de Baião, Cametá e
Tucuruí. Há uma pesqueira, a maior parte da produção destina-se ao consumo

R
da própria comunidade. Além disso, criam-se animais de pequeno porte, tais
como as galinhas e porcos.

o
Na comunidade existem áreas de uso familiar e áreas de uso coletivo.
aC
As roças e casas são familiares, enquanto os rios, as árvores, as casas de fari-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nha, a usina de energia e o porto são de uso coletivo. O plantio da roça é o
momento da celebração do ritual do Cunvidado, uma prática tradicional das
comunidades quilombolas do município de Cametá, que em Jutaí continua
visã
bastante viva. Essa atividade é realizada no período de limpeza das áreas para
o plantio, de mandioca. Esse ritual é uma espécie de mutirão, onde várias
pessoas se mobilizam para ajudar no plantio da roça de algum membro da
itor

comunidade por meio da mistura de trabalho, lazer e religiosidade.


a re

De predominância católica, o santo Padroeiro de Jutaí chama-se Santís-


sima Trindade, que é festejado sob a forma de novena, nove dias de muita reza
e festa em sua homenagem. Outros Santos cultuados na comunidade de Jutaí
são: São Xirado, São Benedito, Santa Filomena e o Divino Espírito Santo.
A festa dançante de origem afro era o Samba do cacete. Neste samba são
par

utilizados dois tambores grandes confeccionados pelos próprios quilombolas


Ed

com troncos ocos de árvores e tendo em uma das extremidades um pedaço


de couro amarrado com cipó. Em cada tambor sentam-se dois batedores, que
são chamados de tamborineiros e caceteiros. Eles ficam de costas um para
ão

o outro. Os tamborineiros batucam o couro com as mãos e os caceteiros


batucam a parte de madeira com peças de madeira chamadas cacetes. Para
dançar o Samba do Cacete, as mulheres utilizam saias longas e rodadas e os
s

homens calças curtas.


ver

Geralmente homens que normalmente tocam e as mulheres dançam e


cantam. As mulheres dançam girando e vão se esquivando dos toques dos
homens, que tentam alcançar seus pés descalços. Elas fazem um passo cha-
mado Cáiana, onde os homens cantam a primeira estrofe e as mulheres res-
pondem. Para viajar os descendentes quilombolas utilizavam casco conhecido

Flávia Lemos - 21982.indd 492 28/02/2020 13:13:59


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 493

hoje como canoas, que na época eram movimentadas por velas de saco, as
quais embalavam açúcar, nas viagens armazenavam águas para beber em uma
vasilha chamada Bilha ou Muringa, os alimentos eram preparados assados ou
cosidos na fogueira de lenha tirada no mato.
O óleo usado era de castanha do Pará, de bacaba, de babaçu, os temperos
favaca, chicória, alho em rama e o corante de urucum e o açafrão. O dinheiro
daquela época era o vitém, tostões, pataca e réis que eram guardados em reci-

or
pientes chamados butija. O artesanato destes descendentes que continua até

od V
os dias atuais é a fabricação de peneira, abano, paneiro de cipó chamado de

aut
jacitara, timbuí ou ambé, além de vassoura de olho de bacabeira ou timbuí.
Fabricavam suas próprias roupas de saco que vinham açúcar e costuravam
com linha fabricada de uma planta chamada curauá, cortavam a folha da planta

R
que eram cumpridas e batiam com pedaços de pau, e depois iam para a beira
do igarapé limpar a folha penteando com o pente até sair toda a coloração

o
verde da folha, para ficar bem branca. A partir daí começava a fabricação das
aC
roupas, o cinturão era de um cipó chamado batatarana.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Os relatos aqui contidos são de pessoas que são bisnetos e tataranetos


dos primeiros moradores que aqui chegaram. Todos remanescentes de pes-
soas escravizados no passado. Inclusive o senhor João do Espírito Santo e o
visã
senhor Geraldo Gonçalves, são os dois primeiros moradores e ainda tinham
nos tornozelos marcas da argola que os escravos usavam. Ouvimos dos entre-
vistados, que seus bisavós e tataravós contavam para seus pais que a vida dos
itor

mesmos nunca foi fácil, dentre eles destacamos a fala do Sr. João do Espírito
a re

Santo que dizia para seus netos, ao relatar aos mesmos sua história de vida.

Meu neto, vida de escravo no Brasil ou em qualquer lugar é muito difícil,


perdi minha língua mãe o costume que eu tinha na minha comunidade se
não bastasse, sofremos inúmeras restrições e a sociedade de modo geral
par

nos silencia de todos os modos (João do Espirito Santo, 09/07/2014).


Ed

O paradigma do negro na comunidade quilombola Jutaí não foi e nem é


diferente do resto do Brasil, onde os mesmos se veem sem identidade e como
objeto na história da sociedade brasileira. Todavia a comunidade Nova Jutaí
ão

sempre foi conhecida popularmente como comunidade quilombola, porém


nunca foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares anteriormente, seu
reconhecimento se dá apenas em 19 de dezembro de 2011. A escola ali fundada
s

não teve como objetivo levar educação igual para todos, mas sim uma maneira
ver

de negar e alienar o negro dentro de um modelo de sociedade europeia, dentro


desse paradigma, não foi diferente de outras comunidades quilombolas. Esta
educação pensada pela elite não menciona em seu currículo escolar a cultura
local e as aulas são realizadas para dar ênfase a superioridade da cultura
europeia, inferiorizando sempre a cultura afro-brasileira e africana.

Flávia Lemos - 21982.indd 493 28/02/2020 13:13:59


494

Ao realizarmos as entrevista, fica evidente o que já mencionavam alguns


pesquisadores (GONÇALVES, 2008) com relação à falta de conhecimento dos
educadores com relação ao tema em sua formação docente e a falta de forma-
ção continuada para os profissionais da educação no que tange a lei 10.639/03.
No entanto, fica mais uma vez evidenciado, através de pesquisa que esse e
outros fatores ocorrem pela falta de contato dos mesmos em sua formação

or
acadêmica com a temática. Podemos afirmar que ainda precisa se fazer muito
na prática para termos uma educação voltada para as relações étnico-raciais

od V
de fato e de direto.

aut
Quanto à educação, o racismo fica evidenciado nos índices de alfabeti-
zação e escolaridade da população negra, não apenas nessa escola, mais em

R
muitas no Brasil como afirmam: Davis (2000), Munanga (2005), Gonçalves
(2000), Gomes (2005), Cavalleiro (2001), que diagnosticam que os negros

o
são penalizados na educação por meio da exclusão do sistema formal de
aC
ensino como também nas outras esferas da vida social. Sobre esse aspecto,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Hasembalg afirma que:

Ser negro ou ser mestiço significa ter uma maior probabilidade de ser
visã
recrutado para posições sociais inferiores. Isto, numa estrutura social que
já é profundamente desigual. Então, no meu entender, o vínculo entre raça
e classe é exatamente esse: raça funciona como mecanismo de seleção
itor

social que determina uma medida bastante intensa qual aposição que as
pessoas vão ocupar (HASEMBALG, 1996, p. 46).
a re

Analisando a realidade da comunidade, suas relações sociais e as moti-


vações ideológicas da organização do movimento social negro, apontados
anteriormente, percebemos que, no olhar dos seus membros, deve-se opor-
par

tunizar igualdade de acesso à educação, integração e justiça social a todos os


membros da sociedade civil em especial esta categoria. No Brasil, muito já se
Ed

discute sobre o tema “educação para as relações étnico-raciais”, no entanto,


não tem sido suficiente para garantir na prática essa educação, como ocorre
em Jutaí. Vimos por meio da pesquisa que não ocorre o cumprimento das leis
ão

e pareceres nas escolas, não por falta de compromisso dos mesmos, segundo
os entrevistados, mas por desconhecimento dos professores com relação,
s

principalmente, à lei nº 10.639/03 e os pareceres 001/04 003/04 que não são


ver

nem conhecidos pelo corpo docente dessa e de inúmeras escolas no Brasil.


Diante do exposto, os sujeitos da pesquisa deixam claro que a educação escolar
disponibilizada à comunidade não atende aos preceitos da lei nº 10.639/03,
uma vez que reluta em inserir entre seus conteúdos, o saber cotidiano e cultural
inerente à população quilombola.

Flávia Lemos - 21982.indd 494 28/02/2020 13:13:59


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 495

5. Considerações finais

Fica evidente ao longo dos fatos históricos que há a imposição de uma


ideologia que mascara as nossas relações em sociedade e que privilegia uma
elite em detrimento de minorias. Esse aspecto fica notório, quando conside-
ramos que o fim da escravidão não deu conta ao fim da desigualdade étnica
entre os grupos étnicos.

or
Nesta perspectiva, notou-se que as desigualdades foram conjugadas

od V
acerca do discurso político de cunho etnocêntrico do juízo da superioridade

aut
e da psicologia do ego. Isto vem sendo perpetuado ao longo da história e
ao mesmo tempo se constituindo como modelo de dominação natural das
sociedades humanas. Após a promulgação da lei 10.639 e do surgimento

R
de instituições que se dedicam a questão étnico-racial, há ainda uma longa
caminhada a ser percorrida até que se supere a ideia de democracia racial. É

o
necessária a análise desta questão por diversos pontos de vista, que abarcam os
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

aspectos econômico, político, cultural, religioso dentre outros que compõem


nossa dinâmica social e o espaço deixado para o negro dentro do nosso ideário.
No que tange à educação, apesar do reconhecimento da importância da
trajetória do negro no Brasil e sua luta, há a necessidade de se fazer cumprir
visã
o ensino desta cultura que ainda se encontra as margens dos nossos processos
educativos. Deve-se buscar cumprir as regras nas escolas, fomentar novas
teorias e práticas diferentes da história ensinada nas escolas como única e
itor

soberana. Deve estar muito nítido que nossos processos educativos devem
a re

ser o entendimento como um desafio que permeia as relações étnico-raciais.


Indivíduos de todas as ascendências étnicas devem atentar que convivemos
na mesma sociedade e que as mazelas de um atingem a todo. Somente numa
escola em que haja comprometimento seremos capazes de não nos calar diante
par

das ideologias impostas, indo de encontro aos estereótipos, influenciando


positivamente na construção de uma sociedade mais democrática e igualitária,
Ed

onde a construção de uma cultura que se sobreponha ao caráter hegemônico


com o qual nos deparamos em nosso ambiente escolar.
A Lei 10639 aumenta a oportunidade de nós repensarmos nossas relações
ão

ético e raciais em uma instituição essencial ao cultivo da cultura. Isso se dá


não somente aos negros, mas para todos os brasileiros, reconhecendo a todos
dentro dos princípios de igualdade, respeito e cidadania. Sua importância se
s

encontra na valorização da cultura afrodescendente. Que não fique apenas


ver

no papel, mas façamos uma transformação das nossas práticas em posturas


positivas e que a educação seja democrática.

Flávia Lemos - 21982.indd 495 28/02/2020 13:13:59


496

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB) (lei
nº 9.394). Rio de Janeiro: Qualitymsrk, 1997.

______. Mensagem n. 7, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União,

or
Brasília, DF, 10 jan. 2003b, p. 01.

od V
CAVALLEIRO, Eliane. (Org.). Racismo e anti –racismo na educação-

aut
repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

R
DAVIS, Darien J. Afro-brasileiros hoje. São Paulo: Summus, 2000.

DIAS, Lucimar Dias. A questão de raça nas leis educacionais – da LDB

o
de 1961 à Lei 10.639, de 2003. Secretaria de Educação Continuada, Alfa-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


betização e Diversidade. –Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005 (Coleção Educação
para Todos: Quantos passos já foram dados?).
visã
EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. São Paulo: Editora da Uni-
versidade Estadual Paulista; Editora Boitempo, 1997.
itor

GOMES, J. B. B.; SILVA, F. O. L. L. da. As ações afirmativas e os processos


a re

de promoção da igualdade efetiva. Seminário Internacional- as minorias e o


Direito,19 86-153, 2003. Disponível em: <p://w3.ufsm.br/afirme/ARTIGOS/
variados/var02.pdf>. Acesso em: 05 jan. 2012.

GOMES, Nilma Lino. Educação cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da


par

diversidade. In: CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-racismo na educa-


ção: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2005.
Ed

GONÇALVES, Luciane Ribeiro Dias. Da LDB 9394/96 para a Lei 10.639/03:


limites e perspectivas. In: SILVA, Maria Vieira; MARQUES, Mara Rúbia
ão

Alves (Org.). LDB. Balanços e Perspectivas para a Educação Brasileira. Cam-


pinas: Editora Alínea, p. 291-307, 2008,
s

GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; PETRONILHA, Beatriz Gonçalves


ver

e Silva. “Movimento negro e educação.” Revista Brasileira de Educação.


n. 15, p. 134-158, set./dez. 2000.

HASENBALG, Carlos A. Desigualdades sociais e oportunidade educacional.


A produção do fracasso. Cadernos de Pesquisa, n. 63, p.24-26, nov. 1996.

Flávia Lemos - 21982.indd 496 28/02/2020 13:14:00


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 497

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade


nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica,1996.

______. Superando o racismo na escola. Brasília: MEC, 2005.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e plano de ação


da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial,

or
a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. Durban, África do Sul, setembro

od V
de 2001.

aut
PEREIRA, E. A. Malungos na escola: Questões sobre culturas afrodescen-
dentes e educação. São Paulo: Paulinas, 2007.

R
PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. “O ensino e a pesquisa sobre África

o
no Brasil e a lei 10639”. Revista África e Africanidades, São Paulo, ano 3,
aC
n. 11, p. 1-17, nov. 2010. Disponível em: <http://www.africaeafricanidades.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

com/documentos/01112010_16.pdf>. Acesso: 21 jan. 2015.

SANTO, João do Espirito. Representante da associação quilombola de Jutaí


visã
(julho de 2014). Entrevistador: Medeiros, Oberdan da Silva. Breu Branco –
PA. 2014.
itor

SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos Portu-


a re

gueses. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1992.

SILVA JUNIOR, H. Anti-racismo: Coletânea de Leis Brasileiras Federais,


Estaduais e Municipais. São Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1998.
par

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.


Ed
s ão
ver

Flávia Lemos - 21982.indd 497 28/02/2020 13:14:00


Flávia Lemos - 21982.indd 498
E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

28/02/2020 13:14:00
SOBRE OS AUTORES
Adriana Alcântara dos Reis
Psicóloga da Secretaria de Saúde Pública do Pará, Especialista em Saúde

or
Mental pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC – Minas),

V
Mestre em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal

aut
do Pará (UFPA).

Airle Miranda de Souza

CR
Logoterapeuta, Doutora em Ciências Médicas pela Universidade de Campinas
(UNICAMP), Professora Titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

do
(IFCH/UFPA) e do PPGP/UFPA.

Ana Carolina Secco de Andrade Mélou


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

são
Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Pará (PPGP/UFPA). Mestra em Psicologia (PPGP/
UFPA). Bacharel em Psicologia e Psicóloga (UFPA). Pesquisadora na área
ra
de saúde mental relacionada ao trabalho (SMRT). Experiência profissional
i
de dez anos em Psicologia Organizacional e do Trabalho. Experiência como
rev

professora convocada pelo Plano Nacional de Formação de Professores (PAR-


FOR) nos cursos de Pedagogia e Artes Visuais da UFPA, ministrando as
to

disciplinas Psicologia do Desenvolvimento & da Aprendizagem e Psicologia


da Educação. Professora orientadora de estágio básico em saúde e estágio
ara

profissional em saúde mental no curso de Psicologia da Escola Superior da


Amazônia (ESAMAZ). Atualmente Professora adjunta I no curso de Direito
ver di

da Faculdade de Belém (FABEL), ministrando a disciplina Psicologia Jurídica.


Também Professora no Centro Universitário Metropolitano da Amazônia
op

(UNIFAMAZ), ministrando aulas nos cursos de Psicologia e Tecnológico


em Gestão Hospitalar
E

Anaclan Pereira Lopes da Silva


Possui Bacharelado e Formação em Psicologia pela Universidade Federal do


Pará (1992) e Mestrado em Antropologia pela Universidade Federal do Pará
(2004). Atualmente realiza o curso de Doutorado em Psicologia na Univer-
sidade Federal do Pará (término em 2021). Atua como psicóloga na Univer-
sidade do Estado do Pará (UEPA) desde 2008, tendo fundado junto com sua
equipe o Núcleo de Apoio ao Servidor (NAS) no ano de 2012, setor que se
insere no campo da saúde do trabalhador e que realiza atendimentos psicosso-
ciais aos servidores da universidade e seus familiares com vistas a promover
seu bem-estar e tratar da saúde mental dos trabalhadores.

Flávia Lemos - 21982.indd 499 28/02/2020 13:14:00


500

Andressa Cabral Domingues


Acadêmica do curso de Psicologia, bolsista do Programa Institucional de
Iniciação Científica e membro do Laboratório de Psicologia e Processos Psi-
cossociais da UFG/Jataí.

Ataualpa Maciel Sampaio


Graduado em psicologia e Mestre em Psicologia Social pela UFMG. Foi

or
professor da Sociedade de Ensino Superior de Patos de Minas (SESPA),

od V
Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM) e Faculdade Patos de

aut
Minas (FPM). Trabalhou como psicólogo do CAPS 2 e atualmente desenvolve
trabalho como psicólogo do NASF 03 nas equipes da ESF de Patos de Minas

R
e Governo do Distrito Federal.

o
Beatriz Vilar Lessa
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Bernardo Jiménez-Domínguez
Centro de Estudios Urbanos-Universidad de Guadalajara.
visã

Breno Ferreira Pena


Psicanalista, Psicólogo, pós-graduado em gestão de pessoas pela Fundação
Getúlio Vargas (FGV). Doutor e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Uni-
itor

versidade Católica de Minas Gerais (PUC- MG). Professor da Faculdade de


a re

Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade


Federal do Pará (UFPA). Professor da Residência Multiprofissional, Complexo
Hospitalar UFPA-EBSERH, Unidade João de Barros Barreto.
par

Camila Câmara
Graduada em Psicologia (PUC-RJ).
Ed

Carlos Jorge Paixão (UFPA)


Graduação em Pedagogia (Faculdades Integradas do Colégio Moderno –
ão

FICOM,1984); Especialização em Metodologia do Ensino Superior (UNESPA,


Convênio MEC/SESU/CAPES, 1988); Especialização em Planejamento e
Avaliação Educacional (FICOM, 1989); Mestrado em Educação (Currículo)
s

pela PUC–São Paulo, 1993; Doutorado em Educação pela UNESP, 1999; Pós-
ver

-Doutorado em Educação pela FE-UNICAMP, sob a Supervisão do Prof. Dr.


Silvio Gamboa, 2011-2012. Atuou como Pedagogo (Funções: Adm. Escolar
no Ensino Fundamental e Prof. de Ensino Médio) no Departamento de Ensino
Fundamental e Departamento de Ensino Médio da SEDUC/PA (1983-1990).
Professor do Curso de Pedagogia – FAED/ICED/UFPA e Membro do Corpo

Flávia Lemos - 21982.indd 500 28/02/2020 13:14:00


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 501

Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação do ICED-


-UFPA, atuando na Linha de Pesquisa Educação, Cultura e Sociedade (Mes-
trado e Doutorado). Docente com Experiência de Ensino e Pesquisa na área
de Educação, com ênfase em: História da Educação; Filosofia da Educação;
Cultura Epistemológica; Epistemologia e Teorias da Educação; Epistemologia,
Didática e Prática Docente. Grupos de Pesquisa / Diretório do CNPq: 1) Líder
do Grupo de Estudos e Pesquisas Sobre Teorias, Epistemologias e Métodos

or
da Educação – EPsTEM / UFPA; 2) Pesquisador Colaborador do Grupo de
Estudos e Pesquisas PAIDEIA da FE-UNICAMP.

od V
aut
Celina Maria Colino Magalhães
Concluiu o doutorado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universi-

R
dade de São Paulo em 1995. Atualmente é Professora Titular da Universidade
Federal do Pará. Diretora do Núcleo de Teoria e Pesquisa do Comportamento

o
(2017-2021). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pes-
aC
quisa do Comportamento, no período de mar. de 2011 a fev. 2015 e Coorde-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nadora do Grupo de Trabalho Brinquedo, aprendizagem e saúde na ANPEPP


de junho 2016 até agosto de 2020. Membro da Diretoria da ANPEPP no
período de 2018 a 2020. Ministra disciplinas na Faculdade de Psicologia e
visã
no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento.
Orcid 0000-0002-1279-179X.
itor

Clara Oliveira Barreto Cavalcante


a re

Psicóloga graduada pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Mestranda em


Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Gestalt-Terapeuta pelo
Centro Gestáltico em Fortaleza-CE e Arteterapeuta pelo Instituto Aquilae em
Fortaleza - Ceará. Atuou como Estagiária bolsista de Psicologia na Secretaria
de Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), desenvolvendo atividades
par

no campo do acolhimento institucional e na área de medidas socioeducati-


vas. Atualmente participa da pesquisa guarda-chuva “Juventude e Violência
Ed

Urbana: Cartografia dos Processos de Subjetivação” do Grupo de Pesquisa


e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES -
UFC) da Universidade Federal do Ceará.
ão

Cristiane Souza Borzuk


Professora adjunto do curso de Psicologia da UFG/ReJ, mestre em Psicologia
s

Social pela PUC/SP, doutora em Psicologia pela USP com estágio pós-doutoral
ver

no Instituto de Psicologia da USP.

Dolores Galindo
Possui Pós-Doutorado (2015-2016), Doutorado (2006) e mestrado (2002)
em Psicologia Social pela Universidade Católica de São Paulo (PUCSP),

Flávia Lemos - 21982.indd 501 28/02/2020 13:14:00


502

com Doutorado Sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona (2004).


Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
em 1999. Atua como Professora Permanente dos Programas de Pós-Graduação
em Psicologia e Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato
Grosso. Foi vice-coordenadora e posteriormente Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Estudos de Cultura Contempo-
rânea. Na graduação, atua como Docente do Departamento de Psicologia da

or
Universidade Federal de Mato Grosso (2013-2014). Lidera o Grupo de Pes-
quisa Ciências, Tecnologias e Criação (LABTECC). Foi da Diretoria Nacional

od V
da Associação Brasileira de Psicologia Social – ABRAPSO (2016-2017),

aut
Conselheira Alterna da ULAPSI (2016-2017) e integrou a Coordenação da
Red Latinoamericana de posgrados en estudios sobre la cultura – ReLaPec

R
(2014-2016). Compõe o GT Conhecimento,Subjetividade,Práticas Sociais da
ANPEPP. Foi Vice-Presidente da Regional Centro-Oeste da Associação Brasi-

o
leira de Psicologia Social – ABRAPSO (2012-2013) e Secretária (2014-2015).
aC
É membro associada da ESOCITE.BR – Associação Brasileira dos Estudos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Sociais das Ciências e Tecnologias, da ABRAPSO – Associação Brasileira de
Psicologia Social e SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Editora de seção da Athenea Digital: revista de pensamiento y investigacion
visã
Social (UAB – Espanha). Possui experiência em Psicologia como área inter-
disciplina, com o interesse de pesquisa voltado às epistemologias feministas
em ciência, tecnologia e sociedade, em diálogo com estudos foucaultianos,
orientadas à problematização de relações de poder, saber e colonialidades.
itor
a re

Edson Marcos Leal Soares Ramos


Bacharel em Estatística pela Universidade Federal do Pará (1994), mestre
em Estatística pela Universidade Federal de Pernambuco (1999) e Doutor em
Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003).
par

É professor Titular da Universidade Federal do Pará. É Professor e Ex-Coorde-


nador do Programa de Pós-graduação em Segurança Pública da Universidade
Ed

Federal do Pará. É Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


E diretor do Fórum Nacional de Programas Profissionais. É professor cola-
borador da Universidade de Cabo Verde no mestrado de Segurança Pública.
ão

Tem experiência nas áreas de Estatística, Engenharia de Produção, Segurança


Pública e Economia, com ênfase em Métodos e Modelos Matemáticos, Eco-
nométricos e Estatísticos.
s
ver

Élida Furtado do Nascimento (UNIR)


Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Acre (2010); Mestra
em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia (2016); doutoranda
em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2018). É
professora assistente pela Universidade Federal do Acre, Campus Floresta,

Flávia Lemos - 21982.indd 502 28/02/2020 13:14:00


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 503

atuando na graduação com a disciplina de psicologia da educação. É pesqui-


sadora pelo GAEPE: Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia
e Educação e pelo NEPHC: Núcleo de Estudos em Psicologia Histórico-Cul-
tural. Tem experiência de pesquisa no campo da educação e da psicologia
educacional, investigando principalmente temas relacionados aos processos
de ensino e aprendizagem, afetividade e fracasso escolar.

or
Eliz Marine Wiggers
É graduada em Psicologia pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto

od V
Vale do Itajaí - UNIDAVI. Possui especialização Lato Sensu em Mediação

aut
Social pela Universidade do Planalto Catarinense - UNIPLAC e Mestrado
em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Atua

R
como docente de graduação de Psicologia no Centro Universitário Avantis
- UNIAVAN. Tem experiência na área clínica, social e jurídica, atuando prin-

o
cipalmente com os seguintes temas: subjetividade, mediação social, políticas
aC
públicas, e relações de poder.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Emanuel Meireles Vieira


Psicólogo e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC),
visã
Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
e professor da Universidade Federal do Ceará.
itor

Enio de Souza Tavares


Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Amazonas, Mestre
a re

em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas (2012), Graduado em


Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas (2010), tendo se concen-
trado nas áreas de Psicologia Social e Clínica a partir do referencial teórico
da Psicologia Sócio-Histórica em interlocução com o Pensamento Sistêmico,
par

o Construcionismo Social, a Esquizoanálise, a Epistemologia da Complexi-


dade e o pensamento de Michel Foucault. Tem experiência em metodologias
Ed

qualitativas de investigação, estando vinculado a grupos de pesquisa sobre


o adolescente autor de ato infracional, sexualidade, pessoas e grupos em
situação de vulnerabilidade, e práticas profissionais em psicologia a partir de
ão

uma perspectiva histórico-crítica.

Evelyn Tarcilda Almeida Ferreira


s

Possui graduação em Psicologia (UFPA/2001), Especialização em Gestão com


ver

pessoas (CESUPA/2007) e Formação em Dinâmica dos Grupos (SBDG/2008),


Mestra em Psicologia Social (UFPA/2015). Doutoranda em Psicologia pela
UFPA. Pesquisa e interessa-se por temas na interface Psicologia Social, Saúde
e Educação, medicalização da educação e da sociedade, políticas públicas etc.
Atua como como Psicóloga Escolar e Educacional na SEDUC, foi Professora

Flávia Lemos - 21982.indd 503 28/02/2020 13:14:00


504

Substituta na Faculdade de Psicologia da UFPA (2015 a 2017). Possui expe-


riência docente e já atuou no IFPA, na Universidade Anhanguera e UNIP.
Possui experiência na área de Psicologia do Trabalho e Organizacional, tra-
balhou com Grupos nas instituições, É professora do Curso de Psicologia na
UNINASSAU Belém.

Fauston Negreiros

or
Psicólogo, graduado pela Universidade Estadual do Piauí (2005). Mestre e

od V
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2012). É profes-

aut
sor-pesquisador adjunto IV do Departamento de Psicologia, do Programa de
Pós-Graduação (Stricto Sensu) em Psicologia e do Programa de Pós-Gradua-
ção (Stricto Sensu) Ciência Política da Universidade Federal do Piauí – UFPI.

R
Pesquisador no grupo de pesquisa Psicologia e Escolarização: políticas públi-
cas e atividade profissional na perspectiva histórico-crítica, da Universidade

o
de São Paulo/USP. Membro da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e
aC
Educacional, ABRAPEE. Membro do Fórum Nacional de Medicalização da

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Educação e Sociedade. Compõe o GT Psicologia e Políticas Educacionais da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia/ANPEPP.
Compõe o Conselho Editorial e é Revisor Técnico das seguintes editoras:
visã
Artmed, Mercado das Letras, Brazil Publishing, Penso, CRV, Juruá e Pimenta
Cultural. Possui experiência na área de Psicologia Escolar e Educacional.
Coordena o PSIQUED, Núcleo de Pesquisa e Estudos em Desenvolvimento
itor

Humano, Psicologia Educacional e Queixa Escolar, vinculado ao CNPQ.


a re

Atua principalmente nos seguintes temas: Queixa Escolar; Fracasso Escolar;


Medicalização e Patologização da Educação e da Sociedade; Atuação e For-
mação do Psicólogo Escolar; Problemas na Escolarização, Vulnerabilidade
e Desigualdade Social, Psicologia e Política Educacional, Psicologia Esco-
par

lar, contextos e práticas emergentes. Psicologia e Proposições Legislativas.


ORCID: 0000-0003-2046-8463.
Ed

Fernanda Teixeira de Barros Neta


Psicóloga, formada pela Universidade Federal do Pará, doutoranda em Psi-
ão

cologia Social e Clínica pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da


UFPA, mestre em Psicologia Social e Clínica pelo Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da UFPA pela linha; Subjetividade, Sociedade e Saúde;
s

Trabalha como psicóloga no Centro de Apoio Psicossocial Infanto-Juvenil


ver

(CAPSi). Participa da Comissão de Gênero do Conselho Regional de Psico-


logia, CPR10, e do grupo de estudos; Transversalizando; Tem como interesse
de estudos temas transversais como infância, juventude, violência, políticas
públicas, direitos humanos, inclusão, justiça, educação, Michel Foucault,
Paulo Freire, Carl Rogers, outros.

Flávia Lemos - 21982.indd 504 28/02/2020 13:14:01


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 505

Fernando Augusto Ramos Pontes


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1986),
mestrado em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Fede-
ral do Pará (1990), doutorado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela
Universidade de São Paulo (1996) e pós-doutorado pela Universidade de
Brasília (2002) e pela Technischen Universität Dortmund - Alemanha (2012).
Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Pará, vinculado

or
ao Núcleo de Teoria e Pesquisa do Comportamento e ao Programa de Pós-

od V
-graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento e também é professor

aut
do Programa de Pós-graduação e Segurança Pública da UFPA. Membro do
Conselho Assessor do CNPq (2017-2019). Presidente da Associação Brasileira

R
de Psicologia do Desenvolvimento no período 2014-2016, e Vice-presidente
no período de 2016-2018.

o
Flávia Cristina Silveira Lemos (UFPA)
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Possui graduação em Psicologia/UNESP (1999). Licenciada em Pedagogia/CES-


B-GO (2017). Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional/UNEB
(2017). Mestre em Psicologia e Sociedade/UNESP (2003). Doutora em História
visã
Cultural/UNESP (2007). Realizou pós-doutorado em Psicologia e Subjetividade,
na UFF, sob supervisão da Profa. Dra. Maria Lívia Nascimento, em 2016. Foi
bolsista FAPESP no Doutorado. É professora associada II, na Graduação e no
itor

Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFPA. Foi professora colaboradora


no Programa de Pós-Graduação em Educação/UFPA. Integra a Comissão de
a re

Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (2017-2019). Integrante


do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Foi Conselheira
Titular no Conselho Federal de Psicologia (gestão 2011-2013). Foi coordena-
dora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFPA (gestão 2011-2013).
par

Foi vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFPA


(gestão 2010-2011). É Bolsista de Produtividade do CNPQ-PQ-2, desde 2013.
Ed

Integra o GT ANPEPP Psicologia Política. Compõe o GT Deleuze da ANPOF.


Foi membro da Diretoria Nacional da ABRAPSO (2016-2017). Integra a Dire-
toria Nacional da ABEP (2017-2019).
ão

Geise do Socorro Lima Gomes


s

Possui graduação em Formação em Psicologia pela Universidade Federal do


Pará (2008), graduação em Licenciatura em Psicologia pela Universidade
ver

Federal do Pará (2008), graduação em Bacharel em Psicologia pela Uni-


versidade Federal do Pará (2007), mestrado em Psicologia - Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (2011) e dou-
torado em Educação pela Universidade Federal do Pará (2017). Atuou como

Flávia Lemos - 21982.indd 505 28/02/2020 13:14:01


506

conselheira no Conselho Regional de Psicologia durante a gestão 2013-2016.


Profa substituta de Psicologia da Educação, na UFPA, atualmente.

Genylton Odilon Rêgo da Rocha


Graduado em Geografia (Bacharelado e Licenciatura) e Pedagogia (Licen-
ciatura Plena) pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Educação (Cur-
rículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) e Doutor

or
em Geografia (Geografia Física) pela Universidade de São Paulo (2001).

od V
Realizou estagio de pós-doutoramento no Institut National de Recherche

aut
Pédagogique da França (INRP), desenvolvendo atividades de pesquisa no
Service d’Histoire de l’Education, no período de novembro de 2006 a dezem-

R
bro de 2007. Professor Titular da Universidade Federal do Pará, exercendo
atividades no Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola

o
Básica (Mestrado) e no Programa de Pós-Graduação em Educação na Ama-
zônia (Doutorado). É Diretor Geral do Núcleo de Estudos Transdisciplinares
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


em Educação Básica da UFPA; Secretário Regional da SBPC (Biênio 2017-
2019 e 2019-2021); Sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP);
membro da Comissão Justiça e Paz (CNBB Norte II); e Tutor do Grupo PET
visã
Interdisciplinar Conexões de Saberes.

Glaybe Antônio Sousa Pimentel


itor

Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará. Especialista em


a re

Educação – Secretaria de Estado de Educação do Pará. Professor – Secretaria


Municipal de Educação de Igarapé-Miri. Pesquisador no Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Currículo – NEPEC.

Herbert Tadeu Pereira de Matos Junior


par

Bacharelado em Psicologia pela Universidade da Amazônia (2008 - 2012).


Bolsista de Iniciação Cientifica (2011 - 2012), trabalhando com o tema de
Ed

políticas públicas e subjetividade. Especialista em Saúde pelo Programa de


Residência Multiprofissional em Atenção à Saúde Mental da Universidade
do Estado do Pará e Fundação Pública Estadual Hospital de Clínicas Gaspar
ão

Vianna (2015 - 2017). Monografia - Psicologia e Saúde Mental: Produção de


cuidado em clínica psiquiátrica de hospital geral no Sistema Único de Saúde.
s

Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da


ver

Universidade Federal do Pará (2015 - 2017). Dissertação - Saúde Mental e


Coletiva: Uma análise do processo de trabalho em uma emergência de hospi-
tal público na Amazônia. Pesquisador vinculado ao Diretório dos Grupos de
Pesquisa no Brasil (DGP), Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-
fico e Tecnológico (CNPq) - Trabalho e Saúde na Amazônia: Subjetividades,

Flávia Lemos - 21982.indd 506 28/02/2020 13:14:01


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 507

Instituições e Políticas. Membro da ABRAPSO - Associação Brasileira de


Psicologia Social.

Ingrid Sampaio de Sousa


Graduanda em psicologia na Universidade Federal do Ceará, Membro do
Círculo de Pesquisa e Lógica em Epistemologia das Psicologias (CPLEP),
coordenado pelo Prof. Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas e Membro da

or
formação básica do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, sessão Fortaleza.

od V
aut
Iolete Ribeiro da Silva
Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Brasília (1990), mestre
(1998) e doutora (2004) em Psicologia pela Universidade de Brasília. Atual-

R
mente é Professora Associada III da Universidade Federal do Amazonas,
Diretora da Faculdade de Psicologia da UFAM (2012-2016, 2017-2020).

o
Bolsista Produtividade CNPq 2. Atua no Programa de Pós-Graduação em
aC
Educação – PPGE/UFAM e Programa de Pós-Graduação em Psicologia –
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

PPGPSI/UFAM. Integrante do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de


Psicologia Escolar/Educacional (2018-2020). Foi Secretária Adjunta do Fórum
Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – FORUM DCA
visã
(2008/2009, 2012), Integrante do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violên-
cia e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (2012/2013), Conselheira
Titular do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente
itor

(2011/2012), Conselheira do Conselho Nacional de Assistência Social (2010-


2011), integrante da Coordenação Política do Fórum Nacional de Assistência
a re

Social (2010-2011), Secretária da Região Norte no Conselho Federal de Psico-


logia (2005-2010, 2016-2019) e Presidente do Conselho Regional de Psicolo-
gia 20a Região Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia (2011-2012), Conselheira
Suplente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes
par

(2017-2018). Desenvolve pesquisas a partir da perspectiva crítica da Psicologia


histórico-cultural abordando os seguintes temas: atuação do psicólogo nas políti-
Ed

cas públicas de educação e assistência social com foco na promoção dos direitos
humanos da população amazônica; aspectos psicossociais da desigualdade e
processos de transformação social; psicologia, movimentos sociais e proces-
ão

sos de inclusão de pessoas historicamente excluídas; interseccionalidade entre


gênero e raça, preconceitos, violências, processos de exclusão e manifestações
de sexismo na escola e na Universidade.
s
ver

Isabel Rosa Cabral


Possui graduação em Bacharelado em C. Biológicas-Modalidade Médica pela
Universidade Federal do Pará (1988), mestrado em Genética pela Universi-
dade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - IBILCE (1994) e doutorado
em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Estadual de Campinas

Flávia Lemos - 21982.indd 507 28/02/2020 13:14:01


508

(2000). Atualmente é Professora Associada da Universidade Federal do Pará,


coordenadora do PET Saúde/Saúde da Família (UFPA-Belém) e coordenadora
do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde - área de Oncologia.
Tem experiência na área de Genética Humana, com ênfase em Mutagênese e
Epidemiologia Molecular, atuando principalmente nos seguintes temas: cito-
genética, mutagênese ambiental e interação gene-ambiente na carcinogênese.
Mais recentemente, vem desenvolvendo ações de ensino, pesquisa e extensão

or
em Saúde Pública, embasada em Epidemiologia.

od V
aut
Ivne Alencar Farias
Graduanda de Psicologia.

João Paulo Pereira Barros


R
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e Professor Permanente

o
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Ceará (UFC). Coordenador do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções
sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação. E-mail: joaopaulobarros07@
gmail.com
visã
José Araújo de Brito Neto
Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário do Maranhão (2005).
Especialização em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de
itor

Minas Gerais (2006). É Mestre em Psicologia (2015) pelo Programa de Pós-


a re

-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e profis-


sional liberal – Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará. Tem experiência
na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos
seguintes temas: políticas públicas, direitos humanos, políticas sobre drogas.
par

Juan Telles
Ed

Psicólogo PUC-RJ; Mestrando em Psicologia PUC-RJ.

Karla Maria Siqueira Coelho


ão

Terapeuta Ocupacional, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Psi-


cologia (PPGP/UFPA), Mestre em Psicologia (UFPA) e Professora Assistente
da Universidade do Estado do Pará (UEPA)
s
ver

Kelly Cristina Costa Albuquerque


Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR. Mes-
tra em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia, linha Psicologia
e Processos Escolares. Possui graduação em Psicologia pela Faculdade da
Amazônia Ocidental (2011) e em Letras Vernáculas pela Universidade Federal

Flávia Lemos - 21982.indd 508 28/02/2020 13:14:01


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 509

do Acre (2007). Pós-graduada em Psicopedagogia (UGF) e em Psicologia


Clínica (FAAO). Psicóloga clínica. Atualmente é professora e coordenadora
do curso de Psicologia da Faculdade da Amazônia Ocidental. Membro do
Conselho Editorial da Revista RIC - FAAO. Membro do Núcleo Docente
Estruturante do curso de Psicologia - FAAO. Avaliadora do Guia do Estu-
dante - Ensino Superior.

or
Larissa Ferreira Nunes

od V
Psicóloga Especialista em Saúde Mental pela Universidade Estadual do Ceará

aut
(UECE). Atualmente cursa Mestrado em Psicologia na Universidade Federal
do Ceará (UFC) e passou na seleção de Doutorado em Psicologia da UFC
para o ano de 2020. É integrante do Grupo de Pesquisa e Intervenções Sobre

R
Violência, Exclusão Social e Subjetivação - VIESES/UFC. Foi pesquisadora
colaboradora na pesquisa “Violência armada na cidade de Fortaleza e suas

o
consequências humanitárias” (Instituto OCA e Comitê Internacional da Cruz
aC
Vermelha) e é pesquisadora colaborado na pesquisa “Juventude e violência
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

urbana: cartografia de processos de subjetivação na cidade de Fortaleza”. Tem


experiência na área de Psicologia e Socioeducação. Dedica-se aos seguintes
temas: violências e modos de subjetivação na contemporaneidade.
visã

Laura Soares Martins Nogueira


Pós-Doutorado em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia
itor

da Universidade Federal do Pará. Doutora em Desenvolvimento Socioambiental


a re

pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico


Úmido (PDTU) do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universi-
dade Federal do Pará (UFPA) (2011). Realizou Mestrado em Saúde Pública pela
Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ)
(1998) e Formação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1993).
par

Atua como tecnologista sênior na FUNDACENTRO. Participa do Programa de


Ed

Pós-Graduação Trabalho, Saúde e Ambiente da FUNDACENTRO, do grupo de


pesquisa Trabalho, Estado e Sociedade na Amazônia, da Universidade Federal
do Pará e do Grupo de Estudos Saúde na Amazônia. Tem experiência na área
ão

de Saúde Coletiva com ênfase em Saúde Mental, trabalhando com os seguintes


temas – Saúde Mental e Trabalho, Saúde do Trabalhador, Psicologia Organiza-
cional e do Trabalho e Pesquisa Qualitativa em Saúde.
s
ver

Leilanir de Sousa Carvalho


Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI/CMRV
(2018-2020). Possui graduação em Psicologia pela Faculdade Integral Diferen-
cial (2009). Atualmente é professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia
de Teresina. Membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Desenvolvimento

Flávia Lemos - 21982.indd 509 28/02/2020 13:14:01


510

Humano, Psicologia Educacional e Queixa Escolar – PSIQUED. Tem expe-


riência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia. Atua principalmente
nos seguintes temas: Atuação e Formação do Psicólogo Escolar, Psicologia
Escolar, contextos e práticas emergentes, Psicologia e Política Educacional,
Codependência, Mundo Corporativo, Psicologia Organizacional.

Letícia Carneiro da Conceição

or
Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2003), mes-
trado em Educacao pela Universidade Federal do Pará (2014) e doutorado

od V
em andamento pela Universidade Federal do Pará. Atuação profissional nas

aut
Secretaria Municipal de Educação de Belém/PA e Secretaria de Estado de
Educação do Pará. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em

R
Ensino-Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: educação
ambiental, ambiente, juventude, educação de jovens e adultos e ensino médio.

o
Lilian Lameira Silva
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Pará, atualmente residente
multiprofissional no Programa de Saúde da Mulher e da Criança/UEPA/
FSCMP. Experiência em projetos de extensão e pesquisa: atendimento clí-
visã
nico, processos de acolhimento e suporte psicológico em abordagem psica-
nalítica na Clínica Escola de Psicologia (CLIPSI/UFPA), experiência em
atendimento a mulheres com HIV/AIDS na Clínica de Doenças Infecto Para-
itor

sitárias (HUJBB), experiência em práticas de cuidado e escuta com mulheres


encarceradas e seus bebês (Unidade Materno Infantil/SUSIPE). Áreas de
a re

interesse: saúde, gênero e feminismo, clínica psicanalítica.

Louine Costa Lima Cruvinel


Psicóloga, membro do Laboratório de Psicologia e Processos Psicossociais
par

da UFG/Jataí.
Ed

Lúcia Helena da Silva Alves


Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP, com a tese “Um estudo psicana-
lítico sobre o trauma e o sofrimento psíquico em situação de violência”, 2017,
ão

que contou com o apoio do CAPE, este artigo constitui o segundo capítulo
da tese. Atuo como psicóloga clínica na Polícia Civil do Estado do Pará e no
PROPAZ/IML/Secretaria de Saúde Pública do Pará.
s
ver

Luanna Tomaz de Souza


É graduada em Ciências Sociais pela Universidade da Amazônia (UNAMA)
e em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Mestre em Direito
na Universidade Federal do Pará, Doutora em Direito pela Universidade de
Coimbra – Portugal e Pós-doutoranda em Direito na Puc-Rio. Atua como

Flávia Lemos - 21982.indd 510 28/02/2020 13:14:01


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 511

vice-diretora da Faculdade de Direito da UFPA e professora da Faculdade de


Direito e do Programa de Pós-Graduação de Direito da UFPA. É pesquisadora
do Grupo de Estudos sobre Mulher e Relações de Gênero Eneida de Moraes
(GEPEM-UFPA). Coordena o Grupo de Estudos em Direito Penal e Demo-
cracia (UFPA), a Clínica de Atenção à Violência (CAV/UFPA) e o Núcleo de
Estudos Interdisciplinares da Violência na Amazônia (NEIVA – UFPA). Tem
experiência na área de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Sociologia

or
Jurídica, Segurança Pública, Direitos Humanos, Direitos das Mulheres e das
Crianças e Adolescentes.

od V
aut
Luciano Imar Palheta Trindade
Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná, na Linha

R
de Pesquisa Psicologia Clínica e Fenomenologia. Graduado em Psicologia
pela Universidade Federal do Pará (2019). Realizou período de mobilidade

o
acadêmica na Universidade Federal do Paraná, onde frequentou disciplinas
aC
isoladas e participou do grupo de supervisão da Prática de Avaliação Neu-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ropsicológica em Hospital Geral. Possui experiência no campo da Psicologia,


tendo atuado em Projeto de Pesquisa na área da Educação Básica, Projeto de
Suporte Psicológico no enfrentamento de barreiras atitudinais e monitorias
visã
em Educação Inclusiva e Psicologia Escolar/Educacional. Integrou a gestão
do Centro Acadêmico de Psicologia da UFPA (2016). Foi bolsista de Iniciação
Científica no projeto “Clínica na contemporaneidade: atuação de profissionais
itor

na Atenção Básica”. Suas temáticas de interesse são: psicologia da saúde,


a re

educação em saúde, clínica psicológica, amor e luto.

Luiz Miguel Galvão Queiroz


Mestre em Educação e Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Gra-
par

duação em Educação (PPGED/UFPA). Pedagogo. Técnico em Mineração.


Facilitador do GQT-CVRD/DOCEGEO. Membro do Núcleo de Estudos e
Ed

Pesquisa em Currículo – NEPEC e Grupo de estudos e pesquisas Observató-


rio de Gestão escolar Democrática – Observe. Docente da disciplina Políti-
cas Educacionais – UAB2/IFPA. Docente do curso de Pedagogia da Escola
ão

Superior Madre Celeste. Técnico em Educação da Secretaria de Estado de


Educação do Pará.
s

Mara Daniele de Sousa Sarmento


ver

Terapeuta Ocupacional pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Marcelo de Almeida Ferreri


Professor associado do departamento de Psicologia da Universidade Federal de
Sergipe e permanente do programa de Pós-graduação em Psicologia da UFS.

Flávia Lemos - 21982.indd 511 28/02/2020 13:14:02


512

Maria Helena Zamora


Mestra e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. É professora da gra-
duação em Psicologia da PUC-Rio desde 2000 e da Pós-Graduação a partir
de 2012. Professora convidada da National/Global Advisory Board for Faith
and Justice in Community and Society, Indiana, USA, entre 2011 e 2015.
Iniciou cooperação com o Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento
Vocacional e Social, de Coimbra, em 2012. Em 2017 passa a ser pesquisadora

or
convidada da linha de pesquisa “Acolhimento e inclusão de jovens em risco do

od V
IPCDHS/FCT, Univ. de Coimbra e consultora do Laboratório de Intervenção

aut
na Comunidade (LInC). É Vice-coordenadora do Laboratório Interdisciplinar
de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS, da PUC-Rio) desde 2006. Em 2010,
foi Coordenadora Adjunta do ProUnir, Protagonismo Universitário e Empo-

R
deramento Profissional, em convênio com a SEPPIR e consultora do projeto
em 2011. Foi docente do Mestrado em Psicologia Social na UNIVERSO

o
entre 04/2010 e 08/2012. Foi sócia da ABRAPSO (Associação Brasileira de
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Psicologia Social) por cinco anos. Membro da ANPEPP desde 2012. É mem-
bro do corpo editorial e consultora de diversas revistas e editoras científicas
nacionais e internacionais. É membro da CEDECA-RJ (Centro de Defesa
dos Direitos da Criança e do Adolescente) desde 2012. Foi colaboradora
visã
do CRP-5 (Conselho Estadual de Psicologia) em 2009- 2010 e 2014-2015
e é Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos em 2019. Colaboradora
do Núcleo Interdisciplinar de Memória, Subjetividade e Cultura (NIMESC)
itor

da PUC-Rio, entre 2014 e 2015. Pesquisadora associada do Núcleo Inter-


a re

disciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA) da PUC-


-Rio, desde 2015 e do Núcleo Transdisciplinar Subjetividades, Violências
e Processos de Criminalização (TRANSCRIM) da UFF, em 2016. Membro
da Comitê Estadual, inclusive na Secretaria Executiva, para a Prevenção e
par

Combate à Tortura do Rio de Janeiro (Lei 5778, de 2010), como suplente do


Movimento MOLEQUE de 2015 a 2018. Membro do Conselho Consultivo
Ed

do Instituto de Cidadania e Direitos Humanos, fundado em 2017, em Minas


Gerais. Membro do Comitê de Prevenção de Homicídios de Adolescentes da
UNICEF (Fundo Internacional de Emergência para a Infância das Nações
ão

Unidas), a partir de 2019, passando a integrar o Comitê de Ética em 08/2019.


Coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de
Psicologia - RJ em 2019.1.
s
ver

Maria Ivonete Barbosa Tamboril


Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Rondônia
(1996), mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
pela Universidade de São Paulo (2000), doutorado em Psicologia Escolar
e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (2005) e

Flávia Lemos - 21982.indd 512 28/02/2020 13:14:02


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 513

pós-doutorado pela Universidade Federal do Oeste do Pará (2017). Atualmente


é Associada - Nível 2 da Universidade Federal de Rondônia e do Fundação
Universidade Federal de Rondônia. Tem experiência na área de Psicologia,
com ênfase em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Atuando
principalmente nos seguintes temas: Formação docente, Grupo focal, Política
educacional, Projeto político pedagógico, Reformas educacionais e Desen-
volvimento profissional.

or
od V
Maria Lúcia Chaves Lima

aut
Psicóloga (UFPA); Mestre em Psicologia (UFPA); Doutora em Psicologia
Social (PUC-SP). Professora adjunta IV na graduação e na pós-graduação

R
do curso de Psicologia (UFPA). Líder do grupo de pesquisa Inquietações.

Marilene Maria Aquino Castro de Barros

o
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará (1999),
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Pará (2010) e douto-


rado em Educação pela Universidade Federal do Pará (2016). Professora da
Universidade Federal do Oeste do Pará. Tem experiência na área de Educação,
visã
com ênfase em Educação: currículo, epistemologia e história e, saberes cul-
turais e educação na Amazônia, atuando principalmente nos seguintes temas:
educação, escola, prevenção, adolescentes e enfrentamento.
itor

Marilene Proença Rebello de Souza


a re

Professora Titular da Universidade de São Paulo (2015). Psicóloga, graduada


em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1978). Mestrado, Doutorado
e Livre-Docência em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela
Universidade de São Paulo (1991, 1996 e 2010, respectivamente). Docente
par

e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do


Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da Universidade de São
Ed

Paulo (1997 – atual) e Coordenadora do Programa de 2006 a 2014. Foi Presi-


dente da Comissão de Pós-Graduação do IPUSP (2011-2014). Professora do
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina
ão

da USP/ PROLAM-USP. Coordena o Laboratório Interinstitucional de Estudos


e Pesquisas em Psicologia Escolar – LIEPPE e é líder do Grupo de Pesquisa do
s

CNPq Psicologia e Escolarização: políticas públicas e atividade profissional na


ver

perspectiva histórico-crítica. Professora do Curso de Graduação em Psicologia


da USP. Editora Chefe da Revista Psicologia Ciência e Profissão (2002-2004
e 2011-2013, Avaliação Qualis Periódicos A2). Editora da Revista Psicologia
Escolar e Educacional (2006-2008) e Membro do Conselho Editorial da Revista
Psicologia Escolar e Educacional (2009-atual, Avaliação Qualis Periódicos – A2).

Flávia Lemos - 21982.indd 513 28/02/2020 13:14:02


514

Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educa-


cional (2002-atual) e Presidente Anterior. Conselheira do Conselho Federal de
Psicologia (2002 a 2004 e de 2011 a 2013) e do Conselho Regional de Psicologia
de São Paulo (2005-2007 e 2008 a 2010). Vice-presidente da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia - ANPEPP (2014-2016). Diretora
do Instituto de Psicologia da USP (2016-2020). Membro do Fórum sobre Medi-

or
calização da Educação e da Sociedade. Realizou Estágio Pós-Doutoral na York
University, Canadá (2001-2002) e participou como Professora Visitante em 2007

od V
(bolsa do Consulado Canadense). É Bolsista Produtividade do CNPq, nível 1C.

aut
Coordenadora do Grupo de Trabalho Psicologia e Educação da Sociedade Intera-
mericana de Psicologia – SIP. Membro da AHILA – Associação de Historiadores
Latinoamericanistas Europeus.
R
o
Marli Lucia Tonatto Zibetti
aC
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(1988); Mestra em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2000); Doutora em
Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela mesma instituição
visã
(2005); Pós-doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (2014). É professora associada do Departamento de Psicologia da Uni-
versidade Federal de Rondônia, atuando na graduação e no Mestrado em Psi-
itor

cologia. Membro da ABRAPEE e do GT Psicologia e Políticas Educacionais


a re

da ANPEPP; pesquisadora e líder do GAEPPE: Grupo Amazônico de estudos


e pesquisas em Psicologia e Educação (UNIR). Vice-líder do Grupo Psico-
logia e Escolarização: políticas públicas e atividade profissional na perspec-
tiva histórico-crítica (USP). Membro do Conselho Editorial da EDUFRO, da
par

Revista Êxitus (UFOPA) e da Revista EDUCA (UNIR). Editora de Seção da


Revista Psicologia Escolar e Educacional da ABRAPEE. Tem experiência em
Ed

pesquisas no campo da Educação e da Psicologia Escolar investigando, prin-


cipalmente, os processos de escolarização e sua significação para os sujeitos;
a apropriação das políticas educacionais no cotidiano escolar e na formação
ão

de Professores.

Micael Jayme Casarin Castagna


s

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade


ver

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2018), pesquisa Segurança Pública no Rio


de Janeiro tendo como dispositivo de pesquisa a participação da psicologia
em políticas públicas penitenciárias e seu controle social. Possui graduação
em Psicologia também pela UFRJ (2017). Tem experiência teórico-prática

Flávia Lemos - 21982.indd 514 28/02/2020 13:14:02


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 515

de estágio em psicologia clínica através da abordagem Transdisciplinar, com


referencial dos processos de produção de subjetividade pela Esquizoanálise.
Em três anos e meio deste estágio, acompanhou estudantes ao longo da gra-
duação em um projeto de assistência estudantil que entendia a saúde mental
como direito e garantia possível de permanência na universidade. Atualmente,
atua como colaborador em duas Comissões de Instrução da Comissão de

or
Orientação e Ética do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro e
participa do Fórum Permanente de Saúde no Sistema Penitenciário. Co-super-

od V
visiona, pelo Mestrado, estágios do Projeto “Psicologia e Justiça: Construção

aut
de Outros Processos”, baseados nos ideários dos Direitos Humanos e com
atuação entre os eixos Psicologia, Violência e Políticas Públicas.

Milene Maria Xavier Veloso


R
o
A Professora Milene Maria Xavier Veloso possui graduação em Psicologia
aC
pela Universidade Federal do Pará (1993), mestrado em Saúde Pública pela
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Fundação Oswaldo Cruz (2001) e doutorado em Psicologia pelo Programa


de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento/UFPA (2015).
Realizou estágio doutoral na Universidade do Minho em Portugal no grupo
visã
de pesquisa em Sociologia da Infância (2014). Esse doutorado sanduíche foi
realizado com financiamento da CAPES. É professora Associada da Univer-
sidade Federal do Pará com experiência nas áreas de Psicologia Social e Psi-
itor

cologia da Saúde, atuando principalmente na investigação de temas relativos


a re

à violência contra crianças e adolescentes. Atualmente coordena o projeto de


pesquisa intitulado: Violência contra crianças e adolescentes: indicadores e
estratégias de enfrentamento?

Morgana Moura
par

Graduada em Psicologia pela UFMT, Campus Universitário de Rondonópolis.


Ed

Mestre em Psicologia Social pela PUC São Paulo. Doutoranda em Estudos de


Cultura Contemporânea pela UFMT, vinculada ao grupo de pesquisa Laboratório
de tecnologia, ciência e criação (LabTecc). Pesquisadora colaboradora do Núcleo
ão

de Estudos sobre Drogas da Universidade Federal do Ceará. Conselheira-presi-


dente do Conselho Regional de Psicologia da 18ª região (MT), gestão 2016-2019,
também coordena a comissão de saúde do CRP18. Conselheira do CONESD –
s

MT (Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas). Atua como psicóloga clínica


ver

e como docente pela Escola de Saúde Pública de Mato Grosso e pela Faculdade
FASIPE, com experiência de atuação nos serviços socioassistenciais e na atenção
em saúde mental. Em pesquisa se relaciona com os seguintes temas: processos
psicossociais e medicalização, saúde mental, redução de danos no uso de drogas,
psicologia e arte contemporânea.

Flávia Lemos - 21982.indd 515 28/02/2020 13:14:02


516

Oberdan da Silva Medeiros


Cientista social, doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação
PPGED da Universidade Federal do Pará, Campus Guamá e professor efetivo
do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia.

Patrícia Guedes Nogueira


Graduada em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário São Lucas (2013).

or
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia (2016). Tem expe-
riência na docência do ensino de Biologia e na gestão escolar. Ministra oficinas e

od V
palestras na área de ensino de ciências. Integrante do Grupo Amazônico de Estudos

aut
e Pesquisas em Psicologia e Educação (GAEPPE). Tem interesse no campo da
Educação e da Psicologia Escolar com ênfase em processos de escolarização no

R
ensino fundamental, médio e formação de Professores.

o
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1988),
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Mestrado em Saúde Pública – Ensp (1998) e Doutorado em Saúde Pública –
Ensp (2005). Atualmente é professor Associado II da Universidade Federal
do Pará. Tem experiência na área de Saúde Coletiva e Psicologia, em que atua
visã
nos seguintes campos do conhecimento: saúde do trabalhador, sofrimento
psíquico, análise institucional, política de saúde e monitoramento e avaliação.
É membro da Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva e Diretor
da Rede Unida. Participa do Conselho Editorial da Revista Saúde e Debate
itor

e é membro do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde – CEBES e membro


a re

do GT da ANPPEP de Psicodinâmica do Trabalho. É Coordenador da Rede


Unida/ Região Norte e Coordenador do Programa de Pós-Graduação da UFPA.

Paulo Sérgio de Almeida Corrêa


par

Mestre e Doutor em Educação. Licenciado Pleno em Pedagogia. Bacharel em


Direito. Professor Titular na Faculdade de Educação, do Instituto de Ciências
Ed

da Educação, da Universidade Federal do Pará. Acadêmico Perpétuo na cate-


goria de Sócio Fundador da Academia Igarapemiriense de Letras – AIL, cujo
Patrono é o Poeta Bento Bruno de Menezes Costa. Líder de Grupo no Núcleo
ão

de Estudos e Pesquisas em Currículo – NEPEC e do Núcleo de Pesquisas e


Estudos sobre Crime e Criminalidade – NUPECC. E-mail: paulosac@ufpa.br
s

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho


ver

Possui graduação em Psicologia (UFF), especialização em Psicologia Jurídica


(UERJ), mestrado e doutorado em Psicologia (UFRJ). Professor Associado do
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação
em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Editor de Arquivos Brasileiros

Flávia Lemos - 21982.indd 516 28/02/2020 13:14:02


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 517

de Psicologia (Qualis A2) e Editor Associado de Psicologia: Ciência e Pro-


fissão (Qualis A2). Professor Visitante do Instituto Escocês de Pesquisa em
Segurança Pública da University of Dundee, do Programa de Mestrado em
Psicologia Social da Universidad de la Republica do Uruguai, do Programa
de Mestrado em Criminologia Aplicada da Universidad San Carlos de Gua-
temala e da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Atualmente
compõe o conselho diretor da Decania do Centro de Filosofia e Ciências

or
Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como coordenador de

od V
integração acadêmica de extensão. Compõe, ainda, o Comitê Nacional de

aut
Prevenção e Combate à Tortura e a Comissão Permanente dos Direitos da
População em Situação de Privação de Liberdade do Conselho Nacional dos
Direitos Humanos (CNDH) do Ministério dos Direitos Humanos. Presidente

R
do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.

o
Rafael Ventimiglia dos Santos
aC
Tem experiência na área de Psicologia com ênfase em Psicologia Clínica
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e Psicologia Escolar Educacional pela Universidade Federal do Pará -


UFPA/2018. Participou, por 4 anos, do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Currículo e Formação de Professores na Perspectiva da Inclusão - INCLU-
visã
DERE, onde desenvolveu os Projetos de Pesquisa e Extensão Empoderando
Comunidades Escolares Paraenses para o Enfrentamento da LGBTfobia nas
Escolas (PROEX 2015-2016) e; Enfrentamento da LGBTfobia na Escola
itor

(PIBEX 2017). Atuou por 14 anos no Movimento Social Organizado pelo


a re

Movimento LGBT do Pará. É Coordenador Adjunto do Comitê Gestor do


Plano Estadual de Segurança Pública e Enfrentamento LGBTIfobia do Con-
selho Estadual de Segurança Pública do Pará - CONSEP/SEGUP. É o atual
gestor da Gerência de Proteção à Livre Orientação Sexual - GLOS ligada à
par

Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos - SEJUDH. É Vice-Pre-


sidente e Secretário do Conselho Estadual da Diversidade Sexual do Pará
Ed

- CEDS/SEJUDH.

Rafaele Habib Souza Aquime (UFRA)


ão

Psicóloga, Graduada pela Universidade da Amazônia (UNAMA), em 2012.


Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2015, na linha de pesquisa Psico-
s

logia, Sociedade e Saúde e Doutoranda em Psicologia pelo mesmo Programa.


ver

Dentre as experiências profissionais, atuou como Professora substituta da


Universidade do Estado do Pará (UEPA), Professora do Centro Universi-
tário do Estado do Pará (CESUPA) e Conselheira do Conselho Regional de
Psicologia 10ª Região, gestão 2016- 2019, sendo presidenta da Comissão de
Ética (COE), membro do Grupo de Trabalho Infância e Juventude, e Grupo

Flávia Lemos - 21982.indd 517 28/02/2020 13:14:03


518

de Trabalho Psicologia e Assistência Social. Atualmente é Professora Efetiva


da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e ministra disciplinas
nos campos da educação, organizações, ética e formação docente.

Renata Vilela Rodrigues


Mestra em Estudos de Cultura Contemporânea pelo Programa de Pós-gra-
duação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO), da Universidade

or
Federal de Mato Grosso (2015), com bolsa CAPES. Graduada em Psicolo-

od V
gia pela Universidade Federal de Mato Grosso (2013). Desenvolveu durante

aut
a graduação Projeto de Pesquisa pelo Programa Voluntariado de Iniciação
Científica (2009-2010) e pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (2010-2011), com bolsa CNPq. Realiza estudos sobre os processos

R
de medicalização e farmacologização da existência, capitalização da vida
nos mercados de saúde, produção de subjetividades e interlocuções entre os

o
estudos foucaultianos e feministas. Atualmente é Professora Titular do Curso
aC
de Psicologia do UNIVAG - Centro Universitário de Várzea Grande.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Ricardo Pimentel Méllo
Professor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
visã
Ceará tanto na Graduação como na Pós-Graduação. Tese de Professor Titular
(2017 – Conceito de Cuidado). Pós-Graduação: Pós-doutorado na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (2012 – Teoria Ator-Rede); Doutorado em
itor

Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002 - Tese:
a re

Abuso Sexual Infantil); Mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universi-


dade Católica de São Paulo (1994 – Dissertação: Violência Agrária); Formação
em Psicanálise no Centro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo (2000); Especia-
lização em Psicologia Clínica e Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do
Pará (1992 ? Monografia: Pulsão de Morte). Graduação: Formação de Psicólogo
par

pela Universidade Federal do Pará (1986 – TCC: Relações Sexistas); Bacharelado


em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1985). Coordena o Núcleo de
Ed

Estudos sobre Drogas (UFC) e colabora com: Núcleo de Estudos sobre Práticas
Discursivas e Produção de Sentidos (PUC – SP); Núcleo de Lógicas Institucionais
e Coletivas (PUC – SP); Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Drogas (UFCG)
ão

Roberta Brasilino Barbosa


Pós Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ
s

e membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psi-


ver

cologia. Especialista em Psicologia Jurídica pela UERJ (2015). Graduada


e Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2011) e mestra e doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da mesma universidade (2012/2017). Tem experiência na área

Flávia Lemos - 21982.indd 518 28/02/2020 13:14:03


SUBJETIVIDADES E DEMOCRACIAS: escritas transdisciplinares v. 9 519

de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando principalmente nos


seguintes temas: processos de criminalização, subjetivação, políticas públicas
sobre drogas, favelas, segurança e direito à cidade.

Simone Souza da Costa Silva


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1994),
mestrado em Psicologia nesta mesma instituição (2001) e doutorado em Psi-

or
cologia pela Universidade de Brasília (2006 e pós doutora em Ciências da

od V
Reabilitação pela Universidade de Dortmund - Alemanha (2012). Durante o

aut
mestrado, investigou a relação mãe-criança na situação de banho, no doutorado
ampliou seu foco e investigou a estrutura e dinâmica das relações familia-
res em uma comunidade ribeirinha da Amazônia. Atualmente é professora e

R
diretora adjunta do Núcleo de Teoria e Pesquisa do Comportamento (NTPC/
UFPA) onde ocupa o cargo de Diretora Academica da Unidade além de atuar

o
no Programa de Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTPC). Além das
aC
atividades desenvolvidas no PPGTPC atua na faculdade de psicologia e no
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública (PPGSP). Nos últimos


anos desenvolveu pesquisas com famílias ribeirinhas e coordenou grupo de
pesquisa que investigou os impactos gerados pelo Programa Bolsa Família
visã
(PBF). O interesse por famílias excluídas socialmente como as ribeirinhas e
pobres se ampliou com os trabalhos sobre famílias de crianças com alteração
de desenvolvimento.
itor
a re

Tatiana Bichara
Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1998) e mestrado em Psicologia Social (Núcleo Organização e Ação Social
– prof. Dr. Peter Spink) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003).
É doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de
par

São Paulo – IPUSP no Depto. de Psicologia Social e do Trabalho. (2014) sob a


orientação da Prof. Dra. Ianni Scarcelli. É docente titular do Instituto de Altos Estu-
Ed

dios Nacionales – IAEN – Equador (set/16 – atual). Atuou como Coordenadora


Geral de Pesquisa do Instituto de Altos Estudios Nacionales – IAEN – Equador
(jan/17-ago/18). Atuou como docente do Programa Rede Sampa, na área de Redes
ão

de Atenção Psicossocial (maio/2015 - ago/16). Atuou como docente da gradua-


ção do Curso de Psicologia da Universidade Nove de Julho – UNINOVE – de
s

março de 2011 a dezembro de 2014. Atuou como docente do Deptartamento de


ver

Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina - UEL


(2009-2010) e da Faculdade de Psicologia da Universidade Paulista – UNIP –
Jundiaí (2009-2010). É fundadora e atuou como coordenadora da Oficina de
Dança e Expressão Corporal (2001-2016) e foi preparadora corporal do Projeto
Coral Cênico Cidadãos Cantantes (1997-2009), na Galeria Olido. Trabalhou em

Flávia Lemos - 21982.indd 519 28/02/2020 13:14:03


520

Projeto de Pesquisa Qualitativa sobre a Atuação dos/as Psicólogos/as nas Polí-


ticas Públicas Nacionais para o CREPOP – CFP sob a coordenação do Prof. Dr.
Peter Spink, na Fundação Getúlio Vargas (2007-2009). Atuou como gerente do
programa Educação e Cidadania na Associação Novolhar e como assessora de
desenvolvimento local no Instituto Rukha. Tem experiência na área de Psicologia
Social, Políticas Públicas, Arte, Saúde Coletiva, Saúde Mental e Cultura

or
Thamyris Maués dos Santos
Doutora em Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTC/UFPA) (2019). Pro-

od V
aut
fessora da Faculdade Uninassau - Belém (Grupo Ser) (2018-). Mestra em Teoria e
Pesquisa do Comportamento (2013). Psicóloga formada pela Universidade Federal
do Pará (2010). Participante do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica

R
(PROCAD-NF/ CAPES), com Mestrado Sanduíche no Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGP/

o
UFRGS). Integrante do Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento Humano
aC
(LEDH), do Núcleo de Teoria e Pesquisa do Comportamento (NTPC-UFPA).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Atua principalmente nos seguintes temas: Vulnerabilidade social; Famílias Pobres;
Práticas Parentais; Programa Bolsa Família, Pobreza e Famílias Ribeirinhas.
visã
Vanessa Amarante de Souza
Psicóloga – UFC.
itor

Vânia Aparecida Calado


a re

Possui graduação e licenciatura em Psicologia pela Universidade de São Paulo.


Concluiu mestrado no Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do
Instituto de Psicologia da USP, com bolsa do CNPq. Obteve o título de doutorado
pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univerdade Federal do Rio
Grande do Norte. É membro do Núcleo de Estudos em Psicologia Histórico-Cul-
par

tural da UFRN. É professora do curso de Psicologia e do curso de Pós-Graduação


Ed

em Psicologia Clínica e Psicoterapia Infantil da Universidade Potiguar - Laureate


International Universities, Natal, RN. É coordenadora do Serviço Integrado de
Psicologia da Universidade Potiguar, campus Roberto Freire, Natal/RN.
ão

Victor Augusto Cavaleiro Corrêa


Psicóloga Terapeuta Ocupacional, Doutor em Doenças Tropicais pela UFPA,
s

Mestre em Psicologia pela UFPA e Docente da Faculdade de Fisioterapia e Tera-


ver

pia Ocupacional (FFTO/UFPA) e do PPGP/UFPA. victorcavaleiro@gmail.com

Yana Wanzeller Granhen


Graduanda de Psicologia-UFPA. Atualmente é Estagiária do Ministério
Público do Estado do Pará.

Flávia Lemos - 21982.indd 520 28/02/2020 13:14:03


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Flávia Lemos - 21982.indd 521


E
ver di
sã to op
ara ra
rev CR
i são V
do
aut
or

28/02/2020 13:14:03
or
V
aut
CR
do

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


são
ra
i
rev
to
ara
ver di
op
E

SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipografia: Times New Roman 11,5 | 12 | 16 | 18 pt
Arial 6,5 | 8 | 9 pt
Papel: Pólen 80 g/m² (miolo)
Royal Supremo 250 g/m² (capa)

Flávia Lemos - 21982.indd 522 28/02/2020 13:14:03

Você também pode gostar