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PRODUÇÃO DA

DIFERENÇA,

or
SAÚDE COLETIVA

od V
aut
E FORMAÇÃO

R
dispositivos transdisciplinares
nas políticas públicas

o
aC
Coleção
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Transversalidade e Criação
visã
Ética, Estética e Política
Volume 12
itor
a re

F LÁVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS


DOLORES GALINDO
PEDRO PAULO GASTALHO DE BICALHO
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA
par

JOÃO PAULO PEREIRA BARROS


Ed

PATRÍCIA DO SOCORRO MAGALHÃES FRANCO DO ESPÍRITO SANTO


KARLA DALMASO DE SOUZA
LAUANY CÂMARA CHERMONT PINHEIRO
MARCELO MORAES MOREIRA
ão

BÁRBARA MORAES DE CARVALHO LEITE


ELEAZAR VENANCIO CARRIAS
s

RONILDA BORDÓ DE FREITAS GARCIA


ver

PAMELLA AUGUSTA PASSOS VENTURA PINA


MARCELO RIBEIRO DE MESQUITA
SHEYLA PEREIRA ROCHA
CRISTINA SIMONE DE SOUSA REIS
HELDER CÔRREA LUZ
DANIEL CASTRO SILVA
Organizadores
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Ed
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par aC
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Flávia Cristina Silveira Lemos
Dolores Galindo
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Aluísio Ferreira de Lima

or
João Paulo Pereira Barros
Patrícia do Socorro Magalhães Franco do Espírito Santo

od V
Karla Dalmaso de Souza

aut
Lauany Câmara Chermont Pinheiro
Marcelo Moraes Moreira

R
Bárbara Moraes de Carvalho Leite
Eleazar Venancio Carrias

o
Ronilda Bordó de Freitas Garcia
aC Pamella Augusta Passos Ventura Pina
Marcelo Ribeiro de Mesquita
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Sheyla Pereira Rocha


Cristina Simone de Sousa Reis
visã
Helder Côrrea Luz
Daniel Castro Silva
(Organizadores)
itor
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PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE


COLETIVA E FORMAÇÃO: dispositivos
transdisciplinares nas políticas públicas
par
Ed

Transversalidade e Criação - Ética, Estética e Política


Volume 12
s ão
ver

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem da Capa: Pixabay
Revisão: Analista de Escrita e Artes

or
od V
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

aut
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

R
P962

Produção da diferença, saúde coletiva e formação: dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas

o
/ Flávia Cristina Silveira Lemos, Dolores Galindo, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, Aluísio Ferreira de Lima,
João Paulo Pereira Barros, Patrícia do Socorro Magalhães Franco do Espírito Santo, Karla Dalmaso de Souza,
aC
Lauany Câmara Chermont Pinheiro, Marcelo Moraes Moreira, Bárbara Moraes de Carvalho Leite, Eleazar
Venancio Carrias, Ronilda Bordó de Freitas Garcia, Pamella Augusta Passos Ventura Pina, Marcelo Ribeiro
de Mesquita, Sheyla Pereira Rocha, Cristina Simone de Sousa Reis, Helder Côrrea Luz, Daniel Castro Silva

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(organizadores). – Curitiba : CRV, 2021.
720p. (Coleção: Transversalidade e Criação - Ética, Estética e Política. v. 12)
visã
Bibliografia
ISBN Coleção 978-85-444-1750-8
ISBN Volume Digital 978-65-5868-957-7
ISBN Volume Físico 978-65-5868-956-0
itor

DOI 10.24824/978655868956.0
a re

1. Educação 2. Formação de professores 3. Diversidade 4. Alfabetização 5. Abordagens didáticas I.


Lemos, Flávia C. S. org. II. Galindo, Dolores. org. III. Bicalho, Pedro P. G. de. org. IV. Lima, Aluísio F. de.
org. V. Barros, João P. P. org. VI. Santo, Patrícia do S. M. F. do E. org. VII. Souza, Karla D. de. org. VIII.
Pinheiro, Lauany C. C. org. IX. Moreira, Marcelo M. org. X. Leite, Bárbara M. de C. org. XI. Carrias, Eleazar
V. org. XII. Garcia, Ronilda B. de F. org. XIII. Pina, Pamella A. P. V. org. XIV. Mesquita, Marcelo R. de. org.
XV. Rocha, Sheyla P. org. XVI. Reis, Cristina S. de S. org. XVII. Luz, Helder C. org. XVIII. Silva, Daniel C.
par

org. XIX. Título XX. Transversalidade e Criação - Ética, Estética e Política. v. 12


Ed

CDU 37 CDD 370


Índice para catálogo sistemático
1. Educação 370
ão

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EM FORMATO DIGITAL.
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s
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2021
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)

or
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Fauston Negreiros (UFPI)

od V
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)

aut
Celso Conti (UFSCar) Helmuth Krüger (UCP)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)

R
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Marcelo Porto (UEG)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcia Alves Tassinari (USU)

o
Élsio José Corá (UFFS) Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
aC
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
Gloria Fariñas León (Universidade Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de La Havana – Cuba) Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)


Guillermo Arias Beatón (Universidade Virgínia Kastrup (UFRJ)
visã
de La Havana – Cuba)
Helmuth Krüger (UCP)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
itor

Josania Portela (UFPI)


Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
a re

Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)


Lourdes Helena da Silva (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
par

Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)


Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Ed

Rodrigo Pratte-Santos (UFES)


Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
ão

Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)


Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
s
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Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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“Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí


onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga.”
Gilles Deleuze
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Dedicamos este livro à sociedade que busca pensar e criar,


mesmo sob o fio da navalha em tempos em que saberes
universitários e políticas públicas são duramente atacados
por práticas neoliberais de governo das condutas.
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AGRADECIMENTOS
Gratidão é algo cada vez mais raro, nos dias atuais. Compromissos,
vínculos, responsabilidades conjuntas, construções coletivas e redes de

or
amparo parecem se dissolver como efeitos de processos de individualização,

od V
competição, quebra de laços sociais e privatismos variados. Nesta coletânea

aut
internacional, temos capítulos forjados à moda da resistência de grupos e
intelectuais, trabalhadores(as) que ousam lutar com a escrita, docência, exten-
são e a pesquisa, em um crucial tripé da formação universitária. Temos aqui

R
reunidos textos das seguintes universidades: UFPA, CUCSH (México), CUCS
(México), UFRA, UFAM, UFC, UFRJ, UFAC, UFMA, UFMT, UFRGS,

o
UNESP, UFMG, UFRB, UFBA, UFDPar, IFPA, UNIP, UNIPAR, UNINAS-
aC
SAU, UNAMA, UNOESTE, FACAP, UNIMEP, Estácio de Sá e UNICEUB.
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APRESENTAÇÃO
Este livro é uma coletânea internacional, formada por capítulos consti-
tuídos em níveis e camadas de aberturas em correlações diagramáticas, esca-

or
pando às classificações rápidas e reducionistas dos saberes cristalizados em

od V
disciplinas, teorias, métodos e técnicas. Visa-se operar uma radical transmu-

aut
tação da ordem discursiva e embaralhar os regimes de verdade forjados pelos
diferentes modos de produção dos dispositivos institucionais.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................... 13

or
A ESQUIZOANÁLISE COMO MÁQUINA DE GUERRA............................... 21

od V
Marcio José de Araújo Costa

aut
O RIZOMA COMO PERSPECTIVA PROBLEMATIZADORA NA

R
EPISTEMOLOGIA DA ARQUEOLOGIA........................................................ 31
Flávio Luiz de Castro Freitas
Arkley Marques Bandeira

o
aC
POR PROCESSO DE DESMEDICALIZAÇÃO ESCOLAR:
reflexões para novas possibilidades na sala de aula....................................... 43
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Fabiola Colombani
Alonso Bezerra de Carvalho
visã
Brunno C. Bonini Luengo

A PRODUÇÃO DAS SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS PELA


VISIBILIDADE NA SOCIEDADE EMPRESARIAL........................................ 61
itor

Flávia Cristina Silveira Lemos


Hélio Rebello Cardoso Júnior
a re

Dolores Galindo
Franco Farias da Cruz
Daiane Gasparetto da Silva

O CONCEITO DE TRANSDISCIPLINARIDADE E SUA APLICAÇÃO


par

NA TRÍPLICE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA SUL OCIDENTAL................... 73


Enock da Silva Pessoa
Ed

O USO DAS IMAGENS NAS NARRATIVAS EM TEMPOS DE


PANDEMIA DA COVID-19.............................................................................. 91
ão

Denise Machado Cardoso

DESDOBRAMENTOS E EXPERIÊNCIAS DO SEMINÁRIO


s

EDUCAÇÃO, ARTE E DIVERSIDADE........................................................ 123


ver

Renata Almeida
Carolline Septimio

CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA, RACISMOS E MÍDIAS


JORNALÍSTICAS PARAENSES.................................................................. 135
Lauany Câmara Chermont Pinheiro
Marlize Ruth Albuquerque Pacheco
André Benassuly Arruda
Maria Luiza Lemos Azevedo
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA E USO DE SUBSTÂNCIAS
PSICOATIVAS: estratégias biopolíticas e formas de resistência.................. 175
José de Arimatéia Rodrigues Reis
Pedro Paulo Freire Piani
Alcindo Antônio Ferla

or
Ataualpa Maciel Sampaio

od V
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA A PARTIR DOS ESTÁGIOS: desafios

aut
metodológicos e políticos para a instituição de trabalhadores....................... 223
Rodrigo Toledo

R
João Eduardo Coin de Carvalho

DESAFIOS NA FORMAÇÃO DOCENTE NO BRASIL: debates entre a

o
psicologia e a educação................................................................................. 233
Rafaele Habib Souza Aquime
aC
Fernanda Cristine dos Santos Bengio
Fernanda Teixeira de Barros Neta

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visã
A PSICOLOGIA EM DIÁLOGO COM O SUS NA ASSISTÊNCIA E
PREVENÇÃO AO ACIDENTE DE MOTOR DE
BARCO COM ESCALPELAMENTO............................................................ 249
Crissia Roberta Pontes Cruz
itor

Ana Carolina Araújo de Almeida Lins


a re

CLINICAL INTERVENTION FOR EMBODIED SYMPTOMS


BY DEPRESSION......................................................................................... 265
Adelma do Socorro Gonçalves Pimentel
Lorena Schalken de Andrade
par

Aide Esmeralda López Olivares


Lucivaldo da Silva Araújo
Ed

UM ESTUDO SOBRE A PSICOLOGIA NAS RESIDÊNCIAS


MULTIPROFISSIONAIS EM SAÚDE NO PARÁ:
ão

produções de sentido, resistências e transformações................................... 279


Gabriela Di Paula Dias Ribeiro
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
s

Márcio Mariath Belloc


ver

GRAVIDEZ DECORRENTE DE VIOLÊNCIA SEXUAL EM CRIANÇAS


E ADOLESCENTES: perfil dos casos notificados pelo setor saúde em
Belém, Pará.................................................................................................... 295
Milene Maria Xavier Veloso
Isabel Rosa Cabral
Beatriz Nayara Farias das Chagas
Maíra da Maria Pires Ferraz
QUEM SÃO AS CRIANÇAS INSTITUCIONALIZADAS? ESTUDO
SOBRE A POPULAÇÃO ACOLHIDA EM MARABÁ,
SUDESTE DO PARÁ.................................................................................... 315
Lúcia Cristina Cavalcante-da-Silva
Mayara Barbosa Sindeaux Lima

or
Normando José Queiroz Viana
Thuany Steffane Lima Martins

od V
Mariane Lopes da Paixão Costa

aut
ECOS NEOLIBERAIS E PUNITIVISMO JUVENIL..................................... 333

R
Valber Luiz Farias Sampaio
Cyntia Santos Rolim
Rafaele Habib Souza Aquime

o
aC
FORMAÇÃO PROFISSIONAL NO CÁRCERE: uma proposta em
educação de jovens e adultos privados de liberdade.................................... 345
Fernanda Nazaré da Luz Almeida
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Leandro Passarinho Reis Júnior


visã
Michele Torres dos Santos de Melo

JUVENTUDES E RESISTÊNCIAS: uma análise sobre conflitos


urbanos, políticas de morte e transdisciplinaridade....................................... 361
itor

Luizane Guedes Mateus


a re

Rovana Patrocinio Ribeiro

POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA: considerações para uma


práxis comprometida com a realidade brasileira............................................ 375
Rodrigo Toledo
par

João Eduardo Coin de Carvalho


Ed

O VIÉS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS QUE DESCREDENCIALIZA


FAMÍLIAS DE CRIANÇAS INSTITUCIONALIZADAS................................ 385
Áurea Gianna Azevedo Nobre
ão

Pedro Romão dos Santos Júnior

LOS DE A PIE: la ciudad vivida como movilidad asimétrica......................... 403


s

Bernardo Jiménez-Domínguez
ver

Rosa Margarita López Aguilar

CENTRO DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO:


implementação da política de educação inclusiva junto à rede
intersetorial no município de Maracanã - PA.................................................. 419
Robenilson Moura Barreto
Zureide do Socorro Ferreira Alves
Álvaro Pinto Palha Junior
“EU NÃO TENHO FORMAÇÃO PARA TRABALHAR COM ALUNOS
DESSE TIPO”: discursos de professores e as contribuições da
transdisciplinaridade para uma educação inclusiva....................................... 433
Carolline Septimio
Letícia Carneiro da Conceição

or
Vanessa Goes Denardi

od V
SUBJETIVIDADE POLÍTICA:

aut
quando novos sujeitos políticos emergem na cena....................................... 449
Vinicius Furlan

R
Emanuel Messias Aguiar de Castro

A TELA QUE ME SEDUZ NÃO PRECISA DE INTERPRETAÇÃO........... 465

o
Diana Coeli Paes de Moraes
aC
Bárbara Moraes de Carvalho Leite

A MICROPOLÍTICA E SUA RELAÇÃO COM O DESEJO EM

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FÉLIX GUATTARI......................................................................................... 481
visã
Thiago Tenório Pereira
Cristina Simone de Sousa Reis
Bárbara Moraes de Carvalho Leite
Pamella Augusta Passos Ventura Pina
itor
a re

PEDAGOGIA E PSICOLOGIA ATRAVESSADAS PELA DIFERENÇA:


o problema da medicalização......................................................................... 503
Rafael Coelho Rodrigues
Silvio Ricardo Munari Machado
par

O ESTADO BRASILEIRO E AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO


CONTEXTO NEOLIBERAL: o currículo multi e intercultural e suas
Ed

perspectivas e desafios.................................................................................. 525


Oberdan da Silva Medeiros
ão

AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA INFANTIL: proposta de atuação


em um contexto clínico................................................................................... 543
Carla de Cassia Carvalho Casado
s

Ícaro dos Santos Ferreira


ver

CONSELHO TUTELAR E O ESTATUTO DA CRIANÇA


E DO ADOLESCENTE................................................................................. 561
Ronilda Bordó de Freitas Garcia
Helder Côrrea Luz
Helena Carollyne da Silva Souza
Antônio Soares Júnior
José Augusto Lopes da Silva
Edilene Silva Tenório
ESTATUTO DO IDOSO, SAÚDE COLETIVA E A DEFESA DOS
DIREITOS DA PESSOA IDOSA................................................................... 573
Ronilda Bordó de Freitas Garcia
Helder Corrêa Luz
Helena Carollyne da Silva Souza

or
Antônio Soares Júnior
Pamella Augusta Passos Ventura Pina

od V
Cristina Simone de Sousa Reis

aut
PANÓPTICO, BIOPOLÍTICA E A NECROPOLÍTICA NA PANDEMIA

R
DO NOVO CORONAVÍRUS: o enxame viral............................................... 583
Flávia Cristina Silveira Lemos

o
Felipe Sampaio de Freitas
Dolores Galindo
aC
Jéssica Modinne de Souza e Silva
Fabiana de Lima e Silva
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O CURRÍCULO SOB A PERSPECTIVA DOS DOCENTES EM


visã
FORMAÇÃO NO PARFOR NO MUNICÍPIO DE MUANÁ-PA.................... 599
Luiz Miguel Galvão Queiroz
Paulo Sérgio de Almeida Corrêa
itor

Rafael da Silva Queiroz


a re

Terezinha Sirlei Ribeiro de Souza

PRÁTICAS DE EXTERMÍNIO E NARRATIVAS DE FAMILIARES


ATINGIDOS PELA VIOLÊNCIA: um olhar para a formação e atuação
da psicologia frente à violência...................................................................... 619
par

Luizane Guedes Mateus


Ed

O TRABALHO DE PESQUISA COM DOCUMENTOS EM


PSICOLOGIAS: memória e produção da diferença...................................... 635
Flávia Cristina Silveira Lemos
ão

Daiane Gasparetto da Silva


Adriana Elisa de Alencar Macedo
Bruno Jáy Mercês Lima
s

Antonino Alves da Silva


ver

Luis Wagner Dias Caldeira

DAS VICISSITUDES, LIMITAÇÕES E POSSIBILIDADES DE UMA


PESQUISA TEÓRICO-BIBLIOGRÁFICA: a reconstrução enquanto
conceito operador crítico................................................................................ 643
Aluísio Ferreira de Lima
José Alves de Souza Filho
O MAPA IMPOSSÍVEL: sobre o rigor do decalque e a
arte da cartografia.......................................................................................... 655
Thiago Cardassi Sanches
Márcio Alessandro Neman do Nascimento

or
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO EM TERRITORIALIDADES
URBANAS: deslocamentos decoloniais na pesquisa-inter(in)venção

od V
em psicologia................................................................................................. 665

aut
João Paulo Pereira Barros
Lara Brum de Calais

R
Dagualberto Barboza Silva
Carla Jéssica de Araújo Gomes

o
PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA E MATERIALISMO HISTÓRICO-
aC
DIALÉTICO: alguns elementos para o debate.............................................. 681
Robert Damasceno Rodrigues

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SOBRE OS ORGANIZADORES E AUTORES........................................... 701
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
A ESQUIZOANÁLISE COMO
MÁQUINA DE GUERRA

or
Marcio José de Araújo Costa

od V
aut
Estamos há pouco mais de 50 anos dos eventos de maio de 1968, período
este tão curto quanto intenso, que deixou profundas marcas em nossa Cultura
e História. Esse movimento traçou novos rumos para a ação política, para o

R
comportamento, para o pensamento e talvez até mesmo para os nossos sonhos e
desejos. Uma das frases que os estudantes parisienses pintavam nos muros era:

o
“Sejamos realistas: tentemos o impossível!” Neste breve capítulo tentaremos, ins-
aC
pirados pelas efemérides dos 50 anos do mês que marcou o mundo, falar de uma
teoria e prática forjada tendo por inspiração aquele movimento: a esquizoanálise.
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A teoria e prática intitulada “esquizoanálise”, lançada pelo filósofo Gilles


visã
Deleuze e pelo psicanalista e militante Félix Guattari em 1972, na obra O Anti-
-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1, e desdobrada em Mil Platôs: capitalismo
e esquizofrenia 2, assim como em diversas outras obras conjuntas ou solitárias de
Deleuze e Guattari, tem por objetivo principal analisar os discursos e práticas de
itor

uma sociedade, para apontar, de um lado, as propostas revolucionárias, transfor-


a re

madoras e potencializadoras dos modos de vida e, de outro lado, os discursos e


práticas fascistas e conservadoras, que produzem fechamento e despotencialização.
Fazer tal análise do social implica táticas específicas. O inimigo que se
almeja destruir é o fascismo, melhor dizendo, todas as formas de microfas-
par

cismos cotidianos que nos fazem amar o poder, ficar do lado do poder (FOU-
CAULT, 1991). A pergunta que anima a esquizoanálise é: por que desejamos
Ed

o poder? Por que desejamos nossa própria subjugação? (DELEUZE; GUAT-


TARI, 2006, 2013) Numa época como a nossa, em que o aparelho judiciário
é cada vez mais solicitado, na qual o ressentimento e a sede de vingança esti-
ão

mulam nosso clamor para que o poder estatal controle cada vez mais nossas
vidas – clamor esse diretamente proporcional à nossa falta de alternativas
s

de pensamento, nossa própria impotência cidadã –, deixar-se atravessar por


ver

essa pergunta é tornar o pensamento de novo possível. E é justamente isso


que nos interessa agora, indicar de que forma o pensamento pode nascer e
como encontrar conceitos para compreender nossa maneira de pensar, isto é,
descobrir as imagens de pensamento que nos sobrecodificam. Frente a tantos
discursos e práticas, como encontrar um critério de avaliação que nos permita
escolher um pensamento adequado à vida? Como orientar-se no turbilhão de
discursos díspares que pululam na vitrine pós-moderna das ideias? Como
22

encontrar enunciados que promovam pequenas ilhas de liberdade no mercado


das teorias prontas e dos pré-conceitos dominantes?
Frente a essas questões, nascidas do problema da necessidade de orien-
tar-se no pensamento, usaremos o conceito deleuze-guattariano de máquina
de guerra (DELEUZE; GUATTARI, 2012a) para encontrar respostas possí-
veis, conectando-o a outros conceitos importantes da filosofia de Deleuze e
Guattari, pois, como eles mesmos afirmaram, não existe conceito simples,

or
todo conceito é uma multiplicidade de limites imprecisos, remetendo sempre

od V
a outros conceitos (DELEUZE; GUATTARI, 1992).

aut
É comum dizermos, ainda que de forma velada, que o pensamento possui
uma forma necessária e absoluta, lógica e universalmente válida, mediante a qual,
por meio de conteúdos os mais diversos, conseguiríamos alcançar um conheci-

R
mento verdadeiro. Este postulado anima o pensamento Ocidental há alguns sécu-
los, pelo menos desde Aristóteles. Quando afirmamos, do alto de nossa certeza

o
racional, que o psicótico delira e que a forma correta de pensar é a neurótica, forma
aC
em que o pensamento segue uma linha lógica e gramaticalmente correta, com

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significações sociais estabilizadas, estamos, subrepticiamente, reafirmando esse
axioma filosófico pouco problematizado. Mais do que por conteúdos, estamos
reafirmando que o pensamento se caracteriza, antes de tudo, pelas suas caracterís-
visã
ticas formais; que existe um modelo do que seja pensar, uma forma verdadeira do
pensamento. Tal forma invalida todas as demais e se arvora em juíza para julgá-las.
A forma deste tipo de pensamento, o seu modelo, se origina na forma
itor

Estado. O Estado é, para nós, o modelo de organização por excelência, tornan-


a re

do-se o próprio modelo do que significa pensar. Como todo modelo, é estático,
servindo como critério para toda construção mental. Segundo Deleuze e Guattari
(2012a), a forma Estado possui duas cabeças: o mito e o discurso racional. Estas
cabeças remetem aos dois polos da soberania: de um lado, um Império do pen-
sar verdadeiro, a verdade como o Sol, que funda toda pretensão à verdade; de
par

outro, o diálogo de todos os seres racionais, que, em seus embates e discussões,


Ed

são capazes de fundamentar a verdade. De um lado, um Império que funda a


verdade; de outro, uma república de espíritos livres capazes de encontrar essa
verdade, uma república cujo príncipe, ou o fundamento, seria a própria Verdade.
ão

Essa distinção de formas políticas que se complementam constitui uma


imagem que recobre o nosso pensamento. Costumamos acreditar, com efeito,
que ideias como a discussão e o consenso são maneiras pelas quais, na dis-
s

puta verbal, usando todos da razão e não da violência, encontraríamos nosso


ver

potencial intrínseco de descobrir a verdade presente em nós mesmos. Existiria


uma verdade e esta evidência seria demonstrada pela própria ideia de Verdade,
pois, ao negar que a verdade existe, ainda sim teríamos a pretensão de que tal
afirmação fosse verdadeira. É como o argumento da verdade como fundamento
em Sto. Agostinho (2002), que influenciou o cogito cartesiano: se eu erro ou
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 23

me engano, e sei que me engano ou erro, é porque tenho em mim uma ideia,
ainda que vaga, de que existe uma verdade que está em mim e me julga, que me
alerta sobre o que posso, ou não, saber, sobre os erros e acertos do meu pensar.
Acabamos, com isso, por fundamentar a própria soberania política. Esta
ideia, de matriz platônica, anima todo empreendimento de fundação e funda-
mentação racional da soberania política, do Estado. Porém, antes de Platão,
segundo afirmam etnólogos e historiadores, essa forma-Estado no pensa-

or
mento, essa imagem do pensamento, tem dois representantes originários: o

od V
imperador, deus ou representante do deus, e os sacerdotes ou escribas, que

aut
interpretam os sinais da natureza para nos dizer que tudo significa Deus ou
os deuses (CLASTRES, 1982; DELEUZE; GUATTARI, 2010). Trata- se do

R
mecanismo da interpretação dos escribas e sacerdotes, esboço do pensamento
dialógico ou racional, e da fundação da verdade por um déspota, que diz o que

o
é a verdade. Enquanto o Imperador funda a verdade, como o significante do
Um, os sacerdotes interpretam todos os significantes da Lei para fundamentar
aC
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o significante do Mestre. Mito e logos, portanto; fundação e fundamentação;


ereção do significante despótico e interpretação de todos os significantes que
significam o significante central e fundador.
visã
Deste modo, numa soberania, elege-se sempre o novo sacerdote, aquele que
nos desvelará o significado do todo, o que encontra o modelo de funcionamento
da sociedade, dando-nos a possibilidade de nos orientarmos no pensamento,
na vida e na política. Durante a Cristandade, esse intérprete era a santa madre
itor

Igreja. Nos séculos XVIII e XIX, esse sábio foi o filósofo, aquele que por meio
a re

de uma análise de nosso conhecimento pode nos indicar o procedimento correto


para pensar. No início do séc. XX foi o sociólogo que desempenhou esse papel.
Na segunda metade do séc. XX, de certa maneira, o psicanalista fez-se novo
sacerdote, o que tem a chave para o desejo e o inscreve à Lei. Na contempora-
par

neidade, os agentes do Mercado, com seus marqueteiros, publicitários, coachs,


digital influencers, dentre outros, são os novos sacerdotes, que nos motivam à
Ed

produção e ao controle, com um sorriso cínico em seus rostos padronizados.


Deleuze chama esse modelo de pensar de imagem do pensamento. Ela é
uma imagem moral, metafísica, ortodoxa e racional. É um pensamento hierár-
ão

quico e hierarquizador, criando degraus para o conhecimento absoluto. Por isso,


é um pensamento representativo, isto é, tem do próprio conceito de pensar uma
s

imagem que seria o representante por excelência daquilo de que deveríamos


ver

nos aproximar (DELEUZE, 2006). Todavia, Deleuze enxerga uma outra forma
de pensar, um pensamento sem modelo ou imagem, um pensar como processo,
como afetação, como construção e produção de modos de vida. Este pensa-
mento sem imagem seria, por outro lado, ético, ontológico, pluralista e trágico
(MACHADO, 2009). Mas como se encontra esse pensamento sem imagem?
24

Como podemos nos subtrair ao Estado que nos impõe suas formas corretas de
pensar e agir e seus representantes da Lei e da Ordem, seus policiais intelectuais?
O que efetivamente permite que se ligue a Lei ou Verdade à república
de espíritos livres é uma violência insidiosa e molecular, toda uma produção
descontínua, fragmentária e afetiva, que ata milhares de pensamentos des-
contínuos à forma da verdade. A Lei do verdadeiro não se faz sem batalhas,
sem uma apropriação desse nível molecular por uma ideia molar. Porém a

or
produção molecular no pensamento, feita de variações de afetos e marcas dos

od V
encontros, é independente do recobrimento molar, representativo e estatal que

aut
se possa fazer dela (DELEUZE, 2016). Essa usina fervilhante de pensamentos
nos indica o que seria o pensamento sem imagem. O pensador desse tipo é o

R
nômade ou o pensador privado. Ele se opõe ao pensador de Estado, o professor
público, o pedagogo do pensamento, o sacerdote funcionário do poder estatal.

o
Chamamo-lo de pensador privado não porque ele seria um burguês fechado
em seu quarto com suas elucubrações íntimas. O pensador privado é, acima
aC

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de tudo, um pensador do fora. Pensar o fora implica não se fechar a uma
forma de interioridade. A interioridade é produzida em nós pela imagem do
pensamento, pela forma Estatal que interiorizamos. O fora é a conquista dos
visã
nômades, o deserto ou a estepe. O nômade cria não um aparelho de Estado,
mas sim uma máquina de guerra contra o aparelho de Estado.
Quando falamos de máquina de guerra, no entanto, não sugerimos que
a guerra seja a finalidade. A guerra não é o objetivo; o objetivo seria liberar
itor

o pensamento de todas as potências ou poderes que oprimem o pensamento,


a re

que o impede de se exercer e que querem impor uma maneira única e cor-
reta de pensar (DELEUZE; GUATTARI, 2012a). A máquina de guerra faz o
pensamento nascer. Não pensamos em virtude de uma faculdade do sujeito.
O pensamento não é natural, mas nasce em virtude de um encontro, surge de
par

encontros, é genético. Por isso, o pensar é um afeto, nascido de afecções: nasce


de um encontro e de um choque que nos força a pensar (DELEUZE, 2006).
Ed

As faculdades nascem de encontros, e não dizem respeito a uma unidade, mas


a uma diversidade fundamental. A imaginação, o entendimento, a memória,
a linguagem etc. não são naturais, mas produzidas em função de encontros.
ão

Conectam-se não na interioridade de um “eu penso”, mas na violência que


cada faculdade, ao se elevar ao máximo do que pode, comunica a uma outra
s

faculdade. Conseguir comunicar-se é uma vitória nascida do esforço de se


ver

fazer entender por uma outra diferença por meio da exterioridade das relações.
A semelhança é um produto de uma luta, uma construção, nascida de uma
multiplicidade diferencial fundamental. Não são os semelhantes que diferem,
mas sim as diferenças que se assemelham (DELEUZE, 2003). Uma faculdade
não nasce pronta, ela se produz no esforço da criação.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 25

Todo pensamento, por mais solitário que seja, já é uma multiplicidade,


dado que nasce da pluralidade que constitui o real. O próprio real não possui
uma unidade em si mesmo, mas é uma pluralidade que se ordena nos pró-
prios encontros, a depender das forças que dão direção aos objetos parciais
que preenchem a vida (DELEUZE; GUATTARI, 2010). A interpretação, na
máquina de guerra do pensamento, não se reduz a uma análise dos significantes
que significam a Lei como ordenação transcendente de tudo, mas decorre dos

or
usos e apropriações dos mesmos, das forças que subjugam as ideias e valores

od V
para dar sentido à vida. A interpretação, segundo a esquizoanálise, seria mais

aut
próxima da ideia da interpretação na música: um problema de uso, de varia-
ções de intensidade, de ritmo, de espera e precipitação (GUATTARI; ROL-
NIK, 2010). A Máquina de guerra como processo de pensamento é pluralista

R
a avaliativa. Pluralista porque tem muitas perspectivas, tão diferenciais quanto
as expressões possíveis de vida; avaliativa porque avalia o sentido dos valores

o
(DELEUZE, 2018). Por isso, podemos dizer que um pensamento máquina de
aC
guerra é funcional, funcionalista. Não se preocupa com os significados das
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coisas, já que não há nada atrás das mesmas, como uma verdade única a ser
encontrada. Não se preocupa também com a definição, pois uma definição é
apenas uma força hegemônica que deu nome a uma coisa em uma determinada
visã
época (NIETZSCHE, 1991, 1998). A máquina de guerra esquizoanalítica
se preocupa com o funcionamento. Como funciona isso? Com que peças?
Conectada com o que? Produzindo o que? São estes os problemas de uma
itor

máquina de guerra. Não se perguntar pelo que é, mas pelo como.


a re

Em virtude deste caráter pluralista, a máquina de guerra também não se fia


num modelo de homem ou humanidade. O modelo de homem ou humanidade
provém do aparelho de Estado e do pensamento que lhe é correlato. O Estado
sempre propõe e promove um tipo de raça ideal, um indivíduo a ser buscado,
um povo a ser trabalhado. A máquina de guerra também tem um povo, um
par

coletivo, uma população, mas este povo sempre falta (DELEUZE, 2013). O
Ed

povo que cria a máquina de guerra é sempre um povo oprimido. Assim como o
pensamento só nasce de encontros, da violência do acaso, a máquina de guerra
é a criação de um povo oprimido pelo acaso das lutas históricas. Por isso a
ão

máquina de guerra não é um modelo, mas um novo modo de vida nascida de


um devir, um devir-minoritário. Todo devir é minoritário, pois sai ou foge de
uma forma, um modelo (DELEUZE; GUATTARI, 2012b). O modelo é, como
s

dissemos, uma forma molar que recobre a produção molecular. Logo, não é por
ver

meio de um modelo de homem, ou de uma raça dominante, que pensamos, mas


invocando um povo por vir e nos filiando a um devir minoritário presente em
cada coletivo, mesmo presente em um único indivíduo. Esta raça minoritária,
impura, é bastarda e mestiça em virtude da dominação que sofre por parte de
algum poder, que lhe impõem um modelo (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
26

É nesse nível que a máquina de guerra promove a guerra, ainda que não seja
necessariamente violenta, contra o aparelho de Estado.
A essa altura, podemos encontrar os tipos personológicos ou personagens
conceituais que dizem respeito a cada uma das formas de pensar. O personagem
que a forma Estado impõe é, de um lado, o sacerdote ou escriba, aquele que
sabe a lei e nos a impõe, e o seu correlato, o indivíduo escravizado, o cidadão
disciplinado e docilizado, o sujeito uno e sintético, com seu senso comum e

or
bom senso, capaz de referir tudo a si, pois em si habita o Todo, o Imperador, o

od V
significante despótico, a Lei internalizada, a Verdade única. Por outro lado, o

aut
personagem conceitual da forma de pensamento máquina de guerra, que é um
pensamento sem imagem, é o nômade, o pensador privado, o experimentador,
o coletivo, mesmo quando se está absolutamente só, nunca fechado na forma

R
do eu, mas sim um revolucionário que busca criar formas de pensar e viver
que possam simular o desejo e o pensamento nascidos dos percursos que se

o
trilha. Quando Deleuze e Guattari falam do esquizofrênico, é preciso enten-
aC
der tal termo como a descrição de um personagem conceitual (DELEUZE;

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GUATTARI, 2010, 1992). Trata-se do esquizo, ou esquizo-revolucionário, que
promove uma máquina de guerra analítica e política a implodir toda “rede teó-
rico-comercial” – como dizia Foucault (2002, p. 14) a respeito da psicanálise.
visã
Os personagens conceituais remetem a um problema: os tipos de formas
de vida. Nietzsche, em Genealogia da moral, ao falar dos personagens nobres
e escravos, também remetia ao mesmo problema: os modos de vida. Talvez
itor

seja este, por sinal, o problema fundamental inerente a muitas questões de


a re

diversas filosofias, condicionando suas soluções, a tal ponto que Kant chegou
a afirmar que a questão central, que sintetizava todas as outras em sua filosofia,
era: o que é o homem?
A forma de vida presente nos sacerdotes ou escribas remete a uma forma
de vida de tipo paranoico. Paranoia, aqui, não é pensável como uma patolo-
par

gia, como se existisse uma forma normal de ser; a própria noção de normal
Ed

ou normalidade é do tipo estatal, pois é um conceito problemático, uma ideia


metafísica do tipo representativa. A paranoia, para a esquizoanálise, é um modo
de vida em que quer controlar a todo custo o devir, a mudança, a transformação.
ão

Frente ao imprevisto da vida, com seus jogos de força e inversão de valores,


se deseja fixar o real, que é produção incessante de desejo ou formas de vida,
a uma de suas expressões possíveis. Congelar o real é o que deseja o modo de
s

vida paranoico, pois teme-se que o novo possa despedaçá-lo. Por outro lado, o
ver

modo de vida esquizo-revolucionário remete a um desejo pelo novo, a um devir


minoritário, a um desejo pela criação. Criar quer o tipo revolucionário e que o
real se diferencie cada vez mais; liberar a vida deseja o seu devir-minoritário.
Existe, contudo, também um microfascismo presente nesse tipo esquizo-
-revolucionário, quando se vai rápido demais, desmanchando tudo, dissolvendo
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 27

formas de vida estratificadas que são suportes mínimos para o desejo. Quando
se dissolve tudo sem que nada se crie, ou quando a criação é absorvida somente
pelo movimento de destruição, corre-se o risco de cair numa linha de pura abo-
lição e morte (DELEUZE; GUATTARI, 2012c). O nazismo ou o fascismo não é
propriamente um desejo de conservação (este seria a paranoia e o totalitarismo),
mas um desejo de morte que quer abolir tudo, uma linha revolucionária de puro
vazio, um desejo maníaco pela destruição para supostamente criar tudo do nada.

or
Os microfascismos, nesse sentido, só produzem ainda mais endurecimento nos

od V
modos de vida, pois, depois do seu movimento de destruição, acaba por permitir

aut
que os estratos paranoicos se cristalizem ainda mais à nossa volta, fechando o
espaço para outros modos de vida mais potentes que querem se esboçar.

R
Em vista disso, podemos pensar sobre que critério temos para escolher
entre esses dois tipos de modos de vida, com suas respectivas formas de pen-

o
sar. Será que com esse pensamento pluralista não se recairia numa relativismo
de tipo pós-moderno, onde tudo é nada e nada é tudo, um niilismo tosco, uma
aC
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epistemologia frouxa e um pragmatismo cego? Deleuze não é um filósofo


pós-moderno nem a esquizoanálise navega nessa onda vazia de crítica e de
atitude política, de mera fragmentação teórica, ética e política. Existe nele
visã
um critério, que é tanto físico-ontológico quanto estético-lógico, bem como
ético-político. O critério para discernir os tipos de pensamento, permitindo
avaliar os tipos de modos de vida subjacentes, permitindo-nos uma escolha, é
um critério extramoral. A moral consiste nas expressões criadas em períodos e
itor

lugares para promover um tipo de vida dominante. Infelizmente, nem sempre


a re

o tipo de vida que se impõe é necessariamente o melhor, o mais potente, o que


faz a vida crescer por multiplicação e diferenciação. Como já dizia Nietzsche,
muitas vezes temos de proteger os fortes contra os fracos, pois o forte não
é o que tem o poder, mas o que se afirma, o que tem mais potência de agir e
par

pensar. O critério extramoral é justamente esse: que tipo de pensamento for-


talece a vida? O único critério que permite avaliar os modos de vida, sem que
Ed

ele mesmo seja avaliado por nada, é a própria vida (NIETZSCHE, 2005). A
vida que quer sempre mais vida, crescimento, multiplicação e diferenciação.
Um pensamento e modo de vida que nos enfraqueça, que destile a falta, o
ão

ressentimento, a culpa, deve ser descartado. Devemos, pois, privilegiar em


nosso pensamento, como disse Foucault (1991) a respeito da esquizoanálise,
s

os conceitos de alegria, produção, vida, conexão e não os conceitos negativos


ver

que tanto marcam o pensamento Ocidental, fortemente moldado pela forma


Estado, tais como a Lei, a falta, a castração, a morte etc. Encontrar um pen-
samento afirmativo e alegre, malgrado todos os adversários que nos querem
fracos, tristes e abatidos, é fazer do pensamento uma arma política, uma ins-
piração para a prática, e fazer da práxis um intensificador para o pensamento.
28

REFERÊNCIAS
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par
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s ão
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ver
Ed
s ão itor
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a re
visã R
od V
o aut
or
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O RIZOMA COMO PERSPECTIVA
PROBLEMATIZADORA NA
EPISTEMOLOGIA DA ARQUEOLOGIA

or
od V
Flávio Luiz de Castro Freitas

aut
Arkley Marques Bandeira

R
Breve estado da questão na epistemologia dos artefatos

o
A arqueologia se difere de outras áreas das ciências humanas por
aC
seus objetos de estudo, visto que a base da construção do conhecimento é
alicerçada na identificação e estudo dos sítios arqueológicos e dos materiais
neles presentes. Logo, a escavação dos sítios e a descoberta destes vestígios
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possuem importância crucial na práxis e na reflexão metodológica da


visã
disciplina (FUNARI, 2003).
Para a arqueologia, a cultura material evidenciada nos sítios arqueológicos
é categorizada como artefatos. O conceito de artefato, enquanto objeto de
itor

estudo, é parte essencial para a construção e interpretação do passado. James


Deetz (1977) concebe artefato como qualquer segmento do meio físico
a re

modificado por comportamentos culturalmente determinados, a exemplo da


transformação das matérias-primas em objetos por diferentes meios.
Os artefatos, portanto, constituem a base material do passado e
representam as produções humanas ao longo de suas existências. Por este
par

motivo, eles são essenciais para se compreender, inclusive, a história de


pensamento arqueológico, uma vez que a arqueologia vem se posicionando
Ed

teórica e metodologicamente a partir de seus diálogos internos e externos ao


seu campo disciplinar, como o fez e vem fazendo no estudo artefatual e as
interações daí advindas com a história, antropologia, sociologia e filosofia.
ão

Do ponto de vista da arqueologia os artefatos possuem diferentes


significados, que são atribuídos pelos próprios arqueólogos ou pelas pessoas que
s

os produziram. Logo, a agência dos artefatos deve ser buscada nas relações entre
ver

os componentes do sistema cultural ao qual ele está integrado e as diferentes


redes de interação. O artefato compreendido como cultura material foi ao longo
da construção da arqueologia um dos seus principais objetos de estudo, inclusive,
sendo determinante no seu amadurecimento teórico e metodológico.
A cultura material, enquanto objeto de estudo, é parte essencial da
ciência, no entanto, isso não implicou na sua inserção decisiva como fonte
de informação e conhecimento no discurso de diversas áreas do conhecimento,
32

Jean-Marie Pesez (1988) asseverou que uma das certidões de nascimento


do artefato compreendido como o segmento material dos povos advém da União
Soviética, quando Lênin criou em 1919, a Academia de História e Cultura Material.
Este fato denotou as principais características de sua gênese: uma emergência
tardia no campo das humanidades, a evidente associação com o materialismo
histórico e o marxismo e suas relações privilegiadas com a história e a arqueologia.
Nesta última, a cultura material encontrou seu terreno mais fértil, uma vez que

or
a virada epistemológica dada pela arqueologia nos primórdios do século XX,

od V
resultou, dentre outras coisas, da percepção de que os aspectos materiais das

aut
civilizações é um dos caminhos para a diferenciação e a diversidade cultural.
No entanto, apenas no Pós-Segunda Guerra Mundial surgiram os primeiros
marcos para o estudo dos artefatos, muitos deles advindos da historiografia

R
francesa influenciada pela escola dos Annales, criada por Marc Bloch e Lucien
Febvre. Ainda na década de 1960, uma influência marcante surgiu da abordagem

o
semiológica, que considerava o objeto como um signo e a cultura material
aC
como um sistema discursivo. Nas últimas duas décadas, um novo elemento foi

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introduzido, a exemplo das relações da cultura material e o corpo, as sensações,
a motricidade e o gesto técnico, alicerçados nos fundamentos de Marcel Mauss.
Destacam-se neste contexto algumas obras de referência, a exemplo de
visã
o Sistema dos objetos (1973), de Jean Baudrillard; Teoria dos objetos (1981),
de Abraham Moles; Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV
– XVIII (1995), de Fernand Braudel; bem como outros estudos, a exemplo
itor

de História da cultura material (1990), de Jean-Marie Pesez; Elementos para


a re

uma antropologia da tecnologia (1992), de Pierre Lemonnier e A inteligência


das técnicas (1994), de Lemonnier e Bruno Latour.
Estes autores situaram o estudo da cultura material em diversas
perspectivas, a exemplo do processo de apropriação do universo material
pelos grupos humanos; as relações sociais implicadas pela interação entre
par

os homens e o meio; as estruturas e os objetos físicos; as representações


Ed

coletivas que acompanham as práticas materiais e a cultura material como


um documento a ser atividade no estudo de um fenômeno social qualquer
(REDE, 2003), principalmente fortalecendo a perspectiva histórica e
ão

antropológica, descrevendo o papel das coisas materiais na sociedade moderna


e, sobretudo, valorizando a função da cultura material.
A este respeito, nenhuma área do conhecimento avançou tanto no estudo
s

dos artefatos como a arqueologia. O papel da disciplina foi fundamental para


ver

que os artefatos ganhassem o impulso necessário para se tornar uma das


principais fontes de compreensão do comportamento humano, em diferentes
escalas temporais. Esta forte identificação é explicada por Lima (2011), no
sentido de que a arqueologia, na maioria dos casos, não pode contar com
os atores sociais para construção do conhecimento. Neste sentido, ela é a
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 33

principal fonte de acesso ao passado da humanidade, quando não a única,


como ocorre no estudo da pré-história.
Shanks e Tilley (1987) defendem a visão de que os artefatos possuem uma
rede construída de significados. Como registro arqueológico, eles têm fronteiras
e limites, em se tratando de conteúdo e estrutura interna. Portanto, não é redutível
e nem deduzível a um código universal, visto que estão intimamente ligados a
práxis social e por meio desta, que ela surge como uma forma objetivada.

or
Conceitualmente, os artefatos são objetos móveis modificados pelos

od V
povos, como os utensílios líticos, artefatos cerâmicos, instrumentos de

aut
metal, objetos de vidro, além de uma infinidade de outras categorias. Alguns
arqueólogos ampliaram o significado do termo artefato, para incluir todos os
elementos de um assentamento ou da paisagem modificados pelo homem,

R
como furos, buracos de armazenagens, postes (RENFREW, BAHN, 1993).
No entanto, estes componentes são considerados mais como estruturas

o
arqueológicas, visto que, em essência, artefatos não portáteis.
aC
Para Lucia Van Velthem (2012), os artefatos e objetos podem ser únicos,
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podem ser feitos em série, agradar ou desagradar, ser guardados ou descartados.


Produzida, utilizada, trocada, emprestada, vendida, contemplada, desprezada,
transformada, a cultura material também é estudada. Podem estar em plena
visã
atividade ou não mais funcionar, tornando-se, assim, objetos usados, ultrapassados,
sujos, estragados, musealisados que se transformam em fragmentos, em traços.
Apesar disso, ao longo da história da arqueologia a cultura material sempre
itor

foi abordada de forma bastante limitada. Inicialmente, a ênfase era apenas na


a re

construção de seriações para datações relativas e classificação tipológica dos


artefatos. Com o surgimento da Arqueologia Processual, as variações espaço-
temporais dos artefatos foram compreendidas com uma evolução constante para
adaptação ao meio. Neste sentido, foram criados esquemas classificatórios nos
moldes da taxinomia das ciências biológicas, a partir da análise de recorrências
par

e especificidades de uma série de atributos. Atualmente, os artefatos carregam


Ed

consigo uma rede de significados e o próprio processo classificatório é subjetivo


e depende dos critérios do classificador (SHANKS; TILLEY, 1987).
Neste contexto, é papel da arqueologia compreender os processos
ão

de categorização humana para ascender as mudanças ocorridas conjuntos


artefatuais ao longo do tempo. Estes conjuntos, segundo Hodder (1982),
referem-se aos artefatos, sistemas de campo, arquitetura dos templos ou
s

qualquer outro registro arqueológico que podem ser interpretados como sendo
ver

o resultado de processos produtivos humanos.


Logo, se os artefatos compõem um destes processos produtivos,
eles estruturam-se em relação a uma totalidade social específica, sendo
historicamente e espacialmente constituída. No entanto, ascender aos processos
mentais e imateriais presentes na materialidade das coisas concretas ainda é
34

um desafio para a arqueologia, pois ao mesmo tempo que ela é um objeto


material, também é constituída de valores e significações que trazem uma
rede de referências cruzadas (SHANKS; TILLEY, 1987).
Cabe à arqueologia perceber a interrelação dos significados materiais em
meio a intersubjetividade das pessoas e das relações sociais. Lembrando que a
produção dos artefatos, em qualquer contexto não é um ato isolado, mas está
sempre associada a um contexto, ou conjunto ou a uma tradição.

or
Este novo olhar vem superando o tratamento funcionalista e determinista

od V
no estudo artefatual, considerando-os como texto passível de ser lido e

aut
interpretado. Além disso, as construções materiais trazem consigo princípios
organizacionais mentais que estruturam o modo de fazer essencialmente
humano e dão pistas sobre o passado.

R
Para Shanks e Tilley (1987), os artefatos devem ser considerados
como uma produção social, ao invés de uma criação individual. Eles

o
podem ser concebidos como uma forma de comunicação ou mesma uma
aC
forma de “escrita”, visto que estão estruturados por significações. Eles

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são polissêmicos, ou seja, tratam-se de sistemas abertos de significantes e
significados e metacríticos. Logo, os seus significantes e significados não
podem ser esgotados.
visã
Outro campo que vem avançando na arqueologia refere-se aos estudos da
técnica a de da tecnologia envolvidos na produção artefatual, especialmente
àqueles influenciados pela tradição etnológica e sociológica francesa,
itor

desenvolvida nos seus primórdios por pensadores que extrapolaram a barreira


a re

de suas áreas de atuação e influenciaram as ciências humanas e sociais, inclusive


a Arqueologia, como Emilé Durkheim, Marcel Mauss e Lévis-Strauss.
Sob esta perspectiva, entende-se que os artefatos estão impregnados de
significação, pois eles aparecem como o equivalente das escolhas que cada
sociedade parece fazer entre as opções possíveis. Dessa forma, as técnicas
par

mais simples de qualquer sociedade se revestem de um caráter de sistema,


Ed

um todo estruturado, analisável em termo de um sistema mais geral (LÉVIS-


STRAUSS, 1993, 2003). Sendo assim, todos os testemunhos arqueológicos
devem ser criteriosamente observados e descritos, devendo ser estudados em
ão

si mesmos e também em relação ao seu conjunto (LÉVIS-STRAUSS, 2003),


fornecendo dados empíricos para as inferências, com base em dados reais.
Tal abordagem auxilia no reconhecimento acerca dos aspectos
s

relacionados à técnica e à tecnologia, às inter-relações com a realidade social


ver

dos povos do passado, na compreensão da dimensão sistêmica e os diferentes


significados e na construção da noção de sistema tecnológico (SILVA, 2000).
Diante destas questões, a arqueologia vem apontando para uma séria de
reflexões sobre a epistemologia dos artefatos e a sua importância na construção
do conhecimento.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 35

O rizoma enquanto conceito e método

Naquilo que tange precisamente ao conceito de “rizoma”, ele está


localizado no projeto denominado de “capitalismo e esquizofrenia”, cujo
primeiro volume é o Anti-Édipo de 1972 e o segundo volume é Mil platôs de 1980.
A primeira parte do projeto capitalismo e esquizofrenia diz respeito à teoria do
desejo presente em O Anti-Édipo. A teoria do desejo busca investigar as possíveis

or
relações que existem entre o desejo e o social, bem como de que maneira o

od V
desejo é capaz de desejar sua própria repressão. A tese para desenvolver essa

aut
investigação propõe que o inconsciente é uma usina produtora de conexões.
A segunda parte desse projeto trata da teoria das multiplicidades, a qual está
publicada no texto de Mil platôs de 1980.

R
Naquilo que tange à aparição explicita e não apenas latente do conceito de
rizoma, ela aconteça mais precisamente num livro de 1975, cujo título é Kafka: por

o
uma literatura menor. Nesse trabalho de 1975, Deleuze e Guattari postulam que o
aC
desejo é processo e procedimento à medida em que constituí máquinas políticas
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e experimentais. Para tanto, o ponto de partida consiste em conceber a obra de


Kafka como um rizoma, cujo traço marcante é o princípio das entradas múltiplas,
o qual preconiza que incialmente é possível entrar por qualquer parte da obra,
visã
visto que nenhuma entrada exerce privilégio sobre a outra. O passo seguinte
busca estabelecer as conexões entre a entrada escolhida e os outros pontos
existentes, sem deixar de destacar os caminhos tomados para atingir às conexões,
itor

descrevendo o mapa do rizoma durante o efetivo exercício dessa busca.


a re

Semelhante concepção do rizoma, por meio do princípio das entradas


múltiplas, permite que em 1977 Deleuze e Guattari elaborem o texto intitulado
de Rizoma, o qual, em seguida será incorporado aos Mil platôs. Nesse texto, o
rizoma é imagem do pensamento e plano de consistência. Enquanto imagem do
pensamento o rizoma é o conjunto de coordenadas que orientam o pensamento
par

no sentido do exercício efetivo das multiplicidades. Já enquanto plano de


Ed

consistência, o rizoma atua como conjunto de movimentos capazes de construir


heterogeneidades por meio de princípios específicos.
Com isso, no contexto do trabalho de 1977, o rizoma surge condição para a
ão

construção e para o efetivo exercício da teoria das multiplicidades, ou seja, não


há transcendências (Deus, Estado, partido político, família, um “eu”) a serem
trazidas para o pensamento, ele funciona a partir de sua própria necessidade
s

de aumento de potência e de alegria, todas decorrentes do ato da criação.


ver

Nesse trabalho, o rizoma surge como terceira imagem-livro, em oposição


à imagem raiz e à imagem sistema radícula. Sendo assim, para Deleuze e
Guattari, o rizoma funciona de acordo com os seguintes princípios: 1 –
conexão; 2 – heterogeneidade; 3 – multiplicidade; 4 – princípio de ruptura
a-significante; 5 – cartografia; 6 – decalcomania.
36

Em relação aos princípios 1 e 2 (conexão e heterogeneidade), eles


preconizam que cada ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e
deve sê-lo. O rizoma é composto pela conexão entre cadeias semióticas e modos
de codificação muito diversos, são cadeias biológicas, políticas e econômicas,
que colocam em jogo regimes de signos e estatutos de estados de coisas.
Um rizoma conecta cadeias semióticas, organizações de poder e ocorrências
que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como

or
um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também

od V
perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem

aut
universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias,
de línguas especiais. Um método de tipo rizoma é obrigado a analisar a linguagem
efetuando um descentramento sobre outras dimensões e outros registros.

R
O princípio da multiplicidade postula que o rizoma não possui nem
sujeito, nem objeto, mas apenas dimensões que à medida em que crescem

o
por conexão mudam de natureza, pois cada dimensão (cadeia semiótica e atos
aC
que compõe a cadeia semiótica) é diferente da outra em respeito ao princípio

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da conexão e da heterogeneidade.
Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa
multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela
visã
aumenta suas conexões. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha
abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam
de natureza ao se conectarem às outras.
itor

O plano de consistência é o fora de todas as multiplicidades. A linha de


a re

fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas


que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão
suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha; a
possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo
plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais forem suas dimensões.
par

Em se tratando do quarto princípio, ou da ruptura a-significante, estabelece


Ed

que há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa
linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras. A linha de fuga compõe o rizoma, mas é
ão

resultado conexão que conduz à uma mudança de natureza do próprio rizoma.


Por sua vez, os princípios da cartografia e do decalque se propõe a fazer
o mapa e não o decalque, pois o mapa é uma experimentação inteiramente
s

ancorada no real. O mapa não produz nada, mas constrói tudo, inclusive
ver

o inconsciente. O mapa possui múltiplas entradas e o decalque é sempre


projetado sobre o mapa, o qual é construído por meio das conexões
(composições) estabelecidas pelas cadeias semióticas.
O mapa é aberto (princípio das múltiplas entradas), é conectável em
todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 37

modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a


montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo,
uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra
de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Um mapa
sempre tem algo a ver com “performance” (agenciamentos maquínicos de
desejo e agenciamentos coletivos de enunciação) e não com a competência.
As pulsões e objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo genético, nem

or
posições numa estrutura profunda, são opções políticas para problemas, entradas e

od V
saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda

aut
força de seu desejo, o qual se move por rizoma. O rizoma funciona por meio
de impulsões exteriores e produtivas. Na verdade, o rizoma se move por
impasses, pois dele decorrem linhas de fuga e novas conexões heterogêneas,

R
que terminam por modificar o próprio rizoma. Então, o pré-requisito para
que haja uma movimentação e transformação no rizoma, mediante uma nova

o
conexão, é o impasse.
aC
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Por uma rizomática dos artefatos

Uma problematização rizomática dos artefatos necessita voltar sua


visã
atenção para a imagem do pensamento que direciona a discussão acerca dos
mesmos e para as cadeias semióticas que estão detidas em representações que
abordem a discussão acerca dos artefatos desconsiderando as multiplicidades
itor

constitutivas dos mesmos.


a re

Nesse sentido, Lemonnier (1986) o complexo de técnicas usado em uma


sociedade também pode ser considerado um sistema, que ocupa muitos níveis
e toma muitas formas, conscientes e inconscientes. Os instrumentos incluem
conceitos, representações, símbolos e outros instrumentos intelectuais, como
par

também as organizações envolvidas. Mudanças nas técnicas muitas vezes


proporcionam ideias para as mudanças sociais em duas vias em constante simbiose
Ed

No processo tecnológico dos artefatos é ativada uma sequência de


comportamentos que resulta em escolhas técnicas. Em períodos de estabilidade
tecnológica os povos são inconscientes destas escolhas e, simplesmente,
ão

seguem as receitas. Ao passo que em períodos de experimentação as pessoas


tornam-se sensíveis para as ações que poderão ser tomadas e as consequências
destas no processo produtivo (SCHIFFER, SKIBO, 1987).
s

A investigação dos elementos de um sistema tecnológico para produção


ver

artefatual deve superar a dicotomia estilo-função, atestada pelos aspectos


utilitários (tecno-função), sociais (sócio função) e ideológicos (ideo-função)
para se buscar uma integração desses três aspectos, pois como afirmou
Lemonnier (1986) não é a natureza e sim a cultura que se constitui como a
principal refreadora da técnica.
38

Nesta perspectiva, a cadeia semiótica constituída por conceitos, repre-


sentações, símbolos e outros instrumentos intelectuais, nada mais é do que
um processo de heterogênese rizomática que funciona como a constituição
de um mapa e não propriamente uma cultura. Um mapa que é capaz de apre-
sentar e construir as desobstruções de ordem micropolítica que um grupo de
artesões esteja enfrentando.
Desse modo, o papel do artesão é crucial em conduzir todo o processo

or
produtivo rizomático, reunindo conhecimento tradicional, influências exte-

od V
riores, poder de decisão, experimentação, repetição, bem como as motivações

aut
relacionadas com as questões de para que fazer e como fazer, pois como ressal-
tou Van Der Leeuw (1993), as escolhas, mais que os materiais e instrumentos
são cruciais na determinação da natureza e forma dos produtos.

R
Técnicas não podem ser usadas isoladamente, pois devem ser encara-
das como uma arena de mediação entre o que é materialmente possível ou

o
impossível, em certos aspectos de organização social. Técnicas não podem
aC
ser estudadas em termos estáticos, mas como um lócus de transformação em

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


uma relação dinâmica entre as forças sociais de produção e suas representa-
ções coletivas e por outro lado, pelas leis da matéria e energia que formam
o pano de fundo para o comportamento social (VAN DER LEEUW, 1993).
visã
Isso nos conduz precisamente ao revezamento e transformação entre as
formas socias pelos artesãos. Tamanha micropolítica se move na direção da
solução de impasses e eventualmente na produção de um delírio-saúde de
itor

grupo expresso e exteriorizado não apenas nos objetos, mas na gestualidade


a re

técnica, acompanhada pelas intensidades próximas de uma arte bruta criadora.


Para Lemonnier (1992), a tecnologia para produção artefatual é uma
expressão material das atividades culturais de uma sociedade, o meio que
permite que os grupos sociais ajam sobre a matéria, com vistas a suprir
suas necessidades, portanto, um sistema tecnológico deve ser discutido em
par

três níveis distintos:


Ed

• Das técnicas em si, que são entendidas como uma ação humana
efetiva levada adiante a partir da inter-relação de elementos como
ão

matéria, gestos, energia, objetos e conhecimentos, ou seja, uma


cadeia semiótica rizomática;
• Das diversas técnicas ou conjuntos técnicos desenvolvidos por
s

uma sociedade, que podem se influenciar mutuamente e que cons-


ver

tituem o sistema tecnológico propriamente dito. O conjunto téc-


nico compreende a inter-relação de técnicas que compartilham os
mesmos comportamentos e modos de ação sobre a matéria e que
estão subordinadas aos mesmos princípios mecânicos, físicos ou
químicos gerais;
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 39

• Do sistema tecnológico em sua inter-relação com outros fenôme-


nos culturais.

Lemonnier (1986) também propõe olhar as técnicas em seus próprios


termos, a partir de uma abordagem efetivamente complementar e indica que
o conceito fundamental para essa abordagem é o de cadeia operatória. Nesta
perspectiva, a cadeia operatória é uma série de operações que transforma uma

or
substância, a exemplo da matéria-prima, em um produto manufaturado, que

od V
envolvem o próprio corpo.

aut
É importante destacar que em todas as sequências culturais escolhas
foram feitas em consonância com o contexto natural, social e simbólico de
grupos humanos. Para Schiffer e Skibo (1987) as escolhas técnicas determinam

R
as propriedades formais ou os atributos dos artefatos.
Por sua vez, as propriedades formais afetam as características das per-

o
formances e das próprias cadeias semióticas, ou seja, a capacidade compor-
aC
tamental que um artefato deve possuir com vistas a partilhar suas funções em
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uma atividade específica. Na ausência de rupturas no modo de conceber um


artefato, outras escolhas técnicas podem compensar para a característica do
desempenho, compondo, assim, uma verdadeira máquina desejante.
visã
Logo, as escolhas técnicas constituem-se das muitas opções, físicas e/ou
sociais, na qual a criatividade micropolítica dos artesãos deve operar. Essas
escolhas são feitas pelos grupos sociais de acordo com as estratégias sociais
itor

conscientes e inconscientes pelo revezamento a-significante presentes no corpo


a re

social. Em outros termos, se constrói para escapar de um impasse prático e


nunca para significar.
Neste contexto, a caracterização de um sistema tecnológico deve começar
pela descrição e análise das cadeias operatórias a partir das quais os objetos
são produzidos. As cadeias operatórias são compostas por um determinado
par

número de etapas sequencialmente ordenadas e constituídas por diferentes


Ed

elementos e ações que implicam em um determinado resultado (SILVA, 2000).


Em outras palavras, essas etapas também podem ser alcançadas pelo estudo da
sequência dos gestos técnicos e pelas escolhas técnicas feitas pelos artesãos,
ão

compondo mapas rizomáticos de suas existências.


Uma escolha técnica pode afetar as características de desempenho em
muitas atividades ao longo da cadeia operatória do artefato, vindo a apresen-
s

tar m exercício rizomático, efeito das escolhas técnicas nas características de


ver

desempenho, mediado pelas propriedades formais impõe restrições tecno-


lógicas. Os efeitos específicos das escolhas técnicas em relação às proprie-
dades formais e das propriedades formais em relação às características de
desempenho na cadeia operatória de um artefato são descritos pelo princípio
denominado de correlatos (SCHIFFER, SKIBO, 1997).
40

Considerações finais

É oportuno retomarmos nosso objetivo geral: apresentar a noção de


rizoma, tal qual foi concebida por Gilles Deleuze e Félix Guattari, enquanto
uma ferramenta problematizadora da epistemologia dos artefatos. Nosso
percurso tratou desde o estado da questão na epistemologia dos artefatos, até
explicitarmos um vetor para a problematização da epistemologia dos artefatos

or
por meio do conceito de rizoma.

od V
Semelhante vetor foi a posição de Lemonnier, a qual postulava a

aut
discussão do sistema tecnológico artefatual em três dimensões distintas e
complementares: técnicas, inter-relação entre as técnicas e a relação entre
as técnicas com outros fenômenos da ordem do artifício. Esse entendimento

R
permite a passagem do decalque para o mapa ao relacionar cadeias semióticas
heterogêneas com o fito de mostrar a dinâmica da produção de artefatos.

o
Essa dinâmica pode ser considerada o exercício da conexão entre cadeias
aC

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semióticas e modos de codificação muito diversos, são cadeias biológicas,
políticas e econômicas, que colocam em jogo regimes de signos e estatutos de
estados de coisas. Portanto, a concepção de rizoma pode de alguma maneira
contribuir para problematizar o conceito e a dinâmica da produção de artefatos
visã
na epistemologia da arqueologia.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 41

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POR PROCESSO DE
DESMEDICALIZAÇÃO
ESCOLAR: reflexões para novas

or
possibilidades na sala de aula

od V
aut
Fabiola Colombani
Alonso Bezerra de Carvalho

R
Brunno C. Bonini Luengo

o
Introdução
aC
A sociedade contemporânea está envolta por problemas e desafios cole-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tivos, sociais, políticos, econômicos, educacionais que atingem e instigam as


instituições, entre elas a escola, a darem uma reposta, sobretudo diante das
visã
desigualdades e indiferenças que habitam o nosso cotidiano. No caso específico
do sistema capitalista, ao qual estamos submetidos, a necessidade de consumo
e produção, a normatização dos desejos e das atitudes desqualificam aquele
itor

que se comporta de maneira diferente diante do que está posto, instituído e


a re

pretendido. Nessa lógica invertida, o diferente, que inclui também aquele que
sofre os efeitos da desigualdade social, passa a ser individualizado, ou se pre-
ferirmos, desindividualizado e invisibilizado, tendo como consequência a sua
exclusão dos bens e direitos que deveriam ser comuns e usufruídos por todos.
par

Nesse aspecto, geralmente o que é considerado anormal e diferente é muitas


vezes explicado e reduzido a uma perspectiva que se centra no corpo biológico,
Ed

isto é, fundada em um saber que endossa ideias e práticas que legitimam os dita-
mes da ciência moderna. É como se houvesse genes que comandassem compor-
tamentos tão complexos e considerados desviantes como aqueles que conduzem
ão

à agressividade, à violência, à delinquência, ao desinteresse na aprendizagem,


etc. A consequência disso é um processo de naturalização dos diagnósticos e
das medidas que são tomadas para normatizar e controlar aquilo que está “fora”
s

da normalidade. Em outras palavras, aquelas pessoas que se diferenciam por


ver

seu posicionamento questionador ou por não seguirem as normas impostas


socialmente são segregadas ou olhadas com as lentes do preconceito devido ao
incômodo que causam. É, sobretudo, no início do século XX, com o processo
de higienização e eugenia social, que novas estratégias foram construídas e
cada vez mais se adotaram medidas simbólicas e concretas que pudessem con-
trolar aqueles que causavam algum tipo de desconforto e desordem, ou seja,
a atenção foi voltada aos que não se adaptavam às regras pré-estabelecidas e
44

impostas por diversas esferas sociais, entre elas: a educação e a saúde. Um dos
resultados dessas escolhas e práticas é a lógica medicalizante, que se estendeu
e se implantou na sociedade, com consequências profundas até os dias atuais,
merecendo, portanto, reflexões não apenas para compreender o fenômeno, mas,
sobretudo, para apontar alternativas que a enfrente e a supere. Deste modo, o
presente capítulo se organiza, em um primeiro momento, por expor a medicali-
zação, sobretudo, na escola; em seguida, apresentamos as críticas que a ele são

or
feitas por teóricos consagrados, tais como Foucault e Ivan Illich, entre outros;

od V
por fim, discorrermos acerca de possíveis saídas, no sentido de pensar o que

aut
seria uma educação em uma sociedade desmedicalizada.

A medicalização escolar: o que é?


R
É na escola onde, atualmente, o processo de medicalização se mostra

o
bastante forte, embora no setor da saúde ele se apresenta de maneira evi-
aC

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dente, especialmente pelos interesses econômicos e comerciais defendidos
pela indústria farmacêutica. Assim, educação e saúde parecem estar sempre
em proximidade quando trata-se dos “problemas” escolares ou dos escolares,
visã
sobretudo de comportamento e aprendizagem, a ponto de transformarem tais
questões em pautas de saúde pública, biologizando uma realidade que deveria
ser pedagógica. Na escola, esse processo de biologização e medicalização do
diferente foca as causas do fracasso escolar na criança, o que desvia, segundo
itor

Collares e Moysés (1985, p. 197), “[...] uma discussão político-pedagógica para


a re

causas e soluções pretensamente médicas, portanto inacessíveis à educação”.


Neste contexto, anfetaminas, como o Metilfenidato, que se apresentam
com os nomes comerciais de Ritalina® e Concerta®, têm sido prescritas como
medicamentos “auxiliadores” para potencializar a atenção e o desempenho
par

escolar. Como dizem Eidt e Tuleski (2007, p. 230),


Ed

as medicações muitas vezes são utilizadas como mais um instrumento


de modelação subjetiva, de formatação de padrões de normalidade; são
as tentativas de utilização das medicações para constituir um sujeito sem
ão

conflitos, sem angústias, sem limitações.

Ao haver esse deslocamento o caminho é sempre o mesmo, o aluno é


s

patologizado e sua manifestação vira alvo a ser “cuidado”, o que acarreta na


ver

medicalização; pois centra-se o problema no aluno que enquanto corpo bioló-


gico representa de forma reducionista, um organismo individual e orgânico. Isso
traz como uma das consequências, um crescente número de encaminhamentos
de crianças e adolescentes aos profissionais da saúde, preponderantemente
médicos, todos em busca de soluções rápidas e instantâneas fora da escola,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 45

com a ajuda desses profissionais que não participam do ambiente escolar e que
nada conhecem sobre a realidade educacional em questão. Enfim,

a escola industrial é naturalizada e as crianças que não se adaptam a ela


são tratadas como doentes. Este processo de escolarização é inerente a um
processo de colonização, e agora, no limite, proponente a este processo de
medicalização da infância e da vida. Antes as crianças que reagiam apa-

or
nhavam, eram punidas com a palmatória, com puxão de orelha, tapinha,
ou até ajoelhando no milho. Agora, os “desobedientes”, “desatentos” ou

od V
“desconcentrados”, aqueles que insistem em resistir e rejeitar esta escola

aut
como a forma natural de aprender e viver o mundo, são envenenados com
o cloridrato de metilfenidato, substância presente em medicamentos como

R
Concerta e Ritalina (PLAPLER, 2020).

Travestido de prevenção e de um suposto cuidado adulto, esse modelo

o
médico aplicado à educação praticamente determina e prediz o destino, o existir
aC
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e a identidade subjetiva da criança, especialmente a partir de diagnósticos precoces


e de uma vigilância policialesca. Estigmatizando-a e tornando fixo o que é provi-
sório, desconsidera completamente que ela se transforma, evolui, modifica-se, ou
visã
seja, uma dificuldade passageira passa a ser a sua identificação para todo o sempre.
Esses profissionais outros, que não da educação, dão credibilidade cien-
tífica às queixas escolares dos professores, transformando-as em diagnóstico,
mesmo que no conteúdo desses relatos contenham causas sociais, culturais,
itor

ou dificuldades imediatas, superficiais, individualizadas e que ao decorrer do


a re

desenvolvimento poderiam se tornar superáveis com compreensão e apoio.


Quando essas queixas escolares chegam ao consultório médico de forma iso-
lada, elas têm grande chance de se tornarem uma justificativa para o uso de
psicotrópicos. Um médico com limites na formação tem um olhar limitante
par

que usa somente da tendência organicista de sua profissão e desconsidera o


entorno da criança ou do jovem que munido de uma queixa escolar aguarda um
Ed

veredito, pode em apenas uma avaliação interromper processos emocionais,


de desenvolvimento e expressões de criatividade. “Seria bom estudar o papel
dos médicos na medicalização, quer dizer, na naturalização das diferenças
ão

sociais, dos estigmas sociais [...]” (NUNES, 2019, p. 94). Como também,
do papel dos estudantes de medicina que precisam precocemente entrar em
contato com diversas situações a respeito da queixa escolar, para que em sua
s

formação eles compreendam que diagnósticos que trazem como “pano de


ver

fundo” questões sociais, necessitam impreterivelmente um olhar cuidadoso


que precisa estar apoiado no conhecimento interdisciplinar.
Essa é a única maneira de evitar o risco de que as queixas relatadas não se
tornem instrumentos de avaliação, de julgamento e, como dissemos, de sentença,
o que tragicamente contribui para um ambiente escolar hostilizador e violento
46

que rotula o aluno, quando na verdade poderia ser um ambiente para o cultivo de
parcerias altruístas, amigáveis, dialogais, pautadas pela cooperação e o respeito.

Num contexto escolar de consistente assimetria comunicacional, é alar-


mante o número de crianças diagnosticadas e submetidas ao tratamento
medicamentoso que se tornou uma norma reclamada pela escola, ela pró-
pria confrontada com alunos com quem não sabe o que fazer. Ignorando

or
que as crianças e os adolescentes diferem quanto à sua capacidade de
atenção, são mais ou menos agitados, e acolherem e integrarem esses dados

od V
na sua prática pedagógica, enriquecendo a resposta educativa, eles vão

aut
servir para legitimar a ausência dessa resposta, remetendo a escola para
fora de si essa sua responsabilidade primordial (NUNES, 219, p. 271).

R
Essa visão médica, biologizante e geneticista da e na educação deixa
nebuloso o verdadeiro motivo que leva o aluno a um baixo aproveitamento

o
escolar. O fracasso escolar deveria ser visto, segundo Collares e Moysés
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(1985, p. 8) como “[...] resultado de complexo jogo de fatores educacionais,
sociais, culturais e econômicos, que refletem a política governamental para o
setor social”. Ao desconsiderar estes fatores, a criança passa pelo crivo pre-
visã
conceituoso da normalidade no qual, vítima de um aparelho social distorcido,
é apontada como deficiente intelectual ou portadora de algum transtorno. Isso
ocorre sob as lentes de uma pedagogia submissa à ciência médica e de uma
medicina guiada pela psiquiatria biológica, que macula a criança e retira a
itor

responsabilidade do sistema educacional.


a re

O fracasso escolar é alterado para o fracasso do escolar, isto é, do aluno, pois


se antes o aluno fracassado era aquele que demonstrava “desinteresse”, “indisci-
plina” e “falta de educação”, na atualidade medicalizante ele passa a ser aquele
que apresenta algum tipo de disfunção cerebral de origem genética, capaz de
par

causar deficiências e desordens no seu comportamento. A ciência médica invade


o âmbito escolar, transformando a escola em um dispositivo institucionalizado,
Ed

produzindo e sendo produto de relações de saber-poder, conforme afirma Fou-


cault, a serviço de interesses econômicos e comerciais. Educação e saúde, que
outrora se restringiam ao campo dos direitos do cidadão, agora se articulam e se
ão

reduzem a um recurso a ser explorado econômica e mercantilmente.


Como consequência, o cotidiano escolar passa a ser permeado por pre-
conceitos, julgamentos prévios sobre os alunos e suas famílias e por opiniões
s

discriminatórias a respeito da história de vida daqueles que demonstram esse


ver

suposto caráter desviante. As justificativas acabam permanecendo na superfi-


cialidade e o não aprender fica restrito às condições econômicas, raça, credo,
região onde mora ou no modo com que as famílias se organizam, como se o
sistema educacional fosse perfeito e os alunos se encontrassem completamente
inadequados para essa escola que foi pensada para todos.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 47

Esse conjunto de condutas e práticas aos poucos vai se naturalizando e se


revestindo de normalidade, muitas vezes tornando-se difíceis de serem mudadas.
De vítima, os alunos considerados anormais e diferentes, passam a ser réus e
culpados. Ou, em outras palavras, passam a ser considerados doentes, na lin-
guagem médico-educacional. Patto (2000), por exemplo, analisa como a visão
psicométrica sustentou e fundamentou esse processo, em que a inteligência, a
personalidade e a capacidade de atenção dos alunos é mensurada e reduzida

or
a critérios estritamente quantitativos, de maneira a favorecer a elaboração e o

od V
fortalecimento de práticas disciplinares e medicalizantes. A partir de padrões de

aut
comportamento dados a priori e da exigência de que os sujeitos neles se enqua-
drem, essas práticas tornam eficazes os modos de categorizar os indivíduos,
classificando-os, localizando-os e registrando-os nos parâmetros da norma,

R
como já compreendera Foucault, em seu livro Microfísica do Poder (1979).
Enfim, lugar de encontro com o Outro, o que vemos na escola é um pro-

o
cesso de banalização e secundarizarão dos problemas de ensino-aprendizagem,
aC
restringindo as “doenças comportamentais”, os seus diagnósticos e tratamen-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tos à subjetividade de cada um. O que significa dizer que “a patologização e


a medicalização da educação e da sociedade em geral vem a contraciclo da
procura de sentido da vida, obstaculizando o direito a decidir o que dela e
visã
com ela fazer” (NUNES, 2019, p. 269). Como prognóstico e como forma de
enfrentar as diversidades e as dificuldades que surgem no cotidiano escolar
são receitadas drogas e remédios (ou veneno?), isto é, fármacos a serem
itor

consumidos e ingeridos pelo suposto paciente – crianças e jovens. Essa seria


a re

a ilusão plantada pelas indústrias farmacológicas e adotadas por pais e edu-


cadores. Fazem acreditar que não precisamos sofrer, pois as pílulas estão ao
nosso alcance e existem justamente para solucionar os problemas que surgem
diariamente em nossas vidas, inclusive no ambiente escolar.
Reduzindo o destino do sujeito a um determinismo genético, essa epi-
par

demia de diagnósticos em que, quem não se enquadra em rígidos padrões e


normas homogeneizadoras e de controle, passa a ter a condição de doente,
Ed

perdendo nesse processo a visão de devir da qual é constituído.

A patologização dos corpos e o processo disciplinador


ão

Os médicos se dirigem aos diretores dos estabelecimentos e aos professo-


s

res, também dão conselhos às famílias; os pedagogos fazem projetos e os


submetem às autoridades; os professores se voltam para os alunos [...] Toda
ver

uma literatura de preceitos, pareceres, observações, advertências médicas


[...] prolifera em torno do colegial [...] (FOUCAULT, 1988, p. 34-35).

É em Foucault que podemos compreender melhor essas questões, tendo


em vista que ele faz um percurso histórico-filosófico bastante aprofundado
48

e consistente acerca do tema. Em vários de seus textos, a sua preocupação é


discutir como ao longo da história da humanidade o corpo foi transformado
em mero objeto, tendo sido desprezado e desvalorizado, em que as pessoas
sofreram castrações, imposições, limitações, proibições, enfim, vários tipos de
coação. Em decorrência disso, métodos, técnicas e estratégias foram concebidos
com o objetivo de assujeitá-lo, mas com discursos e práticas que nos faziam
acreditar que essa sujeição constante seria uma demonstração de cuidado. Em

or
Vigiar e Punir, obra clássica de Foucault (2008, p. 118-119), o autor esclarece:

od V
aut
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,
que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação
de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas” [...] O

R
momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do
corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,

o
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação
que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são
um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos,
de seus gestos, de seus comportamentos.
visã
Assim, a disciplina se torna uma tecnologia para atuar no domínio e na
docilização do corpo, que precisa ser adestrado e normatizado com o intuito de
modificar tanto a alma como o corpo físico e é nesse momento que as condutas
itor

policialescas desempenham bem o seu papel, pois escamoteiam a expressão


a re

da individualidade e homogenizam a forma de ser e agir. Especificamente no


caso da escola, isso é visível nas carteiras e cadeiras enfileiradas e individua-
lizadas, que impedem o contato visual com os colegas da sala e até mesmo
o “mapa de lugares” que muitas escolas ainda adotam para afastar os alunos
par

que mais se comunicam. Todos voltados para a figura do professor, o “único


detentor do saber”, que para combater a ociosidade, preenche todo o tempo
Ed

com atividades, passando de uma operação a outra a partir de uma utilização


exaustiva do corpo. O aluno “problema” passa a ser escolhido como auxiliar
de sala para maximizar a ação do tempo, desviando-o de sua tendência de cará-
ão

ter. Tudo em prol à retidão e a uma normalização das “condutas desviantes”.


O sonho de uma sociedade perfeita faz com que haja uma classificação do
normal e do patológico. Com a imposição da indisciplina, os que escapam da curva
s

da normalidade logo são enquadrados como sendo inadequados à regra, desvian-


ver

tes e “doentes”. A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla


todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza,
homogeneíza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza (FOUCAULT, 2008, p. 153).
Em sua obra clássica O normal e o patológico, Canguilhem (2015, p.
189) descreve esse processo:
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 49

Uma norma, uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé, endireitar.
“Normar”, normalizar, é impor uma exigência a uma existência, a um dado,
cuja variedade e disparidade se apresentam, em relação à exigência, como um
indeterminado hostil, mais ainda que estranho [...] Com efeito, uma norma só é
uma possibilidade de uma referência quando foi instituída ou escolhida como
expressão de uma preferência e como instrumento de uma vontade de substi-
tuir um estado de coisas insatisfatórias por um estado de coisas satisfatórias.

or
Ou seja, a aplicação da norma e do que se entende por normal não é

od V
natural, mas sim construído historicamente, revisado e aplicado até ser insti-

aut
tuído como regra, em que o patológico e o anormal passa a ser controlado e
vigiado por tecnologias de maneira a tornar o homem mais produtivo e fun-

R
cional. Uma dessas tecnologias ou meios é o olhar observador, o “olho que
tudo vê”. Descrito pela primeira vez por Jeremy Bentham (2008) no final do

o
século XVIII, esse sistema, chamado por ele de panóptico, seria uma forma de
aC
visibilidade isolada, reconhecida por Foucault como uma tecnologia do poder
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

para aumentar a eficiência do controle. Constituído por vários compartimen-


tos e em forma circular, essa construção é dotada de uma torre de vigilância
no centro e foi utilizada em prisões, hospitais, fábricas e... em escolas. Da
visã
torre todos poderiam ser observados ao mesmo tempo. Esse sistema, também
chamado de Casa de Inspeção por Bentham (2008, p. 76-79, grifo do autor),
itor

realmente garante toda a eficácia que possa ser dada à influência da puni-
ção ou do controle [...] Quem quer que seja que estabeleça uma escola de
a re

acordo com o máximo do princípio da inspeção tem que estar bem seguro
a respeito do mestre; pois, da mesma forma que o corpo do menino é o
fruto do corpo de seu pai, sua mente é o fruto da mente de seu mestre;
com nenhuma outra diferença que não aquela que existe entre o poder de
par

um lado e a sujeição do outro.


Ed

Como se vê, o panóptico funciona como uma espécie de laboratório de


poder, de controle e de disciplinamento, inclusive e sobretudo do próprio
corpo. Essa vigilância se apoia em um sistema de registro permanente que
ão

diz sobre o outro o que ele nem mesmo sabe: um exemplo disso atualmente
são as cadernetas dos professores e os boletins dos alunos abertos no dia de
conselho escolar e os laudos, que com sua Classificação Internacional de
s

Doenças (CID) e manifestações descritas nos diagnósticos médicos rotulam


ver

e estigmatizam os comportamentos, sem que o assujeitado nem mesmo saiba


o que na realidade a “equipe panóptica” pensa sobre ele. Ao burocratizar as
informações do outro, esse outro deixa de ser um indivíduo de corpo e alma,
de vivências, de experiências e passa a ser apenas um “caso” que comparado
a outros “casos”, perde sua individualidade e historicidade.
50

Todas essas técnicas disciplinares são utilizadas até hoje como recursos
para um “bom adestramento”, e com a adoção de novas tecnologias tem um
objetivo - o corpo dócil como única mira do poder. Todas aquelas investidu-
ras violentas foram gradativamente dando lugar a outras formas de punição,
menos ruidosas, menos visíveis e nas quais o sofrimento físico e a dor tendiam
a ser atenuados. Acerca dessa questão Gadelha (2009, p. 79) contribui dizendo:

or
É nessa perspectiva que devemos entender a psicologização e a psiquia-
trização da infância: de um lado, produção dos “sujeitos-alunos-normais”,

od V
de outra, produção dos “sujeitos-alunos-problema”, dos “deficientes”,

aut
dos “anormais”, dos “incorrigíveis”, dos “carentes”, etc. É mediante tais
mecanismos, além disso, que a escolarização afeta a família nuclear, regu-

R
lando-a e induzindo-a a agir em conformidade e em complementaridade
com os processos de normalização propriamente escolares, mas também
com os processos de normalização médicos, assistenciais, etc.

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


É nesse contexto que podemos melhor compreender o tema que estamos
tratando. Foi na década de 1970, mais precisamente em 1979 com sua obra
Microfísica do Poder, que Foucault fala pela primeira vez sobre o conceito de
medicalização. Nesta obra, ele discorre acerca de uma constituição e organização
visã
social que ao obedecer à lógica capitalista torna-se punitiva a partir de um regime
disciplinar velado, que oprime por meio de um poder que trabalha o corpo do
indivíduo, manipulando-o, modificando o seu comportamento, suas ideologias,
itor

enfim, “fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da


a re

sociedade industrial, capitalista” (FOUCAULT, 1979, XVII). Porém, tal domi-


nação age sutilmente, pois se fosse na forma de repressão não perduraria; não
há uma imposição violenta, há um mecanismo de construção da necessidade,
uma promessa de aumento na força de trabalho, crescimento da produtividade,
uma neutralização dos efeitos de contrapoder, com o intuito de tornar os homens
par

dóceis politicamente e a serviço do capital. Ao medicalizar estabelece-se uma


Ed

força sobre o outro que o imobiliza, que gera uma pseudo paz, em uma relação
que na falta da reação do outro perpetua-se o poder e os mecanismos de controle.
Ao desejar a cura e soluções mágicas para problemas que envolvem a
ão

coletividade, é comum dar à medicina e à figura médica o poder de decisão,


havendo com isso uma “licença” para que o médico desde então penetre nas
diferentes instâncias do poder. Desta forma, ocorre o que diz Foucault (1979):
s
ver

O médico se torna o grande conselheiro e o grande perito, se não na arte de


governar, pelo menos na de observar, corrigir, melhorar o “corpo” social
e mantê-lo em um permanente estado de saúde. E é sua função de higie-
nista, mais que seus prestígios de terapeuta, que lhe assegura esta posição
politicamente privilegiada no século XVIII, antes de sê-la econômica e
socialmente no século XIX.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 51

O médico, por sua posição, representa uma classe que se encarrega de uma
série de preceitos de normalidade, bem como outros profissionais, tais como os
psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, biólogos, farmacêuticos,
nutricionistas, educadores, entre outros. Essa figura do saber-poder não é recente,
mas é um mecanismo político que gera tecnologia e é proveniente da disciplina
ainda da Idade Média e até mesmo da Antiguidade, que se solidificou no século
XVIII. A disciplina nada mais é que a inserção dos corpos em um espaço indi-

or
vidualizado, institucionalizado, classificatório e contínuo que se torna submisso

od V
e alvo de poder. E a medicalização escolar nada mais é do que o seu corolário

aut
contemporâneo, como podemos ver também no filósofo austríaco Ivan Illich.
Em sua obra mais conhecida, Sociedade sem Escolas (1985), Illich traz
uma crítica contundente a respeito da institucionalização e da mercantilização

R
da escola, de ter se tornado lugar legitimado para a normatização e para o
controle do outro bem como se colocar como o único meio para um futuro

o
profissional promissor. Neste sentido, ele considera como importante um
aC
processo de desescolarização da sociedade, por ser uma instituição que ao
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ditar ou inculcar verdades concentra o poder de forma hegemônica e traz na


figura do gestor e do professor elementos de superioridade e de redução da
autonomia. Assim, a escola funcionaria como ferramenta de uma sociedade
visã
hierarquizada e desigual. Para ele, na maioria das escolas, predominantemente
nas escolas tradicionais, o professor mesmo que obedeça a um plano político
pedagógico externo à instituição, ele ainda é detentor do saber e tem o total
itor

poder em decidir a forma com que o conteúdo será desenvolvido em sala de


a re

aula, ou seja, os alunos não participam dessa decisão e nem tampouco têm a
liberdade de expressar seus interesses.
Para Illich, a sociedade necessita reinventar outra forma de aprender,
pois a escola que temos não está preparada para ensinar. Um bom sistema
educacional seria composto por escolas que seriam capazes de
par

[...] dar a todos que queiram aprender acesso aos recursos disponíveis, em
Ed

qualquer época da sua vida; capacitar a todos os que queiram partilhar o


que sabem a encontrar os que queiram aprender algo deles e, finalmente,
dar oportunidade a todos os que queiram tornar público um assunto a
ão

que tenham possibilidade de que seu desafio seja conhecido. Tal sistema
requer a aplicação de garantias constitucionais à educação. Os aprendizes
não deveriam ser forçados a um currículo obrigatório ou à discriminação
s

baseada em terem um diploma ou certificado. (ILLICH, 1985, p. 128).


ver

Nesse novo projeto de escola e de educação, as práticas pedagógicas esta-


riam voltadas para a liberdade, para a autoaprendizagem e para a autonomia do
sujeito. A escola teria o compromisso de promover o desenvolvimento autônomo
do aluno, visto que ali é lugar de crescimento interior e não de estagnação.
52

Embora pessimista em relação à escola, por considerar que as coisas mais


importantes da vida não se aprendem nela, ele enfatiza que os educadores devem
promover um meio de enriquecer o tempo dos alunos na instituição.
Em que pese as contundentes críticas que faz à escola no livro Socie-
dade sem escolas, é em outra obra que Illich usa a expressão medicalização.
A expropriação da saúde: nêmesis da medicina (1975) ficou conhecida por
seu cunho crítico e político no campo da sociologia da saúde e traz como

or
principal discussão a ação médica e seu domínio sobre o corpo individual e

od V
coletivo, inclusive na instituição escolar. Segundo Moysés e Collares (2013,

aut
p. 13), ao usar o conceito de medicalização, Illich quer

alertar que a ampliação e extensão do poder médico minavam as possibili-

R
dades das pessoas de lidarem com os sofrimentos e perdas decorrentes da
própria vida e com a morte, transformando as dores da vida em doenças.

o
Segundo o autor, a vida estaria sendo medicalizada pelo sistema médico
aC
que pretendia ter autoridade sobre pessoas que ainda não estariam doentes

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Esse processo medicalizante estrutura-se na ideia e em uma prática que
ao estabelecer normas morais de conduta, prescrição e/ou proscrição de com-
visã
portamentos, pretende tornar os indivíduos dependentes dos saberes produ-
zidos pelos agentes educativo-terapêuticos (GUADENZI; ORTEGA, 2012).
No que concerne à escola, esse processo impede a autonomia e a liberdade
itor

do aluno, pois muitas vezes ela torna-se uma instituição tão dependente do
a re

saber de especialistas que, de fora, influenciam as condutas com suas inter-


venções estigmatizantes e preconceituosas. Illich considera que há na socie-
dade moderna um “imperialismo médico” e que a medicalização da vida
foi resultado da industrialização que trouxe consigo a profissionalização e a
burocratização da instituição médica.
par

Assim, tornou-se um hábito do homem moderno institucionalizar sua dor


e tudo aquilo que ele não sabe lidar ou compreender. Segundo Illich (1975),
Ed

todas as condutas medicalizantes se fortaleceram em torno da subjetividade


humana, da saúde que se materializou no corpo biológico e em doenças ine-
xistentes, que talvez poderiam afetar a sociedade de alguma forma. Aos deso-
ão

bedientes, o rótulo, o estigma da decadência, do corpo que merece cuidados e


que, portanto, precisa ser dominado e cuidado pela autoridade do saber-poder.
s
ver

A escola em uma sociedade desmedicalizada: em busca de novas


possibilidades

Diante do quadro que apresentamos, talvez pudéssemos conjectu-


rar possibilidades e alternativas a uma situação que tem tomando conta,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 53

surpreendentemente, de reflexões e pesquisas, inclusive de colegas em uni-


versidades públicas, legitimando e defendendo o uso de medicamentos por
parte das crianças e dos jovens nas escolas. Simultâneo a isso, há relatos de
que a própria direção e a coordenação pedagógica assumem a responsabilidade
de ministrarem esses medicamentos àqueles alunos considerados “doentes”,
“transtornados”, de maneira que se enquadrem e se comportem de acordo com
os ditames impostos, exigidos pela escola e pela sociedade. No que se refere

or
aos professores, como já dissemos, eles já fizeram a sua parte anteriormente,

od V
relatando ou corroborando as queixas que os próprios pais apontam sobre

aut
seus filhos, facilitando a elaboração de laudos médicos que se tornam fontes
lucrativas para a indústria farmacológica.
Entretanto, nem tudo está perdido. Há experiências e ideias no Brasil e

R
no mundo que já estão superando aquilo que parece estar consolidado e aceite
pela comunidade escolar bem como pela comunidade científica, inclusive no

o
campo da educação. É na perspectiva de interpelar e problematizar a maneira
aC
medicalizante de conceber e praticar a educação que encontramos nas escolas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

democráticas uma possibilidade e uma saída, de tal forma que o aluno mal
comportado, desinteressado e “bagunceiro”, em uma palavra, o diferente,
possa ser respeitado em sua alteridade. Dizemos alteridade, pois aí está uma
visã
questão ética a ser considerada pelas escolas e a sociedade, tendo em vista a
questão do Outro, aquele que é diferente de mim e que precisa ser respeitado
e não submetido a um diagnóstico que pretende apenas domesticá-lo e des-
itor

valorizar as suas vivências.


a re

Faz-se importante destacar que as escolas democráticas nem sempre


foram aceitas, ou melhor, até hoje são questionadas com olhares desconfia-
dos a respeito da real qualidade, da sua abrangência, do sucesso dos alunos
egressos e de como essas instituições são avaliadas em relação ao “fracasso”
e ainda, quais critérios são adotados para a escolha dos conteúdos. Claro que
par

tudo dentro de uma lógica capitalista, que deseja preparar o aluno para os
Ed

vestibulares e concursos desde a educação infantil.


Na escola democrática, chamada por José Pacheco de escola sem paredes,
os alunos criam as regras de convívio e escolhem por meio de projetos qual
ão

assunto desejam trabalhar. Crítico ao modelo tradicional de ensino, no qual se


insere a medicalização, e fundador da Escola da Ponte, em Portugal, Pacheco
considera que neste modelo de escola as propostas educacionais são pautadas
s

no ideal de liberdade e na gestão participativa, onde os estudantes definem suas


ver

trajetórias de aprendizagem, sem currículos compulsórios (SINGER, 2010).


Embora muitas escolas democráticas sejam reconhecidas mundialmente
- hoje há mais de quinhentas pelo mundo – há duas em especial que inclusive
continuam ativas e producentes. Uma delas é a escola de Summerhill e a outra
é a Escola da Ponte. Esta última assim se exprima em sua página na internet:
54

Era preciso repensar a escola, pô-la em causa. A que existia não funcio-
nava, os professores precisavam mais de interrogações do que de certezas.
Concluímos que só pode haver um projeto quando todos se conhecem entre
si e se reconhecem em objetivos comuns. Apercebemo-nos que um dos
maiores óbices ao desenvolvimento de projetos educativos consistia na
prática de uma monodocência redutora, que remetia os professores para
o isolamento de espaços e tempos justapostos, entregues a si próprios e

or
à crença numa especialização generalista. Percebemos que se há alunos
com dificuldades de aprendizagem, também os professores têm dificul-

od V
dades de ensino. Obrigar cada um a ser um outro igual a todos, é negar a

aut
possibilidade de existir como pessoa livre e consciente. Na nossa escola
todos trabalham com todos. Assim, nem um aluno é aluno de um professor

R
mas sim de todos os professores, nem um professor é professor de alguns
alunos, é professor de todos os alunos. Hoje, a nossa Escola assenta na
autonomia dos alunos (ESCOLA DA PONTE, 2020).

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Mesmo consolidadas pelo mundo, essas escolas ainda causam estranheza,
inclusive por educadores que emanam opiniões pessimistas, com dúvidas e
descrédito perguntando-se: como pode isso dar certo? Como pode deixar o
aluno tão livre se ele não tem maturidade para decidir nada e se não tem con-
visã
dições de discernir o que é melhor para ele? Bem, sem se despir do “velho”
é impossível acreditar em uma real democratização que contribua para a for-
mação de cidadãos autônomos. Aqueles cuja educação só é aceita no formato
itor

tradicional, operam por meio da coação e da individualização, pautados no


a re

preconceito, no professor centralizador, na vigilância, na classificação e na


punição, por isso se negam a aderir a uma educação para a liberdade.
Nessa perspectiva, o ensino pode ser pensado como:
par

[...] aquele em que as pessoas vão buscar espontaneamente nos museus,


bibliotecas, conferências, cursos públicos, etc. Não se exerce aí nenhuma
Ed

coação e aprende-se muito, devendo-se por isso mesmo ser estendida às


crianças esta mesma liberdade. Basta colocar à sua disposição o conheci-
mento que lhe pode ser útil, e se de fato o for, a criança se esforçará para
ão

adquiri-lo por si mesma (SINGER, 2010, p. 64).

Quando se decide fazer uma escola para a liberdade, deixando que seus
s

alunos operem conforme seus interesses e sejam o centro do processo educa-


ver

tivo, compreende-se que a criança precisa ser poupada do disciplinamento, da


submissão, da intromissão e deve ser estimulada a desejar, a criar, a sonhar,
imaginar, enfim, deve ser encorajada a ser ela mesma, a ser livre. Isso é edu-
car para a autonomia, para o alcance do self-government, ou do autogoverno
ou até mesmo do governo de si. Isto é, ser senhor da própria vida. Enfim, na
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 55

escola democrática o poder pertence a todos, as regras é que são examinadas


e reavaliadas quando necessário e não as condutas individuais.
Em projetos como esses, vividos pelas escolas democráticas, embora
não sejam fáceis de serem mantidos, sobretudo por desconfianças de pais,
professores e pesquisadores, o processo de medicalização não faz sentido,
mesmo porque a dinâmica da escola “oferece um ambiente onde as crianças
podem crescer felizes, livres de muitas das ansiedades e neuroses do mundo

or
exterior”, conforme aponta a proposta pedagógica da Escola de Summerhill.

od V
aut
A filosofia da escola é permitir a liberdade do indivíduo - cada criança é
capaz de seguir seu próprio caminho na vida e seguir seus próprios interes-
ses para se transformar na pessoa que ela pessoalmente sente que deve ser.

R
Isso leva a uma autoconfiança interior e uma aceitação real de si mesma
como indivíduo. Tudo isso é feito dentro da estrutura de autogoverno

o
[self-government] da escola, por meio de reuniões escolares que estão no
aC
centro da escola e enfatizam a distinção entre liberdade e licenciosidade
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(ESCOLA DE SUMMERHILL, 2020).

Portanto, para enfrentar e superar o processo de medicalização escolar,


visã
tanto em suas causas e em seus efeitos, o compromisso que os educadores
poderiam assumir, seja aqueles que estão no campo da pesquisa e da forma-
ção de professores ou no campo concreto da sala de aula, com suas práticas
docentes, seria inverter a lógica e considerar outras perspectivas. Entre essas
itor

está a dimensão ética, o que significa dizer que desde a formação dos futuros
a re

professores é necessário partir dos problemas reais vividos pela comunidade


escolar, isto é, a sua maneira de ser, de agir, de sentir e viver e de se organizar.
Não é possível pensar uma formação em que se discute problemas e desafios
no vazio, e apenas teoricamente.
par

O candidato a professor escuta alguém falando de algo, dos Piagets da vida,


Ed

mas é inútil encher a cabeça das pessoas antes da prática. O que importa é
partir dos problemas de ensino para, através da pesquisa, procurar a teoria
que os resolva. Está tudo invertido (PACHECO, 2020).
ão

Portanto, um processo de desmedicalização escolar pressupõe uma abertura


ao Outro, em suas singularidades existenciais, com seus dramas, esperanças,
s

desejos, alegrias, tristezas, etc. Ou seja, enfrentar a medicalização, que insiste


ver

em permanecer no seio da escola, é uma questão ética par excellence: primeiro,


porque é tarefa nossa denunciar os seus efeitos danosos, abusivos e desrespeitosos
para com as crianças e jovens; segundo, porque abre a oportunidade de incluir no
mundo da educação um conjunto de reflexões que ao ser reverberado no campo da
prática, especialmente na sala de aula, pode promover uma nova perspectiva para
56

a formação desse público e, ao mesmo tempo, dar sentido à profissão docente. O


professor não pode se tornar apenas um mero agente de inculcação de sentimentos
de culpabilização individual e autoculpabilização. Um modelo de educação assim
praticado exige e forma “um tipo de cidadão acrítico, conformado, amedrontado,
com um profundo sentimento de abandono”. (NUNES, 2019, p. 271)
A transposição para a educação do modelo de diagnóstico-tratamento
e a ação da indústria farmacêutica se opõem e se distanciam da proposta

or
de formação humana e esclarecida preconizada por Kant (1974). Se neste

od V
modelo de ação – a medicalização - a criança é menorizada, desconsiderada

aut
em sua autonomia, passando a ser tutelada e controlada, para Kant o sentido
e o objetivo da educação é justamente o contrário. Para ele, se formar, ou
melhor, esclarecer-se é justamente

R
a saída do homem de sua menoridade [...]. A menoridade é a incapaci-

o
dade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo
aC
[...]. É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a
criar amor a ela, sendo, por ora, realmente incapaz de utilizar seu próprio
entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proce-
visã
der. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional,
ou antes do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua
menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inse-
guro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este
itor

movimento livre. Por isso, são muito poucos aqueles que conseguiram,
a re

pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreen-


der então uma marcha segura (KANT, 1974, p. 100-102. Grifo do autor).

Inspirados nessas palavras de Kant, medicalizar é praticamente impedir


que esse processo de esclarecimento, de liberdade e de autonomia se realize.
par

O compromisso ético dos professores, desde a sua formação, é sacudir, desde


Ed

os começos, de si mesmos o jugo da menoridade e espalhar ao redor de si de


maneira lenta, mas contínua, o espírito de que cada um deve pensar e agir
por si mesmo. Enfim, denunciar, enfrentar e superar um processo em que as
ão

questões da vida social, sempre complexas, multifatoriais e marcadas pela cul-


tura e pelo tempo histórico, são reduzidas à lógica médica, vinculando aquilo
que não está adequado às normas sociais a uma suposta causalidade orgânica,
s

expressa no adoecimento do indivíduo. Em uma palavra: desmedicalizar.


ver

Considerações finais

Como conclusão dessas reflexões, partimos da ideia de que a história e os


modos de viver na modernidade estão sustentados por uma tecnologia do poder
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 57

disciplinar, por um modo biologizante de conceber a vida e que estão sempre


em busca de normatizar e homogeneizar o comportamento, ou seja, uma lógica
cruel que se encontra subjacente às atitudes sociais cotidianas. No caso especí-
fico da escola e da sala de aula, como lugares que deveria ser de encontro e de
respeito pela diversidade e pelo diferente, o que se vê é uma submissão à lógica
capitalista, que exclui, que mercantiliza e desvaloriza as singularidades, em
prol do lucro e do controle dos desejos, das emoções, da liberdade humana, etc.

or
Esse processo de empobrecimento da subjetividade humana por meio das

od V
condutas medicalizantes, que rotulam e deformam a verdadeira origem das

aut
manifestações estudantis, podem impedir o desenvolvimento moral do aluno,
uma vez que o mantém na heteronomia, sob a coação e o domínio policialesco,
que normatizando, modelando e punindo aqueles que não correspondem aos

R
desejos de uma sociedade de consumo, com foco em apenas, obter soluções
imediatistas e superficiais.

o
Assim, para combatermos essa ideologia biologizante quem vem car-
aC
regada de um julgamento psicométrico, é importante unirmos condições
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para tal, porém, para isso é preciso antes de qualquer coisa compreender
a maquinaria dos fatos, como também, libertar o pensamento das fórmulas
mágicas, que desde sempre serviram para apenas questionar, mas que em
visã
nada mudam as práticas de uma sociedade que tende à atomização e à uni-
formização das condutas.
E o que fazer diante de tais constatações? Mesmo que teórica, a discussão
itor

aqui feita não quer estar descolada da realidade escolar, mas sim contribuir
a re

para um diálogo efetivo e concreto com chão do pátio, da sala dos professores,
da carteira do aluno enfim, a todos os lugares dentro da escola que clamam
por respeito, pois o único diagnóstico que precisa ser feito é o institucional,
onde as diversas vozes gritam por socorro e pedem urgência no plano de ação.
Ao desejarmos uma sociedade mais justa, com menos desigualdades
par

sociais e respeito ao diferente, estamos buscando e pretendendo construir


Ed

uma educação que, prenhe de sentido, possibilite ao aluno um crescimento


interior consolidado em ideais de respeito mútuo e cooperação. Para tanto,
faz-se urgente à aniquilação de condutas que cultivam comportamentos hete-
ão

rônomos, de submissão e assujeitamento, lembrando-nos que a moralidade se


constrói socialmente, ela não é inata. Assim, a escola tem um papel fundamen-
tal no desenvolvimento moral do aluno e o professor é quem ao acompanhar
s

esse desenvolvimento, pode conduzi-lo à autonomia. Para que tais elementos


ver

tenham sucesso na rotina escolar, é preciso reconhecer que se trata de um


trabalho que só avançará se estiver em conformidade com o coletivo, o aluno
deve aprender, com a ajuda do professor, a posicionar-se diante dos valores
apresentados e a respeitar as regras que foram construídas coletivamente,
evitando com isso regras ambíguas e arbitrárias.
58

Lugar de encontro, a sala de aula deve ser o espaço da criatividade, das


manifestações genuínas, da autonomia e da liberdade, de maneira a não neces-
sitar de fármacos para direcionar, controlar e assegurar a formação de crianças
e jovens que nela circula. Na verdade, seria um contrassenso e a negação de
si mesma, termos uma educação em que a vida torna-se prisioneira e mani-
pulada por interesses que não sejam a formação para a felicidade, a alegria,
o respeito, o diálogo, o bem estar, etc. Se a medicina e a escola são gêmeas,

or
tendo em vista que ambas nasceram de uma concepção de mundo e de ciên-

od V
cia que é cartesiana, que segmenta o conhecimento e o ser, para controlá-lo,

aut
concluímos defendendo que é preciso desmedicalizar a vida como um todo
e a sala de aula como princípio, de tal maneira que aquilo que é visto como
indisciplina, desobediência ou dificuldade de concentração e aprendizagem,

R
seja na verdade reconhecido que, na maioria das vezes, é fruto da falta de
diálogo da instituição escolar com aquilo que tem mais significado para for-

o
mação da subjetividade dos alunos, seus interesses e desejos mais profundos.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 59

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itor
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par
Ed
s ão
ver
A PRODUÇÃO DAS SUBJETIVIDADES
CONTEMPORÂNEAS PELA
VISIBILIDADE NA SOCIEDADE

or
EMPRESARIAL

od V
aut
Flávia Cristina Silveira Lemos
Hélio Rebello Cardoso Júnior

R
Dolores Galindo
Franco Farias da Cruz

o
Daiane Gasparetto da Silva
aC
Introdução
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Busca-se com este capítulo pensar a sociedade atual por meio de operadores
visã
de Deleuze e Foucault, ao realizarmos conversações entre o panoptismo e socie-
dade de controle em meio aberto pela égide de mecanismos de segurança empre-
sariais. O excesso de visibilidade produz vigilância generalizara e exacerbada,
itor

difundindo imagens rápidas, voláteis e dispositivos de controle social securitários,


a re

pautados em encomendas de lei e ordem. Estas práticas são materializadas em


acontecimentos tecno-sociais que ultrapassam análises causais deterministas a
respeito das mídias e modos de subjetivação, na história do presente.
Nas últimas décadas, a partir da reprodução de imagens de si e dos outros
como forma de governo das condutas, no cotidiano, impactando nas interven-
par

ções políticas, econômicas, sociais, culturais, familiares, trabalhistas, históricas


Ed

e na formação de subjetividades. O controle social e a vigilância passaram


a ser mais intensivos, na racionalidade imagética e o marketing ganhou um
estatuto de saber e poder diferenciado, juntamente com a economia política,
ão

nesse cenário. A circulação segura seria acompanhada de vigilância constante,


monitorada por filmadoras, celulares, censores, documentos de identificação,
senhas, satélites e avaliações permanentes (LÈVY, 2004).
s

A lógica imagética tem atravessado diferentes espaços e equipamentos,


ver

corpos e práticas contemporâneas, tais como: a educação e o trabalho, os quais


ganharam um lugar privilegiado no campo do capital imaterial, em termos de
criação de visibilidades e dizibilidades do empreendedorismo neoliberal. Emerge
uma sociedade passível de forjar pelo marketing a vida e tudo que lhe concerne,
culturalmente, socialmente, afetivamente e no âmbito político-econômico. A
venda permanente de imagens sucessivas, capitalizadas e colocadas no mercado
tem alimentado as campanhas políticas de candidatos aos cargos dos Poderes:
62

Executivo e Legislativo; tem expandido o setor de vendas de objetos pelas marcas


e embalagens; embase a construção dos perfis pessoais alvos a serem imitados
por serem classificados como marcadores de sucesso. Portanto, modelos copiados
e venerados supostamente são os efeitos da produção do mercado das imagens.
Assim, o marqueteiro ganhou um lugar privilegiado no chamado mercado
empreendedor, articulando corpos empresas como relações empresariais, em
cada mínimo ato cotidiano. As marcas se tornaram mais importantes que os

or
produtos vendidos, na disputa de mercados e na concorrência entre empresas.

od V
A contratação de funcionários e os estilos de vida dos trabalhadores e estudan-

aut
tes passaram a ser parte de uma produção de imagens a comercializar. Assim,
esse artigo tem o objetivo de interrogar as relações constituídas entre marke-

R
ting, subjetividade, educação e política, no presente. Busca-se nas ferramentas
analíticas de Deleuze, Guattari, Virílio, Arendt e Foucault um suporte para

o
questionar a produção histórica das subjetividades imagéticas, das empresas
como marcas a zelar e a construir, a educação empresarial como vetor de
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ensino para a capitalização do ser e a política reduzida aos perfis construídos
pelo marketing, aplicado ao cotidiano das existências.
visã
Comunicação e produção do marketing empresarial de si e dos outros

Foucault (2008a) declara que fazer circular é um efeito das práticas neoli-
berais da fabricação de subjetividades capturadas pelos mecanismos produtivos
itor

das vigilâncias por meio do efeito de visibilidade contemporâneo, em contextos


a re

democráticos da participação, do reconhecimento social pela visibilidade e do


governo das condutas pelas imagens. Os bens, pessoas, saberes, alimentos,
valores precisariam circular com segurança e as barreiras seriam colocadas
entre os que podem circular para consumir e realizar investimentos e os que
par

não podem e comprometem a segurança dos empreendedores e consumidores.


Bauman (1999) e Foucault (1999) assinalam que os guetos e segrega-
Ed

ções são efeitos de um regime de separação dos que podem circular daqueles
impedidos de fazê-lo, classificados como perigosos e em risco de suposta-
mente, sendo internados, presos e/ou afastados, nas periferias distantes dos
ão

grandes centros urbanos. A segurança seria a possibilidade de funcionamento


da imagem dos que consomem e investem face aos que operam a imagem pela
s

insegurança e falta de acesso, portanto pela discriminação negativa sofrida,


ver

diariamente. A discriminação é analisada por Castel (2008), ao destacar o


quanto os autóctones da República foram fabricados pela imagem negativa
dos inseguros e dos que tornam a vida de uma população insegura também.
Assim, são definidos os grupos discriminados negativamente como supostos
portadores de imagens marcadas pelo estigma do risco e perigo.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 63

Em geral, os rótulos caracterizam os corpos e os lugares de moradia,


condições de vida, relações de parentesco e comunidade próxima como
potencialmente atravessada por fatores de risco, variando em intensidade
até à classificação de perigosa (CASTEL, 1987). As situações de violência,
desastre, crimes e adoecimentos, por exemplo, são mapeadas espacialmente,
em termos de cálculos de risco e perigo.
A Estatística de maior incidência probabilística de algum acontecimento

or
faz uma região ser demarcada como zona de risco, área vermelha e, até mesmo

od V
lugar visto enquanto perigoso. As avaliações dos especialistas e peritos para

aut
examinar a condição de vida de cada grupo, comunidade e espaço é reali-
zada por um conjunto de variáveis delimitadas pelo desvio de normas e leis.
Assim, vigiar e criar visibilidade, além de promover imagens empresariais

R
também define táticas de controle social, na política pública, justificado por
encomendas, tais como: realização de denúncias, proteção social pela detec-

o
ção precoce das doenças, prazer de visualizar a vida dos outros, prevenir as
aC
mais variadas formas de violência. Olhar o que se passa com alguém face às
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normas sociais é investigar com o olhar, é seguir pelas imagens e levantar


suspeitas da condição de autonomia dos pares (ROSE, 2011). Uma expansão
exorbitante dos mecanismos de vigilância se materializa e passa a mediar um
visã
modo de existência balizado pela sensação em que se está sendo olhado o
tempo todo. Por isso, seria supostamente relevante criar imagens, tais quais
kits de subjetividade, disponibilizados permanentemente (ROLNIK, 1997).
itor

Guattari e Rolnik (1996) salientam, nesse sentido, como a cultura tem


a re

funcionado enquanto dispositivo de equivalência de mais valia subjetiva, no


capitalismo mundial integrado, ao conectar todos os corpos e objetos pelo
signo do capital, agenciando vetores de captura do desejo e até mesmo das
resistências. Um exemplo é o comércio de roupas com imagens de líderes
de revoluções, pesquisadores, artistas, educadores, tais como: Che Guevara,
par

Nelson Mandela, Bob Marley etc.


Ed

No curso Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008b) assinalou a


transformação da educação em empresa e investimento, calculado pelos cus-
tos e benefícios. O cálculo é permanente das compensações e prejuízos dos
ão

contratos realizados e a concretizar, seja no plano das relações trabalhistas


seja no campo da amizade e conjugalidade. Tudo é transformado em inves-
timento e empreendimento, até mesmo as emoções e os afetos mais intensos
s

se tornaram um negócio lucrativo ou não, dependendo das avaliações e dos


ver

contratos estabelecidos. Segundo Ilhouz (2012), o amor é capitalizado e o


cuidado das imagens de si delineadas pela saúde e normalidade, em prol da
vertente psicológica da política da informação instantânea e veloz de divulga-
ção do que se supõe ser sucesso, nessa sociedade individualista, competitiva e
hedonista. Uma tônica da economia neoliberal é mediada pela contabilidade,
64

atravessando a gestão de si e dos outros, efetuando os custos e os benefícios


de cada escolha realizada (FOUCAULT, 2008b).
Essas práticas ensejam uma maneira da sociabilidade ganhar aspectos
securitários pelo nível de transparência e controle dos acontecimentos aos olha-
res que tudo podem ver e gerir. Nesse âmbito, as práticas de vigilância passam
a ser comercializadas, trocadas e apropriadas pelos dispositivos de segurança,
empreendidos como politicamente relevantes para o neoliberalismo e eco-

or
nomicamente rentáveis, no mercado da seguridade social (CASTEL, 1987).

od V
Os sonhos, sentimentos, projetos e conhecimentos passam a ser comer-

aut
cializados pela propaganda e publicidade, no mercado das marcas, o qual forja
a ilusão de ter sucesso e ser aceito (FLUSSER, 2008). O produto vendido
incorpora a imagem da empresa e visa ofertar objetos tais quais kits a vestir

R
para agenciar prestígio e competência investimento. A flexibilidade das ima-
gens deve ser grande em termos da disponibilidade de deixar e construir novos

o
projetos, conforme as encomendas recebidas, no mercado das marcas. A ética
aC
da criação e resistência cede lugar ao desgaste da repetição e ressentimento

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pelo que se foi e pelo que ainda não veio, dando lugar ao medo e à angústia
face ao esboço mínimo de qualquer movimento disruptivo (ROLNIK, 1997).
Por isso, Sodré (2010) destaca a formação de subjetividades, pautada pela
visã
imagem técnica; sobretudo quando é concretizada pelas denominadas elites
logotécnicas, às quais visam lucrar com as imagens difundidas e valorizadas
socialmente e politicamente. Por isso, a paisagem é uma maneira de olhar e
itor

enquadrar as imagens, fazendo-as ideais a serem imitados e vendidos como


a re

estilos de existências ditos de sucesso e mérito.


A paisagem é fabricada como caricatura e maquiagem de algo que seria
menos interessante ou nem tão almejado se não tivesse construído como
outdoor, fotos, cartão postal, perfil etc. Uma visão considerada bela para os
olhares é vendida como paisagem, no turismo e valorizada para o mercado
par

imobiliário, por exemplo. Um lugar também é bastante visitado e almejado,


Ed

quando é frequentado por pessoas classificadas como bonitas em certo este-


reótipo e bem vestidas, a partir de alguns critérios da indústria de massa do
consumo. (SENNETT, 2003).
ão

Assim, Garcia (2004, p. 45) ressalta o quanto “o produto perdeu importância


para a marca e, é ela que define na contemporaneidade, as estratégias de marke-
ting”. Aprender e ensinar entra em uma maquinaria do mercado e da competição
s

constantes, alimentando e sendo alimentados pela voracidade de ascender ao


ver

chamado lugar de sucesso. Esse lugar ganha dimensões de fetiche, obtido pela
construção de imagens rentáveis no mercado das informações e na capitalização
dos estilos de existência. Lazzarato e Negri (2013) denominaram essa prática de
trabalho imaterial, a qual se efetua como uma capitalização do estilo de viver,
no contemporâneo. Deleuze afirma que a filosofia sempre teve muitos rivais.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 65

Na atualidade, esses rivais são a informática, a comunicação e a promo-


ção do comércio. Ora, seria pela visibilidade dos investimentos em imagens
empresariais, disponibilizadas em formato de marketing como novo dispositivo
de controle social. “A empresa é uma alma, um gás” (DELEUZE, 1992, p.
221). Cada vez mais a empresa terceiriza a produção e investe na imagem da
marca para vender serviços pela valorização, baseada em técnicas de marketing.
Virílio (2008) ressalta o quanto as imagens ganharam um lugar de destaque

or
na sociedade atual, chegando a configurar um imperativo audiovisual a ser

od V
expandido ao nível do quase instante mesmo em que tenha ocorrida a fabricação

aut
do acontecimento. A velocidade da formação de espaços de visibilidades é a
disputa pelo tempo em que as imagens são divulgadas e veiculam serviços. A
vida é racionalizada pela égide dos investimentos feitos e os resultados destes,

R
em termos de agilidade na distribuição das imagens. A competição e a con-
corrência são termômetros da velocidade da difusão imagética, no formato da

o
veiculação massiva das marcas, atreladas aos estilos de existência classificados
aC
como de sucesso. Ser visível é funcionar como uma empresa ao ponto de efetuar
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investimentos sucessivos, sem perder qualquer oportunidade de negociar algo.


Na produção frequente das imagens, a informática entra em uma rela-
ção com a quase instantaneidade das informações, do compartilhamento, da
visã
interação e da capitalização empresarial dos estilos de vida (LAZZARATO;
NEGRI, 2013). Dessa forma, há uma captura das relações sociais, educativas,
políticas, econômicas, culturais e afetivas pelas máquinas de visibilidade e vigi-
itor

lância a todo o momento. Um novo capital social e cultural opera na distribuição


a re

e apropriação da rapidez, do fluxo e difusão das marcas e de seu agenciamento


com a racionalidade imagética fabricada, adquirida e vendida, no mercado das
subjetividades. A velocidade da política efetua-se por uma economia neoliberal
e por tecnologias de controle social e técnico das imagens (VIRÍLIO, 2008).
A imagem do: espaço, corpo, bairro, da vestimenta, comunidade, cidade,
par

região e do país se tornaram acopladas ao capital do conhecimento e ao


Ed

empreendedorismo cultural; entrando nas engrenagens neoliberais. Os estudos


o trabalho, sendo que os estudantes e trabalhadores são chamados a consti-
tuírem-se como empreendedores, nessa racionalidade empresarial, segundo
ão

Foucault (2008b). A formação das redes sociais, de relacionamentos afetivos


e de trabalho, de grupos para realizar trabalhos remunerados e nas práticas
educativas passou, assim, também a ser mediada pela racionalidade imagética,
s

informacional, da propaganda e do mercado das emoções e relacionamentos.


ver

Nenhuma amizade, nenhum casamento ou contrato de trabalho escapa


mais ao cálculo de custo e benefício do risco e perigo de estabelecer a relação
e da avaliação dos efeitos, de lucros e prejuízos trazidos aos que se expõem a
vivenciar experiências afetivas (ILHOUZ, 2011). O desafio cada vez mais difícil
e árduo, hoje é resistir a essa parafernália social, técnica e político-econômica.
66

Bauman (2004) ressalta, em O amor líquido, a expansão da fragilidade e pouca


consistência dos relacionamentos de amizade, famílias, entre casais e pais e
filhos, no presente. Superficiais e frágeis, sem compromisso e duração, os
laços sociais e afetivos perdem confiança, sustentação e presença nas vidas.
A insegurança cresce, em intensidade e se espraia como vetor de subjetivação
contemporânea. O desamparo advindo dessa experiência da restrição dos laços
sociais não é preenchido pela racionalidade imagética das redes sociais, na

or
internet e nem pelas imagens difundidas de sucesso empreendedor. A alienação

od V
e o vazio dessa situação só aumentam e o mercado das imagens, a venda de

aut
objetos com as insígnias das marcas e a frenética mutação do trabalho hoje não
dão suporte suficiente à construção das subjetividades e ao estabelecimento
das existências, no plano ético, político e estético (COSTA, 1997).

R
Ser clandestino e se esconder para resistir ao marketing

o
aC

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Fazer possíveis das impossibilidades é um ato importante em tempos de
captura imagética permanente, tentando escapar ao olho que tudo pretender
ver como um ato de coragem (VIRÍLIO, 2008). Por isso, “a criação se faz em
gargalos de estrangulamento [...] Se um criador não é agarrado pelo pescoço por
visã
um conjunto de impossibilidades, não é um criador” (DELEUZE, 1992, p. 167).
É relevante criar vacúolos e espaços escuros para não ceder à ordem da
sobrevivência em formato subjetividade empresa, a qual diminui a potência
itor

criativa. Conforme Caiafa (2000), o anonimato de um pseudônimo, por exem-


a re

plo, auxilia a forjar passagens em meio aos perigos das capturas que a vigilância
constante e a visibilidade contínua fabricam. Pensar e problematizar a veloci-
dade das imagens, a fabricação de subjetividades imagéticas, o engendramento
de marcas pela propaganda e o aprisionamento na posição de expectador é
par

importante para resistir à captura da sociedade de controle e aos mecanismos


de visibilidade permanente. A crítica é acionada como uma prática, uma ati-
Ed

tude de avaliação do que é feito com os outros e do que faz de si. Questionar
a massiva produção de processos de homogeneização e cooptação dos corpos
pela indústria cultural. Criar uma problemática da dramática da aceleração do
ão

tempo e das imagens, interrogar a empresa da educação instrumentalizada pelo


sujeito da informação acumulada e capitalizada é um desafio, hoje.
Assim, tal qual Adorno (2002) destaca, faz-se relevante colocar em sus-
s

pensão a publicidade, atrelada às artes, à educação, ao trabalho, às relações


ver

familiares e de amizade. Sair da esfera do entretenimento constante, do lazer


comércio do tempo livre e da cultura utilitária é parte das táticas do resistir à
captura atual das experimentações existenciais. Face às exigências de tudo ver e
mostrar resistir implica se transformar, transmutar-se, transfigurando-se, tal qual
o arlequim, em metamorfose e deslocamento. O arlequim é uma figura, a qual
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 67

se veste de fantasias, tramas, narrativas, cores, não apenas na mutação do plano


biológico de um se fazer outro, estranho a si e aos que o olham (SERRES, 1993).
A resistência ganha o estranhamento do enquadramento das imagens e
da problematização do que repeti e aprisiona, produzindo certo atordoamento
e náusea, dado o aspecto reprodutivo e tedioso da velocidade de imagens não
pensadas e da convocação ao comércio permanente da figura do investidor e
empreendedor incansável (VIRÍLIO, 2008). O empresário não perde oportuni-

or
dades de lucrar e ganhar com seus mínimos atos pontos na concorrência e com-

od V
petição, estabelecidas pelo estilo de vida neoliberal (Foucault, 2008b). Não

aut
desejar ser empresário e ganhar destaque é visto como anormalidade, hoje.
Estar fora desse diagrama é sair de campo e deixar de existir praticamente.
Entretanto, resistir ao ver sem parar e ao deixar ser visível o tempo todo

R
é possível, ao dissociar a imagem do tumulto da informação, conforme Caiafa
(2003) para realizar um deslocamento subjetivo e a criação de modo a superar

o
um consumo instantâneo e fazer ecoar a experimentação enquanto produção da
aC
diferença. Assim, para Deleuze (1992), resistir é tentar ser clandestino, decep-
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cionar e não ficar acuado, afinal, se alegrar é melhor do que aceitar a cooptação
política. Conceder às encomendas de aprisionar-se na lógica imagética é da ordem
da sobrevivência e causa diminuição da potência criativa, pois impede o inventar
visã
e reativa o ressentimento e medo. Ora, é nesse campo existencial que se colocar
a possibilidade de recusar-se a virar vedete, se esconder e resistir à visibilidade
em prol da problematização e efetuação das aberturas e passagens face às tenta-
itor

tivas de tudo dar notícia e de tudo mostrar para todos verem (DELEUZE, 1992).
a re

A banalização das imagens em velocidade promove uma impossibilidade


de criar e convida à passividade consumista (ARENDT, 2013). No máximo,
se traduz em investimento, capturado utilitariamente pela apropriação do
capital humano. O empreendedorismo da informação e do empresariamento
das imagens não cessa de tentar receptar e capturar o fôlego das resistên-
par

cias, tentando apagar a singularização dos acontecimentos. Nesse aspecto,


Ed

“a criação se faz em gargalos de estrangulamento [...] Se um criador não


é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um
criador” (DELEUZE, 1992, p. 167). Há de se colocar em xeque o modo de
ão

vida paisagem para conseguir criar lacunas e buracos por onde seja possível
respirar não se mostrando para não ceder à sedução das imagens transmitidas,
em seu fluxo interativo (VIRÍLIO, 2008).
s

A paisagem é o que vemos como turistas, como empresários e consumistas.


ver

Diferente é a experimentação, pois resiste à imagem chapada e utilitária da cidade


e dos corpos. A primeira tende à coisificação e, a segunda, à singularização das
existências. Finalizando, sair do estreitamento do encantamento imagético, tal
qual narciso, fascinado, ao ver sua imagem, no espelho, é conseguir instituir um
estranhamento a ponto de resistir ao poder e à sedução da visibilidade constante.
68

Assim, ativar a potência da vida ganhou o estatuto de não apenas reagir


como expectador à passividade tão comum ao tempo presente, sobrevivendo
à devastadora experiência da vigilância e da visibilidade de uma sociedade de
controle e marketing. A velocidade da política é um ingrediente para a urgência,
a qual, por sua vez, desemboca nos fascismos no tecnicismo sem possibilidade
para diferir e desobedecer. Desacelerar a velocidade das imagens, fazer algo
durar e ganhar espessura de laço social e afetivo, cultivar um relacionamento

or
sem fazê-lo limitar ao investimento econômico e funcional implicou em consti-

od V
tuir a criação sem perder o legado fabricado e sem abrir mão de tecer cuidados

aut
de si e dos outros. Um agenciamento do comum e do público é uma forma de
resistir à paixão avassaladora por si mesmo e à avidez por uma busca do sucesso
e da segurança técnica, impeditivas do experimentar e pensar (DIAS, 2011).

R
Deleuze (2002) alertava que nem tudo que é bom para um é também
bom para outrem. A experiência ética consiste na experimentação e não na

o
reprodução e cópia de um modelo de sucesso e supostamente de excelência a
aC
repetir. Os encontros são avaliados pela capacidade de ampliar e/ou reduzir a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


alegria de viver. Um termômetro para avaliar a si e a relação com os outros é
a postura ética, possível, apenas pela atitude crítica face ao presente. Pensar
por perguntas, se colocar em deriva não é nada simples. Os controles atuais
visã
operam rapidamente, em ondulação, com forças centrífugas e centrípetas,
em rotação tão veloz quando as tentativas de esconder-se e, assim, fugir das
artimanhas dos mecanismos de controles contemporâneos (DELEUZE, 1992).
itor

Até mesmo os movimentos sociais pedem proteções e reivindicam os


a re

direitos no plano da busca de reconhecimento e visibilidade. A pauta de tudo


ver e do ser visto por todos, nas lutas do presente cedem a cooptação da vigi-
lância democrática e da sedução das imagens instantâneas, constitutivas dos
grupos sociais, das subjetividades e das relações.
par

Considerações finais
Ed

A velocidade técnica e social da produção e difusão das imagens, na atua-


lidade, induziu ao crescimento de um vazio do girar em torno de si sem ocupar
ão

a cidade para também cuidar do outro. Houve um empobrecimento significa-


tivo do campo existencial face à redução da esfera pública, dos laços afetivos
e sociais, paralelamente ao aumento exponencial do utilitarismo e à funcio-
s

nalidade da segurança, tanto nos investimentos quanto na lógica empresarial.


ver

O trabalho, a educação, a família, a amizade, o tempo livre, a visibilidade e


o olhar foram apropriados pelo empreendedorismo, via marketing e velocidade
das redes sociais, sendo que, frente aos convites de capitalização de tudo, os
relacionamentos foram esmagados pelo liberalismo utilitarista e por um mercado
ávido pelo comércio de tudo e de todos. O sofrimento, os temores, as perdas, os
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 69

prazeres, a iniciativa e a criação foram alvo de apropriação neoliberal, transfor-


mados em investimentos e lucro permanente. O marketing e as tecnologias de
controle social aumentam em importância, bem como as estratégias de vigilância
simultâneas ao mercado das imagens, das marcas e da cultura instrumentalizada.
Escapar a esses mecanismo e redes informacionais, lucrativas e securitárias se
tornou um grande e difícil desafio do presente em que se vive.
Em tempos de um capitalismo de serviços, baseado na propaganda, publi-

or
cidade e informação rápida implica em esvaziar as imagens, os controles finos

od V
e o mercado das relações é tecer um conjunto de práticas sociais, as quais

aut
podem auxiliar a criar linhas de fuga para forjar novos territórios de existência
(DELEUZE, 1992). Cultivar a vida pública e não sucumbir à privatização
de tudo passou a compor um esforço de problematizar os acontecimentos e

R
experiências do processo de singularização contemporâneo (SENNETT, 2003).
Criar tempo para abrir-se ao compromisso, restringir imagens e esconder-se

o
dos olhares que tudo querem saber e vigiar é importante para constituir vacúo-
aC
los e entremeios, os quais permitam tranversalizar as linhas duras e mover
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

o diagrama de forças da sociedade (DELEUZE, 2004). Compor um estilo


de existência como dispositivo afirmativo da vida é mais do que sucumbir à
sobrevivência, em seu aspecto tedioso e acomodado, conformado e submetido
visã
ao mercado e à propaganda. Coloca em xeque a vida gerida como empresa é
um contrapoder e uma contraconduta, hoje. A produção da liberdade passa por
esconder-se, por desacelerar o tempo e por esvaziar a condição de expectador
itor

e compartilhador de imagens rápidas.


a re

Foucault (2010) assinala o quanto é rico refugiar-se para pensar, afas-


tar-se da frenética existência um pouco e tomar ar para retornar às lutas com
a prudência de não ceder ao amor ao poder. A ética sucumbe ao fascismo
quando nos apaixonamos pelo poder. A visibilidade contínua está nesse lugar
de desejar ser venerado e reconhecido o tempo todo, estar em evidência cons-
par

tante. O intolerável da imagem instantânea e da visibilidade, transformada em


Ed

vigilância foi alçado à condição de barreira a romper e a deslocar para outras


composições na invenção das subjetividades. Para tanto, insistir em sacudir
os modelos, pensar por problemas e perguntas ao invés de buscar soluções
ão

para as mesmas perguntas pode ser uma maneira de criar fôlego e ganhar
força, coragem, alegria para agenciar uma política da vida e uma estética da
existência (DELEUZE, 2004). Nesse plano de composição, busca-se um tor-
s

nar-se estrangeiro, mesmo em terra natal e gaguejar na própria língua implica


ver

em fazer brotar a diferença, na quebra da opacidade imagética e mercantil da


propaganda. Poder esconder-se, desejar não ser vedete e fugir da vigilância
securitária, bem como não querer fazer do cotidiano um investimento contínuo
é da ordem da resistência, em uma sociedade que exige visibilidade, segurança
e imagens vigiadas (DELEUZE, 2013).
70

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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
O CONCEITO DE
TRANSDISCIPLINARIDADE E SUA
APLICAÇÃO NA TRÍPLICE FRONTEIRA

or
DA AMAZÔNIA SUL OCIDENTAL

od V
aut
Enock da Silva Pessoa

R
Introdução

o
O objetivo deste texto é expor o conceito de transdisciplinaridade, par-
aC
tindo das concepções de seu criador, Jean Piaget e de Edgar Morin, que tem
dado uma contribuição teórica significativa a esse conceito nos últimos 40
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

anos. Em seguida, abordamos as características dos povos habitantes na Ama-


visã
zônia Sul-Ocidental (indígenas e colonos) e, por fim, enfatizamos algumas
atividades de cooperação entre Instituições de Ensino Superior de três países
vizinhos localizados na tríplice fronteira da Amazônia Sul-ocidental, que tive-
ram como objeto ações transdisciplinares visando melhorias socioeconômicas
itor

e culturais dos povos habitantes dessa região.


a re

A origem do conceito de transdisciplinaridade

O conceito de transdisciplinaridade é uma criação do biólogo, filósofo


par

e psicólogo Jean Piaget, apresentado na Universidade de Nice, em 1970.


Percebe-se, pelos seus textos, que esse conceito resulta na culminância de
Ed

um processo em amadurecimento, considerando que, em alguns textos, a


exemplo de “Sabedoria e Ilusões da Filosofia” escrito em 1965, ele já bus-
cava demonstrar inconsistências na falta de comunicação entre as ciências
ão

existentes, as ciências em formação e a filosofia, que se caracterizava por uma


busca de aprofundamento das ciências que resultavam em isolamento umas
das outras e da própria Filosofia. Para ele, a epistemologia genética é um
s

exemplo típico de matéria interdisciplinar. Ao longo de sua vida acadêmica,


ver

Piaget transitou entre as ciências e a filosofia em busca de um eixo transdis-


ciplinar, tendo como foco o estudo do desenvolvimento das pessoas, a partir
da infância, do simples para o complexo. Ele procurava demonstrar sua tese
de que a construção do conhecimento é fruto das interações do indivíduo com
seu ambiente significativo, ou seja, o organismo responde e interage com o
meio, começando com o desenvolvimento da inteligência, da linguagem, das
noções de espaço/tempo, de causalidade, através dos estágios: pré-operatório,
74

das operações concretas e das operações formais, descrito em seus livros: A


Epistemologia Genética e Problemas de Psicologia Genética (PIAGET, 1983)
Em outro texto, “Ciências e Filosofia”, Piaget (1983) afirma que a Filo-
sofia se ocupa da busca explicativa da totalidade do real de modo raciocinado.
Assim, a compreensão do saber, de modo transdisciplinar, faria a aproxima-
ção entre o conhecimento filosófico e o conhecimento científico através da
“totalidade do real”. O conceito de “totalidade do real” é subdividido em

or
três componentes:

od V
aut
Em primeiro lugar, refere-se ao conjunto de atividades superiores do
homem e não exclusivamente ao conhecimento: moral, estética, fé (reli-
giosa ou humanista), etc. Em segundo lugar, implica a possibilidade, do

R
ponto de vista do conhecimento, de que, sob as aparências fenomênicas e
os conhecimentos particulares, existe uma última realidade, uma coisa em

o
si, um absoluto, etc. Em terceiro lugar, uma reflexão sobre a totalidade do
real pode naturalmente conduzir a uma abertura no conjunto dos possíveis
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(LEIBNIZ; RENOUVIER, etc.; PIAGET, 1983, p. 95).

Pode-se notar no texto acima que, para Piaget, o conhecimento, aqui


visã
chamado de “totalidade do real”, é um atributo humano geral, cumulativo,
superior, que deve estar aberto ao diálogo e por isso, é transdisciplinar.
Piaget (1983) explica porque defende a transdisciplinaridade entre Filo-
sofia e as Ciências. Para ele pouco importa se é a filosofia ou se são as ciências
itor

que atuarão como variável independente ou dependente:


a re

A coordenação dos valores constitui a função permanente da filosofia e


que os termos desse problema variam relativamente pouco em relação
à evolução dos conhecimentos, a questão no que lhes concerne, é saber
se foi o progresso desse conhecimento integral visado pela filosofia que
par

ocasionou os conhecimentos particulares, podendo então destacar-se do


tronco comum, sob a forma de ciências especializadas, ou se, pelo contrá-
Ed

rio, foram os progressos de natureza científica (no interior ou no exterior


do domínio dito filosófico, pouco importa) que, impondo uma reflexão
renovada sobre o saber assim transformado, provocaram o desenvolvi-
ão

mento dos sistemas (PIAGET, 1983, p. 98- 99).

Essa relação transdisciplinar entre conhecimento científico e valores


s

da filosofia na contemporaneidade é visto como um conjunto pertencente à


ver

totalidade do real. Piaget propõe uma atitude positiva e de solidariedade entre


ciência e filosofia, semelhante à atitude simpática que os filósofos pré-socráti-
cos manifestavam com a ciência. Ele acreditava na educação como formação
para a autonomia e para a cidadania e que pelas relações de cooperação, as
pessoas poderiam ser educadas para uma vida harmoniosa socialmente
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 75

Edgar Morin e a transdisciplinaridade

O outro pensador que dá sequência ao conjunto de ideias transdiscipli-


nares é Edgar Morin. A sua teoria da complexidade tem como foco pontuar a
importância das trocas entre culturas e componentes curriculares de conheci-
mentos distintos para que as populações de uma determinada região consigam
maior sucesso no desenvolvimento harmônico entre si e com a natureza. Morin

or
(2000) parte do pressuposto de que os grupos humanos têm naturezas comuns

od V
e por isso podem dialogar, criar laços comuns, produzir interações mútuas,

aut
além de poderem ser estudados conjuntamente diante dos consensos e dis-
sensos. As culturas se parecem com organismos vivos porque estão mudando
constantemente no tempo e no espaço, alimentadas por suas estruturas de

R
crenças e costumes, e motivadas interna e externamente por grupos sociais
antagônicos, mas em relação constante com seu ambiente significativo. Este

o
tipo de fenômeno é aqui estudado como pensamento complexo, assim exposto:
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O pensamento complexo tenta religar o que o pensamento disciplinar e


compartimentado disjuntou e parcelarizou. Ele religa não apenas domínios
separados do conhecimento, como também dialogicamente – conceitos anta-
visã
gônicos, como ordem e desordem, certeza e incerteza, a lógica e a transgres-
são da lógica. É um pensamento da solidariedade entre tudo o que constitui
nossa realidade; que tenta dar conta do que significa originariamente o termo
´complexus` o que tece em conjunto e responde ao apelo do verbo latino
itor

´complexere` abraçar. O pensamento complexo é um pensamento que pratica


a re

o abraço. Ele se prolonga na ética da solidariedade (MORIN, 1997a, p. 11).

As características estruturais da complexidade na teoria moriniana, seguem


a linha de Piaget, na medida em que elas traduzem a transdisciplinaridade como
par

aproximação entre o todo e suas partes: Para Morin (1997; 2001 b e c; 2002)
o pensamento complexo trabalha com a união das coisas pertinentes à vida
Ed

humana como um todo. Em geral, as pessoas têm dificuldades de compreender


um sistema de totalidade porque foram educadas para perceber as coisas de
modo separado e isolado. A cultura ocidental tende a criar atitudes e condutas
ão

que separam e isolam os conhecimentos, resultando em erros de avaliação dos


processos sociais e culturais. Em segundo lugar, o pensamento complexo é
contra determinismos, porque a lógica mecanicista conduz ao erro de achar que
s

todos os eventos estão previamente determinados, deixando de buscar novos


ver

caminhos inter-relacionais. Em terceiro lugar, é preciso lembrar que se vive


sempre num ambiente de incertezas, embora todos sempre busquemos alguma
ilha de certeza. Em quarto lugar, a realidade deve ser vista como multicausal.
A proposta é a da superação da causalidade linear, porque não explica convin-
centemente a realidade, por ser um sistema fechado, envolvendo causa e efeito
76

de modo simplista e maniqueísta. Este paradigma deve ser superado porque é


visto como disjuntor, simplificador e dualista entre razão e imaginação, sujeito
e objeto, liberdade e determinismo, sensível e inteligível, pensamento selvagem
e pensamento domesticado que ao separar e hierarquizar degenera o saber. A
transdisciplinaridade cria diálogo entre os diferentes e opostos.
A transdisciplinaridade valoriza as trocas de conhecimento com base em
princípios éticos norteadores das relações humanas. A auto ética, construída a

or
partir de seis ideias-guia, estas constituintes da restauração do sujeito respon-

od V
sável, a partir de suas interconexões sociais antropológicas e históricas. 1) a

aut
ética da realiança ou do religamento, englobando tudo o que contribui para a
comunicação, a associação, a solidariedade e a fraternidade e opõe-se ao que
fragmenta, desloca, rompe ou fecha a comunicação pela ignorância do outro. 2)

R
a ética do debate, própria da filosofia, da ciência e da democracia, que valoriza a
argumentação lógica e ao mesmo tempo rejeita os julgamentos autoritários e as

o
expressões de desprezo. 3) a ética da compreensão que valoriza o conhecimento
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do sujeito como sujeito, de modo que as relações interpessoais sejam sempre
dignas e o conhecimento político humanizado. 4) A ética da magnanimidade se
opõe à vingança, à tortura, à punição e ao terrorismo. Essa ética busca quebrar
os ciclos de ódio impiedoso, às vezes vistos em grupos étnicos, religiosos e
visã
de classe social. Sua característica é manifestar atos soberanos de clemência,
de generosidade para com os outros. 5) o incitamento às boas vontades, cuja
orientação se dirige para a abertura do ser humano a todas as tendências e
itor

horizontes. Ela ajuda a visualizar e a compreender os mais diversos tipos


a re

humanos: os inquietos, os bastardos, os órfãos, os generosos etc. 6) a ética da


resistência permite e fornece a energia necessária para que se diga não a todas
as tentativas de imposição autoritária, dogmática e escravizadora de quem quer
que seja sobre o ser humano (PESSOA, 2007; CARVALHO, 1999).
par

As ideias transdisciplinares estão presentes nos instrumentos de formação


da complexidade porque nela subjaz a noção de sistema, onde o todo se insere
Ed

no que é parcial e a parte no todo, de modo que eles ajam sempre de modo
relacional e conjuntamente (MORIN, 2001b). Esta noção pode ser explicada
no entendimento contemporâneo de ecologia. Referindo-se a acontecimentos
ão

no século XX, Morin assim afirma:

Enquanto o início deste século é também o início das ciências da dia-


s

lógica ordem e desordem, a segunda metade é a do surgimento do que


ver

podemos chamar de ciências sistêmicas. Sobretudo a ecologia – porque a


ecologia como ciência tem seu núcleo, a partir dos anos 35, na noção de
ecossistema, isto é, as interações entre os diferentes seres vivos, vegetais,
animais, unicelulares... E esse fenômeno organizado tem, é claro, um certo
número de propriedades que não se encontram nos elementos concebidos
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 77

isoladamente [...]. È preciso pensar que isso também faz parte de uma
desordem aparente, porque a hipótese atualmente em voga é de que, em
sua origem, a Terra era uma lixeira cósmica espontânea – isto é, detritos
cósmicos se juntaram, se agregaram e, então um longo processo ocorre:
o que é mais denso vai para o centro, forma-se a calota, os continentes
etc. (MORIN, 1999, p. 24).

or
A noção de circularidade (looping) diz respeito ao caráter retroativo desse
sistema transdisciplinar, onde o próprio efeito se torna sua causa, rompendo

od V
com o determinismo. A compreensão do mundo através do pensamento em

aut
espiral nos leva à percepção que se pode aprender da observação integradora
e transdisciplinar do nossos mundos: interior e exterior.

R
Estamos num universo entregue ao ruído e num mundo que contém acon-

o
tecimentos que somos incapazes de decifrar. Graças à redundância, quer
dizer, a toda estrutura de conhecimentos adquiridos de antemão, podemos
aC
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extrair uma informação do barulho que nos chega. [...] A informação nasce
do nosso diálogo com o mundo, e nele sempre surgem acontecimentos que
a teoria não tinha previsto[...] Nós mesmos somos uma máquina térmica e
visã
quimicamente regulada [...] através do elo retroativo. Quando ocorre um
desvio em relação a uma norma, a máquina se dedica a corrigir o desvio
[...]. Às vezes o desvio não é corrigido, e então o feedback positivo pode
ir para a explosão ou para a transformação, a revolução etc. Portanto é
itor

absolutamente capital esse pensamento em espiral (MORIN, 1999, p. 28).


a re

Outro componente da complexidade transdisciplinar é o conceito de


circularidade que se autoproduz. O próprio ser humano pode ser um exemplo
desse tipo de circularidade porque num primeiro momento ele é produto bio-
logicamente gerado, que se torna produtor ou o gerador de outras vidas. Tal
par

conceito indica que o sentido da vida pode estar em muitos aspectos: biológico,
histórico-cultural, sociológico e ecológico (PESSOA, 2007).
Ed

A ideia de holograma passa a noção de que um ponto contém toda a


informação do objeto a se destacar. O ser humano possui talvez mais de cem
ão

bilhões de células, mas em cada uma delas existe a totalidade do patrimônio


genético de cada humano.
O princípio dialógico é transdisciplinar porque ele se relaciona com o ciclo
s

nutritivo da natureza, ao permitir a todos os seres vivos (animais e vegetais), se


ver

alimentem uns dos outros como forma de continuidade da própria vida. Assim
também nas relações dialógicas humanas, as trocas de saberes, sentimentos
e experiências e dos humanos com a ecologia. O ciclo da vida é, ao mesmo
tempo, o ciclo da morte. Do mesmo modo, a semente passa pelo processo de
morte ao ser plantada, para se tornar uma árvore que produzirá outras sementes.
78

O princípio da integração entre: sujeito e objeto de conhecimento é


transdisciplinar, porque o objeto em estudo pode ser observado e concomi-
tantemente ser observador. Por fim, o pensar complexo considera também a
possibilidade de verdades e conhecimentos estarem misturados com erros,
conteúdos irracionais e superstições. As crenças de quaisquer natureza, não
estão imunes a erros e visões distorcidas da realidade. Por isso é importante
que, baseados neste princípio, os diversos grupos estejam sempre fazendo a

or
autocrítica de seus princípios, crenças e valores (PESSOA, 2007).

od V
O outro fundamento transdisciplinar do pensamento moriniano refere-se à

aut
proposta de ética da compreensão, baseada no princípio da incerteza e da eco-
logia da ação tolerante. O princípio da incerteza gera insegurança e conflitos
dentro de cada ser humano. Ninguém se sente bem ou feliz por estar inseguro.

R
Não parece motivo de orgulho para nós, humanos, a constatação de que não
nos conhecemos o suficiente para vivermos com a melhor qualidade de vida

o
que poderíamos viver. Somos muito limitados pela nossa fragilidade biológica
aC
diante dos perigos do mundo físico. Temos enormes limitações sensoriais

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que impedem que tenhamos certezas cognitivas e comportamentais. Nossos
órgãos sensoriais em geral não nos dão a real dimensão do mundo externo. Os
olhos e os ouvidos, por exemplo, captam apenas uma pequena percentagem
visã
da realidade de luz e som existentes no mundo ao nosso redor. Isso torna o ser
humano bastante vulnerável na captação da realidade (PESSOA, 2007). Os
instrumentos tecnológicos que facilitam em muitos aspectos a vida humana
itor

criam riscos, às vezes, impossíveis de prever e evitar. A ética da compreensão


a re

é um instrumento da transdisciplinaridade. Ela se baseia em três princípios: O


princípio da livre expressão; O princípio da tolerância; O princípio do respeito
pela verdade dos outros em relação à nossa própria verdade. O contrário de
uma verdade não é um erro, mas uma verdade contrária (PASCAL, citado
por MORIN, 1997 b). O contrário de uma verdade profunda não é um erro,
par

mas uma outra verdade profunda (NIELS BOHR, citado por MORIN, 1997
Ed

b). O inimigo está dentro de nós mesmos e não nos que afirmamos serem
nossos inimigos, afirma Morin.
As teorias de consistência cognitiva, formuladas nas décadas de sessenta
ão

e setenta, procuram explicar o fenômeno humano da busca de equilíbrio em


face das incertezas da vida, entre suas próprias crenças e sentimentos de um
lado, e os acontecimentos físicos e sociais, de outro lado (HEIDER, 1970;
s

PESSOA, 1983; 2003).


ver

Cada pessoa se movimenta, ao longo da sua existência, entre certeza


e incerteza. Ainda que naturalmente se abomine a incerteza porque ela traz
instabilidades, não se pode negá-la. A transdisciplinaridade pode nos oferecer
novos caminhos para pensar, entender nossos limites, e quem sabe, transformar
certezas em incertezas e seu oposto. Enfim, dialogar com o mundo e a natureza.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 79

Os Saberes para a Educação do Futuro numa abordagem


transdisciplinar

Qual o rumo mais adequado para que a humanidade evolua na direção


de uma educação mais consciente de si, do mundo científico e sociocultural?
Como podemos alcançar uma maior percepção dos problemas que nos cercam
e que permitam vislumbrar soluções que tragam benefícios, não apenas para

or
nós mesmos, mas para o maior número possível de pessoas? Morin (2000)

od V
sugere em Os sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, que se dê uma

aut
guinada na direção gnosiológica através da busca da implantação de uma edu-
cação consciente, laica, democrática, livre e comprometida com o bem-estar de

R
todos os segmentos da sociedade. Essa educação laica penso eu, por ser livre,
consciente e democrática, não poderá cercear as liberdades de opinião e crença
de indivíduos e pequenos grupos de se manifestarem segundo os ditames de

o
sua consciência, respeitando sempre os limites legais (PESSOA, 2007).
aC
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1. Precisa-se ensinar que todo conhecimento está sujeito a erros e


ilusões, por isso é preciso “introduzir e desenvolver na educação o
estudo das características cerebrais, mentais, culturais dos conhe-
visã
cimentos humanos” (MORIN, 2000, p. 14). A busca desse conhe-
cimento transdisciplinar vai aproximar pessoas com pensamentos
diferentes e antagônicos, que através da dialogia, muito provavel-
itor

mente colocarão em xeque os possíveis erros e ilusões.


a re

2. Precisa-se ensinar que o conhecimento transdisciplinar trabalha com


a noção de conjunto, que facilita a compreensão dos problemas uni-
versais em toda sua complexidade, inserindo nele os conhecimentos
parciais e locais, sem fragmentá-los. Partindo do fato de que vivemos
par

num ambiente cada vez mais global, todos precisam se conscientizar


de que estão submetidos aos mesmos problemas da vida e da morte
Ed

e que partilham do mesmo destino, por isso devem estar conscientes


que têm uma identidade terrena comum, e que precisam defendê-la.
3. Precisa-se ensinar que cada ser humano traz em si, concomitantemente,
ão

a condição de um ente físico, biológico, psíquico, cultural, social e


histórico. Tal compreensão evidencia o elo indissolúvel entre a unidade
e a diversidade das pessoas de todos os lugares e de todos os tempos.
s

4. Precisa-se ensinar que, baseados nos princípios científicos da Física,


ver

da biologia e da História, as pessoas deveriam ser educadas para


enfrentar possíveis incertezas e imprevistos da vida. É preciso
aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arqui-
pélagos de certeza. (MORIN, 2000, p. 16). A interdisciplinaridade
pode ajudar as pessoas muito focadas ideologicamente a praticar um
80

maior equilíbrio em suas relações ingroup (nós) e outgroup (eles),


a partir deste princípio (PESSOA, 2007).
5. Precisa-se ensinar que a compreensão mútua entre todos os seres
humanos é de vital importância para a superação de racismos, xeno-
fobia e atitudes beligerantes para, em lugar disso, se trabalhar a edu-
cação para a paz em todos os grupos sociais, comunitários, religiosos.
As diferenças de crenças, de atitudes, de rituais e de comportamentos

or
não deveriam ser causa de brigas e ressentimentos, mas, deveriam

od V
gerar oportunidades de aproximação entre os diferentes grupos.

aut
6. Precisa-se ensinar o caráter ternário da condição humana que leva
as pessoas a se perceberem, como indivíduo/sociedade/espécie.
Com base nessas premissas, defende-se uma ética antropológica,

R
de desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das par-
ticipações comunitárias e da consciência de pertencer à espécie

o
humana (MORIN, 2000, p. 17).
aC
7. Precisa-se ensinar a antropoética (MORIN, 2000), como o sétimo

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saber necessário para se mudar a qualidade da educação. Existem
diversos aspectos a serem considerados: um individual, outro social
e outro genético (relativo à espécie). A antropoética trabalha a liga-
visã
ção entre: indivíduo, sociedade e espécie. Cabe a nós humanos
desenvolvermos, concomitantemente, a ética e a autonomia pessoal,
além de se trabalhar a participação nas responsabilidades sociais, já
itor

que partilhamos de destinos comuns locais e globais.


a re

A antropoética somente é aplicável onde há democracia, porque ela per-


mite a interação entre indivíduos e sociedade na abertura de caminhos de soli-
dariedade e responsabilidade cidadãs. Com o voto se elege os representantes
políticos, cujos mandatos são acompanhados pelo cidadão no exercício de
par

sua responsabilidade social e política. A democracia permite a circulação do


poder, a partir de regras preestabelecidas, onde os atores sociais controlam e
Ed

são controlados (PESSOA, 2007). A democracia está sempre em construção,


por isso ela não pode ser absoluta.
ão

A ética não pode reduzir-se ao político, o político não pode reduzir-se


à ética. Não podemos nem opor absolutamente, nem complementarizar
s

harmoniosamente estes dois termos. Estamos condenados à sua dialógica,


isto é, manter o seu elo indissociável e ao mesmo tempo o seu antagonismo
ver

irredutível. Só essa dialogia pode fazer da política a arte do incerto, uma


grande arte ao serviço dos humanos (MORIN, 1997c, p. 202).

As Ciências Econômicas e as novas tecnologias funcionam melhor


quando estão a serviço da cidadania e da justiça social através do controle
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 81

social, mediado pelas associações e representações sociais da totalidade dos


segmentos populacionais (PESSOA, 2007).
O sistema democrático, através de regras iguais para todos, facilita o estabe-
lecimento da liberdade. Morin (1999) divide a liberdade em interior ou subjetiva
(aquela mentalmente possível e liberdade exterior ou objetiva (aquela material-
mente possível, pela ação). Cada pessoa é livre quando pode tomar a decisão de
escolher entre duas ou mais alternativas. Se uma pessoa se sente livre ela pode

or
tentar agir e se dar conta de suas próprias limitações e restrições, sejam elas eco-

od V
lógicas, hereditárias etc. Liberdade para Morin significa “autonomia dependente”.

aut
O que produz autonomia produz dependência, que produz autonomia [...]
genos (organização genética) dá ao anthropos autonomia com relação ao

R
oikos (ambiente natural), mas colocando-o, ao mesmo tempo, em sua
dependência [...] a auto-organização viva associa, no indivíduo, de modo

o
indissociável e complementar, o genos (a espécie, o patrimônio heredi-
aC
tário, o processo de reprodução) e o phenon (o indivíduo hic et nunc) no
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mundo dos fenômenos. A existência social dá autonomia ao ser humano


através dos desenvolvimentos técnicos ligados a campos diversos, tais
como agricultura, transportes, indústria, comunicações, etc., que se tornam
visã
em efetiva dominação da natureza e que resultam na multiplicação das
dependências (MORIN, 1999, p. 14-15).

Somos sujeitados culturalmente através de normas, tabus, mitos e cren-


itor

ças internalizadas. A interface da liberdade com a dependência faz com que


a re

a sociedade se movimente em torno das relações sociais e costumes das cul-


turas locais e gerais, facilitando tanto as mudanças quanto a sua resistência.
O indivíduo não só é limitado por sua herança genética e sujeitado pela
sociedade e pela cultura, mas também pode ser dominado por suas ideias. Os
par

deuses socialmente constituídos e alimentados pelas comunidades (MOSCO-


VICI, 1990) submetem as pessoas a suas crenças valores e determinam o que
Ed

elas devem fazer. O poder da ideologia tem feito muitos estragos entre os seres
humanos ao longo dos séculos, seja via religião dogmática e autoritária, seja
via regimes políticos autoritários e outras formas de dominação.
ão

Quantos milhões de indivíduos não terão sido vítimas da ilusão ideológica,


acreditando trabalhar para a emancipação humana, mas trabalhando na
s

verdade para sua dominação? [...] A liberdade encontra-se numa relação


ver

dialógica com as ideias, que possuímos e que, simultaneamente, nos pos-


suem (MORIN, 1999, p. 21).

Os caminhos da liberdade não estão nas concepções deterministas e autori-


tárias, porque elas induzem as pessoas à ilusão advinda de crença na existência
82

de uma verdade única que deva ser imposta. Uma determinação autoritária
resultará em ideias reducionistas que certamente implicarão em políticas sociais
que privilegiarão apenas as elites da sociedade. A teoria da complexidade afirma
e discute a falência das explicações unilaterais e totalizadoras. Em vez disso,
propõe a criação da civilização das ideias e com ela superar a disciplinaridade
fechada, da especialização impotente, da arrogância da superioridade da cultura
científica sobre os saberes da tradição secular do ser humano. As concepções

or
puramente espiritualistas são rejeitadas porque defendem apenas o lado dos

od V
valores espirituais, esquecendo que os humanos precisam também de interação

aut
com as condições físicas, biológicas, histórico-culturais e sociológicas. A trans-
disciplinaridade se refere à troca de todos os saberes vividos pelos humanos
sem hierarquizá-los ou privilegiar uns sobre outros.

R
A autonomia humana e as possibilidades de liberdade se produzem, não

o
ex nihilo, mas pela e na dependência anterior (patrimônio hereditário), na
aC
dependência exterior (ecológica), na dependência superior (a cultura), que

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coproduzem esta autonomia, a permitem, a nutrem, ao mesmo tempo em
que a limitam, a subordinam, estando em permanente risco de dominá-la
e destruí-la (MORIN, 1999, p. 22).
visã

O sistema é visto como fator de religação ou conexão entre os mais diver-


sos saberes humanos. Um desses fatores em que a teoria busca demonstrar,
são os benefícios sociológicos de representações, funções e efeitos da religião
itor

ou da religiosidade entre os seres humanos. Morin & Kern (2001) se mostram


a re

interessados em evidenciar a eficácia da religião quanto à sua possibilidade de


produção dialógica de relacionamentos pessoa-pessoa, pessoa-comunidade,
pessoa-cultura, pessoa-ambiente. Para os que têm fé, a religião não se limita
ao aspecto sociológico do cultivo das boas relações entre os humanos. Além do
par

poder de ligar o humano ao intangível, ao sublime, a cultura religiosa se conecta


a outros aspectos das vidas das pessoas, desde o nascimento até a morte. Ela
Ed

também implica em relacionamentos ou em alguma forma de união entre pes-


soas e grupos humanos mais ou menos iguais, ou até mesmo diferentes entre si.
O sistema religioso faz parte dos sistemas sociais. Segundo Luhmann (2016, p.
ão

30), os sistemas sociais têm entre suas muitas características, a diferenciação


funcional e sistêmica, porque têm “a capacidade de produzir relações consigo
mesmos e de diferenciar essas relações perante as do seu ambiente”. Eles
s

diferenciam as pessoas, que são sistemas psíquicos ancorados na consciência,


ver

dos sistemas sociais, referenciados na comunicação, colocando ambos como


relevantes e complementares na compreensão do todo social.
Por que a complexidade pode servir de embasamento do fenômeno das
culturas religiosas e políticas? Porque ele permite ver estes fenômenos encar-
nados no ser humano biológico (indivíduo) com suas crenças ideológicas,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 83

integradas e dependentes da cultura, da sociedade e da ecologia. As formas


culturais, religiosas e as relações de cidadania não são vistas como algo com-
partimentado ou isolado das outras atividades humanas, mas percebidas como
partes (não repartidas) e integrantes de uma totalidade, onde todas as áreas em
interdependência se complementam. As experiências humanas, na vida política
secular ou laica, são afetadas na mesma medida em que afetam as experiências
religiosas e vice-versa. Na prática, as pessoas raciocinam, sensibilizam-se e

or
tomam suas decisões e atitudes com base nas suas experiências totais. Circuns-

od V
tancialmente, determinados fatores pesam mais que outros, mas em função de

aut
valores socialmente postos, em oposição aos valores do indivíduo ou de seu
grupo mais próximo. Uma pessoa religiosa levará para seu ambiente laico de
cidadania suas esperanças, crenças e vivências e trará para o ambiente religioso

R
seus planos, objetivos, frustrações e as expectativas de todos os outros espaços
de sua vida. Na cultura ocidental, fortemente influenciada por valores religio-

o
sos cristãos, as pessoas não religiosas também tenderão a manifestar crenças,
aC
valores e atitudes próprios da cultura cristã. As vidas: política e religiosa for-
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mam um sistema complexo porque ambas acontecem em conjunto com outros


sistemas de pensamento, de sentimento, de atitude e de ação no ser humano.
visã
Extensão universitária transdisciplinar em comunidades da
tríplice fronteira Brasil/Peru/Bolívia
itor

A tríplice fronteira na Amazônia Sul-Ocidental é uma região ambiental-


a re

mente estratégica porque ainda é um santuário ecológico, quase totalmente


preservado, com cerca de 85% de florestas virgens. A Rodovia Transoceânica
une as capitais: Rio Branco (Brasil), Cobija (Bolívia) e Perto Maldonado (Peru)
e outras cidades dos três estados (Acre, Pando e Madre de Dios). Iñapari (Peru)
par

e San Pedro de Bolpebra (Bolívia). Saiba que na palavra bolpebra, que signi-
fica: Bolívia, Peru e Brasil, existe implicitamente uma ideia transdisciplinar.
Ed

Desde 1890 até a década de 1970, toda essa vasta região era totalmente ocu-
pada pelos trabalhadores da floresta na exploração da borracha da seringueira. No
caso brasileiro, os trabalhadores vieram do semiárido nordestino. Muitos serin-
ão

gueiros/caucheiros bolivianos e peruanos desceram a serra e ocuparam a Amazô-


nia. De 1970 para cá, a profissão de seringueiro acabou-se, e a região se tornou,
basicamente, uma fronteira de exploração madeireira e produção agropecuária.
s

Do ponto de vista geopolítico, no final do século XIX e início do século


ver

XX brasileiros e bolivianos entraram em confronto bélico. A “Guerra del Acre”


foi travada entre seringueiros brasileiros e o Exército boliviano, por causa da
borracha, o chamado “ouro negro” (PESSOA, 2007; 2014 a; 2014 b; 2016;
2020 a; 2020 b). Com a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903) esse con-
flito foi totalmente superado. A História do desenvolvimento socioeconômico
84

e cultural dessa fronteira vem testemunhando a criação e ampliação de laços


de amizade e amor entre peruanos, bolivianos e brasileiros desde os tempos
da produção da “goma” da borracha. O convívio é de vizinhança, de trocas
educacionais, religiosas, comerciais, linguísticas, no campo do trabalho e até
casamentos são muito comuns ali, entre esses povos de diferentes nacionali-
dades e etnias, assim como outros tipos de relações fronteiriças que ocorrem
todos os dias (PESSOA, 2006; 2020 a).

or
Alguns fatores são fundamentais para se entender melhor a realidade da

od V
convivência social e as redes de comunicação entre os povos dessa região nos

aut
dias atuais. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que quase todos eles têm uma
origem comum: são filhos originários da floresta. Seus pais e avós foram serin-
gueiros e eles ainda mantêm alguma forma de relacionamento com o mundo

R
rural. As populações que vivem na Amazônia, em geral, são descendentes de
indígenas que habitavam na região e de nordestinos que vieram trabalhar no

o
extrativismo da borracha, formando o tipo caboclo. Em segundo lugar, preci-
aC
samos lembrar que não havia escola no seringal, por isso os seringueiros eram

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analfabetos, seus filhos também o eram e, por isso, até hoje o Acre é deficiente
em educação básica. Em terceiro lugar, quanto à estrutura viária, sempre foi o
rio que comandou a vida da região. Dos últimos trinta anos para cá, as cidades
visã
estão cada vez mais próximas umas das outras após a construção da rodovia.
As capitais dos três estados fronteiriços estão situadas num raio máximo de 575
quilômetros de distância (Rio Branco – Puerto Maldonado). Entre Rio Bran-
itor

co-Acre-Brasil e Cobija-Pando-Bolívia são 240 quilômetros; Entre Cobija e


a re

Puerto Maldonado, na Regional de Madre de Dios-Peru, são cerca de 340,


pela BR 317, a Rodovia Transoceânica. Mas, distante da rodovia, as cidades
menores ainda usam o sistema viário tradicional na região, o fluvial, que fun-
ciona através de pequenos barcos motorizados e canoas motorizadas e a remo.
As instituições de ensino superior dessa tríplice fronteira amazônica foram
par

criadas a partir dos anos 1970, justamente no momento em que os seringais


Ed

brasileiros entravam em falência e eram vendidos para os fazendeiros e peque-


nos produtores rurais do Sul e do Sudeste do Brasil, que transformaram parte
desses seringais em campos de gado. Com a falta de trabalho nos seringais as
ão

cidades foram invadidas pelas famílias seringueiras, que ocuparam as periferias,


criando as chamadas “invasões” de terra de antigas fazendas localizadas no
entorno das cidades (PESSOA, 2020 a, b). Assim, criou-se uma pressão para o
s

crescimento das cidades e consequentemente, a sua estratificação social, com


ver

a valorização dos lotes de terra localizados no centro das cidades.


A Universidade Federal do Acre – UFAC foi idealizada, logo após a
passagem do Território Federal do Acre à categoria de Estado, por uma elite
intelectual da cidade de Rio Branco ligada à Justiça Estadual. Seu início se
deu em 1964, com a criação do Curso de Direito e sua federalização ocorreu
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 85

em 1974 com a criação de mais cinco cursos. Hoje a UFAC tem quase cin-
quenta cursos de graduação. A Universidad Amazónica de Pando–UAP (Bolí-
via) foi criada em 1984 e a Universidad Nacional Amazónica de Madre de
Dios –UNAMAD (Peru) foi criada no ano 2000.
Entre 1999 e 2000 alguns intelectuais pertencentes a essas universidades
e líderes regionais organizaram a primeira iniciativa transdisciplinar para
discutir problemas e oportunidades regionais envolvendo: trabalhadores da

or
floresta e do campo, as diversas etnias de povos indígenas, estudantes etc.

od V
A Iniciativa e Fórum Madre de Dios, Acre e Pando (MAP) era um grupo de

aut
pessoas interessadas em discutir a região de modo transdisciplinar. Ao longo
desses anos até 2015, aconteceram cerca de dez fóruns MAP nas cidades de
Rio Branco, Brasiléia/Epitaciolândia, Cobija e Puerto Maldonado. As áreas

R
de convergência transdisciplinar eram Direitos humanos, Economia/ políticas
públicas e Meio ambiente. Nos intervalos entre os fóruns anuais, as áreas

o
específicas acima citadas se reuniam em algum local da região tri-nacional.
aC
Eu participei de quase todos esses Fóruns e de “mini-maps”, como um dos
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líderes da área de Direitos Humanos (PESSOA, 2014 a).


Uma outra ação transdisciplinar desenvolvida na tríplice fronteira
entre 2010 e 2014, da qual eu também tive a honra de participar de modo inte-
visã
gral e ativamente, foi o Projeto de Transferência de Tecnologia da Metodologia
Projeto Rondon para as Universidades Peruanas, patrocinado pela Agência
Brasileira de Cooperação (ABC), do Ministério das Relações Exteriores com a
itor

participação da “Asamblea Nacional de Rectores” do Peru. Participaram direta-


a re

mente dessa ação uma equipe igualitária de Madre de Dios nas cidades de Assis
Brasil (Brasil), Iñapari, Ibéria (Peru) e San Pedro de Bolpebra (Bolívia). As
áreas trabalhadas de modo transdisciplinar foram: Cidadania e Cultura; Saúde
e Meio ambiente. O objetivo dessa ação foi despertar a consciência daquelas
comunidades para uma postura política e cidadã crítica. Metodologicamente,
par

enfatizávamos as ações de extensão como busca de diálogo entre academia e as


Ed

comunidades locais, concebidas como um tecido unido ao todo cultural/social/


ecológico. As ações se desenvolveram durante quatro anos consecutivos com:
palestras dialogadas nas escolas, nas associações comunitárias e outros locais
ão

públicos envolvendo os povos indígenas Yine (da Aldeia localizada no antigo


Seringal Bélgica), camponeses, moradores dos diversos bairros das cidades,
palestras educativas na emissora de rádio da cidade de Iñapari etc.
s

As principais atividades desenvolvidas foram: 1) Apresentação de filmes


ver

abordando temáticas sociais-familiares e comunitárias, seguidos de debates


e discussões sobre os temas apresentados a cada dia; 2) Aulas de danças fol-
clóricas dos três biomas peruanos: Costa, serra e selva; 3) Prática de canto
coral com pessoas das cidades interfronteiriças com ensaios e apresentações
em Português e Espanhol para as pessoas das comunidades; 4) Contações de
86

histórias para crianças da região; 5) Aulas dialogadas nas escolas públicas


sobre educação e cidadania, educação ambiental e boas práticas de saúde.
6) Constituição de grupos permanentes de voluntários ambientais locais; 7)
Visitas do grupo operativo às famílias das três cidades com orientação em
saúde, cidadania e meio ambiente, direitos humanos, nutrição, DSTs, hiper-
tensão arterial para idosos, mulheres, professores, funcionários, crianças,
adolescentes e todos os demais segmentos da comunidade. A interação foi

or
positivamente evidenciada pela resposta da comunidade: grande afluxo de

od V
pessoas participando de cada etapa e do enceramento das temporadas.

aut
Outra atividade transdisciplinar foi desenvolvida nessa região tri-nacional,
quando estive à frente da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade
Federal do Acre (nov. 2012-nov. 2016 e em 2018). Iniciamos e buscamos man-

R
ter contatos permanentes com professores, técnicos e alunos da UNAMAD
(Peru) e da UAP (Bolívia) com o intuito de fortalecer os laços transdiscipli-

o
nares entre as nossas instituições de ensino superior da fronteira, inclusive
aC
com aqueles colegas da Unamad que já haviam trabalhado conosco no projeto

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citado anteriormente. Foi criado um projeto de extensão intitulado: “Seminário
Internacional de Extensão Universitária” (SIEU), com seis edições seguidas,
divulgando saberes científicos e culturais, protagonizados pelas Universidades
visã
Federais localizadas na fronteira dos três países. Para as diversas edições do
SIEU, além das universidades da nossa fronteira tri-nacional, participaram outras
Instituições de ensino Superior da Amazônia brasileira, tais como Universidade
itor

Federal do Pará, Universidade Federal de Rondônia, Universidade Federal de


a re

Roraima, Universidade Federal de Tocantins, além da Universidad Pablo Olavid,


da Espanha e Universidad Nacional San António Abad de Cusco entre outras.

Considerações finais
par

O desenvolvimento da humanidade, ao longo dos séculos e milênios tem se


Ed

mostrado como uma história de benefício para as elites, geralmente deixando as


massas populacionais sem acesso às oportunidades. A tendência das Ciências e
tecnologias têm sido direcionadas à especialização e à disciplinaridade fechada.
ão

Contrariando essas tendências de privilegiar as elites e focar unicamente nas


especializações, este trabalho destacou o que vem sendo feito com a transdiscipli-
naridade desenvolvida por Piaget e Morin aplicando-a no diálogo entre os povos
s

da Amazônia Sul-Ocidental, como forma de superação de suas dificuldades.


ver

Os povos da tríplice fronteira da Amazônia Sul-Ocidental são aprendizes e


praticantes das concepções transdisciplinares na vida comunitária, ao enfrentarem
os mais diversos obstáculos físicos, de saúde, sociais, culturais e espirituais oriun-
dos da própria cultura e acharem soluções com base na troca de saberes da natureza
da própria floresta, nos saberes sociais e culturais, usando sua criatividade.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 87

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or
od V
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Tradução: Natanael C. Caixeiro, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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2. ed. Tradução: Celia E. A. Di Piero, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
O USO DAS IMAGENS NAS
NARRATIVAS EM TEMPOS DE
PANDEMIA DA COVID-19

or
od V
Denise Machado Cardoso

aut
Introdução

R
A situação de isolamento social imposta pela pandemia decorrente do

o
Vírus SARS-CoV-2 provocou alterações substanciais no cotidiano de dife-
aC
rentes grupos sociais em escala planetária. Houve modificações nas rotinas
de trabalho, lazer e nas práticas familiares, ocasionando impactos socioam-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

bientais ainda em processo, mas que pedem estudos e reflexões acerca desse
momento histórico. Nesse cenário se observa que a interconectividade está
visã
sendo mais intensa, fazendo com que a comunicação por meio virtual seja
bastante elevada. Notadamente, as mídias sociais (ou as redes sociais) que
se utilizam de mensagens rápidas e com vocabulário adequado às limitações
itor

por caracteres (como é o caso do Twitter), Giff1, ou aquelas com vídeos, com
a re

fotografias e com os memes2, passaram a ser relevante instrumento de infor-


mação e comunicação nesse período de confinamento.
Baseada na Antropologia Visual e tendo como estratégia de pesquisa
a etnografia no ciberespaço, ou etnografia virtual, observei diariamente
postagens de pessoas que tem perfil no Instagram e no Facebook e suas
par

manifestações intertextuais referentes a COVID-19. Parafraseando Etienne


Ed

Samain (2012), busco compreender como pensam as imagens? Como é


possível compreender as realidades sociais a partir das diferentes nar-
rativas audiovisuais? Nesse exercício etnográfico faço uma análise das
ão

narrativas relacionadas ao contexto atual brasileiro e, em parte, àquelas


próprias às realidades do Estado do Pará. Para tanto, busquei identificar e
agrupar como as pessoas se manifestam sobre os acontecimentos que ora
s

impactam em suas vidas.


ver

1 Paulo Korpys, e sua equipe de investigação, define Gif (Graphics Interchange Format ou formato de inter-
câmbio de gráficos) como “uma imagem em loop que não é bem um vídeo, que não tem botão de reprodu-
ção nem som, que se repete até desviar o olhar (KORPYS, 2019) ”. Gif pode ser considerada como uma
micronarrativa utilizada na Internet.
2 A palavra meme tem origem grega, significando imitação. No contexto da Internet passou a ser utilizado como
o processo de “viralização” de uma informação, imagem ou vídeo e, geralmente, apresenta teor humorístico
(DAMASCENO, 2017). Uma outra característica dos memes é a utilização de intertextualidade, ou seja, há
algum diálogo/texto que o precede.
92

Massimo Canevacci, ao discutir fenômenos abrangentes, utiliza-se da


ideia proposta por Ronald Robinson de que o Glocal é um conceito pertinente
nas explicações de várias situações do século XXI, posto que ocorre um mix
entre o Global e o Local desde a intensificação do processo de Globalização.
Para Canevacci (2013), a trama das redes comunicacionais é cada vez mais
complexa e caracterizada pela acentuada interatividade em termos da paisa-
gem do Glocal. Diante disso, a pandemia da COVID-19 se apresentou como

or
um desses fenômenos planetários que abrangem diversas culturas e que são

od V
interpretados e codificados em termos locais.

aut
A etnografia virtual me permitiu perceber que o Brasil vive um grande
desafio trazido pela pandemia. De um lado se tem os efeitos do próprio Vírus
SARS-CoV-2 e por outro há os embates decorrentes dos direcionamentos

R
políticos no âmbito federal e estadual. As narrativas apresentadas ao longo
desse período de estudo demonstram um imbrincado cenário onde constam

o
discussões nas quais destaco a saúde pública como um todo, as desigualdades
aC
sociais, os cuidados preventivos pela higiene e o isolamento social, as disputas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


políticas e protagonismo em diferentes níveis da gestão pública, e os conflitos
provocados entre grupos que trazem percepções diferenciadas.
Se nos demais países o enfrentamento aos efeitos do Vírus SARS-CoV-2
visã
demandou esforços em várias frentes, no Brasil tem-se um outro elemento
que apresenta esse país com o diferencial de ter uma crise na saúde e política.
Esse embate duplamente perverso para a população veio marcado pela guerra
itor

contra os fatos em “tempos de Fake News”, pois a disputa entre narrativas


a re

acerca do que se enfrenta marca a negação do conhecimento científico, mesmo


que sustentado em evidências científicas, e as recomendações da Organização
Mundial de Saúde (OMS) e instituições de pesquisa.
As imagens trazidas neste estudo são uma amostra do que circulou no
período em que se iniciava o contágio pelo vírus e no momento em que houve
par

maior incidência da COVID-19. Várias foram as postagens que retratam em


Ed

charges, gravuras e memes os desafios que essa pandemia nos obrigou a


enfrentar. Na virtualidade, as práticas cotidianas foram reatualizadas em prol
da defesa da vida e nesse contexto são exemplares as expressões artísticas
ão

retrabalhadas em formato de lives para atender aos anseios de um público


recolhido em casa, a participação política e o debate sobre decisões governa-
mentais também apresentaram manifestações on line. Esses e outros aspectos
s

da vida em sociedade ganharam uma maneira própria e sem precedentes, posto


ver

que passaram a ocorrer via Internet.


A vida como um todo foi tema de reflexão e as mídias sociais se torna-
ram terreno fértil para as conversas e discussões dos mais variados temas.
As imagens postadas são apenas uma parte das narrativas que compuseram
a agenda de debates em tempos de pandemia.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 93

Antropologia visual e a etnografia virtual em tempos de pandemia

A campanha pelo isolamento social, precisamente aquela que incentiva


as pessoas a ficarem em casa, foi utilizada como uma forma de conter o
avanço da pandemia pois, segundo indicação da Organização Mundial da
Saúde (OMS) em declaração divulgada em janeiro de 20203, a diminuição
de aglomerações produz eficácia no ritmo da proliferação e na quantidade

or
de pessoas infectadas, e consequentemente, reduz o número de óbitos. No

od V
estado do Pará, a campanha favorável ao isolamento social teve início em

aut
meados do mês de fevereiro e contou com a adesão do governo do estado e
instituições educacionais em vários níveis de ensino. Como já mencionado,

R
esse isolamento intensificou o uso de mídias sociais para o desenvolvimento
de diferentes tarefas, provocando o aumento no acesso a diferentes sites e

o
plataformas, bem como na troca de mensagens por diversos aplicativos.
No estudo sobre a maneiras de narrar esse momento optei pelo uso de
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

imagens, pois na pesquisa antropológica, e em especial na Antropologia


Visual, a abordagem preza a investigação sobre a maneira como as pessoas
se expressam a partir de fotografias, gravuras, desenhos e outras artes visuais.
visã
Assim, a observação das imagens divulgadas em aplicativos e perfis passou a
ser feita desde meados de março de 2020, ocasião em que passei a trabalhar
em casa devido à suspensão de atividades presenciais na Universidade Federal
itor

do Pará4, instituição na qual atuo como docente.


A estratégia de pesquisa que utilizei foi baseada na etnografia no ciberes-
a re

paço, ou etnografia virtual, o que me levou a observar diariamente as postagens


de pessoas que tem perfil no Instagram e no Facebook, e suas manifestações
referentes ao atual contexto referente a COVID-195. Neste contexto, analiso as
postagens feitas em três momentos distintos, mas próximos em termos desse
par

evento. O primeiro abrange os dias de 20 a 30 de março de 2020, período em


houve intensificação da campanha para as pessoas aderirem ao isolamento
Ed

social, usualmente denominada como “Fica em casa”; o segundo se refere ao


ão

3 A OMS divulgou em seu site oficial um documento específico sobre a pandemia do SARS-CoV-2.
4 A partir da decisão colegiada pela interrupção de aulas, eventos acadêmicos e administrativos no molde
presencial, a maneira como passaram a ser exercidas as funções de docente e pesquisadora foi, predomi-
nantemente, via internet. A utilização do chamado home-office, ou trabalho em casa, provocou intensidade
s

na troca de mensagens e postagens por diferentes assuntos e motivações dentre aqueles profissionais
ver

que puderam permanecer em seus lares sem interrupção de seus afazeres. Esse cenário foi um fator
determinante para a realização dessa pesquisa, pois chamou minha atenção a intensidade e volume de
mensagens que passaram a ser trocadas nesse período.
5 Embora haja várias redes sociais como é o caso do Reddit e do LinkedIN, houve uma preferência para as
mídias/redes sociais que tenham ampla adesão e que possibilitem a participação de internautas. O Reddit
é um fórum de debate com reduzida adesão no Brasil e o do LinkedIN é voltado, predominantemente, para
a apresentação de perfil profissional.
94

período entre os dias 01 a 10 de abril, momento em que o debate se intensificou


devido as ações do governo federal brasileiro e a repercussão internacional que
isso acarretou; o terceiro período em que realizei a observação compreende
o intervalo que se inicia no dia 20 de abril e se estende até dia 30 desse mês,
momento em que o presidente Jair Bolsonaro se posicionou diante do aumento
expressivo do número de óbitos provocados pela COVID-19.
Na observação das postagens sobre a campanha “Fica em casa” e os

or
desdobramentos acerca do COVID-19 procurei enfatizar aquelas que traziam

od V
memes e charges relacionados a esses temas e outros correlatos. Destarte,

aut
realizei a classificação das imagens postadas de acordo com os assuntos abor-
dados no período indicado.

R
As reações expressas nas postagens em diferentes comunidades virtuais
indicam o debate sobre as políticas públicas de saúde, questões sobre trabalho e

o
renda, ações governamentais em diferentes instâncias, o embate entre manifes-
tantes favoráveis ou desfavoráveis ao atual Presidente da República, e a questão
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


geracional posta em destaque devido à maior periculosidade do vírus para certas
faixas etárias e portadores de doenças prévias, tidas como “grupos de risco”.
Em muitos casos, as pessoas compartilham e postam as mesmas coisas
visã
em diferentes mídias sociais, repetindo as imagens. Devido à particularidade
de cada uma dessas mídias, há reações e comentários de outras pessoas. Con-
tudo, o interesse desse trabalho é observar como se expressam os titulares dos
perfis a partir das imagens postadas e compartilhadas nas comunidades virtuais
itor

a quem pertencem. Assim, a etnografia no ciberespaço ou antropologia virtual


a re

mostrou-se como uma alternativa para conhecer diversas realidades sociais6.


Uma das discussões interessantes da Antropologia Visual diz respeito aos
usos das imagens nos trabalhos apresentados por quem se utiliza da etnografia
como uma estratégia de pesquisa. As imagens são algo que não se encerra em
par

mera ilustração dos textos escritos, pois trazem em si múltiplas possibilidades


de interpretação do fazer etnográfico, das pessoas envolvidas na pesquisa
Ed

e suas idiossincrasias, das técnicas de captura das imagens, das realidades


investigadas, dentre outras questões. A complexidade se dá, portanto, devido
à maneira como as diversas formas de expressão das realidades pela imagem
ão

(fotografia, cinema, gravuras, desenhos...) são divulgadas.


É importante trazer ao debate o predomínio da escrita nos trabalhos cien-
s

tíficos. No dizer de Etienne Samain (1995) há uma ênfase secular na escrita,


ver

o que nos impede a exercitar outras formas de narrativas na apresentação de


resultados de nossos trabalhos científicos. Deixamos de utilizar as imagens

6 Uma outra maneira de debater a etnografia nesses tempos de confinamento voluntário foi proposta nas
reflexões sobre o que defino como Etnografia da Janela, cujo texto foi publicado em 10 de abril de 2020 no
Blog “Cofinaria: etnografias em tempos de pandemia”: https://confinaria.hypotheses.org/category/textos
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 95

até mesmo de modo complementar ao texto escrito ou quando muito, elas


aparecem de maneira aquém de suas possibilidades interpretativas.
Inspiração para a maioria de pesquisadores que se utilizam da experiência
de trabalho de campo, a obra de Bronislaw Malinowski (1976 [1922]) apre-
senta a inclusão de imagens de tal modo que ainda nos dias atuais necessita
ser constantemente revisitada. Segundo Malinowski, o tratamento dado às
fotografias na escrita etnográfica desponta com protagonismo pois é a partir

or
delas que o texto será estruturado e não o contrário. A construção do texto é

od V
iniciada, portanto, pelas imagens e elas darão sentido à descrição e interpre-

aut
tação do que é trazido pela pesquisa de campo.
Postas próximas umas às outras é possível estabelecer uma comparação
entre as charges, memes e outras formas de expressões imagéticas, propi-

R
ciando inferências sobre “como pensam as imagens”. Como indica Jorge Coli
(2012, 45) “comparar é uma forma de compreensão silenciosa da relação entre

o
as imagens” e as informações que delas podemos extrair depende do modo
aC
como as observamos agregadas, separadas, classificadas e outros exercícios.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A observação na seleção de que imagens são utilizadas neste estudo parte


de alguns critérios, conforme assinalado anteriormente. Diante disso, o assunto
que motivou a produção imagética está relacionado à pandemia. Segundo este
visã
critério, a inclusão ou exclusão das imagens postadas, no período estabelecido
para esta investigação, foi feita a opção por determinadas imagens e posterior
comparação entre elas. Nesse aspecto, reporto-me ao que Ronaldo Entler
itor

(2012, 133) propõe, pois “É preciso reconhecer na imagem a possibilidade


a re

de aproximar e justapor referências, mesmo que desprovidas a prioi de um


sentido comum”. Inspirada nessas ideias quanto aos procedimentos com as
imagens, apresento algumas que viralizaram, isto é, circularam intensamente
nas mídias sociais, locais onde ocorreu esta pesquisa etnográfica.
par

Ficar em casa: a imposição que provoca reflexão sobre ser


Ed

humano

A pandemia impôs uma série de alterações em escala global e pode ser


ão

sentida por todos os seres viventes. As mudanças foram percebidas em todos


os ecossistemas do planeta pois a estratégia do isolamento social modificou
hábitos de indivíduos de várias espécies.
s

As ruas, praças e parques supostamente território domesticado, de uso


ver

tido como exclusivo dos seres humanos, foram ocupadas por animais que
haviam sido empurrados e estavam restritos ao chamado ambiente natural.
Tais comportamentos provocaram uma inversão nos habituais locais de cir-
culação e motivaram reflexões sobre o quão prejudicial são as atividades dos
seres humanos para os das demais espécies.
96

Figura 01 – Pequeno Príncipe Figura 02 – Engaiolados

or
od V
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R
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aC

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Figura 03 – Família na gaiola Figura 04 – Vitrines e jaulas
visã
itor
a re
par
Ed

A inversão do que fora naturalizado nas relações de humanos com os não


ão

humanos foi retratada nas postagens referentes à “clausura” da humanidade


enquanto os outros animais estavam à solta. Afinal, e como evidenciado nas
s

figuras 01, 02, 03 e 04, a liberdade dos chamados seres civilizados estava
ver

sendo experimentada pelos animais, enquanto que humanos permaneciam


em “enjaulados” e “aprisionados” em suas próprias casas.
O confinamento nos espaços domésticos provocou reações adversas nos
seres humanos, tais como ansiedade, tristeza, medo e angústia. Somado a essa
situação, tem-se as manifestações de violência doméstica e outras mazelas
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 97

sociais. Contudo, há que se notar que a maneira como as pessoas passaram a


se comunicar pelas artes visuais foi um elemento que se destacou nas narra-
tivas sobre esse contexto.

Além do distanciamento social, os cuidados com a higiene pessoal

O afastamento físico e o não contato, principalmente com as mãos,

or
passou a ser quase obrigatório em diversos países e adotado como regra em

od V
vários estados do Brasil. O cálculo de distância entre corpos foi estabele-

aut
cido por critérios que surgiram pelas pesquisas de cientistas e profissionais
da área de saúde que vem investigando as manifestações da COVID-19 em
todos os continentes.

R
Novas posturas foram incorporadas às práticas sociais e nos modos de

o
interação nos espaços públicos. Quando nas ruas, tornou-se necessário manter
o distanciamento e, assim como os demais procedimentos, as mídias sociais
aC
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se tornaram espaço para as narrativas de tais acontecimentos a partir das


imagens, conforme se pode observar na intertextualidade dos memes a seguir:
visã
Figura 05 – Beatles e distanciamento
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
98

Figura 06 – Beatles e máscaras

or
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visã

Na figura 05 e 06 os Beatles mantem o distanciamento recomendado,


itor

mas na imagem tal, em seguida eles retornam acompanhados de policiais. Pelo


a re

que os memes sugerem, várias são as recomendações para evitar o contágio,


e a força policial aparelhada pelo Estado pode ser acionada para fazer valer
as regras de confinamento (lockdown), inclusive impedindo a livre circulação
das pessoas, fazendo-os retornar às casas quando necessário.
par

Em outros memes (figuras 07, 08, 09 e 10) a temática do distanciamento


inclui aspectos que condizem com as recomendações da OMS sobre o espaço
Ed

mínimo entre as pessoas.

Figura 07 – Meme do meme


s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 99

Figura 08 – Distanciamento social nas artes plásticas

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visã

Figura 09 – Não humanos Figura 10 – Clássicos da Sociologia


itor
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par
Ed
s ão
ver

Além do distanciamento, os modos de higiene foram alterados e o reforço


a essas práticas relacionadas aos cuidados preventivos ganharam maior relevo
no dia a dia das pessoas e o ato de lavar as mãos revelou-se mais usual nas
práticas cotidianas (figuras 11 e 12). Denunciou, ainda, que devido às questões
100

da desigualdade social, uma parcela significativa da sociedade brasileira (e


de outros países de diferentes continentes) não teria condições materiais para
higienizar as mãos e outras partes do corpo.

Figura 11 – Nossa Senhora

or
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visã
Figura 12 – Krisna
itor
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ver

Embora se fizesse a campanha para lavar as mãos, nem todas as pessoas


poderiam adotar tais medidas pelo fato de não terem acesso à água potável
e saneamento básico. Se a recomendação de isolamento social trouxe junto
consigo as práticas de higiene, demonstrou-se que a proteção e o cuidado
pessoal implicavam a adoção de políticas públicas sociais e de infraestrutura.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 101

Então, mais do que um acréscimo nas ações a serem tomadas individualmente,


o que cabe ao poder público ficou aquém das expectativas.
A figura 13 retrata a situação de uma família brasileira composta por uma
mulher negra e seus filhos famintos, cuja casa não dispõe de água encanada.
Essa talvez seja a mais representativa figura da realidade do Brasil, pois
corrobora com dados apresentados pelas pesquisas do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).

or
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Figura 13 – Desigualdade de gênero, raça e classe

aut
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visã
itor
a re

Nas figuras 14 e 15 são apresentadas à essa narrativa da pandemia do


século XXI o uso das máscaras. Nelas há um sutil jogo de elementos sociais
que são incorporados ao tema da prevenção ao contágio.
par

Figura 14 – No convento Figura 15 – No Mundo do trabalho


Ed
s ão
ver
102

As figuras que se remetem ao uso de máscaras utilizadas quase restritas


ao ambiente hospitalar indicam que essa prática pouco usual se tornou comum
desde o início da pandemia. Leituras e releituras de obras de arte e algumas cenas
do cotidiano foram divulgadas e circularam amplamente pelas redes sociais. O
riso que elas provocam indicam de maneira jocosa as mudanças impostas nesses
tempos e, ao mesmo tempo, incentivam à reflexão sobre os riscos de contágio
pelo coronavírus. Além disso, a questão política emerge na maneira como o

or
presidente da república deixa de utilizar adequadamente sua máscara, revelando

od V
a desconsideração dos preceitos da OMS e das instituições de pesquisa.

aut
As desigualdades expressas em fotografias, memes e charges

R
Uma das principais constatações trazidas pela pandemia foi a existên-
cia da desigualdade social em diferentes países, embora haja o mito de que

o
as doenças contagiosas não conhecem classe ou outras barreiras e limites
aC

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sociais, pois os impactos e efeitos sociais apresentam uma história diferente
(HARVEY, 2020). Mike Davis (2020) indica que o legado da austeridade
das políticas ultraliberais enfraquece as instituições públicas que oferecem
serviço de saúde, educação e infraestrutura, privilegiando, portanto, o setor
visã
privado em detrimento do setor público. Esse legado é percebido quando há
falta de leitos nos hospitais e pela precária cobertura assistencial para suprir
os dias de ausência remunerada por doença. Os planos de saúde particulares
itor

não têm capacidade para atender os casos e, no entanto, recebem benefícios


a re

diretos ou indiretos dos governos que adotam políticas ultraliberais.


No caso do Brasil, esta desigualdade é evidenciada em vários aspectos e
foi reveladora no trato da COVID-19. Nesse cenário de pandemia, as relações
de trabalho, as políticas públicas de saúde, as relações sociais de gênero e a
par

diversidade etnicorracial são alguns exemplos de que há na estrutura social


brasileira desigualdades de longa duração que permanecem, como foi o fim
Ed

o fim da escravidão, a conquista e ampliação de direitos, cidadania e fortale-


cimento dos movimentos sociais.
As relações sociais no Brasil continuam marcadas pela negação do
ão

racismo em relação à população negra e aos povos indígenas, ao machismo


decorrente do modelo patriarcal ainda vigente nas relações sociais de gênero,
e às desigualdades de classe e exploração do trabalho.
s

Neste momento, sob o espectro de uma doença em escala planetária, o


ver

sistema capitalista se tornou um dos principais temas de debate porque ele é


apresentado como um dos causadores desta atual situação, tendo em vista que é
um sistema alicerçado na exploração insustentável dos chamados recursos natu-
rais. Além disso, a exploração marcada pela crescente precarização do trabalho
provoca a pauperização de grande parte da população humana em escala global.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 103

A partir dos efeitos da COVID-19, essas diferentes formas de exploração que


caracterizam o capitalismo foram evidenciadas, trazendo à baila temas socioam-
bientais e, portanto, a maneira como os seres humanos lidam com outros seres
viventes nesse planeta. Desse modo, a conjuntura atual é marcada por um debate
em escala global e local, permeando diferentes aspectos do sistema capitalista.
Uma das evidências desse cenário de desigualdade se refere tanto à
capacidade de consumo quanto ao modo como as pessoas se posicionaram nos

or
momentos em que antecedem o isolamento social (figuras 16 e 17). Mesmo

od V
quando houve recomendação para que as pessoas evitassem o estoque exage-

aut
rado de produto em suas casas, o que ocorreu em alguns países foi o contrário.
Além disso, a proteção para evitar o contágio também revelou desigualdades.
Adquirir os produtos necessários para impedir a doença ou o acesso aos hos-

R
pitais (e aparato para o tratamento) foram indícios de que a saúde está sendo
tomada como um bem a ser comercializado e consumido e pouco (ou nada)

o
se faz para tratá-la como um bem comum (embora conste em muitos países
aC
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como um dos principais direitos de cidadania).

Figura 16 – No convento Figura 17 – No Mundo do trabalho


visã
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Ed
s ão

No caso do Brasil, e embora não sustentado em evidências, o Sistema


ver

Único de Saúde (SUS) está sendo atacado constantemente sob à suposta ale-
gação de que causa males econômicos decorrente dos seus déficits e fraudes
neste sistema. Diante do cenário da COVID-19, percebem-se mudanças no
discurso até então em voga de que a privatização do sistema público de saúde
na medida em que a rede privada – planos, clínicas e hospitais - mostrou-se
104

claramente despreparada para o atendimento das crescentes demandas para o


atendimento de tratamento de doenças de média e alta complexidade.
Mesmo diante das consequências sociais e ambientais, o governo bra-
sileiro direcionou e direciona apoio ao setor financeiro, comercial e indus-
trial, propondo isolamento vertical, embora sem fundamentação científica
que embasasse esse modo de contenção da propagação do vírus, conforme
se observa nas figuras 18 e 19, a seguir.

or
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Figura 18 – Economia ou vida? Figura 19 – Tipos de isolamento

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Soma-se às desigualdades de classe nesse contexto da COVID-19, a desigual-


dade das relações sociais de gênero, pois em contexto de confinamento as tarefas
a re

domésticas geralmente continuam a ser desenvolvidas por mulheres, enquanto


que os homens as realizam em menor proporção, mesmo estando em casa. Os
cuidados com pessoas idosas, crianças e as doentes em geral, já eram exercidos
pelas mulheres, e provavelmente, assim se tem mantido (figuras 20 e 21).
par

Figura 20 – Questão de gênero


Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 105

Figura 21 – Quarentena e Donas de casa

or
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R
o
Embora não se retrate nas imagens a questão da violência doméstica,
aC
há registros do aumento da incidência de casos, o que dificulta ainda mais o
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isolamento social pelas mulheres.


O conflito que se estabelece é tratado em tom jocoso, pois os homens
teriam que permanecer presos em casa, o que ocasionaria revolta e descon-
visã
tentamento, impactando nas relações entre casais e causando reações vio-
lenta e até justificáveis (conforme pronunciamento do próprio Presidente da
República e de um vereador do Mato Grosso do Sul, amplamente noticiado).
itor

Um tema que se tornou assunto de intensos debates se refere ao provável


grupo de risco. Embora haja casos de óbito em pessoas jovens a maioria, em
a re

escala global, refere-se às pessoas com idade acima de sessenta anos. Nas
figuras 22 e 23 se nota a expressão de tristeza nas pessoas idosas diante dos
embates e direcionamentos das políticas (figuras 24 e 25).
par

Figura 22 – Vidas que importam Figura 23 – Pessoas idosas


Ed
s ão
ver
106

Figura 24 – Volta às aulas

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Figura 25 – Juventude
visã
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par
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s ão

Ao longo das semanas, e com o agravamento da COVID-19, efetivamente


ver

o número de óbitos cresceu entre pessoas com mais de sessenta anos de idade.
O que configura as diferenças tanto de classe/raça quanto de geração. Nesse
aspecto da sociedade brasileira, fica patente que a pandemia evidenciou as
inúmeras desigualdades conforme pode ser observado a partir de seus dife-
rentes marcadores sociais.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 107

O embate entre o conhecimento médico e as diretrizes políticas

Em que pese a participação da OMS no combate aos efeitos e até preven-


ção contra o Corona Vírus, nem todos os países seguiram as recomendações
amplamente divulgadas como protocolo a ser adotado. No Brasil, estabeleceu-se
um embate entre o conhecimento médico acerca da pandemia e o negacionismo7
veiculado pelo governo federal. A representação gráfica dos casos de contágio

or
e capacidade de suporte dos hospitais da rede pública e privada foi incluída nas

od V
mais diferentes frentes de prevenção à pandemia. Nas figuras 26, 27, 28 e 29,

aut
a seguir, tem-se a presença de profissionais de saúde enfrentando a resistência
governamental, apesar das evidências em outros países.

R Figura 26 – Gripezinha

o
aC
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visã
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par
Ed
s ão
ver

7 Negacionismo é um posicionamento marcado pela negação das evidências, sem apresentação de algum
fato que o permita fazê-lo (GOMES, 2020). Esse negacionismo é preconizado pelo Presidente da república
e por seu entorno ideológico que se choca com a postura dos ministros da Saúde, primeiro Mandetta que
se assumia postura alinhada à OMS e depois Teich, mais contido, mas que saiu também devido à tentativa
da imposição da cloroquina.
108

Figura 27 – Curva e luta pela vida

or
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visã

Figura 28 – Curva e morte Figura 29 – E daí?


itor
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ão

Em outra oportunidade, o próprio diretor da OMS foi confrontado pelo


s

presidente brasileiro, no qual questionou os dados apresentados. Além disso, o


ver

presidente do Brasil apontou como a si próprio como um exemplo de negacio-


nismo, pois bastaria ter “histórico de atleta” ou não estar no chamado “grupo
de risco” para enfrentar uma “gripezinha”.
As figuras 30 e 31 demonstram que tais atitudes desencadearam uma
série de manifestações contra os procedimentos defendidos pela OMS e pelos
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 109

profissionais de saúde8, e isso trouxe ao debate o grupo de apoiadores deno-


minados Bolsomínions. Esse grupo de pessoas que apoiam o presidente Jair
Bolsonaro desde a época das eleições de 2018, são apresentados nos memes
como um gado fiel devido ao modo como agem, pois, seguem-no conforme o
“efeito manada9”. Nas figuras 32 e 33, esses seguidores são retratados como
um grupo que não percebe as implicações que a negação dos efeitos do Corona
Vírus sobre as populações humanas.

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Figura 30 – Imunidade figura Figura 31 – Mentirinha

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visã
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Figura 32 – Ladeira à baixo Figura 33 - Mentirinha


par
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ver

8 Nota-se que, além das referências à suposta imunidade do presidente à doença, tem-se indicações a casos
de situações políticas, cujas denúncias não o atingem e nem aos membros de seu grupo de apoio.
9 “O efeito manada” é uma explicação elaborada pelo psicólogo Dan Ariely para o comportamento que leva
as pessoas a seguirem outras sem aplicarem raciocínio crítico em suas decisões. Segue-se o que a maioria
faz, copia-se o modo como a maioria se comporta, e assim por diante.
110

Figura 34 – Cegueira

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visã

No entendimento de Mattthew D’Ancona (2018), semear dúvidas passou


itor

a ser uma postura recorrente nas campanhas de desinformação. Uma estratégia


a re

política que põe em cheque as instituições que tradicionalmente atuam como


árbitros sociais, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e no Brasil. A
negação do que é apresentado pelas instituições de pesquisa também ocorre
em relação ao aquecimento global, eficácia de vacinas ou, mais recentemente,
par

o recurso ao distanciamento social para evitar a ampliação dos efeitos de


doenças infectocontagiosas.
Ed

Um dos meios facilitadores para essa semeadura de dúvidas foi o ter-


reno fértil trazido pelo fenômeno da “Web 2.0”, uma revolução digital sem
precedentes na comunicação humana.
ão

No entanto como todas as inovações transformativas, a web é um espelho


da humanidade. Junto com seus muitos méritos, também permitiu e acen-
s

tuou o pior dos instintos do gênero humano, funcionado como universidade


ver

para terroristas e refúgio para trapaceiros (D’ANCONA, 2018, 51).

Como ocorreu com outras informações obtidas a partir dos dados obtidos
em pesquisas científicas, nem sempre seu uso está voltado para a maioria das
pessoas e nem leva em consideração as relações socioambientais.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 111

Desde Manuel Castells (1999), as ressalvas sobre os usos dos aparatos


tecnológicos pela sociedade vem sendo tema de debates acadêmicos. As redes
sociais quando manifestas na cibercultura, ou ciberespaço, trazem efetiva-
mente o que ocorre em meio não virtual, ou seja, presencialmente. O virtual
não se opõe ao presencial, como se a virtualidade fosse algo irreal e nisso
Pierre Lévy (2009) indica de modo interessante a complementação e não a
oposição na comunicação que ocorre via Internet.

or
A postura que nega ou põe em dúvida as evidências dos conhecimentos

od V
científicos não ocorre ao acaso, e nem tampouco é decorrente da ignorância

aut
ou ingenuidade. Ao contrário, apresenta-se como uma eficaz estratégia política
que mina a confiança de possíveis opositores e faz com que o público em geral
seja levado a agir mais pela emoção do que por outras fontes.

R
Se há quem negue a pandemia, há quem a leve a sério e defendem os
procedimentos de prevenção, mesmo que o risco de problemas com a econo-

o
mia se anunciem. Uma maneira de demonstrar esse interesse em combater a
aC
pandemia e a negação de sua existência foi demonstrado em vários memes,
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conforme se observa nas figuras 35 e 36.

Figura 35 – Cala a boca Figura 36 – Como Zacarias


visã
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par
Ed
s ão
ver

Essas questões passaram a ser tratadas como uma questão de saúde


pública, mas a elas foram incorporadas aquelas do âmbito político-partidário
e de governança. Nas figuras 37, 38 e 39 esse cenário político foi apresentado
em termos de políticos de diferentes grupos partidários.
112

Figura 37– Oposição

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ão

A esse aspecto da política partidária, somou-se a dúvida que recaiu sobre


as limitações do poder de decisão do presidente. A partir do que fora noticiado
s

em diversos meios de comunicação sobre a ala militar do governo, alguns


ver

militares seriam contrários ao protagonismo do presidente e de alguns de seus


direcionamentos. Uma das situações emblemáticas do embate se deu a partir
dos conflitos oriundos dos pronunciamentos de Luiz Henrique Mandetta,
então ministro da Saúde, do Vice-Presidente Hamilton Mourão e do próprio
Presidente da República.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 113

Figura 38 – Quem manda?

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Figura 39 – Poderes ocultos


par
Ed
s ão
ver
114

Ao longo do período desta pesquisa etnográfica em ambiente virtual


raros foram os memes favoráveis ao posicionamento do Presidente da Repú-
blica. Embora tivesse sido feita a busca por tais imagens, evidenciei que os
grupos favoráveis às ações vindas do governo federal se utilizam de vídeos
produzidos, geralmente, por políticos da ala de apoio no Congresso Nacio-
nal e que são propagados em diferentes mídias sociais. Os memes e outras
produções imagéticas são mais usuais em grupos contrários às diretrizes que

or
partem da presidência.

od V
O tema da pandemia nas imagens encontradas nos perfis e contas de

aut
pessoas que apoiam o presidente diz respeito ao embate entre as emissoras de
televisão, conforme exemplificado na figura 40, e pouco tratam das discussões
sobre a OMS, profissionais de saúde e disputas partidárias. Contudo, cabe

R
mencionar que as ações contra profissionais de saúde e da comunicação, e
opositores políticos em geral, foram registradas em diversas manifestações

o
de rua ao longo do período de intensificação dos efeitos do Corona Vírus.
aC

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Figura 40 – Mídia e doença
visã
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a re
par
Ed
s ão
ver

Ao considerar os efeitos da pandemia no âmbito do Estado do Pará, a


situação foi de franca oposição entre o posicionamento do governador Helder
Barbalho diante das ideias defendidas pelo Presidente da República.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 115

Surge um novo “super-herói” no Estado do Pará

Quando houve o início da pandemia na Estado do Pará, e mesmo antes


do primeiro caso de COVID-19, os pronunciamentos e ações efetivas do
governador Helder Barbalho provocaram inúmeras manifestações nas mídias
sociais. O debate inicial se dava em torno da ampla defesa da prioridade
pela vida da população paraense, ao contrário do presidente da república que

or
discursava a favor de que se priorizasse a economia. Tal posicionamento fez

od V
crescer a popularidade do governador e mesmo os grupos políticos de oposição

aut
louvaram a iniciativa de priorizar a saúde e a vida.
Os memes foram surgindo com o diferencial de que incluía aspectos da
cultura local misturados a elementos de culturas outras. Diante disso, trago a

R
esse debate o aporte de Canevacci (2013) para explicar como se dá a elabo-
ração de narrativas em contexto local.

o
A pandemia do Corona Vírus evidenciou o caráter sistêmico das ques-
aC
tões socioambientais de um modo surpreendente e os meios de comunicação
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noticiavam a todo instante algo que estava ocorrendo em outros continentes e


que iria se propagar a tal ponto que nenhum local do planeta ficaria imune aos
seus efeitos. Portanto, além das notícias havia o próprio vírus se propagando
visã
pelos países em escala global.
Conforme indica Canevacci (2013, 45), “A comunicação não viaja numa
só direção – do emissor ao receptor –, mas é cada vez mais multidirecio-
itor

nal, tendencialmente interativa e interfaciável”. Essa interatividade se torna


a re

mais acentuada a cada dia, transformando as paisagens do local, ou seja, as


mediações das relações sociais pela internet possibilitam protagonismo em
termos locais de questões globais. E isso está em pauta porque há interferência
interpretativa das populações locais devido suas narrativas estarem marcadas
tanto por elementos do que ocorre em diferentes continentes desse planeta
par

quanto por aquilo que é próprio das paisagens culturais locais.


Ed

As explicações das causas e das práticas terapêuticas para combater a


COVID-19 foram reelaboradas localmente, juntando o que fora propagado
pelos meios de comunicação aos elementos da paisagem cultural de Belém,
ão

capital do estado, e outros municípios paraenses. Assim, os chás de ervas


e os tratamentos para profilaxia de gripes e outros males foram reforçados
para garantir a cura dessa doença que se anuncia com mais força que aquelas
s

conhecidas como “viroses”.


ver

Além dos tratamentos conhecidos ancestralmente e praticados ao longo


dos tempos pela população paraense, um outro aliado emergiu durante a crise
sanitária que se anunciava cada vez mais intensa. O temor diante do alastra-
mento da zona de contágio e possíveis danos à saúde da população, fez com
que o governador, até então criticado por seus posicionamentos diante das
116

manifestações populares e de determinadas categorias profissionais, passasse


a ser visto como aquele capaz de salvaguardar a segurança dos que habitam
no Pará. Nas figuras 41 e 42 observa-se que aos elementos da paisagem cul-
tural paraense foram somados aqueles que são conhecidos em escala global:

Figura 41 – Rei do Norte

or
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visã
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Figura 42 – Super-herói
a re
par
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s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 117

Além do fato de estar ocupando o cargo de governador, acrescentam-se


elementos do processo histórico do Pará e dos heróis da grande mídia. Helder
Barbalho passou a ser apresentado, por exemplo, como o grande líder, o “Rei
do Norte” e do Grão-Pará, o herói que junta características de vários outros
das séries e histórias em quadrinho, o chefe de “um país que se chama Pará10”.
Além de ser elevado ao posto de herói os memes apresentavam de
maneira irônica o modo como os bolsominions poderiam considerá-lo. Diante

or
disso, surgiram memes onde Helder Barbalho foi representado como um

od V
comunista e esquerdista (figuras 43 e 44), pois assim o fazem com quaisquer

aut
pessoas que não se alinham ao presidente.

R
Figura 43 e 44 – Helder: o ditador comunista

o
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
ão

Para parte da população, os memes com a presença de Helder Barbalho


eram a apresentação de um governante atuante e favorável aos interesses
s

da maioria da população paraense. De modo jocoso, suas características


físicas e posicionamentos como gestor, passaram a dotá-lo de perfil de
ver

herói em tempos de pandemia. Em grande medida, esse posicionamento


do governador contribuiu para o seu fortalecimento político em vários

10 Esta é uma referência à canção intitulada Porto Caribe, de autoria dos paraenses Paulo André Barata e
Ruy Barata.
118

municípios. Por certo, essa postura do governador trará acréscimos ao seu


capital político num futuro próximo.

Notas conclusivas

O século XXI trouxe consequências de transformações socioambientais


vivenciadas ao longo do século XX. As doenças provocadas por vírus embora

or
não restritas a esse período, ganharam uma dimensão planetária até então sem

od V
precedentes. Desse modo, a globalização econômica passou a ser experimen-

aut
tada de modo imbricado junto a outros níveis, o que provocou reações locais
ao que está a ocorrer em 2020. O Glocal explicita de maneira mais adequada
aquilo que não se restringe apenas a um espaço geográfico, nem tampouco a

R
uma paisagem cultural, na medida em que há interpretações antropofágicas,
indicadas por Canevacci (2013). Consequentemente, a pandemia não é algo

o
que seja processado como algo traduzido em narrativa única, ao contrário,
aC

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ela é trabalhada de acordo com as especificidades de cada lugar.
Além das reflexões sobre a pandemia e suas narrativas feitas virtualmente
em diferentes contextos sociais, destaco o debate desenvolvido no que diz
respeito à pesquisa de cunho etnográfico, pois ela tem sido aperfeiçoada pela
visã
troca de experiências e discussões por quem vivencia a pesquisa de campo.
Desse modo, como a atenção recai de modo mais intenso sobre a inserção no
ambiente de investigação, tendo em vista que isso requer preparação prévia
itor

e refinamento das discussões nos textos onde são registradas as experiências


a re

nos mais diversas locais e temas de pesquisa, no momento atual, no qual o


isolamento social e o confinamento voluntário se apresentam como uma das
maneiras de evitar os impactos da COVID-19 há que se pensar e debater os
limites impostos às saídas a campo para fins de estudos antropológicos.
par

Além dos cuidados que são tomados nos momentos que antecipam a pes-
quisa de campo, tem-se as discussões acerca dos procedimentos éticos quando a
Ed

pesquisa se refere aos momentos em que ocorre a inserção e permanência junto


aos grupos sociais envolvidos na investigação. Nesse momento há o imperativo
de evitar ir ao local de pesquisa sob pena de pôr em risco a saúde e a vida das
ão

pessoas, o que nos impõe alternativas para a realização desse tipo de “imersão”.
A pesquisa etnográfica em ambiente virtual já era realizada devido à
expansão dos usos das chamadas novas Tecnologias de Informação e Comu-
s

nicação (TIC), trazendo debates sobre técnicas e estratégias de observação, e


ver

no momento atual ela se apresenta como um meio propício para explicações


e reflexões sobre as dinâmicas e permanências diante dessa pandemia.
Um outro elemento importante nesse estudo se refere ao fato de que
as artes em geral se tornaram grandes aliadas no enfrentamento da situação
trazida pela pandemia. As expressões artísticas foram maneiras de “digerir”
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 119

as realidades ora vividas e como um alento diante da impossibilidade de rea-


lizar coisas até então corriqueiras para as pessoas em geral e, principalmente,
para aquelas que habitam as áreas urbanas11. Nesse contexto, as narrativas
presentes a partir dos desenhos, fotografias, gravuras e colagens formam um
importante elemento na compreensão sobre a pandemia.
A relevância das produções artísticas presente nas imagens se dá porque
elas não se restringem a artistas renomados, pois a incidência da produção feita

or
por pessoas anônimas. Portanto, as inúmeras imagens postadas em formato

od V
de memes e charges revelam a produção visual desse momento e permitem

aut
explicar esse instante da humanidade a partir do olhar de grande parte dos
seres humanos conectados em tempos de isolamento social.
No século XX a rede de computadores (ou Web), aboliu as delimitações

R
de centro e periferia e de marginal e oficial, conforme afirma D’Ancona
(2018). Entretanto, se por um lado essas dicotomias contribuem para explicar

o
realidades que são vivenciadas via Internet, elas nem sempre dão conta do
aC
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processo de releitura das ideias veiculadas nessa rede. A trama que sustenta as
paisagens culturais está permite interpretações e reinterpretações das mensa-
gens permeadas por aspectos particulares e outros mais abrangentes. Assim, o
que ocorre na construção de narrativas vai além dos binarismos e dicotomias.
visã
Diante de uma situação complexa como o é a que estamos vivenciando
em 2020, o interesse em buscar as explicações sobre a pandemia instiga a
conhecê-la sob vários enfoques e narrativas. Nesse estudo sobre as imagens
itor

relativas à COVID-19, há muito a se compreender sobre as emoções, os con-


a re

flitos, os conhecimentos, as redes sociais e as reflexões sobre questões amplas


amalgamadas com aquelas próprias das paisagens culturais mais restritas e
locais. Por certo, e conforme se evidencia ao longo dos processos históricos,
a humanidade tem a oportunidade de ser, ou não, resiliente tal como é comum
par

a todos os seres viventes desse planeta.


Ed
s ão

11 As apresentações musicais nas varandas das janelas na Itália, os vídeos e as lives com apresentação de
ver

artistas em geral, ganharam repercussão devido à solidariedade e a constatação da importância das artes
na saúde das pessoas. Nesse período de quarentena foram liberados gratuitamente o acesso aos museus
virtuais e bibliotecas de universidades e de outras instituições. Vários cursos na modalidade à distância
foram oferecidos sem ônus para as pessoas interessadas em aprender a bordar, fotografar, representar e
desenhar. Os cursos também traziam a possibilidade de aprendizagem de línguas estrangeiras, falar em
público, e uma série de atividades de expressão artística (sem mencionar as inúmeras outras temáticas
para diferentes públicos)
120

REFERÊNCIAS
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ministério https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/ministro-admite-
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https://catracalivre.com.br/cidadania/bolsonaro-usa-violencia-domestica-pa-

od V
ra-criticar-isolamento-social/

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

internas_economia,836224/pacote-anunciado-pelo-governo-deve-liberar-r-
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VEREADOR do MS pede salões abertos: “Não tem marido que aguente”


https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/04/08/vereador-de-
a re

fende-saloes-de-beleza-abertos-nao-tem-marido-que-va-aguentar.htm
par
Ed
s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
DESDOBRAMENTOS E EXPERIÊNCIAS
DO SEMINÁRIO EDUCAÇÃO,
ARTE E DIVERSIDADE

or
od V
Renata Almeida

aut
Carolline Septimio

R
Introdução

o
Dialogar é uma das experiências mais substanciais do repertório humano.
aC
Se há alguma pretensão nesse trabalho talvez seja dar possibilidade de que
a experiência aqui exposta possa conversar com quem a lê, atravessar-nos,
quem sabe, a ponto de trazer incômodo. Este capítulo apresenta-se como um
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

desdobramento a partir de experiências vividas no II Seminário Educação,


visã
Arte e Diversidade, projeto contínuo em evento anual realizado pela Faculdade
Estácio Castanhal do Estado do Pará. O Seminário diz respeito a uma articu-
lação realizada pelo Curso de Pedagogia em alinhamentos com a psicologia,
itor

filosofia, história, arte, dentre outras áreas do conhecimento.


O objetivo do projeto tem sido promover espaço de discussão com temas
a re

como cultura e arte, proporcionando ao público acadêmico e externo o contato


direto com questões atinentes à educação pelo viés da transdisciplinaridade.
Neste texto, pretende-se esmiuçar algumas das discussões, interação e troca de
experiências vividas no Seminário, evidenciando a necessidade de debater ques-
par

tões como a diversidade e os elos entre arte e educação em diferentes âmbitos.


Ed

Convergências entre a arte e educação

O Seminário Educação, Arte e Diversidade conta até o presente momento


ão

com duas edições. Tal evento faz parte do planejamento da disciplina Arte
e educação: Fundamentos, metodologias e práticas, cujo ementário propor-
s

ciona dinâmicas dessa natureza. A primeira edição ocorreu no período de 04


ver

a 06 de junho de 2019 e a segunda, de 30 de junho a 03 de julho de 2020.


Cumulativamente os dois eventos contaram com mais de 2000 participações,
entre presenciais e virtuais, visto que no último ano o seminário foi realizado
em formato remoto em virtude do momento pandêmico vivido nesse período.
Todas as atividades foram realizadas com acesso em Língua Brasileira
de Sinais- (LIBRAS) e com presenças referenciais de convidados do campo
da educação e da arte. Compõem o projeto atividades como palestras, mesas
124

redondas, rodas de conversas, além de mostras, oficinas, exposição e apresen-


tações artísticas. Há também ampla participação dos estudantes como agentes
promotores da proposta, articulando questões de planejamento, cerimonial e
outras execuções necessárias, direcionados por docentes da instituição.
Em 2019 o Seminário foi realizado em formato presencial no espaço ins-
titucional. Foram três dias de atividades com temáticas sobre filosofia, história,
educação, gênero, sexualidade, sustentabilidade, religiosidade e diversidade.

or
Houve palestras e centros de discussão sobre temporalidade, empoderamento

od V
feminino, mulheres na gestão e violência de gênero, além de mesas sobre

aut
educação infantil, arte, sociedade e diversidade religiosa. Outros momentos
foram mediados diretamente pelos estudantes com realização de oficinas de
fotografia, reciclagem, dança, cinema e artes marciais. Em todos os dias havia

R
exposição de obras artísticas, fotografias e apresentações de dança e música
com convidados externos ou estudantes e professores da instituição.

o
Em 2020 o seminário ocorreu no canal do YouTube “Pedagogia Estácio
aC
Castanhal” em virtude do confinamento firmado pelo momento de pandemia.

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Houve participação da gestão local e nacional da instituição e de figuras públi-
cas do setor de educação da cidade. Todos os dias após as mesas ao público
eram oferecidas apresentações musicais de artistas locais. Os temas discutidos
visã
foram em torno da cultura, educação indígena, políticas públicas e sistema de
cotas, subjetividades, produção das diferenças, arte, ludoterapia, sustentabi-
lidade, desigualdade, diversidade, filosofia e temporalidade. Pesquisadores
itor

como Walter Kohan, Maura Corcini e Flávia Lemos marcaram presença, além
a re

de militantes e pesquisadores sobre os assuntos propostos.


Notamos que em muitos momentos os dizeres dos convidados aparen-
temente despertaram reações emocionadas nos comentários da live. Não
saberíamos dizer se nossa comunidade acadêmica teria acesso tão fácil aos
convidados não fosse o oportuno formato remoto. Os dados avaliativos coleta-
par

dos posteriormente ao segundo evento apontaram relatos que nos atravessaram


sobre a relevância da realização de práticas dessa natureza, que provavelmente
Ed

não temos como mensurar. Em um deles é possível compilar e demonstrar


como foram os retornos obtidos. Um participante mencionou:
ão

Os palestrantes foram incríveis! Ao chegar ao fim da palestra não queríamos


terminar. Estavam tão gostosos a conversa e os aprendizados que poderíamos
s

até mesmo passar a noite toda assistindo. Esse evento trouxe para minha vida
um significado enorme, me fez descobrir que estou no caminho certo, na
ver

profissão certa e que futuramente quero ser tão incrível quanto cada pales-
trante que estava presente no Seminário de Educação, Arte e Diversidade.

A realização dessa proposta nos leva a reflexões sobre possíveis reverbera-


ções existentes a partir do encontro entre a arte e a educação. O encontro desses
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 125

eixos vem em discussão acentuada no campo científico há pelo menos duas


décadas. Dentre os diversos caminhos nessa linha do tempo destacamos discur-
sos em Zanetti (2018), o qual explicita que historicamente há o entendimento
da arte como expressão e recurso pedagógico, expressão artística e recriação
a partir de aspectos individuais e como uma vivência de educação e de saúde.
Participantes do evento, em maioria estudantes, expuseram algum encan-
tamento e arrebatamento em meio às conversas transmitidas no último encon-

or
tro. Em uma mesa, por exemplo, foi possível reunir profissionais da psicologia,

od V
arte, pedagogia e esporte. Esses arranjos parecem ter formado construções

aut
diferenciadas e trazido uma beleza específica para o seminário. Poderíamos
comparar o momento a uma execução de peça artística com direito à certa
estética capaz de provocar seu público e evocar sentidos e sentimentos.

R
Nas práticas de fomento à formação humana nas diversas fases de desen-
volvimento o senso estético envolve uma dinâmica pedagógica, não em visão

o
unilateral do que seria o belo artístico, e sim em uma ampliação da sensibilidade
aC
humana mediada pela experimentação do sentir e pelo viés desse contato estético.
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Para Polster e Polster (1979) o contato é o sangue vital para o crescimento,


o meio pelo qual podemos tornar possível mudanças e crescimento. É importante
que todo indivíduo se lance a fundo no conhecimento de sua dinâmica psíquica
visã
e da intencionalidade de suas ações. O contato não envolve somente um senso
do eu, mas o conhecimento de qualquer coisa que infrinja sua fronteira.
O potencial artístico humano pode ser interpretado como razão exponen-
itor

cial de contato com a criatividade em termos de possíveis rearranjos comporta-


a re

mentais, assim como um recurso basal para a resolução de problemas. Ambos


os fatores são essenciais tanto aos processos educacionais formais quanto
para abertura de possibilidades de ser e estar no mundo de forma saudável.
Observa-se também que o fomento artístico parece propiciar ao indivíduo
contato consigo, com o outro e com o mundo (entre coisas e saberes), possi-
par

bilitando sentido à vida e ao processo de aprender. O indivíduo torna-se ávido


Ed

e ativo protagonista no processo de aprender a aprender (RHYME, 2000).


Um curioso momento exposto no evento em 2019 foi a oficina de turban-
tes. Ela teve como objetivo norteador a discussão sobre empoderamento em
ão

diferentes vertentes, enfatizando seu significado relacionado à cultura negra.


Tivemos a oportunidade de vivenciar todas as atividades oferecidas pelos
seminários e nessa oficina foi possível identificar a emoção latente nos olhos
s

de quem experimentava o respeitoso momento de sentir a representatividade


ver

negra ancestral conectada à discussão. O contato prático oferecido nessa e em


outras oficinas artísticas pareceu trazer um sentido ímpar aos temas propostos.
O recurso artístico é um caminho satisfatório de contato (RHYNE, 2000).
Trabalhar com caminhos criativos, portanto, é relevante para formas de pro-
moção de saúde e processos educativos para pessoas de diversas idades. Em
126

especial, o público jovem, adulto e idoso pode merecer um olhar peculiar por se
entender quão receptivos somos a experimentações na fase infantil e no decor-
rer da vida somos incentivados a suprimir emoções e possibilidades criativas.
Nesse sentido, Stevens (1975) afirma que nos impedimos a fechar processos
desde a infância, quando somos incentivados a suprimir emoções. Nossos fazeres
e ímpetos criativos também tendem a sofrer sanções por meio do enrijecimento.
Há expressões que são corriqueiras na educação de nossas crianças e que trazem

or
conotações pejorativas a termos que se relacionam ao mundo artístico. “Deixa

od V
de teatro” dizemos quando queremos que uma tolice seja cessada. “Dançou!”

aut
empregamos quando alguém não obteve sucesso em algo. “Para de fazer arte” não
é incomum fazer parte de falas relacionadas a crianças peraltas ou mais ativas.
Empiricamente notamos que essas práticas construídas ao longo das vidas

R
humanas desdobram-se no âmbito acadêmico pelos agentes envolvidos nesse
contexto. Professores que se cristalizam em práticas conteudistas e estudantes

o
que parecem sentir que aprenderam somente quando um assunto é exposto no
aC
quadro de sala de aula, apresentado em slide ou quando há métricas avaliativas

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em provas ao conhecido modelo de uma educação tradicional.
Fazer uma aula ao ar livre ou utilizar recursos artísticos podem ser cami-
nhos tortuosos para se afirmar que não se está ensinando ou que não se está
visã
aprendendo e de que não se está em alinhamento com a ciência e com a verdade.
Como nos lembra Deleuze (1992), as aulas exigem uma inspiração distinta
daquela esperada por muitos estudantes e elaborada no pensamento comum
itor
a re

Não são de modo algum como as conferências, porque implicam uma


longa duração, e um público relativamente constante, às vezes durante
vários anos. É como um laboratório de pesquisas: dá-se um curso sobre
aquilo que se busca e não sobre o que se sabe. É preciso muito tempo de
preparação para obter alguns minutos de inspiração. Fiquei satisfeito em
par

parar quando vi que precisava preparar mais e mais para ter uma inspiração
mais dolorosa (DELEUZE, 1992, p. 173).
Ed

Nesse pensamento, a aula como devir não se aprende com a imitação de


alguém, pela cópia do professor ou dos colegas. A aula é um encontro que
ão

pressupõe a junção de muitos em momentos diversos que vai além daquilo


que se deseja aprender. Nesse sentido, a aula tem um objetivo a ser alcançado,
um término a ser atingido. Ela não tem fim em si mesma, mas é movimento,
s

é mutação e não pretende o fim (DELEUZE, 2003).


ver

Como nos lembra Seibt (2015) seria mais nutridor pensar sobre nosso
pensamento, conhecer o que conhecemos e não tanto conhecer em si, liber-
tando-nos do conhecimento do saber. Poder-se-ia atribuir que um problema
sobre essa questão seria a própria maneira como compreendemos o processo
de ensinar e de aprender. Ao que complementamos com Deleuze (2008)
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 127

O que é o aprendizado? Começar, pouco a pouco, a selecionar. O que


é saber nadar? É saber que um corpo tem certos aspectos. Trata-se de
saber organizar um encontro. Aprender é sempre organizar um encon-
tro. [...]. Quando vocês alcançam esse saber-viver, podem dizer que pos-
suem a sua potência. Antes, só poderiam dizer que tendiam a aumentá-la
(DELEUZE, 2008, p. 308).

or
Na análise de fenômenos e enquanto construção de ciência, uma pers-
pectiva fenomenológica husserliana, por sua vez, possui uma preocupação

od V
singular com a “verdade”. Em um paradigma cartesiano a verdade é revelada

aut
a partir de um método positivista na relação funcional “causa e efeito”. A
legitimidade do que é científico, a partir do século XX, passou por uma ava-

R
liação baconiana de investigação experimental no campo das ciências huma-
nas. Quaisquer aspectos que proporcionassem inconsistência de uma verdade

o
passaram a invalidá-la. A preocupação de teorização de um fenômeno não
aC
poderia contrapor princípios filosóficos que antecederiam tal e qual ciência.
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Em sentido contrário seguimos um pouco do que nos ensina Rancière


(2015) com O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual.
Entre as (não) lições do mestre, temos a experiência da aventura intelectual
visã
trazida por Jacotot na qual o mestre ensinava aquilo que ele mesmo ignorava.
Ensinava, portanto, na ausência, no desconhecimento, no escuro ou, talvez,
na claridade de quem vê a si e ao outro como sujeitos do aprender, numa
itor

igualdade entre o mestre e seus alunos (RANCIÈRE, 2015).


a re

A questão é que a filosofia e a arte tendem a evocar reações contrárias a


padrões conhecidos e à zona de conforto de atuação de um indivíduo. Os formatos
de ensino conhecidos podem ser como ninhos quentinhos e confortáveis, abri-
gando professores e estudantes ao lugar preferido, com dispositivos prontos em
que nem o docente é demasiadamente demandado a zonas de não saber e nem dis-
par

centes precisam movimentar-se a deixar de ter uma atuação comumente passiva.


Repetições de padrões preferidos, padrões já conhecidos de comporta-
Ed

mento, podem ter a função de evitar ansiedade geradas pela experiência nova,
do vazio da mudança. Enrijecimentos nesse sentido apontam cristalizações
de um mecanismo neurótico e o empobrecimento de possibilidade e de expe-
ão

riências, portanto, boicotes ao crescimento em virtude do repertório limitado


que não oportuniza mudanças.
s

A verdade é que o conhecimento julgado como não científico passou


ver

a ganhar expurgo no campo da subjetividade ou da espiritualidade (NICO-


LERCU, 1999). Trazer ao campo acadêmico esses universos muitas vezes,
ainda hoje, é sofrer as repulsas advindas da trajetória pomposa do cientifi-
cismo, acolchoado nos pensamentos positivistas com postulados da física
trazidos, inclusive, para o campo do entendimento de homem.
128

Há um discurso recorrente de que falta aos professores conhecimento


para o exercício da docência, de que necessitam saber mais a fim de poder
lidar com os desafios contemporâneos da educação. Ao mesmo tempo
tenta-se domar a escola e o professor, neutralizá-los, retirando deles a
possibilidade de trazer os alunos para fora, descolá-los da sua realidade
no sentido de mostrar outras possibilidades que não as demandas sociais
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2015).

or
Estamos com Larrosa (2015, p.12) quando nos diz “se a educação não

od V
quer estar a serviço do que existe, tem que se organizar em torno de uma

aut
categoria livre (…) tem a ver com o não-saber, com o não-poder, com o não-
-querer”. Portanto, educação tem a ver com o criar, com a força do desejo

R
do encontro entre os que não sabem, porém veem-se com algum resto de
amor-próprio para lutar em torno de um saber liberto.

o
A educação, dessa forma, constitui-se como a própria experiência, como
um acontecimento, um encontro que nos ocorre. Ainda pela voz de Larrosa,
aC

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“A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa […] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada
vez mais rara” (LARROSA, 2015, p. 17-18).
visã
A complexidade existente nos fenômenos não replicáveis, os sociais prin-
cipalmente, parece ter obrigado os estudiosos a reverem as certezas universais
e a adotar a possibilidade de incertezas na compreensão dos fenômenos. O uni-
verso da previsão e do controle passou a ser conflitado com a contribuição da
itor

física moderna. O princípio da incontrolabilidade nos tornaria mais prudentes,


a re

humildes e modestos em nossas “verdades científicas”, ou ao menos deveria.


Percebendo o que consideramos ser um problema na mentalidade aca-
dêmica (ou até na mentalidade humana) foi que articulamos um projeto que
pudesse dar lugar a esse encontro da arte e educação.
par

Provocações da transdisciplinaridade
Ed

Não ousamos dizer que três ou quatro dias de evento são determinantes
para modificar pensamentos, comportamentos e sentimentos. Nosso intuito foi
ão

resgatarmos o viés da provocação sobre os assuntos discutidos, defendendo


que o ensino poderia ser essa contínua provocação articulada, mobilizada e
s

rica em compartilhamentos criativos de vivências e conhecimentos.


ver

Ciências, filosofias, espiritualidade e artes quando transpostas da zona


curricular podem configurar práticas transdisciplinares. A transdisciplinari-
dade refere-se a transcender o espaço limitado das disciplinas, atravessando a
mera produção do conhecimento. Nicolercu (1999) defende que para a com-
preensão da transdisciplinaridade é possível visitar sua própria composição
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 129

de escrita. O termo “trans” condiz a algo que é e está na disciplina ao mesmo


que atua através e além delas, firmando-se como objetivo a compreensão dos
fenômenos no aqui e agora.
O que seria estar entre as disciplinas? Pois em limitada analogia podemos
fazer empréstimos à matemática ao refletir que o “entre” disto de um ponto
a outro dos valores numéricos pode ser representado pelo infinito. Afinal,
qual a distância entre o número um e o número dois? Na música, por exem-

or
plo, quantas notas são de possível detecção entre um dó e um ré? Quantos

od V
sons há nesse hiato? Há hiato, aliás? Quais as possibilidades do “entre” nas

aut
relações? São mensuráveis e previsíveis? Seriam também infinitas? Seria o
vazio? Existe o vazio, principalmente em um mundo que vive o imperativo
de tudo ser alguma coisa?

R
Recorremos nessa inquietação a algumas leituras na compressão dos

o
fenômenos, do tempo e do espaço. Mas como conceber uma verdade em um
viés ontológico, holístico e fenomenológico? Pois, se de um lado o cartesia-
aC
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nismo reduz um fenômeno à situação causal newtoniana de uma concepção


clássica de verdades, de outro, um psicologismo conceberia a verdade em mim
e não a verdade em si (BELMINO, 2016). Como algo poderia ser considerado
visã
verdadeiro se não poderia ser sensível a replicações e constatações posterio-
res observáveis uma vez que estaria implicado em uma situação relacional e
única? Como admitir a ontologia de um fato sem cair no subjetivismo?
itor

O entendimento das leis da lógica pela consciência empírica seria um


a re

abandono à possibilidade de apontar algo como verdade. O próprio positivismo


não daria cabo à sustentação de uma verdade, visto que abandona seus pró-
prios preceitos na busca da teorização de um fenômeno (HUSSERL, 2008).
Etimologicamente a palavra teoria advém do grego theoria, que signi-
fica contemplação, reflexão. A vivência antecede qualquer postulado escrito.
par

Aliás, falar sobre o fenômeno já é sair dele e do estado contemplativo mais


real. Teorizar sobre algo parece ser então simplesmente introjetá-lo, senti-lo
Ed

e por vezes categorizá-lo a partir da contemplação.


Nessa busca pela verdade, Husserl (2008) propõe uma espécie de restau-
ão

ração de um “positivismo superior”, um novo método de busca pela verdade


a partir de uma dimensão transcendental. Se a consciência é consciência de
algo; se a atualização ocorre de forma constante no curso de uma vida; se,
s

assim, todo fenômeno é único e relativo; logo, um dado está intrinsicamente


ver

conectado a dados anteriores e intenciona no presente sua energia em um


futuro, sendo a consciência desdobramentos contínuos.
A ciência não pode jamais estar desconectada a outros saberes humanos.
Investigar uma verdade por meio da experimentação é tão importante quanto
envolver a intuição e a criatividade na comunhão do ensino. Chegamos no
130

momento em que seria importante não mais deixar a arte em zonas periféricas
da academia e fazer o mundo refletir sobre os impactos do que produzimos. É
preciso abrir lugares a pensamentos e práticas de ética, amor, respeito, espi-
ritualidade, admitindo a composição relacional que vivenciamos no cosmo.
É preciso conectar o aprendizado à vida e dar vida ao aprendizado.
Ansiamos por um ir além. Ir além do quê? Há mais de 300 anos temos
o paradigma cartesiano firmado pelo “penso, logo existo”. Contribuições

or
consideráveis tivemos no mundo desde então. A questão é que o “pensar” há

od V
três séculos era de um jeito, de uma forma. O pensar do século XXI inegavel-

aut
mente possui um outro viés. Se antes os postulados conteudistas disciplinares
tinham sua função contribuidora na formação humana, hoje essa herança não

R
tem como dar conta de nossa forma de existir. Pensar é mais que isso. Não é
apenas nas disciplinas e nos conteúdos que o aprendizado deve estar pautado.

o
Precisamos enquanto educadores resgatar e aproximar pessoas e fazê-las
interagir, incluir a compreensão de nossas inteligências, de nossas formas de
aC

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saber, de nossa intuição e de nossa criatividade. É urgente contemplar o que
se sente diante dos fenômenos e o que se pensa em suas múltiplas dimensões
e não mais misturar disciplinas sem conexão.
visã
Heidegger (1986) já apontava que em nenhuma época as informações
circularam tão rapidamente e tão facilmente como nos últimos séculos. Con-
traditoriamente é singular perceber que anos após o relato heideggeriano, ao
mesmo tempo, pouco a humanidade sabe sobre o homem e que em nenhuma
itor

época o homem se tornou tão questionável quanto na nossa (SEIBT, 2015).


a re

Multiplicamos as ciências de forma fragmentada e criamos os conhecimentos


específicos sobre a compressão dos indivíduos, inaugurando cisões angus-
tiantes da totalidade humana.
Não partilhamos de nenhum pressuposto que possa explicitar o como ou
par

a forma que devemos efetivamente viver para sermos integrais e até felizes.
Apenas apontamos que o atual modelo de metodologizar-se não opera na
Ed

investigação de nós mesmo de maneira holística, não nos fornece caminhos


para o sentido da vida. O homem passou a ser compreendido como um ente
entre outros entes, uma coisa entre as coisas. E essa coisificação da humani-
ão

dade respalda-se no acúmulo de informações, métodos e modos.


Nesse sentido, o conhecimento ao invés de libertar, como nos relatos
s

dos poetas e dos filósofos, nos aprisionaria. Dogmas unilaterais podem ser
ver

armadilhas problemáticas na compreensão do que seria essencial. Seria mais


interessante a qualidade ou a quantidade do que conhecemos? Esse conheci-
mento nos produz atritos? O fim é a certeza?
Não é inédito também sugerir que o entendimento de essência é mini-
mamente complexo. A originalidade do que é humano no campo dos saberes
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 131

ainda é uma busca de chegada ao horizonte e não se chega ao originário


do homem sem um certo acúmulo de conhecimentos, por outro lado. Uma
vez que se chega a um ponto o horizonte é refeito, pois nunca perde a sua
natureza de perspectiva do vir a ser. Um horizonte é sempre horizonte, é
um caminho contínuo. Mesmo assim a inteligência deveria deixar de apenas
pretender conhecer esforçadamente muito sobre os objetos e dar lugar à
sabedoria, a qual se abriria para a relatividade do sentido e do modo de se

or
acessar os fenômenos em interpretação relacional e temporal em passado,

od V
presente e futuro. Em Heidegger (2011) a vida precisa ser compreendida

aut
nesse sentido relacional, pois ela não ocorre em um vazio controlável, pre-
visto e a partir da objetividade. Carecemos de admitir a condição finita do

R
ser humano enquanto conhecedor.
Por fim, diante da maciça disponibilidade de informações presentes na

o
contemporaneidade a nossa maior buscar pode ser na capacidade de per-
guntar, na motivação da instigação sobre os fatos. A pergunta pode ser um
aC
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caminho para abertura e crescimento dessa visão total do indivíduo no mundo,


já que o que nos importa não é o acúmulo de dizeres e sim a desconstrução
da via da originalidade humana. Precisamos retirar a altiva propriedade do
visã
conhecimento como detentor de cientistas, especialistas e conhecedores e
devolvê-lo ao ser humano.
Morin (2000), contribuidor patrono da ideia da transdisciplinaridade,
indica que uma educação do futuro (que é hoje) deveria: enfrentar as cegueiras
itor

do conhecimento pragmático, contextualizar os saberes, ensinar a condição


a re

humana, ensinar os princípios da identidade terrena, enfrentar as incertezas,


ensinar a compreensão e discutir a ética do gênero humano.
Esperamos que, com sorte, nossos atravessamentos possam ter aberto
questões e questionamentos. O Seminário Educação, Arte e Diversidade é
par

apenas uma forma que encontramos para abraçar nossas convicções na busca
por uma educação de transformação. Mais ainda, é uma maneira de nos abas-
Ed

tecermos enquanto humanos, pois de fato são dias de trabalho, compartilha-


mento e de inúmeras aberturas internas.
ão

Algumas palavras finais


s

A educação não pode ignorar as concepções sistêmicas da compreensão


ver

de mundo. Todos partilhamos de um destino comum e nossos estudos precisam


estar pautados nas diversas fontes do conhecimento humano. A fragmentação
do conhecimento em disciplinas compromete o vínculo entre as partes que
tomam a totalidade de um fenômeno. Ele deve ser visto em sua complexidade,
reciprocidade e conjunto.
132

Este capítulo trouxe alguns desdobramentos a partir de experiências


vividas no II Seminário Educação, Arte e Diversidade, realizado na Faculdade
Estácio Castanhal do Estado do Pará. O Seminário foi marcado pela articula-
ção realizada pelo Curso de Pedagogia em alinhamentos com diversas áreas
do conhecimento e configurou-se como espaço de discussão da cultura e arte,
proporcionando aos participantes o contato direto com questões atinentes à
educação pelo viés da transdisciplinaridade.

or
Somos seres históricos, biológicos, físicos, sociais, psíquicos e culturais.

od V
Como entender o ser humano se o nosso ensino é fragmentado? Há um elo

aut
indissolúvel na unidade somos, em que a abertura para o crescimento tende a
acontecer no inesperado. A educação, portanto, deve englobar as incertezas,
o ensino delas, inspirando-se na incontrolabilidade evidenciada pelas ciên-

R
cias físicas modernas, na biologia e na história. Precisamos de compreensão
mútua entre os humanos e de desconstrução das mentalidades. A educação

o
do futuro é o presente.
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 133

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a re
par
Ed
s ão
ver
CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA, RACISMOS E MÍDIAS
JORNALÍSTICAS PARAENSES

or
od V
Lauany Câmara Chermont Pinheiro

aut
Marlize Ruth Albuquerque Pacheco
André Benassuly Arruda
Maria Luiza Lemos Azevedo

Introdução

R
o
aC
No período da República Brasileira, mais especificamente a República
Velha (1889- 1930), o país foi governado pelas oligarquias dos Estados mais
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abastados, sendo eles São Paulo e Minas Gerais. O principal setor da economia
visã
na época era a cafeicultura, que concentrava significativo poder de decisão na
administração federal pelos fazendeiros paulistas. De forma parcial, os lucros
produzidos pelo café foram aplicados nas cidades, o que favoreceu o aumento da
população urbana, expandiu as atividades comerciais e a industrialização, tendo
itor

em vista que o século XIX trouxe muitos imigrantes. A república foi responsável
a re

pela modernização das cidades, reformando-as e buscando modernizar os portos


de maneira a facilitar o fluxo de homens e mercadorias, necessários à almejada
“ordem e progresso”. As oligarquias buscaram auxílio nas ciências da higiene,
objetivando examinar o ambiente físico e social da população urbana. O interesse
par

girava em torno de uma melhora nas condições sanitárias das áreas cruciais para
a economia do país – as cidades e os portos. “As novas perspectivas abertas
Ed

pela medicina europeia e o desejo de superar a ‘barbárie’ do passado colonial,


renovaram o Serviço Sanitário Paulista” (BERTIOLLI FILHO, 2008, p. 16).
Houve forte intervenção higienista no século XIX, época em que mais
ão

se investiu na saúde. O Serviço Sanitário possuía equipamentos, funcionários


especializados e livre acesso para fiscalizar ruas, casas, fábricas, hospitais,
cemitérios, bares, etc. Além disso, apenas os
s

médicos diplomados poderiam executar a tarefa de cuidar da saúde da


ver

população, havendo possibilidade de multa e prisão com auxílio da polícia


para curadores que atendiam aos enfermos mais pobres. Vários foram os insti-
tutos de pesquisa criados nesta época, e houve também a descoberta de várias
doenças por intelectuais da saúde. Muitos médicos atuavam como cientistas e
sanitaristas, empreendendo pesquisas laborais ao mesmo tempo que viajavam
pelo interior do Brasil, continuando seus estudos e dando soluções práticas
para os problemas sanitários das regiões que visitavam. No entanto, a ideia
136

do sanitarismo foi ruindo, tendo em vista que a maior parte da oligarquia não
estava disposta a gastar dinheiro com saúde pública.
As doenças que outrora assolaram o país, no século XIX vieram com
mais força e maiores dimensões no início do século XX, levando em consi-
deração o aumento populacional. Diante dessa situação, alguns intelectuais
acreditavam que a baixa produtividade da população e as endemias se deviam
à qualidade da “raça brasileira”. Apoiavam-se no conceito de eugenia, um

or
pensamento que favorece que os brancos representavam uma superioridade

od V
biológica, sendo os melhores representantes da espécie humana.

aut
É importante apontar que em 1857, surgiu a Teoria da Degenerescência
com Benedict Augustin Morel, teoria que reverberou em nosso país. A teoria
repousa sobre a ideia de transgeracionalidade não se restringindo ao plano

R
biológico, mas incluindo dimensões morais e de comportamentos, viciosos ou
virtuosos. A degenerescência é apontada como possuidora de diferentes causas

o
que incluem: “o abuso do álcool, alimentação deficiente, meio social miserá-
aC
vel, imoralidade dos costumes, conduta sexual desregrada, doenças da infância

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e a própria herança de uma carga de degenerescência” (PEREIRA, 2008, p.
493), ou seja, esta pode ser herdada ou adquirida. Para Morel, uma linhagem
acometida pela degeneração tenderia a acumular desvios, acarretando em sua
visã
máxima, sua esterilidade e extinção. Estaríamos então, diante de uma forma
natural de eliminar vícios acumulados e desenvolvidos por uma geração.
itor

Uma das preocupações centrais de Benedict-Augustin Morel era a concep-


a re

ção terapêutica a ser deduzida dos pressupostos da teoria da degenerescên-


cia, em particular as ações sanitárias e higienistas a serem implementadas
pela autoridade pública com o objetivo de impedir a propagação das ten-
dências degeneradas entre a população. Em diversos países do mundo,
programas de saúde coletiva foram desenvolvidos e implementados em
par

torno de noções como “manutenção da pureza da raça” e “estímulo e


manutenção dos bons costumes”. No Brasil, no início do século XX, todo
Ed

um programa de combate à mestiçagem e de “arianização da raça brasi-


leira”, sustentado notadamente pela Liga Brasileira de Higiene Mental,
teve nas teses da degenerescência seu fundamento teórico e ideológico
ão

(PEREIRA, 2008, p. 494).

Concernente a isto, os eugenistas possuíam a ideia de que não havia muito


s

que ser feito pelos doentes, a não ser o “branqueamento” da população, de


ver

forma que as demais “raças híbridas” e as “biologicamente inferiores” (negros


e indígenas) desaparecessem. Os cortiços eram constantemente visitados pelos
“mata mosquitos” que na companhia de policiais, tinham como tarefa desin-
fetar casas, limpar ruas, exigir reformas e demolições, identificando doentes
e removendo-os. As visitas eram mal recebidas pelos moradores que sentiam
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 137

sua privacidade invadida e sua vida doméstica vigiada, além de correr o risco
de ficar sem casa por ordem médica. “Eram as teorias raciais ganhando ter-
reno entre os administradores e o preconceito racial moldando as políticas
públicas na maior cidade do país na época” (ALBUQUERQUE; FRAGA
FILHO, 2006, p. 214). No Rio de Janeiro, sob a presidência de Rodrigues
Alves (1902-1906) houve na cidade uma grande reforma urbanista e sanitária,
que fora comandada pelo prefeito da cidade Pereira Passos e por Oswaldo

or
Cruz, diretor geral de Saúde Pública.

od V
aut
Pereira Passos começou por determinar a expulsão de milhares de traba-
lhadores pobres que viviam nos prédios antigos e decadentes do centro da
cidade, transformados em cortiços [...] as autoridades sanitárias promove-

R
ram a derrubada desses prédios. Em seu lugar foram construídas amplas
avenidas, parques e edifícios afinados com a modernidade arquitetônica

o
[...] Em seguida Oswaldo Cruz iniciou os trabalhos de higienização da
capital, montando um esquema de fiscalização das ruas e das casas que
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

abrigavam a população do centro carioca [...] Paralelamente, os higienistas


voltaram-se para os morros que circundavam o centro do Rio de Janeiro que
já abrigavam inúmeras favelas. Alegando que alguns morros dificultavam a
visã
circulação dos ares e comprometia a saúde coletiva. Oswaldo Cruz ordenou
a retirada da população dessas áreas, a destruição das favelas e a terra-
planagem dos morros pela prefeitura (BERTIOLLI FILHO, 2006, p. 25).
itor

As mudanças urbanísticas e sanitárias ocorridas no país tiveram como


a re

resultado um efeito positivo na higiene pública, todavia, foram as elites eco-


nômicas as mais beneficiadas. Quanto à população pobre, estes continuaram
a ter condições de vida precárias. Ao beneficiar o bem-estar dos ricos, o res-
tante da população ficava em segundo plano, ficando praticamente imunes às
enfermidades que ainda assolavam com frequência as pessoas mais pobres,
par

que ainda continuavam a morar em cortiços.


Ed

Os jornais, também carregados de preconceitos, incansavelmente exigiam


que fossem tomadas providências contra o que denominavam de “antros
de imundície e desordem” [...] Ali estavam as “classes perigosas”, como
ão

se referiam na época os médicos aos pobres, em geral negros egressos da


escravidão ou descendentes de escravos [...] Diante desse quadro, pode-se
s

considerar que, se a missão dos higienistas era dar fim às frequentes epide-
mias, as maneiras e argumentos que conduziam a saúde pública tinham por
ver

alvo preferencial as denominadas “classes perigosas” (ALBUQUERQUE;


FRAGA FILHO, 2008, p. 214).

No século XIX, ocorreu a admissão da vida pelo poder, ou seja, um tipo


de estatização do biológico que coloca a tomada de poder sobre o homem
138

enquanto ser vivo. Há uma inversão no que se refere ao poder - se antes o


soberano estava pautado sob a égide de “fazer” viver e “deixar” morrer, agora
se têm um novo direito, o de fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT, 1999).
O autor nos fala acerca do chamado biopoder, poder este imerso em discursos
cientificistas que possuem um objetivo velado de controle sobre as massas.
Longe do sustentáculo da morte ordenada pelo soberano, existe a “cura”, o
“fazer viver” para as doenças que assolam toda uma população, mas nem todos

or
podem obtê-la - aos ditos degenerados, cabe-os “deixar morrer”.

od V
aut
A República em Belém: uma Belle-Époque não tão Belle

R
A cidade de Belém do século XIX, imersa neste contexto higienista,
passou por um processo de urbanização que deveria ser feito de forma que

o
pudesse assumir a condição de uma Paris Tropical. Antônio Lemos era inten-
dente municipal, responsável juntamente com Augusto Montenegro por uma
aC

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gestão compartilhada da administração municipal e estadual. Estas funções
deram-lhe a possibilidade, a partir da expansão da economia da borracha, da
efetivação de expressivos projetos arquitetônicos em Belém, a realização de
visã
um embelezamento da cidade com o financiamento da Belém da borracha
(1870-1910) (DERENJI, 1984; SOARES, 2008). Houve desta forma negli-
gência por parte do poder público, que desenvolvia políticas de maneira desi-
gual no espaço urbano da cidade. Era possível notar as melhorias e serviços
itor

de infraestrutura apenas nos centros urbanos. Neste contexto, modernidade,


a re

civilização e progresso fora o lema utilizado para a construção da moderna


Belém, que havia sido reconfigurada aos moldes de um ideal importado de
grandes centros urbanos como Paris e Londres (SOARES, 2008).
Era vista como necessária não apenas a reconfiguração do espaço urbano
par

de Belém, como também exigia-se um novo padrão comportamento que com-


patibilizava-se com os modelos ditados pela elite, com o intuito de tornar os
Ed

espaços verdadeiramente civilizados e deleitosos. As demandas das elites da


borracha eram majoritariamente atendidas pelo poder público, que atuava
objetivando a civilização e modernização. “A Belém moderna era construída
ão

para todos – todos aqueles que residiam no núcleo central, onde haviam sido
realizadas novas melhorias e intervenções urbanas, como no caso da viação,
s

telefonia, água encanada, luz elétrica, etc.” (SOARES, 2008, p. 64). A cons-
ver

trução espacial da época, na verdade, resultou em segregar aqueles que não


participavam de forma direta das riquezas proporcionadas pela borracha, pois
não atendiam aos padrões esperados pela elite, muito menos contribuíam
para o embelezamento da cidade, pensamento este, que refletiu em algumas
medidas públicas tomadas por Lemos.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 139

A preocupação sanitária concentrou os maiores esforços da administração


de Lemos. Em 1898, para que Belém se mantivesse em ordem e limpa,
foi criada a Repartição Sanitária Municipal, destinada aos serviços de
fiscalização sanitária para prevenção de doenças e epidemias. Para isso,
foram contratados novos funcionários que fiscalizariam os mercados, mata-
douros, estábulos, hotéis, restaurantes, necrotérios, cemitérios, inclusive
domicílios particulares – enfim [...] A cidade deveria ter seu espaço público

or
higienizado, retirando todos os elementos que pudessem contrapor esse
princípio de higiene, o que, na prática, significava retirar as casas não

od V
condizentes com este preceito (SOARES, 2008, p. 56-87).

aut
As práticas higienistas assim como aplicadas no restante Brasil, também

R
foram efetivadas por Antônio Lemos em Belém, refletindo os mesmos ideais
que resultavam na segregação dos ditos populares. As casas de pessoas com

o
baixa renda eram consideradas pela elite e pelo poder público como locais
que possuíam estética desagradável, anti-higiênica e imoral, locais propícios
aC
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a doenças que significavam um risco à saúde da população em geral. As resi-


dências dos pobres não significavam apenas ausência de boa estética, como
também uma extensão da saúde do morador. Estas moradias eram vistas,
visã
devido a sua degradação, como responsáveis por adoecer o núcleo da cidade
e um empecilho à modernização da capital.

A ideia do meio como principal responsável pela formação do corpo físico


itor

e do estado moral do pobre conduziu à noção de que o combate à doença e


a re

aos comportamentos julgados antissociais deveria passar por uma modifi-


cação do meio. Pensava-se que, se a cidade é um meio corrupto, favorável
à perversão dos costumes e à difusão de doenças, ela poderia ser trans-
formada em um meio corretor; se a casa degrada o indivíduo, alterada de
acordo com os preceitos da higiene e da disciplina, ela poderia converter-se
par

em elemento que corrige, em meio gerador de pessoas saudáveis e regradas


(CORREIA, 2004, p. 21).
Ed

Neste momento de modernização que a capital estava enfrentando, com


grandes transformações urbanas e o processo de higienismo, tais medidas
ão

contribuíram para que jornais da época surgissem como ferramenta de suma


importância, como forma de representar a população menos favorecida que
s

enfrentava o afastamento para a periferia. Percebe-se que houve, outrossim,


ver

certa fiscalização da estética de Belém através da mídia, como nos traz o jornal
da época, A Vida Paraense (1883), que fez o uso da ilustração com a temática
mais recorrente neste periódico, a limpeza da capital. Em sua última edição foi
feita uma página dedicada a “ilustríssima Câmara”, representando a “Cidade
do Lixo”, trazendo vários aspectos negativos como o símbolo da morte em que
140

desponta na foice “febre amarela” estando em volta de uma senhora nobre ao


meio de vários urubus (FERNANDES e SEIXAS, 2011). É possível observar
que a mídia contribuiu para fomentar a ideia da cidade como símbolo de revés
à modernidade, acabando por denunciar situações que colocavam em perigo a
sociedade, como as grandes epidemias e a presença do lixo, sendo este trans-
missor de várias doenças marcadamente atribuídas aos populares.

or
A estratégia higienista procurou dirigir a luta contra o lixo ameaçador

od V
[...]. Isto leva-nos a perceber a importância do papel da imprensa que se

aut
achava porta-voz dos habitantes, ao denunciar o perigo que representava à
população as epidemias, associadas ao zelo pelo aspecto da cidade diante
da impressão que causaria aos visitantes (SARGES, 2000 apud FERNAN-

R
DES; SEIXAS, 2011, p.07).

o
O bairro do Guamá em contexto
aC

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Belém, estando inserida no contexto nacional, não se diferiu muito quanto
às questões de assujeitamento da população pobre, porém de forma peculiar.
visã
Voltamos nossa atenção ao bairro do Guamá e sua história que nos apresenta
um pouco da origem dessas visões e organizações objetivadoras. Conhecido
como um bairro bastante movimentado, o bairro do Guamá e seus moradores
itor

se articulam de diversas formas, criando uma identidade coletiva que surge


através de alguns indícios no processo de ocupação do bairro, que iniciou em
a re

dois momentos: o primeiro iniciado no século XX, como extensão do bairro


de São Brás, e o segunda na década de 1950, sendo intensificada e originada
do Rio Guamá (DIAS JUNIOR, 2009).
O atual bairro do Guamá, inicialmente visto como extensão do bairro de
par

São Brás, servia como ponto de entrada e saída da cidade. As primeiras áreas
de ocupação do bairro se deram pela aproximação de terrenos que facilitavam
Ed

a tramitação dos migrantes, principalmente nordestinos, que enxertavam a


cidade atraídos pela economia da borracha. Com isso, as famílias recém-che-
gadas se fixavam ocupando o espaço, desmatando o local e criando caminhos
ão

e passagens nas matas próximas. No processo de crescimento de Belém, a


ocupação dos bairros às margens do Rio Guamá, surgiu como forma recorrente
s

no momento de distribuição espacial da cidade desde o século XVIII, visto


ver

que a ocupação realizada se originou com a presença de pessoas advindas de


regiões como o Rio Guamá, Rio Acará e Baixo Tocantins, o que contribuiu
para que o bairro crescesse de frente para o rio. Após os anos 50, a população
se agrupou lentamente, na parte sul do bairro, desmatando o local, criando
passagens e ruas. Desta forma, verifica-se a existência de dois momentos que
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 141

originaram a ocupação do bairro (via terra e rio), sendo o crescimento popu-


lacional da cidade fator contributivo para que o bairro recebesse visibilidade
com o passar do tempo (DIAS JUNIOR, 2009).

O bairro do Guamá está localizado na extremidade sul da cidade de Belém,


as margens do rio Guamá, que faz fronteira com os bairros de São Braz,
Canudos, Terra Firme, Condor e Cremação. Apresenta uma área urbana

or
de 4.127,78 km² e é um dos onze bairros que compõe o Distrito admi-
nistrativo do Guamá (DAGUA). Sua população é de 102.124 habitantes

od V
segundo dados do Anuário Estatístico do Município de Belém de 2006

aut
(DIAS JUNIOR, 2009, p. 39).

R
No início do século XX, era defendida a construção de colônias de isola-
mento como uma saída pertinente e eficaz de combate à disseminação da lepra

o
no Estado (MIRANDA et al., 2015). Nesse contexto criou-se, sob a responsa-
bilidade da Santa Casa de Misericórdia, a Colônia de Lazáros, popularmente
aC
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conhecida como Leprosário do Tucunduba. Nela ficaram confinados, por


mais de 100 anos, os doentes do “mal de Lázaro”. O Leprosário do Tucun-
duba se localizava na atual rua Barão de Igarapé Miri, sendo inaugurado no
visã
ano de 1815 e desativado em 1938, devido ao processo de urbanização que
o local sofreu. A maioria das pessoas que sofriam do Mal de Lázaro eram
escravos, que eram submetidos a degradantes condições de vida no leprosário.
itor

Devido a estas questões, os administradores da Santa Casa não conseguiam


mantê-los presos no Tucunduba, como primavam as políticas higienistas. Por
a re

não haver um muro que cercasse o leprosário, muitos leprosos transitavam


pela capital, de forma a expander o pânico para médicos e demais moradores
(HENRIQUE, 2012 apud MIRANDA et al., 2015).
O espaço físico do leprosário possuía espaços separados de forma a segre-
par

gar os doentes, homens, mulheres, de moças virgens, de crianças, a adminis-


tração, a cadeia, e outros compartimentos pensados para evitar a propagação
Ed

da lepra. (BELTRÃO; MIRANDA; HENRIQUE, 2011 apud MIRANDA et


al., 2015). As más condições de saúde pública no século XIX corroboraram
para infectar a população menos favorecida, que crescia alarmando as autori-
ão

dades. Estas não mediam esforços para sanear a cidade por meio da reclusão
e isolamento, não apenas de pessoas com o “mal de Lázaro”, mas também de
s

doentes mentais e com outras doenças infecciosas. Com isso, o afastamento


ver

da população sadia se fazia necessário. Esse fenômeno excludente permeou o


universo mental do século XIX, visto que as políticas profiláticas procuravam
“limpar” os espaços urbanos das ameaças que a população pobre e doente
poderia ocasionar aos moradores da cidade (DIAS JUNIOR, 2009). Referente
aos projetos urbanos de Antônio Lemos para São Brás, a exemplo do Mercado
142

Municipal, depreende-se que estivessem secretamente agregados ao objetivo


de evitar a circulação de populares, moradores dessas áreas, no centro da
cidade, visto que os hábitos e valores de migrantes não eram compatíveis ao
padrão pensado pela administração da intendência (DIAS JUNIOR, 2009).
O período da República brasileira nos trouxe atravessamentos e reflexos
no contexto paraense. A exclusão e marginalização foram consequências aos
que não se encontravam aptos a atender os anseios de uma capital dominada

or
pela elite da borracha. O bairro do Guamá foi um dos bairros afetados por

od V
esta segregação, ocultado em sua cultura local e popular, escolhido para

aut
abrigar pessoas doentes no leprosário. O centro da cidade não era local para
os que representavam a degradação humana e o retrocesso da civilização e
modernização da Paris Tropical. Ainda hoje, o bairro do Guamá não deixou

R
de ser visto como um local em que impera a marginalidade, zona perifé-
rica de Belém, sendo-lhe atribuídas adjetivações que não diferem quanto

o
ao sentido de exclusão outrora historicamente posto. Zona vermelha, local
aC

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onde ocorrem crimes e onde habitam marginais, são alguns atributos atuais
pelos quais o Guamá é conhecido. Com o decorrer dos séculos, vemos que
não houve mudanças significativas quanto a lógica segregacionista daqueles
que não se adequam a uma moral imposta pela elite, não sendo percebido
visã
que este contexto que atravessa séculos fora produzido por aqueles que se
queixam de uma incivilidade.
itor

A criminalização da pobreza
a re

Faz-se necessário, diante deste contexto, falarmos acerca do conceito de


“dispositivo” de Michel Foucault. A definição diz respeito a práticas discursi-
vas e não discursivas que implicam em relações de poder, como leis, ciência,
par

monumentos arquitetônicos, etc. Os dispositivos se referem a práticas que se


retroalimentam, atuando como um aparelho, uma ferramenta que constitui
Ed

sujeitos e os organiza (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 135). É relevante


frisar que os dispositivos são uma série de mecanismos que produzem pro-
cessos de objetivação e subjetivação que segundo Fonseca:
ão

[...] constituem procedimentos que concorrem conjuntamente na constitui-


ção do indivíduo. Os primeiros a fazer parte dos estudos em que Foucault
s

se dedica a mostrar as “práticas que dentro de nossa cultura tendem a fazer


ver

do homem um objeto”, ou seja, os estudos que mostram como, a partir dos


mecanismos disciplinares, foi possível constituir o indivíduo moderno: um
objeto dócil e útil. Os segundos, por sua vez, localizam-se no âmbito dos
trabalhos em que Foucault procura compreender as práticas que, também
dentro da nossa cultura, fazem do homem um sujeito, ou seja, aquelas
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 143

que constituem o indivíduo moderno, sendo ele um sujeito preso a uma


identidade que lhe é atribuída como própria (2007, p. 25).

Segundo Benites (2006), pode-se observar que os processos de subje-


tivação e objetivação funcionam concomitantemente, ou seja, as práticas de
subjetivação propiciam ao homem se tornar sujeito e esse mesmo processo o
objetiva, tanto para cuidar e conhecer a si mesmo quanto para se apresentar

or
ao conhecimento e cuidado de outros. Apresenta-se, portanto, como um objeto
de intervenção. Assim sendo, todos os dispositivos que serão apresentados

od V
se tratam de uma série de mecanismos atuais de controle, estratégias que

aut
produzem modos de subjetivação e objetivam a pobreza, o crime, sob uma
racionalidade que possui como objetivo criar efeitos de subjetivação tanto

R
para as pessoas que são atingidas por esses dispositivos, quanto para aquelas
que por eles não são alcançadas diretamente. Cria-se formas de ser e de viver.

o
Nosso objetivo é que a partir dessa cartografia e destes elementos possamos
aC
problematizar as relações de poder no Guamá.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ao longo da história, percebemos como o negro, o pobre e mora-


dor de periferia é de alguma forma, excluído, negligenciado, entendido
como inferior e não humano. A criminalização da pobreza perpassa por
visã
essa insensibilidade à figura majoritariamente dos jovens, negros, pobres, e
moradores de periferia, tendo como pressuposto a existência de criminosos
em potencial. Atribuem-se determinadas características à juventude como
itor

se estas fossem advindas de sua natureza, e são tidas como inquestionáveis.


a re

Desde o século XX em nosso país, tem-se definido o jovem pobre como


criminoso e não humano, o que resulta em efeitos forjados pelas práticas
que associam à situação da pobreza com condição sine qua non a periculo-
sidade e criminalidade. A partir desta conjuntura surge um grande receio em
relação ao futuro de crianças e jovens, pois estes poderão vir a compor as
par

“classes perigosas”. Entende-se que a infância e a juventude estão em emi-


nente “risco” e, portanto, deverão ter suas virtualidades permanentemente
Ed

controladas (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005).

Para esses “jovens”, destinados de antemão a esse problema, fundidos com


ão

ele, o desastre é sem saída e sem limites [...] Marginais pela sua condição,
geograficamente definidos antes mesmo de nascer, reprovados de imediato,
eles são os “excluídos” por “excelência” (FORRESTER, 1997, p. 57-58).
s
ver

O estereótipo que transpassa o nosso imaginário ao pensar em um crimi-


noso, não é o descente europeu de olhos azuis. Isto expressa o quão atraves-
sados somos por esta visão preconceituosa - e as mídias, são cada vez mais
fomentadoras de uma perspectiva acrítica que não nos mobiliza a entender o
contexto político e social do país em que vivemos.
144

O Contexto neoliberal como potencializador da criminalização


da pobreza

Não podemos esquecer que o neoliberalismo é cooperador para uma reali-


dade social díspar. Constituinte de uma nova fase do capitalismo, que se fixou ao
início dos anos 80, este modelo econômico apresenta três características marcan-
tes: “uma dinâmica mais favorável da mudança tecnológica e da rentabilidade,

or
a criação de rendas a favor das classes mais abastadas, e a redução da taxa de

od V
acumulação” (DUMÉNIL; LÉVY, 2007, p. 1). Por trás desta lógica há a tentativa

aut
de equiparar valores de classes econômicas mais elevadas, modos de vida que
prosseguem em desigualdade e que tendem, no neoliberalismo, favorecer cada

R
vez mais esta distância, pois à medida que se constitui a riqueza e a acumulação
do capital produz, por outro lado, a miséria (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005).
O capitalismo prima pela produtividade, criação de rendas. Possui a ideia

o
de que trabalhadores livres podem oferecer e vender sua força de trabalho no
aC

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mercado, mas a condição é que estes se mantenham nos lugares que lhes são
designados, mantendo-se dentro das normas, respeitando regras, não se agru-
pando com pessoas indesejáveis - ou seja, devem se comportar como lhes dita a
visã
sociedade de classes. O que vem avesso à produtividade é tido pelo capitalismo
como repugnante, e aqueles que se inserem no ócio e na inércia, estão sujeitos aos
vícios considerados intrínsecos aos pobres (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005).
No entanto, compreende-se que os padrões colocados pela sociedade
itor

burguesa não podem abranger a todos e nem ser considerados como uma
a re

verdade global. Há na verdade uma liberdade ilusória, pois esta é permeada


pelas oportunidades desiguais e uma competitividade que é vista com bons
olhos, enquanto um existir mais humano e fraterno é um verdadeiro desco-
nhecido. Além disso, o neoliberalismo nos coloca ainda na presença de um
par

poder disciplinar, que vem se atualizando desde o século XVIII até dias atuais,
que segundo Foucault (2014) trata-se de um poder que possui como função
Ed

adestrar, no sentido em que busca ligar forças para multiplicá-las e utilizá-las


num todo; separa, analisa, diferencia, adestra as multidões dispersas, móveis
e sem utilidade de forma múltipla para uma forma individualizante.
ão

Neste poder disciplinar, encontra-se imerso um tipo específico de poder: a


disciplina. Esta tem o intuito de fabricar corpos úteis e dóceis, toma os indivíduos
como objetos e instrumentos que serão utilizados por ela. “As disciplinas carac-
s

terizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma escala, repartem


ver

em torno de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros


e, levando ao limite, desqualificam e invalidam” (FOUCAULT, 2014, p. 215).
No pano de fundo dos dispositivos disciplinares, é possível notar um pavor em
relação às revoltas, crimes, vagabundagem, desordem, das pessoas que vivem
e morrem desordenadas, que aparecem e desaparecem (FOUCAULT, 2014).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 145

É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento


descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inuti-
lizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglome-
ração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como
encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis e interromper as
outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-
-lo, sanciona-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, por-

or
tanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço
analítico (FOUCAULT, 2014, p. 140).

od V
aut
Diante deste cenário, explicita-se um poder disciplinar que possui estra-
tégias de controle por meio das disciplinas, táticas estas que diante de nossa

R
sociedade capitalista, a população que não estiver inserida no mercado de
trabalho, deve ser criminalizada, são aqueles que não conseguiram se tor-
nar corpos úteis e dóceis para atender os anseios dos modos de produção

o
do capitalismo, como veremos nos próximos tópicos (COIMBRA; NAS-
aC
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CIMENTO, 2005). Este processo constituiria uma gestão da pobreza a céu


aberto. Complementar a isto, Coimbra e Nascimento (2005) nos colocam que
no Brasil, a partir de 1980, com a consolidação das medidas neoliberais e com
visã
o concomitante surgimento do Estado mínimo, da globalização, competitivi-
dade, livre comércio, privatização, desestatização da economia, colocou-nos
diante de uma produção em massa do medo, da insegurança, do terror, entre-
laçados ao aumento do desemprego, da exclusão, da miséria e da pobreza.
itor

Por conseguinte, as mesmas autoras nos revelam que se no capitalismo


a re

liberal os pobres foram enclausurados com o objetivo de serem disciplinados


e normatizados, de serem transformados em exemplares de pais de família e
cidadãos honestos, no neoliberalismo atual estes são considerados desneces-
sários ao mercado, e suas vidas nada valem.
par

O extermínio da juventude negra


Ed

Existe uma prática de extermínio de jovens, negros, pobres, com baixa


escolaridade e moradores de periferias, um massivo genocídio desse grupo.
ão

Essas práticas possuem o intuito de defender a sociedade do “mal”, e desti-


nam aqueles que atendem a esses critérios, à cadeia ou ao caixão. Mata-se
em nome da vida da população dita “de bem”, alicerçando-se em uma prática
s

biopolítica, do fazer viver e deixar morrer, como dito anteriormente (LEMOS


ver

et al., 2017). A biopolítica se refere a uma tecnologia que abarca a multiplici-


dade dos homens, de forma a afetá-los em massa por processos de conjunto
que são próprios da vida, como o nascer, o morrer, a produção, a doença, etc.
Trata-se de uma tomada de poder que não é individualizante, mas massifi-
cante, que não aponta para o homem-corpo e sim para o homem- espécie,
146

uma biopolítica da espécie humana. (FOUCAULT, 2014). Há desta forma um


controle sobre a vida e morte da população, atrelado a uma visão política de
defesa da sociedade, às práticas de encarceramento e de extermínio de pessoas
apontadas como as que possuem uma vida imerecida. É relevante pensar que
essas “vidas matáveis” são assoladas pela falta de oportunidades que mui-
tos insistem em afirmar serem iguais a todo cidadão brasileiro. Há falta de
acesso às políticas sociais, que muitas vezes não conseguem suprir a enorme

or
demanda que lhes chega. São oportunidades desiguais em estudo, em saúde,

od V
na própria existência, de forma que por vezes, nem sequer são reconhecidos

aut
e respeitados como cidadãos - merecem truculência e devem ser erradicados.

Nesse dantesco quadro, os jovens pobres, quando escapam do extermí-

R
nio, são os “excluídos por excelência”, pois sequer conseguem chegar ao
mercado de trabalho formal. Sua atuação em redes ilegais como o circuito

o
narcotráfico, do crime organizado, dos sequestros, dentre outros, vem
sendo tecida como única forma de sobrevivência e se prolifera, cada vez
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mais, como práticas de trabalho à medida que aumenta a apartação social
(COIMBRA; NASCIMENTO, 2005, p. 8).

Frente a esta prática de extermínio, temos a ideia de uma “guerra contra


visã
a bandidagem” que se pauta também na justificativa dos chamados “autos de
resistência” ou “resistência seguida de morte” que concerne em atos admi-
nistrativos perpetrados por agentes do Estado. São inquéritos policiais de
itor

homicídios cometidos por policiais civis. No art. 121 do Código Penal, o


a re

homicídio deve ter ocorrido em legítima defesa em caso de confronto armado,


em período de trabalho. Todavia, o que acontece muitas vezes é que o policial
civil ou militar declara que houve legitima defesa, não havendo geralmente
apuração do crime e o caso sendo consequentemente arquivado (LEMOS
et al., 2017). Outra situação é que as fichas de inquérito identificadas como
par

autos de resistência apresentam apenas as versões dos policiais e quando


Ed

chamados outros depoentes, as perguntas são direcionadas com o objetivo


de identificar se a vítima possuía algum tipo de envolvimento com crimes.
Além disso, as investigações sobre os casos de homicídio normalmente só
ão

ganham visibilidade perante o Ministério Público após visibilidade midiática


ou pressão popular. Sem estes recursos, arquiva-se o caso.
s

Os autos de resistência são efeitos de uma política criminal orientada pela


ver

metáfora da guerra, cujos discursos de segurança pública produzem o ini-


migo interno da sociedade que deverá ser eliminado em nome da segurança.
Essa política criminal se materializa em práticas que vão desde a militariza-
ção de territórios considerados perigosos, do endurecimento das leis penais,
do crescimento da segurança privada até a formação de milícias para limpeza
urbana (PEDRINHA; PEREIRA, 2001 apud LEMOS, et al., 2017, p. 173).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 147

Nota-se que há um clamor por medidas punitivas, não apenas por agentes
do Estado, mas também pela população em geral, por considerar o jovem da
periferia um ser perigoso em potencial. Estas medidas reduzem a responsabili-
dade do Estado em relação aos deveres que devem ser exercidos para com este
jovem, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e outrossim,
alimenta a produção do medo em relação a figura deste adolescente (SANTOS;
OLIVEIRA; PAIVA; YAMAMOTO, 2012 apud LEMOS, et al., p. 173, 2017).

or
Diante deste cenário, nos é vendida a ideia de um perigo que nos cerca. Porém,

od V
será que a guerra é contra a “bandidagem”? Ou contra a violação de direitos

aut
exercida por aqueles que possuem um poder socioeconômico significativo e
que é contribuinte para criar este cenário de “guerra”? Pode ser até que sejamos
inconscientemente peça parte deste jogo de poder político que nos é omisso.

R
Segundo Verani (1996) a racionalização lógica das autoridades de ocuparem
uma posição austera contra o “crime” e contra os “criminosos”, reforça a ideia

o
de que os defensores dos direitos humanos são consequentemente protetores de
aC
“bandidos”. Diante disto, fundamentam-se as ações ilegais, os abusos policiais,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

os extermínios. Lemos et al., (2017) expõem que a segregação e mortes dos


grupos de pessoas negras, pobres e em sua maioria jovens são naturalizados,
de maneira que não há uma preocupação para com os aprisionamentos e exter-
visã
mínios massivos que os acometem e que estas práticas precisam nos inquietar
e se tornarem alvos de pesquisas e resistências no âmbito da Psicologia. Ade-
mais, quando falamos em juventude, devemos lembrar que estes devem ser
itor

potencializados e reconhecidos em sociedade, tendo possibilidades reais de


a re

acessar políticas sociais, esportes, educação, cultura, lazer, a saúde, a cidade e


seus equipamentos públicos. Cano (1998) nos leva a refletir que “a prevenção e
repressão da criminalidade, não constituem uma guerra. Em segurança pública
não se lida com ‘inimigos’, mas com ‘suspeitos’, que devem ser colocados à
disposição da justiça e não ‘eliminados’” (p. 220).
par
Ed

Campos de concentração a céu aberto: a questão da gestão da


pobreza
ão

Não nos é novo falar em segregação. Historicamente, desde a escravidão,


notamos uma divisão de uma elite majoritariamente branca em detrimento de
negros e pobres habitantes de periferia. Lança-se mão até os dias atuais de
s

mecanismos para que não haja uma agregação – não apenas espacial, mas tam-
ver

bém de padrões morais e de existência. Desta forma, utilizamos o conceito de


“campos de concentração a céu aberto”. O conceito supramencionado se refere
a “um programa da sociedade de controle que inclui tudo e mais um pouco,
infratores ou não, perigosos ou não, sob o governo dos direitos de minorias
que não dispensa endurecimento das penas, leis cada vez mais restritivas das
148

condutas” (AUGUSTO, 2010, p. 265). As periferias são locais onde podemos


enxergar este campo de concentração a céu aberto, pois elas representam a
flexibilização de práticas disciplinares, como prisões fora do espaço físico.
Referimo-nos ao exercício de um controle implícito a um local aparen-
temente livre de contenção, onde encontramos os tidos como rebeldes, resis-
tentes, insurretos. Concentrá-los em um território específico facilita sufocá-los
em suas manifestações, e proporcioná-los o que precisam para não ocuparem

or
outros espaços mostra a eles uma prática política democrática em que podem

od V
participar ilusoriamente com a falsa ideia de autonomia. Mira-se assim em

aut
áreas consideradas de risco ou vulnerabilidade social. Augusto (2010) nos traz
que os guetos têm como uma de suas faces a função de conter um determi-
nado grupo da população, previamente selecionado, tendo em vista algumas

R
características de minorias atreladas a questões raciais, dos que não podem
ser deixados livres por serem potencialmente perigosos.

o
Em virtude destas concepções, criam-se modos de controle e punições
aC
para as pessoas indesejáveis que se encontram fora das prisões. São estratégias

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


difundidas consideradas como modalidades de cárcere que se efetivam tam-
bém fora das prisões. No que concerne à situação dos jovens no Brasil, não
nos é muito distante observar práticas de controle que funcionam de forma a
visã
delimitá-los em seu cotidiano nas periferias, havendo uma aproximação com a
prática prisional. Há, na verdade, a construção de estratégias para que se possa
manter este jovem na localidade onde mora, de maneira que ele se desloque
itor

o mínimo possível. Uma das táticas utilizadas para que isto ocorra é absorver
a re

parte destes jovens para trabalhar temporariamente em ONGs como aplica-


dores de questionários de pesquisas sobre a vida de adolescentes infratores
que se encontram cumprindo medida socioeducativa ou como monitores de
algum curso. Logo estes são, segundo Augusto, “campos de concentração a
céu aberto que disseminam práticas de contenção de liberdade” (2010, p. 270).
par

Assim, atualiza-se o termo política pública como sinônimo de polícia


Ed

e como prática que não se restringe à ação do Estado, mas que associa
e aproxima ações de Estado com sociedade civil, por meio de cidadãos
empresas, que realizam a prática policial como expressão e exercício de
ão

assujeitamentos (AUGUSTO, 2010, p. 272).

Destarte, temos dispositivos que dilatam as modalidades de encarcera-


s

mento, atingindo as relações que são estabelecidas por pessoas que habitam
ver

em zonas periféricas, regidas pelos mesmos códigos de conduta, de modo a


obedecer acriticamente, tendo como consequência práticas de subjetivação que
as paralisam e as mantém em uma posição de assujeitados, pois aprenderam
a venerar o seu espaço de enclausuramento a céu aberto. Conseguiu-se logo,
efetivar a manutenção de uma parte da população “quieta, feliz e policiada”
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 149

(AUGUSTO, 2010, p. 270-272). Os campos de concentração a céu aberto estão


diretamente ligados à gestão da pobreza, pois após reunir determinados grupos,
são-lhes colocadas normatizações sobre as formas de existir consideradas cor-
retas. Fabricam-se subjetividades sobre o que é a pobreza e o que é ser pobre,
expõe-se e decreta-se o que deverão ser (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005).
Coimbra (2001) nos apresenta o mal-estar vivido por parte dos poderosos
e ascendentes da classe média que possuem interesse e estão dispostos a pagar

or
pela promessa de tranquilidade que os coloca em segurança em seus condo-

od V
mínios exclusivos, distante da “classe perigosa”, hoje não moradora apenas

aut
das favelas e periferias, mas também ruas do centro da cidade. A ocorrência
de chacinas se correlaciona ao temor dos “marginais” invadirem os centros.
Rememorando as chacinas de 2014 e 2017 em Belém, não houve aulas em

R
muitas escolas e universidades, e o medo imperou não apenas nos locais onde
ocorreram os crimes acoplados a genocídios e extermínios, mas também nos

o
refúgios ocupados pela classe alta, pelo receio e medo de terem seus refúgios
aC
ocupados, quando na verdade o real perigo fazia-se presente para aqueles que
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de perto vivenciaram uma grande violência.

Mesmo continuando a existir o crime lá fora, se os outros e, sobretudo, os


visã
pobres estiverem isolados e distanciados, será possível sentir-se seguro
socialmente [...] O interessante nisso tudo é que o Estado parece estar sendo
deixado relativamente de fora desse processo. Pede-se seja duro, por via das
itor

dúvidas vai se criando uma ordem paralela, pelo menos para a vida cotidiana.
Levado ao limite, esse mecanismo deixará a polícia e a segurança pública
a re

tendo os pobres como clientela ‘exclusiva’ (CALDEIRA, 1991, p. 173).

A ocorrência da violência e do crime parecem não importar, visto que o


relevante é manter distância social daqueles que são potencialmente crimi-
par

nosos - as elites estando longe desses grupos, está tudo bem. Para mantê-los
distantes usam-se mecanismos de gestão que os impeçam o alcance das classes
Ed

mais abastadas. Dessa maneira, gerir o pobre é se apropriar de dispositivos de


controle, é governá-lo, monitorá-lo, dizer a forma “certa” de se portar, pois,
sua presença é demasiada “nociva”.
ão

Mídia: ferramenta construtora de objetivações e subjetivações


s

Sabe-se que a mídia não exerce apenas o papel comunicativo ao seu recep-
ver

tor, mas também constrói opiniões e captura subjetividades de acordo com a


perspectiva trazida pela dita “neutra” informação. Nosso interesse é explicitar
como a mídia exerce demasiada influência sobre aqueles que a acessam, de
maneira espontânea ou não, mas que independente disto são atravessadas pelos
discursos midiáticos. Mais especificamente, trazemos a mídia impressa local,
150

exposta pelo jornal Diário do Pará, de forma a mostrar em seu discurso velado
e “politicamente correto”, a criminalização do jovem, negro, pobre e morador
de periferia. Foucault (2014) expõe que no século XVIII, eram colocados em
circulação folhetins que traziam “fábulas verídicas da pequena história” (p.
68). Nestes escritos havia um tipo de frente de luta em relação ao crime, de
sua lembrança e punição, concluindo haver uma expectativa por parte dos que
expuseram os folhetins à publicação, efeitos de controle ideológico.

or
Deleuze (1992) nos coloca que no período pós-moderno, os meios de

od V
comunicação de massa exercem a função de mecanismos de controle social,

aut
marcadamente pela produção de como se deve existir. Um controle disseminado
em curto espaço de tempo e de veloz rotação, ilimitado e contínuo, tendo em
vista que a disciplina era de longa duração, descontínua e infinita. Nesse sen-

R
tido, adequando-nos a realidade local, percebemos a rapidez de propagação da
“neutra” informação pelos jornais impressos, sendo comercializados de forma

o
contínua e ininterrupta. Em se tratando do jornal Diário do Pará, vemos em suas
aC
manchetes uma ideia formada sobre o sujeito que está sendo exposto em suas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


páginas, o que nos faz retornar às “fábulas verídicas de pequena história” expres-
sas por Foucault, tendo em vista que muitas vezes coloca-se este sujeito, sobre
o qual se fala, envolto em uma construção de discursos laterais, considerando
visã
o crime como inerente a ele, de forma que a verdade do sujeito não é expressa
e nem levada em consideração – objetivamo-lo e anulamos sua subjetividade.
A mídia antidemocrática que nos é apresentada está imersa em uma
itor

cultura do controle, e a produção da figura do criminoso nos implanta este-


a re

reótipos não apenas físicos, mas também comportamentais, no sentido em


que vemos essas pessoas como “más”. São tidos como marginais, meliantes
e vagabundos. Expõe-se, por meio da mídia, “uma mediação da produção da
vítima como coitada e injustiçada e o algoz, criminoso a ser punido e casti-
gado. Cria-se uma legitimidade e justificativa para o extermínio, baseadas em
par

meritocracia e na prática de uma guerra civil não declarada, mas altamente


letal” (GALARD, 2008 apud LEMOS et al., 2017, p. 171).
Ed

A literatura policial transpõe para outra classe social aquele brilho de


que o criminoso fora cercado. São os jornais que trarão à luz nas colunas
ão

dos crimes e ocorrências diárias a mornidão sem epopeia dos delitos e


punições. Está feita a divisão: que o povo se despoje do antigo orgulho
de seus crimes: os grandes assassinatos se tornaram o jogo silencioso dos
s

sábios (FOUCAULT, 2014, p. 69).


ver

A mídia é composta por práticas econômicas, políticas e sociais, sendo


capaz de produzir subjetividades, estando intrínsecas a este agrupamento
relações de poder. Nos jornais podemos observar discursos que são expressos
muitas vezes dependendo do status social da vítima, pois é possível perceber
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 151

o afastamento de uma pluralidade de vozes, “sendo possibilitado a poucas


empresas a exibição e a produção de conteúdo audiovisual e impresso, além
de o direito de todo o cidadão de ser informado ser negligenciado, em muitos
casos” (LEMOS et al., 2015b, p. 67; LEMOS et al., 2017). Neste sentido,
a mídia produz modos de ser e de agir, estando correlata aos mecanismos
democráticos e não muito distante de dispositivos que criam medo e terror
na sociedade. Os saberes veiculados por meio dos discursos presentes nas

or
notícias exercem formas de controle, seleciona-se que manchetes terão ou não

od V
visibilidade e o que será ou não publicado. Hoje, tem-se uma mídia autoritá-

aut
ria, a favor de “interesses políticos profissionais, coorporativos, aos aspectos
conservadores e de consumo do entretenimento, no Brasil, historicamente”
(FOUCAULT, 2004; SILVA, 2012 apud LEMOS et al., 2015b, p. 63).

R
Criminalização da pobreza no Guamá

o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Atualmente a exclusão da população pobre ainda emerge, e vem sendo


atravessando séculos. Se olharmos em diferentes épocas os noticiários, per-
ceberemos que o bairro do Guamá ainda recebe adjetivos como “popular”,
“festeiro”, “violento”, “pobre” e outras classificações. A imprensa acabara
visã
por ser porta-voz do discurso que reproduz ainda hoje a representatividade
do teor violento do local, que se cristalizou no imaginário belenense. Os
moradores do bairro do Guamá possuem uma cultura de lazer. Não é difícil
itor

ver crianças brincando nas ruas, pessoas jogando baralho ou dominó, práticas
a re

que contrapõem a lógica de produção capitalista, e favorecem as estratégias


de sobrevivência no espaço, visto que historicamente a população deste bairro
se instalava de forma a construir sua própria casa com o que tinha disponível,
plantando e colhendo para se alimentar. Sendo assim, procuram ressignificar
par

a vida, tendo como uma das práticas o lazer (DIAS JUNIOR, 2009).
Cria-se assim uma ambiguidade – a de bairro violento, identificado como
Ed

o mundo do crime e pessoas com baixa escolaridade, e ao mesmo tempo,


uma imagem positiva do bairro, de maneira a expor lugares com manifesta-
ções culturais e espaços prazerosos de viver (DIAS JUNIOR, 2009). Fazendo
ão

levantamentos bibliográficos, percebemos através da história como essa marca


excludente e simbólica se instala em pessoas que fogem aos padrões sociais
esperados, em determinado tempo eram escravos, vadios, e hoje criminosos
s

e bandidos. Em Belém, que de sua forma peculiar, fora atravessada por este
ver

marco histórico – a lógica excludente na qual no centro da cidade apenas se


instalaria a elite, e nas margens, a população pobre – encontramos o bairro do
Guamá. Assim como mostrado pela história, é confuso distinguir o passado e
o presente, visto que essas práticas de assujeitamento são muito vivas. Desta
forma, contextualizamos a criminalização da pobreza no bairro proposto em
152

nosso estudo. Nos anos de 2014 e 2017, ocorreram chacinas. A primeira delas
iniciada no bairro do Guamá, onde foram feitas várias vítimas e a segunda
englobando, entre outros, o referido bairro. Estas situações reverberaram em
toda a cidade, causando medo na população. Todavia é interessante perceber
a conjuntura deste cenário para que possamos contextualizar o que concei-
tuamos como criminalização da pobreza.

or
Por enquanto, nove jovens confirmados na chacina que aconteceu em Belém

od V
do Pará, no último dia 4 de novembro, já entraram para as estatísticas. Mas,

aut
há suspeitas de mais de 35 mortes até o momento, segundo notícias vindas
dos movimentos sociais do Pará. Todos jovens negros, do sexo masculino.
Todos por arma de fogo. Todos ocorridos no Guamá, bairro da periferia de

R
Belém/PA (UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES, 2014).

o
Segundo a União Nacional dos Estudantes (2014) estatísticas podem mos-
aC
trar que a cada 25 minutos em nosso país morre um jovem negro e pobre, vítima

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


da violência, totalizando aproximadamente dois jovens negros mortos a cada
hora, 48 mortos por dia, 336 mortos por semana, 1344 mortos por mês. Equi-
para-se a isto um número igual ou maior ao de muitas guerras que acontecem
visã
pelo mundo. Referente à chacina de janeiro de 2017, o secretário de segurança
adjunto do Pará, Coronel Hilton Benigno, em entrevista, alegou à Folha de
São Paulo: “o número de mortes foi quase dez vezes superior à média diária
itor

de homicídios em Belém, que é de três casos”, acrescenta: “Normalmente,


os homicídios acontecem à noite, concentram-se nos bairros mais violentos”
a re

(FOLHA DE SÃO PAULO, 2017), o que nos explicita a convergência com


a lógica trazida pelas estatísticas de 2014, a conotação de guerra permanece.
Diante desses dados, é perceptível que o bairro do Guamá é popularmente mar-
cado pela violência - não apenas visível, mas também pela violência simbólica,
par

aquela que entremeia as frases, gestos e discursos, muitas vezes invisibilizando


a cultura local que foge destas objetivações. É interessante perceber que esta-
Ed

belecemos relações de poder em nosso cotidiano. Muitas vezes sem perceber,


expressamos discursos de verdade que produzem modos de subjetivação que
segundo Foucault (1995): “se trata da história dos diferentes modos pelos quais,
ão

em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos” (p. 231).


Desta forma, nossos modos de subjetivar por muitas vezes nos tornam
s

capazes de recortar a realidade, ou mesmo criar uma realidade mais hostil, no


ver

qual a pobreza se correlaciona à criminalidade e bairros periféricos são lugares


onde existem pessoas perigosas e ameaçadoras. A busca da verdade também
a profissionaliza, o que nos faz pensar por quantas vezes estabelecemos em
nossos discursos que somos detentores do saber sobre esse sujeito, o analisa-
mos e cristalizamos uma verdade sobre ele. Nesse contexto, a Associação de
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 153

Docentes da Universidade Federal do Pará (ADUFPA) (2014) protesta: “O


pronunciamento da Secretaria de Segurança Pública também omite as víti-
mas de baleamento, agressões físicas e todas as manifestações de violência
simbólica, como o toque de recolher imposto por policiais, que relembrou
os anos de chumbo da ditadura”.

Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do

or
poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo

od V
dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que
operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que

aut
se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis” (FOUCAULT, 2014, p. 135).

R
Diante das relações de poder estabelecidas atualmente, vemos um

o
cenário ainda de tentativa de docilização de corpos, busca por padrões de
aC
comportamento esperados. A fuga destes padrões, acarreta em punições e
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

exclusão. Busca-se ainda, por meio de uma disciplina acrítica, a fabricação


de corpos submissos. Correlaciona-se isso a reportagem que nos traz práticas
que rememoram a ditadura, que eliminam e omitem corpos não dóceis. Estas
visã
práticas ressonam muitas vezes em chacinas (visíveis ou invisíveis), uma
possibilidade de “limpeza” enxergada pela população como defesa à socie-
dade. A ideia de se “cortar a raiz do mal”, em frases como “bandido bom é
itor

bandido morto”, ou mesmo a própria naturalização da violência no bairro.


No Guamá, muitas vezes a visão do que há de perigoso é generalizada como
a re

a única que permeia o bairro, generalização esta sutilmente tendenciosa,


apontando este como um lugar de “criminosos em potencial”. Confirma-se
isto trazendo-se a matéria publicada pela ADUFPA que mostra as omissões
das vítimas, dentre as quais estão estudantes e trabalhadores que jamais
par

estiveram envolvidos com o crime ou passagem pela polícia.


Ed

Ao final da manifestação, uma comissão formada pelas entidades foi


recebida pelos deputados e exigiu a instalação de uma Comissão Par-
lamentar de Inquérito (CPI) na ALEPA para investigar o envolvimento
ão

de agentes de segurança pública com milícias e grupos de extermínio.


A ADUFPA se somou às organizações da sociedade civil paraense para
denunciar a ineficiência da política de segurança pública adotada no país,
s

que centra suas ações na criminalização da pobreza e do povo negro das


ver

periferias (ADUFPA, 2014).

A reportagem tratada pela ADUFPA nos mostra um contexto mais atual


acerca da criminalização da pobreza no bairro do Guamá. Escolhemos desta-
car este evento, visto que fora uma situação que muito reverberou em nossa
154

metrópole. Sabemos que os preconceitos e discriminações perpassam pelo con-


texto histórico de nossa cidade e de construção do próprio bairro. É importante
que reflitamos até que ponto contribuímos para as objetivações que assolam este
lugar, o porquê de muitas vezes o vermos como separado e sendo permeado de
apenas coisas negativas. É relevante lembrar que neste bairro vivem pessoas,
antes de seus rótulos, e nos debruçar de forma curiosa sobre sua dinâmica, sua
cultura. Neste contexto, podemos perceber que todos os elementos que foram

or
utilizados para realizar esta cartografia dos dispositivos de controle sobre o

od V
negro, pobre e morador de periferia são relevantes. Não obstante, daremos

aut
enfoque à questão da mídia, não de forma a ignorar os outros elementos men-
cionados, mas de forma a ressaltar que estes se encontram em outros lugares,
em outros níveis, em outras práticas e também atravessam a mídia, de forma

R
a mostrá-la como um lugar também privilegiado de análise desse dispositivo.

o
Cartografando as séries discursivas: O Jornal Diário do Pará
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


em questão
“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
visã
de dominação, mais aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual pode-
mos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo”
(FOUCAULT, 1996 p. 10-11).
itor

Diante da nossa realização de pesquisa cartográfica de algumas das


a re

relações de saber- poder atuais em nossa sociedade, buscamos identificar e


problematizar no jornal pesquisado, determinadas regularidades discursivas5
acerca de uma mesma temática, o que nos levou à construção de algumas séries
discursivas que consideramos importantes para a resolução do problema de
par

pesquisa que propusemos para a realização deste trabalho de conclusão de


curso. Estas problematizações possuem como ponto de partida as chacinas
Ed

ocorridas em 2014 e 2017, tendo como intuito expor os desdobramentos


destas, fazendo elo com o bairro em estudo e também com alguns bairros
pelo qual as mortes se alastraram, de forma a compreender os entremeios
ão

das práticas discursivas apresentadas pelo jornal Diário do Pará, o que con-
sequentemente é produzido e que efeitos de subjetivação são forjados pelos
discursos materializados neste jornal.
s

A partir da investigação dos discursos relacionados com as chacinas ocor-


ver

ridas no Bairro do Guamá produzimos algumas séries de análise que emergiram


dos problemas que nos acompanhavam durante a leitura do jornal: que efeitos
políticos estes escritos podem lançar sobre a sociedade que as lê? Que racionaliza-
ções possibilitam a produção destas escritas jornalísticas? Que objetivações estas
páginas jornalísticas querem construir nos processos subjetivos de seus leitores?
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 155

Vidas matáveis e menos matáveis

Nas páginas cartografadas referentes às chacinas dos anos supramen-


cionados, notamos uma divisão que classifica os mortos deste evento como
aqueles que possuem uma justificativa para morrer e os que não merecem este
trágico fim. Aquele que foi assassinado e trabalhava, não possui o mesmo
“merecimento” de morrer do que o que cometeu um crime. Consideram-se os

or
trabalhadores como cidadãos “de bem”, pobres, mas honestos, e os demais,

od V
“assassinos”, “bandidos”, “vagabundos”, possuem licença para terem suas

aut
vidas ceifadas por não se apresentarem produtivos para a sociedade. Franco
(2012) nos explicita que diante das notícias de morte trazidas pelo jornal,

R
o terror é amenizado, pois a morte exposta é denunciada como presumível
em razão da “vida desregrada” da vítima. Logo, seu trágico fim não provoca
inquietação. Diante do contexto apresentado, explicitamos como o discurso

o
do ser trabalhador é tido como prerrogativa para não ser morto, como se o
aC
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direito de viver precisasse ser justificado. E aqueles que subvertem a lógica


trabalhista são vagabundos, pessoas matáveis.
visã
“Ele foi de bicicleta buscar a esposa na escola quando foi surpreendido
pelo grupo que deu quatro tiros nele. Era uma pessoa do bem, traba-
lhador e nunca fez mal pra ninguém”, diz Dulcymere Barroso, tia de
Bruno Barros, 20 anos, que foi morto na rua São Domingos (AZEVEDO,
itor

Gabriela. Corpos são velados na igreja dos Capuchinhos: famílias das


a re

vítimas não se conformam com perdas. Diário do Pará, Caderno Polí-


cia, 06/11/2014, p. 11).

O trecho nos traz uma fala acerca de um jovem considerado pela tia
como: “pessoa do bem, trabalhador e que nunca fez mal pra ninguém” e foi
par

morto. Do entrelaçar deste discurso trazido pelo jornal, depreende-se que o não
trabalhador está com a morte justificada, diante de uma sociedade biopolítica
Ed

do fazer viver e deixar morrer. Além disso, o título da matéria apresentada


refere-se a uma não conformidade pela perda de familiares mortos na chacina,
ão

o que é esperado por qualquer pessoa que tenha perdido alguém que lhe é caro.
Não vemos esta forma de escrita se referindo a pessoas de grande prestígio
social, o que mais uma vez nos leva a concluir que são vidas que nada valem
s

socialmente, pois depreende-se que eram criminosos, que não serão lembrados,
ver

e para a felicidade de muitos, “menos um vagabundo no mundo”. “A morte


do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha
segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior
(ou do degenerado, ou do anormal), é que vai deixar a vida em geral mais
sadia; mais sadia e mais pura (FOUCAULT, 1999, p.305).
156

“Meu filho era um trabalhador, não era vagabundo”, repete Maria do Carmo
[...] Eduardo Chaves, 16 anos estudava e trabalhava na Ceasa três vezes
por semana. Na noite da terça-feira, teve a infelicidade de sair de casa. Ia
encontrar a namorada, mas mal saiu e foi alvejado. Novamente os mesmos
relatos de que motoqueiros encapuzados seriam os autores dos disparos.
“Ele era um rapaz bom. Perder alguém jovem assim. A família está abalada”
conta Lucas Rodrigues, tio de Eduardo (SOARES, Rita. Uma noite para

or
nunca mais esquecer. Diário do Pará, Caderno Belém, 09/11/2014, p. A10).

od V
Mãe de Deyferson Chagas, 19, assassinado em Belém em junho deste ano,

aut
Maria do Socorro Chagas afirma que o filho não tinha envolvimento com
o crime e foi assassinado por um policial militar da Rotam [...] “Queria
que houvesse justiça, porque meu filho não era bandido, ele trabalhava.

R
Tenho certeza absoluta que meu filho não tinha arma e não houve troca
de tiros”, assegura (DA REDAÇÃO. Polícia é cobrada em debate sobre

o
violência urbana. Diário do Pará, Caderno Polícia, 28/11/2014, p. 4).
aC

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Luciano Henrique Pantoja de Oliveira, de 22 anos, morreu na tarde da última
sexta-feira (20), em uma onda de assassinatos ocorridos na Grande Belém
desde a morte do policial militar Rafael da Silva Costa, 29, ocorrido na manhã
visã
do mesmo dia [...] “Ele nunca me deu trabalho. Não tinha envolvimento
com o crime, nem com drogas. Agora quero Justiça”, pede. Segundo a mãe,
Luciano trabalhava como ajudante de pedreiro e vendedor de tapioca no cen-
tro de Belém (SARGES, Wal. Familiares das vítimas descrevem execuções
itor

e clamam por justiça. Diário do Pará, Caderno Especial, 23/01/2017, p. A3).


a re

Encontramos no discurso jornalístico dispositivos de controle, subjeti-


vação e objetivação, que nos expressam formas de viver e de pensar, atraves-
sam-nos em nosso existir, induzem-nos a nutrir determinado posicionamento
que corrobore com o que está sendo dito e como pessoas “bem informadas”,
par

reproduzimos a notícia, majoritariamente de forma acrítica. É possível destacar


dos trechos mencionados: “Meu filho era trabalhador, não era vagabundo”,
Ed

“Queria que houvesse Justiça porque meu filho não era bandido, ele traba-
lhava”, “Ele nunca me deu trabalho. Não tinha envolvimento com o crime,
nem com drogas”. Diante destas falas, fazemos os seguintes questionamentos:
ão

então o bandido é matável? A justiça existe apenas para o não bandido?


s

Em nosso país, desde o início do século XX, diferentes dispositivos sociais


ver

vêm produzindo subjetividades onde o “emprego fixo” e uma “família


organizada” tornam-se padrões de reconhecimento, aceitação, legitima-
ção social e direito à vida. Ao fugir a esses territórios modelares entra-se
para a enorme legião dos “perigosos”, daqueles que são olhados com
desconfiança e, no mínimo, evitados, afastados, enclausurados e mesmo
exterminados (COIMBRA; NASCIMENTO, 2003, p. 7).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 157

Em situações extremas como a morte de um policial, as zonas de diferen-


ciação entre matáveis e não matáveis se tornam confusas e tanto “inocentes”
quanto “não inocentes” morrem, aparecendo um nível extremo de violência
que é propagado e têm como resultado as chacinas.

A construção do Guamá como bairro violento

or
Esta série se faz presente como forma de expor os pensamentos que

od V
a população possui acerca do bairro e como a mídia coopera para que essa

aut
perspectiva se alastre na capital. Quem mora em Belém sabe que o Guamá é
conhecido como um bairro violento que remete a crimes cotidianos, um local

R
visto como “moradia de bandidos”, “antro da bandidagem”, compreensão
esta que nos limita de ver o bairro sob outra perspectiva, histórica e cultural.
Diante disto, mostramos as séries discursivas referente ao conteúdo exposto:

o
aC
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Para os moradores da periferia o pânico foi real e cercado de motivos. O


cinco de novembro era uma noite difícil de esquecer e, para as famílias das
vítimas ficaram cicatrizes ainda mais profundas [...] Marilene encontrou
Jefferson ao lado da bicicleta que usava para encontrar a namorada da escola
visã
no Guamá até a Terra Firme. “Parecia um animal”, conta emocionada.
“Quando eu já estava pegando a bicicleta, vi um grupo de motoqueiros pas-
sar chutado. Eu e três rapazes que estavam lá, saímos correndo e entramos
itor

num beco. Só voltamos para ver o corpo depois que uma vizinha ligou e
chegou um carro da polícia”, relada Diana (SOARES, Rita. Uma noite para
a re

nunca mais esquecer. Diário do Pará, Caderno Belém, 09/11/2014, p. A10).

Neste texto, é expressiva a narrativa sobre uma noite difícil de esque-


cer permeada pelo pânico. O discurso trazido suscita no leitor uma possível
par

visualização do crime e do corpo que é referido como similar ao corpo de um


animal, sendo possível depreender que a morte tenha acontecido no ínterim
Ed

do trajeto entre os bairros do Guamá e Terra Firme, percurso este conhecido


popularmente pelos moradores da cidade como “Faixa de Gaza”, o que pro-
move estes bairros como lugares violentos.
ão

Após a madrugada sangrenta, um clima de insegurança pairou sobre a


cidade, principalmente no bairro do Guamá [...] o medo também tomou
s

conta da comunidade acadêmica da Universidade Federal do Pará (UFPA)


ver

que ficou pouco movimentada durante a tarde de ontem. Devido à ausência


de alunos e a sensação de insegurança, muitas faculdades da instituição
suspenderam as aulas. Mesmo não confirmando oficialmente a suspensão
das aulas, a assessoria da UFPA informou que os centros dos cursos tinham
liberdade para decidir sobre essa questão [...] Para Daniel, a incerteza do
158

que pode vir a acontecer gera sentimento de medo constante. “o medo é


diário, não tem um dia que a gente saia de casa tendo certeza se vai voltar.
Mas o que aconteceu ontem mostrou que a violência é algo muito mais
sério do que se imagina. E não deveria ser assim, pois a própria consti-
tuição diz que é dever do Estado garantir a segurança gerando a oportu-
nidade para os cidadãos se desenvolverem. Parece que a gente está num
faroeste. Aqui as pessoas não saíram de suas casas. A polícia deve mostrar

or
a sociedade o que de fato aconteceu e garantir segurança à população”,
afirma (SOARES, Pryscila. No Guamá, medo ditou as regras: movimento

od V
foi fraco no comércio e posto de saúde. Diário do Pará, Caderno Polí-

aut
cia, 06/11/2014, p. 8).

R
O taxista Francisco Santos, morador do bairro do Guamá, parou de tra-
balhar mais cedo ontem devido a pouca circulação de pessoas pelas ruas.
“o movimento está fraquíssimo desde de manhã. Trabalho rodando pelos

o
bairros do Guamá, Cremação e Cidade Velha, mas hoje fiz só duas cor-
aC
ridas, depois resolvi parar. Normalmente é muito movimentado, mas o

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que aconteceu ontem está causando insegurança em todo mundo. Moro
no Guamá e lá as farmácias, padarias, e postos de gasolina estão com a
proteção da PM”, explica. (SOARES, Pryscila. No Guamá, medo ditou
visã
as regras: movimento foi fraco no comércio e posto de saúde. Diário do
Pará, Caderno Polícia, 06/11/2014, p. 8).
itor

No Guamá, medo ditou as regras, título da reportagem da qual destaca-


mos os dois trechos mencionados e associado a eles, temos falas acerca de
a re

um clima de insegurança, medo constante, pouca movimentação nas ruas, um


“faroeste”, fruto da chacina ocorrida no bairro do Guamá. Complementar a
isto, foi verbalizado que “o medo é diário”, ou seja, é demonstrado que a vio-
lência no bairro citado é constante e amedrontadora, capaz de influenciar no ir
par

e vir das pessoas, o que reforça o mantra de violência que pesa sobre Guamá.
Ed

Por volta das 19h da última segunda-feira, na rua José Alves, no bairro do
Guamá, ocorreu mais um assassinato. O jovem de 18 anos Rafael Rocha
Ponte, conhecido como “Rafinha” foi perseguido por dois homens que se
ão

encontravam em motocicleta e que se encontravam encapuzados [...] o


autor dos disparos é um presidiário foragido da Colônia em Americano,
chamado Artur Cabral Ataíde, conhecido por “Arturzinho” ou “Neguinho”
s

[...] Ele teria uma animosidade com a vítima, que praticava pequenos deli-
ver

tos nas proximidades da área onde morava [...] Arturzinho, que já esteve
preso diversas vezes na Seccional do Guamá, antes de puxar cadeia, já
estava cadastrado e com fotos nas mãos dos policiais (SILVEIRA, Amaury.
Jovem é perseguido por dois homens e executado. Diário do Pará, Caderno
Polícia, 03/12/2014, p. 7) (Ver anexo 2, Figura 5).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 159

Nesta reportagem são trazidos elementos que fomentam objetivações


acerca do bairro e do sujeito sobre o qual se fala. Em relação ao bairro,
destacamos: “no bairro do Guamá, ocorreu mais um assassinato”, ou seja, o
assassinato no Guamá possui um teor corriqueiro e dá margem para pensarmos
em outros tipos de violências que possam ocorrer no local cotidianamente.
Em relação ao sujeito exposto na matéria, este é relacionado ao crime de
uma maneira intrínseca, como se o crime fosse parte dele, possuidor de uma

or
natureza criminosa: “é um presidiário foragido da Colônia em Americano”,

od V
“já esteve preso diversas vezes”, “antes de puxar cadeia já estava cadastrado

aut
na mão dos policiais”. “Estamos diante de uma concepção segundo a qual o
indivíduo é escravo absoluto dos fatos concretos de sua vida pregressa, não
lhe restando senão cumprir seu destino criminoso” (RAUTER, 2003, p. 90).

R
Diante disso, Santana (2014) explicita que é relevante pensar a violência como
um recorte do território, sendo este o palco das variáveis sociais (pobreza,

o
desigualdade social e etc.). Sendo assim, a violência precisa ser apontada como
aC
resultado das relações entre valores culturais, sociais, econômicos e políticos,
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e então a violência pode ser apontada como resultado dessa relação. Logo,
aplicar rotulações ao local e aos que de lá são partícipes sem um contexto
crítico e político, se torna no mínimo inviável.
visã

A produção das subjetividades bandidos x heróis


itor

[...] enquanto ladrões, assassinos e estupradores mandam e desmandam nas


a re

ruas, beneficiados pela impunidade, as pessoas de bem são obrigadas a viver


por detrás de grades e com medo dentro de suas próprias casas, a qualquer
hora do dia ou da noite (DA REDAÇÃO. Insegurança põe o cidadão atrás
das grades no Pará. Diário do Pará, Caderno Polícia, 09/11/2014, p. 1).
par

[...] “Não é mentira, passaram aqui algumas viaturas dizendo que era
melhor as pessoas ficarem em casa, recolhidas. Nós vivemos sobressal-
Ed

tados aqui. Ladrão tem aos montes, mas hoje estou me sentindo mais
prisioneiro do que quem está atrás das grades. Esperamos que todos sejam
presos” (PARAENSE, Roberta. População contesta órgãos de segurança:
ão

moradores vivem momentos de terror e se escondem. Diário do Pará,


Caderno Polícia, 06/11/2014 p. 4).
s

Percebemos nos trechos destacados que há uma fala de inversão de


ver

realidades na qual o dito “cidadão de bem” que deveria andar sem medo e
livremente pelas ruas é aprisionado atrás das grades de sua residência, e os
criminosos estão soltos quando deveriam estar na cadeia. Lê-se por meio
destas narrativas um clamor para que uma medida imediata seja tomada,
independente dos mecanismos que podem ser utilizados para sua garantia.
160

A seguinte sentença: “enquanto ladrões, assassinos e estupradores mandam


e desmandam nas ruas, beneficiados pela impunidade, as pessoas de bem
são obrigadas a viver por detrás das grades”, fomenta um cenário de guerra,
bipartido em mocinhos e bandidos, de maneira a subjetivar no sujeito esse
clamor por “justiça”. O jornal não se apropria de um discurso que potencialize
no receptor, uma concepção ampla e compreensiva de seu contexto político
e social, mas incute o medo e o desejo de serem arbitrariamente controlados

or
por aqueles que são legitimados como “heróis”.

od V
aut
Na capela, o sargento PM Silvano da Polícia Militar dedicou ao amigo um
momento de honras. “A população está dizendo que perdeu o seu herói.
Se o governo Simão Jatene diz que o cabo Figueiredo era um assassino,

R
nós dizemos que ele é um herói, que nunca nos abandonou”, afirmou
(AZEVEDO, Gabriela. Policiais reclamam de Jatene no enterro de cabo.

o
Diário do Pará, Caderno Polícia, 07/11/2014, p. 4).
aC

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Policiais querem penas duras para quem comete crimes contra agente
público [...] De acordo com o comandante, não chegou a ter contato ou
trabalhar com Antônio, mas soube, através de outros colegas, que o cabo
visã
“era um bom policial, profissional, sempre combatia a criminalidade”[...]
“passamos todo o ano cobrando o Estado para que agilize a situação do
crime contra o Estado, para que tome providências mais rígidas para quem
comete crime contra um agente público”[...] Para o tenente-coronel da
itor

Rotam, bairros como Terra Firme, Jurunas e Guamá, já foram bairros mais
a re

conflituosos que nos dias atuais, mas ainda possuem um elevado índice
de criminalidade (DANIEL, Michelle. Corpo do PM será sepultado hoje:
policiais cobram ação e estratégias do governo. Diário do Pará, Caderno
Polícia, 06/11/2014, p. 3).
par

Segundo Magalhães, Silva e Batista (2007) na literatura o herói apre-


senta-se aparentemente como um cidadão comum, comprometido com os
Ed

dogmas do bem e da moral convencionados pela sociedade. Neste sentido,


nota-se que a perspectiva trazida sobre o que é ser herói não difere muito ao
retratar o cabo Figueiredo, visto como “um bom policial, profissional” que
ão

“sempre combatia a criminalidade”. Nestas falas, encontra-se um teor de


valentia, destemor. Está presente a figura do que luta “em nome do bem”,
s

mas não nos fica claro de que forma esta criminalidade era combatida. Neste
ver

contexto, emerge a figura do justiceiro que é partícipe de uma categoria que


emerge frente ao vazio e a omissão do Estado, atribuindo a si a função de
eliminação dos sujeitos indesejáveis. Sua atuação está presente especialmente
em favelas e bairros populares, criando-se desta forma sua própria nominação,
embora esta figura seja nada além de “um criminoso com status de defensor”
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 161

(CRUZ-NETO; MINAYO, 1994, p. 209). Relevante ainda dizer que suas ações
atuam de forma articulada com outros autores interessados em uma “limpeza
social”. Sua origem está articulada às práticas de justiça fora e acima da lei,
e ao coronelismo. Há uma convivência mais ou menos pacífica por parte dos
populares em relação a figura do justiceiro, pois a ele é atribuída a função de
combater o crime que aprisiona “pessoas de bem” em suas casas. Esta aceita-
ção por sua figura vem ora pelo medo, ora pela aprovação no acometimento

or
de seus êxitos em eliminar os que causam problemas sociais (CRUZ-NETO;

od V
MINAYO, 1994). “A oposição é sempre a ameaça à população e, portanto,

aut
o bandido deve ser, à maneira do criminoso da narrativa trivial, derrotado”
(MAGALHÃES; SILVA; BATISTA, 2007, p.23).

R
“Vamos parar todos que levantarem algum tipo de suspeita, o que tem
sido propagado das redes sociais é uma própria tentativa de desmora-

o
lização da segurança pública dos bandidos. Eles querem amedrontar a
aC
sociedade, disse o major Mário Dias (PARAENSE, Roberta. População
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contesta órgãos de segurança: moradores vivem momentos de terror e se


escondem. Diário do Pará, Caderno Polícia, 06/11/2014 p. 4)
visã
Neste trecho, questionamos: que pessoas seriam essas a levantar algum
tipo de suspeita? O morador de periferia, negro e pobre? Aquele que possuí um
estereótipo de bandido e marginal? Segundo Durham (1987) apud Cruz-Neto
itor

e Minayo (1994), os moradores de bairros populares reivindicam a exclusão


e a eliminação dos ditos “bandidos”, pois mais do que outros grupos sociais,
a re

há a necessidade de provar que são “cidadãos de bem”.

O analisador sensacionalismo para produzir o medo


par

Foucault (2008b) em O Nascimento da Biopolítica, fala-nos acerca de uma


estratégia iniciada no liberalismo, mas que se estende atualmente ao neolibera-
Ed

lismo. Desde o século XIX com o liberalismo, há a presença de um mecanismo


que a cada instante age de forma arbitrária em relação à liberdade e segurança
dos indivíduos em torno da noção de perigo. Este se trata de uma arte de gover-
ão

nar que manipula interesses. Todavia, não o pode fazer sem concomitantemente
gerir os perigos e os mecanismos de segurança que formam o par segurança/
s

liberdade, estratégia esta que deve garantir que um indivíduo ou uma coleti-
ver

vidade fiquem minimamente expostos ao perigo. O autor nos coloca que por
todos os lugares somos incentivados a ter medo do perigo que se trata de certo
modo: “a indicação, o correlato psicológico e cultural interno do liberalismo.
Não há liberalismo sem cultura do perigo” (FOUCAULT, 2008b, p. 91). Isto se
estende ao neoliberalismo e ao sensacionalismo pelo qual somos atravessados
162

todos os dias, principalmente pelos discursos que as mídias nos colocam. Nesse
sentido, o medo é o elemento estruturante e psicológico da sociedade para que
esta possa funcionar em um nível neoliberal, então a possibilidade de liberdade
dada pelo neoliberalismo, e pelo afastamento do estado que intervém na vida dos
cidadãos, só pode se manter por meio de uma contrapartida que é a criação do
perigo eminente. Assim, podemos perceber a existência da complementaridade
de dois elementos que parecem paradoxais: a liberdade e o perigo.

or
Amaral (2006) expõe que o sensacionalismo abrange o exagero, a explo-

od V
ração do extraordinário, a valorização de conteúdos descontextualizados, a

aut
intensificação e a valorização da emoção. Este objetiva caracterizar estratégias
da mídia em um contexto mais geral, sobrepondo-se ao interesse público por
meio da deformação, da simplificação, da banalização da sexualidade, da

R
ridicularização de pessoas humildes. Atrelado ao sensacionalismo jornalístico,
há uma construção do pânico e medo, tendo em vista que um dos objetivos da

o
mídia sensacionalista é realçar os detalhes “sórdidos”, lançando sobre eles uma
aC
narrativa que irá torná-los os mais aberrantes e bizarros possíveis, difundindo

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uma ideia velada e apocalíptica de medo e pânico (GÓES, 2013). Diante do
exposto, apresentamos os seguintes fragmentos jornalísticos:
visã
Tanto faz o lugar, o dia e horário. No interior ou no centro da cidade.
Faça chuva ou faça sol. De manhã, tarde ou noite. É só colocar os pés
na rua para estar vulnerável as investidas dos meliantes (PAES, Renata.
itor

A cada hora oito pessoas são roubadas no Pará. Diário do Pará, Caderno
a re

Polícia, 28/11/2014, p. 8).

Na madrugada de ontem, o terror e o medo se alastraram pelas ruas e


bairros da capital. Tudo começou com a morte do cabo Antônio Marco
da Silva Figueiredo pertencente à Rotam (Ronda Tática Metropolitana),
par

morto a tiros em uma emboscada, momento em que retornava para sua


residência na passagem Monte Sinai, esquina com Augusto Corrêa, no
Ed

bairro do Guamá (DA REDAÇÃO. Morte de policial gera onda de vio-


lência. Diário do Pará, Caderno Política, 05/11/2014, p. A4).
ão

Matança da madrugada de quarta-feira é só reflexo da insegurança que aflige


todo o Pará [...] O Pará está de joelhos, encolhido e aterrorizado pela violên-
cia. Sair às ruas, seja de dia ou noite, é um risco permanente. O problema não
s

é sair de casa, mas saber se retorna sem ter sido admoestado por um mal-fei-
ver

tor. A insegurança está por toda a parte [...] o terror da noite passada, com a
matança promovida por agentes da lei que deveriam zelar pela segurança dos
que pagam seus salários – das autoridades responsáveis pela investigação das
mortes não admitem oficialmente o que já sabem - é o retrato de uma Belém
sitiada pela banalidade do crime (MENDES, Carlos. O Pará está de joelhos
diante da violência. Diário do Pará, Caderno Política, 06/11/2017, p. A3).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 163

Medo, terror, matança, “O Pará está de joelhos, encolhido e aterrorizado


pela violência”, “Sair às ruas, seja de dia ou noite, é um risco permanente”.
Essas palavras e frases mexem com as emoções dos leitores de maneira a ali-
mentar um imaginário de guerra civil, subjetivando nestes um medo constante
de sair de suas moradias, pois a quaisquer momentos podem ser “vítimas da
violência urbana”. Cria-se então, uma paranoia coletiva onde todos são sus-
peitos e a possibilidade de se voltar para casa não é certa. Obviamente a vio-

or
lência é um retrato político, econômico e social presente em várias sociedades,

od V
tendo em vista que todos os seres humanos podem vir a transgredir normas

aut
e regras, leis que compõem uma sociedade. Todavia, em nosso contexto, ao
falarmos de violência e transgressão, nos vem a figura do jovem negro, pobre
e delinquente e ao pensarmos em uma solução, presamos pelo imediatismo

R
que extermine o “mal”, ou seja, a “resolução” é a clamor por mais violência.
Apresenta-se então uma capacidade social irônica de excluir, segregar, vio-

o
lentar e achar que algo será resolvido. Não se pensa em seres humanos e sim
aC
em uma determinada camada social que possui um status de boa cidadania.
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Nosso interesse não é a defesa do crime e sim a responsabilização em rela-


ção a este, mas ao invés de responsabilizar, pune-se, esperando-se que o efeito
seja o “ajustamento” ou a dita “ressocialização”. Não compreendem que por trás
visã
do sujeito que comete crimes, há um sujeito com uma história e sentimentos que
lhe são próprios, nem há o pensamento de investir em políticas públicas que os
acolham como sujeito de direitos, porque sofremos uma turbulência de emoções
itor

em que a vingança está transvestida em justiça, e o jornal é bem eficaz em poten-


a re

cializar estes sentimentos, de forma que nosso discurso passa a ser irracional e
primitivo, na busca por mais violência de um povo que se diz civilizado e justo.

Belém, a capital do medo: dez assassinatos em três horas, sensação de


pânico, população descrente em dias melhores, e enquanto isso, autorida-
par

des garantindo que está “tudo tranquilo”. As horas seguintes ao assassinato


do cabo da PM Antônio Figueiredo, o “Pety”, foram de pavor para os
Ed

moradores de Belém, que ontem sintetizou a quantas anda a (in) segurança


pública no estado do Pará (DA REDAÇÃO, Belém, a capital do medo.
Diário do Pará, Caderno Polícia, 06/11/2014, p.1) (Ver anexo 2, Figura 6).
ão

Onda de mortes começou após o assassinato do cabo PM Antônio Figuei-


redo [...] Nove corpos em via pública, nove assassinatos a tiros e todos
s

com características semelhantes. O homicídio do cabo PM Antônio Figuei-


ver

redo, conhecido como “Pety”, da Ronda Ostensiva Tática Metropolitana


(Rotam) da Polícia Militar, na noite da última terça-feira (4) desencadeou
uma onda de crimes na região metropolitana de Belém (RMB) que durou
cerca de três horas, até o início da madrugada de ontem (5) (NUNES,
Fabrício. Massacre nas ruas de Belém: 10 pessoas são assassinadas em
três horas. Diário do Pará, Caderno Polícia, 06/11/2014, p. 6).
164

Os números são assustadores. Desde o assassinato do soldado Rafael da Silva


Costa, 29 anos, da Polícia Militar (PM), morto com um tiro na cabeça, na
manhã da última sexta-feira (20), até a noite de ontem, a Grande Belém regis-
trou 32 mortes com características de execução sumária. O episódio é similar
ao ocorrido em novembro de 2014, quando 11 pessoas foram mortas na capi-
tal, após o assassinato do cabo Pet (JR AVELAR. 32 Pessoas são executadas
após morte de soldado da PM: depois do assassinato do PM Rafael Costa, 29

or
anos, na manhã da última sexta-feira (20), a Grande Belém foi palco de uma
verdadeira chacina. Diário do Pará, Caderno Especial, 23/01/2017, p. A2).

od V
aut
É muito sangue [...] A confirmação da morte do militar foi divulgada no
final da manhã, quando já haviam sido registrados 3 homicídios na grande

R
Belém, desde os primeiros instantes da madrugada. E depois de sua morte,
uma verdadeira onda de execuções tomou conta de vários bairros da grande
Belém (D’ALMEIDA, Denilson. Violência sem limites: 16 assassinatos.

o
Diário do Pará, Caderno Polícia, 21/01/2017, p. 4).
aC

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Nestes trechos nos encontramos diante de números considerados alarman-
tes, após a morte de policiais nas chacinas que ocorreram em Belém em 2014
e 2017, e acompanhado desses números, lemos: “ondas de morte”, “a capital do
visã
medo”, “onda de crimes”, “é muito sangue”, mortes ocorridas em poucas horas e
com características de execução sumária, ou seja, execuções com evidências de
que os agressores realizaram o ato com o intuito de eliminar a vítima. Mais uma
itor

vez vemos a vingança como parâmetro de justiça, tendo na morte dos policiais
a re

uma justificativa para os supostos envolvidos nos assassinatos dos militares


terem o mesmo fim. Logo as vidas, mesmo de pessoas sem envolvimento, foram
ceifadas. “As mortes de pessoas não são compreendidas como ato de violência
imediatamente, pois parte-se do pressuposto de que a posição social do morto
tem implicação no seu destino” (PAIVA, 2015, p. 271). Aparece novamente o
par

contexto da luta do bem contra o mal, mas cabe a seguinte pergunta: Quão cida-
dão de bem eu sou, quando tiro a vida de alguém sem ser em legítima defesa?
Ed

Estamos diante de execução não “em nome da lei” como costumamos ouvir, mas
sim acima da lei, com legitimidade social e política. Nesse cenário, na verdade,
ão

apresentam-se “defensores da lei” que se sobrepõem a esta e fazem a sua própria.

A violência é um recurso para criação e gestão de uma ordem social desigual,


s

em que as diferenças podem ser harmonizadas pelo uso indiscriminado da


ver

força contra pessoas que ocupam posições subalternas na hierarquia social.


Os moradores dos bairros mais pobres são as principais vítimas de violências
que envolvem tanto a ação criminosa de pessoas que os vitimam em seus
locais de moradia quanto daqueles que, em tese, deveriam os proteger. Isso
ocorre justamente porque a violência é o meio escolhido para conter a vio-
lência, gerando apenas mais violência e vitimização (PAIVA, 2015, p. 275).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 165

Segundo Pezza (2015) os governos usufruem da cultura do medo e desta


forma, vão cerceando a nossa liberdade, nossa criatividade, nossos conhecimentos
e questionamentos. Expõe que fomos criados para temer a tudo, de maneira tal que
medo e sabedoria não podem coexistir. Na verdade, a maior parte dos medos desapa-
rece com o conhecimento, e sem medo, começamos a questionar muito do que nos
dizem. O autor cita ainda Maquiavel e seus príncipes espalhados pelo mundo que se
empenham para manter os medos e as ignorâncias instaladas. Rigon e França (2014)

or
afirmam que a ocorrência de chacinas, sugerem a existência de uma cultura homicida

od V
institucionalizada pelas corporações policiais e assentidas pela sociedade civil, mas

aut
que não conseguem contemplar a complexidade de uma dinâmica genocida que
ocorre cotidianamente no Brasil. Assim, “as mortes violentas e as chacinas começam
a se tornar toleráveis e não provocam mais indignação, e são até mesmo desejadas,

R
como forma de diminuição das ameaças pessoais” (KOURY, 2011, p. 276). Esse
discurso do medo se apresenta no meio jornalístico, mas também irá se mostrar de

o
outras formas, através dos meios de comunicação populares. Estando presente um
aC
dispositivo de subjetivação eficiente, posto que não se limita ao discurso oficial do
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estado ou jornalístico, pois é produzido e mostra sua eficácia em outros espaços


sociais como o Whatsapp e o Facebook. As redes sociais hoje se apresentam como
dispositivos que subjetivam e objetivam sujeitos, e correlato ao sensacionalismo,
visã
nossa realidade nos permite ter acesso a várias imagens que retratam a violência
em diversas facetas e em sua face mais cruel, a morte.
A imprensa possui atualmente várias ferramentas de propagação da infor-
itor

mação, sendo possível acessar imagens de corpos de pessoas pobres sendo


a re

arrastadas, baleadas, torturadas e espancadas por criminosos e policiais, de


forma que estas imagens venham a produzir indignação pelos grupos defen-
sores dos Direitos Humanos em nosso país. Paiva (2015) expressa que casos
como os mencionados tem dado vazão a expressões que legitimam esses atos
os dando visibilidade, incluindo discursos de políticos possíveis de serem
par

eleitos e que defendem ações punitivas perante a dita “guerra contra o crime”.
“Os pobres mortos por balas perdidas ou em função da violência policial são
Ed

classificados como contingências, acasos, um pequeno percentual em taxas


de uma sociedade violenta que deve implementar formas ainda mais violentas
para combater a violência” (2015, p. 276).
ão

Na última quinta-feira, 5, após a sequência de assassinatos, o pânico se dis-


s

seminou nos quatro cantos da cidade. Apesar da boataria gerada nas redes
ver

sociais durante a madrugada, a realidade, é que inocentes tiveram suas


vidas ceifadas nas localidades menos abastadas da capital. O comércio dos
bairros do Guamá e Terra Firme, um dos mais populosos da capital, ama-
nheceram soturnos e temerosos (PARAENSE, Roberta. Uma semana após
chacina, medo ainda domina. Diário do Pará, Caderno Polícia, 11/11/2014,
p. 14) (Ver anexo 2, Figura 7).
166

Poucos minutos depois de noticiada a morte do PM, uma onda de terror


se espalhou por diversos bairros em Belém. Guamá, Terra Firme, Crema-
ção, Jurunas e uma parte do Marco praticamente ficaram sitiados pelas
forças policiais. Segundo as primeiras informações, a polícia iniciara uma
espécie de toque de recolher pela cidade. Até por volta de 2h, de hoje,
pelo menos oito homicídios foram confirmados, depois da execução do
PM. Áudios de origem desconhecida circularam entre as redes sociais e

or
contribuíram para aumentar o pânico entre a população (DA REDAÇÃO.
Morte de policial gera onda de violência. Diário do Pará, Caderno Polí-

od V
tica, 05/11/2014, p. A4).

aut
Após as chacinas, vídeos, imagens e áudios transitaram pelas redes

R
sociais de forma a potencializar a sensação de medo, terror e guerra. Várias
pessoas receberam em seus celulares, uma série de fotos de pessoas mortas,
corpos ensanguentados espalhados pelo chão, áudios e vídeos onde supostos

o
bandidos desafiavam policiais e os ameaçavam de morte caso estes tentassem
aC

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encontrá-los. Isto posto, é relevante frisar as reverberações que a propagação
destas mídias provocou em Belém. A cidade ficou praticamente deserta, estu-
dantes não foram a escolas e universidades, muitos não foram trabalhar, ou
se recolheram mais cedo, comércios e ruas vazias eram a realidade dos dias
visã
das chacinas. Todavia, muitas das mídias propagadas nas redes sociais não
correspondiam aos eventos acontecidos. Isso mostra a grande influência que
a mídia detém sobre a subjetividade dos que a consomem e quão capaz de
itor

produzir o caos esta é. Góes (2013) nos traz que o jornalismo sensacionalista
a re

se perpetua por meio da ênfase em elementos narrativo/imagéticos exagerados


e desproporcionais. O objetivo central deste sensacionalismo, além de atuar
como elemento mercadológico, também é apresentar uma estratégia discursiva
relevante que resulta na construção e reafirmação de imaginários coletivos,
que difundem a cultura do medo - mecanismo este, que não muito se difere
par

ao ocorrido nas redes sociais. Diante das séries analisadas percebemos que
Ed

o esquadrinhamento do social, resultado característico do poder disciplinar,


não se efetivou no Brasil de maneira tão completa se comparado aos países
europeus. “O que ocorre é que convivem no nível das práticas sociais novas
ão

e velhas estratégias” (RAUTER, 2003, p. 23). Desta forma, estamos diante


de um misto da sociedade disciplinar, da biopolítica e de uma prática extra-
-judicial que nos expõe a um caráter primitivo e moralista.
s
ver

Conclusões provisórias

Percebe-se que a mídia sempre esteve secularmente presente de diversas


formas, com o intuito de atender aos interesses de uma camada e subjetivar
certos interesses e modos de existência. Atualmente, a lógica se sustenta
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 167

lançando mão de novos e antigos dispositivos que continuam a se perpetuar


também por meio de discursos e objetivações provenientes destes. O jornal
local Diário do Pará, exposto em nosso trabalho, é um exemplo da aplicação
destas estratégias de saber-poder que dão legitimidade para a criminalização
da pobreza. O Diário do Pará assume em suas reportagens uma perspectiva
sensacionalista que fomenta o imaginário da população, alimenta objeti-
vações quanto aos moradores, em sua maioria negros, pobres e moradores

or
de periferia, enfatizando os fatídicos acontecimentos que são justificados

od V
pela vida pregressa do sujeito, de maneira a defini-lo, e classificá-lo por sua

aut
conduta em determinado contexto.
Atrelado a isto, partimos de um pressuposto de que o local do crime
sempre se trata de uma periferia, de forma a abordarmos durante a construção

R
do trabalho, o bairro do Guamá como este local famigeradamente perigoso.
O Guamá é evidenciado como um dos bairros mais violentos e taxado de

o
“zona vermelha”. Todavia, é relevante ressaltar que a violência é uma reali-
aC
dade presente na cidade como um todo. Não obstante, o palco da violência
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é concedido às periferias, ainda imperando o pensamento propagado desde a


República como lugar vicioso, devasso e maculado a ser higienizado social-
mente. Referente às chacinas ocorridas, percebemos que estas resultam de
visã
uma “justiça com as próprias mãos” legitimada pela sociedade que atribui a
certas figuras heroicas a autoridade de exterminar os que são considerados
matáveis. Além disso, observou-se que alguns dados quando expostos em
itor

meio jornalístico, tornam-se exacerbados – ou seja, lança-se sobre um acon-


a re

tecimento trágico uma visão apocalítica.


Diante deste contexto, explicita-se o conceito de resistência em Michel
Foucault. O autor expressa que no entremeio das relações de poder, há uma
possibilidade de resistir, tendo em vista que não somos prisioneiros do poder,
há sempre uma chance de modificar sua dominação em determinadas situações
par

e lançando mão de uma estratégia necessária (FOUCAULT, 1979). Resistir


Ed

pauta-se em uma insubmissão, em liberdades persistentes, estratégias de luta


que se encontram nas relações de poder, posto que “não há relação de poder
sem resistência” (FOUCAULT, 1995, p. 248). Apesar da realidade excludente
ão

trazida pelos jornais que se conecta com a perspectiva da população local,


existem segmentos subalternos que lutam e resistem à lógica neoliberal posta.
“Eles teimam em continuar existindo”. (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005,
s

p. 13). As autoras Coimbra e Nascimento (2005) nos colocam que as for-


ver

mas de resistir presentes nos grupos mencionados nem sempre se pautam


em maneiras organizadas, podendo estar presentes em condutas delituosas e
“perigosas”. Existem segmentos pobres e marginalizados que criam outros
modos de luta e sobrevivência, resistindo ao cenário que lhes é apresentado, de
maneira a escapar do destino imutável que sobre eles é posto. São resistências
168

moleculares, expostas por meio das artes, da música, de redes de solidariedade


e de micro organizações coletivas, que mudam gradativamente a realidade
- transformações estas que não são reconhecidas pelos intelectuais, negadas
pela história oficial e pelos meios de comunicação.
É importante que possamos enquanto profissionais de Psicologia, reco-
nhecer essas resistências, juntarmo-nos a elas, compreender o lugar de fala
de quem experiencia uma realidade muitas vezes diferente da nossa. Seria

or
falacioso dizer que não somos atravessados por essa lógica neoliberal, pela

od V
ideia da pessoa de bem e com bons valores. Somos colocados como peça

aut
partícipe da engrenagem que faz girar dispositivos que padronizam o que é
ser um cidadão de bem. Contribuímos para a normalização do sujeito - nem
sempre de maneira esclarecida, mas ainda assim, o fazemos. Contudo, é indis-

R
pensável que nos vejamos implicados a criticar este lugar que nos é posto, que
apliquemos também nossas resistências e que fujamos do lugar cientificista

o
daquele que tudo sabe.
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
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o aut
or
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PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA E
USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS:
estratégias biopolíticas e formas de resistência

or
od V
José de Arimatéia Rodrigues Reis

aut
Pedro Paulo Freire Piani
Alcindo Antônio Ferla
Ataualpa Maciel Sampaio

Introdução

R
o
aC
É bastante frequente, nos discursos e práticas sociais, certa associação
de pessoas pobres, em situação de rua, ou usuárias de substâncias psicoativas,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a uma condição de não-pertencimento sociocultural, a uma não-aceitação e


não filiação social desses sujeitos, assim como o não-acesso pleno na inserção
visã
ao trabalho, à moradia, à família, ao processo urbano ordenado, capitalista,
produtivo, normativo. A noção de estigma desenvolvida por Goffman (2013)
pode assim aparecer na ocorrência de preconceitos sociais, raciais, pessoais,
itor

religiosos, culturais, econômicos, morais e outros.


a re

Sousa e Almeida (2001) pontuam o aparecimento de pessoas em situação


de rua comumente atrelado às políticas insuficientes de distribuição de renda,
habitação/moradia, geração de empregos, educação formal, abuso de substân-
cias e problemas de saúde mental, afetando negativamente tais indivíduos, com-
prometendo o bem-estar de famílias e sujeitos, em particular os mais pobres.
par

Os autores denominam a essa população como “sem-abrigo”, termo


utilizado na Europa e outros países para denominar os que se encontram na
Ed

rua e necessitam de serviços ofertados pelos governos e sociedade civil, com


perfil bastante reconhecido, por se tratar demasiado de pessoas pobres, sem
emprego, sem domicílio, com baixa escolaridade, apresentando sofrimento
ão

psíquico e outros agravos, e com histórico no uso de drogas.


Jesus e Menezes (2010) afirmam o aumento do número de pessoas vivendo
em situação de rua no mundo, fato que parece ser o fundamento da preocupação
s

por parte das instituições e do Estado, em compreender causas e os fatores envol-


ver

vidos nesta situação, e promover estratégias adequadas para lidar com fenômeno.
O número de estudos científicos sobre pessoas em situação de rua vem
aumentando ao longo das últimas décadas, com várias definições propostas para
caracterizar esse público e as causas para viverem nas ruas apontadas como variá-
veis e potencializadas por diversos e diferentes fatores, sugerindo complexidade
nas interações entre o sujeito e a sua inserção nos contextos sociais, econômicos
e políticos (VALENCIO et al., 2008; JESUS; MENEZES, 2010).
176

Porém, apesar de pesquisas apontarem causas e resultados diferentes,


tais como a falta de moradia, os problemas familiares, sociais e econômicos,
de desemprego ou de doença mental, da crise de valores na atualidade e
das influências das políticas sociais (NASCIMENTO, 2016), certos autores
seguem afirmando o abuso de álcool e outras drogas como um dos princi-
pais responsáveis pela situação de rua na qual se encontram determinadas
pessoas (VALENCIO et al., 2008; JESUS; MENEZES, 2010; DANTAS

or
et al., 2012; ABREU, 2013; ANDRADE, COSTA; MARQUETTI, 2014;

od V
NASCIMENTO, 2016).

aut
Assim, é frequente na literatura o consumo problemático de álcool e
substâncias ilícitas associados a pessoas que estão ou vivem nas ruas, com
afirmações de que o uso em geral de drogas nas ruas é significativo, ainda

R
é crescente entre os mais jovens, e é um dos que mais leva os sujeitos às
situações de rua, e o fato deste fenômeno estar sendo bem documentado no

o
mundo inteiro por estudos e pesquisas corrobora fatores como a ocorrência
aC

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de percursos individuais com perdas irreparáveis nas áreas de vida, trabalho,
família, lar, e até mesmo expulsão de abrigos e serviços públicos, não restando
maiores opções e perspectivas sociais a esses sujeitos (NASCIMENTO, 2016).
Para Foucault (2007) todo dispositivo existente pode ser utilizado para
visã
a normalização e adaptação a mecanismos de controle nas práticas sociais,
a serviço da produção de verdades nas sociedades modernas, e assim contri-
buindo para uma governamentalidade possível, a qual nessa perspectiva poderá
itor

assujeitar, reprimir, regular e aprisionar os indivíduos ao tomá-los enquanto


a re

problemas de segurança. Ao mesmo tempo, os modos de subjetivação, as


narrativas e os discursos circulando num dado contexto cultural, podem esti-
mular dinâmicas pragmáticas e políticas normalizadoras das populações, assim
como formas de resistência na vida dos sujeitos, mesmo em condições sociais
par

desfavoráveis, sendo fundamental desvelar sempre o percurso sócio-histórico


e a singularidade de cada território.
Ed

Não obstante, Foucault (1999) ressaltou também o quanto as ações polí-


ticas governamentais na esfera pública tendem à biopolítica na gestão da vida
das populações, sendo refratárias aos direitos sociais, mesmo propondo em
ão

seu discurso gerir os interesses de cidadania e zelar pelos programas, projetos


e políticas de saúde. Ao invés disso, pela disciplina, a política ocupa-se do
modo de ser dos indivíduos, pelas avaliações, vigilâncias, controles no tempo
s

e no espaço social, e encaminhamento às práticas de sanção, todos bastante


ver

utilizados por meio dos mecanismos disciplinares.

[...] a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde,


a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem
fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 177

intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população.


As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois
pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a
vida (FOULCAULT, 1999, p. 131).

Portanto, para Foucault, as instituições de um determinado contexto


social é que detém o poder na chamada sociedade disciplinar, por ele deno-

or
minado biopoder, o qual atua de duas formas principais. Uma delas é através
do eixo disciplinar, centrado no corpo como se fosse uma máquina, para ades-

od V
trá-lo e ampliar as suas aptidões, sua utilidade e docilidade. A outra forma de

aut
controle se dá pelo eixo biopolítico, também centrando-se nos corpos, porém
enquanto espécie, através dos processos de regulação na duração da vida e nas

R
condições de morte, nascimento, saúde-doença, e controle das epidemias, com
menos repressão e punição, e mais produção de verdades e normas incidindo

o
nas relações, no cotidiano e nos modos de subjetivação (Ibidem).
aC
No capítulo a seguir, serão discutidas algumas implicações da noção de
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biopolítica criada por Foucault para a temática das pessoas em situação de rua
que fazem uso de substâncias psicoativas, no intuito de clarificar as estraté-
gias de controle e regulação das subjetividades produzidas para este público,
visã
em seguida ampliando o diálogo para outros autores como Deleuze naquilo
que este denominou sociedade de controle, buscando caminhos teóricos e
resistências possíveis aos assujeitamentos e agenciamentos perpetrados pelos
itor

mecanismos de normalização da vida.


a re

Pessoas em situação de rua, uso de drogas e estratégias biopolíticas

Segundo Foucault (1999), a partir da segunda metade do século XVIII,


uma nova forma de poder passa a se desenvolver, a biopolítica. Diferente
par

das técnicas disciplinares que se centravam no corpo, essa nova forma de


intervenção focava também o corpo populacional, os nascimentos, a morta-
Ed

lidade, o nível de saúde, a longevidade e a duração da vida. Tais processos


são assumidos mediante uma série de intervenções e controles reguladores,
denominada biopolítica da população.
ão

Os processos biopolíticos estão intimamente interligados ao poder dis-


ciplinar. As normas sociais passam assim a atravessar duas formas de poder
s

diferentes, indo da disciplina à biopolítica, as quais mesmo tendo investimen-


ver

tos opostos, ainda assim são complementares, pois ambas investem na vida.
O poder disciplinar restringe, interdita e produz confinamento. A biopolítica
estimula o fluxo, o movimento e a mobilidade, logo o exercício do poder
acontece em meio à circulação de práticas sociais, pessoas e mercadorias no
sistema capitalista (FOUCAULT, 1999).
178

O autor localiza no século XIX a tomada de poder sobre o homem


enquanto ser vivo, constituindo-se ali o que ele denominou de estatização do
biológico, um processo que teve início no século XVIII quando surgiram as
novas técnicas de poder centradas no corpo individual (Ibidem).
Ao longo do tempo, todas as estratégias do poder foram sendo transfor-
madas, da ordem dos soberanos do fazer morrer, para o poder que ordena que
se viva. Chega-se dessa forma até a moderna criação de estratégias de cuidado

or
para o controle dos corpos e a gestão da vida. O Estado passa então a intervir

od V
na população através de políticas de cuidado com a saúde, pela imposição do

aut
fazer viver. As ações do Estado visam transformar as condições ambientais
tornando as cidades salubres, e as condições socioambientais passam a ser
consideradas como determinantes para a saúde (Ibid.).

R
O poder, agora como biopoder, passa a operar sobre a vida, moldando
os sujeitos. Sua ação é voltada não somente para adestrar corpos, mas tam-

o
bém para normalizar condutas. O biopoder está voltado ao mesmo tempo à
aC
dimensão individual e coletiva imposta sobre as populações e o movimento das

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pessoas nos seus territórios, investindo naquilo que é mais caro, a vida (Ibid.).
O conceito de biopoder traz à tona as estratégias de intervenção sobre as
características próprias da existência humana, o nascer, o crescer, o adoecer
visã
e o morrer. O biopoder é um polo da biopolítica que serve para empregar os
controles e as intervenções reguladoras, manejar a população e normalizar o
corpo social (Ibid.).
itor

O controle da sociedade sobre os indivíduos não opera mais simplesmente


a re

pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. É no


biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investe a sociedade
capitalista. Assim, a saúde das populações passa a ser foco do investimento
estatal a partir da modernidade, com o advento do capitalismo. O corpo é uma
realidade biopolítica. A medicina e a saúde são estratégias biopolíticas para
par

o controle político das populações (FOUCAULT, 2007).


Pode-se identificar nessa relação entre a medicina, o capitalismo e a polí-
Ed

tica um dos mecanismos de exercício do biopoder evidenciados por Foucault


em “A microfísica do poder”, com
ão

o surgimento da saúde e do bem−estar físico da população em geral como


um dos objetivos essenciais do poder político. Não se trata mais do apoio a
s

uma franja particularmente frágil − perturbada e perturbadora − da popula-


ção, mas da maneira como se pode elevar o nível de saúde do corpo social
ver

em seu conjunto. Os diversos aparelhos de poder devem se encarregar dos


“corpos” não simplesmente para exigir deles o serviço do sangue ou para
protegê−los contra os inimigos, não simplesmente para assegurar os castigos
ou extorquir as rendas, mas para ajudá−los a garantir sua saúde. O imperativo
da saúde: dever de cada um e objetivo geral (FOUCAULT, 2007, p. 149).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 179

A promoção da saúde das populações se utiliza então de técnicas invisíveis


de poder, fazendo esse poder invisível circular. Essa tecnologia que não é cen-
trada no corpo, mas na vida, é uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas
próprios às populações, buscando controlar as séries de eventos fortuitos pos-
síveis de ocorrer numa massa viva, com uma tecnologia que procura controlar
e quem sabe modificar a probabilidade desses eventos (FOUCAULT, 1999).
Dessa forma, a produção dos modos de subjetivação alia-se às forças que

or
tornam o sujeito um resultado das estratégias de poder. O governo da conduta

od V
das pessoas demarca, cria critérios do que deve ser o modelo de sujeito, através

aut
das relações de poder-saber, por meio de técnicas, procedimentos e práticas.
O corpo se torna uma realidade biopolítica, e suas estratégias de biopoder se
tornam possíveis quando a medicina e o capitalismo se articulam ao Estado,

R
contribuindo nas formas de governar as populações e configurando as estra-
tégias biopolíticas de poder e controle (Ibidem).

o
Castro (2009) situa também na obra “História da sexualidade I” o
aC
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momento em que o biopoder foi tomado por Foucault como um elemento


indispensável para o desenvolvimento do capitalismo. Foi nessa fase que
Foucault passou a afirmar o biopoder como mecanismo principal para asse-
gurar a inserção controlada dos corpos no aparato produtivo, e para ajustar
visã
os fenômenos da população aos processos econômicos.
Para Danner (2009) deve-se entender o biopoder como estratégia de con-
trole aplicada aos corpos dos indivíduos naquilo que eles têm em comum: a vida,
itor

o pertencimento a uma espécie. Trata-se de uma biopolítica porque os novos


a re

objetos de saber criam “a serviço” do novo poder, o controle da própria espécie.


E a população é o novo conceito que se constrói para dar conta de uma dimensão
coletiva que até então não havia sido uma problemática no campo dos saberes.
par

Estabelecem-se, assim, dois conjuntos de mecanismos complementares e


articulados entre si, que ocupam esferas diferentes: na esfera do corpo, o
Ed

poder disciplinar; na esfera da população, o biopoder, atuando por meio


de mecanismos reguladores (DANNER, 2009, p. 793).
ão

O poder será investido no fazer viver, na maneira de viver, na qualidade


dessa vida, no controle e no adiamento da morte. Irá se considerar os processos
biológicos do homem-espécie e assegurar sobre eles não apenas a disciplina,
s

mas também a regulamentação. Por outro lado, Foucault também nos fala da
ver

necessidade de higienização do espaço público nos centros urbanos, acarre-


tando uma gama de preocupações político-sanitárias (FOUCAULT, 2005).
Começam a surgir os movimentos higienistas, com suas tecnologias de
disciplinarização dos corpos, que vão delimitar a alimentação, tipo de moradia,
condições de vida e demais condutas das populações, havendo necessidade
180

de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. Uma sociedade que nor-


maliza as pessoas é efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na
vida, com muitas estratégias possíveis para a atuação invisível de um poder
normalizador (Ibidem).
Por outro lado, a obra de Foucault ajuda a esclarecer, também dentro da
realidade brasileira, os vieses e as limitações das ações políticas no campo
de promoção da saúde da população em geral e, por exemplo, entre pessoas

or
em situação de rua e em uso de drogas. Segundo Neves (2009) as formas

od V
estratégicas de normalização no exercício do biopoder na realidade brasileira

aut
buscaram se sustentar em práticas voltadas à modificação de hábitos e estilos
de vida, escondendo objetivos maiores de controle político e higienista, não
contribuindo em nada para que os sujeitos pudessem exercer escolhas e cons-

R
truir projetos e modos de vida nos centros urbanos, incluindo as demandas
pessoais, necessidades e expectativas de saúde.

o
aC
Nesse sentido, a promoção da saúde pública brasileira estava sobre a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


égide do biopoder e condicionada a uma demanda do sistema produtivo
capitalista. O biopoder opera através das instituições do corpo social per-
mitindo que os corpos e os indivíduos se ajustem as demandas dos meios
visã
de produção. Importante salientar que, as instituições do corpo social que
Foucault se refere dizem respeito à família, o exército, a administração
da coletividade e outros, desta forma, a biopolítica opera via o biopoder,
nos indivíduos e para os indivíduos através, também, das organizações
itor

políticas (NEVES, 2009, p. 5).


a re

Pergentino (2014) assinala os fenômenos de ocorrência das populações


em situação de rua e sua relação frequentemente associada ao uso de substân-
cias psicoativas realizados nos contextos de permanência em cenários urba-
par

nos, surgem também como derivados de um agravamento da questão social


no mundo, inseparável do modo de vida encontrado no capitalismo, o qual
Ed

exige apreensão das múltiplas expressões de formas concretas da existência


humana. Portanto, jamais podem ser considerados como processos naturais,
e necessitam de políticas públicas de enfrentamento da exclusão social, com
ão

maior conhecimento da subjetividade dos sujeitos em situação de rua que


fazem uso de drogas.
Para Snow e Anderson (1998) há bastante tempo o uso e/ou abuso de
s

álcool e outras drogas apareceram nos espaços das ruas nos centros urbanos,
ver

fazendo parte de uma dimensão cultural e compondo uma espécie de estilo de


vida das pessoas que vivem nas ruas, estando assim para além de um hábito
adquirido nas experiências e histórias de vida, parecendo ser anterior e, portanto,
necessitando de uma análise mais voltada para o aprofundamento das marcas
do consumo de substâncias na cultura das cidades e das sociedades modernas.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 181

Certos autores (ABREU, 2013; COSTA, 2005; CARNEIRO JUNIOR


et al., 1998) irão afirmar, então, que o consumo do álcool e outras drogas vai
estar presente na realidade de grande parte das sociedades no mundo, e com
utilização assídua encontrada também entre os sujeitos em situação de rua
na vida urbana contemporânea. O fenômeno deve ser olhado para além dos
números ou da quantidade de pessoas utilizando drogas nas ruas, mas atuando
principalmente como forma de socialização entre os sujeitos, ou ainda com-

or
pondo estratégias para minimizar fatores como fome e frio, contribuindo para

od V
o enfrentamento das dificuldades inerentes à vida nas ruas. Por fim, muitos

aut
desses sujeitos não foram para os espaços públicos com o propósito de usar
drogas, mas ao permanecer neste contexto, passaram a utilizar substâncias
psicoativas como meio de inserção nos grupos de rua.

R
Numa visão mais conservadora, Goulart, Sampaio e Guedes (2011) apon-
tam uma inter-relação entre a dependência do uso do crack e a população em

o
situação de rua, enquanto um assunto atual e de forte impacto na sociedade,
aC
tornando o uso de drogas ilícitas não mais somente uma questão de saúde
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pública, mas também uma questão social, exigindo o entendimento técnico,


médico e científico dos efeitos físicos, psicológicos, morais e sociais do uso
do crack nos espaços urbanos, de modo que as políticas públicas tenham
visã
uma coesão nas melhorias dos aspectos institucionais, sociais e individuais,
buscando a erradicação do uso de drogas e da população em situação de rua.
Jesus e Menezes (2010) por sua vez, sugerem as políticas de interven-
itor

ção com pessoas em situação de rua partindo de uma lógica de promoção


a re

do empoderamento individual, social e institucional, descartando o viés do


assistencialismo, pois afirmam que passar a viver numa condição de rua pode
contribuir para o desenvolvimento do empoderamento psicológico, e os indi-
víduos são capazes de se tornarem empoderados mesmo nos ambientes que
parecem menos favoráveis.
par

Para os autores, pessoas em situação de rua tornam-se empoderadas


Ed

psicologicamente ao realizar ações tais como perceber aspectos positivos nas


ruas para além apenas dos pontos negativos, demonstrar capacidade crítica ao
funcionamento das instituições assistenciais e ao meio social do qual saíram
ão

para viver na rua, mostrar percepção pessoal das próprias competências ao


manter controle sobre a própria vida, resolver problemas nas ruas e até mesmo
depender de si próprios para saírem da rua se motivados a este ato, e ainda ter
s

a capacidade de acessar os recursos existentes nos locais por onde transitam


ver

como albergues, abrigos e serviços de assistência social que ofertam quartos


em hotéis, serviços de saúde, locais de doação de roupas e comida, centros
de emprego e qualificação. Tudo isso apesar das dificuldades enfrentadas, e
do sentimento de injustiça social e discriminação pela condição de vida na
rua (JESUS; MENEZES, 2010).
182

Em relação aos usuários de drogas, Boiteux (2015) observa que o modelo


hegemônico adotado nas práticas sociais e políticas públicas no Brasil é o proibi-
cionismo, o qual se fundamenta no discurso punitivo das pessoas que usam drogas.
Essa concepção considera a proibição como a opção primordial para se lidar com
os malefícios atribuídos à utilização de substâncias psicoativas classificadas como
ilícitas, passando a considerar, por outro lado, os próprios usuários de drogas
como criminosos. “Trata-se de uma escolha que presume, sem base empírica, que

or
a interdição pela lei penal, sob ameaça de pena, fará as pessoas mudarem seus

od V
hábitos e deixarem de consumir determinadas substâncias, apenas pelo fato destas

aut
serem colocadas na categoria de ilícitas” (BOITEUX, 2015, p. 145).
Para Bokany (2015) a questão das drogas é tratada como “caso de polícia”
no Brasil, e essa complexidade envolve na realidade diversas contradições

R
e conflitos, gerando estigmas e preconceitos aos usuários, indicando uma
dupla penalização – a social e a legal. Abordar o problema das drogas como

o
crime dificulta vê-lo em sua dimensão real, advinda da exclusão social, de
aC
problemas raciais e de classe, ausência de justiça social e de oportunidades,

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todos relacionadas ao proibicionismo punitivo.

Outro ponto é que a criminalização oculta os processos de exclusão social e


visã
reproduz a dinâmica das discriminações de classe e raciais que estruturam
as relações de poder no Brasil. O aumento da violência e da criminalização
gerada pelo tráfico atinge principalmente jovens, negros e pobres. A crimi-
nalização das drogas não se dá desvinculada do contexto social mais amplo,
itor

ao contrário, é determinada por ele. Muitos dos conflitos atribuídos às drogas


a re

refletem problemas sociais de outra natureza, como a violência, desem-


prego, falta de educação, cultura, lazer e acesso a melhores oportunidades.
A política proibicionista reforça e potencializa os nefastos efeitos sociais,
a injustiça, o preconceito, a violência e a opressão (BOKANY, 2015, p. 8).
par

De Paula Souza (2013) afirma que o proibicionismo em relação às dro-


gas aliou interesses geopolíticos mundiais às possibilidades de aumento das
Ed

intervenções na vida das populações, permitindo criar novos eixos estratégicos


e estabelecer subdivisões, distinções, esquadrinhamentos e tecnologias de
normalização sofisticadas, tais como as estratégias de criminalização e racismo
ão

às pessoas que utilizam substâncias psicoativas, confirmando as análises de


Foucault sobre os dispositivos de biopoder aí envolvidos.
s
ver

No caso das drogas observamos esse processo micropolítico no processo


de criminalização que surge a partir de movimentos civil-religiosos organi-
zados. Ao mesmo tempo, ao se apoiar sobre o racismo, essa normalização
não deixa de reforçar as iniquidades entre classe sociais, já que negros e
imigrantes passam a ser o alvo predileto desta estratégia discursiva (DE
PAULA SOUZA, 2013, p. 96).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 183

Para Ramos (2016) o contexto de marginalização e produção massiva


do “abandonado” urbano brasileiro gerou um tipo social típico, no qual a
condição de classe, complementada pela desassistência institucional e pela
carência de recursos materiais e simbólicos, marca central da exclusão na
periferia do capitalismo, tornou também os sujeitos habitantes dos centros
urbanos e muitas vezes em situação de rua, ainda mais suscetíveis aos perigos
do uso contínuo, abusivo e compulsivo de drogas psicoativas.

or
Tais sujeitos parecem possuir agenciamentos performáticos mais voltados

od V
ao presente nos contextos de vida, com claras implicações na subjetividade

aut
pelo histórico frequente de ausência de cuidados parentais, menos recursos
tanto materiais quanto socioemocionais para planejamento de ações futuras, e
baixo autocontrole disposicional em suas trajetórias pessoais, gerando grande

R
impedimento a uma nova ressocialização por conta das formas como refletem
sobre si mesmos e da sensação de fracasso na sua relação com o mundo.

o
aC
[...] evidenciamos uma larga penetração do crack nas frações de classe mais
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desassistidas em diversas esferas da vida. São tendencialmente habitantes


dos grandes centros urbanos que põem à prova os precários recursos mate-
riais e simbólicos acumulados em suas trajetórias. O encontro com o crack
visã
é sintomático, revelando inaptidões disposicionais a maneiras específicas
de agir que, quando presentes, imprimem no sujeito uma lógica de certa
previsibilidade sobre o futuro através do autocontrole em ações presentes.
Essas pessoas vivenciam no cotidiano uma prisão ao contexto em que
itor

vivem numa repetição circular de “presentes”, sendo fundamental inves-


a re

tigar quais são os componentes sociais fundantes de comportamentos que


perpetuam e ampliam esse desastre cíclico (RAMOS, 2016, p. 100-101).

Segundo o autor, torna-se necessário serem criados instrumentos de auxí-


par

lio permanente, além de sólido apoio institucional das políticas públicas a


pessoas que usam drogas e ocupam espaços urbanos, para que os problemas
Ed

existentes na socialização primária e secundária, decorrentes das ausências de


vínculos familiares, e as repetidas experiências de fracasso social e exclusão
do mundo do trabalho e da cultura em geral possam ser atenuados por espaços
ão

institucionais, nos quais as potencialidades presentes em todo ser humano


possam ser desenvolvidas, permitindo a reinserção social das pessoas com
uso problemático de substâncias psicoativas e em situação de rua.
s

De acordo com Souza (2016) a classe social por ele denominada como
ver

“ralé brasileira” começou a ser formada no Brasil moderno desde as suas


origens, na junção do contexto de urbanização e industrialização brasileiro ao
processo de libertação dos escravos, feito sem qualquer ajuda governamental,
quando os então ex-escravos ou mestiços empobrecidos passaram a formar,
já naquela época, a classe dos desclassificados e abandonados à própria sorte
184

(ou azar) nos centros urbanos do país. Ou seja, jamais houve no Brasil qual-
quer visão de igualdade de classes ou consciência da necessidade de resgatar
pessoas excluídas socialmente.
Para este autor, a humilhação social secular perpetrada no Brasil, junto à
marginalização praticada cotidianamente, incluindo ainda a discriminação pela
cor da pele ou pela “raça”, tais como forma exterior de perceber os sujeitos e
inferiorizá-los, faz emergir o dado fundamental de que tais sujeitos passaram

or
a se perceber e assim reproduzir práticas sociais de uma classe sem condições

od V
emocionais e morais de incorporar “conhecimento”, ou seja, sem conseguir

aut
adquirir o “capital cultural” que a sociedade moderna precisa em todas as suas
funções, ficando fora do mercado de trabalho competitivo.

R
Na verdade, ninguém “escolhe” ser pobre e diuturnamente humilhado.
Como somos constituídos por herança familiar – e, portanto, por herança

o
de classe, já que cada classe possui suas socializações familiares típicas
aC
– e por certos pressupostos emocionais e morais como capacidade de

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autodisciplina, de concentração, de pensamento e cálculo prospectivo etc.,
algumas classes são literalmente condenadas à marginalidade, enquanto
outras ao sucesso mundano. O usuário de crack, em sua esmagadora
visã
maioria, faz parte daquilo que chamamos de “ralé brasileira”, não para
insultar quem já é humilhado, mas, sim, para denunciar a iniquidade do
abandono social já secular que é o principal traço social singular brasileiro
(SOUZA, 2016, p. 35).
itor
a re

Em estudo empírico realizados com os assim chamados desclassificados


sociais brasileiros usuários de crack, o autor e sua equipe de pesquisadores
afirmam poder comprovar uma relação entre o impulso autodestrutivo visuali-
zado no uso de crack em centros urbanos e o mecanismo implícito da desclas-
par

sificação social verificado no discurso das pessoas que usam drogas (Ibidem).
Nos dois casos, a “desclassificação objetiva”, ou seja, que é “sentida”
Ed

pelo sujeito entrevistado na relação com sociedade que o rodeia, deriva do


fato deles serem julgados e avaliados como “indignos”, o que significa para
cada um, em sua realidade vivida nas ruas, serem considerados menos que
ão

humanos, e sentirem em seu íntimo, subjetivamente, que não são capazes de


mudar as próprias trajetórias, por ausência de recursos materiais, cognitivos
e emocionais (Ibid.).
s

A regra da igualdade social entre as pessoas não deriva, então, das Leis
ver

existentes, nem do discurso oficial ou da religião. A igualdade de direitos


emana, de fato, a partir de um sentimento de pertencimento, o qual só produz
efeitos se o consenso social implícito assim o referendar, coletivamente.
Caso contrário não haverá igualdade, e sim desigualdade social, religiosa,
política ou jurídica.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 185

Não é a malignidade da droga, portanto, que cria a prisão do vício, mas,


o abandono afetivo e social e a experiência silenciosa de uma humilhação
ubíqua e sem explicação palpável. A raiva e o ressentimento do aban-
dono e da humilhação cotidiana podem se transformar, por exemplo, em
“indignação” política e servir de motivação para uma vida com sentido de
missão ainda que pobre materialmente. Mas também essa transformação
exige pressupostos cognitivos e emocionais que são escassos nas classes

or
populares. Mais ainda entre os que estamos chamando de desclassificados.
Nesses casos, para muitos, a reação é dirigida contra si mesmo e o consumo

od V
da droga é uma tentativa desesperada de fugir de um cotidiano intragável

aut
ainda que o consumo progressivo apenas aumente o desprezo social e a
degradação subjetiva e objetiva (SOUZA, 2016, p. 37).

R
Para De Paula Souza (2013) o regime de biopoder em relação ao uso
de drogas é inserido a partir da emergência de um novo objeto de governo: a

o
população. Um regime de verdade sobre o corpo e a subjetividade serve de
aC
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moldura para que novas tecnologias de poder tornem as drogas um problema


político estratégico, assim consolidando a norma da abstinência. A política
proibicionista de drogas vai ser elaborada com o auxílio tanto dos dispositivos
da sexualidade quanto da delinquência, de tal modo que os usuários de drogas
visã
se encontram, de certa forma, entre o delinquente, o louco e o pervertido.

O usuário de drogas é, assim, um campo de investigação sobre a conexão


itor

entre prazer e razão, campo que ainda haveria de ser adensado, investigado
a re

e constituído. As drogas como geradoras de um prazer que enlouquece ou


geradoras de uma loucura prazerosa seriam, ao longo do século XX, toma-
das como uma categoria não só patológica, como ilegal. Os dispositivos
disciplinares: a prisão para o delinquente, o hospício para o louco, e as
ciências da sexualidade não visavam diretamente os usuários de drogas.
par

Seria necessário ainda que o tema das drogas fosse construído enquanto
um problema de ordem política, econômica e social. Assim, a construção
Ed

das drogas como um problema que permitiu a junção entre estas duas séries
(prazer e delinquência) começou agenciada ao nascimento da biopolítica,
por volta do século XVIII (DE PAULA SOUZA, 2013, p. 88).
ão

As proposições de Foucault sobre o biopoder possibilitam compreender


a maneira como as drogas se constituem em objeto de interesse geopolítico de
s

segurança interna e externa; adquire importância no mercado político-econômico;


ver

bem como se torna alvo das políticas sociais. As redes de controle e a expansão
das tecnologias de poder apoiam a política global sobre as drogas a partir do
tema da proteção e preservação da vida humana por ela ameaçada (Ibidem).
Uma das narrativas do século XX pode então ser sobre o processo de intensi-
ficação do poder do Estado sobre as drogas. Utilizando as bandeiras da abstinência
186

total e da necessidade de erradicação das drogas para proteger a vida, a humani-


dade viveu ao mesmo tempo a intensificação de uma ampla rede de repressão,
por um lado, e a intensificação do mercado e do consumo de drogas no mundo, de
outro lado, ambos igualmente nunca vistos. O processo político e governamental
de medicalização e criminalização dos usuários de substâncias psicoativas, anco-
rado na moral religiosa e na repressão policial, amplia significativamente as redes
de biopoder enquanto signo explícito da guerra às drogas (Ibid.).

or
Portanto, são bem explícitos os mecanismos de controle na gestão da

od V
população, nas políticas de uso de drogas em situação de rua, orquestrada

aut
em conjunto à política de individualização disciplinar dos sujeitos, visando
à docilidade e utilidade dos corpos. Para Foucault as duas práticas convivem
juntas lado a lado, com seus efeitos biopolíticos e seus paradoxos, os quais

R
são potencializados se incorporados aos mecanismos de segurança, na justiça
e na economia. A promessa de proteção do meio social pode ser desvirtuada

o
em uma política social e estatal racista, fascista, repressiva e excludente, facil-
aC
mente aliada às tecnociências na criminalização e atribuição de delinquências

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e psicopatologias às pessoas de rua usuárias de substâncias psicoativas.
Castel (1997) analisando as sociedades contemporâneas nos fenômenos
que estão por trás dos grupos “excluídos”, propõe algumas reflexões no modo
visã
de existir desses indivíduos, os chamados “indigentes”, aqueles sem domicílio
fixo, certos toxicômanos, aqueles jovens à deriva em subúrbios, considerados
como deserdados.
itor

Segundo o autor, a miséria econômica está na base da maior parte das


a re

situações de grande marginalidade, ou até mesmo de todas. O termo margi-


nalidade é assim abordado, já que

Trata-se de tentar tomar a marginalização como um processo e de compreender


a situação desses indivíduos como resultado de uma dinâmica de exclusão, que
par

se manifesta antes que ela produza efeitos completamente dessocializantes. A


grande marginalidade apresenta-se, assim, ao fim de um percurso. Esta zona de
Ed

exclusão ou de quase exclusão é alimentada tanto por marginais propriamente


ditos como por aqueles que estão ameaçados, instáveis, frágeis, correndo o
risco de cair na marginalidade (CASTEL, 1997, p. 20).
ão

Desta forma, o autor propõe uma contextualização da pobreza até a che-


gada das pessoas à desfiliação social (no caso deste artigo, a situação de rua e
s

o uso de drogas). Segundo ele, existe uma pobreza integrada, isto é, pessoas
ver

que vivem no patamar da pobreza, sem qualquer tipo de reserva econômica,


como os artesãos da Europa, os quais eram vistos como autônomos, não neces-
sitando de uma política social especial. Castel enfatiza também que existe,
por outro lado, para além da pobreza, uma indigência integrada, condição na
qual não há ainda a marginalidade.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 187

Para além da pobreza integrada, composta pela classe trabalhadora, e


da indigência integrada, das pessoas que dependem das ações de socorro e
ainda possuem inserção comunitária, as formas de marginalidade que não se
encaixam nos sistemas de classificação social são aquelas compostas pela
indigência desfiliada, marginalizada ou excluída, que não encontra um lugar
nem na ordem do trabalho (pessoas aptas a trabalhar, mas sem emprego e
sem vínculos familiares), nem na ordem comunitária (indigentes inválidos

or
ao trabalho, sem família e moradia), os rejeitados sociais.

od V
Para Goffman (2013), o ser humano faz algumas exigências sociais no

aut
contato com um indivíduo, muito embora frequentemente não haja um reco-
nhecimento da existência dessa atitude. A partir dessas exigências pré-esta-

R
belecidas, há um questionamento: “essas exigências são preenchidas?”, de
acordo com o autor, é nesse ponto que “o caráter que imputamos ao indivíduo
poderia ser encarado mais como uma imputação feita por um retrospecto em

o
potencial – uma caracterização “efetiva”, uma identidade social virtual”, ou
aC
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seja, aquilo que se espera e se deseja encontrar, mas pode não ser encontrado.
Mais adiante, Goffman afirma que para um ser humano ser aceito “a categoria
e os atributos que ele, na realidade, prova possuir, serão chamados de sua
visã
identidade social real”, e ao haver discrepância entre o que é esperado e aquilo
de fato encontrado, surge o estigma. Desta forma, é possível afirmar que:

[...] deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma


itor

pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especial-


a re

mente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes


ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem
– e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual
e a identidade social real (GOFFMAN 2013, p. 12).
par

Segundo o autor, é possível falar em três tipos de estigma, nitidamente


Ed

diferentes. Em uma primeira dimensão, “há as abominações do corpo – as


várias deformidades físicas”. Em segundo lugar, “as culpas de caráter indi-
vidual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais,
ão

crenças falsas e rígidas, desonestidade”, sendo que essas afirmativas podem


ser exemplificadas a partir de “distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo,
homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento polí-
s

tico radical”. Por último, “há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que
ver

podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os


membros de uma família” (GOFFMAN, 2013, p. 14).
No caso das pessoas em situação de rua e uso de drogas, o pensamento de
Goffman se encaixa nitidamente aos discursos presentes no cotidiano, quando o
autor se refere ao atributo negativo de distanciamento da noção de normalidade.
188

Em todos esses exemplos de estigma [...] um indivíduo que poderia ter


sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que
pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a
possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma,
uma característica diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não
se afastam negativamente das expectativas particulares em questão serão
por mim chamados normais (GOFFMAN, p. 14).

or
Em alguns contextos sociais, mais do que em outros, a relação entre a

od V
ocupação de espaços públicos e do uso de substâncias em uma condição de

aut
marginalidade, termo utilizado por Castel, ou de estigma, termo apontado
por Goffman, são mais evidentes no seu aspecto da exclusão social. Por outro

R
lado, em diversos cenários urbanos, o problema do desemprego, da moradia,
da pobreza, da marginalização e do controle social, vai gerando essa exclusão

o
naqueles que não se enquadram na sociedade produtiva atual, assim como
vai impondo um padrão de criminalização das práticas sociais, a pessoas
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


que muitas vezes estão nas ruas por desfiliação social (falta de trabalho, de
moradia, uso de droga e ausência de vínculos familiares).
Nesse campo de reflexão, cabe citar tanto a sobrevivência na atualidade de
visã
muitos dos ideais higienistas e urbanistas criados no século XIX, assim como ecos
da sociedade disciplinar engendrada ainda nos séculos anteriores, e da qual nos
fala Foucault, onde a saída para enquadrar aqueles sujeitos que não obedeciam
às normas e ao controle exercido pela disciplina, era a atribuição da delinquência
itor

a estes e a utilização de mecanismos de punição, como o isolamento, a institu-


a re

cionalização e a prisão. Posteriormente, tais estratégias de punição e controle


serão continuamente retomadas no exercício do poder pelas classes dominantes,
perdurando até os dias atuais, seja no prosseguimento da utilização do encarce-
ramento aos chamados criminosos e delinquentes, seja no controle disciplinar
par

dos espaços urbanos e na higienização das cidades, ou ainda no uso das técnicas
disciplinares nos operários e nas classes trabalhadoras e populares, ou ainda
Ed

através dos mecanismos da sociedade de controle, da qual nos fala Deleuze.


Deleuze (1992) denominou a atual sociedade como de controle em fun-
ção da ampliação das políticas de saúde e proteção para o meio aberto faz
ão

do cuidado e da seguridade atividades empresariais próximas de um engodo


social. A promessa de cuidar mais e melhor para antecipar auxílios e prevenir
perigos e doenças, termina criando riscos securitários muito próximos do
s

fascismo em nome da saúde, do cuidado e da proteção.


ver

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confi-


namento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um “inte-
rior” em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional etc. Os
ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 189

necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército,


a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num
prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar
as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as
“sociedades de controle” que estão substituindo as sociedades disciplinares
(DELEUZE, 1992, p. 220).

or
Na sociedade de controle, Deleuze cita o exemplo da crise dos meios
asilares e de confinamento, os quais passam a funcionar como forma de con-

od V
trole ao ar livre rivalizando, assim, com os mais duros sistemas fechados

aut
das sociedades disciplinares referidas por Foucault operando, entretanto,
pela setorização, pelos cuidados a domicílio, pela seguridade permanente e

R
universal, os quais de início parecem querer marcar novas liberdades, mas
também passam a integrar mecanismos de domínio, pois já não existe o par

o
massa-indivíduo, e os indivíduos se tornaram então divisíveis, “dividuais”,
aC
e as massas tornaram-se amostras, bancos de dados, partes do mercado de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

um capitalismo não mais voltado à produção, mas aos produtos acabados, à


venda de serviços.
O mercado da saúde e dos hospitais, por exemplo, assim como quaisquer
visã
outros na sociedade de controle (a prisão, a escola, a universidade, a empresa),
agem pela formação de um sistema geométrico e mutável, numa modulação
auto deformante que muda continuamente a cada instante, controlando as
itor

linguagens numéricas e cifradas de acesso ou rejeição da informação, num


a re

ambiente essencialmente dispersivo das subjetividades, como em uma peneira


cujas malhas mudam constantemente de um ponto a outro, fazendo surgir
diferentes modos de controle, mas como se fossem variações inseparáveis e ao
mesmo tempo variáveis, como os anéis de uma serpente, em todas as instân-
cias existentes, e em particular nas empresas de produção da saúde (Ibidem).
par

Bauman (2005) ressalta que o fenômeno do desemprego ocorrido nas


sociedades contemporâneas mais ou menos a partir dos anos 70 do século
Ed

XX veio desmontar a ideia de que as civilizações encontrariam sempre as


melhores soluções para a sobrevivência individual e coletiva, num mundo em
que os seres humanos seriam sempre “produtores”, e haveria pleno emprego
ão

como uma chave para a ordem social e o progresso econômico, com postos
de trabalho para todos e uma função produtiva para cada um.
s

Com a insuficiência do modelo capitalista e o surgimento do desemprego


ver

em massa, surgiu também a noção de “redundância” daqueles sujeitos sociais


fora do padrão de utilidade, os quais passaram a ser dispensados “para fora”
do sistema produtivo porque se tornaram dispensáveis (ou por não serem
indispensáveis), aqueles de quem ninguém precisa, que não conseguem sequer
justificar ou reivindicar a sua existência (Ibidem).
190

A ideia da redundância nas sociedades de consumo diz respeito, também,


a uma mercadoria sem valor de compra, sem poder de atração, de produ-
tos abaixo do padrão, defeituosos, inúteis, com manchas ou problemas de
fabricação, a serem retirados da linha de venda ou de montagem, para serem
descartados no lixo (Ibid.).
O autor faz uma reflexão sobre as consequências que o planeta e, mais
especificamente, as cidades têm absorvido em relação ao acúmulo de lixo

or
verificado como dejeto da sociedade de consumo. Á medida que a cidade

od V
se renova, as pessoas e as suas formas de existir se renovam junto. A metá-

aut
fora aqui aplicada é a de que o planeta está, na visão de muitos, “cheio”, ou
mesmo “quase inapropriado para se viver”, afirmação bastante questionável.
Portanto, seria necessário esvaziar o mundo e as grandes cidades, excluindo

R
os dejetos e o lixo acumulado em toda parte, assim como eliminar socialmente
quem não produz, quem incomoda, e ainda, criar soluções para os problemas

o
relacionados às superpopulações urbanas (Ibid.).
aC
Para explicar o processo de exclusão e desigualdade social, Bauman

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


apresenta a ideia da produção de “refugo humano”, isto é, de seres humanos
rejeitados, que são considerados “excessivos” e “redundantes”. Essas pessoas
são as que não conseguiram obter reconhecimento para continuar a fazer parte
visã
da sociedade de consumo, e esta é uma consequência “inevitável da moderni-
zação, e um acompanhante inseparável da modernidade. É um efeito colateral
da ‘construção da ordem’ e do ‘progresso econômico’. Assim, para a sociedade
itor

moderna a nova plenitude do planeta significa, essencialmente, uma crise


a re

aguda da indústria de remoção do refugo humano” (BAUMAN, 2005, p. 13).


Outro aspecto é a ideia de “redundância”, sobre a qual comenta:

Enquanto prefixo “dês” em “desemprego” costumava indicar um afasta-


mento da norma – tal como em “desigualdade” ou “desproposito” -, não
par

havia essa indicação na noção de “redundância”. Nenhuma insinuação de


anormalidade ou anomalia, nenhum indício de doença ou lapso momen-
Ed

tâneo. “Redundância” sugere permanência e aponta para regularidade da


condição. Nomeia uma condição sem oferecer um antônimo prontamente
disponível. Sugere uma nova forma de normalidade geral, e o formato das
ão

coisas que são imanentes e que tendem permanecer como são. Ser “Redun-
dante” significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso – quaisquer
que sejam seus usos e necessidades responsáveis pelo estabelecimento
s

dos padrões de utilidade e de indispensabilidade (BAUMAN, 2005, p.20).


ver

O autor segue afirmando que a “Redundância” pode ser considerada como


a partilha do espaço semântico de “rejeitos”, “dejetos”, “restos”, “lixo” – com
a noção de refugo, de coisa descartável. Neste caso, o destino dos desemprega-
dos, do chamado exército de reserva da mão-de-obra da sociedade produtiva,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 191

era serem chamados de volta ao serviço ativo. Como esse fato acabou não
ocorrendo, tanto pela insuficiência de empregos a todos, como pelo excesso
de produção, o destino do refugo passou a ser o depósito de dejetos, o monte
de lixo, enquanto o excesso de mão de obra humana passou a ir para as ins-
tituições, os hospitais, os asilos, as prisões e as ruas (Ibidem).
Apesar da existência de experiências valiosas executadas no Brasil e no
exterior voltadas para pessoas em situação de rua que fazem consumo de subs-

or
tâncias psicoativas, a realidade das políticas públicas brasileiras ainda deixa

od V
larga margem para a exclusão social dos sujeitos fora do mercado produtivo

aut
e sem a cobertura de vínculos familiares, comunitários e institucionais, aos
quais Robert Castel chamou de vulneráveis ou desfiliados sociais, e Zygmunt
Bauman classificou como redundantes ao modo de vida capitalista, podendo

R
ser tratados como refugos do sistema produtivo, feito sobras, restos excedentes
a serem descartados em algum momento, com os quais não se sabe o que fazer.

o
A temática do pertencimento ou da marginalidade social e, por fim, da
aC
indigência, abordadas por Castel, assim como da redundância, na condição
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de ser descartável, e do refugo, na categoria socialmente considerada como


dejeto, resto ou lixo, nas considerações de Bauman, suscitam importantes
reflexões, ainda que de maneiras distintas, quanto à própria forma de fun-
visã
cionamento social das estruturas capitalistas nos últimos séculos, pois pelo
menos aparentemente, boa parte da problemática envolvendo a díade inclu-
são e exclusão social, moduladas pela prometida oferta de empregos e a sua
itor

impossibilidade de contemplar a todos, ocasionaram em diferentes momentos


a re

históricos a relação das políticas públicas e dos acontecimentos políticos, eco-


nômicos e sociais com a questão da vida urbana nas cidades e a utilização de
drogas em espaços públicos, demarcando uma relação íntima entre o biopoder
e a disciplina, a qual segundo Foucault, irá marcar as sociedades modernas
pelo utilitarismo e pela obediência a um poder ao mesmo tempo onipotente
par

e invisível, um mecanismo de poder exercido através do Estado e das suas


Ed

instituições, para esquadrinhar, articular, desarticular e por fim recompor a


disciplina e a dominação sobre os corpos.
Essa verdadeira anatomia política termina por fabricar corpos aptos,
ão

fortes, adestrados, mas ao mesmo tempo submissos, através de uma “mecânica


do poder” que só aumenta a sua dominação quanto menos se faz notar a sua
presença, através de um investimento minucioso e político no corpo, visando
s

o seu controle disciplinar e biopolítico.


ver

A discussão teórica sobre a necessidade de controle dos indivíduos na


vida em sociedade, desveladas por Foucault na chamada sociedade disciplinar
e depois através da noção do biopoder sobre os corpos como estratégia biopo-
lítica de vigilância das populações, apontam percepções, caminhos e valores
que irão de algum modo estar presentes em vários aspectos das sociedades
192

modernas, e irão por fim se infiltrar nas concepções de homem na sociedade


contemporânea, chegando na concepção de sociedade de controle criada por
Deleuze para demonstrar o quanto as condições de vida na atualidade deixam
pouca margem para a autonomia dos sujeitos. Por outro lado, no conceito de
delinquência, também criado por Foucault, encontra-se em outro momento
de sua obra o foco na vigilância para evitar o desvio da norma, passível de
punição ou exclusão, por aqueles que não se enquadram no controle exercido

or
pela sociedade disciplinar, em última instância através das prisões.

od V
Na história do consumo de drogas, se não há uma relação direta em todas

aut
as épocas com a situação de vida nas ruas, sendo talvez esta uma característica
mais presente nas sociedades urbanas dos séculos da era moderna, aparece,

R
no entanto, uma relação constante com o binômio proibição-liberação do uso
em diversas sociedades através dos tempos, sendo em muitas delas comum

o
a repressão, a criminalização, a patologização e a punição dos sujeitos, que
podem ser revertidas e retomadas de tempos em tempos, em acordo à dinâmica
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sócio-histórica das diferentes culturas, países e populações (PETUCO, 2015).
No capítulo a seguir, adota-se como foco a análise de possíveis relações
entre a situação de rua, o uso de drogas e as formas de resistência que possam
visã
ser criadas pelos sujeitos para escapar das condições de estigmatização, controle,
biopolítica, marginalidade e desfiliação social, e ainda da condição de refugos
humanos, criminalização, punição e atribuição de delinquência, ou qualquer
outra caracterização em função da própria condição social, buscando saídas e
itor

linhas de fuga das produções de verdade e modos de subjetivação que possam


a re

estar atravessando os corpos e buscando assujeitar as subjetividades desses


indivíduos, através de mecanismos de biopoder e normalização de suas condutas.

Situação de rua e uso de substâncias como formas de resistência


par

No Brasil, as temáticas da exclusão e indigência social, e da ocupação


Ed

de espaços públicos e higienização urbana vêm sendo bastante discutidas


a partir do fenômeno das pessoas em situação de rua, o qual parece ter se
tornado mais visível nos últimos tempos. De outro modo, o esforço das polí-
ão

ticas públicas e dos pesquisadores em geral tem se deparado cada vez mais
com uma realidade antes aparentemente mais invisível da população de rua,
s

gerando um incômodo naquilo que se imagina ser um crescente número de


ver

seres humanos passando a viver nas ruas.


Tal contexto de aumento das chamadas populações de rua, por outro lado,
acaba por ressuscitar uma famigerada; mas frequente associação a outras con-
dições históricas de exclusão social como a criminalidade, a vagabundagem, a
delinquência, a mendicância e a indigência a partir da situação de rua quando
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 193

associada ao uso e abuso de substâncias psicoativas12, tornando tais pessoas alvo


de intervenções do poder público (assistência social, saúde, entre outros), de
ONG’s, pesquisadores, e da repressão policial (em função do consumo de drogas,
com monitoramento, detenções, prisões, encaminhamentos ao judiciário e con-
denações, por exemplo, na atribuição de associação ao tráfico de drogas ilícitas).
Assim, as pessoas em situação de rua e ainda por cima na condição de
usuárias de substâncias psicoativas se enquadram na discussão de autores

or
como Goffman enquanto portadoras da noção de estigma social, pois estariam

od V
sujeitas a todas as mazelas sociais possíveis, assim como a todos os rótulos

aut
e preconceitos existentes no imaginário urbano e capitalista, exercido coti-
dianamente através das relações de poder nos contextos sociais, tanto pelos
governos quanto por sujeitos e instituições em geral.

R
Como foi visto no capítulo anterior, Foucault concebe as relações de
poder e normalização das práticas biopolíticas e disciplinares gerando indi-

o
víduos sob medida às normas sociais estabelecidas, submetidos aos discursos
aC
dominantes e ao biopoder (poder sobre os corpos, na saúde das populações,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nos comportamentos individuais) conjugado a práticas políticas e de gover-


namentalidade dos sujeitos em toda a estrutura sociocultural e de produção
de modos de subjetivação existente.
visã
Porém, é possível encontrar na obra deste autor possibilidades de resis-
tência a tais formas de poder, as quais por sua vez não são por si repressivas
e sim produtivas das subjetividades e do governo da vida, por um lado, e da
itor

disciplina e do adestramento dos corpos ao trabalho, às atividades da vida e


a re

às instituições, por outro lado.


Foucault (1999) mesmo identificando o controle, a dominação, o assu-
jeitamento, a violência e a opressão como parte indissociáveis das artes de
governar, através das estratégias de poder encadeadas para funcionar no tecido
social como um todo, e com o fim último da dominação dos sujeitos fala, no
par

entanto, das práticas de resistência como componente também indissociável


Ed

das relações de poder em suas estratégias governamentais e institucionais, as


quais seriam transversais às relações de forças no campo das práticas sociais.
Portanto, o poder está em toda parte porque vem de todos os lugares,
ão

formando cadeias e sistemas, sem ser, no entanto uma estrutura, ainda que
se concretize, em última instância, frequentemente através dos governos, do
s

12 É importante ressaltar que a associação direta e generalizada entre pessoas em situação de rua e o consumo
ver

de substâncias psicoativas é veementemente repudiada e sistematicamente desconstruída pelo Movimento


Nacional de População de Rua, como uma ocorrência que não seria nem universal e nem predominante
entre pessoas que vivem nas ruas. Ressalta-se neste trabalho uma concordância a essa afirmação, pois
o interesse neste tema de pesquisa (uso de substâncias por pessoas em espaços públicos) não altera o
fenômeno do uso de drogas como podendo ocorrer em qualquer lugar ou segmento social, e por outro lado
sabe-se ser verdadeira a assertiva segundo a qual nem todas as pessoas que estão nas ruas usam drogas,
e sim apenas uma parte dos indivíduos, os quais são o interesse de estudo no presente artigo.
194

Estado e da política, gerando tensões e situações complexas nos determinados


contextos históricos de cada sociedade, sendo que em cada uma delas haverá
também pontos de resistência como possibilidade de rupturas. Para tal, uma
das proposições de Foucault é:

– que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso


mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação

or
ao poder. Deve-se afirmar que estamos necessariamente “no poder”, que
dele não se “escapa”, que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto,

od V
por estarmos inelutavelmente submetidos à lei? Ou que, sendo a história

aut
o ardil da razão, o poder seria o ardil da história – aquele que sempre
ganha? Isso equivaleria desconhecer o caráter estritamente correlacional

R
das relações de poder. Elas não podem existir senão em função de uma
multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de
poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite

o
apreensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de
aC
poder. Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Recusa – alma da revolta, foco das rebeliões, lei pura do revolucionário.
Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessá-
rias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrasta-
visã
das, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou
fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir anão ser no campo
estratégico das relações de poder (FOUCAULT, 1999, p. 91).
itor

Foucault afirma o modo irregular, porém contínuo, de distribuição dos


a re

focos de resistência no tempo e no espaço, introduzindo clivagens sociais, des-


locamentos, pontos e nós geradores de pequenas e grandes rupturas às vezes
transitórias e móveis, mas que permitem rearranjos e novos agrupamentos de
unidades sociais, familiares e individuais, com efeitos nos corpos, nas vidas e
nas almas dos sujeitos, fazendo emergir regiões subjetivas irredutíveis, levan-
par

tes populares, comportamentos transgressores das normas vigentes sem, no


Ed

entanto, romper totalmente com as formas de organização social de seu tempo,


subvertendo, mudando e ao mesmo tempo mantendo as relações de poder.
ão

Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um


tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar
exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atra-
s

vessa as estratificações sociais e as unidades individuais. E é certamente a


codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma
ver

revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa sobre a integração


institucional das relações de poder (FOUCAULT, 1999, p. 92).

Em outra obra, Foucault (1995) critica por sua vez tanto a noção de poder
absoluto quanto fala mais concretamente em possibilidades de resistência do
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 195

sujeito ao poder, quando pensado em termos de governamentalidade, as artes


políticas de condução das relações e práticas sociais. Assim, cabe ao sujeito
opor formas de resistência nas relações de poder, buscando produzir outros
modos de subjetividade, na oposição à sujeição de grupos, castas, classes e indi-
víduos, seja por outros grupos e classes, seja pelo poder estatal, modificando as
formas de exercício do poder, para o que Foucault sugere as formas resistência
utilizadas como estratégias antagônicas às relações de poder sobre os corpos.

or
od V
Gostaria de sugerir uma outra forma de prosseguir em direção a uma nova

aut
economia das relações de poder, que é mais empírica, mais diretamente rela-
cionada a nossa situação presente, e que implica relações mais estreitas entre a
teoria e a prática. Ela consiste em usar as formas de resistência contra as dife-

R
rentes formas de poder como ponto de partida. Para usar uma outra metáfora,
ela consiste em usar esta resistência como um catalisador químico de modo

o
a esclarecer as relações de poder, localizar sua posição, descobrir seu ponto
aC
de aplicação e os métodos utilizados. Mais do que analisar o poder do ponto
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de vista de sua racionalidade interna, ela consiste em analisar as relações de


poder através do antagonismo das estratégias (FOUCAULT, 1995, p. 234).
visã
Foucault conclui a sua ideia sobre as formas de resistência afirmando
que a questão ética e política quanto ao exercício do poder social é menos
propor o fim dos governos e das mentalidades burocráticas dele derivadas,
mas sim propor a recusa da reprodução cotidiana desses micropoderes no
itor

plano individual, a qual vem sendo imposta ao longo da história das práticas
a re

sociais, promovendo resistências às normalizações instituídas no sentido da


construção de novos modos de subjetividade.

A conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de


par

nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das
instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do
Ed

tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas


formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade
que nos foi imposto há vários séculos (FOUCAULT, 1995, p. 239).
ão

Para Oliveira e Mendes (2014) o sujeito presente no regime de vida capi-


talista é composto por uma multiplicidade de relações de dominação e resis-
s

tência, estabelecidas numa construção sem período determinado, engendradas


ver

durante toda a existência do homem, traduzidas por Foucault sempre como


fruto de determinações que lhes são exteriores e relacionadas ao contexto
histórico, uma operação calculada de fabricação, realizada por dispositivos
diversos, como o poder, as práticas sociais, o saber, os discursos, em suas
relações políticas com os objetos em tramas complexas, e também com a
196

produção da verdade, podendo desencadear dinâmicas mais normalizadoras da


vida cotidiana, ou dinâmicas de maior antagonismo aos poderes hegemônicos.
Portanto, o processo de produção do saber e de criação de normas biopo-
líticas não acontece sem resistência. Há uma rede de micropoderes, com suas
formas de resistência que por vezes se contrapõem aos poderes dominantes.
Nos espaços cotidianos, o controle das populações através das vigilâncias
normalizadoras, como possibilidades de exercer o poder nos sujeitos e em

or
suas escolhas e, portanto, como um projeto de vida nas sociedades modernas e

od V
pós-modernas, sustenta-se também em estratégias de resistência individuais e

aut
coletivas, de modo que as pessoas por vezes assumam o controle de sua vida,
de sua saúde, de seus comportamentos e práticas sociais através da capacidade
de autodirecionarem-se em suas formas de subjetivação.

R
Este é um sujeito definidamente histórico, bem com a sua subjetividade

o
e as suas formas de subjetivação. Marcado temporalmente e atrelado aos
aC
jogos do saber e do poder, este sujeito estaria para Foucault situado em

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


uma posição estratégica, tendo em vista o sentido de um sujeito atraves-
sado pelas práticas de disciplina, mas ao mesmo tempo, possível de ter
consciência de sua dominação e, por isto, ser possível a sua liberdade e
visã
resistência (OLIVEIRA; MENDES, 2014p. 347).

Portanto, na busca de possibilidades de superação dos enfoques nor-


malizadores, biopolíticos e disciplinares, e no antagonismo contraposto às
itor

estratégias de produção dos discursos da verdade pelos poderes hegemônicos


a re

e pela governamentalidade, entende-se as formas de resistência como um


conceito estratégico deixado por Foucault, na configuração de novas práticas
para superar os modelos vigentes no campo social.
Tais proposições podem levar a pensar hoje nas contradições existentes
par

dentro da própria configuração da democracia brasileira, na sua governamen-


talidade e exercício do poder na esfera pública, na qual os direitos humanos,
Ed

sociais e civis não são prioridade, e os estigmas legitimados pelas práticas


políticas transformam os discursos da cidadania, da igualdade social e da
garantia e reparação de direitos em assertivas com pouco ou nenhum apelo
ão

discursivo, num contexto em que a produção de subjetividade hoje dominante


busca pulverizar as possíveis resistências e esvaziar os modos ou processos
de subjetivação capazes de produzir singularidade nas políticas e nas práticas
s

sociais, como no caso de pessoas em situação de rua e uso de drogas.


ver

Para Guattari e Rolnik (1996), a subjetivação é o processo múltiplo de


criação de existências nas sociedades atuais, e a subjetividade é o efeito pro-
visório de conjugação de forças culturais, sociais, econômicas, políticas, his-
tóricas e ecológicas da formação de modos de viver, de sentir, de se relacionar
e de agir. Essa produção de subjetividade tanto pode levar ao aprisionamento
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 197

dos sujeitos nos modelos sociais dominantes, quanto pode apontar para outros
modos de representar o mundo e de viver numa sociedade de outro tipo, dife-
rente das superestruturas capitalísticas que esmagam o indivíduo, inclusive nos
aspectos de desigualdade e exclusão social, impedindo o acesso democrático,
coletivo e participativo às políticas sociais.

Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística– tudo o que nos chega

or
pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é
apenas uma questão de ideia, não é apenas uma transmissão de significações

od V
por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de

aut
identidade, ou a identificações com pólos maternos, paternos, etc. Trata-se de
sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes

R
máquinas de controle social e as instancias psíquicas que definem a maneira
de perceber o mundo. As sociedades “arcaicas”, que ainda não incorporaram

o
o processo capitalístico, as crianças ainda não integradas ao sistema, as
pessoas que estão nos hospitais psiquiátricos e que não conseguem (ou não
aC
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querem) entrar no sistema de significação dominante, tem uma percepção


do mundo inteiramente diferente da dos esquemas dominantes – o que não
quer dizer que a natureza de sua percepção dos valores e das relações sociais
seja caótica (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 27).
visã

Para esses autores, qualquer revolução ao nível macropolítico diz também


respeito à produção de subjetividade. As mutações da subjetividade desejá-
itor

veis num contexto de mudança social não funcionam apenas no registro das
a re

ideias, mas dizem respeito ao próprio coração dos indivíduos, nas maneiras de
perceber o mundo, de buscar articulações no tecido urbano, visando alcançar
os processos maquínicos do trabalho, combatendo a ordem social que dá sus-
tentação a essas forças produtivas. Logo, qualquer tentativa de revolução ou
transformação macropolítica ou macrossocial, envolve produções de subjeti-
par

vidade, e deve ser levada em conta pelos movimentos de emancipação, sendo


Ed

a micropolítica processual encontrada a cada passo, nos agenciamentos que a


constituem, na invenção de modos de referência e práxis, permitindo inventar
e elucidar um campo de subjetivação, para intervir efetivamente nesse campo,
ão

tanto em seu interior como em suas relações com o exterior.

Uma prática política que persiga a subversão da subjetividade de modo


s

a permitir um agenciamento de singularidades desejantes deve investir o


ver

próprio coração da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a


revela, ao invés de denunciá-la. Isso quer dizer que ao invés de preten-
dermos a liberdade (noção indissoluvelmente ligada à de consciência),
temos de retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando subjetividades
delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a façam
desmoronar (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 30).
198

Na mesma linha de raciocínio em relação às formas de resistência ao


poder propostas por Foucault, e dos processos de subjetivação libertários
de Guattari e Rolnik, Deleuze (2008) nos dá outra nomeação para o que se
chama comumente tanto de delinquência quanto de transgressão e exclusão
social. Para o autor, as ações destoantes da norma social, tantas vezes vis-
tas nos sujeitos, como as comunidades alternativas, as minorias sociais, as
rebeliões e delinquências, o uso de drogas, a esquizofrenia e tantas outras,

or
seriam na verdade condições para tentativas revolucionárias de minar as forças

od V
capitalistas, de escapar do controle, das ataduras, dos nós, da repressão e dos

aut
impedimentos complexos exercidos pelo sistema.
Seriam as “linhas de fuga”, forças revolucionárias e renovadoras das
condições de bloqueio impostas pelo sistema capitalista aos coletivos, aos

R
indivíduos e comunidades. Deleuze afirma saber que essas micro fugas das
macroestruturas atuais não são por si sós suficientes para revolucionar os

o
modos de vida contemporâneos, porém seriam caminhos, rotas, saídas ines-
aC
peradas buscando formar verdadeiramente as “máquinas revolucionárias” e

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


superar as pequenas iniciativas individuais, as diminutas ações das comunida-
des que não sejam apenas contradições do sistema capitalista, mas movimentos
de fuga que atormentam, que fustigam as estruturas fabricadas para impedir
visã
as diferenças e sufocar as subjetividades.

O que nos interessa atualmente são as linhas de fuga nos sistemas, as


itor

condições nas quais essas linhas formam ou suscitam forças revolucioná-


a re

rias, ou permanecem anedóticas. As probabilidades revolucionárias não


consistem em contradições do sistema capitalista, mas em movimentos
de fuga que o minam, sempre inesperados, sempre renovados. [...] Um
sistema como o capitalismo foge por todos os lados, ele foge, e depois o
capitalismo colmata, faz nós, faz liames para impedir que as fugas sejam
par

muito numerosas. Um escândalo aqui, uma fuga de capitais ali etc. E há


também fugas de um outro tipo: há as comunidades, há os marginais, os
Ed

delinquentes, há os drogados, as fugas de drogados, há fugas de todo tipo,


há fugas esquizofrênicas, há pessoas que fogem de maneira muito diferente
(DELEUZE, 2008, p. 349).
ão

A dominação e o poder exercidos na sociedade de controle e/ou discipli-


nares sobre as subjetividades e os coletivos não são totalmente hegemônicos.
s

Essa parece ser a intersecção teórica que possuem os autores convocados nesta
ver

interlocução, os quais afirmam de diferentes maneiras, a possibilidade de alguma


autonomia dentro das práticas biopolíticas de poder, culminando nos processos
de subjetivação do sujeito e nas linhas de fuga enquanto possíveis afirmações
e gritos dissidentes, como desejáveis formas de resistência contra a simultânea
sociedade de controle, normalizadora e disciplinar na qual hoje vivemos.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 199

Porém, em que condições se tornam necessárias as resistências e as linhas


de fuga ao modo de vida contemporâneo? Quais motivos levam aos processos
de subjetivação diferentes daqueles prescritos no modus vivendi capitalista?
Em meio a tanto controle, norma e disciplina, como é possível emergirem
pessoas indesejáveis como aquelas (entre muitas outras) em situação de rua
e fazendo uso de substâncias psicoativas nos espaços públicos urbanos?
Para Bauman (2005), as pessoas declaradas “redundantes” no sistema

or
econômico atual são consideradas, sobretudo, um problema financeiro. Preci-

od V
sam ser “providas”, e tal significa ofertar vestuário, doar alimentos, abrigá-las.

aut
Por sua condição, não sobrevivem com um mínimo de dignidade, se deixadas
sozinhas. É válido afirmar, segundo o autor, que a resposta à redundância é
financeira, tanto quanto a definição do problema, se pensadas em termos de

R
“esmolas” fornecidas, reguladas promovidas e testadas pelo Estado em rela-
ção aos meios disponíveis, os chamados benefícios da previdência, incentivo

o
fiscais, isenções, concessões, pensões.
aC
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Os que não simpatizam com essa resposta tendem a contestá-la em termos


igualmente financeiros (sob a rubrica “podemos arcar com isso?) – dada
a “carga financeira” que tais medidas impõem aos contribuintes” (BAU-
visã
MAN, 2005, p. 20-21).

Por fim, Bauman afirma que os desempregados da sociedade contem-


itor

porânea, e também aqueles ainda não totalmente descartados, mas tempo-


rariamente “afastados da linha de produção”, assim como os consumidores
a re

da sociedade de consumo só podem ter uma certeza, a de estar excluídos do


controle em relação ao único jogo disponível, e precisamente por não serem
mais jogadores, provavelmente não são mais necessários, num contexto em
nem mesmo a sobrevivência humana está assegurada.
par

Mesmo que a ameaça à sobrevivência biológica fosse identificada e enfren-


Ed

tada de modo efetivo, esse fato não chegaria nem perto de assegurar a
sobrevivência social. Não será suficiente para a readmissão dos “redun-
dantes” à sociedade de que foram excluídos (BAUMAN, 2005, p. 21).
ão

Castel (1998) aponta a crise da sociedade salarial também como um


dos núcleos de análise nos problemas complexos da sociedade contem-
s

porânea. Originada, entre outros motivos, das mudanças no processo pro-


ver

dutivo e da diminuição de empregos, a crise na renda e o encolhimento


nos salários terminou também por inviabilizar as vias de constituição de
solidariedades e inserção social, assim constituindo os “inválidos pela
conjuntura” (os sujeitos sobrantes ou supranuméricos), provocando fraturas
na vida urbana e na coesão social.
200

Em outra publicação, Castel (1997) afirma que, na desfiliação social


ocorrida nas sociedades contemporâneas, a pobreza material é um fator deci-
sivo, mas não exclusivamente determinante nos casos da indigência desfiliada
(os chamados vagabundos – aptos ao trabalho – mas em situação de mar-
ginalidade, sem emprego, sem familiares e sem residência; e os indigentes
não aptos ao trabalho, também sem família e sem moradia, que precisam de
assistência social e comunitária). Portanto, a grande questão é quando essas

or
pessoas “suscitam problemas”, passando a ser rejeitadas e estigmatizadas,

od V
ficando fora de qualquer pertencimento ou filiação social.

aut
O personagem tipo da zona de grande marginalidade, ou de desfiliação,
é o vagabundo. Ele não trabalha, apesar de poder trabalhar, no sentido de

R
estar apto ao trabalho. Ao mesmo tempo, ele está cortado de todo apoio
relacional. É o errante, o estrangeiro que não pode ser reconhecido por

o
ninguém e se encontra rejeitado, de fato, por toda parte. Consequentemente
sobre ele recaem medidas repressivas cruéis, do rechaçamento à exposição
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


à morte, em casos extremos (CASTEL, 1997, p. 24).

Para o autor, os gastos com assistência social às pessoas empobrecidas


visã
que necessitam dos subsídios e auxílios governamentais, conseguem integrar
uma parte delas (a pobreza integrada, apta ao trabalho; e a indigência integrada,
tolerada pela solidariedade comunitária). Porém, os vagabundos e os indigen-
tes desfiliados têm sido considerados casos sem solução desde as sociedades
itor

pré-industriais, pois as respostas repressivas (prisão e vigilância, imposição ao


a re

trabalho, higienização das ruas, internação em hospitais, abrigamento em ins-


tituições assistenciais, entre outras), não resolveram o problema social nem da
marginalidade errante e tampouco dos indigentes desfiliados (doentes, idosos,
crianças, loucos, pessoas solitárias, andarilhos e moradores de rua, usuários de
par

drogas, etc.) os quais não estão nem integrados nem aceitos no meio social.
Bauman e Castel assinalam o desemprego, a crise salarial e do consumo,
Ed

a pobreza e a indigência como alguns dos principais aspectos na base política


e econômica da problemática dos redundantes e desfiliados sociais. No entanto
a reflexão que se impõe a ambos, em certo ponto, é que num discurso sem
ão

crítica, há uma tendência a individualizar o processo de marginalização social,


por exemplo, atribuindo a pessoas em situação de rua e em uso de drogas, ou
a qualquer outra espécie de não enquadramento num mundo economicamente
s

produtivo, um tipo de fracasso pessoal.


ver

Além disso, quando as demais classes sociais se imaginam “dando sus-


tento” a pessoas que podem ser consideradas aptas ao mundo do trabalho,
mas estão fora dele, isso pode recair em uma série de discursos cada vez mais
marginalizantes e segregadores, atingindo inclusive àqueles considerados
inválidos e inaptos ao trabalho e à produção, os quais deveriam ser olhados
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 201

com solidariedade, mas assim como os vagabundos e desempregados, acabam


tornando-se descartáveis e sobrantes.
Portanto, o problema não é novo, e os dilemas acerca dos seres humanos
não produtivos, indesejáveis (tais como os que se encontram em situação de
rua e utilizam substâncias psicoativas, entre outros), os quais estão fora da
máquina capitalista contemporânea, e precisam ser socorridos por recursos
públicos ou beneficentes, seja mantenedor o Estado ou a coletividade, geram

or
insatisfação social aos que se encontram incluídos no sistema socioeconômico

od V
e político, sendo alvo de estigmas, marginalizações, higienizações, crimina-

aut
lizações, exclusões, e no último grau, punições, encarceramento, violência,
eliminação, banimento, eugenia, extermínio.
As populações em situação de rua existem pelo menos desde o final da

R
idade média, quando as classes pobres foram expulsas das grandes proprie-
dades de então, tendo de buscar sustento no mundo do mercado e nas ruas

o
das cidades emergentes. Tal configuração existente desde o surgimento do
aC
capitalismo só veio a mudar nos séculos seguintes, quando a mesma popula-
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ção pobre que se acostumou a ocupar a rua para sobreviver, teve que sair de
alguns espaços urbanos agora higienizados e ordenados para a circulação do
consumo e do trabalho, na nova concepção de cidade da passagem do século
visã
XIX para o século XX, resistindo, no entanto, em ocupar o espaço público
mesmo num contexto de exclusão social e repressão estatal.
Segundo Burzstyn (2003) a existência de populações vivendo em situação
itor

de rua não é um fato social novo ou um problema recente, pois a sua origem
a re

aparece ligada ao renascimento das cidades já no término da idade média,


com o fim do sistema servil, e remonta aos momentos iniciais do capitalismo.
Desde essa época, já não interessava aos antigos senhores preservar as classes
despossuídas em suas propriedades, e assim cada um teve de buscar o seu
sustento no novo mundo do mercado. Como não havia trabalho para todos,
par

nem habitação, nem comida, muitos trabalhavam e viviam no meio da rua.


Ed

Em relação às drogas, alguns autores (ABREU, 2013; VELHO, 2003) cha-


mam atenção para o consumo de substâncias psicoativas ter existido desde o
mundo antigo como prática cultural humana, sendo fundamental não buscar com-
ão

preender esse fenômeno de maneira isolada, pois fez parte de amplos contextos
históricos e sociais, aos quais pôde estar integrado de modos distintos, e que foram
sendo modificados com o tempo, passando desde a utilização de vários tipos de
s

drogas em cerimônias religiosas, rituais de passagem, uso recreativo, medicinal,


ver

dentre outras atividades cotidianas, até casos em que a droga tem sido um veículo
privilegiado para a comunicação com o mundo dos espíritos e com o sobrenatural.
Igualmente, para Pechman (1994) a realidade das pessoas utilizarem
espaços públicos para viver, existe na verdade desde o surgimento da huma-
nidade, porém aparecem também diferenças e especificidades. No século
202

XIX, por exemplo, a classe operária de Paris valorizava mais a cidade do


que a moradia, e as classes populares das grandes capitais europeias lutaram
ferozmente pelo direito ao espaço público e à ocupação da cidade. De acordo
com o autor, essa posição das camadas mais pobres da população é fácil de
compreender, pois para eles a cidade e o espaço urbano eram vitais no emprego
das suas estratégias de sobrevivência. Assim, a rua enquanto espaço público
foi se tornando mais importante até do que a moradia para a população pobre,

or
pois também se constituía enquanto espaço de resistência.

od V
A ideia de urbanização como restrição à circulação da população nas cidades

aut
foi na verdade a base das intervenções urbanistas e higienistas, ainda no século
XIX, visando assim instalar a ordem social pela ordem urbana. Portanto, houve
um reordenamento da cidade orgânica, na geometria hoje típica da paisagem

R
urbana, com regras de como dever ser uma cidade, onde o espaço público deixa
de ser o lugar no qual se forjava a cultura popular, e passa a ser um espaço de cir-

o
culação, no qual a rua é agora o principal elemento de circulação urbana, voltada
aC
para as esferas do consumo e do trabalho, e a casa passa então a ser representada

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como pressuposto da vida privada e, portanto, da felicidade (Ibidem).
É assim que as classes dominantes irão fundar o seu poder sobre as
classes populares, intervindo no espaço urbano, legitimando o que seriam os
visã
bons usos e costumes, os abusos e desvios do ideal de cidade, e claro, che-
gando a engendrar parâmetros para coibir a perturbação sanitária, instaurando
a norma, estabelecendo o “urbano” onde antes era a cidade. Essa “quebra”,
itor

por assim dizer, de uma densidade histórica baseada na solidariedade e na


a re

socialização pelas redes de relações e pelos vínculos sociais, irá provocar o


estilhaçamento de uma cultura, a qual só podia sobreviver fora das normas e
longe da disciplina higienista ordenada e asséptica (Ibid.).
Aparece, dessa forma, tanto a noção dos excluídos da rua, aqueles que não
se enquadram na ordem urbana (trabalho, família, casa, normas sociais, regras
par

urbanas) e que podem ser considerados como fora da ordem (delinquentes) e


assim passíveis de punição e prisão, por exemplo, quanto o fato de que todo
Ed

este controle exercido pelas classes dominantes sobre as camadas populares,


por mais rígido e eficiente, afinal não vai dar conta de causar a extinção da
ocupação da rua, persistindo a insistência da presença popular nos espaços
ão

públicos, e a reinvenção das formas de permanência das pessoas nos lugares


por elas escolhidos, como uma resistência no acesso e no direito à cidade.
s
ver

Se a valorização do lar frente à rua, a evolução familiar e o mimetismo sócio-


-cultural empurram o operário para o interior da casa [...], nuca o projeto
higienista conseguirá esvaziar totalmente a rua das práticas e da presença
popular. Por mais que sejam funcionais, por mais que se especializem, os
espaços públicos são eternamente reinvadidos, repossuídos, reinventados,
por aqueles que dele fazem o jogo da vida (PECHMAN, 1994, p. 33).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 203

Para Bursztyn (2003) durante o século XX houve um florescimento do


capitalismo a nível mundial, através do surgimento das políticas de proteção
dos riscos sociais, levando a crer que haveria um mundo menos desigual e
mais justo, com emprego para todos. Porém, no último quarto desse século a
tendência de crescimento e prosperidade socioeconômica foi revertida, com
recrudescimento da disparidade entre os países e o consequente aumento das
desigualdades e intensificação da pobreza extrema e da miséria no mundo. No

or
Brasil, houve retrocesso em função da contra reforma do Estado e a drástica

od V
redução de investimentos nas políticas sociais, frutos da implementação do

aut
receituário neoliberal no país, gerando o crescimento da ocupação das ruas
por pessoas socialmente excluídas.
Para o autor, as populações mais pobres, as quais ocupavam antes um

R
nível inferior do sistema, mesmo que sem possibilidades de emprego e, por-
tanto, sem acesso ao consumo, são excluídas definitivamente do circuito

o
capitalista, passando a sobreviver valendo-se apenas de um acesso precário
aC
a mecanismos públicos, como a assistência social e os serviços de saúde e, de
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forma assistemática, contando também com a caridade privada e a filantropia


de entidades assistenciais e religiosas.
visã
Infraestrutura privada, como habitação, vai-se tornando algo distante, ina-
cessível. Trabalham muitas vezes, mas não são empregados. Obtém alguma
renda, mas de forma assistemática e pouco convencional. Transformam
itor

o espaço público – as ruas – em seu universo de vida e de sobrevivência


privado. Às vezes tornam-se perigosos, na medida em que praticam deli-
a re

tos; ou simplesmente são estigmatizados como risco à segurança pública


(BURSZTYN, 2003, p. 20).

Intensifica-se, então, a noção de estigmatização de pessoas pobres e em


par

situação de rua, ou usuárias de substâncias psicoativas, as quais podem ser


vítimas de preconceitos sociais, raciais e culturais, todos a serviço de afirmar
Ed

o não-pertencimento desses sujeitos a uma condição de aceitação e filiação


social, ao trabalho, à moradia, à família, ao processo social urbano, capitalista,
produtivo, normativo.
ão

Goffman (2013) demonstrou o quanto a dinâmica social dos indivíduos


realiza-se pela fabricação de estigmas e estereótipos, os quais dificultam a
prática de singularização dos coletivos, perpetuando e justificando desigual-
s

dades históricas da sociedade, e transformando diferenças necessárias em


ver

desigualdades insuperáveis.
Vários tipos de estigma ocorrem nos dispositivos sociais, relacionados a
pessoas em situação de rua, por exemplo, as quais têm em sua história julga-
mentos éticos (portadoras de doenças crônicas ou infectocontagiosas, loucos,
andarilhos, indigentes), reprovação moral (vagabundos, usuários de drogas,
204

ex-detentos, traficantes, marginais) e exclusão social (desempregados, sem


moradia, sem qualificação profissional, sem escolaridade, sem familiares),
sendo frequentemente consideradas como pessoas socialmente reprováveis,
perigosas, sem origem e não-confiáveis sob nenhum aspecto.
Fiore (2013) ressalta por sua vez a ocorrência durante o século XX do fenô-
meno das drogas se constituindo igualmente como um problema enquanto conhe-
cimento e prática social, atravessado por diversos feixes de poder e saber, todos

or
de caráter complexos e multifacetados, de modo que as substâncias psicoativas

od V
passam a serem concebidas, principalmente pelos governos, estruturas estatais e

aut
práticas políticas, como uma problemática social a ser combatida e/ou controlada.

Enquanto algumas substâncias foram radicalmente proscritas e postas na

R
ilegalidade, o que não significou nem de longe o fim de seu consumo, outras
foram tornadas símbolos do avanço científico na busca pelo aprimoramento

o
humano. Outras, ainda, como o álcool e o tabaco, ficaram aparentemente às
aC
margens do dispositivo, sendo atravessadas por outros feixes, esses muito

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mais próximos dos mercados do que dos Estados (FIORE, 2013, p. 3).

Não obstante, a restrição legal imposta à produção e ao comércio de


visã
certas substâncias psicoativas causou o surgimento do segundo maior negócio
ilícito do mundo, o tráfico de drogas, o qual segundo o autor, nas estimativas
internacionais fica atrás somente do comércio ilegal de armas, fazendo com
itor

que o mercado e a oferta de cada uma das substâncias vendidas mundo afora
(cocaína, maconha, LSD, heroína, crack, entre outras) possua uma dinâmica
a re

econômica específica (Ibidem).


Para Neto et al. (2016) a partir da produção de verdade das drogas como
um problema social, o consumo de substâncias consideradas ilícitas conduz o
usuário de drogas ilegais à desqualificação moral, ética e humana, através da
par

adoção de um racismo de Estado e de sociedade, pondo-o no lugar simbólico


de agente causador da violência e da insegurança social, para assim exercer o
Ed

rigor da norma jurídica e da normalização disciplinar e biopolítica, passando


a defini-lo como aquele que potencialmente viola o princípio maior da saúde,
da autopreservação e da obediência docilizada dos corpos e das condutas
ão

socialmente aceitas como corretas e adequadas.


s

A repartição entre substâncias legais e ilegais coloca alguns corpos no


ver

campo dos que usam medicamentos em prol da saúde, do aumento das


performances em avaliações diversas, do lazer controlado. A mesma polí-
tica reserva a outros corpos procedimentos de normalização de condutas e
de governo da vida que lhes furta a autonomia sobre seus modos de vida,
dando ensejo, por exemplo, a inquietante política de internação compul-
sória. (NETO et al., 2016, p. 61)
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 205

Por outro lado, cria-se através das políticas de controlo do Estado e da


governamentalidade dos corpos uma racionalidade criminalizadora do consumo,
produção e venda de drogas, atualizando o higienismo social e a limpeza urbana
disfarçados de prevenção aos riscos e perigos representados por tais sujeitos, os
quais passam a ser vistos coletivamente como criminosos e marginais, introdu-
zidos no campo da gestão da segurança, do racismo de Estado e de sociedade, e
ainda da saúde preventiva patologizante e medicalizante dos corpos (Ibidem).

or
Torna-se comum a detenção de pobres, negros e jovens de periferia, o

od V
diagnóstico e a patologizaçao das condutas do usuário de drogas, fazendo sur-

aut
gir personagens sociais como o dependente químico, demonstrando o quanto
as concepções sociais e as políticas públicas sobre drogas se pautam em
vertentes proibicionistas, associadas à psicopatologização e medicalização

R
de indivíduos e populações (Ibid).
Por fim, o discurso criminalizador e patologizante dos usuários de drogas

o
é também socialmente sustentado pelas agências políticas, judiciais, policiais
aC
e penitenciárias, associadas às agências internacionais; agências de represen-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tações ideológicas como universidades, institutos de pesquisa e academias,


bem como às agências midiáticas em geral, as quais validam umas os dis-
cursos das outras (NETO et al, 2016) criando assim o terreno favorável para
visã
o controle biopolítico dos corpos, para a normalização e criminalização das
condutas (conforme nos diz Foucault), a punição pela prisão e internação
compulsória, a higienização das ruas e cidades, a inserção em programas
itor

de habitação e abstinência, a medicalização pela atribuição de transtorno


a re

mental e dependência química, entre outras diversas estratégias de controle


biopolítico e disciplinar, os quais contribuem em bloco e de forma definitiva
e permanente para a estigmatização das pessoas em situação de rua e usuárias
de drogas (conforme afirma Goffman).
Para Dantas et al. (2012) o Estado promove a higienização das cidades e a
par

criminalização da população de rua e usuária de drogas favorecendo a exclusão


Ed

social e atribuindo a responsabilidade aos próprios sujeitos. Os levantamentos


oficiais podem levar a conclusões equivocadas, fazendo parecer que a vida nas
ruas é determinada exclusivamente por fatores psicossociais, negando, assim,
ão

os determinantes econômicos, políticos e sociais, apresentando explicações


que naturalizam e individualizam a segregação social, fenômeno típico das
sociedades neoliberais, urbanas, globalizadas e tecnicistas.
s

Para o autor, as pessoas em situação de rua enfrentam diariamente violência


ver

gratuita, variações climáticas, falta de acesso à água potável, alimentação irregu-


lar, sono inadequado, relações sexuais, ausência de locais para higiene pessoal e
necessidades fisiológicas, violação dos direitos humanos, solidão e estigmatização.
Todos esses determinantes de vulnerabilidade e exclusão social são fatores que
podem levar ao uso de substâncias psicoativas por pessoas em situação de rua.
206

Na rua, desempregado e sem pagar impostos, o indivíduo enfrenta coti-


dianamente a condição de invisibilidade social, o silenciamento da própria
história e a negação da sua humanidade. Não é visto como cidadão nem
mesmo como humano. Geralmente, só é percebido quando causa algum tipo
de incômodo, constrangimento ou interrupção da estabilidade cotidiana das
camadas socialmente favorecidas. A forte associação entre a vida na rua e a
questão da dependência química torna ainda mais negativa a representação

or
dessa população no imaginário social. Associação que se revela verdadeira, na
maioria dos casos; porém, sua explicação é comumente inadequada. Social-

od V
mente, costuma-se argumentar que a dependência extrema leva o sujeito

aut
à situação de rua. Entretanto, a relação de causa e efeito pode se mostrar
inversa: devido à extrema vulnerabilidade social, o indivíduo em situação de

R
rua tem dificuldade para suportar o sofrimento físico e psicológico sem algo
que amenize a vivência da dura realidade. (DANTAS et al., 2012, p. 271).

o
Abreu (2013), porém, nos relembra que apesar de se observar no segmento de
aC

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pessoas em situação de rua um grande número de pessoas com o perfil de exclusão
social e na condição de usuários de álcool e/ou outras drogas, essa ocupação dos
espaços públicos é também uma forma de habitar o universo mais próximo da
rede de sociabilidade em torno do consumo de drogas, ou seja, como uma forma
visã
de socialização, pertencimento e aceitação nos grupos existentes nas ruas.
Assim, a droga não seria uma motivação primária para a permanência
nas ruas, mas frequentemente um acontecimento decorrente de um dos tipos
itor

de sociabilidade encontrada na população de rua, de forma que o uso de subs-


a re

tâncias é posteriormente incorporado à vida dos sujeitos nas ruas.

Considerando os diferentes fatores que levam os sujeitos a rua, muitos


não foram para a rua com o propósito de usar, mas, ao permanecer neste
contexto, passam a utilizar drogas como meio de inserção no grupo de rua.
par

O que na sequência contribuiu para que os sujeitos vivam na rua como


forma de continuidade do uso das substâncias (ABREU, 2013, p. 44).
Ed

Moura Jr. e Ximenes (2016) reafirmam que o uso e o abuso de drogas podem
estar relacionados com a situação de rua, como elemento intenso de socialização,
ão

com manutenção de vínculos afetivos e de amizade, e até como substituto das rela-
ções familiares, sendo todos esses componentes importantes para o enfrentamento
s

da situação de rua. Porém, os mesmos grupos sociais colaborativos e afetivos com


ver

os sujeitos podem contribuir significativamente na passagem do personagem que


usa drogas no grupo para o personagem que mora na rua pela droga.
Podem aparecer, então, também as dificuldades relacionadas à situação de
rua, tais como adoecimento e problemas em seguir tratamentos de saúde, difi-
culdades de dormir e se alimentar, prática de pequenos delitos e atos violentos
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 207

contra outras pessoas, assim como ocorrência de preconceitos sociais e atos de


violência sofridos na rua, pois aparecem também várias formas de reconheci-
mento perverso da população de rua agravados pela condição do uso de drogas,
geralmente com a atribuição dos rótulos de sujo, culpado e conformado pela
sua situação, marginal, vagabundo, criminoso, drogado, traficante, entre outros,
gerando-lhes sentimentos indignação, humilhação e de vergonha (Ibidem).
Para os autores, é necessário rever de forma crítica os posicionamentos

or
sociais de criminalização e discriminação dos usuários de drogas em situação

od V
de rua, pois são comuns a culpabilização do sujeito e uma dupla atribuição de

aut
estigma, tanto pela condição de rua quanto pelo uso de substâncias.

Assim, é importante salientar que a identidade de uma pessoa em situação

R
de abuso de drogas pode ser duplamente estigmatizada, pois já há um
reconhecimento depreciativo na sociedade sobre as pessoas que fazem

o
uso e das pessoas em situação de rua. [...] Dessa maneira, deve-se romper
aC
com essa espiral opressora de uma forma de reconhecimento depreciativa,
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estanque e estática vinculada à situação de uso de drogas e discriminação


às pessoas em situação de rua. (MOURA JR.; XIMENES, 2016, p. 263).
visã
Felix-Silva, Sales e Soares (2016) afirmam os modos de viver na rua
como expressão de uma arte, na qual há uma escolha da vida na rua, ciente
ou não ciente dos processos de inclusão e exclusão social, mas na qual existe
a necessidade de uma relação ético-estético-política de resistência a uma vida
itor

assujeitada e sem exercício do próprio desejo. A vida na rua como uma obra
a re

de arte é então compreendida enquanto força ativa, potência de vida, não


apenas como potência de ação concreta, ativista ou ideológica, mas na ação
como sinônimo de potência ativa de vida, fazendo a vida fluir como uma arte.
Para os autores, a arte de sobreviver sem enlouquecer como efeito das
par

tensões da cidade e da precariedade da vida em situação de rua, é também


um modo de produzir resistência. Logo, a arte de viver o dia a dia nas ruas de
Ed

uma ou mais cidades, vai exigir uma resistência política em que cada sujeito
cria a sua forma de arte em resistir à morte do desejo, para manter sua saúde
mental e viver na rua à espera de um corpo que vai nascer, explodir, poder
ão

viver outras formas de vida, mais desejantes, menos assujeitadas. A vida na


rua pode então se tornar uma obra de arte, inscrita na resistência em produzir
novos desejos, novas crenças, novas formas de associação.
s
ver

A arte de viver em situação de rua é a arte de apontar a unha asquerosa


para os corpos distraídos que circulam pela cidade. É a arte de surpreender
com sua vida nômade, sem espaços estriados, sem vidros, tijolos, paredes,
sem cama, sem teto. É a arte de viver nas veias abertas da cidade, onde
tudo é trânsito, passagem, fluxo. Arte de fazer arte dos artesãos de rua, que
208

transformam o descartável em matéria-prima para o seu ofício; a arte de


“fazer de tudo” como forma de ganhar a vida – fazer capinagem, descarre-
gar caminhões e dejetos da construção civil, vigiar carros – a arte de fazer
arte como resistência política ativa, onde a vivência na rua se torna um vetor
de corte nessa passagem. (FELIX-SILVA; SALES; SOARES, 2016, p. 48).

Segundo Silva, Lemos e Galindo (2016) o corpo das pessoas em situação

or
de rua, pensado a partir dos exercícios de resistência, mostra a sua potência
de luta e comprova o desvio das práticas de normalização, no enfrentamento

od V
diário de situações adversas, no registro da violência vivida em si mesmo,

aut
demarcando uma existência feroz a partir das marcas corporais, cicatrizes de
cortes e marcas de bala, denunciando os atos violentos sofridos, mas também
simbolizando a sobrevivência.
R
Outrossim, práticas como o andar à toa pela cidade, fora do tempo urbano

o
cronológico e padronizado, vai sugerir práticas de liberdade para além da margi-
nalização, em condutas realizadas pelos sujeitos a partir um trabalho de si, feito
aC

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em si mesmo. Portanto, embora as capturas sociais normalizadoras e biopolíticas
próprias das formas de poder e governamentalidade sejam vastas e muito efi-
cientes, aparecem os paradoxos nas formas de resistência pelas brechas urbanas
visã
e sociais, configuradas não apenas como negatividade ou oposição às imposi-
ções das práticas hegemônicas vigentes, mas também como formas diversas de
invenção do viver, na criação de modos de vida socialmente diferentes (Ibidem).
Uma das formas desta produção de modos de vida diversos, baseados
itor

em formas de resistência à biopolítica normalizadora dos corpos pode se dar


a re

através do uso de substâncias durante a vida nas ruas. Para Martinez (2012)
o uso do álcool, da maconha e do crack entre moradores de rua, com sua
capacidade de alterar corpos e mentes, vai ser um dos vetores de produção
de sujeitos e relações sociais, transformando os corpos na rua, regulando
par

estados de saúde e de doença, oportunizando a vigilância de si, auxiliando na


sobrevivência, e agindo na gestão de seus corpos e suas vidas.
Ed

O autor afirma que os chamados “princípios ativos” das substâncias


psicoativas provocam agenciamentos que produzem formas de socialização
diversas nas ruas e regulam corpos, servindo, por exemplo, para controlar
ão

os efeitos do corpo (esquentar-se do frio, matar a fome), mas também para


regular a mente (as memórias e os sentimentos), e deixar o sujeito em alerta,
pois para pessoas em situação de rua, um ser autônomo possui capacidade de
s

autogovernar-se, deve ser esperto e saber usar adequadamente as drogas que


ver

escolheu. Assim, alguns usuários de drogas vivendo nas ruas não elaboram
explicitamente a categoria vício em relação ao álcool e à maconha. Já o crack
é entendido como uma droga que “vicia” porque domina aqueles que usam,
deixando-os sem condições de cuidar de si, na concepção de que o sujeito
deve dominar as drogas, se não é dominado por elas.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 209

Para viver na rua é preciso “ser esperto”. Dentre as condutas mais impor-
tantes da rua, o “ser esperto” ou “ser ligeiro” são as principais delas. “Ser
ligeiro” significa não se colocar em confusão, não ser pego por ninguém,
estar sempre em alerta. Ao que se nota, “ser ligeiro” remete a uma vigi-
lância constante de si. Beber demais, juntar-se com pessoas de pouca
confiança, colocar-se em confusão, chamar atenção de policiais, são alguns
descuidos que devem ser evitados (MARTINEZ, 2012, p. 11).

or
Assim cuidar de si mesmo nas ruas, ser esperto, estar em alerta e saber

od V
utilizar as drogas de sua escolha são fatores éticos no domínio das relações

aut
consigo mesmo, numa produção de subjetividade considerada comum a todos
os sujeitos em situação de rua, as quais são estratégias e táticas diárias para a

R
alimentação, para pedir dinheiro, mapear lugares seguros, cuidar do próprio
corpo e também consumir substâncias psicoativas, as quais auxiliam na pro-

o
dução de um estado de consciência em vigilância, embora não seja a única
forma de obtê-lo (Ibidem).
aC
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Alves (2015) ao conviver certo período com usuários de crack na cidade


de São Paulo através da observação participante, chegou à compreensão da
importância do contexto social no padrão intenso de uso de drogas, encontrado
visã
em pessoas em situação de rua ou não. Para este autor, existem padrões no uso
de drogas que são reconhecidos como hierarquias, rituais, regras e valores entre
os próprios usuários (usuários mais antigos e experientes, usuários habituais
e eventuais, e usuários descontrolados), com um valor hierárquico maior atri-
itor

buído entre os pares, àqueles usuários de drogas com longo histórico de uso sem
a re

sofrerem, por causa disto, maiores consequências danosas à sua saúde física.
A convivência com os usuários de crack e o contato com sua cultura
marcada por toda uma terminologia própria, rituais de uso, papéis sociais,
trocas de objetos, corporalidade, tecnologias para o abrigo e sexualidade,
par

levou o autor a descobrir características e significados dos comportamentos


ritualizados, relacionados ao crack. O achado mais importante desta pesquisa
Ed

é que comportamentos nos contextos sociais fornecem uma infraestrutura


para o processo de auto regulação dos usuários visando o uso controlado,
nos usuários que não estão em situação de rua. Porém, este sentimento de
ão

pertencimento social e adesão a rituais de hierarquia, papéis, sobrevivência


e sintonia adotados pelo grupo, também são encontrados nas pessoas que
passam a viver em situação de rua (Ibidem).
s
ver

[...] a existência de territórios de venda e uso [...] chegam a tornar-se pontos


de atração tão fortes a ponto dos usuários de crack estabelecerem lá, seu
local de moradia. A carreira do usuário, nestes casos, se torna uma carreira
de progressiva exclusão da sociedade abrangente e de inclusão em um
grupo desviante organizado. Isto tem grande impacto sobre a concepção
210

da pessoa sobre si mesma. Perceber que para alguns usuários existe certo
objetivo de incorporar a máxima “sou da marginália, sou do crack”, nos diz
algo a respeito de uma identidade desviante advinda de um sentimento de
destino comum. Porém, estes usuários também são capazes de desenvolver
um repertório de respostas ao estereótipo do “nóia” e mesmo de construir
uma autoimagem positiva e vão além. Constroem uma vida cotidiana
em torno do uso do crack que preenche o tempo diário com atividades

or
como a busca por meios para sustentar o consumo, as relações afetivas,
[...] a manutenção a todo instante do barraco, as conversas e uma grande

od V
gama de atividades condizentes com a situação de rua. Sugerimos assim,

aut
a existência de uma dependência social de todas estas relações, vínculos
e práticas proporcionadas pelo uso do crack (ALVES, 2015, p.27).

R
Andrade, Costa e Marquetti (2014) pontuam que morador de rua trans-
forma o espaço da cidade no qual habita, pois interfere nas práticas cotidia-

o
nas de um lugar, redimensiona lugares, (re)significa equipamentos públicos,
aC
reinventa relações sociais, e principalmente, interfere nas concepções públi-

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co-privado. Ao exibir sua vida “privada” no espaço público, ele traz à cena
imagens invisíveis ao cenário urbano.
O tema da liberdade emerge nas narrativas dos entrevistados de forma
visã
recorrente. e alguns sujeitos declaram não estar “em situação de rua” por que
moram na rua e vão continuar morando, então não se trata de uma situação, a
rua é a casa e é a vida deles, alguns vieram para as ruas em busca dessa liber-
itor

dade, e por escolha própria se desligaram dos vínculos familiares (Ibidem).


a re

Logo, alguns possuem planos futuros de sair dessa situação de rua, con-
seguir um emprego, uma casa, se reunir e morar novamente com a família, ou
rever a família, mas sem necessariamente sair das ruas, pois vários sujeitos
pretendem continuar a viver e sobreviver nas ruas.
par

Por este motivo, é igualmente difícil ouvir e legitimar as falas de algu-


mas destas pessoas ao afirmarem que gostam de estar onde estão, que se
Ed

acostumaram a viver desta forma e que não trocariam por nada o lugar
e as condições em que vivem. Se ouvir o sofrimento alheio incomoda e
produz sofrimento para o ouvinte, há também um desconforto, desta vez
ão

pelo estranhamento, em escutar narrativas de pessoas que, diferente de


tantas outras que vivem nas ruas, trazem em suas memórias e planos a
afirmação da permanência. Da mesma forma, para muitos que hoje habitam
s

as ruas, é insustentável o discurso de que morar em uma casa seja melhor


ver

(ANDRADE; COSTA; MARQUETTI, 2014, p. 1260).

Para os autores, é comum o uso de substâncias nas ruas com uma sensa-
ção de liberdade, pois na rua há a possibilidade de utilizar drogas a qualquer
momento, e vários não se imaginam mais morando em um apartamento com
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 211

o efeito da droga. Um dos entrevistados nessa pesquisa chegou a afirmar que


“A rua tem um imã, acho que é a liberdade”, e nesse contexto se pode fazer o
que se quer, ir e vir a qualquer lugar, quando, como e com quem quiser (Ibid.).
Filho (2007) ressalta que nas reflexões de Michel Foucault há discus-
são sobre as práticas de liberdade estarem atreladas às relações de poder, só
existindo uma liberdade onde está pode substituir realidades totalitárias de
dominação, pois numa condição de assujeitamento total não se torna possível

or
falar de um sujeito livre. A liberdade e a autonomia na verdade só podem

od V
existir em oposição aos poderes instituídos, os quais não as impedem, mas

aut
as limitam. Aí aparecem as formas de resistência a um poder que é limitante.
A liberdade é da ordem das resistências às sujeições dos diversos poderes.

R
É, então, no campo das correlações de força (relações de poder x resis-
tências), que nossa questão se põe mais explicitamente: pode-se dizer que

o
o sujeito que aceita se submeter (de bom grado, ou pelos fortes efeitos
aC
da ideologia sobre ele) é suprimido, é anulado. Mas, é certo que, como
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exceções! Há os que inventam sua vida, procuram se libertar, há aqueles


que procuram os exercícios ascéticos das liberdades. Oferecem-se como
pontos de resistência à dominação, à ideologia (FILHO, 2007, p. 6).
visã
Logo, pode-se conceber as formas de resistência como formas de escapar
às sujeições dos poderes hegemônicos e buscar novas formas de subjetivação
representadas por rupturas na ordem social vigente. A noção de resistência
itor

como oposição a um poder instituído, apesar de ter sido modificada ou tratada


a re

de outra maneira na fase final da obra de Foucault, é neste texto fundamental


para se compreender como aparecem práticas sociais destoantes da maioria,
consideradas como desviantes pelos estatutos biopolíticos e normalizadores.
As experiências individuais e coletivas que resistem no todo ou em parte às
par

formas de poder, são consideradas desviantes, delinquentes, criminosas, estranhas


às estratégias de governo e regulação da vida. Portanto, pessoas em situação de
Ed

rua que consomem substâncias psicoativas vivendo nessas sociedades certamente


não poderiam estar enquadradas no bom modelo social, sendo frequentemente
consideradas fora da norma, desviantes do ideal de sociedade e de sujeito.
ão

De acordo com Oliveira (2014) as práticas sociais contemporâneas, por


estarem inseridas no contexto de uma sociedade da normalização, são carac-
terizadas por modos de subjetivação produzidos dentro de Estado governa-
s

mentalizado, o qual utiliza da biopolítica como garantia da sua segurança,


ver

sobre o pretexto de assegurar a segurança das populações, mas trabalhando


sempre de modo formatar indivíduos e populações com comportamentos e
subjetividades enquadradas na norma e não podendo fugir desta, tendo como
resultado corpos saudáveis e produtivos num sistema voltado à prosperidade,
à ordem, à segurança, ao controle, à disciplina e à regularidade.
212

Porém, o exercício da biopolítica não vai só reprimir e regulamentar as


condutas e ações dos sujeitos, mas também irá produzir novas realidades a
partir das reações identificadas nas práticas sociais contrárias às relações de
poder. Então, da mesma maneira que existem indivíduos assujeitados, produ-
zidos e fabricados em acordo a nossas relações e instituições, também haverá
os sujeitos criativos, reativos e capazes de reinvenções de outros modos de
vida, a partir e no interior das mesmas relações de poder e dominação.

or
od V
Neste sentido, a resistência pode ser entendida como uma força desorgani-
zadora do que estava previamente planejado. As (re) ações de resistência

aut
provocam uma desarrumação nos esquemas, elas provocam a necessidade
de uma (re) organização. Em outras palavras, as forças de resistência são

R
provocadoras de uma movimentação que clamam pela criação de algo
novo. Elas geram efeitos no mundo da vida dos sujeitos que não estavam

o
previstos. Geram novas configurações, que muitas vezes fogem aos cál-
culos pré-estabelecidos (OLIVEIRA, 2014, p. 8).
aC

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Existe, pois, um caráter político e criativo nas formas e lutas de resis-
tência contra os processos de normalização e dominação sociais e governa-
visã
mentais, os quais buscam criar estratégias cotidianas, simples, corriqueiras,
populares, para buscar escapar do controle das vidas e dos estilos de existência
(Ibidem). Aqui, os conceitos de formas de resistência de Foucault e linhas
de fuga, de Deleuze, se encontram e se complementam, pois representam
itor

um desvio, as tentativas de fugir da sujeição à ordem vigente. Porém, não


a re

significa dizer que tais práticas de resistência ou linhas de fuga serão aceitas
e não serão combatidas ferozmente pelas estruturas sociais e governamentais.
As formas de impedir reações como a vida na rua e o uso de drogas, aqui
tomados como exemplo entre muitos outros, são infinitas, e vão da criminalização
par

à patologização, passando pela medicalização, exclusão social, marginalização,


atribuição de delinquência e incapacidade ao trabalho, aos estudos, à vida fami-
Ed

liar, às regras sociais, às normas de segurança e à convivência com os demais,


tornando tais sujeitos uma ameaça social. Por outro lado, as repressões e oposi-
ções às resistências e linhas de fuga não irão impedir as formas de experimentação
ão

dos sujeitos mesmo dentro de uma sociedade de controle marcada pelas práticas
biopolíticas e disciplinares, para citar ao mesmo tempo os dois autores.
Para Dias (2013) as experiências dos sujeitos consideradas como resis-
s

tências e linhas de fuga são formas de exprimir o desejo, de escapar à domi-


ver

nação e marcar a emergência de novos processos de subjetivação na vida


contemporânea, dentro dos diversos campos sociais, não exatamente fora,
talvez “à margem” das macroestruturas, porém necessariamente no seio dos
processos sociais de seu tempo, abrindo possibilidades de experimentação e
criação de novos territórios existenciais singulares.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 213

As práticas de resistência, para Foucault, e o conceito de linhas de fuga,


para Deleuze e Guattari, não dizem respeito a criações de pequenos grupos
de experimentadores que funcionariam como uma vanguarda do desejo. Ao
contrário desse tipo de concepção, eles expressam que tais forças se impõem
na construção do social como um agenciamento produtivo do desejo, sem
partir de alguns sujeitos ou grupos em especial. Dessa maneira, essas linhas
objetivas são geridas no seio dos dispositivos sociais concretos que estão dis-

or
persos nas suas maquinações produtoras de subjetividade (DIAS, 2013, p. 48)

od V
Logo, a linha de fuga dá consistência à singularização da existência na

aut
possibilidade da experimentação do desejo em diversos campos sociais, não
exatamente para escapar da realidade, mas para afirmar a imanência do desejo,

R
dos processos de subjetivação e forma de resistência na criação de novos
modos de vida, de outros territórios existenciais que fazem fugir a diversi-

o
dade no seio das próprias estruturas sociais onde tais formas dissonantes são
combatidas, rejeitadas e marginalizadas (Ibidem).
aC
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Segundo este autor, a obra de Foucault, Deleuze e Guattari remete a


diversas possibilidades operadas por práticas com as drogas e outras como
o viver nas ruas. Não se pode pensar em uma relação preexistente na qual o
visã
uso de substâncias psicoativas nas ruas, por exemplo, vá produzir somente
corpos decaídos, vazios e dependentes, necessariamente atrelados a uma
linha de destruição dos outros e de si mesmo, mas de criação de práticas,
itor

de experimentação nos modos de vida, de produção de desejo, de micro-


-revoluções na singularidade das próprias formas de existência, as quais
a re

podem se dar não apenas por exclusão ou ausência de outras possibilidades,


mas também por escolhas, por autodirecionamento, por tentativas de viver
uma vida mais singular.
par

A possibilidade de experimentação permite abordar essa questão através


de uma força de criação, que faz passar pelo corpo intensidades que são
Ed

afirmadoras de vida. Com isso, mais do que um corpo extensivo, estamos


pensando com esses autores a constituição de um corpo intensivo, que não
está guiado por uma normatização do corpo e sim pela normatividade da
ão

experiência (DIAS, 2013, p. 128).

Sobre o tema do uso de drogas e das situações de rua adotadas pelos


s

sujeitos, Merhy (2014) assegura que é necessário deixar de ver tais seres
ver

humanos como “os novos anormais” do desejo e da vida, criando outro terreno
de visão no qual o uso das drogas e as saídas sociais para as cracolândias,
por exemplo, posam ser reconhecidas como desejadas e potencializadoras
de outros mecanismos de produção de humanos, abrindo horizontes para a
construção de novos desejos e sentidos para a vida.
214

Essa mudança na concepção dessas pessoas e formas de olhar pode


criar talvez a possibilidade de deixar de ver o outro não como usuário ou
dependente ou sujeito de rua, mas como alguém de fato desejante em estar ali
experimentando outras vidas, e assim abrir novas formas de negociação nas
relações institucionais, nas quais se possam produzir sentidos de produção
de outras vidas, pois se pode estar diante de relações circulares onde há uma
familiaridade na exclusão e não aceitação, passando a outro lugar no qual não

or
há certezas nem fórmulas prontas, mas há vínculos mais fortes e chances de

od V
se poder viver com mais autonomia (Ibidem).

aut
Na realidade social de hoje, a tolerância e as construções de projetos de
vida baseados no respeito ao desejo, no cuidado e na autonomia de sujeitos
em situação de rua e usuários de drogas ainda são exceção. Como vimos no

R
diálogo aqui travado com os diversos autores convocados, o discurso crimi-
nalizador, marginalizante, patologizador, excludente e medicalizante se faz

o
sustentar pelas agências políticas, de saúde, judiciais, policiais e penitenciá-
aC
rias; as agências internacionais; agências de representações ideológicas como

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universidades, institutos de pesquisa e academias e as agências midiáticas
em geral, as quais validam umas os discursos das outras (NETO et al, 2016).
Cria-se, assim, o terreno favorável para o controle biopolítico dos corpos,
visã
para a normalização e criminalização das condutas (conforme nos diz Foucault),
a punição pela prisão e internação compulsória, a higienização das ruas e cida-
des, a inserção em programas de habitação e abstinência, a medicalização pela
itor

atribuição de transtorno mental e dependência química, e para a estigmatização


a re

das pessoas em situação de rua e usuárias de drogas (conforme afirma Goffman).


Ocorre, portanto, (exatamente como nos diz Castel) a produção e a solidifi-
cação cada vez maior da desfiliação social (pessoas de rua que usam substâncias
psicoativas sendo desumanizadas e vistas pela ótica da marginalidade, mendicân-
cia, delinquência, vagabundagem, etc.), e finalmente pelo descarte desses seres
par

humanos como não produtivos, como lixo social, refugos redundantes (como nos
Ed

disse Bauman) que já não podem ser aproveitados em uma sociedade produtiva e
já com poucos empregos, a qual não poderá arcar com o sustento de pessoas sem
trabalho, sem profissão, que não são consumidores e não recolhem tributos, exi-
ão

gindo investimentos dos governos, do cidadão produtivo e das agências sociais.


Está assim ordenado um conglomerado institucional de rejeição e desu-
manização dos excedentes do capitalismo, aqueles que não poderão voltar a
s

ser reintegrados, a não ser pela abstinência total e pela aceitação da saída das
ver

ruas, voltando a morar em residências e apartamentos e deixando de consumir


drogas e cometer delitos.
Não obstante, paralelas às formas de controle e sujeição, punição e pato-
logização, coexistem também as possibilidades de resistência, linhas de fuga e
produção de processos de subjetivação como formas de produção de práticas,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 215

desejos e experimentações singulares e de subjetividade que não funcionam


na lógica da biopolítica e da dominação e normalização dos corpos.
A possibilidade não de tragédia e fracasso, mas de liberdade experimen-
tada por muitos sujeitos nas situações de rua, na construção de modos de vida
baseados em outra lógica, assim como o uso de substâncias psicoativas como
forma de socialização nas vias urbanas, regulação e gestão dos próprios corpos,
numa afirmação da própria singularidade são fenômenos relevantes e extraor-

or
dinários da vida contemporânea que ainda têm escapado à compreensão das

od V
esferas governamentais e institucionais, gerando violências, estigmas e exclusão.

aut
Tem-se, portanto, em relação a pessoas de rua usando drogas um cenário
ainda baseado na rejeição e não adequação ao modus vivendi da estrutura
capitalista, das formas biopolíticas de gestão dos corpos e da sociedade de

R
controle das vidas. Cabe a cada um buscar suas próprias formas de resistência,
pessoais e coletivas, implicando-se na criação de estratégias de superação des-

o
sas concepções assim como de relação com esses seres humanos diferentes e
aC
desiguais, mas humanos na sua maior acepção. Respeitar a vida, a liberdade,
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a singularidade e os direitos de escolha como pressuposto de um novo tempo


marcado por relações mais próximas, mais afetivas e com maior afirmação
das potências de vida, sejam de que tipo for, pois ainda assim serão aceitas
visã
em sua humanidade, singularidade e autonomia.

Considerações finais
itor
a re

Este artigo teve como objetivo abordar o tema das pessoas em situação
de rua e em uso de drogas por vários ângulos e interpretações, mas em parti-
cular através da interlocução teórica em alguns autores com certa intersecção
entre si, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Robert Castel,
par

Zygmunt Bauman e Erving Goffman, além de muitos outros teóricos com


publicações no Brasil e no exterior, buscando auxílio para a imersão desejada
Ed

sobre os dilemas da vida nas ruas e do uso de drogas enfrentados na atualidade,


os quais operam enormemente na produção de subjetividades atualmente
praticada no mundo inteiro, bem como no contexto da assim denominada
ão

democracia brasileira, na qual ainda não é possível apontar prioridade na


garantia de direitos humanos e sociais.
Assim, viu-se em Foucault como se dá a utilização dos discursos e estra-
s

tégias biopolíticas, as relações de poder e controle disciplinar, e a construção


ver

dos modos de subjetivação baseados na normalização das condutas, entre


outros nos quais os seres humanos são capturados pela governamentalidade
e pelas estratégias políticas contemporâneas.
Outra contribuição de Foucault é quanto às formas de resistência existen-
tes dentro das relações de poder vivenciados nos espaços sociais e urbanos.
216

Buscou-se associar tais referenciais teóricos a elaborações de outros autores


como Deleuze e Guattari, como as linhas de fuga e os processos de subjeti-
vação na chamada sociedade de controle para, de certa forma, reunir alguns
elementos encontrados nesses diferentes autores, todos muito relevantes e
necessários, sem a pretensão de qualquer ineditismo ou originalidade cientí-
fico-acadêmica, mas buscando delimitar a ideia de que certas pessoas podem
demonstrar formas de resistência às maneiras atuais de viver através da situa-

or
ção de rua e pelo uso de substâncias psicoativas em espaços urbanos.

od V
Na construção dialógica aqui realizada, essas resistências podem apa-

aut
recer relacionadas aos processos de subjetivação encontrados nos usuários
de drogas nas ruas como possíveis linhas de fuga da sociedade de controle,
conforme Deleuze analisou, como oposição ao modus vivendi atual, entretanto

R
considerando toda a complexidade relacionada aos temas de uso das drogas
e das situações de rua nas suas possíveis multideterminações subjetivas, pes-

o
soais, familiares, comunitárias, institucionais, políticas, culturais, econômicas,
aC
históricas e sociais.

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A partir de tais considerações, pode-se também relacionar as drogas e a
vida na rua à obra de outros autores, os quais criticam as estruturas capitalistas
abordando os fenômenos envolvidos nos processos de desfiliação social e
visã
marginalização (CASTEL), dos seres humanos tratados como redundantes e
sobrantes, refugos humanos descartados como lixo (BAUMAN), ou pessoas
sendo alvo de estigmas sociais diversos que criam uma marca negativa e
itor

desumanizam o sujeito (GOFFMAN).


a re

Portanto, buscou-se abordar os temas da situação de rua e do uso de dro-


gas para pensar a vida atual em sociedade, principalmente das pessoas ditas
excluídas e/ou à margem das estruturas sociais contemporâneas. O raciocínio
teve um fio condutor teórico: as formas de resistência e as linhas de fuga
existentes ou construídas nos processos de subjetivação humanos podem
par

manifestar-se nos meios urbanos como práticas diversas daquelas consideradas


Ed

esperadas ou adequadas, incluindo o consumo de substâncias psicoativas em


suas relações com a permanência nas ruas, os quais podem ser considerados
tanto um percurso consequente a processos de desfiliação e marginalização
ão

social, estigmas e inadequação social (sujeitos redundantes, refugos humanos,


sem emprego, sem família, sem moradia), quanto podem se dar a partir de
escolhas, opções, pertencimento a um grupo, busca de socialização e aceitação,
s

ou ainda no anseio por uma vida mais livre (ainda que cheia de dificuldades,
ver

privações e violência), entre outras possibilidades.


As ações de afirmação da vida e as necessidades humanas de escapar
do controle dos corpos e dos modos de vida aprisionados por mecanismos
políticos e relações de poder marcados por lógicas punitivistas, fascistas,
criminalizadoras e excludentes, operados por deslocamentos e distorções no
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 217

papel do Estado, das instituições, das famílias e comunidades, dos serviços


de saúde, das políticas públicas e dos processos de subjetivação, entre outros
múltiplos motivos (nos quais podem ser incluídos também o próprio desejo
e um direito de escolha pessoal, em certos casos), podem levar as pessoas a
passar a viver nas ruas e a consumir substâncias psicoativas, praticando uma
gestão dos próprios corpos, assumindo os riscos e as consequências daquilo
que venha a lhes ocorrer nas conjunturas e contextos de vida onde estão

or
envolvidos, com frequência estando absolutamente conscientes daquilo que

od V
estão praticando consigo e por si mesmas.

aut
Portanto, espera-se ter contribuído com estes temas (vida na rua e uso
de drogas) os quais com frequência podem estar relacionados, mesmo esta
não sendo absolutamente uma regra geral ou universal, e sim apenas mais um

R
encontro fortuito de fenômenos tipicamente humanos, tranversalizados nas
vidas e nos corpos de muitos sujeitos em busca de si mesmos, perambulando

o
pelas vias das cidades e algures experimentando certas substâncias.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA A PARTIR
DOS ESTÁGIOS: desafios metodológicos e
políticos para a instituição de trabalhadores

or
od V
Rodrigo Toledo

aut
João Eduardo Coin de Carvalho

R
A experiência dos estágios em Psicologia no Brasil tem se pautado pela
construção das condições necessárias para que alunas e alunos possam expe-

o
rienciar situações concretas relacionadas à atividade profissional em Psicologia
(CFP, 2013). Na formação, estas primeiras experiências são demarcadoras
aC
dos limites e possibilidades deste trabalho, promovem o conhecimento e a
discussão sobre as condições nas quais as práticas se realizam e permitem
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ainda, no contexto da supervisão, uma reflexão do aluno sobre os efeitos destas


visã
experiências sobre os próprios alunos-trabalhadores.
O formato dos serviços que proporcionam o trabalho de estágio veio
mudando bastante ao longo do tempo, desde a inauguração dos primeiros
itor

serviços de Psicologia muito frequentemente denominadas Clínicas Psico-


lógicas. Nas Clínicas, uma denominação (e eventualmente uma prática) que
a re

ainda hoje é bastante utilizada, a ênfase se encontrava no atendimento indi-


vidual, com práticas que poderiam ser mais largamente caracterizadas como
de consulta – na clínica tradicional, na escola, no ambiente organizacional. A
inserção profissional, ainda que apontasse para o campo Organizacional ou
par

Educacional, onde as psicólogas já vinham firmando sua presença (SILVA


NETO; OLIVEIRA; GUZZO, 2017), tinha como muito forte a preparação
Ed

para uma atividade profissional que se realizaria num ambiente protegido, o


consultório. Para a formação de um profissional liberal, o espaço destes Ser-
viços oferecia recursos para uma ação conceitual e tecnicamente apurada, mas
ão

que se realizaria sem o intercurso frequente de outros profissionais, senão – e


eventualmente – o psiquiatra. Isto eventualmente trouxe para dentro dos ser-
s

viços de formação em psicologia estes profissionais, responsáveis por realizar


ver

interconsultas, acompanhar casos e promover um atendimento multiprofissional


para as demandas de atendimento individual que chegavam a estes serviços.
Mais recentemente, os Serviços-Escola de Psicologia vão coordenar e dar
apoio a uma variedade crescente de serviços na saúde, assistência social, edu-
cação, trabalho, justiça, etc. Neles, aponta-se para o trabalho interdisciplinar e
intersetorial, para a ação colaborativa e que demanda a presença de redes para
sua efetivação. Os anos 1990 trouxeram estas mudanças para a formação, e não
224

seria estranho associar este processo ao próprio movimento de redemocratização


do país, a Constituição de 1988 e a “invenção” das políticas sociais, em especial
o SUS. Estas mudanças dizem respeito ao próprio lugar que as psicólogas passa-
ram a reivindicar na sociedade brasileira, não apenas como profissionais liberais,
mas como atuantes nestas políticas que redesenharam a função profissional e
colocaram na ordem do dia o compromisso social de psicólogas e psicólogos,
a atenção à imensa desigualdade presente na nossa sociedade e aos temas cuja

or
história não se encontrava apenas no corpo mas também nas relações e nos

od V
processos que sustentavam a exclusão, a estigmatização e a pobreza.

aut
Este novo cenário de atuação profissional provocou a busca de outras
estratégias e métodos para a formação de psicólogos, um movimento que ainda
tem procurado a medida justa da especificidade que caracteriza seu trabalho em

R
contextos onde já estavam presentes, mas que mesmo assim precisavam ser des-
bravados para uma presença mais efetiva, como a Assistência Social e a Saúde.

o
A experiência na formação de psicólogos para atuação profissional
aC
especificamente na Política Nacional de Assistência Social tem colocado

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


professores orientadores em contato direto com a realidade desta presença
relativamente recente (menos de 15 anos). Ela mostra as dificuldades para se
reconhecer a psicóloga como profissional da Assistência e Desenvolvimento
visã
Social, e da propalada “confusão” entre as funções da psicóloga e da assis-
tente social (quem faz o que?). Ainda, a presença de alunos e professores
neste cenário revela as dificuldades inerentes à prática (falta de recursos, de
itor

investimentos, de preparação).
a re

A formação profissional também se ressente da falta de conhecimento


dos alunos (e professores) sobre a realidade da sociedade brasileira (pobreza,
abandono, ausência do estado), desafiando os preconceitos contra a população
pobre e marginalizada, validando a individualização do fracasso e a crença no
mérito, ou ainda o entendimento de um Estado que não poderá nem irá atender
par

às necessidades da população, e neste sentido podendo ter uma diminuição


Ed

importante na sua presença coordenadora e moderadora, um estado mínimo.


As práticas na Assistência Social desafiam a função da psicóloga quanto
ao cacoete da nossa profissão como eminentemente clínica e voltada para a
ão

saúde mental e que identifica o campo da assistência social ainda como lugar
da caridade e da beneficência. A aluna que vem para este campo reconhece
o valor político e de compromisso social na sua atuação, mas nem sempre
s

associa este trabalho com a Psicologia. O senso comum e as representações


ver

sociais do profissional de psicologia como muito associado à clínica e dis-


tante do ambiente de trabalho e das políticas públicas continuam presentes
nos alunos dos últimos anos do curso e em grande parte dos profissionais.
A formação de profissionais que possam enfrentar estes desafios atra-
vés das práticas de estágio vai ser entendida aqui não como “o momento”
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 225

por excelência durante o qual será feita a formação – isto é, na suposição


que a formação se faria mesmo (ou apenas) quando a aluna se materializa
como profissional de psicologia. Propõe-se aqui que esta formação acontecerá
durante todo o curso, em cada uma das disciplinas e seguindo um roteiro que
se apoia na repetição: quando se refere o conhecimento e o método cientí-
fico embarcados nos diferentes campos da psicologia; quando se discute as
condições sociais e históricas que orientam a construção deste conhecimento

or
e suas aplicações; quando se destaca a dimensão ética associada às práticas

od V
profissionais em psicologia; e, finalmente, quando se discute o compromisso

aut
social do profissional e trabalhador da psicologia.
A formação profissional, um processo que atravessa efetivamente toda
a vida do trabalhador, não se inicia durante o estágio, mas é a consolidação

R
neste primeiro momento – o da graduação – de um trajeto que se inaugura
nos primeiros momentos da aluna no curso de Psicologia. Desta forma, o

o
que o estágio poderá promover para o processo de formação? Quais suas
aC
singularidades e desafios?
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Exemplos de como este trabalho de formação tem problematizado estas


preocupações, especialmente na área de psicologia social comunitária podem
ser encontrados no que se passa no Estágio de Grupos e Comunidades desen-
visã
volvido na Universidade Paulista.
A atuação em Psicologia Social Comunitária está intrinsecamente asso-
ciada ao compromisso com a mobilização de populações excluídas, bem como
itor

apresenta desafios no tocante à identidade profissional do psicólogo. Para que


a re

a atuação da psicóloga seja condizente com esta preocupação, suas práticas


necessitam reconhecer a singularidade dos indivíduos e a dinâmica dos grupos
sociais em situação de vulnerabilidade e exclusão, implicando, para isso, apren-
der e realizar este ofício no âmbito das comunidades e instituições, em diferen-
tes contextos de saúde e socioculturais (CARVALHO; OSTRONOFF, 2014).
par

O estágio supervisionado em Grupos e Comunidades é uma opção reali-


Ed

zada pelas alunas e alunos do Curso de Psicologia que, comumente, demons-


tram interesse em intervenções grupais, comunitárias e em interseções com
as políticas públicas de assistência social e saúde. As atividades previstas
ão

nesse estágio têm como referência as discussões propostas pelos conteúdos


de Psicologia Social, Psicologia Social Comunitária e de Políticas Públicas. O
estágio tem como objetivo proporcionar aos alunos do curso de Psicologia a
s

possibilidade de reflexão sobre a realidade, sendo acompanhados por um pro-


ver

fessor orientador para realizarem atividades como visitas técnicas, diagnóstico


institucional, entrevistas, elaboração de projetos e intervenções psicossociais.
A proposta para a realização do estágio está organizada em algumas
etapas, são elas: 1) as estagiárias e estagiários discutem as questões contem-
porâneas (relações de dominação, sofrimento ético-político, determinações
226

da desigualdade social na subjetividade e o papel das políticas públicas na


garantia de direitos); 2) deslocam essas discussões teóricas para campos reais,
buscando compreender como esses conceitos são “postos” na realidade dos
equipamentos públicos e privados, ONGs, fundações etc.; 3) realizam visitas
técnicas e produzem um diagnóstico institucional, articulado com a proposta e
demanda do próprio equipamento/instituição; 4) em encontros de supervisão
de estágio, discutem os projetos e as práticas de intervenção.

or
Dois exemplos ilustram o processo e apontam desafios e algumas das

od V
soluções encontradas pelos professores orientadores.

aut
No primeiro exemplo é apresentada uma proposta de intervenção reali-
zada em um Centro de Acolhida para mulheres travestis e transexuais, loca-
lizado na região metropolitana da cidade de São Paulo.

R
Antes de iniciar o trabalho, o grupo de estagiários e o professor orien-
tador estudaram o Dossiê dos Assassinatos e da Violência Contra Pessoas

o
Trans Brasileiras (2019) produzido pela ANTRA (Associação Nacional de
aC
Travestis e Transexuais). O dossiê apresenta diversos dados sobre violência

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e subnotificação de assassinatos de pessoas trans, mas mesmo com este pro-
blema, o documento indica que o Brasil segue como o país que mais assassi-
nou pessoas trans do mundo no ano de 2019, seguido por México e Estados
visã
Unidos. Vale destacar que a naturalização da violência e a estruturação da
submissão não dependem exclusivamente das relações de gênero, mas estão
interseccionadas com outras categorias como cor/raça/etnia e orientação sexual
itor

que, ao se cruzarem, se modificam, se recriam, bem como moldam várias


a re

outras possibilidades de leitura das violências e preconceitos vividos por


sujeitos marginalizados. Isto acontece em especial quando se entende como
o pertencimento a uma determinada classe social traz consigo um modo de se
relacionar com o mundo que é potencializado por todas as outras dimensões
que constitui o sujeito (TOLEDO, 2018).
par

No primeiro semestre do estágio, a tônica das discussões em sala era


Ed

refletir sobre as preocupações que envolviam as novas políticas de governo


e como as populações vulnerabilizadas poderiam sobreviver. Dessa maneira,
um dos eixos do estágio centrou-se em discutir o adoecimento do/no traba-
ão

lho, mais especificamente, a relação com o trabalho dos trabalhadores que


atuavam no atendimento das mulheres residentes do Centro de Acolhida (tria-
gem, recepção, limpeza, apoio psicossocial). Constatou-se como o papel do
s

trabalhador vai além de um conjunto de afazeres, e que nas relações sociais


ver

suas ações constituem um elemento organizador e estruturante do sujeito em


sua relação com o mundo. (FERREIRA; MEDEIROS, 2016). Com base nesta
ideia, pode-se perceber a importância que o trabalho tem para estes profis-
sionais, ou, mais especificamente, que o sentido que o profissional direciona
à sua atividade é fundamental para sua organização como sujeito autônomo.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 227

Os encontros realizados ocorreram uma vez por semana, entre os meses


de maio e novembro de 2019. No primeiro mês de trabalho o objetivo era
conversar/entrevistar as residentes e os trabalhadores do Centro de Acolhida
para conhecer as demandas individuais e coletivas, construção e fortalecimento
de vínculo e melhor compreensão das necessidades institucionais.
As discussões feitas com os estagiários, durante os encontros de super-
visão, permitiram entender que grande parte dos profissionais da instituição

or
destacavam a importância de seus trabalhos na construção de uma sociedade
mais justa e encaravam sua atuação como agentes de transformação social. Em

od V
contrapartida, relatavam insatisfação com o processo de trabalho e, principal-

aut
mente, dificuldade no relacionamento com as residentes do Centro de Acolhida.
É possível afirmar que ao mesmo tempo em que se percebeu um aspecto

R
transformador do trabalho, os trabalhadores, paradoxalmente, relatam grande
dificuldade de lidar com as exigências determinadas pelas Políticas Públicas,

o
como por exemplo, os processos, normas e a burocracia que envolve as prá-
aC
ticas de atendimento aos usuários dos serviços.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Após essas reflexões, construiu-se uma proposta de trabalho denominada


“Projeto (Trans)laços” que teve como objetivo discutir o sentido do trabalho
coletivo e colaborativo e suas articulações com as Políticas Públicas. Dessa
visã
maneira, nos meses seguintes foram realizados 15 encontros, divididos em:
três oficinas sobre enfrentamento ao preconceito e a discriminação (utiliza-
mos casos – reais e fictícios – para provocar a reflexão sobre as dificuldades
itor

apresentadas); oito encontros de rodas de conversa com temáticas relacionadas


aos desafios do mundo do trabalho contemporâneo (todos os encontros eram
a re

iniciados por uma música e/ou poesia que fosse disparadora das conversas/
debates); quatro encontros que visavam a discussão e o planejamento do
trabalho na instituição (as trabalhadoras apresentavam dificuldades e todo o
grupo pensava alternativas para essa situação-problema).
par

A escuta realizada pelos estagiários permitiu que as diferenças presentes


nos modos de existir fossem reconhecidas, legitimadas e problematizadas
Ed

(CISLESKI; MARASCHIN; TITTONI, 2006). Desse modo, constituiu-se


uma via para recriar processos de singularização e de trabalho, uma vez que as
peculiaridades de um sujeito, ou de todo o grupo, eram respeitadas e levadas
ão

em consideração nos debates.


No último mês de projeto foram realizados quatro encontros para que
se pudesse apresentar para as trabalhadoras e gestores a importância do tra-
s

balho colaborativo e cooperativo. Foram realizadas três oficinas que tiveram


ver

como foco: (a) o ponto de partida do Projeto (Trans)laços – como o grupo


se percebia no início do projeto; (b) os desafios vividos ao longo do Projeto
(Trans)laços – que os participantes pudessem retomar sobre os momentos
mais difíceis que o grupo vivenciou e como foram superadas as adversidades;
(c) as conquistas do Projeto (Trans)laços – que os participantes pudessem
228

avaliar o trabalho realizado ao longo do projeto e que realizassem os com-


binados necessários para a permanência das conquistas. Assim, a formação
de trabalhadores progressistas num primeiro momento, e revolucionários
posteriormente, transformadores da ordem social, econômica e politicamente
injusta é possibilitada pela conscientização das massas populares por meio
de um método baseado no diálogo (FREIRE, 2016).
O último encontro foi realizado com a equipe gestora do Centro de

or
Acolhida e o grupo de estagiários apresentou os cartazes produzidos pelos

od V
trabalhadores e o relatório psicológico elaborado pela equipe de estagiários

aut
e o professor orientador de estágio.
Ao longo da discussão nos encontros de supervisão, pode-se perceber

R
que a organização do trabalho contemporâneo tem colaborado para o desalo-
jamento dos sujeitos, tanto dos que realizam as atividades ou os usuários dos
serviços. Scarcelli (1999) ajuda a sustentar esse argumento quando afirma

o
que a experiência de “não saber” faz parte do cotidiano dos trabalhadores,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


seja pela falta de um terreno teórico seguro que ainda está por ser construído,
seja pela condição precária da formação.
Com o apoio dos relatos de alunos-estagiários coletados durante a reali-
visã
zação do estágio foi assim possível perceber que o interesse dos trabalhadores
está direcionado para construir práticas que transformem a realidade conforme
as demandas da comunidade e das usuárias dos serviços.
No segundo exemplo, a experiência de estágio em Grupos e Comunidades
itor

aconteceu dentro de um equipamento de Assistência Social responsável por


a re

abordagem de rua, o SEAS – Serviço Especializado de Abordagem Social,


realizado na Região Metropolitana de São Paulo.
A Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2005) destaca como
uma de suas diretrizes o desenvolvimento de ações no âmbito comunitário, espaço
par

este em que a atuação do psicólogo se dirige para os processos de interação do


cotidiano da vida em comunidade, mediando construção de conhecimento, prá-
Ed

ticas e atores sociais (XIMENES; DE PAULA; BARROS, 2009). O SEAS é um


equipamento que atende um serviço caracterizado como de média complexidade
de acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2014), que
ão

oferece abordagem e busca ativa a adultos especificamente em situação de rua.


Sua equipe é formada por Assistentes Sociais, Psicóloga e Educadores.
s

Dentre as atividades das equipes de trabalho do SEAS destacam-se a


ver

escuta, a orientação e o encaminhamento dos usuários à rede de apoio (Centro


de Acolhida/Casa de Passagem e Moradia Provisória), bem como a articulação
de ações juntamente a serviços ligados a diferentes políticas públicas (saúde,
trabalho, educação, etc.), com o objetivo de prover acesso a rede de serviços e
benefícios assistenciais, bem com inserção comunitária e criação de vínculos.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 229

O objetivo inicial do trabalho era oferecer para a clientela do serviço do


Centro de Acolhida/Casa de Passagem atendido pelo equipamento em ques-
tão um conjunto de práticas como a do Plantão Comunitário (CARVALHO;
OSTRONOFF, 2014), um espaço para escuta, acolhimento, compartilhamento
e reflexão mediado pelas estagiárias de Psicologia da Área de Estágios de
Grupos e Comunidades.
As primeiras semanas de supervisão na Universidade, durante o período

or
de formalização do campo de estágio, foi dedicado a leituras e discussões

od V
compartilhadas por todos os estagiários do grupo, envolvidos em diferentes

aut
projetos, visando informação e sensibilização sobre os fundamentos da prá-
tica profissional no campo da Assistência Social: desigualdade social (SCA-
LON, 2011), dominação (GUARESCHI, 2015), sofrimento ético-político

R
(SAWAIA, 1999), além de literatura específica sobre o funcionamento dos
serviços socioassistenciais (BRASIL, 2014) e orientações específicas para

o
atuação dos psicólogos nesta área (CFP, 2011). A partir daí, os primeiros
aC
meses do trabalho foram de aproximação e conhecimento do serviço e dos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

profissionais envolvidos, sempre com orientação da supervisora de campo


e acompanhamento do professor orientador. Nesse contexto, o estágio em
Grupos e Comunidades buscava a construção de um espaço de confiança
visã
para o compartilhamento de práticas e experiências no âmbito das equipes
dos serviços de Assistência Social.
O encontro efetivo com a equipe, atuando em conjunto, participando da
itor

rotina do serviço, associado à atitude investigativa e ao compromisso social e


a re

político das estagiárias, como foi sendo tratado em sala, proporcionou efeitos
importantes no restante do estágio ao longo do segundo semestre. Na medida
em que esta aproximação não se restringiu à apreensão técnica e burocrática do
serviço, conduziu a uma relação com o serviço que trouxe às alunas uma série
de conflitos existentes ali, nas relações entre profissionais, naquelas entre pro-
par

fissionais e assistidos e mesmo entre os profissionais, assistidos e as próprias


Ed

estagiárias. Com isto, nos últimos meses do trabalho, as estagiárias puderam


ser mais do que realizadoras de uma ação (o Plantão Comunitário), mas parte
efetiva da equipe, podendo se posicionar eventualmente como mediadoras
ão

de algumas desta situações, mas mais frequentemente como trabalhadoras do


serviço, com todas as consequências que isto implicava: da crença na política
pública ao sentimento de impotência e ao sofrimento. Assim, produziu-se,
s

em alguma medida ao longo do estágio, a passagem do aluno “explorador” e


ver

“aplicador de técnicas” para a de profissional submerso nas questões políti-


cas, institucionais e relacionais que fazem efetivamente a prática profissional
(REIS; GUARESCHI, 2010).
A partir dos exemplos é possível, assim, destacar alguns achados impor-
tantes para o debate sobre como o estágio pode estar a serviço da formação
230

de um profissional atento e crítico para sua prática profissional. A preparação


para a prática exige o enfrentamento de vários pontos que podem determinar
as chaves que irão conformar o trabalho do futuro profissional. Um destes
aspectos é o acento dos atributos científicos do trabalho em psicologia, que
distancia este trabalho do mero empirismo (a prática que funciona) e das ações
fundadas em crenças que não se submetem a uma dinâmica de fatos que podem
ser refutados pela testagem científica. A formação, neste ponto, se faz num

or
campo em que se valoriza os aspectos científicos do trabalho, e que garantem

od V
que este trabalho seja profissional: suporte teórico; planejamento; presença do

aut
contraditório; teste de hipóteses; avaliação dos resultados; invenção/criação.
Outro ponto que deve estar presente na formação é o desafio de preparar
o futuro profissional para ocupar um lugar em que prevalecem a dúvida, a

R
ausência da certeza, a possibilidade de duvidar de si próprio, mudar de ideia,
de reavaliar seu próprio fazer. Esta é uma dimensão que não contraria os

o
pressupostos da ciência moderna, mas que é profundamente estranha a uma
aC
concepção de homem que contempla a dúvida como fraqueza.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


No que diz respeito às relações entre professores orientadores e estagiários,
foi possível perceber que um dos grandes desafios para a formação e a produção
do conhecimento em Psicologia é a necessidade de construir formas de estar e/
visã
ou incentivar espaços que possibilitem a decifração do cotidiano, sem perder de
vista as questões referentes às ideias que subjazem aos pressupostos teóricos que
orientam todos os envolvidos. Nesta direção, outro destes desafios do estágio
itor

é produzir um processo de trabalho que flua de maneira equilibrada e permita


a re

que os estagiários se percebam enquanto sujeitos capazes de transformarem-se


continuamente, num processo de ação-reflexão-ação, alicerçado em uma cons-
tante vigilância epistemológica que lhes permita descobrir-se a si próprio, seu
valor, suas ideias, seu posicionamento frente às diversas situações, alcançando
com êxito os objetivos do processo educativo e na relação com o outro.
par

Concluindo, o estágio é a oportunidade única de realizar uma prática pro-


Ed

fissional tendo o acompanhamento de um grupo (alunos e professor orientador)


que pode discuti-la numa condição protegida que não tem paralelo no ambiente
de trabalho fora da academia e que ganha com esta singularidade a potência de
ão

levar o aluno a problematizar o que é o trabalho e o que é ser trabalhador, cons-


tituindo relações que poderão marcar no corpo os desafios e os compromissos da
prática de psicólogas e psicólogos com uma sociedade mais justa e igualitária.
s
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 231

REFERÊNCIAS
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od V
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a re

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par

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ão

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aC

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em: 12 ago. 2019.
s ão
ver
DESAFIOS NA FORMAÇÃO
DOCENTE NO BRASIL: debates
entre a psicologia e a educação

or
od V
Rafaele Habib Souza Aquime

aut
Fernanda Cristine dos Santos Bengio
Fernanda Teixeira de Barros Neta

R
Introdução

o
O atual cenário brasileiro de acelerado desmonte das políticas públicas
aC
nos leva a refletir sobre os aspectos que se relacionam à educação, buscando
interrogar sobre a importância do lugar da psicologia neste panorama. A con-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

dição da formação de professores no contexto de implementação da Base


visã
Nacional Curricular Comum – BNCC conta com documento que orienta os
cursos de formação de professores. Trata-se da “Proposta para Base Nacional
Comum da Formação de Professores da Educação Básica” (BNCFP).
Para melhor explorar este assunto, propomos inicialmente pensar sobre
itor

alguns elementos que compõe o atual cenário da educação básica no Brasil,


a re

os quais possuem como eixo a versão atual da BNCC, em que destacamos o


lugar do ensino técnico e sua relação com as demandas do mercado. No rastro
desta problematização abordaremos a psicologia como ciência e profissão e
sua relação com a educação, buscando problematizar o lugar da psicologia
par

na formação de professores na atualidade.


Abordaremos também a instrumentalização da educação como mercado,
Ed

inserida nos ditames do capital e como a psicologia contribui com essa lógica,
mas também pode lançar mão de resistências nos espaços formativos de sub-
jetividades que englobam a educação básica.
ão

Assim, foi importante tratar também de aspectos gerais do ensino supe-


rior e sua relação com a condição histórica e socioeconômica da população
brasileira. Em seguida, apontaremos as possibilidades de um fazer “psi” que
s

tenha como suporte um fazer pautado na ética do cuidado e equidade.


ver

Educação, Capital e Gestão

Rodrigues, Pereira e Mohr (2020) analisam profundamente a constituição


da BNCFP, na qual inferimos que a encomenda referente a este documento
é perpassada pela mercantilização da educação, pautada na teoria do capital
humano. As autoras também destacam o lugar de fala dos atores sociais que
234

produziram tal documento. Sujeitos ligados à educação privada, ao ensino à


distância, caracterizados como “reformadores empresariais” (p.7), denotando
a coalizão entre setor privado, políticos e pesquisadores que defendem a pri-
vatização completa da educação no Brasil, como suposta forma de garantir a
qualidade na oferta do serviço.
As autoras analisam outros aspectos do relatório que sinalizam o com-
prometimento, não apenas dos formuladores da BNCFP, como do próprio

or
Ministério da Educação – MEC com a agenda de privatização da educação.

od V
Assim, nos chama atenção os modos como a psicologia tem interferido junto

aut
às demandas da formação de professores e o que podemos esperar destes
novos contornos impostos pela implementação da BNCC.
A incidência do capital sobre a educação no Brasil não se constitui como

R
novidade. Contudo, ressaltamos o avanço deste como matriz organizativa das
ofertas dessa como uma mercadoria e não mais como direito social. Desde

o
os anos 2000 aproximadamente, as teorias da administração ligadas à gestão
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pública têm adotado a ideia do “choque de gestão”, que seria, resumida-
mente, a aplicação do modo de funcionamento do setor privado na adminis-
tração pública, envolvendo todo o processo de oferta de determinado serviço,
incluindo aí seu objetivo final, auferir receita. A racionalidade empresarial
visã
empregada ao setor público argumenta sobre o aumento da eficiência e eficácia
na prestação de serviços, pautando-se em uma racionalidade instrumental,
quanto às implicações disso frente à organização do Estado brasileiro e à
itor

promoção do acesso aos direitos sociais13.


a re

O predomínio da racionalidade instrumental em todas as esferas da vida


humana [...], critérios como o de efetividade ou relevância, que levam em
conta questões éticas, como o atendimento das demandas sociais, cons-
tituindo-se como critérios mais substantivo, acabam por ser esquecidos
par

diante da excessiva ênfase dada aos critérios instrumentais (BRULON;


VIEIRA; DARBILLY, 2013, p. 9).
Ed

Na multiplicidade de interesses da administração pública brasileira, a


educação básica constituiu-se por diretrizes e normatizações acerca de seu
ão

financiamento e implementação. Cury (2002) destaca as intensas transfor-


mações que o sistema de educação brasileiro sofreu após a promulgação da
s

Constituição de 1988. Salienta o caráter inovador da educação básica diante


ver

dos dispositivos legais existentes além da Carta Magna, ao preverem a univer-


salização do acesso ao ensino, formação profissionalizante, educação para a

13 Constituição Federal de 1988: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 235

cidadania e incentivarem a continuidade de estudos futuros. O referido autor


ainda pontua que mesmo a legislação vigente autorizando a oferta da educação
pela esfera privada, esta possui as mesmas obrigações da educação pública
em cumprir a diretriz referente à promoção de cidadania.
O atual status de política pública de caráter universal e público, com regu-
larização de sua oferta pela iniciativa privada, a situa como política estratégica
e setorial. Objeto sobre o qual arriscamos afirmar haver unanimidade de sua

or
relevância para a população em geral. A recorrência de discursos que apontam

od V
as mazelas da escola pública e que a objetivam como obsoleta, dispendiosa,

aut
ineficaz e ineficiente, diante da maioria dos sistemas de avaliação vigentes,
contrasta com a incoerência dos sistemas de avaliação do ensino público, fato
apontado por Rodrigues, Pereira e Mohr (2020, p.5). Para estas autoras existe

R
incompatibilidade entre os fazeres que compõe a educação básica pública e
os sistemas de avaliação existentes, denotando que trata-se, de modo geral,

o
de códigos que produzem dados negativos sobre o sistema público de ensino.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Essa política de alinhamento (objetivo-conteúdo-teste) gera um estreita-


mento curricular, pois secundariza dimensões mais amplas da formação
humana e não considera de fato a influência do perfil socioeconômico
visã
dos indivíduos na aprendizagem. Tais iniciativas têm, ainda, um caráter
de responsabilização individual forte, que não é coerente com a realidade
do Brasil, em que a desigualdade social é histórica e muito profunda
(RODRIGUES; PEREIRA; MOHR, 2020, p. 5).
itor
a re

Patto (1992) argumenta que a escola pública de má qualidade é produzida


por condições históricas e econômicas, principalmente. Ela destaca a força
do sistema capitalista e o processo de exclusão social a ele inerente, além
da atualização de práticas discursivas e não discursivas higienistas pautadas
par

sobretudo, no racismo e preconceito contra negros e pobres, cenário em que


são retomadas as teorias da carência cultural e o darwinismo social.
Ed

Diante destes elementos notamos que o papel da escola pública é cons-


tantemente contrastado com as mazelas socioeconômicas presentes no cenário
brasileiro, demandando dela que assuma a responsabilidade pela superação de
ão

questões que são históricas e possuem recortes de classe, gênero, raça, dentre
outros, sem que esses fatores sejam de fato considerados. Assim, surgem duas
principais demandas para a escolarização na atualidade: a formação cidadã e
s

aquela voltada ao mercado de trabalho. Esse entendimento é passível de reformu-


ver

lação, no sentido de que a dupla demanda é colocada, sobretudo, à escola pública.


Estes dois pontos, a princípio não parecem opor-se, uma vez que nossa
Constituição afirma que todo brasileiro deve ter acesso à emprego e renda como
característica do acesso à cidadania. Entretanto, a Divisão Internacional do Traba-
lho (DIT) como racionalidade compõe a multiplicidade das forças que atravessam
236

a educação brasileira, impondo à população pobre um processo de escolarização


que em sua maior parte a direciona à subempregos. Observamos ainda a inten-
sificação da precarização do trabalho, com flexibilização de leis trabalhistas e
perda de direitos e etc. Fato que aparenta ser tendência mundial, sobretudo no
Ocidente, em um cenário geopolítico de emergência de governos de ultradireita.
No recorte da educação, a profissionalização é posta como demanda natu-
ralizada da população subalternizada, a qual não teria “tempo”, “condições”,

or
“necessidade” ou “vontade” de uma formação de nível superior, apesar de a

od V
formação superior no Brasil estar sendo cada vez mais forjada no âmbito tec-

aut
nicista14. Porém, vale ressaltar que na transição do ensino médio para o nível
superior, tem sido cada vez mais comum que sujeitos de nível socioeconômico
baixo recorram a uma instituição privada com custo, relativamente acessível, com

R
cursos semipresenciais ou à distância; ou ainda recorrendo ao Fundo de Finan-
ciamento Estudantil – FIES e Programa Universidade Para todos – PROUNI.

o
Enquanto as vagas em instituições de educação superior públicas (IES)
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


são disputadas por sujeitos que cursaram praticamente todo o ensino básico
em instituição privada. Destacamos, porém, que este cenário tem sido alte-
rado, paulatinamente, pelas políticas públicas afirmativas, como as cotas,
possibilitando o acesso da classe subalternizada às Instituições de Ensino
visã
Superior (IES) públicas. Isto posto, tal condição de tem levado a população
pobre a buscar formação de nível superior na rede privada não se constituí
como novidade. Darcy Ribeiro (1969) já sinalizava esta contradição:
itor
a re

Nas universidades latino-americanas, mantidas exclusivamente ou quase


que exclusivamente pelo Estado, o problema da democratização do ensino
superior ou da seletividade deve ser expresso claramente. Nelas há inver-
são de fundos públicos e apropriação individual deles por uma minoria.
Que é que justifica esta apropriação? Na prática, apenas a explica o fato
par

de que as famílias mais ricas, contando com recursos para subministrar


melhor formação de segundo nível a seus filhos e para mantê-los enquanto
Ed

disputam as vagas na universidade, os habilitam a apropriar-se das inver-


sões públicas representadas pelo custo de formação de cada egresso. Aos
privilégios existentes se soma, desta maneira, o de acumular novas regalias
ão

para aqueles que já gozam de muitas vantagens (RIBEIRO, 1969, p. 138).

A educação básica então, situa-se nesta complexa trama, na qual é mani-


s

festa a lógica da divisão do trabalho no sistema de privilégios que atravessa


ver

a formação do estado brasileiro. A profunda relação dessa com a reforma do

14 Para aprofundar tal questão, ver: BERGAMO, P. Educação universitária: práxis coletiva em busca de veraz
qualidade e de precisa cientificidade [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2012. 295 p. ISBN 978-85-7879-
189-6. Available from SciELO Books .
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 237

ensino médio nos apresenta a retomada do ensino técnico como alternativa à


formação da classe subalternizada. Fato presente na forma final da BNCC,
travestido de autonomia do aluno ao escolher seu percurso formativo15. Ferretti
(2018) evidencia que a base de enfrentamento aos problemas encarados pelo
ensino básico em nosso país é a matriz curricular nacional, com adendo de uma
concepção ultrapassada de currículo. Desta forma, a proposta para o Ensino
Médio, conforme o autor, corresponde na diminuição no número de disciplinas e

or
aumento da permanência do aluno na escola, o que indicaria uma compreensão

od V
rasteira, pautada em análise a-histórica e descontextualizada sociologicamente,

aut
por parte dos gestores, sobre as reformas necessárias para a educação básica.

No que diz respeito a um dos itinerários formativos – a Educação Profissio-

R
nal de nível técnico – que chama a atenção por diferenciar-se dos demais
percursos, amparados em áreas do conhecimento científico, a Lei aparenta

o
mostrá-lo, por essa forma, integrado ao Ensino Médio. Mas, pelo menos
aC
sob um aspecto, promove, na verdade, uma espécie de negação dessa
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

integração na medida em que, ao tomar o caráter de itinerário formativo,


a formação técnica separa-se, de certa forma, da formação geral ocorrida
na primeira parte do curso. (FERRETTI, 2018, p. 28).
visã

Ferretti (2018) salienta ainda que os percursos formativos propostos pela


atual BNCC mantém relação profunda com os sistemas de avaliação, a exem-
plo do Programa Internacional de Avaliação de estudantes – PISA, que avalia
itor

apenas as áreas da leitura, matemática e ciências. Neste contexto, disciplinas


a re

como filosofia, sociologia, artes e educação física podem ser amalgamadas


nos outros itinerários a pretexto da interdisciplinaridade.
O ensino médio é apontado pelos especialistas da reforma, como o ponto
de estrangulamento da educação básica, com amplo número de repetência,
par

evasão e abandono, caracterizando o que se costuma chamar tão corriqueira-


mente de fracasso escolar. Este fenômeno relaciona-se diretamente ao que
Ed

se denomina contemporaneamente de fracasso social. O valor da educação


passa a ser medido a partir de parâmetros do sistema capitalista, na direção
da constituição de um sujeito além de adaptado às normas sociais vigentes,
ão

fato que inclui a condição econômica de consumo e produção.


Ao analisarmos criticamente as questões gerais apontadas pelo “fracasso
s

escolar” no ensino médio, se destacam questões de ordem econômica e social.


ver

A realidade brasileira para grande parte dos jovens que frequentam o ensino
médio é marcada pela persistência em permanecer em um sistema educacio-
nal que funciona para deixá-lo à margem do sistema de bem-estar social, por

15 Percursos Formativos conforme a BNCC: Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias,
Ciências Naturais e suas Tecnologias, Ciências Humanas e suas Tecnologias e Educação Profissional.
238

meio de tramas de privilégios, violência e exclusão. Não é difícil imaginar


qual percurso formativo, ao se garantir sua oferta nas escolas públicas, serão
majoritariamente ocupadas pela parcela subalternizada.
Considerando alguns aspectos históricos da formação técnica na educação
brasileira, é importante destacar que a formação técnica como alternativa para
otimizar a oferta de ensino é prática recorrente no Brasil. Frigotto (2005) deli-
neia que o ensino técnico em nosso país ganha impulso a partir do governo de

or
Getúlio Vargas, no qual, por meio da racionalidade desenvolvimentista buscou

od V
ampliar a oferta do ensino, disponibilizando à população pobre uma educação

aut
“aligeirada e de segunda categoria” (p.228). Já na era Vargas observa-se que o
ensino técnico era promovido com amplo apoio da esfera privada, a qual era
diretamente beneficiada por essa lógica de ensino. As décadas seguintes foram

R
para a política de educação um campo repleto de contradições, demarcando as
tensões em cena. Para exemplificar, Guiraldelli Jr. (2015) nos diz o seguinte:

o
aC

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[...] O espírito do desenvolvimentismo inverteu o pape do ensino público,
colocando a escola sob os desígnios diretos do mercado de trabalho. Daí
a ênfase na proliferação de uma escola capaz de formar mão de obra téc-
nica, de nível médio, deixando a universidade para aqueles que tivessem
visã
vocação intelectual.
[...] Em relação ao analfabetismo e a educação básica Juscelino oscilou
entre polos conflitantes e incongruentes. Clamava por recursos privados
itor

para a educação, insistindo na velha tese de que o Estado sozinho, não


poderia assumir encargos da universalização do ensino básico. Todavia, ao
a re

mesmo tempo, de modo incongruente, dizia-se disposto a conceder auxílio


financeiro federal para instituições particulares que pudessem colaborar
com o ensino público na tarefa de distribuição de serviços educacionais.
(GUIRALDELLI JR., 2015, p. 134).
par

O planejamento estratégico da política pública de educação no Brasil é


Ed

marcado pelo segregacionismo racista que funda a República, sendo operada


nestes ditames a expansão do ensino em nosso país. Tendo como público
alvo a classe subalternizada, esta estruturação tem sido atualizada em práti-
ão

cas recentes que constituem a política de educação brasileira em seu todo. A


leitura e análise da obra de Lilian Schartzs, O espetáculo das raças, denota a
historicidade das instituições de ensino superior e o liberalismo à brasileira
s

condicionado pela escravidão. Ainda sobre a condição histórica da educação


ver

no Brasil Frigotto (2005) assinala que:

Um balanço histórico de nossas raízes culturais, políticas e econômicas


expõe, de imediato, um forte estigma herdado das marcas da colonização
e de quase quatro séculos de escravidão. Com essas marcas, forjaram-se
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 239

elites dominantes que Francisco de Oliveira16 define como “vanguardas do


atraso e atraso da vanguarda” e cujas práticas políticas reiteram diferen-
tes formas de subalternidade e de partilha associada, hoje, com o grande
capital. O rompimento formal desse passado, mediante a constituição do
regime republicano, não apagou, todavia, sua presença real, por diferentes
formas, até o presente (p. 224-225).

or
Sob esta perspectiva, salientamos mais uma vez a formação cidadã e
formação para o mercado como a dupla demanda da escola pública. Neste

od V
cenário, a esfera da educação ocupada da formação de professores, as universi-

aut
dades, possui uma tarefa hercúlea de adequar os currículos dos seus cursos de
licenciaturas às demandas existentes na educação básica, ao mesmo tempo que

R
se ocupa em formar profissionais capazes de problematizar processos e acon-
tecimentos que atravessam e produzem a educação básica no país. Em meio a

o
estas questões, julgamos necessário situar o papel da psicologia e dos saberes
aC
“psis” que atravessam a educação como direito social e política pública.
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Os encontros entre a Psicologia e a Educação


visã
A Psicologia emergiu como ciência, no momento de afirmação do capi-
talismo, sob a presença marcante do liberalismo, no final do século XIX,
produzindo saberes que detinham o fenômeno psicológico de forma abstrata,
itor

naturalizante e individualizante, não contribuindo assim para que o sujeito


compreendesse e refletisse sobre sua realidade social e cultural (ALMEIDA;
a re

AZZI; MERCURI; PEREIRA, 2003).


Rose (2008) situa a psicologia como uma ciência social que nasce não
em um laboratório em Leipzig, na Alemanha, mas em torno da questão sobre
“conduta coletiva e individual humanas” (p. 156) e as autoridades que dese-
par

javam o controle dos sujeitos em vários espaços: escolas, fábricas, prisões,


exército, etc. Assim o autor indica que a psicologia nasce, como ciência, não
Ed

em um único espaço, mas em vários e ao mesmo tempo. Assim, o homem


como objeto de estudo desta disciplina é tomado, conforme Rose (2008) como
uma mente calculável e indivíduo administrável.
ão

Na educação esse aspecto ganha destaque com o advento da escola


moderna e no Brasil, especificamente, é importante demarcar a passagem do
s

século XIX para o século XX com a introdução da psicanálise e os debates


ver

médicos sobre desenvolvimento e ordenação familiar. Guiraldelli Jr (2015)


afirma que a instituição escolar moderna não nasce com o intuito de ensinar, e
sim de ser um espaço em que a infância possa ocorrer, uma vez que a família
não teria as competências prescritas pela prática da puericultura da infância que
16 Oliveira, F. O elo perdido: classe e identidade de classe. Brasiliense, São Paulo, 1987.
240

garantiria a força produtiva e moralmente adaptada necessária à consolidação


do Estado Moderno. Um debate mais extenso sobre infância e família pode
ser encontrado em Jurandir Freire Costa no “Ordem médica e norma familiar”.
A profissionalização da Psicologia no Brasil se desenvolveu em meio a
educação e a seara da medicina e posteriormente nos espaços das organiza-
ções e trabalho. Em 1890, com as Reformas de Benjamin Constant na educa-
ção brasileira, houve a incorporação da disciplina de Psicologia nas Escolas

or
Normais, que eram escolas de Magistério que formavam professores para o

od V
ensino fundamental, promovendo assim a autonomização desta ciência e sua

aut
articulação cada vez mais estreita com a educação (CRUCES, 2010).
Tratando-se especificamente da formação de professores, por volta
de 1960, a disciplina Psicologia da Educação, juntamente com outras dis-

R
ciplinas pedagógicas, passa a ser obrigatória nos currículos dos cursos de
licenciatura pelo Brasil, para possibilitar ao educadores conhecimentos sobre

o
desenvolvimento humano e o processo de ensino-aprendizagem, e com isso
aC
expectativas grandes em torno da superação de problemas escolares foram se

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desenvolvendo no corpo da psicologia, mas que obviamente não ocorreu, já
que as demandas educacionais se apresentavam complexas e multifacetadas
(LUCION; FROTA, 2009).
visã
Desde então, disciplinas de psicologia na educação continuam sendo
uma constante nas licenciaturas, e ao que tudo indica, continuarão a compor
esta trama, uma vez que encontram nos discursos da psicologia legitimidade
itor

para efetivação de inúmeras ações, respaldando determinadas relações entre


a re

os sujeitos da educação, inclusive práticas de cunho segregacionistas, meri-


tocráticas e medicalizantes. Candiotto (2002) explica que a ampla incidência
da Teoria do Capital Humano na educação tem simplificado inúmeras mazelas
sociais decorrentes da falta de acesso a condições econômicas que viabilizem
o acesso dos sujeitos à direitos básicos.
par

O autor explica que na Teoria do Capital Humano a educação é compreen-


Ed

dida como fator de mobilidade social e quanto maior o rendimento escolar,


maior será o sucesso econômico do sujeito, porém o sucesso escolar depende
do investimento econômico na educação. Neste ciclo perverso de exclusão
ão

são adensados discursos e práticas discursivas que individualizam fracassos


e sucessos dos indivíduos, objetivando os sujeitos como merecedores da con-
dição em que se encontram. Somam-se a isso, os discursos que explicam tal
s

mérito com base em condições, supostamente, médico-psicológicas, a partir de


ver

explicações descontextualizadas das condições sócio-históricas dos sujeitos.


Portanto, é importante refletir sobre as encomendas em torno das práti-
cas entre a psicologia e a educação, vale ressaltar, entretanto, que os encon-
tros entre a Psicologia e Educação possuem contornos variados, demarcando
posições marginalizadoras e rotuladoras, mas também práticas valiosas e
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 241

emancipatórias. Segundo Larocca (2007) a educação herda do positivismo,


principalmente nas reformas postuladas no final do século XIX e início do
século XX a racionalidade técnica de aplicabilidade linear da ação pedagógica
pelo víeis científico. Neste sentido, a Psicologia, carregada pela sua história
enquanto saber científico também trazia fortemente o positivismo em suas
metodologias e procedimentos teórico-práticos, traduzindo durante muito
tempo a concepção de Psicologia Aplicada à Educação.

or
Entendia-se, portanto, que cabia a Psicologia, na realização de suas pes-

od V
quisas, a geração de conhecimentos que se aplicariam na resolutividade de

aut
problemas educacionais. Seguindo a linha teoria antes e prática depois, os
currículos da educação iam direcionando que as disciplinas básicas e teóricas,
dentre as quais, a psicologia, prescreveriam orientações e resoluções envol-

R
vendo o campo educacional a serem discutidas e efetivadas nas disciplinas
práticas no final dos cursos (LAROCCA, 2007).

o
Almeida et al (2003) argumentam ainda que essa relação entre educação
aC
e psicologia foi consolidada pela perspectiva liberal, em que os problemas
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sociais são interpretados e investigados como demandas de uma cultura indi-


vidual, sendo assim, o sujeito deve se adaptar aos valores normativos vigentes
na sociedade. A escola será, desse modo, sustentada pela vocação de preparar
visã
esse sujeito para se adaptar ao meio social no desempenho de seus papéis.
Patto (1992) situa este debate ao historicizar a relação entre educação e
psicologia na virada do século XIX para o XX, destacando os estudos desen-
itor

volvidos no Instituto Binet com os testes de inteligência, os quais anunciavam


a re

as bases da psicologia que passa a se ocupar do desenvolvimento, aprendiza-


gem e desvios no campo da educação. O teste psicológico como tecnologia de
medição terá nos traumas de guerra o espaço de produção de sua legitimidade,
ampliando o avanço da psicologia e outros saberes “psi” sobre o campo dos
“desvios”. Patto (1992) e Freitas e Amarantes (2015) destacam que as primeiras
par

décadas do século XX foram marcadas pelo domínio do imaginário biomédico


Ed

na tarefa pela cura de problemas, supostamente (grifo nosso), psicológicos.


A possibilidade de medir os níveis de inteligência e diagnosticar trans-
tornos mentais possibilitaram o desenvolvimento de um arcabouço técnico
ão

de grande utilidade na organização do ensino escolar brasileiro, justificando a


exclusão de determinados sujeitos à escolarização, bem como apontando bar-
reiras naturais e sociais do desenvolvimento impostas a determinados sujeitos.
s

De modo geral, a psicologia na educação se destaca por apontar as nor-


ver

mas do curso do desenvolvimento e da aprendizagem dos sujeitos, indicando


ainda quais atitudes e comportamentos de cuidadores são adequados tendo em
vista o desenvolvimento saudável e o estímulo da aprendizagem dos sujeitos.
Tais questões têm sido amplamente debatidas entre especialistas que
se ocupam deste campo de saber, denotando os perigos da simples colagem
242

das teorias da psicologia nos fazeres e saberes dos sujeitos. Exemplo de tal
situação é destacado por Patto (1992) ao problematizar a Teoria da Carên-
cia Cultural, a qual afirma que grupos, historicamente subalternizado (grifo
nosso), não alcança o mesmo nível de “sucesso” que grupos privilegiados,
por serem “portadores de deficiências físicas e psíquicas contraídas em seus
ambientes de origem, principalmente em suas famílias tidas como insuficientes
nas práticas de criação dos filhos” (PATTO, 1992, p.282).

or
O exercício de situar a psicologia neste debate são realizados de modo

od V
emergente desde a década de 1980, destacando-se os trabalhos de Maria

aut
Helena Souza Patto, os quais criticavam em demasia o projeto de psicologia
da época. O livro “Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à psico-

R
logia escolar” e “A produção do fracasso escolar: histórias de submissão
e rebeldia” são algumas das suas principais obras, as quais denunciam o

o
modo como os saberes psicológicos tornaram-se correcionais e adaptacio-
nistas, culpabilizando o aluno e individualizando o chamado fracasso escolar
aC

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(MACIEL, 2012). Essas análises não são lançadas apenas a psicologia, mas
também a educação, vista como abstrata e sem lutas, alicerçada nos moldes
do capitalismo e do mercado liberal (PATTO, 1984; 1990).
visã
Segundo Cruces (2010, p. 156):

A partir dos anos 1980, com a redemocratização do País, muitas transfor-


mações nas concepções e nas práticas dos psicólogos puderam ser observa-
itor

das. Elas parecem estar relacionadas à promulgação da nova Constituição


a re

da República Federativa do Brasil, em 1988, e da nova Lei de Diretrizes


e Bases da Educação (LDB), aprovada em 20 de dezembro de 1996, que
prevê a autorização, o reconhecimento, o credenciamento, a supervisão e
a avaliação dos cursos superiores (Brasil. Lei nº 9.394, 1996). Determina,
também, que esses cursos se guiem por diretrizes curriculares, elaboradas
par

por comissões de especialistas em ensino nas diferentes áreas, contendo


Ed

competências e habilidades profissionais a serem desenvolvidas nos gra-


duandos, em substituição ao rol de disciplinas que ainda compunham
grande parte dos cursos de Psicologia.
ão

As narrativas históricas de encontros entre a psicologia e educação nos


inquieta a pensar sobre as práticas liberais e mercadológicas configuradas em
s

cenários diferentes, as quais trazem efeitos em torno do que se espera do desen-


ver

volvimento humano na sociedade atual, dentro e fora do âmbito educacional.


Em uma perspectiva global é oportuno refletir acerca do lugar da psico-
logia na educação brasileira nos cursos de formação de professores, em um
contexto marcado pela implementação de uma BNCC que denota a retomada
do ensino utilitarista voltado para o trabalho e produtividade econômica.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 243

Presença “psi” na formação docente

Antunes (2008) levanta reflexões sobre as diferentes terminologias nas


relações entre a Psicologia e a Educação. Abordam que Psicologia Escolar
estaria relacionada a subjetividade do ser humano no processo de ensino apren-
dizagem e seria o campo de atuação do psicólogo na escolar, já a Psicologia
Educacional seria caracterizada como uma área de saber sobre os fenômenos

or
psicológicos no processo de educação, não necessariamente composta por

od V
psicólogos, mas por pesquisadores que produzem saber sobre essa relação, e

aut
que atuam em instituições educativas. Além disso, os conteúdos da Psicologia
Educacional estão presente em diferentes cursos de formação de professores.

R
Apesar de discordâncias sobre a existência de tais diferenças ou não, os
autores Nunes (2008) e Souza (2009) concordam que não deve pairar uma

o
divisão dicotômica entre teoria e prática, além de considerarem preocupante
a expectativa salvacionista que é oferecida a psicologia, e como esta de certa
aC
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forma reconhece e mantem esse discurso.


As pesquisas de Rodrigues (2016) com professores que lecionam a disci-
plina Psicologia da Educação na educação superior, e a pesquisa de Almeida,
visã
Azzi, Mercuri e Pereira (2003) com professores da educação básica, os quais
analisam as contribuições da psicologia, estudada na formação, são impor-
tantes para se pensar as concepções daqueles que estão imersos no processo
de ensino aprendizagem envolvendo os saberes psicológicos.
itor

Rodrigues (2016) realizou entrevistas com doze professores da disci-


a re

plina Psicologia da Educação (e outras terminologias semelhantes), de cinco


instituições, quatro privadas e uma pública. Dentre os resultados, oito iden-
tificaram que os alunos possuem dificuldades em interpretar e compreender
as teorias psicológicas, mas essa dificuldade foi percebida não somente nessa
par

disciplina específica, mas em outras também. Oito também responderam que


a psicologia ainda possui a tendência para individualizar e patologizar as
Ed

demandas educacionais, focando primordialmente no domínio emocional.


Além de atestarem pouco aprofundamento de estudos na graduação sobre
aprendizagem e outras temáticas do campo da educação.
ão

Almeida, Azzi, Mercuri e Pereira (2003) realizaram quarenta e oito entre-


vistas semiestruturadas com professores de ensino fundamental em diversas
s

instituições de ensino sobre a presença das disciplinas de psicologia durante


ver

a formação acadêmica. Dentre os resultados, destaca-se que 22% acreditavam


que os saberes psicológicos são essenciais, mas não informaram sobre os
conteúdos estudados. Sobre qual (is) importância (s) de estudar esta área, 55%
respondeu para conhecer sobre o processo de desenvolvimento humano e 48%
sobre relações humanas e mediação de conflitos. A maioria dos participantes
244

também mencionou sobre a dificuldade e aplicar as teorias psicológicas, sobre


a reduzida carga horária e a falta de integração com outras disciplinas.
Diante do exposto, Bergamo (2004) aponta que a redução da carga horá-
ria relaciona-se, dentre outros fatores, a crise que a Psicologia da Educação
vivenciou marcadamente na década de 1970 e posteriormente, gerando o
afastamento do psicólogo do contexto educacional. A pesquisa realizada por
Silva e Nascimento (2013) cento e setenta oito alunos dos diferentes cursos

or
de licenciaturas do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação

od V
Básica Presencial (PARFOR) responderam marjoritariamente a necessidade

aut
de maior carga horária, uma vez que os conteúdos psicológicos são extensos.
Das três pesquisas apresentadas, a maioria dos participantes, sendo alunos
ou professores, destacam que a Psicologia da Educação é importante porque

R
promove autonomia, melhoria, transformação, todavia, precisa avançar nos
pontos expostos para que possa fazer sentido, e estar integrada nos eixos

o
estruturantes dos currículos.
aC

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Nessa direção, Gatti (1995, p. 17 e 18) traz importantes contribuições
sobre os cuidados para que essa integração ocorra:

Porque, ao tratarmos de currículos nas licenciaturas, defrontamo-nos com


visã
o conteúdo específico das áreas de conhecimento, suas lógicas e episte-
mologias próprias, seus fundamentos, sua linguagem, suas pesquisas, e
sua progressão específica, tudo isto na intersecção com formas de comu-
itor

nicação, ensino e aprendizagem [...] Estes aspectos não podem ser igno-
a re

rados pelos psicólogos da educação. A questão curricular é: como criara


condições para combinar e integrar aquilo que é essencial na produção
das ciências, das humanidades, e das artes com os reclamos do ator de
ensinar educando? Ensinar educando exige, para além dos fundamentos
científicos, posições histórico-filosóficas que têm a ver com o sentido e
par

as finalidades das ações encetadas.


Ed

Como pistas para esse cuidado, Freire (2018) defende que ensinar exige res-
peito aos saberes dos educandos, ou seja, respeitar e considerar os saberes que os
alunos carregam na relação com o ensino dos conteúdos. E fundamentalmente,
ão

Na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da


reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje
s

ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática (p. 40).


ver

Souza et. al. (2014) analisam, nessa direção, que os diferentes saberes que se
articulam na educação, dentre os quais especificamente a psicologia, deve desen-
volver suas finalidades educacionais não mais pautadas em explicações clássicas
que centram na criança e nos educandos de modo geral as causas do não-aprender.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 245

A transversalidade, que conforme Deleuze (2010) é o reconhecimento da


produção da multiplicidade, a conexão de pontos e disciplinas diversas, a Psico-
logia da Educação pode ser considerada um dispositivo de múltiplos diálogos
com outros saberes enquanto produção da diferença. Transversal para contribuir
com outros atores da educação e explorar os diversos modos de subjetivação,
para superar o psicologismo, pois seu fortalecimento reside na inventividade de
novos mecanismos de ensinagem e aprendizagem (ALMEIDA; AZZI, 2007).

or
Por fim, apostamos em uma psicologia que na formação de professores e na

od V
educação como um todo, se ocupe criticamente das encomendas à ela dirigida,

aut
rompendo com práticas pautadas em uma razão instrumental.

Considerações finais

R
A psicologia com a multiplicidade que é inerente à produção de seu dis-

o
curso científico encontrou campo fértil de interlocução junto à educação. Sua
aC
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afirmação no Brasil se vale desses encontros, tendo como pontos em comum o


desenvolvimento humano desde sua tenra fase – a partir do advento da noção
de infância –, a valorização do núcleo familiar pautado no modelo burguês de
visã
família e, sobretudo, dos problemas a serem equacionados pelo Estado Moderno
em emergência, configurados pelo controle dos indivíduos e das coletividades.
As teorias científicas construídas pela psicologia historicamente carregam
em uma análise global valores liberais, positivistas e alinhados ao capital
itor

humano, sem esquecer, é claro, dos modelos de educação utilitaristas que se


a re

forjaram e se forjam na trajetória brasileira.


A presença de tais valores são atuais e produzem encomendas a psico-
logia, que precisa problematizar seus saberes e práticas e seus efeitos nos
modos de subjetivação. O BNCC e o BNCFP são documentos educacionais
par

balizadores, que ao se aproximarem da lógica privatizadora de educação,


distanciam-se por sua vez de projetos emancipatórios. Essas reformas postas
Ed

chamam a nossa atenção para os diversos efeitos que podem reafirmar desi-
gualdades e subalternizações de segmentos populacionais historicamente
marcados por desfiliações sociais por conta de classe, raça e gênero.
ão

Acredita-se em projetos de psicologia com a educação que denuncie e


supere esses modelos instituídos, autores como Maria Helena Souza Patto
e Darcy Ribeiro nos fazem refletir sobre essas possibilidades e nos fizeram,
s

por meio dessa escrita, traçar e movimentar esses deslocamentos necessários.


ver
246

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BARCO COM ESCALPELAMENTO

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Crissia Roberta Pontes Cruz
Ana Carolina Araújo de Almeida Lins

Introdução

R
o
aC
Na região amazônica, além de suas metrópoles, há formas específicas de
organização social, pequenas cidades que se constroem entorno dos rios, cuja
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população é conhecida como ribeirinha, pois não apenas vivem às margens


visã
dos rios, mas estes são parte ativa de seu cotidiano. De acordo com Oliveira
(2006, p. 27) “a vida nas e das cidades amazônicas está ligada ao rio e à
floresta”. Para Guimarães e Bichara (2012), o rio funciona para o ribeirinho
como seu principal elemento de interação e sociabilidade, na forma como se
itor

relaciona com a natureza, mas também na forma como estabelece as relações


a re

entre seus habitantes e com as comunidades próximas e distantes.


O estado do Pará está situado na região norte do país e compõem a
Amazônia brasileira. Possui 144 municípios, dos quais 72 possuem influência
hidrográfica. Em um estado entrecortado e composto por rios, os barcos fazem
par

parte do cotidiano dos paraenses ribeirinhos.


Os barcos estão, portanto, inseridos de forma significativa no cotidiano
Ed

destas populações sendo seu principal veículo de deslocamento para pequenas


distâncias – percursos rotineiros, tais como escola, trabalho, compras, etc.
–, e também para viagens mais distantes, para os centros urbanos. Algumas
ão

dessas embarcações, porém, apresentam uma peculiaridade, de acordo com


Guimarães e Bichara (2012), a partir da segunda metade do século XX os
barcos à vela e remo passaram a ser substituídos por barcos com motor, sendo
s

alguns deles – considerados como embarcações clandestinas – com motor


ver

artesanal produzido pela própria comunidade. Esses motores possuem um eixo


rotacional que produz uma camada de vácuo ao seu redor, atraindo qualquer
coisa para dentro do seu campo de rotação.
É nesse contexto que acontece um acidente que há décadas tem mar-
cado os rios da Amazônia: o escalpelamento. Este acidente é caracterizado no
Plano Estadual de Enfrentamento aos Acidentes de Motor com Escalpelamento
(2017/2018) pelo enrolar dos cabelos no eixo de motor em funcionamento e
250

descoberto, o que acarreta o arranque abrupto do couro cabeludo (total ou par-


cialmente), e pode provocar ainda a lesão e comprometimento do pavilhão auri-
cular, das sobrancelhas e da face. As principais vítimas são mulheres e crianças.
As estatísticas no Pará indicam o registro de 430 acidentes com escalpela-
mento no período de 1980 a 2018, cuja distribuição geográfica é a seguinte: Muni-
cípios do Marajó, da Região Metropolitana, Região Nordeste, região do Baixo
Tocantins e Tapajós. Contudo, em virtude da peculiaridade geográfica da região,

or
do difícil acesso às localidades, dentre outros fatores, é possível que o número de

od V
acidentes seja maior do que o apresentado nos registros oficiais (SANTOS, 2017).

aut
O escalpelamento é um acidente de grande impacto e repercussão tanto
para a vítima e sua família como para a comunidade, para o próprio Estado que
se depara com o desafio de construir políticas públicas na direção da erradica-

R
ção deste acidente e de assistência adequada às vítimas e suas famílias. Neste
sentido, foi construído, no ano de 2008, o Programa de Atendimento Integral

o
às Vítimas de Escalpelamento (PAIVES), que tem como objetivos: “ofertar
aC
cobertura assistencial integral, interdisciplinar e humanizada às vítimas de escal-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pelamento e familiares ingressos na Santa Casa”; “aprimorar e desenvolver
tecnologias de atendimento e insumos voltados para as necessidades das(os)
pacientes”; “construção, manutenção e alimentação de banco de dados como
visã
referência técnica e de pesquisa na área” e “capacitação continuada de pessoal
técnico especializado para o atendimento desta referência” (PARÁ, 2008, p. 20).
No sentido de enfrentamento ao acidente visando sua erradicação foi
itor

constituída, no ano de 2008, a Comissão Estadual de Erradicação dos Aciden-


a re

tes de Motor com Escalpelamento (CEEAE), que depois passa a se denominar


Comissão Estadual de Enfrentamento aos Acidentes de Motor com Escalpe-
lamento (CEEAE), da qual o Conselho Regional de Psicologia (CRP10) faz
parte desde o ano de 2016.
A atuação da comissão tem apresentado dados positivos na redução dos
par

acidentes, visto que antes de sua constituição, entre os anos de 2001 e 2008,
Ed

foram registrados 178 acidentes, e após sua criação esse registro caiu para 86,
entre os anos de 2009 e 2016 (SANTOS, 2017).
Apesar dos avanços alcançados, o enfrentamento ao escalpelamento
ão

ainda é um desafio em nossa região, bem como a assistência às vítimas. É


nesse contexto que este artigo tem como objetivo analisar o diálogo entre a
Psicologia e o SUS diante do acidente de motor de barco com escalpelamento.
s
ver

Acidente de motor de barco com escalpelamento

Como visto, o acidente de motor de barco com escalpelamento é um


grave acidente que acontece nos rios da Amazônia, mais especificamente
nos estados do Pará e Amapá. Implica em graves sequelas às vítimas, com
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 251

impacto na família, na comunidade e no estado. O escalpelamento apresenta


peculiaridades e marcadores que não podem ser desconsiderados em uma aná-
lise crítica sobre essa realidade. Além de ser um acidente caracteristicamente
amazônico, o fato de suas principais vítimas serem mulheres e crianças evi-
dencia que questões de gênero precisam compor a análise sobre a ocorrência
dos acidentes e também a forma como a assistência se estrutura.
Em relação à ocorrência do acidente é preciso reconhecer que não se está

or
falando de uma mulher universal, mas sim de meninas e mulheres amazôni-

od V
das, ribeirinhas, cujos longos cabelos são marcas de vaidade, feminilidade e

aut
muitas vezes religiosidade. Sobre essa questão, Santos (2007, p. 22) afirma:
“O ponto forte do acidente se dá pelo uso dos cabelos compridos e soltos, ao
trafegar no interior das canoas e ou barcos, mas principalmente, pela ausência

R
de instalação de itens de segurança nas embarcações.”. Nesse sentido não é
possível colocar apenas nos cabelos a responsabilidade pelo acidente, o que

o
seria simplificar a questão, além de mais uma vez culpabilizar a vítima.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Deste modo, é importante compreender como os cabelos longos e a falta


de segurança nas embarcações são fatores interligados, mas que em uma
embarcação segura o comprimento dos cabelos não seria um risco iminente
para meninas e mulheres.
visã
As imagens a seguir auxiliam na compreensão da ocorrência do acidente.
Nas três primeiras imagens é possível ver como são os eixos de motores des-
cobertos utilizados em embarcações consideradas clandestinas e de grande
itor

circulação nos rios do Pará e Amapá.


a re

Fotografias 1 a 3: Vista panorâmica do interior de duas embarcações


ribeirinhas. Pode-se ver o motor; o volante do motor; e o eixo propulsor
que liga o motor à hélice, este último totalmente descoberto
par
Ed
s ão
ver
252

A ilustração a seguir retrata o momento do que denominamos de acidente


de motor de barco com escalpelamento.

or
od V
aut
R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
Fonte: Sarapó, 2005 apud Santos, 2017.

Diante do exposto, considera-se necessário que as estratégias de preven-


ção ao acidente abranjam a complexidade do evento. Oliveira (2016) afirma
itor

que apesar dos esforços do estado do Pará, da Marinha do Brasil e de organi-


a re

zações não governamentais (ONGs) nas campanhas de prevenção, nos anos


de 2001 a 2005 houve um aumento no número de vítimas de escalpelamento,
com o agravante de que as vítimas não haviam conseguido realizar, até o
momento, a cirurgia reparadora ou mesmo serem incluídas em programas de
inclusão social do Governo Federal. Foi neste contexto que se buscou construir
par

um projeto que contemplasse ações multidisciplinares para atuar na causa


Ed

do problema, além de mitigar suas consequências. Nasce assim a proposta


do Projeto de Erradicação do Escalpelamento por Embarcação, o qual teve
sua aprovação pelo Defensor Público Geral da União na segunda metade do
ão

ano de 2005, e era composto por duas frentes de ação: uma preventiva, com
enfoque na melhoria da segurança das embarcações; e outra reparadora que
visava o atendimento das vítimas.
s

A autora considera como primeira conquista deste Projeto o enquadra-


ver

mento do acidente de escalpelamento como um acidente de consumo, uma


vez que a vítima é normalmente passageira da embarcação na qual o acidente
acontece. A partir deste projeto construiu-se a ficha de identificação da vítima
de escalpelamento (FIVE), a qual tem como objetivo traçar o perfil das víti-
mas, bem como identificar os fatores que contribuíram para o acidente, o perfil
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 253

eco­nômico do proprietário da embarcação, os dados da embarcação e as infor-


mações sobre os procedimentos médicos já executados. A proposta era de que
essa ficha contribuísse para a formulação de políticas públicas visando à pre-
venção, a mitigação e a erradicação deste tipo de acidente (OLIVEIRA, 2016).
No que se refere às conquistas no campo da saúde, o acidente de escal-
pelamento foi incluído na Tabela Unificada de Procedimentos do Sistema
Único de Saúde (SUS), o que possibilitou que o hospital que ofertava assis-

or
tência – Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMP) – rece-

od V
besse o ressarcimento dos custos com os procedimentos médicos e cirúrgicos

aut
(OLIVEIRA, 2016). A contrapartida financeira possibilitou assim uma maior
estruturação da rede de assistência às vítimas de escalpelamento como res-
ponsabilidade do estado.

R
Após a inclusão na tabela do SUS, verificou-se um déficit importante
no acesso das vítimas de escalpelamento às cirurgias plásticas reparadoras.

o
Oliveira (2016, p. 489) narra o percurso realizado a fim de reparar esse déficit:
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A Defensoria Pública da União (DPU) buscou, então, inicialmen­te, apoio


no Instituto Ivo Pintaguy, no Rio de Janeiro que, devido ao número cres-
cente de vítimas que procurava a DPU, viabilizou uma parceria com a
visã
Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica para atender a demanda reprimida
de cirurgias reparatórias. Isto mobilizou médicos, em todo o país, para
participar do mutirão de forma gratuita, ofe­recendo os melhores proce-
itor

dimentos de cirurgia plástica às vítimas de escalpelamento do interior


da Amazônia, até que cada Estado da Federação montasse sua equipe de
a re

cirurgia plástica para atender os casos de acidentes no futuro.


No primeiro mutirão de avaliação para a realização de cirurgia plástica
reparadora no Pará foram atendidas 61 vítimas, uma das quais do sexo
masculino, e realizados 24 pro­cedimentos reparadores. Mutirões sub-
par

sequentes, no Pará e no Amapá, atenderam mais de duzentas vítimas


de escalpelamento.
Ed

Ainda de acordo com a autora, houve muitas dificuldades e desafios na


implantação do Projeto de Erradicação do Escalpela­mento, sendo realizadas
ão

várias audiências públicas com o intuito de sensibilizar formadores de opi-


nião e conquistar parceiros evidenciando que a ausência do Estado permitia
a ocorrência dos acidentes.
s

É a partir dos avanços na conquista de direitos das vítimas de escalpe-


ver

lamento, e com a compreensão de que o Estado não pode se omitir diante


do acidente que nasce, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), o
Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (PAIVES),
e a Comissão Estadual de Enfrentamento aos Acidentes de Motor com Escal-
pelamento (CEEAE).
254

A Psicologia na assistência às vítimas de escalpelamento

O SUS (Sistema Único de Saúde) como hoje conhecemos – apesar das


tentativas de desmonte que vem sofrendo – é construído ao longo de um
processo de lutas pelo direito à saúde. Spink e Matta (2006) fazem breve
análise desse percurso de organização da atenção à saúde de âmbito público
no país, e afirmam que por muito tempo a atenção em saúde ficava ao encargo

or
das Santas Casas ou a serviços voluntários de outra natureza. Foi somente

od V
em 1923 que nasceu a primeira organização estatal de serviços de saúde no

aut
Brasil (Lei Eloy Chaves), que tratava principalmente da seguridade social
para trabalhadores de setores organizados.

R
O acesso aos serviços de saúde permaneceu atrelado à necessidade de
vínculo empregatício pelas décadas seguintes, nas diferentes configurações
que essa atenção em saúde foi ganhando nesse período. No final da década

o
de 1970, com o declínio do modelo econômico dos militares, cresceram os
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


movimentos em busca da redemocratização do país, e no que tange a reformu-
lação do modelo de saúde, o Movimento Sanitário – que reunia profissionais de
saúde, intelectuais, organizações populares e membros da própria burocracia
visã
estatal – foi o expoente (SPINK; MATTA, 2006).
O crescente debate promovido e o reconhecimento dos problemas no
sistema vigente de saúde levaram à construção de medidas intermediárias,
tais como a criação do Sistema Nacional de Saúde, em 1975, que foi definido
itor

pela Lei 6.229 como “o complexo de serviços [...] voltados às ações de inte-
a re

resse da Saúde, abrangendo ações de promoção, proteção e recuperação da


saúde” (SPINK; MATTA, 2006, p. 38). Em 1983/1984 formulou-se o projeto
“Ações Integradas de Saúde”, o início do que viria a ser o SUS, que adotava
os princípios de universalização, descentralização e integração dos serviços
par

de saúde, além de estabelecer convênios entre União, estados e municípios


visando à construção de um sistema único e descentralizado. Nesse contexto
Ed

ocorre em 1986 a 8ª Conferência Nacional de Saúde, cujo relatório final serviu


como subsídio para elaboração do artigo 196 da Constituição Federal sobre
a Saúde (SPINK; MATTA, 2006).
ão

A constituição de 1988, que muito deve ao Movimento Sanitário, reco-


nhece a saúde como direito de todas as pessoas e dever do Estado. Pro-
s

move ainda, a perspectiva de organização descentralizada que possibilita


ver

que os diversos municípios elaborem políticas pertinentes à realidade


local. O texto constitucional referenda os princípios básicos do SUS:
universalidade, gratuidade, integralidade e organização descentralizada.
E, com base no texto constitucional, em 1999 foi aprovada a Lei 8080
que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 255

da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes


(SPINK; MATTA, 2006, 39).

É no contexto do SUS, desse sistema que se propõe universal, integral e


descentralizado que se constrói a assistência às vítimas de escalpelamento e
as ações de prevenção do acidente. Por se tratar de uma realidade tão peculiar
da nossa região, não é possível a mera importação de estratégias de saúde para

or
atender a demanda da população ribeirinha, de modo geral, e em especial nas

od V
complexas questões que atravessam o acidente com escalpelamento.

aut
O acidente de motor de barco com escalpelamento implica em diversas
e graves sequelas na vida das vítimas. O arranque abrupto total ou parcial
do couro cabeludo, somado a possibilidade de lesões na face, sobrancelhas,

R
região cervical e pavilhão auricular, além do risco de Traumatismo Crânio
Encefálico (TCE), acarreta na necessidade de internação hospitalar imediata

o
após a ocorrência do acidente, para imediata estabilização clínica da paciente,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

garantindo assim sua vida.


Este primeiro atendimento de Urgência e Emergência pode ocorrer em
um dos Hospitais Regionais mais próximo do município em que ocorreu o
acidente, ou em um dos Prontos-socorros da capital Belém, ou ainda no Hos-
visã
pital Metropolitano de Urgência e Emergência (HMUE), também localizado
na Grande Belém, no município de Ananindeua.
Após estabilização clínica e afastado o risco de morte, a paciente é enca-
itor

minhada para a Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMP)


a re

– hospital de referência no atendimento a essas vítimas –, seja por remoção


aérea, fluvial ou terrestre, para que então se iniciem os tratamentos necessários,
que se darão através de uma assistência integral e com qualidade, prestada
por uma equipe multidisciplinar composta por profissionais da Medicina,
par

Enfermagem, Psicologia, Serviço Social, Pedagogia, Fisioterapia, Terapia


Ocupacional, Nutrição, Fonoaudiologia e pessoal de apoio.
Ed

A Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMP) é uma institui-


ção hospitalar secular, localizada na capital do estado do Pará, no município
de Belém, que tem como missão:
ão

Prestar assistência à saúde, inserida no SUS, atuando como hospital geral


de ensino e de referência na atenção integral à saúde da mulher e da
s

criança, na média e alta complexidade, com qualidade e de forma huma-


ver

nizada, articulada com as políticas públicas e em parceria com a sociedade


civil (Planejamento Estratégico da FSCMP/2007).

Dessa forma, tendo em vista a necessidade de assistência integral a


essa demanda de atendimento às vítimas de acidente de motor de barco com
256

escalpelamento, a Fundação Santa Casa criou o PAIVES (Programa de Aten-


dimento Integral às Vítimas de Escalpelamento), que se propõe, entre outras
coisas, a articular diversas instituições de assistência em saúde, em todas as
esferas de atenção, garantindo assim a integralidade das ações assistenciais
direcionadas às vítimas de tal acidente, tão particular desta região do país, em
um estado de grande extensão territorial, como é o estado do Pará.
Logo, o PAIVES então se firma como uma importante política de estado,

or
que visa garantir a assistências integral, interdisciplinar e humanizada às víti-

od V
mas de escalpelamento, nascendo nesse e para este contexto. (PARÁ, 2008).

aut
No que diz respeito especificamente sobre os eixos assistenciais do PAI-
VES na FSCMP, pode-se dizer que o programa funciona em quatro nichos

R
de assistência, sendo dois em regime de internação hospitalar, sendo eles
através dos atendimentos na Clínica Pediátrica (para criança até doze 12 anos

o
de idade) e de atendimentos na Clínica Cirúrgica (para adolescentes acima
de 12 anos e adultos), bem como através de atendimentos no Ambulatório da
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


FSCMP, após alta hospitalar, e no Espaço Acolher.
O Espaço Acolher é um albergue da própria Fundação Santa Casa, des-
tinado ao acolhimento às pacientes e acompanhantes, com alimentação e
visã
repouso garantidos pela instituição onde as mesmas são albergadas no aguardo
de cirurgias reparadoras ou procedimentos necessários para melhorar o estado
das mesmas (PARÁ, 2017/2018).
A criação de um espaço como este se fez necessário para garantir a per-
itor

manência de tais pacientes na capital para continuidade dos tratamentos de


a re

longa duração. Faz-se importante lembrar ainda que a situação socioeconômica


e cultural dos residentes nas áreas ribeirinhas é de extrema pobreza, o que é
agravado quando ocorrem tais acidentes, dificultando então sua permanência
em Belém, local muitas vezes totalmente desconhecido e sem suporte social
par

e familiar para tais vítimas.


A esse respeito, o mais recente Plano Estadual de Enfrentamento aos
Ed

Acidentes de Motor com Escalpelamento elaborado pela Secretaria de Estado


de Saúde Pública (SESPA), reconhece que a ocorrência deste acidente, além de
comprometer a vida da paciente, gera impactos na dinâmica dessas famílias,
ão

e, portanto, deve-se levar em conta que o tratamento (doloroso e de longo


prazo) é realizado exclusivamente em Belém (PARÁ, 2017/2018).
s

No Plano Estadual de Enfrentamento aos Acidentes de Motor com


ver

Escalpelamento (2017/2018) é afirmado ainda que a prevenção aos aci-


dentes tem sido o foco da abordagem empregada nas ações de todos os
evolvidos com a problemática – governos, ONGS, Ministério Público,
Defensoria da União, Marinha e sociedade civil. Todavia, como ainda não
se conseguiu erradicar o acidente, faz-se necessária as ações sistemáticas
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 257

de fortalecimento da assistência às vítimas, no que o PAIVES tem sido de


grande importância ao contribuir para atenuar o sofrimento e as sequelas do
acidente, com a prestação de um atendimento integral, qualitativo e huma-
nizado que visa favorecer a potência de vida dessas meninas e mulheres
acometidas pelo escalpemaneto.
A Psicologia compõe a equipe técnica do PAIVES desde seu surgi-
mento. No âmbito hospitalar, desde o início da internação é realizado acom-

or
panhamento psicológico com a paciente e acompanhante/familiares. Nessa

od V
primeira internação, a atuação junto a essas mulheres tem evidenciado que

aut
as principais demandas da paciente, nesse momento, referem-se à sobre-
vivência ao acidente. É um período de adaptação à rotina hospitalar, de
realização das primeiras cirurgias, de começar a lidar com as dores físicas
e emocionais do acidente.
R
Várias outras internações são necessárias ao longo dos anos, visto que o

o
tratamento pode se estender por mais de uma década. A paciente e seu acompa-
aC
nhante/familiar passam então a ser acompanhados no Ambulatório da FSCMP,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

no Espaço Acolher e durante as internações no hospital. É nessas internações


subsequentes, e no acompanhamento no Espaço Acolher, que questões atreladas à
feminilidade e as demais sequelas deixadas pelo acidente começam a comparecer.
visã
Ao mesmo tempo é notória a potência de vida que pulsa nessas mulheres
que mostram a beleza e força de suas cicatrizes, evidenciando novas formas
de feminilidade, de existir como mulher após o acidente que marca seus rostos
itor

e suas vidas. Nesse sentido, a atuação da psicologia no âmbito hospitalar e


a re

no Espaço Acolher visa acompanhar essas mulheres em seus processos de


internação hospitalar e de ressignificação de cicatrizes.
A atuação da Psicologia não se dá de forma isolada, visto que uma
assistência efetiva no campo da saúde pública é construída em rede e em
equipe. Embora a interdisciplinaridade seja uma meta ainda difícil de ser
par

alcançada, a atuação multiprofissional é garantida às pacientes acompanhadas


Ed

pelo PAIVES, e dentro dessa equipe tem se buscado trabalhar em conjunto


e em diálogo com a rede a fim de promover uma assistência de fato integral.
Nessa perspectiva, como visto, a assistência à mulher que foi acometida
ão

pelo escalpelamento não se encerra na esfera hospitalar, tampouco a atuação


da Psicologia. O Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpela-
mento (PAIVES) prevê assistência que ultrapassa os muros do hospital. Nesse
s

sentido foi construído o Espaço Acolher, que não apenas abriga as pacientes
ver

durante o tratamento, mas oferece também assistência multiprofissional e


acompanhamento educacional através da classe hospitalar, a qual está vin-
culada à Secretaria Estadual de Educação (SEDUC).
No que se refere à atuação da Psicologia nesse Espaço, o acompanha-
mento nesse processo de ressignificação das cicatrizes perpassa além do
258

acompanhamento psicológico para paciente e seu acompanhante, a realização


de diversas atividades em parceria com as demais categorias profissionais e
serviços oferecidos no Espaço a fim de favorecer a inclusão social das pacien-
tes e acesso a serviços de saúde e sociais, estabelecendo assim forte diálogo
com a rede e reafirmando o compromisso ético-político da Psicologia em uma
questão tão complexa de nossa região, como é o escalpelamento.
Outra frente importante de atuação da Psicologia é sua participação na

or
Comissão Estadual de Enfrentamento aos Acidentes de Motor com Escal-

od V
pelamento (CEEAE), que foi criada para fazer enfrentamento ao acidente

aut
visando sua erradicação.

Promoção de saúde: as estratégias de prevenção ao acidente de


motor com escalpelamento
R
o
Em uma perspectiva de atenção integral, as estratégias de prevenção e pro-
aC

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moção de saúde não poderiam ser negligenciadas. No que se refere às estratégias
de prevenção aos acidentes de motor de barco com escalpelamento, Oliveira
(2016) afirma que no Projeto de Erradicação do Escalpelamento por Embarcação
visã
estas ações têm como foco principal a cobertura do eixo que liga o motor à hélice
nas embarcações ribeirinhas, a promoção de campanhas de prevenção, e orienta-
ção sobre como agir em caso de acidente. Sobre ações realizadas, a autora narra:
itor

Em março de 2010 foi lançada a Cam­panha Nacional de Combate ao Escalpe-


a re

lamento na sede do Centro de Instrução Almiran­te Braz de Aguiar (CIABA),


em Belém/PA, que consistia em diversas peças publicitárias a serem afixadas
em barcos em pontos de embarque e desembarque de passageiros, além de
spot para veiculação em rádios locais. A Marinha do Brasil vem fabricando
a cobertura metálica para encapsular o eixo de embarcação ribeirinha a par-
par

tir de um modelo desen­volvido pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de


Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), bem como instalando
Ed

esta peça de forma gratuita nessas embarcações (OLIVEIRA, 2016, p. 492).

É nesse contexto de construção de estratégias de enfrentamento ao escal-


ão

pelamento, visando sua maior efetividade, que foi constituída a Comissão


Estadual de Enfrentamento aos Acidentes de Motor com Escalpelamento
s

(CEEAE). A Comissão está dentro da Coordenação Estadual de Mobilização


ver

Social, vinculada à Diretoria de Políticas de Atenção Integral à Saúde (DPAIS)


da Secretaria de Estado de Saúde Pública (SESPA), o SUS. Atualmente, a
CEEAE é composta por 18 instituições como membros e 1 instituição na
condição de colaboradora, como pode ser observado no quadro a seguir que
apresenta as portarias de nomeação dos membros da Comissão.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 259

Quadro das Portarias de Nomeação dos Membros


da CEEAE período de 2008 a 2016

Instituição Portaria 023/08 Portaria 298/13 Portaria 536/16

ARCON X X Substituída

CAMARA SETORIAL X X X

or
DPU X X X

od V
FUNDACENTRO X X X

aut
SANTA CASA X X X

UNICEF

HPM
R X

X
X

Substituída

o
HMUE X X
aC
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HUBFS X X

MPE X X X
visã
ORVAM X X

ONG CONQUISTANDO A VIDA X Substituída


itor

SESPA X X X
a re

SEAS/SEASTER X X X

SEJUDH X X Substituída

SEDUC X X X
par

SETRAN X Substituída

SESMA X X
Ed

SINDMEPA X X

SOPAPE X X Substituída
ão

CRP 10 - - X

COSEMS - - X
s
ver

CORPO BOMBEIROS - - X

CAPITANIA DOS PORTOS X X X

Obs: A CPAOR - Passou a integrar a comissão estadual na condição de colaboradora.

Fonte: SANTOS, 2017.


260

Os membros da CEEAE têm atribuições específicas elencadas nas por-


tarias estaduais, tais sejam:

1 - Definir a política pública estadual para enfrentamento aos acidentes de


motor com escalpelamento em embarcações do Estado do Pará;
2 - Contribuir com a atividade de capacitação e monitoramento dos comitês
de enfrentamento ao escalpelamento;

or
3 - Participar das ações de conscientização pública, campanhas de preven-
ção, oficinas técnicas, seminários e outros eventos pertinentes;

od V
4 - Elaborar o plano de trabalho da comissão;

aut
5 - Apresentar ao final de cada ano relatório das atividades individuais
desenvolvidas por cada entidade ou instituição para que o integre ao

R
relatório final dos componentes da instituição (SESPA, 2016 apud SAN-
TOS, 2017, p. 50).

o
Santos (2017) lembra que paralela à criação da Comissão Estadual, foi
aC

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proposta, como força de lei, a criação dos Comitês Municipais de Combate
e Prevenção aos Acidentes com Escalpelamento, os quais devem funcionar
como suporte à CEEAE. A autora afirma que a criação desses comitês nasce
visã
da compreensão da necessidade de participação da comunidade local, bem
como dos diversos atores envolvidos no combate aos acidentes com escalpe-
lamento nas diversas localidades.
A atuação da Comissão, não é e nem poderia ser isolada. Ao longo dos
itor

anos a CEEAE atua em conjunto com a esfera municipal, para que os dife-
a re

rentes municípios criem seus comitês municipais. Até o ano de 2013 haviam
sido efetivados 36 comitês municipais, cuja função é:

Realizar campanhas de Prevenção, articular audiências públicas em con-


par

junto com os Poderes Legislativo e Executivo, Ministério Público e socie-


dade civil, no sentido de propor alternativas e medidas de prevenção e
Ed

combate ao escalpelamento; promoção de treinamento aos barqueiros


sobre medidas preventivas e ações de cobertura de eixo, em parceria com a
Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (PORTAL SENTINELA, 2013
ão

apud SANTOS, 2017, p. 52).

Além de atuar nas esferas municipal e estadual, a Comissão é composta


s

por diferentes entidades que, em conjunto, constroem as ações de enfrenta-


ver

mento ao escalpelamento, bem como trabalham em prol do aprimoramento


da assistência às vítimas.
Dentre os recentes avanços conquistados pela CEEAE está o fim da exigên-
cia de legalização das embarcações para colocação da proteção do eixo do motor.
Tal medida é fundamental e sinaliza mais um passo na direção da erradicação
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 261

do escalpelamento, pois, muitas das embarcações ribeirinhas são clandestinas


e podia haver certo receio dos barqueiros em sofrer alguma retaliação.
Apesar dos avanços, a colocação da proteção dos eixos de motor ainda
se configura como um desafio, visto que é difícil o acesso a diferentes loca-
lidades de nosso estado, bem como o mapeamento de todas as embarcações
que necessitam de cobertura do eixo de motor, além das dificuldades de cons-
cientização da população para a necessidade de cobertura desses motores já

or
utilizados e a adoção de novos motores para as novas embarcações.

od V
Abaixo, imagens da cobertura e de sua colocação no eixo de motor:

aut
Imagem 1 – Parte superior e inferior de cobertura
protetora de eixo de embarcação

R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã

Imagem 2–- Parte inferior da cobertura protetora de eixo de embarcação


itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Fonte: Fundacentro, 2010 apud Oliveira 2016.


262

A colocação da cobertura é uma ação importante, que tem contribuído de


forma significativa para a redução dos acidentes, mas para sua maior eficácia
é necessário que todos os atores envolvidos no combate ao escalpelamento,
a nível nacional, estadual e municipal atuem em conjunto, de forma articu-
lada, em prol da defesa da população ribeirinha para mitigar e um dia de fato
erradicar o acidente de motor de barco com escalpelamento.
Ao mesmo tempo, a Comissão é responsável também pela construção

or
de ações que promovam orientações aos barqueiros, que contribuam com a

od V
capacitação e monitoramento dos comitês municipais, dentre outras, sendo

aut
responsável ainda pela construção de políticas públicas para o enfrentamento
ao escalpelamento. Desempenha, portanto, papel fundamental em nosso con-
texto no sentido de garantia de direitos e promoção de saúde.

R
A inserção da Psicologia nesta Comissão, através do Conselho Regional
Pará/Amapá (CRP 10), é um marco importante para a categoria profissional

o
que há tanto tempo atua com essa demanda e sempre é convocada aos debates
aC
sobre a temática, e agora tem voz e representação na construção de políticas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


públicas efetivas em prol dessa população, tanto no sentido de garantir uma
assistência integral em saúde, como trabalhar em prol de que cada vez menos
pessoas precisem dessa assistência, e esta mancha de sangue nos rios de nosso
visã
estado possa ser erradicada.
A CEEAE completa 10 anos em 2018, e nesta primeira década de atua-
ção conseguiu construir junto aos diferentes atores envolvidos no combate ao
itor

escalpelamento ações importantes que resultaram em significativas conquistas


a re

em prol da população ribeirinha. Os desafios e dificuldades não foram poucos


e precisam continuar sendo enfrentados, sendo importante o fortalecimento
da Comissão, não no sentido de centralizar as ações, mas sim de potencia-
lizá-las de forma descentralizada, convocando para o debate a população e
assim construindo estratégias cada vez mais efetivas visando à erradicação
par

do escalpelamento, e uma assistência de fato integral à população que ainda


Ed

é vitimada por este trágico acidente.

Considerações finais
ão

O acidente de motor de barco com escalpelamento é uma questão de saúde


pública, da qual o poder público se alijou por muito tempo. É apenas a partir
s

dos anos 2000 que o enfrentamento ao acidente e a assistência às suas vítimas


ver

configura-se como uma política pública, uma política de estado, com duas prin-
cipais frentes: a assistência integral às vítimas de escalpelamento, através do
Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (PAIVES); e
o a prevenção do acidente, que tem como principal referência a Comissão Esta-
dual de Enfrentamento aos Acidentes de Motor com Escalpelamento (CEEAE).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 263

Muitos avanços foram conquistados quando as ações deixaram de ser


iniciativas isoladas de um hospital ou de algumas Organizações Não Gover-
namentais (ONGS), e passaram a se configurar como política pública, como
dever do Estado. Através das ações articuladas no SUS, o número de aciden-
tes com escalpelamento reduziu 48% em 10 anos, de acordo com os dados
de Santos (2017). Além da ampliação, e estruturação da assistência visando
atendimento integral às pessoas que haviam sido vitimadas pelo escalpela-

or
mento e às novas pacientes, de novos acidentes que ainda acontecem, e que

od V
hoje recebem atendimento de forma bem mais ágil e eficaz.

aut
Em um contexto de tentativa de desmonte do SUS faz-se urgente fortale-
cer estratégias como essas, lutar para que essas conquistas não sejam negligen-
ciadas, mas sim ampliadas para que se alcance então a necessária erradicação

R
dos acidentes de motor com escalpelamento. Deste modo, a atuação da Psico-
logia tanto no PAIVES, como na CEEAE precisa estar comprometida com o

o
compromisso ético-político da profissão, na luta por uma assistência integral
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e humanizada em saúde, que junto às demais categorias profissionais, atores


e entidades envolvidas se lute em defesa da população ribeirinha, em defesa
do SUS, de um SUS efetivo, universal, gratuito, integral e descentralizado.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
264

REFERÊNCIAS
GUIMARÃES, A. G. M.; BICHARA, C. N. C. O Processo de Construção
de Políticas Públicas em Prol do Ribeirinho Vítima de Escalpelamento na
Amazônia. Conhecer: Debate entre o Público e o Privado, v. 1, p. 1-33, 2012.

or
OLIVEIRA, L. S. Escalpelamento: Política Pública para a população invisível.
In: R. Defensoria Públ. União. n. 9, p. 479-496, jan./dez. Brasília, DF, 2016.

od V
aut
PARÁ, Governo do Estado. Guia Técnico do Programa de Atendimento
Integral às Vítimas de Escalpelamento – PAIVES. Fundação Santa Casa de
Misericórdia do Pará, 2008.
R
o
PARÁ, Governo do Estado. Plano Estadual De Enfrentamento Aos Acidentes
aC
De Motor Com Escalpelamento. Diretoria de Políticas de Atenção Integral à

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Saúde, 2017/2018.

SANTOS, L. M. Prevenção para redução aos casos de acidentes com escal-


visã
pelamento no estado do pará através de ações públicas. Tese. Universidade
Internacional Três Fronteiras, Paraguai, 2017.
itor

SPINK, M. J. P; MATTA, G. C. A prática profissional Psi na Saúde Pública:


a re

configurações históricas e desafios contemporâneos. In: SPINK, M. J. P (org.).


A psicologia em diálogo com o SUS: prática profissional e produção acadê-
mica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
par
Ed
s ão
ver
CLINICAL INTERVENTION
FOR EMBODIED SYMPTOMS
BY DEPRESSION

or
od V
Adelma do Socorro Gonçalves Pimentel

aut
Lorena Schalken de Andrade
Aide Esmeralda López Olivares
Lucivaldo da Silva Araújo

Introduction

R
o
aC
We consider that depression can be a manifestation in several mental
pathologies such as a non-unique to exclusive psychodiagnostic symptom.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

For depression, there is not, [...] “a valid and reliable clinical picture, recog-
visã
nized and legitimated by most professionals”, due to the wide range of [...]
“symptoms that, despite some consensus, no discrepancies have been found
in the nosography” (MELO; SIEBRA; MOREIRA, 2016, p. 22).
Therefore, we established in the text that our interest would be on depres-
itor

sion as a manifestation of changes in humor, mood, motivation, temporal


a re

enchantment for life. And specifically for its psychosocial genesis. Thus, after
contextualizing the theoretical and methodological fundaments of the clini-
cal understanding, we have described the dynamics of a workshop held in a
school clinic to provide ten adult participants with experiences of rediscovery
par

of the body affected by depressive symptoms.


According to DSM-V (2003), a depressive episode may be character-
Ed

ized for a minimum period of two weeks, when the individual presents loss
of interest or pleasure for almost all activities, causing losses to the social,
professional functioning, as well as to other relevant areas of life. Among the
ão

various factors, depression may be caused by a chemical imbalance in the


brain, genetic heritage, psychological characteristics and/or stressful emotional
situations (DALGALARRONDO, 2000).
s

We also observed that, the understanding shared by professionals working


ver

in the mental health field, aligned with the principles of psychiatric reform,
has long since moved away from the notion of “mental illness”. From this
horizon, depression or any other nosological picture associated with mental /
psychic suffering can be understood as a condition, a state, a mode of being.
Therefore, the setting of depression as a disease can induce the health profes-
sional to guide his intervention, through a classic reductionist view, remaining
in the field of the pathologization of human suffering.
266

In this way, we establish that, in the text, our interest is for the human
suffering of those who experience depression, as an existential condition that
manifests itself through changes in mood, motivation, and temporal charm
for living. We are interested by the psychosocial genesis of that condition.
Therefore, we describe the dynamics of a workshop based on the theoretical
propositions of Gestalt-therapy, held in the psychology clinic of the Federal
University in the Northern Region of Brazil, which favored 10 adult partici-

or
pants rediscovering experiences of the body affected by depressive symptoms.

od V
The Gestalt-therapy workshop was a form of intervention that allowed

aut
us to think about the contemporary clinic considering the social, the political,
the difference, the diversity, as well as bringing psychotherapist and client
closer to the boundaries of the human condition by practicing the uncondi-
tional respect to the other.
R
o
Psychosocial genesis of depression
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


During the process of sociability, schooling becomes an important dimen-
sion in the experience of becoming oneself; at the same time, in subjectiva-
tion processes, self-love or self-esteem and self-concept are two bases that
visã
contribute for the mental health, and the creative adjustment of people during
their life cycle, [...] “When self-esteem is not part of people psychic structure it
contributes to depression” (BRITTO, 2006 p 16). Furthermore, we understand
itor

that becoming oneself is a condition anchored to the existential philosophy


a re

and recognition of otherness.


According to Ruiz et al (2015), [...] “low self-esteem correlates with irratio-
nality, blindness before reality, rigidity, fear of anything new and unfamiliar, exces-
sive conformity or controlling and fear or hostility in relation to other people”.
par

When people with depression gets sick, our supposition is that indica-
tors found in the pathology psychosocial genes may generate dysfunctional
Ed

psychological symptoms manifest in the body experience, elaborated through


chronification of introjections. Such evaluation is based on the Gestalt point
of view (PERLS, 1997, 2002; PIMENTEL, 2003, 2005; SCHNEIDER, 2009),
ão

and Ehrenberg’s conception (1998; 2004).


Introjections are strategies of the human body to grasp the world. They
quickly integrate the processes of sociability and subjectivation. When associ-
s

ated to procedures of assimilation, that implicates the selection of nutritious food


ver

considered support for self-esteem, the introjections cultivate the creative adjust-
ment. The difficulties in apprehension begin when they become recurrent means
of worldly contact, with the individual unable to achieve a selective action of food
that shapes the self, which favors the dysfunctional adjustment expressed in depres-
sion, and other types of illnesses. (PERLS, 1997, 2002; PIMENTEL, 2003, 2005).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 267

According to Oliveira (2015, p. 53), Ehrenberg’s conception of psycho-


social genes states that:

Depression would be a signal of an important social transformation: the


passage from a society concerned with discipline (interdiction, obedi-
ence, authority, etc.) to a society under the primacy of autonomy, that is,
the decision and personal action. Depression, besides being a problem

or
of individual or collective health, would represent a pathology of the
autonomy society. The norm in the contemporaneous world is to be able

od V
to demonstrate individual efficacy, social recognition and economic ascen-

aut
sion. However, individual and public success demands more and more
tools: the ability to communicate, negotiate, motivate and manage time.

R
In this respect, the individual winner is also a burden for oneself, divided
between satisfactions for achievement and suffering from individualism.
The achievement of autonomy is joined by psychic suffering.

o
aC
From this point of view, depression is a pathology that originates from
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

oppression provoked by economic culture, centered on the reformulations


of capitalism, that is manifested in corporeality and psychism (STEIN, et
al., 2010; MELO; MOREIRA, 2008).
visã
As for the body, Queiroz (2010, p. 15) mentions that Freud’s researches
on hysteria permitted him to “reveal the existence of a symbolized body that
coexists in the somatic body, so that psychic symptoms without organic causes,
itor

may materialize in an incarnated body”. In our experience, we have observed


a re

that the alluded symptoms have resulted in rigidity of body movements, as if


one had “forgotten” to live bodily emotions, confining the body in a posture
oriented by an exacerbated rationality.
Barco (2012, p. 3) presents Husserlian notions of Leib and Korper. Both
of them refer to the animated body of a living organism, and the inanimate
par

body, [...] ”The self-conscience of the body that Leib reveals it as “the local
Ed

where sensations originate”.


With that aim, we describe a clinical intervention to provide care for
adults of both sexes with depression symptoms in a school clinic. It is an
ão

interdisciplinary proposal that prioritizes and focuses on embodied symptoms


of depression, specially mistrust, ugliness, dirty, fear of appearing before
other people (PIMENTEL, 2016).
s

The clients assisted at the clinic revealed: low-esteem, self-described as a


ver

failure; mistrust people who are open to love them, due to an “ugly” aesthetic
body look and not in harmony with beauty patterns, and the perspective of having
dirty thoughts about sexuality and desire. These symptoms cause alterations in
the perception of the body mediated by intentionality to “protect him/her” (and
the self/ego) and in the anguish to prevent that one’s weaknesses” of intimacy
268

are revealed. Thus, living a set of the previously mentioned signals implicates on
the gradual loss of autonomy caused by reduction of contacts and social relation-
ships, arisen from a vision of the world based on fear of being judged by others.
Therefore, living these symptoms implies in expression beyond the physi-
cal body manifesting itself symbolically through body movements, gestures,
actions, posture, as well as dressing. To Zuchi (2016, p. 70)

or
The Brathesian body is not built on your skin only, dressing, much more than
expression is the extension of the body. Clothes shape it, transform it and

od V
deform it - they are part of your materiality and not only of your discourse.

aut
Without needing a genderized understanding, in our experience, we

R
observed that to our clients, protection of the body was done by wearing
loose and worn clothes, thicker beard, uncombed hair, lack of general care

o
to look attractive etc.
aC

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Embodied symptoms of depression

Living the symptoms of depression denotes an inseparable relation


visã
between the states of the body and conscience that the patients manifested
about living the embodied feelings. Therefore, to understand them requires
the notion of complexity:
itor

[...] if we try to think about the fact that we are physical, biological, social,
a re

cultural and spiritual beings at the same time, it is evident that complexity
is whatever tries to conceive the articulation, identity and the difference of
all these aspects, while the simple thought separates these different aspects,
or unifies them through a mutilating reduction. (MORIN, 2005, p. 176-177)
par

Through the complexity way, one may consider that the human being
Ed

in its embodiment is not only the physical body, but also an integration and
manifestation of different areas. The body as an integral concept is a definition
of anthropologist Leila Parker (1997), who understands that there is a relation
ão

between the physical structure, the biochemical processes and the spiritual
and physic events of the human being.
Therefore, the influence between body and state of mind and vice-versa
s

may mean that sensorial stimulation acquires a relevant importance in the


ver

human being’s development. Consequently, during the integral treatment of


people with depression, by boosting sensory stimulation through workshops
of corporal living involving artistic language, dance, photography, clay mod-
eling, among many activities, one may promote new perceptions of self, and
wellness living. (BIÃO, 2007)
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 269

To Kepner (1992, p. 93), “The cycle of experience begins with sensation:


body feeling, organic drives and wants, images, thoughts, perceptions of the
environment” ”. In the perspective of integration between mind and body,
one may understand an existing articulation between mental and body health,
enabling a glance at the human complexity, understanding that:

[...] the conditions of our body may influence the state of our mind. There-

or
fore, it is fundamental that we take care of our body health to permit our

od V
mind to develop in its entirety, and vice-versa so that we have mental health
to be able to enjoy the capabilities of our body. (SANTANA et al., 2015. 133)

aut
Therefore, in the flux of experience, if by changing a conversation one

R
may change emotionally, that, in analogy with body movement, one may
consider that by moving the body differently, one may drive a distinct emo-

o
tional mobilization.
aC
Rodríguez, Portillo et al (2015) developed psychotherapeutic interven-
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tion for three groups of people with chronic dysthymia who resisted moni-
toring, in a Community Mental Health Unit. The participants were clients
with symptoms of sadness, apathy, crying, anxiety about the past, present
visã
and future, feeling of powerlessness, somatization, insomnia and isolation
for at least two years. The workshops aimed to proportionate and autonomy
and preparation for discharge from the health unit. Care was provided after
itor

verbal interventions using systemic and psychodramatic techniques. Among


a re

the results achieved, the players observed a decrease in suffering in relation


to feelings of worthlessness, neglect, and powerlessness, as well as the pos-
sibility of empowerment to search for life alternatives.
Ferreira, (2014, p. 11) conducted an intervention that consisted of eight
one-hour group sessions in a Center of Psychosocial Attention (CAPS in Portu-
par

guese) for tem adults aiming to “stimulate natural mechanisms of prevention of


grievance and health recuperation”. The group facilitation included “audio-visual
Ed

material, posters, explanatory leaflets, walking; vegetable garden group; healthy


culinary group oriented by a nutritionist”. The results achieved included “ben-
ão

efits for the physical, mental, social and spiritual state of the users of CAPS”.
Continuing the genesis psychosocial characterization of the embodied
symptoms of depression, we situate some synonyms of disorder to express
s

the phenomenological complexity that may be present in living: “setback,


ver

inconvenience, disturbance, alteration” (FERREIRA, 2010). Associating the


meanings to the field of mental health we began to understand depression as
an emotional turmoil, where the life experience of affection is characterized as
oscillating affixing a feeling of low-esteem and “failure” in the psychosocial
adapting process to the place where the individual lives; and the distancing
270

from the person’s “ideal model”, dependent on consumption fads. For the
body, the emotional turmoil is manifested as hunched body posture, drooping
shoulders, avoidance of eye contact
Under this circumstance, we suppose that emotional turmoil is affected by
the logic designed in Lipovetsky (2005) of consumption as a social marker and
“emotional consumption”, born from demand for new affectionate, imaginary
and sensorial experiences ” (OLIVEIRA, 2015, p 50), since the self-perception

or
of feeling is regulated by the excess and quickness, by fear of feeling.

od V
aut
Methodology
Ten adults from the waiting list participated of the workshop held at the

R
clinic. The focal interventions aimed to offer experiences of rediscovery of the
body, affected by depressive symptoms. The clients who went to the school

o
clinic had been receiving interdisciplinary attention, according to their complaint.
aC
Therefore, during the workshop, the participants had access to a psychologist,

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psychiatrist, social assistant, physical education professional, and the art therapist.
In public services, basic attention to mental health, besides the psycholo-
gist, psychiatrist, the family doctor “[...] it is of great importance, attendance in
visã
an interdisciplinary way, where the entry door is made easy through the perfor-
mance of nurses, nurse technicians and health agents” (AMORIM, 2015, p. 5).
Our aim was to offer 10 adult clients, age 20-50 years, self-identified and
itor

diagnosed with depressive disorders, a workshop divided into 10 two-hour


a re

sessions. The number of interventions was decided during staff meetings,


considering that in the psychology clinic hearing and mitigation of human
suffering, specially, at psychological, bodily and psychopathology dimension
are basic activities that ten sessions would permit to focus intensively, on
bodily symptoms, and achieve the participants’ involvement and awareness.
par

It was decided that the clients undergoing psychotherapy should adhere


spontaneously to the workshop; also included was the signature of the thera-
Ed

peutic contract; psychiatric monitoring; the clients excluded should not have
the presence of recurrent suicidal ideation, should not be undergoing any
psychotherapy treatment, and be less than 20 years of age.
ão

Our conjecture was that manifest bodily intensive symptoms favored


awareness and the fluidity of bodily experience. Finally, the premise that the
s

body symptom is a manifestation of existence, a condition, not a state that


ver

reduces the intrapsychical and neurobiological dimensions; therefore,

“[...] we may say that clinical procedure includes an analysis of the social
context where the individual is placed. Therefore, the theoretical background
ceases to occupy the main guiding space of practice, which starts to be
occupied by the psychologist’s ethical commitment” (DUTRA, 2004, p 382).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 271

To identify the workshop participants, the entry door was the triage done
by psychology student trainees in the school clinic. Based on the clients’ data-
base, we selected those who manifested depressive symptoms; Furthermore,
we did a clinical interview with the staff Psychologist for medical history,
therapeutic contract and presentation of the workshop design.
In addition, we conducted a psychiatric evaluation and the integration
of contributions by the physical education professional and the art therapist,

or
considering that during the intervention we prioritized the approach of the

od V
physical symptoms of depression.

aut
It is important to remember that basic healthcare staff considers biochemi-
cal genese of depression as a dysfunction in the central nervous system that
decreases serotonin and noradrenaline levels (BRITTO, 2006). However, dur-

R
ing the workshop, we do not partake health actions that recommend “humor
therapy” of conditions of sociability and uses of self through pharmacology”

o
(OLIVEIRA, 2015, p. 14). After all, we were not interested in the “manage-
aC
ment of the self in search of self-realization, improvement of self, pathologiza-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tion of the difference, without space for alterity” (OLIVEIRA, 2015, p. 47).
The group sessions involved the use of several languages: verbal, relax-
ation, artistic: drawing and modeling. The activities were supervised by a
visã
psychologist and an art therapist who also conducted the meetings and did
the group facilitation. The sessions were recorded in audio and transcribed.
Following the therapeutic work, the staff gathered to listen to the tapes and
itor

elaborate the most important themes that arose from the workshop, mainly:
a re

distrust, ugliness, fear of appearing before others. The next step consisted
in organizing the categories that synthetized the themes that emerged: Self-
awareness, Breathing, Creation, Interaction, Integration (PIMENTEL, 2003).
During the sessions, we worked jointly all themes proposed in the group
forming a continuum of clinical interventions, starting with presentification,
par

self-awareness, integration and elaboration of the experience meaning. The


Ed

participants lived corporeity through elongation, foot to head self-massage;


sensation perception, breathing and body tension liberation.
The physical procedures consisted of: recognition and exploration of
ão

space, laying on the ground, recognition and contact with each member of
the body. Shake, move arms and legs up and down; push shoulders and backs
backward. During the first two sessions the question to be answered was: What
s

is the digital printing of my body?


ver

Results

In the group room, at the clinic, the interventions alternated proposi-


tions such as to try to place the body standing upwards, inclined and laying,
272

according to the limitations of each participant. In all sessions, we worked


breathing and integral body stimulation, elongation and self-massage in order
to facilitate perception that they had from sensations acquired from contacting
the ground, from self-contact and contacting the other participants
Special attention was given to breathing, because it is fundamental to
achieve tranquility and make decisions. We asked each participant to lie down
and close their eyes, stretch their legs, place their hands on the abdomen and

or
follow the breathing movements, inhaling and exhaling in three movements.

od V
This action was also performed with bended knees, and while standing, inhal-

aut
ing and throwing the arms upwards; when releasing, exhale and emit sounds.
At the end of the session, each participant made an evaluation on how they
felt before, during and after the process.

R
The creation stage was started during the fifth session. We asked par-
ticipants to create movements with their bodies. The question that guided the

o
interventions was: How to shape what you are feeling right now? To answer
aC

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it we asked them to walk around the room, exchange glances with people
perceiving what each participant was transmitting; perform movements based
on the music they were listening to; imitate other participant’s movement;
choose their own movement and that of the other participant with whom they
visã
identified, and then join the chosen person to dialogue.
During that session clay was introduced to create shapes that expressed
sensations, and the feelings that assailed the participants when they had been
itor

affected by depressive symptoms. After modeling a talking circle was formed


a re

and the participants talked about their experiences. During the interactions
continued to perform: elongation; self-massage; body shaking, walking, exag-
geration of this movement.
On the eight session we began to favor integration and the elaboration of
par

the sense of participation in the workshop to benefit an updating of the psy-


chosocial components that act in living with depressive symptoms. The most
Ed

important interventions were elongation; self-massage, massage performed


in pairs; performance of small mediations on how the colleague should walk,
in a very subtle way, without conducting him/her. The main point was the
ão

talking circle on the singular and intersubjetive ways to live a depression.


To end the narrative, we presented a summary of the indicators presented
by the participants, during the workshop, on how to self-recognize the mean-
s

ing of body symptoms when a depressive “crisis” started:


ver

Pain: I felt pain in the spinal column. I associated this pain and its loca-
tion with depression, my illness (Maria, 32 years)
• Supposition: the symptoms were manifested in my body through eye-
contact avoidance, stiff shoulders, physical contact intolerance, limited
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 273

availability to close the eyes; punctuated breathing, and difficulty to keep


the spinal column straight. (Lauro, 40 years);
• Dirtiness: besides my poor personal hygiene, I sometimes had the impres-
sion that my body was compressed, as if it were being crushed, I could not
make wide movements; There was body tension on my neck and shoulders;
(Marcelo, 35 years);
• Fear of appearing: I had little enthusiasm to perform physical activities

or
or any task that involved the use of my body; My body movements were
usually small, my body posture presented lack of control and power, mani-

od V
festing weakness; sometimes, when I walked my trunk inclined forward.

aut
(João, 38 years);
• Ugliness: Most of the time, I felt my body was ugly. I felt uncomfortable
and was unable to relax; my movements were many as if I were too anx-

R
ious, and kept changing from place to place quite often; I felt my body
heavy, and had little energy; I was also intolerant toward physical contact.

o
(Raimundo, 25 years)
aC
• Muscle pain: whenever I started doing body elongation, I complained a
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lot because I had pai, as if I had forgotten my body. During the workshop
I began to remember it and started moving (Joana, 26 years).
visã
Final considerations
Even though we have and are a body, in their daily life, the participants
seemed to have forgotten self-care and their bodily needs. They evaluated
itor

the workshop as an important clinical action for their psychosocial treatment,


a re

mainly due to the elaboration of living in group. An opportunity to express


difficulties, sociability and affection exchanges without fear, using several
languages (Lauro, 40 years).
It is considered that the interdisciplinary work and the perception of
par

integrated body to living the symptoms permitted the participants to recognize


themselves in the world, by relating to each other based on their meanings,
Ed

which gave the group moments of self-perception, self-care and listening.


Therefore, it is possible to understand that the sessions of bodily work con-
tributed to the elaboration and assimilation of meanings expressed in the body.
ão

Our experience corroborates that of Wolfarth (2014, p 13) who created


a protocol to perform CAPS workshops. In the interdisciplinary psychothera-
peutic work, “It is very important to create, observe, listen, be aware of the
s

life complexity of each person that is much more complex than the disorder,
ver

which is sometimes treated as a whole”.


Recognition of oneself and of other people favors the elaboration of a
meaning of the body beyond physical symptoms and habits. Integral treatment
of depression is a great challenge, mainly to unify conscience to intentionality,
resulting in lived experience of people identified with life.
274

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ver
ver
Ed
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par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
UM ESTUDO SOBRE A PSICOLOGIA NAS
RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS
EM SAÚDE NO PARÁ: produções de

or
sentido, resistências e transformações

od V
aut
Gabriela Di Paula Dias Ribeiro
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira

R
Márcio Mariath Belloc

o
Introdução
aC
A multiplicidade e pluralidade que permeia o saber psicológico se esten-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

dem para a diversidade de áreas de atuação que a psicologia possui, as quais


ampliaram-se no decorrer dos anos para além dos campos tradicionais como
visã
o clínico, escolar, industrial e o ensino com as demandas populacionais e
sociais (RECHTMAN, 2015; FRANCO, 2017).
Essas mudanças, em conjunto com o crescimento dos campos de atua-
itor

ção, ampliaram o olhar da psicologia para além da profissão autônoma, como


a re

um trabalho constituído de atitude política. A entrada da psicologia na saúde


foi influenciada por diversos fatores, como a reforma psiquiátrica; fruto do
movimento dos trabalhadores da saúde mental e do movimento da luta anti-
manicomial, ainda em vigor, tendo em vista os diversos entraves políticos e
par

sociais encontrados para manter estabelecido os direitos humanos consolida-


dos (OLIVEIRA; YAMAMOTO, 2014).
Ed

Após a 8º Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi proposto que o aten-


dimento psiquiátrico fosse realizado de modo integral, a partir de uma intervenção
multiprofissional. A partir desse momento, sua atuação passa a ocorrer em postos
ão

de saúde, ambulatórios especializados e em serviços como os Centros de Aten-


ção Psicossocial (CAPS); as emergências psiquiátricas e as internações seriam
atendidas em hospitais gerais (BOCK, 2009; OLIVEIRA; YAMAMOTO, 2014).
s

Ressalta-se que a atuação da psicologia em saúde, hoje em dia, abrange uma


ver

perspectiva ampliada com uma gama de possibilidades de atuação e intervenções


que envolvem o fortalecimento do SUS, bem como um fazer inserido nas políticas
públicas de saúde e têm diversas possibilidades de atuação e inserção no con-
texto da saúde coletiva. Atualmente, percebe-se que a psicologia ganhou espaço,
expandiu a sua área de atuação e a sua capacidade teórica e técnica para intervir.
Um dos espaços que a psicologia adentrou foram os programas de
residência multiprofissional em saúde. Gadelha et al. (2018) apontam que
280

a experiência da inserção da psicologia nos espaços de saúde, a partir da


residência multiprofissional, propicia a subversão da lógica eminentemente
individualista, para uma ampliação das práticas psicológicas na saúde, haja
vista, as múltiplas demandas da comunidade e dos diversos espaços de atua-
ção. Uma formação coletiva inserida no cotidiano do serviço em saúde requer
uma atenção integral, envolve saberes que se intercruzam a fim de dar conta
da complexidade da pessoa que busca assistência e exige disponibilidade dos

or
diversos profissionais que compõem o cuidado em saúde.

od V
Neste sentido, a inserção da psicologia em programas de residência mul-

aut
tiprofissional em saúde tem a potencialidade de promover uma expansão das
práticas psicológicas, além de ampliar o conhecimento acerca do fazer da
psicologia por outros profissionais da saúde e contribuir no agir em saúde da

R
psicologia a partir da multidisciplinariedade.
Este texto apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado, construída

o
junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do Pará no período de 2018-2019, que discute a contribuição da residência
multiprofissional em saúde para a formação da psicóloga17 na atenção em saúde
no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), analisa-se como vivenciaram
tal formação nesse campo. A pesquisa propõe a investigação dos sentidos e
visã
significados atribuídos por psicólogas residentes egressas acerca das suas expe-
riências em programas de residência multiprofissional em saúde, na cidade de
Belém do Pará, e sobre o conhecimento estabelecido na sua formação para atuar
itor

frente a atenção aos usuários. São questões essenciais para refletir-se acerca
a re

dos caminhos da formação da psicóloga no Pará e na Amazônia Brasileira.

Metodologia
par

O método utilizado foi o clínico-qualitativo que preza pelo ambiente natu-


ralístico, pelo processo investigado, apresenta achados descritivos e tem como
Ed

fundamental os sentidos e os significados que são apreendidos a partir de uma


atitude clínica acolhedora (TURATO, 2000). Participaram desta pesquisa 07 (sete)
psicólogas residentes egressas e 01 (um) psicólogo residente egresso, todos con-
ão

cluintes de programas de Residências Multiprofissionais em Saúde, localizados


na cidade de Belém do Pará, selecionados por meio da amostragem não probabi-
lística “bola de neve”, que trabalha com cadeias de referência (VINUTO, 2014).
s

No caso, a seleção foi realizada por acessibilidade por meio de informações de


ver

17 Pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia em 2012 acerca de quem é a psicóloga brasileira
aponta que dos 232 mil profissionais em exercício 88% são mulheres, ou seja, a Psicologia brasileira é
proeminentemente feminina (LHULLIER; ROSLINDO, 2013). Ademais, neste estudo entrevistou-se 7 psi-
cólogas egressas e 1 psicólogo egresso, por isso a decisão de utilizar o feminino ao invés do masculino ao
discorrer acerca da formação da psicóloga.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 281

residentes egressos que indicavam outros egressos e assim, por conseguinte e que
estivessem dispostos a participar da pesquisa. Ademais, os participantes precisa-
vam ser psicólogas e psicólogos formados no estado do Pará e ser concluintes de
residências multiprofissionais em saúde dentro do mesmo estado da federação. O
encerramento da coleta foi por saturação teórica, que ocorre a partir da cessação
de inclusão de novos participantes quando os achados obtidos atingem o objetivo

or
da pesquisa (FONTANELLA et al., 2011; FUSCH; NESS, 2015).
As entrevistas com as (os) residentes egressas (os) só foram realizadas

od V
após aprovação desta pesquisa perante o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da

aut
Universidade Federal do Pará – UFPA, sob o parecer nº 3.118.150. Os partici-
pantes foram selecionados, primeiramente, por acessibilidade, a partir de infor-

R
mações, e conforme os critérios de inclusão. Após a coleta dos dados de cada
entrevistada (o) foi solicitado a indicação de outras (os) possíveis participantes.

o
Para a interpretação dos dados foi utilizada a análise de conteúdo de
aC
Bardin (1977), composta por algumas etapas, neste caso, com a finalidade
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

básica à busca do significado de materiais textuais a partir de inferências. Os


resultados e discussão apresentam-se a partir de 04 (quatro) núcleos temá-
ticos principais, que foram construídos, principalmente, a partir do que foi
visã
comum entre os discursos dos participantes da pesquisa: 1) ser residente
multiprofissional a partir da compreensão de psicólogas; 2) a residência mul-
tiprofissional: fomento para intervenções multiprofissional, interprofissional
itor

e transdisciplinar; 3) a atuação da psicóloga e a residência multiprofissional


a re

em saúde; 4) o modelo biologizante: desafios encontrados pelas psicólogas


na vivência multiprofissional em saúde.

Resultados
par

Ser residente multiprofissional a partir da compreensão de psicólogas


Ed

Para as psicólogas egressas e o psicólogo egresso entrevistado ser resi-


dente multiprofissional em saúde apresenta-se como um lugar não definido
ão

e, por consequente, há dúvidas sobre esse papel, que em muitos momentos


pode ser vivido como potente e/ou, simultaneamente, vir a ser desastroso. A
compreensão do papel do residente multi18 pelos próprios residentes, pelos
s

coordenadores, preceptores, tutores, equipes profissionais, entre outros atores


ver

da saúde, demonstra-se primordial para o funcionamento efetivo desse ator,


que, concomitantemente, assume uma postura de profissional e de aprendiz
ao ocupar esse lugar dentro da área da saúde.
18 Será utilizado o termo residente multi para falar sobre o residente de uma residência multiprofissional em saúde.
282

Denominar um residente multi de ator/aprendiz reflete o lugar que todos


os profissionais da área da saúde deveriam ocupar. Os trabalhadores da saúde
se deparam com a complexidade dessa atuação e devem aprender constante-
mente uns com os outros, com os usuários, com os familiares, com o serviço
de limpeza, de segurança e os demais que fazem parte dos espaços de saúde
(MERHY, 2013). Estar disponível para ser profissional de saúde é, neste
sentido, ser constante aprendiz e construtor de trocas cotidianas, de possibi-

or
lidades inesperadas que envolvem o fazer saúde. É estar apto a compreender
e reconhecer o fazer do outro (MERHY; FRANCO, 2008; MERHY, 2013).

od V
Espera-se que esses profissionais nunca estejam prontos e acabados, pois,

aut
no campo da saúde, a atuação requer lançar-se na dimensão do inesperado,
das relações humanas. Lançar-se ao encontro de diversas subjetividades que

R
compõe essa teia, que é construída constantemente e exige uma não rigidez.
Neste sentido, as psicólogas egressas e o psicólogo egresso da residên-

o
cia multiprofissional em saúde trazem as convergências e divergências que
aC
permeiam o lugar de ser residente multi. Marcam o papel de ser residente

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


multi como um lugar de saber e não saber, como um espaço que, às vezes, é
de autonomia na sua atuação, mas que também em outros momentos não o é,
a depender do contexto no qual está inserido e dos seus superiores, conside-
visã
rando que de acordo com as egressas e o egresso entrevistado fica evidente
a hierarquia que atravessa o fazer do residente. Além disto, observa-se que o
conhecimento e a disponibilidade do preceptor, tutor ou coordenador influen-
itor

ciam diretamente na aprendizagem e na prática dos residentes multi.


Nota-se que ser residente multi pode também significar nas vivências des-
a re

sas psicólogas egressas ser massa de trabalho: a residência multiprofissional


pode ser utilizada para suprir a lacuna de profissionais no serviço. Tal atitude
desvia o objetivo de um programa de residência. A função do residente multi
não é preencher a carência de profissionais no serviço ou de substituí-los ou
par

ser “mão de obra” e ser colocado no serviço somente para trabalhar de forma
indiscriminada. A educação em serviço, quando facilitada pelo preceptor de
Ed

campo e pela ação teórica por meio do tutor, deve promover um trabalho em
sua especialidade com o objetivo principal de uma atuação multidisciplinar e
interdisciplinar e com espaço para a aprendizagem se construir nesse cotidiano
ão

de fazer saúde (MENDES et al., 2011; CAMPELO et al., 2017). Outrossim,


tais questões evidenciam fragilidades sentidas por esses residentes na proposta
educativa que a residência multiprofissional em saúde se propõe.
s

Cabe evidenciar que a educação permanente está integrada ao processo


ver

de trabalho, valoriza os saberes e práticas sem impor uma hierarquia entre


educadores e educandos, haja visto que a educação, nesse sentido, é pen-
sada de um modo dialogado entre os diversos atores da saúde que agregam
diferentes conhecimentos e experiências nesse fazer saúde (SILVA, LEITE;
PINNO, 2014; FERLA et al., 2017).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 283

Por outro lado, como difundir a potencialidade pedagógica e política


dos programas de residência multiprofissional? Reflete-se que esses pontos
de tensão entre trabalho e ensino, entre ser estudante e ser profissional, entre
ser mão de obra e ser residente pode vir a ser uma ponte para a organização
de travessias e ligação entre aprendizagem e trabalho, entre o ensino e o
fazer cotidiano a fim de utilizar esses pontos de tensão para a transformação
do agir em saúde a partir do trabalho vivo em ato e de uma perspectiva da

or
micropolítica (MEHRY; FRANCO, 2008; FERLA et al., 2017).

od V
Nesse contexto, a micropolítica é como “ o plano molecular em que se

aut
efetuam os processos de subjetivação a partir das relações de poder, seria o
plano a ser analisado” (FEUERWERKER, 2014, p. 37), porquanto as práticas
de saúde são produzidas por atitudes humanas para além do seu cunho cien-

R
tífico são “atos produtivos” que geram mudanças no que está posto e podem
criar “algo novo” (FEUERWERKER, 2014).

o
A residência multiprofissional para os entrevistados configura-se como
aC
aquilo que movimenta e pode romper com modos instituídos de fazer saúde,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

numa desconstrução e ruptura com práticas antigas. Afinal, o trabalho morto


também constitui o fazer em saúde; todavia, é o trabalho vivo em ato com-
posto por tecnologias leves que transformam esse mesmo fazer e esse agir;
visã
que está nessa micropolítica cotidiana que traz uma perspectiva pedagógica
que aposta nesse movimentar, nesses pontos de tensões como possibilidades
em potencial de transformações (CAMPELO et al., 2017).
itor

É a partir do encontro, no campo relacional, que a comunicação pode


a re

existir, percebe-se que a compreensão acerca do papel do residente multi em


diversos momentos não está explícita para o residente e nem para o preceptor
e/ou tutor e isto demonstra uma comunicação não efetiva, uma falta de escuta
nesse encontro entre preceptor e residente.
Nesse sentido, é preciso um rearranjo efetivo no modo de o preceptor ou
par

tutor orientar e contribuir de forma eficaz para o aprimoramento do residente


Ed

multi a fim de cooperar com o ensino e desempenho do mesmo. No caso da


preceptoria, o papel do preceptor no processo de ensino-aprendizagem é visto
como o principal facilitador, considerando que a preceptoria está relacionada
ão

diretamente com a supervisão da prática e este preceptor precisa ter: “ [...]


conhecimento, bom senso, criatividade, e formação continuada.” (SILVA;
BROTTO, 2016, p. 886; CAMPELO et al., 2017).
s

Faz-se necessário o conhecimento a respeito da residência multiprofissional


ver

por parte dos profissionais que influenciam diretamente a aprendizagem do resi-


dente, já que, o preceptor ou tutor podem tanto ser uma ponte entre o residente
multi e a equipe de saúde, ou seja, podem vir a facilitar a integração entre os
residentes e a equipe do serviço, ou até mesmo dificultarem a efetivação dessa
aprendizagem e da inserção do residente no serviço (SILVA; BROTTO, 2016).
284

As psicólogas egressas demonstram também a vivência de uma falta de


capacitação técnica e pessoal do preceptor e dirigentes da residência multi-
profissional em lidar com o residente multi. É corroborada a relevância da
educação permanente do preceptor, do tutor, coordenadores e dirigentes como
um fator essencial para um melhor funcionamento da residência multipro-
fissional em saúde a fim de que este programa possa acontecer com todo o
seu potencial. Tais questões se desdobram na reflexão acerca do cuidado a

or
esse trabalhador de saúde, suas condições de trabalho, e na necessária educa-

od V
ção permanente para desenvolver às próprias tecnologias de cuidado, assim

aut
como sua transmissão aos residentes (COUTO; SCHIMITH; DALBELLO-
-ARAUJO, 2013; SILVA; BROTTO, 2016).
Dois dos entrevistados trazem como reflexão o papel dos gestores, não

R
somente frente à residência multiprofissional em saúde, mas também diante
desses profissionais de saúde e do adoecimento que pode também ser gerado

o
nesse fazer. Há também profissionais formadores, muitas vezes, destituídos
aC
da compreensão acerca da sua função frente ao programa de residência em

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saúde e/ou mesmo adoecidos diante das exigências e relações do trabalho
na área da saúde. É relevante considerar que existem diversas variáveis que
atravessam e constituem os processos de trabalho em um âmbito mais amplo,
visã
tanto social quanto conceitual, que se redobram em um contexto de ensino
em serviço, quando entra em cena a transmissão das tecnologias de cuidado
ali desenvolvidas.
itor
a re

A residência multiprofissional: fomento para intervenções


multiprofissional, interprofissional e transdisciplinar

A residência multiprofissional em saúde, segundo as egressas entrevis-


par

tadas e o egresso entrevistado, é uma forma de viabilizar o fomento para


práticas multiprofissionais, interprofissionais e transdisciplinares, consi-
Ed

derando que o contato diário e constante com uma equipe que possui uma
diversidade de profissionais de saúde requer do trabalhador uma abertura
para troca de experiências e conhecimento acerca de outros núcleos pro-
ão

fissionais e dos atravessamentos que esses outros saberes proporcionam.


Todos os participantes evidenciam o quão a residência cumpriu o seu papel
como um espaço de fomento para práticas que valorizam os múltiplos
s

saberes. Saberes que se sobrepõem entre si no sentido da integração, a fim


ver

de propiciarem uma atenção que contemple a complexidade do usuário e


do campo da saúde.
A compreensão da importância de cada área de conhecimento para um
cuidado integral, assim como o conhecimento entre si das especificidades e
a aprendizagem acerca do fazer do outro, foram os elementos cruciais para
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 285

construção de um campo potencialmente transdisciplinar. A troca de experiên-


cias na instrução do conhecimento, o ensino para o outro acerca da prática da
psicóloga, o conhecimento de quando e como o saber psicológico pode ser
útil no fazer de outro profissional, ou quando a psicóloga precisa também de
outros saberes para a produção de cuidado em saúde, mostram-se experiências
úteis para vivência do verdadeiro sentido da residência multiprofissional.
Desse modo, notam-se as transformações promovidas a partir do encontro

or
cotidiano de diversos profissionais, que promove mudanças à nível assisten-

od V
cial, que se movimenta de um modelo médico-centrado para um cuidado em

aut
saúde usuário-centrado; que envolve o modo como os profissionais de saúde
relacionam-se entre si e consequentemente produzem cuidado e um agir em
saúde integrado (COUTO, SCHIMITH; DALBELLO-ARAUJO, 2013).

R
Evidencia-se que a prática cotidiana nos espaços de saúde lança os
profissionais de saúde para um trabalho coletivo que envolve o campo da

o
multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: con-
aC
ceitos e práticas que primeiramente convidam os profissionais a ampliarem
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os seus olhares para além do seu núcleo disciplinar e a os aproximarem e/


ou reconhecerem a relevância de outros saberes disciplinares. A percepção
de como todos os saberes estão interligados, e de que em dado momento
visã
um deles pode gerenciar os outros, sendo que essa permuta dinâmica e
contextual, põe em evidência o movimento cooperativo de intercomuni-
cação sem subjugação e com a possibilidade de construção no decorrer
itor

do processo (LUZ, 2009).


a re

É evidenciado nas entrevistas que a aprendizagem na residência mul-


tiprofissional de uma prática de cuidado integral reverbera para além dos
dois anos de formação; aumenta a probabilidade desse egresso estender essa
vivência como uma experiência para as suas práticas futuras. O ressoar desse
olhar integral e holístico para o sujeito é transformador do trabalho em saúde.
par

É justamente na micropolítica do cuidado que se passa a garantir um atendi-


Ed

mento integral das pessoas (FEUERWERKER, 2014).


Para algumas psicólogas egressas a relação estabelecida durante a resi-
dência foi mais favorável entre os próprios residentes de outras categorias do
ão

que com a equipe de profissionais estabelecida no serviço, visto que havia um


sentimento de identificação, apoio, troca e suporte entre os residentes multipro-
fissionais. Observa-se que entre os residentes multiprofissionais trabalhar em
s

equipe é mais favorável, seja pela identificação de estarem como residentes ou


ver

pelo contato constante. Não obstante, segundo as mesmas, quando a comuni-


cação é melhor estabelecida, a troca de experiências e de conhecimentos entre
os integrantes das equipes é mais facilmente efetivada. Tal fato propicia que
os membros das equipes trabalhem de modo complementar sem deslegitimar
nenhum dos saberes que constituem o cuidado em saúde.
286

A atuação da psicóloga e a residência multiprofissional em saúde

De acordo com os dados levantados, a residência multiprofissional em


saúde contribuiu para a formação da psicóloga em relação ao seu aprimora-
mento pessoal e profissional, no desenvolvimento de sua segurança intrapes-
soal para a sua atuação profissional; ampliou a sua capacidade para realizar
intervenções em conjunto com outras áreas de atuação, já que o contato cons-

or
tante com diversos profissionais de saúde é um convite cotidiano à sair da

od V
sua especialidade para transitar e compreender outras práticas e fazeres em

aut
saúde; contribuiu com o fazer da psicóloga na medida em que a mesma pôde
cooperar com as ações em saúde de outros profissionais.
Realizar a residência multiprofissional para as psicólogas é poder come-

R
çar a exercer a sua profissão, já que muitas entrevistadas são recém-forma-
das, e também se sentirem amparadas dentro dessa configuração de trabalho.

o
Nesse sentido, para as mesmas, a partir do programa de residência é possível
aC
vivenciar um espaço de troca, de reflexão acerca da prática, de crescimento

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pessoal e profissional que pode prepará-las para atuar em qualquer área da
saúde. Outro aspecto é a integração entre teoria e prática que a residência se
propõe, acarreta para o fazer da psicologia uma expansão da clínica praticada.
visã
Percebe-se que o olhar das psicólogas e do psicólogo são ampliados a
partir da vivência em uma residência multiprofissional em saúde, assim como a
escuta psicológica, a configuração de setting terapêutico e de intervenções den-
itor

tro do contexto da saúde. Ademais, nota-se que o amadurecimento profissional


a re

está relacionado também com o crescimento pessoal desses profissionais,


afinal, lidar com a dimensão subjetiva do outro requer um cuidado consigo
e um autocuidado para estar em contato com sua subjetividade. A tecnologia
leve para ser movimentada e vivenciada requer encontros de pessoas, seja do
cuidador, usuário ou gestor (MERHY, 2015).
par

Assim, a clínica psicológica extrapola a clínica tradicional e seu modelo


Ed

individualista, privativo e elitista para uma clínica que atende a comunidade


a partir da demanda da mesma, que constrói saúde com diversos profissio-
nais. Tem a possibilidade de cuidar da pessoa não somente que apresenta um
ão

adoecimento psíquico ou psicopatológico, assim como, intervém no sentido


de ofertar qualidade de vida ao usuário e, muitas vezes, atua em uma pers-
pectiva de prevenção psicológica. Além disso, constrói novas compreensões
s

da psicologia como profissão (BOCK, 2009; GADELHA et al., 2018).


ver

A construção do conhecimento psicológico reconfigura a divisão entre


saúde física e psíquica, que deixa de ser vista como um binômio e tem a possi-
bilidade de ser vivenciada em uma perspectiva holística e integrativa. Fator este
que contribui para a prática de uma clínica compartilhada e em equipe, a partir
do conceito de integralidade. Atua assim na promoção, prevenção e educação
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 287

em saúde, de uma forma interdisciplinar e intersetorial, a partir de uma escuta


clínica atenta, implicada e vinculada com o usuário, com as famílias, com
a comunidade, com os profissionais de saúde e com o espaço institucional
que agencia esses encontros (LIMA; SANTOS, 2012; COUTO, SCHIMITH;
DALBELLO-ARAUJO, 2013; CEZAR, RODRIGUES; ARPINI, 2015).
A atuação na residência multiprofissional em saúde propiciou para as
entrevistadas a possibilidade do contato com ações voltadas para o conhe-

or
cimento da realidade da comunidade, das demandas locais, igualmente pro-

od V
porcionou acesso à rede de saúde, contato direto com as políticas públicas de

aut
saúde. Nota-se que a prática guia as psicólogas residentes para uma apren-
dizagem significativa e potente que atravessa o seu fazer; a prática cotidiana
gera uma aprendizagem que reverbera após o término dessa pós-graduação,

R
marca a atuação da psicóloga de modo que ela se sente capacitada e preparada
para atuar na área da saúde em todos os níveis de atenção.

o
Por mais que as residências multiprofissionais no Pará sejam majoritaria-
aC
mente hospitalares, notou-se que as psicólogas da residência multiprofissional
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em saúde, tiveram a oportunidade de conhecer a rede de assistência de saúde


em seus níveis primário, secundário e terciário; experiência esta que ampliou
as suas perspectivas de atuação na saúde diante da possibilidade de práticas
visã
psicológicas preventivas e educativas.
A atuação da psicóloga na residência multiprofissional em saúde construiu
vivências significativas e forneceu ferramentas de trabalho que conseguiram
itor

transpor as fronteiras disciplinares; possibilitou uma intervenção interdisci-


a re

plinar sustentada em uma clínica que fornece assistência em uma perspectiva


integral e pautada na troca de conhecimento mútuo. Ademais, propiciou para
o fazer da psicóloga uma aprendizagem significativa das políticas públicas de
saúde que foi vivenciada de forma intensa no cotidiano dos serviços de saúde
e possibilitou um conhecimento prático das políticas de saúde, bem como a
par

inserção e o fazer no campo da saúde como um ato político.


Ed

O modelo biologizante: desafios encontrados pelas psicólogas na


vivência multiprofissional em saúde
ão

A despeito da residência multiprofissional em saúde fomentar uma inter-


venção multiprofissional ou interprofissional, foi vivenciado como desafio
s

cotidiano a predominância das práticas médico centradas que perpassam não


ver

somente o saber da psicologia, mas também de outras categorias nos espaços


de saúde, em particular, no ambiente hospitalar. Percebe-se uma forte hie-
rarquização dos saberes, sendo os profissionais da categoria médica cujo o
acesso e o diálogo são mais difíceis de serem construídos. Pode-se dizer que a
residência multiprofissional em saúde versa, às vezes, mais acerca de práticas
288

instituídas, ou seja, enrijecidas do que a respeito de processos instituintes, os


quais precisam abrir caminhos, irromper barreiras a fim de romper com tais
práticas (ROSSI; PASSOS, 2014).
Outro fator, que pode ser problematizado como uma variável que con-
tribui com a cristalização desse modelo biomédico hegemônico (MENÉN-
DEZ, 2003), mesmo diante de múltiplas mudanças conceituais, é a existência
das residências uniprofissionais médicas. Outrossim, emerge como uma ques-

or
tão a cisão entre a residência multiprofissional e a médica como um fator que

od V
coopera com as dificuldades encontradas para a não ocorrência de práticas de

aut
cuidado integradas. Fica evidente a partir das entrevistas que o distanciamento
do profissional da categoria médica dos outros profissionais e, principalmente,

R
no que tange ao saber psicológico. Nota-se como tais posturas médicas são
ensinadas e repassadas como tradição, práticas centradas na doença, no médico

o
e na cura. E desse modo desconsideram os componentes psicológicos, familia-
res e constituintes desse usuário que está submetido a decisão de uma equipe
aC

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de saúde, muitas vezes, sem a sua participação ativa, opinião ou autonomia
no processo saúde/adoecimento/atenção.
Questiona-se a presença do profissional da medicina em uma residência
visã
multiprofissional em saúde, afinal, como denominar multiprofissional se não
há a presença de um médico. É necessário refletir acerca da construção de
uma residência em saúde com seus profissionais integrados entre si e em prol
de uma assistência integral, com uma melhor atenção para os seus usuários
itor

(MENESES et al., 2018).


a re

Questiona-se também, a partir dos dados coletados, o lugar do aspecto


psicológico no ambiente de saúde, considerando a hegemonia do modelo
biomédico, suas hierarquias e a consequente valorização dos aspectos
biológicos e físicos em detrimento dos sintomas psicológicos ou mesmo
par

do sofrimento psíquico vinculados aos processos de saúde/adoecimento/


atenção (MENÉNDEZ, 2003).
Ed

A manutenção da cisão entre as residências médicas, uniprofissionais e


multiprofissionais é um outro desafio dentro do ensino e da atuação integral,
que as práticas de saúde propõem ou as políticas de saúde preconizam. Perce-
ão

be-se a tradição que a residência médica tem, vista como padrão ouro enquanto
formação em serviço, a posiciona no lugar inquestionável e supostamente
s

superior à residência multiprofissional, ainda hoje, em estágio de consolidação


ver

e legitimação do seu lugar (RIBEIRO, 2011; MENESES et al., 2018).


Os residentes multi estão construindo e legitimando a sua contribuição
em espaços que tradicionalmente foram instaurados como sendo dos médicos
ou dos enfermeiros. Por outro lado, o conceito de saúde evoluiu, as práticas
de saúde se modificaram e estão se construindo a partir de perspectivas
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 289

que avançam para uma saúde composta por uma transdisciplinaridade. O


usuário deixa de ser o paciente, passivo à espera de ser cuidado apenas pelo
detentor do conhecimento, para um lugar de autonomia e responsabilização
pela sua saúde. Cabe evidenciar que uma formação excessivamente espe-
cializada traz como consequência parca compreensão da relevância de um
trabalho em equipe multidisciplinar, de uma integração interdisciplinar e
uma assistência usuário centrada.

or
od V
Considerações finais

aut
A residência multiprofissional em saúde realmente é vivenciada com os

R
desafios das relações interpessoais, com as qualidades, entraves e desafios
do SUS, que os impeliram para extrapolarem a utilização do seu conheci-

o
mento científico, teórico, sendo convocados prioritariamente para o campo
relacional, numa relação dialógica entre todos os atores que fazem parte da
aC
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rede de assistência à saúde; coloca-os em uma prática crítica reflexiva diante


da complexidade da saúde, visto que a mesma é composta por pessoas que
trazem a sua história, sua subjetividade e atravessamentos.
visã
O potencial dos programas de residência multiprofissional é propiciar
um espaço cotidiano para encontros e práticas multiprofissionais e interdis-
ciplinares, num espaço de transformações na produção de saúde e, em alguns
casos, de acesso à rede de saúde. Em contrapartida, ainda persiste na saúde
itor

do Pará uma lógica hospitalocêntrica de residências em detrimentos de pro-


a re

gramas voltados para a saúde coletiva ou para a atenção primária em saúde.


Ser residente multi é um lugar demarcado por múltiplas situações que
podem ser vistas como qualidades e/ou barreiras, visto que, muitas vezes,
pode ser um lugar confuso, gerador de sofrimento psíquico e utilizado para
par

suprir o quantitativo de profissionais nos serviços de saúde por um menor


custo e maior carga horária de trabalho.
Ed

Sob outra perspectiva, ser residente multi é ter a oportunidade de conhe-


cer o fazer de outras profissões, aprofundar-se em um cuidado integral a partir
de saberes multiprofissionais que se encontram diariamente e são construídos
ão

a partir de atos vivos em saúde que chegam até o usuário, a sua família e a
equipe do serviço em saúde. Além disto transformam o próprio residente
s

a nível pessoal e profissional, oferta segurança para a sua atuação e maior


ver

conhecimento prático e teórico acerca da atuação da psicóloga na saúde.


A residência multiprofissional movimenta e transforma os espaços de
saúde e por isso pode ser vista como uma resistência ao modelo biologizante,
já que, abre espaços contundentes para a inserção de diversas categorias profis-
sionais que com a sua presença mobilizam os espaços de saúde e contribuem
290

com a assistência a partir de um cuidado integral em saúde e requer da equipe


do serviço competências e habilidades na dimensão subjetiva e relacional, que
propiciem acolhimento e posturas educativas frente a esse residente.
A inserção da psicologia em um programa de residência multiprofissional
em saúde significa suporte e contribuição para a construção do SUS, a partir
de uma produção de saúde vivenciada como um ato político, em conjunto
com equipes multiprofissionais e interdisciplinares no campo da saúde, mas

or
também pode ser vista como uma ameaça que sobrecarrega a equipe que

od V
compõem estes espaços.

aut
A residência multiprofissional em saúde, a despeito das limitações apre-
sentadas, constitui-se como um espaço de resistência pela reforma sanitária e
pelo Sistema Único de Saúde. Atualmente garantir a existência e efetividade

R
das políticas públicas de saúde, da educação e o acesso a saúde de qualidade
como direito de todos é primordial para cada um que acredita na micropolítica

o
e na potência das relações humanas quando acontecem comprometidas com
aC

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o humano, com os direitos humanos, com a dignidade de um povo.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 291

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R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
GRAVIDEZ DECORRENTE DE
VIOLÊNCIA SEXUAL EM CRIANÇAS
E ADOLESCENTES: perfil dos casos

or
notificados pelo setor saúde em Belém, Pará

od V
aut
Milene Maria Xavier Veloso
Isabel Rosa Cabral

R
Beatriz Nayara Farias das Chagas
Maíra da Maria Pires Ferraz

o
aC
Introdução
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A violência sexual (VS) cometida contra crianças e adolescentes entre


outras implicações podem trazer prejuízos permanentes para o desenvolvi-
visã
mento biopsicossocial das vítimas ao longo de todo o ciclo de vida. Quando
essa violência tem como consequência também a gravidez, o contexto do
abuso torna-se ainda mais complexo em relação aos desdobramentos neces-
itor

sários de acolhimento e apoio às vítimas nos serviços de saúde, assim como


a re

em toda rede de proteção socioassistencial e jurídica.


O número de casos de violência contra crianças e adolescentes é alar-
mante no Brasil. Somente o Disque 100 registrou em 2019 um total de 86.837
denúncias de violações de direitos humanos contra crianças e adolescen-
par

tes, 15% a mais do que no ano de 2018, sendo que 17.000 destas denúncias se
referem à violência sexual. Ainda segundo esse relatório, observa-se que 52%
Ed

das violações ocorreram na casa da vítima, ao passo que 20% foram prati-
cadas na casa do suspeito (BRASIL, 2019). Considerando os casos em que
as vítimas não revelam a violência sofrida, seja por medo, vergonha, entre
ão

outras dificuldades, os índices podem alcançar patamares ainda mais graves.


Segundo Suely Deslandes, a VS é “todo ato ou jogo sexual, relação
heterossexual ou homossexual cujo agressor esteja em estágio de desenvol-
s

vimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o adolescente com o


ver

intuito de estimulá-las sexualmente ou utilizá-las para obter satisfação sexual”


(DESLANDES, 1994, p.13). Esse tipo de relação se configura enquanto uma
violação de direitos advinda da constituição de uma relação de poder desigual
e historicamente construída entre adultos e crianças ou entre adolescentes e
crianças, podendo acontecer em interação com outras expressões de violência,
tais como física, psicológica e a negligência (ARAUJO, 2002; AZEVEDO;
GUERRA, 2009; FIGUEIREDO; BOCHI, 2018; LIBÓRIO; CASTRO, 2010).
296

Entre os principais tipos de violência praticados contra crianças e ado-


lescentes, a violência sexual se destaca quanto à sua complexidade, em uma
face ainda mais desafiadora, com a chamada “síndrome do segredo” (FUR-
NISS, 1993). A revelação da VS instaura uma crise nas famílias, que muitas
vezes, se exime de tomar providências de proteção e prefere se calar para mini-
mizar os efeitos da situação se voltando para negação ou atitudes defensivas,
pois a revelação do segredo explicita a violência que ocorre dentro da família.

or
O tipo de relação existente entre agressor e vítima da VS é um fator que

od V
pode definir sua configuração, duração e possíveis consequências. Quando se

aut
trata de crianças e adolescentes, estratégias de aliciamento, barganha e sedução
são comumente utilizadas antes da consumação da violência (GABEL, 1997).
Por aliciamento entende-se como o processo de manipulação afetiva, a partir

R
de uma progressiva aproximação da vítima e/ou sua família. Esta aproximação
normalmente começa na conquista da confiança da vítima, até seu isolamento

o
e chantagem emocional, reforçando o silêncio e o segredo (FURNISS, 1993;
aC
SANDERSON, 2005).

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Nesse sentido, a VS pode causar grande impacto na vida de quem passa
por esta experiência, sendo que, quando essa violência traz como consequên-
cia a gravidez, o contexto do abuso torna-se permeado por difíceis decisões,
visã
em especial quando o agressor é uma pessoa que mantém laços familiares
com a vítima. É possível afirmar, portanto, que a gravidez decorrente de VS
intensifica a vivência de sentimentos ambivalentes em relação à gravidez e
itor

dificulta o planejamento dos desdobramentos referentes à maternidade e ou


a re

à interrupção da mesma (LORDELO; COSTA, 2014).


Para auxiliar adequadamente as vítimas no processo de tomada de decisão
que envolve a gravidez decorrente de VS, a assistência em diferentes contex-
tos se faz imprescindível, de forma a contemplar a condição biopsicossocial
de crianças e adolescentes. Quando se opta por levar adiante a gravidez, o
par

processo gravídico pode ser marcado por conflitos familiares, reedição da


Ed

violência e outros impactos, e o auxílio de programas destinados às vítimas de


tal agravo é de grande importância, uma vez que oferecem acompanhamento
adequado para que a mesma possa lidar com os impactos referentes à decisão
ão

de manter a gravidez ou não (LORDELLO; COSTA, 2014).


Além disso, as vítimas precisam ser devidamente acolhidas e orienta-
das sobre as alternativas legais em relação ao destino da gestação e sobre as
s

possibilidades de atenção específica nos serviços de saúde. As mesmas têm


ver

o direito a serem informadas a respeito da possibilidade de interrupção da


gravidez, conforme Decreto-Lei nº 2848, art. 128, inciso II, do Código Penal
(BRASIL, 1940). Nesse caso é verificado pela equipe médica o período gesta-
cional, uma vez que a interrupção é permitida até a 20ª semana, realizados os
exames e trâmites pré-operatórios e, por fim, executa-se o procedimento mais
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 297

adequado para a interrupção da gestação da maneira mais segura possível,


para resguardar a vida de meninas e mulheres.
Cabe destacar que interromper uma gestação decorrente de VS é um direito
dessas crianças e adolescentes, cabendo aos pais e ou responsáveis autorizar o
procedimento, sem a necessidade autorização judicial. A Lei nº 12.845/2013
que dispõe sobre o atendimento obrigatório pelo Sistema Único de Saúde
(SUS) a pessoas em situação de VS determina que os hospitais devam ofere-

or
cer às vítimas atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, além de

od V
encaminhar aos serviços de referência a gestante que manifeste o desejo de

aut
interromper a gravidez decorrente do estupro, sem que haja necessidade de
lavratura de boletim de ocorrência. Para a prática do abortamento legal, não
há necessidade de decisão judicial afirmando a ocorrência do estupro, nem de

R
uma sentença condenando o autor do crime sexual (BRASIL, 2011).
Além disso, a Portaria nº 485, de 1º de abril de 2014, do Ministério da

o
Saúde, redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação
aC
de Violência Sexual no âmbito do SUS, estabelecendo que o Serviço de Refe-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

rência para Interrupção da Gravidez nos casos previstos em Lei terá suas ações
desenvolvidas em conformidade à Norma Técnica de Atenção Humanizada
ao Abortamento do Ministério da Saúde, realizando: I – atendimento clínico,
visã
ginecológico, cirúrgico e psicossocial, contando com serviço de apoio laborato-
rial; II– apoio diagnóstico e assistência farmacêutica; e III – coleta e guarda de
material genético (art. 6º) (BRASIL, 2014). Cabe lembrar que a Norma Técnica
itor

do Ministério da Saúde definiu que no caso da VS a interrupção da gestação,


a re

vai até 20ª ou 22ª semanas ou se o feto pesar até 500 gramas (BRSIL, 2005).
Portanto, é fundamental que estas vítimas recebam informações comple-
tas e precisas, tanto sobre o abortamento legal, quanto sobre as alternativas
após o nascimento, que incluem a escolha entre permanecer com a criança e
inseri-la na família, ou proceder com os mecanismos legais em programas de
par

adoção. Se houver opção pela última hipótese, os serviços de saúde devem


Ed

providenciar as medidas necessárias junto às autoridades que compõem a rede


de atendimento para garantir o processo regular de adoção (BRASIL, 1940;
FALEIROS, 2013; TAQUETTE, 2007). Assim, essas crianças e adolescentes
ão

devem ser informadas sobre o direito e a possibilidade de manterem a gestação


até o seu término, com garantia de cuidados no pré-natal e parto apropriado à
situação, a despeito do desejo de realizar a entrega voluntária dessa criança para
s

adoção, prevista na Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017 (BRASIL, 2017).


ver

No entanto, o cenário observado no Brasil demonstra que as possibilidades


de escolha quanto ao destino de uma gravidez decorrente de VS costumam ser
desconhecidas e muitas vezes intencionalmente não informadas a essas víti-
mas, implicando em maiores obstáculos para o devido acompanhamento social,
médico e psicológico para auxiliar a criança ou a adolescente na tomada desta
298

difícil decisão. Nesse sentido, de acordo com um estudo nacional realizado


em 2018, pela Organização Não Governamental Artigo 19, que analisou as infor-
mações disponíveis sobre o aborto legal no Brasil, a possibilidade de interrupção
da gestação em caso de VS ainda não pode ser considerada como um direito
plenamente garantido às mulheres e meninas, uma vez que o acesso à informa-
ção sobre direitos sexuais e reprodutivos ainda é limitado (ARTIGO 19, 2018).
Neste trabalho foram analisados os casos de gravidez decorrente de vio-

or
lência sexual em crianças e adolescentes, notificados em Belém-Pará a partir

od V
do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), para contribuir

aut
com a caracterização do fenômeno e provocar o debate quanto à elaboração
e efetivação de políticas públicas voltadas ao cuidado e proteção de crianças
e adolescentes vítimas de VS.

R
Considerações sobre o método e coleta de dados

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


A amostra deste estudo foram os dados sobre gravidez decorrente de
VS notificados para pessoas de dez a dezoito anos, conforme estabelecido
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que considera criança a
visã
pessoa até doze anos de idade incompletos e o adolescente, aquele entre doze
e dezoito anos de idade (BRASIL, 1990).
O período de análise corresponde a janeiro de 2009 até dezembro de 2014,
uma vez que a identificação de gravidez decorrente de violência sexual foi
itor

excluída na versão da Ficha de Notificação publicada em junho de 2015.


a re

Foi realizado um estudo documental descritivo, transversal, de cunho qua-


li-quantitativo, com informações obtidas no banco de registros do SINAN, aces-
sado por meio do Departamento de Vigilância em Saúde (DEVS) da Secretaria
Municipal de Saúde de Belém (SESMA). Foram analisadas as seguintes variáveis:
par

• da vítima: idade, sexo, raça/cor, escolaridade, situação conjugal;


Ed

• da agressão: tipos de violência, local de ocorrência, se a violência


ocorreu outras vezes, unidade notificadora;
• do autor: número de envolvidos, agressão sob efeito de álcool, vín-
ão

culo com a vítima.

A análise dos campos da Ficha de Notificação foi realizada segundo as orien-


s

tações contidas no Manual Instrutivo de Preenchimento (versão 2008), fornecido


ver

pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (BRASIL, 2009).


Para o presente estudo foram analisados 282 casos de gravidez decor-
rente de violência sexual, identificados no estudo prévio de Veloso (2015),
autorizado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Para
sob protocolo CAAE 22980213.3.0000.0018 e parecer nº 481.615.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 299

A partir do SINAN gerou-se uma planilha contendo as variáveis de inte-


resse do estudo, que foi submetida à estatística descritiva e, no programa
BioEstat 5.3 (AYRES, AYRES JR; SANTOS, 2007) foram realizadas as aná-
lises de associação de variáveis.

Principais resultados

or
Durante o período de janeiro de 2009 a dezembro de 2014, os estabe-

od V
lecimentos de saúde notificaram 7.987 casos de violência contra crianças e

aut
adolescentes em Belém-PA, sendo 6.455 casos de violência sexual contra
meninas (80,8%). Desse total, foram identificados 282 casos de crianças e
adolescentes com gravidez decorrente da violência sexual notificada, cujo

R
perfil parcial é apresentado na Tabela 1. Foram notificados, em média, 46,50
casos/ano (Desvio Padrão-DP 14,84), sendo que 2012 foi o ano com maior

o
número de registros (74 casos; 25,53%).
aC
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A idade à época da notificação variou de 10 a 18 anos (média 13,68;


DP 1,722), sendo mais prevalente a idade de 13 anos, referida por 75 vítimas
(29,88%) e a faixa etária de 12 a 14 anos abrigou 61,6% dos casos. Pode-
-se verificar, ainda, que a amostra tem 54,26% de meninas menores de 14
visã
anos, cuja violação sexual é definida como estupro de vulnerável, segundo a
Lei 13.811, de 13 de março de 2019 (Código Civil). As demais 28,37% 17,38%
Conforme o esperado pelo perfil da idade, a categoria de escolaridade
itor

que abriga o maior percentual de vítimas é o grupo de 5a à 8a série incompleta


a re

(atual 9o ano), abrigando 38,65% do total amostrado. Em 12,60% dos casos


o nível de escolaridade foi notificado como ignorado, condição que deveria
ser usada apenas quando a pessoa atendida não sabe ou não pode declarar por
algum motivo. Ainda, deve-se destacar que 49,3% do total de vítimas estão
par

em distorção idade-escolaridade, incluindo-se aqui cinco que se declararam


analfabetas. Por exemplo, somente oito dos 79 (10,13%) adolescentes de 15
Ed

anos ou mais haviam ingressado no ensino médio.


Em 14 casos analisados (4,79%) foi informado que a vítima possuía
algum tipo de deficiência ou transtorno, sendo mais frequente a deficiência
ão

mental (9/14; 64,29%), incluindo-se aqui uma pessoa com epilepsia.


Quase todos os casos analisados (99,32%) foram notificados em um
serviço de referência estadual para atendimento de crianças e adolescentes
s

vítimas de violência sexual. Dos demais casos, uma vítima de 13 anos foi
ver

identificada em uma unidade de atenção primária à saúde e outra, de 16 anos,


em uma unidade de atenção secundária dirigida à saúde da mulher.
Em relação ao item raça/cor da vítima, a principal categoria é da cor
parda, abrigando 66,90% dos 282 casos notificados, seguida daquelas de cor
branca (10,68% dos casos e preta (8,19%). Não houve notificações de vítimas
300

amarelas ou indígenas. É importante ressaltar que em 14,59% dos casos a


cor da vítima foi ignorada, sendo que essa denominação deve ser utilizada
quando a vítima não sabe ou não pode declarar, posto que esse campo é de auto
declaração. Considerando-se apenas os casos com a raça/cor autodeclarada,
observou-se um excesso de pessoas negras na amostra deste estudo (87,55%),
diferindo significativamente da proporção esperada (71,8%), segundo os dados
do Censo Populacional realizado pelo IBGE, em 2010 (χ² 34,55; p<0,0001).

or
Ainda como parte do perfil das vítimas observou-se que 70,25% delas

od V
residiam em zona urbana e 28,42%, na zona rural, proporção essa que diferiu

aut
do esperado, pois o IBGE (2010) apontou 99,2% da população de Belém
residindo em área urbana (χ² 84,45; p<0,0001).
Na análise da situação conjugal foi observado, que 91,49% das vítimas

R
afirmaram ser solteiras. Dentre as seis pessoas que informaram ser casadas,
quatro tinham idades de 12 e 13 anos e relataram terem sido agredidas por

o
seus respectivos namorados (2) e por conhecidos (2).
aC

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Analisando-se os dados sobre o relacionamento sexual obteve-se
que 42,91% das vítimas informaram manter relações sexuais somente com
homens. Somente três vítimas informaram apenas experiências homossexuais,
destacando-se que essas tinham idade entre 10 e 13 anos. Registrou-se ainda
visã
o grande número de casos onde foi ignorada essa informação (43,26%) ou
equivocadamente assinalada a categoria “não se aplica” a 29% (10,28%), o
que, segundo o Manual Instrutivo de Preenchimento elaborado pelo Ministério
itor

da Saúde, deveria ser utilizado apenas para menores de 9 anos.


a re

Tabela 1 – Distribuição dos casos segundo dados da


vítima de VS - Belém (PA), 2009 a 2014
N° de casos/ano TOTAL
par

Dados da Vítima
2009 2010 2011 2012 2013 2014 N %
Ed

Faixa Etária (anos)

<14 14 18 21 38 35 27 153 54,26

14 a 15 8 17 16 19 14 6 80 28,37
ão

16 a 18 9 8 8 15 5 4 49 17,38

Total 31 43 45 72 54 37 282 100,00


s

Zona da residência
ver

Urbana 25 31 32 49 32 27 196 69,5

Rural 5 10 13 20 21 10 79 28,01

Periurbana 3 1 4 1,42

Sem registro 1 2 3 1,06

Total 30 41 45 72 54 37 279 100,00


continua...
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 301
continuação

Situação Conjugal

Solteiro(a) 15 18 18 38 20 12 121 91,49

Casado/União consensual 3 3 2,13

Não se aplica 1 4 3 7 6 8 29 2,84

Ignorado 13 18 24 25 25 17 122 1,77

or
Sem registro 2 3 2 7 1,77

od V
Total 31 43 45 72 54 37 282 100,00

aut
Relações Sexuais

Só com Homens 15 18 18 38 20 12 121 42,91

Só com Mulheres

R 3 3 1,06

o
Ignorado 1 4 3 7 6 8 29 10,28
aC
Não se aplica 13 18 24 25 25 17 122 43,26
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Sem registro 2 3 2 7 2,48

TOTAL n 31 43 45 72 54 37 282
visã
% 10,99 15,25 15,96 25,53 19,15 13,12 100,00

Fonte: SINAN (dados sujeitos a alterações).


itor

Em relação ao local de ocorrência da violência 78,01% ocorreu na resi-


a re

dência, sendo que na maioria dos casos não foi possível precisar se a agressão
aconteceu na residência da vítima, do agressor ou de uma terceira pessoa. A
via pública foi referida em 8,30% dos casos notificados. Outros locais citados,
porém, em menor frequência foram: mata, igarapé, escola, transporte coletivo,
par

bar e comércio, dentre outros.


Em 65,60% dos casos houve relato de recorrência da violência até a
Ed

notificação, enquanto que em 24,82% a vítima referiu um único episódio. É


importante ressaltar que em 9,57% dos casos, para tal informação, foi assi-
nalado o campo ignorado.
ão

Em 73,26% dos casos a vítima relatou apenas um agressor no evento noti-


ficado, excetuando-se aqui os casos onde esse dado não foi informado. Dos 20
casos onde foram registrados dois ou mais agressores (7,33%), o que caracteriza-
s

ria estupro coletivo. Todavia, em alguns pode-se perceber que esse número não
ver

se referia a agressores no mesmo evento, dificultando a análise dessa variável.


Em 23,05% dos casos o agressor mantinha um vínculo familiar com
a vítima, incluindo-se aqueles sem vínculo biológico (padrasto, por exem-
plo), porém, a maioria foi agredida por uma pessoa sem vínculo familiar
(80,14%), sendo que os conhecidos foram apontados em 41,43% do total de
302

casos notificados. Em seguida, tem-se os namorados e ex-namorados, referido


por 27,14% das vítimas. Os desconhecidos foram citados em 12,14% dos
casos, sendo que em quatro casos tratava-se de estupro coletivo.
Em nível intrafamiliar, o padrasto é o principal perpetrador e aparece
em 13,21% do total de casos, seguido do pai em 3,93%. Também são referidos
tios, avô, irmão. Há, ainda um único o caso onde o agressor sexual foi registrado
como ignorado. Tratava-se de uma menina de 13 anos, no 2° trimestre de gravidez.

or
Analisou-se a distribuição das agressões, por faixa etária da vítima,

od V
segundo os principais vínculos dos agressores com a vítima e essa não diferiu

aut
significativamente da proporção da amostra total, exceto para os namorados,
que foram mais prevalentes na faixa das meninas menores de 14 anos (χ²
6,745; p 0,034), que diferiram em especial dos agressores desconhecidos,

R
cuja distribuição se deu de modo similar nas três faixas etárias deste estudo.
A Tabela 2 apresenta a distribuição das classes mais frequentes do vínculo

o
do agressor com a vítima, segundo a faixa etária da vítima.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Tabela 2 – Distribuição dos casos segundo o vínculo da vítima com
o agressor e faixa etária da vítima - Belém (PA), 2009 a 2014
visã
Faixa EXTRAFAMILIAR INTRAFAMILIAR
etária Conhecido Namorado Desconhecido Padrasto Pai

<14 59 50,86% 53 73,61% 12 35,29% 17 45,95% 4 36,36%


itor

14-15 39 33,62% 14 19,44% 11 32,35% 10 27,03% 4 36,36%


a re

16-18 18 15,52% 5 6,94% 11 32,35% 10 27,03% 3 27,27%

TOTAL 116 41,43% 72 25,71% 34 12,14% 37 13,21% 11 3,93%

Fonte: SINAN (dados sujeitos a alterações).


par

Em apenas 11,70% dos casos informou-se que a agressão foi cometida


sob efeito de álcool por parte do agressor, enquanto em 25,18% afirmou-se que
Ed

o agressor não havia consumido álcool. Mas, na maioria dos casos (63,12%)
essa informação constava como ignorada.
Dos 282 casos aqui analisados, foram apontados outros tipos de violên-
ão

cia associados à sexual, sendo a psicológica e a física as mais prevalentes,


com 50,00% e 36,88%, respectivamente. Analisando-se o tipo de violên-
cia sexual, além do estupro, 52 vítimas referem, também, o assédio sexual
s

(20,21%), e 22 (7,80%), o atentado violento ao pudor.


ver

O meio de agressão mais utilizado no ato da violência sexual foi a ameaça


(48,23%), sem influência da faixa etária (χ² 1,65; p 0,44), em segundo lugar
na incidência registrou-se a força corporal (34,75%), com forte influência da
faixa etária da vítima (χ² 5,75; p<0,001), sendo muito menos utilizada contra
as vítimas menores de 14 anos (χ² 13,58; p 0,0003).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 303

Neste estudo, foi realizado um recorte onde a amostra é formada por crian-
ças e adolescentes que engravidaram em consequência de violência sexual. Mas,
para além da gravidez, outras consequências foram relatadas: 12,06% relataram
transtorno comportamental e 11,70%, o estresse pós-traumático. Destaca-se que
nove vítimas adquiriram uma doença sexualmente transmissível e duas outras
adolescentes, com 14 anos de idade, atentaram contra a própria vida.
Em todas as faixas etárias analisadas, o período gestacional mais preva-

or
lente foi o 1º trimestre de gravidez, descrito em 51,77% do total de vítimas

od V
neste estudo, seguido de 10,09% no 2º trimestre. Equivocadamente, em 21

aut
casos (7,45%) esse campo foi preenchido como “ignorado”, apesar de terem
sido casos identificados com gravidez em consequência da violência sexual e
em duas há registro de realização do aborto legal. Da mesma forma, em nove

R
casos foi assinalada a alternativa “não se aplica”, que designaria uma vítima
do sexo masculino ou, do sexo feminino e menor de nove anos de idade.

o
Dos procedimentos realizados após a ocorrência da violência e conse-
aC
quente notificação, o mais comum foi coleta de secreção vaginal com 25,89%,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

seguido de coleta de sangue com 13,12%. O aborto foi um procedimento


realizado em apenas 32 casos (11,35%), sendo descrito para 10,46% das
vítimas menores de 14 anos de idade, para 7,50% das vítimas de 14 e 15
visã
anos e para 20,41% daquelas entre 16 e 18 anos. O grupo de vítimas com
a gravidez em 1° trimestre abrigou 87,50% dos casos onde o aborto foi o
procedimento adotado.
itor

Dos encaminhamentos realizados para o setor da saúde, 242 casos


a re

(85,82%) foram referenciados para atendimentos ambulatoriais e 35 (12,41%),


para internação hospitalar, sendo que nestas, em apenas 60% também havia
referência ao aborto como procedimento.
Por entender ser intersetorial o enfrentamento à violência contra crianças
e adolescentes, avaliou-se os encaminhamentos à rede de proteção, para além
par

do setor saúde. Aqui, vinte vítimas não foram referenciadas para outros órgãos
Ed

da rede. Dos demais 262 casos, 65,45% foram encaminhados à Delegacia de


Proteção a Criança/Adolescente, 34,35% ao Conselho Tutelar e 29,39% ao
Instituto de Medicina Legal e 16,41% aos Centro de Referência de Assistência
ão

Social (CREAS/CRAS).
Dos casos analisados, 99 (33,11%) foram confirmados como decorrentes
da VS, no campo Classificação Final, a despeito da maior parte da amostra
s

(54,26%) tratar-se de crianças grávidas, com idade inferior a 14 anos. Os


ver

demais 183 casos (64,89%) foram classificados como prováveis, incluindo 115
crianças menores de 14 anos. A média de idade da amostra dos casos con-
firmados foi de 13,59 (DP 1,75), ligeiramente maior que a média dos casos
descritos como prováveis (média 13,16; DP 1,24), apesar de ficar fora do nível
de significância estatística (p=0,10).
304

Os casos identificados como prováveis, deveriam indicar que a pessoa


atendida/vítima apresenta indícios de violência, podendo ter ou não sinais,
sintomas e história de violência, ou seja, o caso é suspeito. Cabe destacar
que, ainda que suspeito, considera-se como caso de notificação compulsória.

O que o perfil das notificações aponta

or
Na análise das idades das vítimas do presente estudo, meninas entre as

od V
faixas etárias de 12 e 13 anos foram mais prevalentes, o que corresponde ao

aut
período da puberdade. Os estudos de Lins (2008) e Martins e Jorge (2010)
também identificaram meninas em faixa–etária próxima (de 10 a 14 anos)
sugerindo a puberdade como a época do desenvolvimento dos caracteres

R
sexuais secundários, o que torna as vítimas ainda mais vulneráveis no contexto
da cultura do estupro. Dessa forma, podemos perceber que meninas na fase

o
de transição da infância para a adolescência estão em maior risco de serem
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vítimas de VS, fato também explicado por questões de da violência baseada
no gênero que ajudam a compreender a coisificação do corpo da menina e o
mito de que o homem tem instintos sexuais não controláveis, além de uma
assimetria nas relações de poder.
visã
Outro dado que chama atenção é que apenas 33,11% foram confirmados
como decorrentes da VS, no campo Classificação Final da Ficha de Notifi-
cação, a despeito da maior parte da amostra (54,26%) tratar-se de crianças
itor

grávidas, com idade inferior a 14 anos. Cabe destacar que diante da legislação,
a re

do código penal brasileiro, abaixo dos 14 anos, mesmo que a relação sexual
seja consentida, é considerada estupro de vulnerável.
Esse resultado demonstra que a percepção dos profissionais que notificam os
casos parece não corresponder ao que está definido na Lei nº 12.015, de 2009 que
par

passou a considerar estupro de vulnerável ter conjunção carnal ou praticar outro


ato libidinoso com menor de 14 anos, o que sugere a necessidade premente de
Ed

ações de educação permanente direcionadas a todos os profissionais que atuam


na rede de proteção às crianças e adolescentes no município de Belém-Pará.
O presente estudo identificou que apenas 10% das meninas menores de 14
ão

anos realizaram o aborto legal. É fato que as gestantes menores de 16 anos,


no que diz respeito ao consentimento para a prática do abortamento legal, de
acordo com a exigência do artigo 128, inciso II do Código Penal, são repre-
s

sentadas pelos pais que devem autorizar o procedimento. Talvez isso possa
ver

justificar a menor frequência de abortamento em meninas menores de 14 anos.


Por outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente consagra o princípio
do respeito à opinião e à vontade das crianças e adolescentes, o que remete
ao debate sobre a participação e escuta efetiva e humanizada dessas vítimas
durante a tomada de decisão quanto ao abortamento legal.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 305

É importante lembrar, que pode ocorrer uma situação em que a adoles-


cente menor de 16 anos não queira fazer a interrupção da gravidez e os pais
queiram. Nestes casos, onde há contradição de opiniões, deve-se solicitar
intermediação do judiciário, através da promotoria da infância e juventude
ou da defensoria pública, pois, não se recomenda a realização de um procedi-
mento como o abortamento contra a vontade de uma criança e/ou adolescente.
A análise das notificações quanto à escolaridade da vítima indica uma

or
significativa distorção idade-escolaridade nas meninas identificadas como víti-

od V
mas de gravidez decorrente de violência sexual, considerando o índice de 19%

aut
de distorção preexistente no município de Belém (FUNDAÇÃO LEMAN;
MERITT, 2020). Nesse sentido, estudo realizado com 207 adolescentes em
uma maternidade no Piauí, demonstrou existir uma correlação entre gravidez

R
na adolescência e baixa escolaridade, baixa frequência e desempenho escolar,
além de apontar a violência intrafamiliar como importante fator de risco para

o
a ocorrência da gravidez na adolescência (FERNANDES et al., 2017).
aC
De acordo com as notificações analisadas, a VS encontra-se associada
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ao assédio sexual em apenas 20,55% dos casos. Cabe lembrar que o assédio
sexual em geral inclui uma aproximação sexual não consentida, uma solicita-
ção de favores sexuais ou qualquer conduta física ou verbal de natureza sexual
visã
e constitui-se em um tipo de coerção de caráter sexual em nível hierárquico
em relação ao outro (BRASIL, 2009).
Nesse sentido é possível considerar que toda VS está associada de alguma
itor

forma ao assédio sexual. Essa é uma reflexão importante que remete nova-
a re

mente à percepção de VS dos profissionais que realizam a notificação, que, ou


não estão considerando o assédio sexual como parte da violência sexual, ou
estão priorizando o tipo mais contundente de VS que é o estupro, pois segundo
o instrutivo de preenchimento da Ficha de Notificação deve-se priorizar a
informação da principal violência que motivou a busca por atendimento.
par

Por outro lado, segundo Drezett (2000) todos os termos utilizados para
Ed

conceituar as diferentes modalidades de crimes sexuais apresentam dificuldades


em atender adequadamente os aspectos médico, jurídico, psicológico e ético
que tais crimes envolvem. Outro exemplo dessa dificuldade conceitual está
ão

relacionado às mudanças legais e de tipificação dos crimes sexuais, pois, no


presente estudo, ainda que tenham dados sobre “atentado violento ao pudor”,
esta tipologia foi alterada pela lei 12.015/2009, passando a ser considerado
s

como estupro no Art. 213, do Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940). A ficha
ver

de notificação incorporou essa mudança a partir de sua versão em 2015, mas


os dados de 2009 mantiveram essa informação ainda como “atentado violento
ao pudor”, o que também pode trazer dificuldades na caracterização dos casos.
De acordo com as notificações o local onde mais ocorreu a violência foi
na residência, porém não é possível precisar se a residência seria da própria
306

vítima ou do perpetrador do abuso, devido à falta de especificação na ficha de


notificação. Tal informação seria importante para garantir uma melhor carac-
terização do fenômeno, no entanto, não existe um campo específico para esta
variável. Uma possibilidade seria destinar tal informação ao último campo
da ficha, onde podem ser inseridas as informações adicionais, por exemplo.
Apesar disso, é importante ressaltar que há estudo demonstrando que o
local em que a violência sexual ocorre com maior frequência é a residência

or
do agressor (40,90%), seguida da residência da vítima e do agressor (36,36%)

od V
e da residência da vítima (9,09%) (VIODRES et al., 2008). Drezett (2000)

aut
destaca que os casos de VS nos grupos femininos de adolescentes e adultas
ocorrem principalmente em espaços públicos e que, no grupo de crianças, a

R
maioria dos crimes sexuais é cometida em ambiente privado, especialmente
nas residências, o que reforça a necessidade de se destacar essa variável na

o
ficha de notificação.
Constatou-se também que na maioria dos casos a violência era de repeti-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ção, o que parece demonstrar que a VS ocorre de forma velada e continuada, o
que confirma o debate em torno da “síndrome do segredo” (FURNISS, 1993),
bem como da chamada cultura do estupro. Além disso, em geral as vítimas de
visã
VS sentem-se culpadas, envergonhadas, amedrontadas e esses sentimentos
dificultam a revelação e a interrupção desse ciclo de abuso.
De acordo com estudo realizado, com 59 mulheres adultas vítimas
de VS na infância, a revelação ocorreu no momento da consulta psico-
itor

lógica em 78% dos casos. As vítimas relataram que era a primeira vez
a re

que falavam sobre a violência sofrida, que até então havia sido mantida
em segredo, motivado por afetos, que se alternavam entre “vergonha”,
“medo”, “culpa”, e “sufocamento”, sentimentos esses que apareciam tam-
bém quando evocada a lembrança do episódio durante os atendimentos
par

psicológicos (CHAGAS et al., 2013).


A VS configura-se por um jogo de coerção, sedução, e força, de tal modo
Ed

que existem diferentes formas vinculares entre a vítima e o agressor. Neste


estudo, foi possível observar que em nível intrafamiliar o principal perpetrador
é o padrasto, seguido do pai, assim sendo, a família que deveria representar o
ão

ambiente protetor e provedor de amparo, passa a configurar o ambiente que


traz sofrimento e viola direitos. Já em nível extrafamiliar, o principal agressor
s

foram os amigos/conhecidos da vítima, seguido do namorado e desconhecidos.


ver

Diante disso, é possível observar que pessoas próximas às crianças e adoles-


centes são as que cometem a violência de forma preponderante, o que torna
essa modalidade de violência ainda mais difícil de ser enfrentada.
Em relação às consequências da VS, para além da gravidez, tam-
bém foi identificado o estresse pós-traumático e algum tipo de transtorno
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 307

comportamental. Dessa forma, percebe-se o grande impacto da violência na


vida dessas crianças e adolescentes em todo ciclo de vida, com destaque para
maternidade de forma precoce, realização de um procedimento invasivo como
o aborto, bem como, o desenvolvimento de quadros depressão e ansiedade
em função do trauma. Ou seja, são muitas as consequências da violência, que
devastam vidas e atropelam sonhos, sem contar que muitas dessas crianças e
adolescentes passam por diversos contextos de revitimização após a revelação

or
da VS, tanto por parte de alguns profissionais da rede socioassitencial, policial

od V
e da saúde, quanto por familiares e parte da sociedade que trata a questão pela

aut
via moralista/punitivista e não sob o olhar do cuidado e da proteção.
Um estudo realizado com mulheres que tiveram gravidez decorrente de

R
VS, na cidade de Campinas-São Paulo, observou que muitas delas optaram
por não falar sobre o ocorrido na tentativa de esconder e “esquecer” o fato.

o
No referido estudo, a única vítima que buscou atendimento imediato justificou
a procura pela ocorrência de danos físicos graves com necessidade de inter-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nação hospitalar, tendo sido constatado que a procura pelos órgãos de apoio
e assistência às vítimas de VS em sua maioria só ocorreu após a descoberta
da gravidez (MACHADO et al., 2015).
visã
No presente estudo, a revelação da gravidez decorrente de VS em âmbito
familiar da vítima também pode ter sido o fator desencadeador da procura por
atendimento, visto que a maioria delas chegou ao serviço especializado de
atendimento às vítimas de VS, em Belém-Pará, no primeiro trimestre da gra-
itor

videz. Este dado evidencia o medo e as dificuldades enfrentadas por mulheres


a re

e meninas que buscam por atendimento e procedimentos de profilaxia após


terem sido vítimas de VS, uma vez que, mesmo entre profissionais de saúde,
existe um regime compartilhado e institucionalizado de suspeitas em relação
à narrativa da vítima, que leva a práticas primordialmente periciais ao invés
par

de práticas de cuidado (DINIZ et al., 2014).


Por conseguinte, se o sistema jurídico brasileiro permite a prática do
Ed

abortamento legal em casos de estupro, considerando-o lícito, é inadmissível


negar ou criminalizar a assistência médica às mulheres, em especial crian-
ças e adolescentes que pretendem interromper uma gravidez decorrente de
ão

VS. A negação desse direito tem obrigado mulheres, crianças e adolescentes


a suportar os riscos, inclusive de morte, de um abortamento clandestino,
s

marginal e inseguro, praticado em local inadequado, sem as necessárias e


ver

imprescindíveis condições técnicas, em condições precárias de higiene, sem


assistência psicológica, sem acompanhamento profissional e sem qualquer
respeito à dignidade humana (BRASIL, 2011).
Nesse sentido, destaca-se a relevância de haver a articulação intra e
intersetoriais nestes atendimentos, de forma a garantir um funcionamento
308

eficaz e articulado de todos os serviços disponíveis, a fim de que cumpram a


função de proteção e cuidado às vítimas (VELOSO et al., 2013). Ainda que
o setor saúde venha a ser o receptor do primeiro contato com as pessoas que
sofrem violência, a complexidade do fenômeno exige um fluxo de atendi-
mento ampliado para a execução plena de todas as dimensões do cuidado:
acolhimento, atendimento, notificação e seguimento para a rede de cuidados
e proteção social (BRASIL, 2010).

or
Além disso, é fundamental divulgar e tornar mais acessível o instru-

od V
tivo de preenchimento das notificações do SINAN, pois ao analisar os dados

aut
questionamos se quem o preencheu estava ciente das definições e normativas
do Ministério da Saúde, pois o preenchimento incompleto e ou equivocado

R
compromete a análise de algumas variáveis importantes. Essa dificuldade
também foi apontada em estudo realizado em um hospital de Florianópo-

o
lis, Santa Catarina, que realizou a análise das notificações (PLATT; BACK;
HAUSCHILD; GUEDERT, 2018).
aC

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A escolha por interromper a gravidez decorrente de VS pode desenca-
dear sentimentos ambivalentes entre o alívio e a culpa, o que geralmente está
atrelado à questão cultural e religiosa sobre o aborto. Diante disso, é impor-
visã
tante ressaltar a importância de um acolhimento especial para esses casos por
parte dos profissionais, uma vez que tal acontecimento demanda elaboração
emocional das vítimas. O apoio de uma equipe multidisciplinar integrada é
de fundamental importância no processo de acompanhamento das vítimas,
itor

em especial quando estas são crianças e adolescentes.


a re

Considerações finais

Diante de tal realidade são necessárias políticas de enfrentamento que


par

tenham expressiva funcionalidade e eficácia na promoção de segurança e


amparo psicossocial às crianças e adolescentes. Além disso, é fundamental o
Ed

acompanhamento dos profissionais tanto para dar apoio técnico, quanto emo-
cional por meio de grupos terapêuticos, oficinas que visem suscitar o cuidado
com o outro nas diferentes dimensões relacionais, cursos para treinamento
ão

teórico em relação a tal realidade, para instrumentalizar o profissional para


sua atuação em casos de VS.
s

Nota-se a relevância de suscitar reflexões acerca da obrigatoriedade de


ver

notificação da violência, que ainda é subnotificada, embora tenha havido


crescimento do uso desse dispositivo de enfrentamento. O aumento de capa-
citações e o engajamento dos gestores dos setores de saúde e educação são
importantes, uma vez que são estes que podem desenvolver e garantir a reali-
zação dessa política, para o enfrentamento adequado e desejável de tal agravo.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 309

Por fim é válido destacar que a informação sobre gravidez como con-
sequência da VS foi retirada da Ficha de Notificação a partir da sua versão
em 2015, o que pode representar um retrocesso na caracterização desse agravo.
Espera-se que o presente trabalho possa contribuir com a problematização
desta decisão junto ao Ministério da Saúde, demonstrando, em conjunto com
outros estudos, a importância de rastrear adequadamente esta informação,
como forma de garantir condições para que os órgãos competentes possam

or
realizar um planejamento adequado de políticas públicas focadas na prevenção

od V
e acompanhamento destas violações.

aut
Assim, espera-se que as discussões aqui levantadas possam colocar luz
sobre essa importante questão, ressaltando a necessidade de levar em con-
sideração não apenas valores morais subjacentes à narrativa pericial que se

R
interpõe às situações de gravidez decorrente de VS, mas, sobretudo, a garantia
de direitos e condições dignas de desenvolvimento das crianças e adolescentes.

o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
310

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ver

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ver
QUEM SÃO AS CRIANÇAS
INSTITUCIONALIZADAS? ESTUDO
SOBRE A POPULAÇÃO ACOLHIDA

or
EM MARABÁ, SUDESTE DO PARÁ

od V
aut
Lúcia Cristina Cavalcante-da-Silva
Mayara Barbosa Sindeaux Lima

R
Normando José Queiroz Viana
Thuany Steffane Lima Martins

o
Mariane Lopes da Paixão Costa
aC
Introdução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Com o advento da Política Nacional da Assistência Social – PNAS


visã
(2004), – a qual apresenta as bases epistemológicas, teóricas e legais inerentes
à atuação na área social – e, posteriormente, do Sistema Único da Assistência
Social – SUAS (2005), – cujo papel reside na organização lógica de atuação
itor

profissional na referida área, por intermédio do estabelecimento dos níveis de


a re

proteção social, a Proteção Social Básica – PSB e a Proteção Social Especial


– PSE –, estados e municípios dos quatro cantos do país reúnem esforços
no sentido de garantir a aplicabilidade da política supracitada, conforme as
diretrizes elencadas pelos documentos em questão.
A Proteção Social Básica (PSB) compreende a operação de um conjunto
par

de esforços que enfocam o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitá-


rios, a fim de superar a presença de situações de risco e vulnerabilidade pessoal
Ed

e social, as quais ainda não se materializaram na forma da violação de direitos.


Em consonância com o texto da PNAS (2004), a [...]
ão

A Proteção Social Básica tem como objetivo prevenir situações de risco


por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o forta-
s

lecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população


ver

que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza,


privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos,
dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de
pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por
deficiências, dentre outras) (PNAS, 2004).

Tal nível de proteção encontra no Centro de Referência da Assistência


Social – CRAS, a porta de entrada para acessar os direitos garantidos pela
316

PNAS; centro este, cuja unidade física operacional, destina-se a correferenciar


o atendimento socioassistencial, territorializado, a até 1.000 famílias.
A Proteção Social Especial (PSE) estrutura-se de acordo com os níveis
de média e alta complexidade. A Proteção Social Especial de Média Comple-
xidade, destina-se ao atendimento às famílias e indivíduos com seus direitos
violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos.
Tais como: serviço de orientação e apoio sociofamiliar; serviço de atenção a

or
pessoa idosa, a mulher; plantão social; abordagem/aproximação de rua; busca

od V
ativa; cuidado no domicílio; serviço de habilitação e reabilitação na comuni-

aut
dade das pessoas com deficiência; medidas socioeducativas em meio-aberto
(Prestação de serviços à comunidade – PSC e Liberdade Assistida – LA);
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI; entre outros, que são

R
coordenados e executados pelo Centro de Referência Especializado da Assis-
tência Social – CREAS. O CREAS constitui-se em uma:

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


unidade pública estatal, de prestação de serviços especializados e conti-
nuados a indivíduos e famílias com seus direitos violados, promovendo
a integração de esforços, recursos e meios para enfrentar a dispersão dos
serviços e potencializar a ação para os seus usuários, envolvendo um con-
visã
junto de profissionais e processos de trabalhos que devem ofertar apoio
e acompanhamento individualizado especializado [...] Nesta perspectiva,
o CREAS deve articular os serviços de média complexidade e operar a
itor

referência e a contra-referência com a rede de serviços socioassistênciais


da proteção social básica e especial, com as demais políticas públicas e
a re

demais instituições que compõem o Sistema de Garantia de Direitos e


movimentos sociais” (Guia de Orientação CREAS, 2005).

Por sua vez, a Proteção social especial de alta complexidade compreende


par

um conjunto de serviços que garantem:


Ed

[...] proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho


protegido para famílias e indivíduos que se encontrem sem referência
e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo
ão

familiar e, ou, comunitário. Tais como: atendimento integral institucional;


casa lar, república; casa de passagem; albergue; família substituta; família
acolhedora; medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade
s

e trabalho protegido” (PNAS, 2004).


ver

Dentre os serviços de proteção integral a crianças e adolescentes, des-


tacamos o acolhimento institucional, modalidade está amparada na Lei
nº 8.069/1990, Estatuto da Criança e Adolescente (BRASIL, 1990), que em seu
Capítulo II – Das medidas específicas de proteção, §1º do Art. 101, estabelece
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 317

o acolhimento institucional como uma medida provisória e excepcional, uti-


lizada como forma transitória à reintegração familiar e, caso essa não seja
possível, à colocação da criança ou adolescente em família substituta, sem
significar a privação da liberdade das crianças e adolescentes acolhidos.
As instituições/unidades de acolhimento podem tomar a forma de abri-
gos, casas-lares, casas de passagem, dentre outras possibilidades (CENSO
SUAS 2016, 2017). A despeito da caracterização como medida protetiva de

or
caráter breve, diversas pesquisas têm indicado que a permanência das crianças

od V
e adolescentes em instituições acolhimento se estende por longos períodos,

aut
a ponto de algumas delas atingirem a maior idade (MORAES MARTINEZ;
SOARES-SILVA, 2008; SIQUEIRA, DELL’AGLIO, 2006).
Todavia, passado mais de uma década, tal política ainda se encontra em

R
gradual processo de expansão no território nacional; expansão esta que reco-
nhece como desafio, dentre outros, o alcance às localidades mais afastadas

o
dos centros urbanos e regiões metropolitanas.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O SUAS em Marabá-PA

No Estado do Pará, o operar das ações de proteção social, tanto no nível


visã
básico, quanto no especial, apontam para a consolidação de um conjunto de
ações que objetivam o enfrentamento às situações de risco e vulnerabilidade
pessoal e social, sobretudo, mediante o fortalecimento dos vínculos familia-
itor

res e comunitários, perspectiva que ressalta a compreensão das vicissitudes


a re

socioterritoriais, as quais impactam a relação das pessoas com seus lugares


de pertencimento e (co)habitação.
Considerando as particularidades da mesorregião do Sudeste Paraense,
constata-se, quando da apreciação dos dados demográficos (IBGE, 2015), que
par

a mesma é composta por 39 municípios distribuídos em sete microrregiões, a


saber: Conceição do Araguaia; Marabá; Paragominas; Paraupebas; Redenção;
Ed

São Félix do Xingu e Tucuruí.


A microrregião do Marabá, por sua vez, dentre o quantitativo mencio-
nado, se constituí por cinco municípios: Brejo Grande do Araguaia; Marabá;
ão

Palestina do Pará; São Domingos do Araguaia e São João do Araguaia.


Segundo a mesma base de dados (IBGE, 2015), a cidade de Marabá,
um dos principais municípios da mesorregião, possui extensão territorial
s

de 15.092,268 km², dentre os quais 0,20% (29,97 km), compreende a área


ver

urbana. Dado que salienta a vocação rural do município. O município conta


com uma população de 233.669 habitantes, dentre estes, conforme a síntese
das informações sobre os municípios, à luz do recorte de gênero, o contin-
gente populacional de homens corresponde ao universo de 118.196 habitantes,
enquanto o de mulheres compreende o quantitativo de 115.473 habitantes.
318

No tocante à ocupação, a qual figura enquanto um indicador relevante no


âmbito da PNAS, a referida síntese aponta que 50.988 mil habitantes mantêm
vínculo empregatício formal, quantitativo que representa um montante inferior
a ¼ da população de modo geral. No que concerne a questão da renda per capta
por família, nota-se que dentre as famílias da zona rural, a renda corresponde à
importância de R$ 178,33, valor inferior a ¼ do salário mínimo vigente (salário
mínimo R$ 937,00 -1/4 do salário mínimo R$ 234,25), percentual que qualifica,

or
dentre outros fatores, a inserção das famílias em uma série de programas e servi-

od V
ços previstos por diversas políticas setoriais e, em especial, a PNAS. Por sua vez,

aut
na zona urbana verifica-se que a referida renda alcança o patamar de R$ 375,00.
Sobre os indicadores de Educação, constata-se que 170.174 mil habitan-
tes residentes são alfabetizados e 81.726 mil habitantes estão formalmente

R
matriculados em creches ou escolas. Todavia, ainda há um contingente esti-
mado de 55.495 mil residentes não alfabetizados. Quando se trata do Índice

o
de Desenvolvimento Humano no Município – IDHM, os dados referentes
aC
ao ano de 2010 apontam que o município de Marabá está representado pelo

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número 0,668, o qual faz referência à faixa média do índice em questão.
O breve panorama demográfico do município de Marabá demonstra um
contexto propício à plena intervenção de um conjunto de ações articuladas
visã
entre diversos projetos, programas e serviços da PNAS tanto no nível da
Proteção Social Básica (PSB) quanto na Proteção Social Especial (PSE).
Atualmente, na esfera municipal, a Política Nacional da Assistência Social
itor

ocupa um status de secretaria, Secretaria de Assistência Social, Proteção e


a re

Assuntos comunitários de Marabá-PA (SEASPAC). No âmbito da Proteção


Social Básica - PSB, existem quatro Centros de Referência da Assistência Social
– CRAS, situados nos bairros do Amapá, Morada Nova, Folha 13 e Bela Vista,
além do Programa Bolsa Família, Criança Feliz e Coordenadoria da Mulher.
Por sua vez, no domínio da Proteção Social Especial – PSE de média
par

complexidade, registra-se a presença de um Centro de Referência Especia-


Ed

lizado da Assistência da Assistência Social – CREAS, localizado no bairro


Cidade Nova. No que tange a PSE de alta complexidade, o município de
Marabá conta com o CREAS – POP, destinado a atenção à população em
ão

situação de rua; Instituição de Longa Permanência – ILP, para pessoas idosas


o Centro Integrado da Pessoa Idosa Antônio Rodrigues - CIPIAR e uma ILP
para acolhida de crianças e adolescentes, o Espaço de Acolhimento Provisório
s

– EAP-Marabá, como também o Programa Família Acolhedora.


ver

Estudos sobre o perfil de crianças acolhidas institucionalmente

A experiência da institucionalização na infância tem impactos importan-


tes no desenvolvimento psicológico do indivíduo (ASSIS; FARIAS, 2013;
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 319

CAVALCANTE; MAGALHÃES; REIS, 2014; DELL’AGLIO, 2000;


WEBER, 2003), sobretudo, se ela ocorre no primeiro ano de vida, período em
que se intensificam as relações de apego (BRONFENBRENNER, 1996). Desta
forma, tem sido alvo de diversos estudos (CAVALCANTE; MAGALHÃES;
PONTES, 2007; CAVALCANTE; ARAUJO; GÓES; MAGALHAES, 2014)
Uma das linhas de investigação está voltada à caracterização das crianças
que são usuárias de espaços de acolhimento provisório, partindo da premissa

or
de que conhecer sua história de vida, de sua família, do processo de institucio-

od V
nalização, dentre outras variáveis, é fundamental para oportunizar abordagens

aut
pró-desenvolvimento adequadas.
Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007) realizaram um estudo que
discutiu aspectos das condições gerais em que 287 crianças foram encami-

R
nhadas, acolhidas e cuidadas em um abrigo infantil de Belém, entre 2004
e 2005. Foram realizadas entrevistas com a equipe técnica e consulta a fontes

o
documentais. Os itens levantados nasceram da adaptação do instrumento de
aC
pesquisa usado por Weber e Kossobudzki (1996). Os resultados mostram
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que 34,84% das crianças que participaram da pesquisa foram encaminhadas


ao abrigo antes de completar 1 ano de idade, 9,4% das crianças fizeram do
abrigo seu local de moradia por um período de tempo que variou de 1 a 6
visã
anos e 40,41% foram encaminhadas ao abrigo por uma conjunção de fatores
relacionados às condições de privação material e emocional a que foram
submetidas, geralmente desde o nascimento.
itor

A seguir vamos sintetizar os principais resultados de outros estudos rea-


a re

lizados em espaços de acolhimento institucional de crianças no Brasil. Cons-


tantino, Assis e Mesquita (2013) identificaram a predominância de crianças do
sexo masculino, na faixa etária de 6 a 11 anos nas instituições de acolhimento.
Os autores também constataram que a maioria das crianças tem registro civil.
Sobre as famílias das crianças acolhidas, Corrêa (2016), Fukuda, Penso
par

e Santos (2013), Gontijo et.al (2012) e Gueiros (2003) identificaram que a


Ed

maioria é monoparental e gerida por mulheres, especificamente a mãe. Fávero,


Vitale e Baptista (2008) em um estudo na cidade de São Paulo constatou ainda
que a maioria das famílias dispunham de moradia própria e construída em
ão

alvenaria. Os mesmos autores identificaram que poucas famílias eram bene-


ficiadas por algum programa social. Esta afirmação contrasta com os dados
de Correa (2016), pois identificou que a maioria das famílias era beneficiária
s

do Programa Bolsa Família.


ver

Sobre a escolaridade dos pais, Fávero et. al (2008) contataram que 50%
dos pais participantes tinham, no máximo, o Ensino Fundamental Incompleto.
Já Corrêa (2016) destacou a grande carência ou mesmo a ausência desse dado
nos arquivos das crianças acolhidas em Serviço de Acolhimento Provisório
da Região Metropolitana de Belém, Estado do Pará.
320

Ainda sobre as famílias das crianças acolhidas, Ferreira (2014) veri-


ficou que pelo menos 4,51% de seus membros era usuário ou traficante de
drogas. Esses dados revelam que o consumo de drogas vem a ser um dos
principais motivos que levam a criança a ser acolhida institucionalmente
(CORREA, 2016; CAVALCANTE, MAGALHÃES; REIS, 2014; GABATZ
et al., 2010; IPEA, 2004).
Dentre as razões para a institucionalização das crianças, Correa (2016),

or
Silva (2016), Serrano (2008) e Rosa (2004) identificaram que a negligência, a

od V
dependência química dos pais, abandono, violência doméstica e abuso sexual,

aut
estão entre os motivos mais frequentes para a institucionalização. Fukuda,
Penso e Santos (2013) verificaram que uma parcela significativa desta popu-

R
lação foi acolhida mais de uma vez. Segundo Sabatovski e Fontoura (2010),
Calcing e Benetti (2014) e Gontijo et al (2012), a maioria das crianças perma-

o
neceu na instituição menos de dois anos, aspecto interessante se observamos
que a legislação estabelece o prazo máximo de 18 meses.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Sobre a permanência de irmãos em instituições de acolhimento, Cons-
tantino, Assis e Mesquita (2013) identificaram uma parcela significativa
de crianças tinha irmãos acolhidos na mesma instituição. Um número
visã
igualmente significativo foi identificado por Correa (2016), Silva (2016) e
Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007). Segundo as Orientações Técnicas
(BRASIL, 2009), crianças e adolescentes com vínculos parentescos não
devem ser separados ao serem direcionados à Serviços de Acolhimento
itor

Provisório, a não ser que esteja claro algum tipo de risco. Manter esses
a re

irmãos juntos ajuda a preservar os vínculos familiares e história de vida,


assim como contribuir para formação de identidade. Por outro lado, este
dado também indica uma dificuldade recorrente das famílias destas crianças
no atendimento às suas necessidades.
par

Sobre a convivência familiar e comunitária, Fávero et.al (2008) constatou


que a maioria dos familiares realizam visitas regulares às crianças acolhidas,
Ed

indicando assim, segundo a autor, o interesse, o afeto e a vontade de manter


os vínculos. Dado semelhante foi encontrado por Corrêa (2016). De acordo
com as Orientações Técnicas (BRASIL, 2009) é importante que haja uma
ão

relação entre o espaço de acolhimento e as famílias das crianças, para que


possa haver uma compreensão de como as famílias estão experienciando o
s

afastamento de seus filhos e para que haja um fortalecimento que ajude na


ver

retomada do convívio e execução de seu papel protetor


Por fim, um aspecto também explorado pelas pesquisas é o destino
pós- acolhimento. Correa (2016), Gontijo et.al (2012) e Cavalcante (2008)
que constataram que, via de regra, os acolhidos são encaminhados para a
sua família de origem.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 321

Relato de uma experiência de pesquisa em acolhimento


institucional

A experiência de pesquisa que iremos relatar teve como objetivo geral


caracterizar a população infantil atendida pelo EAP-Marabá e foi desenvolvida
pelo grupo de pesquisa “Desenvolvimento infanto-juvenil na Amazônia”,

or
linha de pesquisa “Desenvolvimento infantil em situação de acolhimento
institucional”, composto por alunos e professores do Curso de Psicologia da

od V
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Para (Unifesspa), campus Marabá.

aut
Como frutos desse trabalho foram gerados um relatório de iniciação cientifica,
com os dados de crianças com idade inferior aos três anos (Estudo 1); um

R
Trabalho de conclusão do Curso de Psicologia, com crianças de três a doze
anos de idade (Estudo 2).

o
A motivação para realizar o estudo nasceu da possibilidade de contribuir
com a equipe técnica do EAP-Marabá na construção de planos de ação em
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nível mais pontual, como a capacitação de cuidadores, assim como de planos


em nível macro, contribuindo para o repensar das políticas municipais voltadas
a garantia de direitos de crianças.
visã
A pesquisa tomou a forma de um estudo documental que teve como
fontes os processos judiciais, os relatórios, as guia de acolhimento, os Plano
Individual de Atendimento - PIA - e as ficha de acolhimento das crianças
itor

acolhidas no período de 01º de outubro de 2017 e 31 de março de 2018, dis-


poníveis nos arquivos do EAP-Marabá.
a re

Antes do início da coleta de dados foram realizadas visitas técnicas à


SEASPAC e à Vara da Infância e Juventude de Marabá, visando apresentar
do projeto e pedir autorização para a manuseio dos arquivos institucionais
relacionados a cada criança acolhida no período eleito para coleta de dados.
par

Mediante a autorização, a pesquisa foi submetida à avaliação e aprovada por


um comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob o número CAAE:
Ed

28073919.4.0000.0018.
Como instrumento de coleta de dados, foi utilizado o Formulário de
ão

caracterização das crianças em situação de acolhimento institucional, adap-


tado da tese de Correa (2016), com base nos estudos de Cavalcante (2008) e
Weber e Kossobudzki (1996), composto de 73 questões divididas em quatro
s

eixos principais: identificação da criança (16 itens), dados escolares (nove


ver

itens), dados sobre a saúde da criança (21 itens) e processo de institucio-


nalização (27 itens). Cada criança recebeu um código a ser lançado em seu
formulário, visando resguardar o sigilo de sua identidade, composto de: a)
o sexo da criança (M para masculino e F para feminino); e b) a ordem de
entrada na coleta de dados.
322

As informações coletadas foram organizadas em planilha no programa


Excel, da Microsoft, de acordo com as nove variáveis propostas pelo estudo:
(1) dados sociodemográficos da criança e famílias; (2) dados sobre saúde da
criança; (3) motivo do acolhimento da criança; (4) permanência de irmãos/
ães na mesma instituição ou em outras do gênero; (5) quantidade de vezes em
que deu entrada na instituição; (6) idade da criança à entrada atual; (7) tempo
de permanência na entrada atual; (8) convivência familiar e comunitária; e (9)

or
destino no pós-acolhimento. Tendo em vista o caráter descritivo/diagnóstico
do estudo, a análise de dados sucedeu-se a partir do cálculo de frequências,

od V
considerando-se para tanto o nível de medida nominal.

aut
Estudo 1: Crianças com até dois anos e onze meses

R
No período de abrangência da pesquisa, foram identificadas onze crian-

o
ças na faixa etária investigada, o que corresponde a 23,4% dos (as) acolhi-
aC
dos (as) na instituição. A maioria do sexo feminino (9/11), no primeiro ano

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de vida (6/11) e natural de Marabá-PA (10/11). Um total de 10/11 crianças
estava vivenciando seu primeiro acolhimento institucional, ingressaram até
o primeiro ano de vida (6/11) e não haviam sido desligadas da Instituição
visã
no período da pesquisa. O tempo total de permanência variou entre um e 24
meses, com média de 9,8 meses e desvio padrão de 8,6 meses.
Considerando que o Brasil aderiu em 2013 a campanha proposta pela
itor

Rede Latino-Americana de Acolhimento Familiar: Mobilização pelo fim da


institucionalização de crianças menores de 3 anos; cujo objetivo central é a
a re

garantia do direito destas crescerem em um ambiente familiar (ORGANI-


ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2013), avalia-se que o número de crian-
ças acolhidas em Marabá foi elevado e mais que isso, preocupante. É ponto
passivo na literatura em Psicologia do Desenvolvimento o quão nocivos são
par

os impactos da ruptura de vínculos afetivos e/ou do estabelecimento de vín-


culos frágeis na primeira infância, especialmente no primeiro ano de vida
Ed

(BOWLBY, 2001; BRONFENBRENNER, 1996).


Verificou-se também que todas as crianças possuíam registro civil, mas
que em apenas 7/11 deles constava o nome do pai, embora todos tivessem
ão

paradeiro conhecido. A garantia do direito ao registro civil foi identificada nos


estudos de Constantino et. al (2013) e Corrêa (2016), porém esta última também
relatou a falta de reconhecimento da paternidade para a maioria das crianças.
s

Sobre os dados sociodemográficos das famílias, identificou-se que a


ver

maioria era monoparental; estava aos cuidados da mãe; era composta por mais
filhos, além da criança acolhida institucionalmente, com os quais ela coabitava.
Observou-se também que em 9/11 das famílias, os genitores eram usuários
de drogas ilícitas e lícitas. Perfil semelhante ao descrito na literatura (COR-
RÊA, 2016; FUKUDA et al., 2013; GOTIJO et al., 2012; GUEIROS, 2003).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 323

Com relação à escolaridade, ocupação e idade, em sua maioria, os geni-


tores não haviam completado o Ensino Fundamental (7/11) e exerciam alguma
atividade laboral remunerada no mercado informal de prestação de serviços.
Foi constatado que todas os genitores eram adultos, com média de idade
de 27,8 anos e desvio padrão de 5,4 anos para as mães e média de idade
de 28,5 anos e desvio padrão de 2,7 anos para os pais.
Informações sobre a renda familiar estava disponível nos arquivos de

or
apenas de três pais que recebiam valores pouco acima de um salário mínimo.

od V
Resultados semelhantes a este foram encontrados por Fávero et. al (2008).

aut
Observou-se que apenas 2/11 famílias estavam inseridas em programa
de transferência de renda previsto na Política Nacional de Assistência Social,
(Bolsa Família), quadro semelhante ao descrito por Fávero et. al (2008). Sobre

R
as condições de moradia das famílias, a maioria residia em imóveis alugados,
de alvenaria, com até três cômodos (7/11), com banheiro interno (7/1), energia

o
elétrica (8/11) e água encanada (8/11), provinda de poços artesianos (6/11).
aC
Encontrar-se em condições financeiras desfavoráveis e ainda assim estar
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

excluso de programas governamentais de transferência de renda também foi


verificado por Fávero et al. (2008). Esta aparente contradição pode decorrer da
dificuldade das famílias a terem acesso a informações de qualidade sobre os
visã
programas socioassistenciais, bem como a própria carência de recursos finan-
ceiros e a complexidade dos trâmites burocráticos (FÁVERO et al., 2008).
Dentre as variáveis do estudo, a saúde das crianças foi a que apresentou a
itor

maior carência de informações nos arquivos institucionais, não sendo possível


a re

na maioria dos casos obter informações sobre gravidez (10/11), indicadores de


crescimento (10/11) ou alterações desenvolvimento (11/11). A despeito disso,
foi possível identificar que maioria nasceu de parto normal (7/11) e algumas
apresentaram baixo peso ao nascer (4/11) e não foram ou não puderam ser
amamentadas (4/11). À entrada na Instituição, foram relatadas como altera-
par

ções de saúde: diarreia (2/11), pneumonia (2/11); lesões corporais (2/11); e


Ed

doença cardíaca congênita (1/11). Durante a permanência na instituição, outras


alterações de saúde foram registradas: leishmaniose (1/11); hepatite (1/11);
apneia (1/11); e sialorreia (1/11). Todas as crianças possuíam cartão SUS.
ão

Foi possível identificar informações sobre o estado emocional das crian-


ças ao chegar na instituição em 8/11 dos Guia de Acolhimento, dos quais em
apenas três casos foi assinalada a presença de choro e de comportamentos
s

agressivos. Não foram identificados nos arquivos registros sobre o estado


ver

emocional após o ingresso à instituição.


A ausência de informações sobre a família, condições de moradia e saúde
também foi verificada por Cavalcante (2008), Corrêa (2016) e Serrano (2008).
O registro das condições de saúde da criança, bem como de indicadores desen-
volvimentais dos bebês, por exemplo, fornecem importantes indicadores de sua
324

história de vida e trajetória institucional, deste modo é válido o empenho em


documentá-los. Estas informações auxiliam, por exemplo, na construção do
Plano de Atendimento Individual e Familiar e na articulação com a rede de saúde.
Sobre os motivos para o acolhimento institucional, identificou-se que
em 7/11 casos havia, pelo menos, dois motivos relatados. Da lista de motivos
para o acolhimento constam: abandono por parte dos pais e/ou responsáveis
(6/11); uso de drogas pelos pais (5/11); vulnerabilidade social da família

or
(4/11); negligência familiar (2/11); pais presidiários (1/11); situação de rua

od V
(1/11). Dados similares têm sido relatados na literatura (CORRÊA, 2016;

aut
SILVA, 2016; SERRANO, 2008; ROSA, 2004).
Sobre a permanência de irmãos/ães na mesma instituição ou congêneres,
identificou-se que 8/11 crianças tinham irmãos/ães que estavam ou haviam

R
sido acolhidos institucionalmente, todos no EAP-Marabá. O acolhimento
de grupos de irmãos tem sido relatado com recorrente na literatura (CONS-

o
TANTINO et al., 2013; CORREA, 2016; SILVA, 2016; CAVALCANTE et
aC
al., 2007). Segundo as Orientações Técnicas (BRASIL, 2009), crianças e

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adolescentes com vínculos de parentescos não devem ser separados ao serem
direcionados para serviço de acolhimento. Manter esses irmãos juntos favorece
a preservação dos vínculos familiares, história de vida e contribui para forma-
visã
ção de identidade. Por outro lado, este dado também indica uma dificuldade
recorrente das famílias destas crianças no atendimento às suas necessidades.
Por fim, com relação à convivência familiar e comunitária, 8/11 recebem
itor

visitas regulares de familiares, principalmente da mãe, mas apenas 2/11 realizam


a re

saídas da instituição para convivência no ambiente familiar, na casa de tias mater-


nas. A ausência ou pouca participação da criança em contextos além do espaço
de acolhimento amplia os efeitos deletérios da institucionalização e pode com-
prometer a futura inserção da criança na família e comunidade (CRUZ, 2019).
par

Estudo 2: Crianças de 3 a 12 anos


Ed

No período compreendido pela pesquisa, foram identificadas 20 crianças


acolhidas na faixa etária do estudo, na sua maioria do sexo masculino (12/20),
ão

com média de idade de 8,1 anos com desvio padrão de 2,5 anos e natural de
Marabá-PA (13/20). Verificou-se também que a maioria das crianças pos-
suíam registro civil (19/20), mas que em apenas 13/20 deles contava o nome
s

do pai, embora todos tivessem paradeiro conhecido. No que diz respeito à


ver

escolaridade, constavam informações nos arquivos de apenas 15/20 crianças,


sendo que as informações davam conta que 7/15 realizavam o Ensino Fun-
damental, em sua maioria em escolas da rede pública de ensino (6/15). Os
dados sociodemográficos das crianças são compatíveis com os encontrados
por Constantino, Assis e Mesquita (2013).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 325

Sobre os dados sociodemográficos das famílias, identificou-se que a maio-


ria era monoparental; estava aos cuidados da mãe (14/20); era composta por mais
filhos, além da criança acolhida, com os quais ela coabitava. Perfil semelhante ao
descrito por Corrêa (2016), Fukuda, Penso e Santos (2013), Gontijo et.al (2011)
e Gueiros (2003). Todas os genitores eram adultos, com média de idade de 33,3
anos e desvio padrão de 3,7 anos para as mães e com média de idade de 39 anos
e desvio padrão de 4,3 anos para os pais. Sobre o uso de drogas por parte de

or
algum familiar das crianças, percebeu-se que em 13/20 casos, pelo menos um

od V
integrante da família era usuário de drogas, em geral utilizada pelo pai e pela

aut
mãe (5/13), sendo que um número significativo (9/13) consumia drogas lícitas e
ilícitas. Resultados semelhantes foram relatados por Corrêa (2016), Cavalcante,
Magalhães, Reis (2014), Gabatz et al. (2010) e IPEA (2004).

R
A maioria dos arquivos não fornecia informações sobre a escolaridade
dos pais (4/20 mães e 4/20 pais), situação igualmente identificada por Corrêa

o
(2016), sendo possível identificar 3/4 mães eram analfabetas e que 3/4 não
aC
haviam completado o Ensino Fundamental. Em relação à ocupação e à renda
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

familiar, observa-se que quase todas as mães desempenham a função de cuida-


doras do lar (9/20), sem renda própria, enquanto os pais eram principalmente
eletricistas ou serviços gerais, recebendo na sua maioria (10/20) menos de
visã
um salário mínimo. A maior parte das famílias (17/20) era beneficiária do
Programa Bolsa Família (PBF), recebendo valores até R$ 500,00 por família.
Esse dado diverge dos achados da pesquisa de Fávero et.al (2008) em que
itor

identificaram que poucas famílias entrevistadas eram beneficiadas por algum


a re

programa social. No entanto, é semelhante aos resultados de Correa (2016)


que também notou a predominância da participação das famílias no PBF.
Constavam informações sobre as condições de moradia da família em
apenas 16/20 arquivos. A maioria residia em imóveis próprios (12/16), de
alvenaria (8/16), com três a cinco cômodos (14/16), com banheiro interno
par

(9/16), energia elétrica (9/16) e água encanada provinda de poços artesianos


Ed

(6/16). Este dado é compatível com os de Fávero et.al (2008).


Os dados sobre a saúde das crianças, assim como no Estudo 1, foram os
de maior carência de informações, não sendo possível obter dados sobre gra-
ão

videz, alterações de desenvolvimento, aquisição de doenças ou sobre estados


emocionais no período de adaptação ao acolhimento, assim como ocorreu em
Corrêa (2016). As poucas informações indicam que três crianças nasceram
s

de parto normal, das quais uma com baixo peso, e que apenas uma criança
ver

foi amamentada. É possível que haja dificuldade de articulação da rede do


SUAS e do Sistema Único de Saúde- SUS, posto que se espera que algumas
destas informações já tenham sido registrados neste sistema.
À entrada na Instituição, não havia nenhum registro de doença prévia, mas
foram informadas lesões corporais em três crianças (hematomas e escoriações).
326

Em quatro arquivos foi possível identificar relatos sobre choros frequentes e


esquiva de interações sociais. Todas as crianças possuíam cartão SUS.
Sobre os motivos para o acolhimento institucional, salienta-se que
em 4/20 casos houve mais de um motivo para o acolhimento, semelhante
ao que foi constado por Fukuda, Penso e Santos (2013). Da lista de motivos
constavam: abandono por parte dos pais e/ou responsáveis (8/20); negligên-
cia familiar (7/20); uso de drogas pelos pais (3/11); violência física (3/20);

or
doença mental da mãe (3/20); vulnerabilidade social da família (2/20); pais

od V
presidiários (1/20); e situação de rua (1/20).

aut
Na maior parte dos arquivos não constava informações sobre acolhimen-
tos institucionais anteriores (12/20), sendo possível apenas identificar de 7/8
das crianças já haviam sido acolhidas anteriormente, com idades de primeiro

R
ingresso variando entre dois a cinco anos de idade, 6/8 delas em outras institui-
ções de acolhimento. Diferente dos dados de Corrêa (2016) à entrada atual da

o
criança no espaço de acolhimento foi de 7,7 anos de idade. Identificou-se também
aC
que 18/20 crianças tinham ou já tiveram irmãos acolhidos institucionalmente.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Sobre o tempo de permanência e o destino pós-acolhimento, identifi-
cou-se que, exceto uma criança, as demais permaneceram na instituição por
até um ano, tendo sido desligadas 7/20 crianças no período em análise; todas
visã
reintegradas à sua família biológica. Dados semelhantes aos descritos por
Correa (2016) e Gontijo et al. (2012).
Por fim, com relação à convivência familiar e comunitária, identificou-se
itor

que todos os acolhidos receberam visita enquanto estavam na instituição, em


a re

geral feita pela mãe (14/20). Esse dado está em consonância com a pesquisa
realizada por Fávero et.al (2008), no qual evidenciou que a maioria dos fami-
liares se fazem presentes nas visitas, indicando assim o interesse, o afeto e a
vontade de manter os vínculos.
par

Considerações finais
Ed

Conhecer o perfil de crianças acolhidas em Instituições de Longa Per-


manência deve ser etapa imprescindível para a atuação do (a) psicólogo (a)
ão

inserido (a) nesses espaços e/ou daqueles (as) que atuam na construção de
políticas públicas. Cientes de que as condições de vida e as características
sociodemográficas das crianças podem se diferenciar de maneira significa-
s

tiva, inclusive entre as famílias atendidas em Serviços de Proteção Social, o


ver

grupo de pesquisa “Desenvolvimento infanto-juvenil na Amazônia” buscou


caracterizar a população infantil atendida pelo EAP-Marabá.
Dada a ausência de investigações com este público no âmbito da cidade
de Marabá, bem como da Mesorregião do Sudeste Paraense, o delineamento
metodológico quantitativo, documental e exploratório dos Estudos 1 e 2 se
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 327

mostrou adequado ao objetivo proposto. Os resultados indicaram que a popu-


lação atendida pelo EAP- Marabá se caracteriza em sua maioria por crianças
provenientes de famílias monoparentais sob cuidado da mãe, com poucos
recursos financeiros e genitores com baixa escolaridade. Dentre os motivos que
levaram ao acolhimento, os que tiveram maior ocorrência foram: abandono
por parte dos pais e/ou responsáveis, uso de drogas por estes; vulnerabilidade
social da família e negligência familiar.

or
No tocante às potencialidades do presente estudo, destacamos a aber-

od V
tura do debate e de investigações exploratórias de caráter diagnóstico sobre

aut
a temática da institucionalização das crianças e o impacto no desenvolvi-
mento humano na Região do Sudeste Paraense. Embora o perfil das crianças
deva ser visto com parcimônia, haja visto a carência de informações acerca

R
de diversas variáveis investigadas, o conhecimento produzido pode auxiliar
no planejamento de ações pontuais no EAP-Marabá, assim como colaborar

o
na construção de um panorama nacional acerca de crianças em situação de
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

acolhimento institucional.
A respeito das omissões, bem como, incipiência das informações iden-
tificadas em alguns arquivos/prontuários, especialmente sobre os pais/res-
ponsáveis pela criança, marcos do desenvolvimento e de condições de saúde,
visã
avalia-se que estas podem comprometer o resgate da história de vida das crian-
ças. Além disso, podem indicar que há pouco tempo para o detalhamento dos
prontuários, em virtude do ritmo de trabalho e/ou do número de funcionários.
itor

Neste sentido, acerca das limitações deste trabalho, apontamos a forma


a re

como os dados foram sistematizados e armazenados pela instituição onde a


pesquisa foi realizada, o que inviabilizou uma análise mais robusta. Por outro
lado, salienta-se a cordialidade com que a equipe do EAP-Marabá recebeu a
proposta desta investigação, bem como os trabalhos dela oriundos. A devo-
par

lutiva dos Estudos 1 e 2, bem como de outros desenvolvidos na instituição,


propiciou um rico compartilhamento de saberes e reflexões entre o grupo de
Ed

pesquisa e a equipe do EAP e a definição conjunta de temas para ações de


capacitação a serem realizadas no espaço.
Para realização de estudos futuros, recomendamos que estes possam uti-
ão

lizar fontes de coletas de dados distintas, para além da análise de documentos


com vistas a realização de estudos diagnósticos preliminares, a considerar
estratégias de observação participantes e escuta de crianças, adolescentes e
s

trabalhadores/as das Instituições de Longa Permanência.


ver
328

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Ed
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ver
Ed
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a re
visã R
od V
o aut
or
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ECOS NEOLIBERAIS E
PUNITIVISMO JUVENIL

or
Valber Luiz Farias Sampaio
Cyntia Santos Rolim

od V
Rafaele Habib Souza Aquime

aut
Apresentação

R
O avanço das práticas de governamentalidade neoliberais alarmam a

o
sociedade contemporânea. A “arte de governar”, como o filósofo Michel Fou-
aC
cault ([1978-1979] 2008) chamou a governamentalidade, vem formatando
um conjunto estratégico de práticas que conduzem os indivíduos à um duplo
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

movimento ideológico que ganharam força a partir de noção do Estado mínimo


principalmente nas décadas de 50 e 60.
visã
Baseado no conceito de soberania, situado a partir do século XVIII por
Foucault (2008), situa o processo de desenvolvimento da razão de Estado;
este como primordial fator à configuração e estabilização dessa prática de
itor

governamentalidade. A partir daí, modos de vida se estabeleceriam pela lógica


a re

da liberdade, não apenas no caráter de comércio, mas da responsabilidade


individual. Logo, estaria atrelado a este processo a instauração de um novo
governo de insegurança social (WACQUANT, 2010), o que Foucault (1989)
afirmou como um sentido mais amplo de técnicas e procedimentos que seriam
capazes de administrar a conduta dessas pessoas, captadas pelos dispositivos
par

que teriam funções estratégicas no seio da sociedade.


Ed

Segundo o autor francês Loïc Wacquant (2010), se compararmos, a partir


de uma breve análise, a conjuntura de penalizações dos países considerados
avançados da desde a década passada, teríamos uma relação estreita entre estas
ão

penas e desenvolvimento da governamentalidade neoliberal. Ainda segundo


o autor, a partir desta prática neoliberal, são desenvolvidas ideologias que
evidenciam uma “responsabilidade individual”, amargando a emergência
s

de uma égide punitiva de segurança acentuada frente à “delinquência”, ao


ver

mesmo tempo em que direciona a uma nova ordem econômica e moral sob um
império do capital. Logo, “[...] o neoliberalismo não seria apenas um regime
econômico e/ou político, mas também uma maneira de viver, um estilo de
vida” (LEMOS, et. al., 2015, p. 332).
Diante de certos estranhamentos que emergem a partir dessas ressonân-
cias na atualidade, sobretudo diante da juventude negra e pobre, propõe-se,
neste ensaio, a inversão da lógica pautada, principalmente pela mídia, acerca
334

desses adolescentes. Porque a agenda política social prioriza, contradito-


riamente, o viés punitivo frente à exibição de uma desigualdade social tão
acentuada? Porque na agenda de proposições políticas sempre se apresenta a
redução da maioridade penal19, de 18 para 16 anos? Por que há um debate tão
acirrado acerca do aumento do tempo de cumprimento de medidas socioedu-
cativas em centros de privação de liberdade? Alguns dos argumentos neoli-
berais, e principalmente pela denominada “bancada da bala”20, pautam-se na

or
ausência de políticas punitivas aos adolescentes que cometem atos infracio-

od V
nais, buscando a responsabilização desses atos com medidas mais severas, o

aut
que configura uma ótica de busca incessante para se ver livre de insurgências
sociais de uma possível desordem, fomentando assim modos cada vez mais
rígidos e encarceramentos precoces.

R
Diante deste cenário perverso e contraditório, se exibe a necessidade
de dialogar acerca da cultura “anti-jovem-pobre”, assim denominada por

o
Fernanda Bocco (2008). Logo, objetiva-se traçar uma breve relação entre o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


processo de governamentalidade neoliberal e o punitivismo febril que dire-
cionam os aspectos de existência das desigualdades sociais à criminalização
da juventude.
Para tal, questiona-se: quais os efeitos desse avanço da prática de gover-
visã
namentalidade neoliberal em direção à juventude? Logo, propõe-se situar o
pensamento acerca da governamentalidade neoliberal que se manifesta no
autor francês Michel Foucault, posteriormente traçando uma relação com esta
itor

punição acentuada na atualidade, direcionando, assim, à questão da normali-


a re

zação social por meio de determinados dispositivos e realizando uma breve


crítica que se manifesta na noção dos direitos humanos.

Notas sobre o neoliberalismo em Michel Foucault


par

Inicialmente, gostaria de situar o/a leitor(a) sobre o conceito de gover-


Ed

namentalidade utilizado neste texto. De acordo com a concepção pautada


por Foucault entre os anos de 1978 e 1979, nas aulas do Collège de France, o
conceito corresponde à uma “arte de governar”; um conjunto de mecanismos,
ão

numerosos e complexos, “[...] constituído por instituições, procedimentos, aná-


lises e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa
s
ver

19 Discurso presente na Proposta de Ementa à Constituição (PEC) 171/93, posteriormente modificada para
a 115/2015. Que também chama atenção o fato de ser proposta essa modificação apenas 3 (três) anos
após a promulgação da legislação magna em direção às crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e
do Adolescente - ECA, sancionado em 13 de julho de 1990, que tem como objetivo a proteção integral da
criança e do adolescente.
20 Denominação dada à parlamentares da política brasileira que estão ligados à indústria de armas, ex-policiais
e militares de modo geral.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 335

de poder, que tem por alvo a população e opera por meio da produção de uma
economia política” (LEMOS et al., 2015, p. 332).
Analisar a governamentalidade nos permite desmembrar determinados
binarismos que se constroem, na lógica Estado-sociedade civil. São con-
cepções fragmentadas que nos proporcionam o entendimento de oposição;
quando, na verdade, fazem parte de um emaranhado de múltiplas forças.
Em O nascimento da biopolítica, Foucault (2008) parte de duas con-

or
cepções referentes ao neoliberalismo como modos de governamentalidade:

od V
o ordoliberalismo, que tem origem alemã e o denominado anarconeolibera-

aut
lismo, com origem nos Estados Unidos da América (EUA). Estes, por sua
vez, funcionariam a partir de uma “aversão” à lógica de Estado. A noção de
razão do Estado mínimo, onde há um deslocamento da centralidade racional

R
econômica para um racionalidade político-jurídica.
O neoliberalismo surgia na Alemanha a partir do pós-guerra, com o obje-

o
tivo de constituir a Alemanha Ocidental, seguindo um modelo de liberalismo
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de mercado. Segundo Foucault (2008), o teórico Ludwig Erhard, através do


denominado Conselho Científico21, seria o responsável pela dissociação de
controle de preços de pela lógica estatal.
Neste sentido, Nilo (2010) afirma que:
visã

A economia é criadora do direito público, isto é, é a economia que produz


a legitimidade para este Estado. É deste modo que a liberdade individual
itor

é resgatada na Alemanha do pós-guerra, pois, os indivíduos passam a


a re

ser agentes no interior deste Estado, agentes investidores, parceiros da


economia na medida em que aceitam este jogo econômico da liberdade.

Coadunado a este pensamento de modelo neoliberalista, a função do


Estado seria voltada à proteção da propriedade privada, sobretudo da produção
par

desta. Foucault (2008, p. 111) chega a afirmar que Erhard atribui o sentido de
que um Estado somente poderá falar em nome do povo a partir do momento
Ed

em que reconhece a liberdade econômica deste, dando espaços à liberdade


e às respectivas responsabilidades. Diante disso, a ordem econômica estaria
pautada na lógica de concorrência econômica.
ão

Enquanto a premissa norte-americana do pensamento neoliberal, o mer-


cado apresentava-se como centralidade das mediações, deixando o Estado como
s

processo de avaliação pela veridicção de seu comércio; este, por sua vez, não
ver

tinha nenhum tipo de intervenção por parte do Estado. O mercado seria, então,
este lugar a partir da consolidação de um campo de saber – logo, de verdade –
agenciado pela economia política neste lugar de ciência (DELUCHEY, 2015, p.
21 Foi formado junto à administração alemã da economia. O Conselho seria de opinião de que o processo econômico
deveria ser assegurado de modo mais amplo possível pelo mecanismo de preços (FOUCAULT, 2008, p. 109).
336

28). Segundo Lemos (et. al., 2015), adentram juntamente com esta concepção
neoliberal norte-americana, a noção de capital humano22, de segurança por
lei e ordem e de empresariamento da vida, dentre outras.
Ainda em Lemos (et al., 2015, p. 333) acerca de Foucault (2008):

Outro aspecto desse neoliberalismo é a organização de toda a sociedade


como empresa, que redefine as regras do direito para facilitar as transações

or
e os contratos, promove um sistema de arbitragens entre os consumidores,
cria um sistema de reciprocidade entre economia e direito, propõe um

od V
capitalismo como relação social e modo de vida, introduz o Estado de

aut
Direito na economia, em que o Estado deve prestar regras para a geração
de renda e para regular danos e conflitos, através de mediações jurídicas,

R
forjando intensa judicialização das relações sociais.

Uma vez que se aceita a liberdade de mercado, estaríamos lidando com

o
um mercado que controla o Estado, no sentido de organização e regulação
aC

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desse Estado. É necessário governar em prol da sociedade produção de mer-
cado, ao invés de governar por causa do mercado (FOUCAULT, 2008). Dessa
forma, afirma Deluchey (2015, p. 28 apud FOUCAULT, 2008): “De garantidor
visã
de direitos, o Estado passa a ser garantidor das regras “naturais” chanceladas
como tais pelo mercado: livre concorrência, preço estabelecido através da
relação oferta/demanda, limitação da lógica monopolística, etc.”.
Neste sentido, a consolidação deste Estado mínimo opera mecanismos
itor

sociais que libertariam não apenas o mercado, mas a intensificação das desi-
a re

gualdades sociais, visto que a noção de comum daria lugar a interesses restritos
de determinada camada social. Logo, aos que não seriam úteis à sociedade,
como produtores diante das estatísticas econômicas, estariam à margem e
necessitariam serem eliminados/as. É aí que os dispositivos de segurança são
par

incitados. Estes são baseados em um conjunto de saberes que se estruturam


como técnicas de domínios e normalização dos sujeitos (FOUCAULT, 2005).
Ed

Articulados a isto, o binômio lei-ordem se solidifica no discurso de riscos,


caracterizando previsibilidade dos perigos sociais.
Com o advento “evolução” das ciências, principalmente da criminologia
ão

e da psiquiatria criminal, a quantificação, avaliação e medição ganham forças,


transformando os sujeitos em objetos de estudo que servem para a racionaliza-
ção de novas tecnologias disciplinares. Essa gama de técnicas têm o objetivo
s

magno de moldar os sujeitos que exibem a desordem no corpo social. Esse


ver

poder coercitivo seria a essência de um novo fenômeno moderno, a disciplina.

22 Theodore W. Schultz, professor do departamento de economia da Universidade de Chicago, foi um dos


organizadores desta concepção. Ele afirmou que o trabalho humano à medida de determinada qualificação,
por meio da educação, era um fator significativo para a ampliação da produtividade, logo, de lucro. Aplicada
ao campo educacional, esta concepção gerou tecnicismo no ensino.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 337

Em meio às transformações sociais dinamizadas pela organização dos


espaços, de mobilidade – como ruas, estradas, ferrovias, etc. –, empresas,
delineamento de bairros, dentre outros, alguns locais se tornam mais capita-
lizados diante da noção de evolução atrelada à produtividade e circulação de
capital. Com isso, o utilitarismo radical imbricado nas ações governamentais
filtra os “inadaptados” a partir de seus interesses, excluindo sujeitos desse
monopólio de valores econômicos.

or
Estes sujeitos “inadaptados” seriam, de acordo com a governamentali-

od V
dade neoliberal, a fomenta de perigo e desvios de uma ordem social impressa/

aut
vigente. Logo, estes sujeitos necessitariam adentrar a esfera normalização, a
partir de uma racionalidade ambientalista de uma higiene social, que opera

R
pela noção de defesa da sociedade (FOUCAULT, 2005).
O utilitarismo ganha mais espaço a partir dessa arte de governo; antes, o

o
espaço de troca dá lugar ao da concorrência, que elimina, exclui, e, sobretudo,
mata. Ou se adentra à racionalidade do homo oeconomicus e seus interesses,
aC
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ou não fará parte desse espaço. Nilo (2010) afirma que para sobreviver deve-se
existir flexibilidade/ adaptação; a arte de governo neoliberal se reinventa, ao
mesmo tempo que cria, (se) modela e exclui (em todos os sentidos do termo),
visã
sem perder suas características essenciais, econômico ser intocável.

Reflexões acerca do dispositivo punitivo


itor

Neste viés, se modelam diversos dispositivos para dar sustento à essa


a re

égide utilitarista que se emancipa com o neoliberalismo e suas consequên-


cias; dentre elas, a da desordem, tomando como medida dessas insurgências
o sinônimo de transgressão.
Os métodos utilizados para manter a ordem na sociedade se inserem a
par

partir de um conjunto de elementos heterogêneos com funções estratégicas


para a contenção dessas urgências, estes chamados de dispositivos (FOU-
Ed

CAULT, 2010). Segundo Foucault (2005), estes dispositivos de segurança


seriam forjados e sustentados frente à uma inflação legal.
ão

Para Deluchey (2015) as principais funções do dispositivo de repressão


criminal estariam ligadas readaptação dos que não estariam enquadrados
nas regras de mercado e o processo de exclusão estaria atrelado aos sujeitos
s

que estariam distanciados do jogo econômico. Com isso, a vida entraria na


ver

égide da judicialização do habitual (do cotidiano), porém, partindo de um


discurso que pautam a segurança como centralidade das medidas políticas
de condução dessas condutas.
São alguns efeitos desse processo de intensificação do discurso e das
medidas de segurança:
338

[...] a intensificação do recrudescimento penal, o aumento da população


carcerária e dos sujeitos à disposição da justiça criminal, por meio das
penas alternativas para pequenos desvios sociais, de pagamentos de multas
e punições em meio aberto com o uso de coleiras eletrônicas, prestação de
serviços comunitários, a chamada justiça restaurativa e ampliação do papel
do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal (PASTANA, 2009,
In. LEMOS et al., 2015, p. 335).

or
No panorama dessa gestão dos indesejáveis, forjam-se discursos e sabe-

od V
res para que fazem parte da lógica desse dispositivo penal. Em nome do

aut
bem social e da segurança pública, silenciam as insurgências sociais a par-
tir de estratégias de controle. Wacquant (2001) afirma que vivemos sob a

R
égide do Estado Penal, onde há um desinvestimento no Estado Social, ao
mesmo tempo que adotam medidas mais severas diante da criminalização

o
do “sujeito desviante”.
aC

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A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar
com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econô-
mico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança
visã
objetiva e subjetiva em todos os países (WACQUANT, 2001, p. 7).

Para Wacquant (2010), essas políticas foram um consenso política de


larga aceitação pública, que transcende as classes, fruto de um misto da inten-
itor

sificação da midiática em direção à criminalidade, desigualdade social e inse-


a re

gurança. Os sujeitos, em meio aos dispositivos de segurança, são constituídos


como criminosos nessa rede de saber-poder, o que geraria uma severidade
penal perversa considerada como saudável. O higienismo social passa a ser
considerado primazia aos mecanismos de segurança.
par

Partindo desta premissa, de glorificação do cenário criminológico social,


estes dispositivos promovem um conluio de saberes e técnicas que visam a
Ed

antecipação de riscos e perigos no campo social. As decisões políticas e eco-


nômicas advêm cálculos por fatores de risco, uma espécie de antecipação de
acontecimentos baseados na previsibilidade, que enaltecem lógicas racistas e
ão

eugenistas. Segundo Deluchey (2015), essa noção de risco atrelada a gestão


do medo, se localiza na centralidade da governamentalidade neoliberal. Nela,
o autor retrata que:
s
ver

O conceito neoliberal de segurança pública reveste igualmente uma segu-


rança dupla: à inseguridade social – decorrente da ordem socioeconômica
vigente e da concorrência como regra maior de sociabilidade – corres-
pondente a necessidade de mobilizar os setores da segurança pública, da
justiça criminal e da execução penal, enquanto resposta a uma inseguridade
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 339

social, a qual traduz insegurança individual para os cidadãos que maciça-


mente acabam apoiando políticas de segurança essencialmente repressivas
(Ibid., 2015, p. 73).

Frente à isso, se exibe a equação que corresponde à um apagamento de


um Estado econômico direcionado às políticas sociais, ou seja, que fortalecem
o Estado Social, enquanto o Estado Penal ganha cada vez mais força (WAC-

or
QUANT, 2001). Neste sentido, os dispositivos de segurança forjam não só a
emergência do sentimento de insegurança e medo, mas, sobretudo “oferecerá”

od V
uma resposta a esse sentimento: o discurso, impositivo, da instauração da

aut
segurança à qualquer suspeita desordem.
Essa resposta de responsabilização do sujeito que transgride à ordem

R
social se sustenta na liberdade, servindo de recurso que legitima essa prática
somado aos saberes que tendem a formatar estratégias, a partir de seus cálculos

o
de riscos. Ou seja, criam-se medos, para vender “soluções”. Nesse panorama,
aC
não só os adultos estariam na “mira” de uma lógica punitiva; a juventude
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também se encontraria como insurgência desse aspecto de desordem no cerne


do campo da previsibilidade intensificada do “criminoso em potencial”. Ou
seja, as ciências modernas auxiliam no esquadrinhamento de um “vir-à-ser”
visã
que justificam e sustentam essa égide penal.

Interlocuções da lógica punitiva e da juventude


itor
a re

Por volta de 1978 Michel Foucault já manifestava seu interesse pelos estu-
dos de exclusão e institucionalização, escrevendo o livro História da loucura
teria localizado efeitos de saber e poder que estavam se estabeleciam sob o con-
finamento na sociedade. Não apenas na ordem do confinamento, mas, sobretudo,
à complexidade que estes se expunham em meio ao seio da sociedade, assim
par

como aos efeitos de verdade que estes teriam, por meio de atravessamentos de
tecnologias de poder. Logo, temos a dimensão de que o acoplamento de prá-
Ed

ticas policiais, e principalmente punitivas, de controle travestidos no discurso


de segurança pública não é algo inovador. Desde o século XVIII a prática do
ão

poder penal foi capitalizada por toda sociedade (FOUCAULT, 2012). Segundo
Oksala (2011), Foucault (2012) em Vigiar e Punir não buscou apenas analisar
as práticas de punição com o objetivo de condená-las, mas de problematizar os
s

modos de racionalização dessas práticas, promovendo rupturas nesses moldes.


ver

A partir da “evolução” dos sistemas de punição de indivíduos, vários


modelos surgiram ao longo do tempo23. Porém, foi no século XIX que os

23 Maia (et al., 2009) afirma que John Howard propôs importante reforma nas prisões britânicas, levando em
consideração as péssimas condições carcerárias ferindo a caridade cristã. Para tal mudança, sugeriu o
confinamento solitário, o trabalho e a instrução religiosa aos presos.
340

Estados Unidos criaram os primeiros modelos penitenciários que levaram em


consideração a noção de “panóptico”24. Vale ressaltar que eram convenientes
aos países industrializados esses modelos de penitenciárias, à medida em
que compunham o sistema produtivo vigente25. Logo, alguns autores – como
Melossi e Pavarini26 – consideram a privação de liberdade intrinsecamente
ligados ao desenvolvimento do capitalismo.
Durante longos anos, imaginávamos que essas discussões seriam ape-

or
nas designadas à camada adulta da sociedade. No entanto, Batista (2009,

od V
p. 96) afirma que:

aut
O neoliberalismo trouxe uma outra vez a juventude para o centro das
atenções criminológicas, ao mesmo tempo em que o fim das ilusões do

R
pleno emprego keynesiano, a descartabilidade da mão de obra e na supre-
macia da ideologia do mercado configuram de outro modo a visão dessa

o
etapa da vida como problema. A destruição das políticas públicas e a falta
aC
de perspectivas de trabalho em contraste com a energia juvenil fizeram

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


com que grandes contingentes de crianças e adolescentes passassem a ser
tratados pela lógica penal.
visã
Esse recrudescimento penal somado às emergências de problemáticas
sociais – junto a elas a racionalidade de resoluções pautadas no imediatismo
– intensificam a criação de políticas punitivas; dentre elas, a tentativa de
redução da maior idade penal e o aumento de tempo de privação de liberdade
itor

em instituições totais. Para Benelli (2014), a internação em instituições totais


a re

tem sido uma estratégia frequente no percurso de toda a história. Essas insti-
tuições foram, e continuam sendo, produtoras de subjetividades, modelando
o comportamento e normalizando os sujeitos.
Diante do exposto, adentrando o campo da previsibilidade e do cálculo
par

de riscos, a lógica punitiva não pertenceria mais ao ato em si. Segundo esse
aspecto, o que seria punido é o/a adolescente em potencial, a racionalidade
Ed

do perigoso, criminalizando a juventude.


ão

24 Essas penitenciárias apresentaram dois modelos de execução de pena: o modelo da Pensilvânia, que propôs
o isolamento completo de seus presos, onde possibilitavam a execução de trabalho em suas próprias celas;
e o modelo de Auburn, que isolava os presos apenas no período noturno, obrigando-os ao trabalho durante
no período diário, no entanto restringiam qualquer tipo de comunicação entre os mesmos (Ibid, 2009).
s

25 George Ruche e Otto Kirchheimer, em Punição e estrutura social ([1939] 2004), elencaram os sistemas de
ver

prisões associados aos modos de produção de cada época. Na Idade Média as punições restringiam-se
às multas e penitências; na Renascença às mutilações e exílios, à medida em que compunham o controle
do proletariado; durante às práticas mercantilistas as punições estavam nas exigências do Estado e na
ascensão do capitalismo se apresenta o modelo atual.
26 Dario Melossi e Massivo Pavarini em sua obra Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (1977)
estudaram os sistemas prisionais da Holanda, Itália, Inglaterra e Estados Unidos apontando a prisão como
uma pré-fábrica, que objetivavam a coerção social através da produção laboral.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 341

A falsa concepção de que sujeitos que são isolados/excluídos em centros


carcerários – como considerarei os centros que designam atividades de socioe-
ducação – nos amenizará o medo ou a insegurança, ou até ressocialize27 este, se
esvai ao mesmo momento em que as estatísticas de encarceramento precoces só
aumentam. Sob a perspectiva das instituições totais28 que delineiam modos de
existência desses sujeitos, o cerceamento da liberdade naturaliza do poder legal
de puder, ao mesmo tempo em que o poder técnico de punir (FOUCAULT, 2012).

or
As práticas que constituem os centros de privação de liberdade mol-

od V
dam os corpos de acordo com seus regimes. Nestes centros, realizando uma

aut
comparação ao sistema carcerário, as aplicações de pena representariam a
conversão, não de um sujeito que se reconstrói a partir de um pacto jurídico,
mas na constituição de um corpo dócil, útil (CASTRO, 2014). Esse poder

R
coercitivo seria a essência de um fenômeno moderno, a disciplina.
Essa coercitividade que surge como latência em meio à disciplina carac-

o
terizaria então uma espécie de aprendizagem, uma normalização. A função
aC
do poder de punir não difere essencialmente do poder de curar ou educar,
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eles estão intrinsecamente ligados (FOUCAULT, 2012). Nesse sentido, a


vigilância e a punição estariam na mesma égide à medida de que pedagogia,
os dogmas ideológicos e os saberes médicos têm a mesma função: o poder
visã
disciplinar engendrados em saberes e, acima de tudo, a normalização dos
sujeitos, o estabelecimento de uma ordem produzindo uma realidade social.
Assusta a ausência de problematização dessas insurgências em meio à
itor

sociedade. A proclamação da punição como resolutividade das problemáticas


a re

sociais se dá meio à toda uma gama de engrenagens do dispositivo de segu-


rança. Em nome desta, a prática da seletividade incide frente à espécie humana.
O uso político sobre a vida, a denominada biopolítica, resguarda uma parte
da população à lesão de outras. É a antiga frase descrita por Foucault (2005),
sobre fazer viver e deixar morrer. Porém, nos questionamos: porque deixar
par

morrer? Quem estaria apto a julgar tal seletividade? Por essa perspectiva,
Agamben (2012) afirma que a biopolítica seria semelhante a tanatopolítica.
Ed

Para Foucault (2009), a biopolítica e a disciplina não seriam mecanismos


que se operam exclusivamente e diretamente pelo Estado e pelas instituições.
Não podemos cair no modo dedutivo quando se trata de uma complexidade
ão

pautada em dispositivos. Logo, ao se privar sujeitos, sobretudo jovens negros


e pobres, de sua liberdade os centros não punem apenas os corpos, mas produ-
s

zem sujeito criminalizados, despersonificados, forjando uma nova identidade,


que muitas vezes permanece como inimiga da sociedade.
ver

27 Termo utilizado comumente que designa a concepção mudança comportamental. Égide normalizadora.
28 Goffman ([1961] 2013) caracterizou esses locais como locais de residência, em que se estão presentes
diversas pessoas em situações semelhantes, e que se encontram afastados da sociedade. Para tal, há
regulação do tempo e das atividades. O autor destaca locais como prisões, manicômios e conventos como
os principais exemplos desse modelo disciplinar.
342

Para Foucault (2012) o fracasso das prisões foi anunciado já no século


XVIII, acompanhado na verdade pela sua manutenção, através do “aperfeiçoa-
mento” das técnicas penitenciárias no chamado “sistema carcerário”, baseado
na norma, no rigor e na disciplina contra a denominada delinquência. No
entanto, enquanto missão institucional, esses centros de reclusão cumprem o
que objetivam: produzem e reproduzem a concepção de delinquência, fazendo
disso um mercado, diante do desejo de implementação de PEC’s como a da

or
redução da maioridade penal e do aumento do tempo de cumprimento de

od V
medida socioeducativa, e, posteriormente, com a criação de centros privados

aut
com estes fins (assim como em outros países, no sistema carcerário).
Para além de interesses de mercado, sabemos que a intensificação da
penalidade destinados à camadas sociais não traria como resposta o fim das

R
insurgências sociais como as desigualdades. Ou seja, encarcera-se em nome
do higienismo social, da disciplina e de uma ordem, que contraditoriamente

o
não respeitando a subjetividade diante da perspectiva normalizadora, em nome
aC

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da “segurança” social e de seus próprios interesses.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 343

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO PROFISSIONAL NO
CÁRCERE: uma proposta em educação de
jovens e adultos privados de liberdade

or
od V
Fernanda Nazaré da Luz Almeida

aut
Leandro Passarinho Reis Júnior
Michele Torres dos Santos de Melo

R
Introdução

o
Conforme estabelecido pela Lei de Execução Penal, o acesso à assistência
aC
educacional é um direito garantido à pessoa privada de liberdade e deve ser
oferecido pelo Estado na forma de instrução escolar e formação profissional,
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visando a reintegração da população prisional à sociedade. No ano de 2016 o


visã
Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN realizou um Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN, tendo como referência
os dados levantados no mês de junho do corrente ano, que evidenciou um total
de 726.712 pessoas privadas de liberdade custodiadas no sistema penitenciário e
itor

secretarias de segurança/ carceragem de delegacias das Unidades da Federação


a re

e no sistema penitenciário federal. Para fins do presente levantamento, as ativi-


dades educacionais foram discriminadas entre atividades de ensino escolar, que
compreendem as atividades de alfabetização, formação de ensino fundamental
até ensino superior, cursos técnicos (acima de 800 horas de aula) e curso de
par

formação inicial e continuada (capacitação profissional, acima de 160 horas


de aula). Assim sendo, temos os seguintes números de pessoas privadas de
Ed

liberdade de acordo com o tipo de atividades de ensino escolar no Brasil: 9.833


na alfabetização, 31.112 no ensino fundamental, 14.396 no ensino médio, 540
no ensino superior, 626 em cursos técnicos com carga horas de aula acima
ão

de 800h/a e 5.138 em cursos de formação inicial e continuada (capacitação


profissional) com carga horária acima de 160h/a. O INFOPEN demonstrou
ainda, que existiam 95.919 pessoas privadas de liberdades inseridas no mercado
s

de trabalho. No Sistema Penitenciário Federal existiam 437 homens custo-


ver

diados, destes 4% são analfabetos, 14% tinham ensino médio completo, 21%
com ensino médio incompleto, 2% com ensino superior incompleto, 41% com
ensino fundamental incompleto e 18% com ensino fundamental completo.
Na Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará – SUSIPE,
criada através da Lei Estadual nº 4.713, de 26 de maio de 1977, transformada em
Autarquia pela Lei nº 6.688, de 13 de setembro de 2004, datada de autonomia
administrativa e financeira e vinculada à Secretaria de Estado de Segurança
346

Pública e Defesa Social – SEGUP, tem por missão institucional planejar, coor-
denar, implementar, fiscalizar e executar a custódia, reeducação e reintegração
social de pessoas presas, internadas e egressos, em cumprimento ao disposto na
Lei Federal nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal. A Lei
nº 8.322, de 14 de dezembro de 2015, dispõe sobre a reestruturação da SUSIPE.
Legalmente, a educação no cárcere é um tipo de educação de adultos que
visa escolarizar, formar e qualificar pessoas temporariamente encarceradas

or
para que, depois que cumpram o tempo de privação da liberdade, possam

od V
reinserir-se com dignidade no mundo social e do trabalho, já que essas pessoas,

aut
em sua maioria, têm baixa ou nenhuma escolarização. Nesse sentido, grande
parte dessas pessoas presas necessita de uma educação ampla e diferenciada
para que adquiram conhecimentos, saberes e práticas que lhes possibilitem

R
a (re)construção de sua cidadania, se é que em algum momento de sua vida
social e produtiva ela foi ou se sentiu cidadã.

o
Essa educação é condição sine qua non para mudar a realidade cruel
aC
do sistema carcerário nacional, e no Estado do Pará não é diferente, como

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mostram os dados do relatório mensal da SUSIPE, chamado SUSIPE em
números de novembro 2018, que demonstra um quantitativo de 17.242 pre-
sos, 2.047 monitorados, totalizando 19.289 pessoas privadas de liberdades.
visã
Deste total, 910 são analfabetos, 1.846 são alfabetizados, 9.847 possuem
ensino fundamental incompleto, 1.489 possuem ensino médio completo e 63
tem ensino superior completo. Esses dados nos mostram que são elevados os
itor

números de pessoas privadas de liberdades, que possuem baixa escolaridade.


a re

Hoje a SUSIPE possui 1.773 pessoas privadas de liberdade em atividades


laborativas, quer seja por meio de convênios, atividades externas e intramuros.
Quanto à sala de aula, 3.776 pessoas privadas de liberdades estão estudando,
sendo 2.580 na educação formal, 1.070 na educação não-formal e 126 estão
fazendo cursos profissionalizantes. Os dados apresentados demonstram o
par

baixo investimento na educação e profissionalização das pessoas privadas de


Ed

liberdade. De fato, o que acontece é que se tem um sistema falido pela ausência
de uma política pública de segurança e cumprimento de pena e ressocializa-
ção dos presos. Diante desse caos, o que a educação pode fazer? Como ela
ão

pode contribuir? É possível uma educação que humanize o sistema prisional


brasileiro? Eis as questões sobre as quais se faz necessário pensar no contexto
da relação educação e sociedade. O que leva a refletir e propor neste projeto
s

de intervenção é o baixo número de oferta de cursos profissionalizantes, o


ver

que implica na proposta de ressocialização e na diminuição da reincidência


carcerária e, consequentemente, na inserção ao mercado de trabalho.
A população carcerária é aquela que tem menos oportunidades educacio-
nais, que por sua vez, implica em oportunidades no mundo social e do trabalho.
Essas pessoas fazem parte da contradição do sistema capitalista – exclusão de
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 347

parte da sociedade dos bens produzidos socialmente, portanto, os indivíduos


que hoje cumprem pena são, em sua maioria, das classes desfavorecidas da
sociedade, vivendo em condições de pobreza permanente, o que explica os
altos índices de presos por furtos e roubos, bem como por tráficos de drogas,
segundo relatório da SUSIPE de novembro de 2018.

Educação nas prisões

or
od V
O sistema prisional, ainda em 1984, ganhou novas diretrizes por meio

aut
da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), que buscou garantir legalmente
direitos às pessoas presas, mas na prática, muitas das ações não foram cum-

R
pridas pelo Estado, em particular a assistência educacional que ainda não é
uma realidade na maioria dos presídios, portanto, não cumprindo na íntegra
o que diz o Art. 11, que a educação nos presídios deverá compreender “a ins-

o
trução escolar e formação profissional do preso e do internado”, sendo que,
aC
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o ensino fundamental disponibilizado ao preso deve estar em concordância


com o “sistema escolar do Estado”.
Quanto ao ensino profissional, deveria “[ser] ministrado em nível de
visã
iniciação ou de aperfeiçoamento técnico”. Essa educação tanto pode ser exe-
cutada pelo Estado como por instituições educativas conveniadas, sempre
buscando atender “as necessidades locais de cada penitenciária”. Também a
instalação de bibliotecas nos presídios deve ser uma necessidade “para uso
itor

de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos


a re

e didáticos”. A educação no cárcere deve iniciar na alfabetização, passando


pelo ensino fundamental, médio até ao profissional, garantindo, dessa forma,
a escolarização completa aos encarcerados.
Sabe-se que a construção de prédios é um fator necessário, mas não o
par

mais importante, pois para nada serve a construção de salas sem um currículo
de qualidade que dê conta das diferenças do ensino-aprendizagem para pessoas
Ed

adultas e que estão temporariamente em privação de liberdade. Necessita ser


um processo educativo capaz de motivar essas pessoas a ponto de ver na edu-
cação uma possibilidade de emancipação ainda na condição de encarceradas.
ão

Neste sentido, podemos refletir sobre o olhar de Foucault:

“o trabalho penal não é o aprendizado deste ou daquele ofício, mas o apren-


s

dizado da própria virtude do trabalho. Trabalhar sem objetivo, trabalhar


ver

por trabalhar, deveria dar aos indivíduos a forma ideal do trabalhador.” “a


partir dos anos 1835-1840, tornou-se claro que não se procurava reeducar
os delinquentes, torna-los virtuosos, mas sim agrupá-los num meio bem
definido, rotulado, que pudesse ser uma arma com fins econômicos ou
políticos (FOUCAULT, 2012, p. 133).
348

A educação é um elemento importante no processo de ressocialização do


preso, mas é apenas um dos elementos, não significa que seja o principal, pois
outras políticas precisam ser construídas a favor deles, a qual lhes garanta os
direitos que não terminam porque eles estão presos, pelo contrário. O Estado,
como tutor da vida dessas pessoas, tem a obrigação dessa garantia, que vai
desde a preservação da integridade física, passando pela moral até a psíquica,
independente do crime que o preso tenha cometido.

or
Na concepção de Costa (2014), no estabelecimento penal há pouco

od V
espaço para o exercício da individualidade e da reflexão, ficando a educa-

aut
ção minimizada em seu potencial de transformação das pessoas privadas de
liberdade. O autor afirma que é preciso mudar a cultura, o discurso e a prática

R
para compatibilizar a lógica da segurança (de cerceamento) com a lógica da
educação (de caráter emancipatório), uma vez que ambas convergem aos

o
objetivos de cumprimento da pena e de reintegração social ou ressocialização
daqueles que estão privados de sua liberdade.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


A Educação no Cárcere nessa via seria um processo de acessar conhe-
cimentos para aquelas pessoas que estão presas, desenvolvendo-as cognitiva
e socialmente para que possam se reintegrar à sociedade. Essa educação é
visã
tanto para a sua escolarização (formação dentro do sistema oficial de ensino)
e profissionalização (formação para o mundo do trabalho). A Pedagogia no
Cárcere busca investigar as práticas educativas dentro das prisões, no sentido
itor

de desvelar se os objetivos estão sendo alcançados.


a re

Os problemas que existiam na época da institucionalização dessa edu-


cação são os mesmos dos dias atuais, que vão desde a ausência de uma
organização didática e pedagógica, como a falada qualificação de profes-
sores para trabalhar com esse grupo marginalizado socialmente, bem como
os espaços físicos destinados ao processo de escolarização, que são inade-
par

quados. Isto faz com que concretamente não exista uma educação carcerária
organizada (SANTOS, 2005, p. 2). Outras dificuldades existem, desde a
Ed

desmotivação dos presos até a falta de apoio interno dos que administram
as unidades penitenciárias. Também existe a ideia socialmente construída
ão

de que o preso não tem direito à educação por ter cometido crimes contra
a sociedade. Mas não se pode esquecer que, ainda assim, eles são seres de
direitos. Mesmo que não se possa desprezar a questão da segurança quando
s

se trata de educar nos presídios, e este é um “impasse bastante conhecido


ver

de quem trabalha com educação prisional: a difícil relação entre a educação


e a segurança”, isto porque “a educação é vista pelos agentes de segurança
como algo que fragiliza a segurança do presídio; e, por outro lado, o pro-
fessor diz que o agente tem má vontade e que desmerece os estudos do
preso” (TEIXEIRA, 2007, p. 2).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 349

Educação-pedagogia no cárcere

O Plano Estratégico de Educação no Âmbito do Sistema Prisional


(PEESP), instituído por decreto presidencial, contempla a educação básica
na modalidade de jovens e adultos, a educação profissional e tecnológica e a
educação superior a serem oferecidas nas unidades penais. O objetivo, além
de promover a reintegração pela via da educação, é integrar os órgãos de

or
governo responsáveis pelo ensino público e pela execução penal.

od V
O PEESP será executado pela União, em colaboração com os estados

aut
e o Distrito Federal. As despesas de execução do plano serão cobertas com
dotações anuais dos orçamentos do MEC e do Ministério da Justiça. Para

R
receber apoio técnico e financeiro da União, Estados e Distrito Federal pre-
cisam aderir ao plano estratégico e apresentar projetos que contemplem o

o
diagnóstico das necessidades de ensino nos estabelecimentos penais, estra-
tégicas e metas a serem alcançadas.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A Constituição Federal prevê expressamente a responsabilidade do


Estado perante todos os cidadãos, garantindo-lhes direitos e deveres funda-
mentais, abrangendo também a população prisional que ingressa no sistema
visã
penitenciário. Aos condenados, devem ser proporcionadas condições para
a sua integração social dentro das penitenciarias, visando a não violação de
seus direitos que não foram atingidos pela sentença.
itor

Assim, a educação no cárcere contribuiria no processo de ressocialização


da pessoa presa, de maneira que quando ela sair do espaço prisional possa,
a re

aqui fora, ter chances mais dignas de (re)integração à sociedade. Sabe-se que
esse ainda é um processo que não se verifica como um todo, pois se vê que
a educação, pelo menos na prática, não é um princípio da fundamentação
de reintegração, ainda não tem cursos para qualificar o professor de ensino
par

fundamental e médio para trabalhar nos presídios, inexistem cursos de peda-


gogia voltados para essa modalidade ou mesmo disciplinas que garantam,
Ed

pelo menos, a inserção dos alunos de pedagogia no debate da Educação-Pe-


dagogia Social no Cárcere.
ão

A Educação-Pedagogia no Cárcere está no campo teórico e prático da


Educação Pedagogia Social na modalidade Educação de Adultos, que com-
preende a alfabetização, educação fundamental e ensino médio, bem como a
s

educação profissional e atividades socioeducativas; portanto, é uma educação


ver

na dimensão da formalidade e não formalidade. A Educação no Cárcere está


no contexto da Pedagogia Social pelo simples fato de ser uma educação que
trabalha com pessoas marginalizadas, buscando a reconstrução de uma cidada-
nia possível, mesmo no sistema capitalista, embora fosse necessário defender
uma cidadania fora desse sistema, para além do capital (MÈSZÁROS, 2005),
350

na perspectiva da dialética, já que no capitalismo não existe e não pode existir


igualdade entre as pessoas. Logo, não existe cidadania porque a sua gênese
se fundamenta na propriedade privada dos meios de produção, que se reflete
na divisão da sociedade em classes antagônicas entre os que detêm ou não
detêm os meios de produção da riqueza (LÊNIN, 1988).
Então, é preciso ter clareza de que qualquer forma de defesa de cidadania
para grupos marginalizados será sempre nos limites desse sistema, o que não

or
quer dizer que não possamos empreender forças contrárias a ele para possi-

od V
bilitar outro projeto histórico de sociedade, mais humana (MARX, 2008), e

aut
que isso deve começar ainda no interior da sociedade atual, tendo a educação
dialógica como uma das pedras angulares de institucionalização desta prática
de ensino (FREIRE, 1997).

R
A Educação-Pedagogia no Cárcere, nessa concepção, deve estar atenta
às suas finalidades sociais e aos sujeitos que pretende emancipar, ou seja, a

o
população carcerária, excluída e marginalizada, buscando acessar uma educa-
aC
ção que a promova cognitiva e socialmente. Esse é um tipo de educação que

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


deve trabalhar com práticas educativas diferentes daquelas praticadas pela
escola comum. Nesse sentido, está no campo da Pedagogia Social porque
esta é “[...] uma ciência pedagógica, de caráter teórico-prático, que se refere à
visã
socialização do sujeito, tanto a partir de uma perspectiva normalizada como de
situações especiais (inadaptação social), assim como, aos aspectos educativos
do trabalho social” (DÍAZ, 2006, p. 93).
itor
a re

Educação profissional no sistema carcerário

Segundo Mirabete (2007, p. 120) cita em suas obras: “que a habilitação


profissional é uma das exigências das funções da pena, pois facilita a reinser-
par

ção do condenado no convívio familiar e social a fim de que ela não volte a
delinquir.” É importante salientar que a profissionalização de detentos facilita a
Ed

reintegração ao mercado de trabalho, pois assim eles aprendem um ofício que


poderá ter continuidade quando for egresso do sistema penitenciário. A Lei de
Execução Penal tem a finalidade de recuperar o preso e através do trabalho,
ão

estudo e regras básicas de cidadania podendo-se chegar a uma solução tanto para
prepará-los ao mercado de trabalho, como para preencher as horas de ociosidade
dentro dos presidiários. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
s

n.º 9.394 aprovada em 1996, a educação profissional passa a ter um capítulo


ver

especial. Em 2011, com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico


e Emprego – Pronatec, surge novas expectativas no sentido de democratizar a
oferta de educação profissional e também com as metas e estratégias estabeleci-
das no Plano Nacional de Educação para o período de 2014 -2024. Ressalto que
o Pronatec teve uma versão para atender aos apenados do sistema prisional de
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 351

todos os Estados da Federação, cujo objetivo era diminuir a pena do presidiário,


que poderá reduzir um dia entre os que tem a cumprir a cada doze horas de fre-
quência escolar. O intuito é a preparação técnico-profissional dos detentos que
estão cumprindo pena nas unidades prisionais de todo o país. Em 2011 quando
o programa surgiu a meta era mais de 90 mil vagas do Pronatec a presos de todo
o Brasil até 2014. Sendo 35 mil vagas, somente no ano de 2011, das quais 558
no Pará. Os cursos do Pronatec eram ofertados pelo Sistema S (Senai, Senac

or
e Senar) e pelas escolas técnicas e federais. A ênfase era na formação inicial e

od V
continuada, com carga horária que varia de 160 a 400 horas. Realmente o Pro-

aut
natec foi um sucesso enquanto durou, pois o programa está parado desde 2016.
Diante desse quadro, se faz pensar que não há dúvidas de que a educação
para esse grupo é necessária e urgente por ter a possibilidade de reintegração

R
de maneira emancipada dessas pessoas no mundo social, fazendo-as adquirir
conhecimentos, saberes e atitudes importantes para as suas vidas. Desta maneira,

o
a educação assumiria um papel relevante para essas pessoas porque além dos
aC
benefícios da instrução escolar, o preso pode vir a participar de um processo de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

modificação capaz de melhorar sua visão de mundo, contribuindo para a formação


de senso crítico, principalmente resultando no entendimento do valor da liberdade
e melhorando o comportamento na vida carcerária (JULIÃO, 2010, p. 3).
visã
De acordo com Pereira (2018) a Educação Profissional precisa de uma
concepção e sistematização pedagógica para que lhe permita ser efetivada no
interior do sistema prisional, destacando como cada estado pensa, entende e
itor

oferece a Educação Profissional inicial e continuada. O autor sugere que esta


a re

Educação Profissional pode ser realizada em parceria com o setor privado


e instituições estaduais de formação e qualificação profissional. O mesmo
informa que os cursos são voltados àquelas ocupações em que o dispêndio da
força física é preponderante, requerendo uma escolarização mínima, como por
exemplo: pedreiro, pintor, azulejista, padeiro, costureira, serigrafia, tornearia,
par

marcenaria, serviços gerais, confeitaria, cozinha e outros.


Ed

A Educação Empreendedora também se faz importante neste con-


texto econômico em que a pessoa presa está, pois ao sair do cárcere poderá
empreender em um negócio próprio. O foco deste trabalho está em promover
ão

o empreendedorismo na educação, em especial às propostas da Pedagogia


Empreendedora, com atitude de formar trabalhadores para enfrentarem os
desafios atuais, principalmente no que diz respeito ao trabalho e à emprega-
s

bilidade, que é o caso das pessoas privadas de liberdade.


ver

A palavra empreendedorismo deriva do termo francês entrepreneur, tradu-


zido para o inglês como intrepreneurship, e remonta ao século XV, quando era
usado para referir-se aos “homens de negócios”. O termo ganhou maior visibi-
lidade nas obras de Cantillon (2002) e Say (1983), que a partir da consolidação
da sociedade capitalista, relacionaram a figura do empreendedor ao empresário.
352

Na educação básica e profissional o ensino do empreendedorismo está


se consolidando, especialmente pela adesão a projetos baseados na pedagogia
empreendedora, desenvolvida por Fernando Dolabela, seja como disciplina ou
mesmo conhecimento extracurricular transdisciplinar, com presença marcante
do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE),
Organizações Não Governamentais (ONG) ou, mesmo, de entidades liga-
das à divulgação do Empreendedorismo, como a Junior Achievement (JA) e

or
Empresa Junior dentro das escolas e universidades.

od V
O desenvolvimento de atividades profissionais e educacionais relacio-

aut
nadas às demandas e realidades locais na busca por condições propícias ao
retorno do convívio social. Nas unidades prisionais, a educação é vista pelo

R
sistema prisional, como privilégio à população carcerária. Conforme Carreira
e Carneiro (2009), a educação ainda é algo estranho ao sistema prisional,

o
utilizam-na como moeda de troca para manutenção da ordem disciplinar.
Assim, existe uma tensão entre a garantia do direito à educação e o modelo
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vigente de prisão, espaço regido pela superlotação, por violações múltiplas
de direitos e pelo demasiado exercício da segurança e disciplina.
Mas a esperança ainda não morreu, almeja-se uma educação no cárcere
visã
que dê conta da humanização desse espaço, ao mesmo tempo em que faz
da pessoa que está presa, independente do crime que cometeu, uma pessoa
esperançosa de melhores condições de vida (i)material. Isso não deve ser uma
utopia, mas uma luta concreta de educadores que almejam uma sociedade
itor

melhor e mais justa na via da educação como um direito, e não como uma
a re

migalha para todos.

Proposta de intervenção para uma educação profissional no


cárcere
par

Diante da realidade aqui apontada, ressaltamos a relevância em trazer


Ed

uma proposta de Formação Profissional a Pessoas em Privação de Liber-


dades, onde destaca-se o cenário atual caracterizado pela Superlotação dos
ão

Presídios Brasileiros, conforme demonstrado no INFOPEN e no relatório


da SUSIPE de novembro 2018. Através deste, identifica-se uma escassez
na oferta de cursos profissionalizantes no Sistema Penitenciário Brasileiro.
s

O que se almeja com a implantação deste trabalho é mostrar que é possível


ver

reintegrar pessoas privadas de liberdade ao convívio social por meio da


educação e do trabalho. Mas, para isso, é importante ofertar condições edu-
cacionais e profissionalizantes que estejam aliadas a uma prática pedagógica
voltada também para o desenvolvimento de competências empreendedoras
junto aos encarcerados.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 353

Público-alvo

Pessoas privadas de liberdade, que estão na faixa etária de 18 a 30 anos


que estejam cumprindo pena no regime fechado – condenados com escolari-
dade mínima de ensino fundamental completo.

Objetivo geral

or
od V
Promover a integração e o desenvolvimento social dos privados de liber-

aut
dade a partir da qualificação e a inserção profissional voltado para geração
de emprego e renda.

Objetivos específicos
R
o
• Desenvolver habilidades técnicas na formação profissional;
aC
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• Capacitar para uma visão empreendedora;


• Promover habilidades para o mercado de trabalho.

Metodologia
visã

Visando a ressocialização do egresso celebrará parcerias entre a Secretaria


de Administração Penitenciária com SEBRAE, SENAI e SENAC. Estas Institui-
itor

ções darão o suporte nos cursos que acontecerão dentro das unidades penais, de
a re

forma presencial. Os cursos serão ministrados por profissionais das instituições já


citadas, na forma de teoria e prática, estes também assinarão folha de frequência
no curso, durante todo período de execução do projeto. As atividades pedagógicas
serão realizadas em sala de aula por profissionais das respectivas instituições e
par

os alunos receberão certificados ao concluírem a capacitação.


Como previsão de riscos, o projeto poderá sofrer mudanças de acordo
Ed

com a realidade local. Caso ocorram qualquer situação de perigo que possa
colocar em risco todos os envolvidos na realização das atividades estas pode-
rão ser suspensas e/ou reprogramadas e retornarão no momento em que já
ão

estiver contornada a situação, assim assegurando a vida de todos.


A seguir todas as etapas do projeto.
s

• 1ª Etapa - Levantamento da população carcerária para conhecer o


ver

perfil dos apenados;


• 2ª Etapa - Sensibilização do gestor da unidade penal e Comissão
Técnica de Classificação (CTC), mostrando o esboço do projeto,
via apresentação de slides, com objetivos claros, etapas definidas e
cronograma de execução alinhado;
354

• 3ª Etapa - Seleção dos apenados através de entrevista para saber


de seus interesses em realizar os cursos, explicando os benefícios
que terão ao saírem do cárcere com uma profissão;
• 4ª Etapa - Escolha dos apenados para a realização dos cursos;
• 5ª Etapa - Providenciar sala com data show para apresentação do
projeto aos apenados;
• 6ª Etapa - Seleção dos documentos para inscrição dos cursos;

or
• 7ª Etapa - Os cursos acontecerão em 4 horas diárias, onde eles farão

od V
aulas teóricas associadas a prática;

aut
• 8ª Etapa - Início do curso;
• 9ª Etapa - Cerimônia de conclusão do curso e entrega dos certificados;
• 10ª Etapa - Como avaliação de pós-cursos será feita avaliação pelos

R
alunos dos cursos, dos professores, da equipe pedagógica, do mate-
rial utilizado durante o curso e se desejam que tenham outros cursos.

o
aC

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A equipe de técnicos do SENAI ministrará 2 (dois) cursos:

• Curso de Técnicas de Panificação com a necessidade de se pre-


parar cada vez mais para o mercado de trabalho e o aumento das
visã
vendas dos produtos de fabricação própria, o curso de Técnicas
de Panificação capacita o aluno na fabricação desses produtos,
seguindo procedimentos técnicos de qualidade, segurança, higiene,
itor

saúde e preservação ambiental.


a re

Carga horária: 40 horas


• Curso de Marceneiro de Móveis, no qual o aluno aprenderá a
operar máquinas convencionais, confeccionar, montar e instalar
móveis seriados e sob medida, respeitando sempre procedimentos e
par

normas técnicas, ambientais, de qualidade, de saúde e de segurança.


Carga horária: 160 horas
Ed

A equipe de técnicos do SEBRAE ministrará 1 (um) curso:


ão

• O curso sobre Empreendedorismo terá como objetivo principal,


apresentar informações sobre os princípios do empreendedorismo
de modo a promover o desenvolvimento de atitudes que compõem
s

o perfil empreendedor, por meio da interação com conceitos sobre


ver

mercado, finanças e empreendedorismo. Neste curso, o aluno tam-


bém terá a oportunidade de conhecer e se aprofundar sobre os seg-
mentos do empreendedorismo, como: Aprender a Empreender, que
está voltado tanto para quem planeja montar um negócio próprio.
Carga horária: 90 horas
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 355

A equipe de coordenação:
Visando efetivar os objetivos no plano real, as ações do projeto deverão
ser planejadas para melhor atender os presos condenados e custodiados na
Unidade Penal. Apresentar a equipe de Execução, por meio de: Comissão
Técnica de Classificação (CTC) – Art.5ª. da Lei de Execução Penal.
Esta por meio de seleção e entrevista determina a aptidão do preso para
o trabalho e o estudo, de acordo com o seu perfil, traçando as ações necessá-

or
rias para a sua reintegração à sociedade. O documento é posto em prática e

od V
reavaliado anualmente. As equipes devem ser formadas por psicólogos, assis-

aut
tentes técnico-jurídicos, diretores, assistentes sociais, enfermeiros, dentistas,
pedagogos e gestor de reinserção social da unidade penal.
O gestor responsável pela reinserção social da unidade penal implemen-

R
tará e coordenará os cursos, buscando a capacitação e a profissionalização
dos detentos custodiados. A assistência educacional é concretizada por meio

o
de convênios e contratos com instituições públicas e privadas – Exemplos:
aC
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SENAC, SENAI, SESI, SESC, SEBRAE. As aulas práticas e teóricas deverão


acontecer dentro da unidade prisional.

Considerações finais
visã

Na análise da proposta aqui apresentada, identificamos a importância da


oferta dos cursos às pessoas privadas de liberdade, como uma nova chance
itor

de ressocialização, que passa a surgir, uma vez que estas pessoas, ao sair da
a re

prisão, terão a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho ou empreen-


der em seu próprio negócio.
A Lei de Execução Penal traz em seu artigo 28 os seguintes: “O trabalho
do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá fina-
par

lidade educativa e produtiva.” O trabalho desde os primórdios está inserido


na sociedade, e traz ao indivíduo dignidade para se viver bem na sociedade
Ed

em que está inserido. O trabalho do preso não poderia ser diferente, pois o
objetivo do legislador ao redigir o texto de lei, fica evidente que ele vincula
o trabalho do preso a um dever social e a existência da dignidade humana.
ão

O objetivo desta proposta foi de promover possibilidades para a redução


dos índices de presos reincidentes, dar maiores condições de acesso a uma pro-
fissão digna, obter seu sustento e o sustento da sua família, além de um maior
s

benefício de sua inserção no âmbito social, político e econômico em nosso país.


ver
356

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Luizane Guedes Mateus

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Rovana Patrocinio Ribeiro

R
O massacre sempre será um dispositivo...

o
Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em
absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam
aC
consideradas choráveis e outras não? (Judith Butler)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

São quase dezoito horas e o cansaço está estampado no rosto de Carlos


visã
Henrique. Suas pernas doem, pois passara todo o dia na parte de trás do frigo-
rífico cortando grandes pedaços de carne para serem comercializadas na rede
de supermercados. Ele sobe a escadaria de forma lenta, pois sabe que além
dos muitos degraus, chegar à sua casa seria mais uma forma de lembrança não
itor

muito positiva, uma vez que não teria muito que comer, embora, ironicamente,
a re

tivesse passado o dia todo entre os alimentos variados do supermercado.


De longe, Carlos Henrique ouve barulhos de sirene; vê o famigerado
giroflex no caminho que atravessa até seu barraco, na parte mais alta do
morro. Com a noite quente, o percurso parece ficar ainda mais difícil, e ele
par

sabe que será parado. Nas quebradas da Piedade, os vizinhos colocam suas
cadeiras nos becos estreitos, e entre sorrisos e “corres”, dos meninos da boca,
Ed

conversam aleatoriedades. Mas naquele momento, porém, ele não conseguia


ver ninguém naquela rua, que parecia deserta. A única coisa que ecoava em
seus ouvidos era o grito de alguém que lhe parecia familiar.
ão

Antes mesmo de alcançar o local onde parecia haver uma aglomera-


ção, um policial foi em sua direção e, de forma truculenta, apontou-lhe um
fuzil, mandando que se colocasse encostado na parede para revista. Forçou a
s

memória para tentar lembrar-se de quem era aquela voz que ouvia um pouco
ver

distante, mas que ressoava como um grito de lamento. Ouviu então uma
sequência de tiros, e, de longe, viu um policial saindo de dentro de sua casa
mostrando uma arma em uma das mãos e bradando que tinha sido com ela
que o foragido havia atentado contra sua vida: auto de resistência!
Eram frequentes os conflitos entre os meninos da Fonte Grande e os meni-
nos da Piedade, onde Carlos e família moravam. A disputa, segundo os progra-
mas de TV diários do horário do almoço, era por pontos de drogas, o que deixava
362

as duas comunidades ainda mais vulneráveis. O apresentador falava da neces-


sidade de aumento do policiamento, do endurecimento das leis, novas formas
de punição para jovens infratores, punição exemplar e defesa dos “cidadãos de
bem”. Carlos olhava o policial que lhe apertava contra a parede e se lembrava
do envolvimento do irmão mais novo com alguns grupos de traficantes; o cora-
ção, agora apertado, disparava dentro do peito como se fosse saltar pela boca.
Ele sabia que o irmão não tinha arma e que era mais um moleque des-

or
lumbrado com as falsas promessas que o tráfico oferecia; sabia também que

od V
não se passava de um menino que era usado para soltar fogos, quando os

aut
inimigos se aproximavam, ou então para comprar lanches na parte baixa da
cidade para os traficantes. Era só um menino de treze anos. E Carlos sabia que
todos, da Piedade e da Fonte Grande, eram seus amigos desde criança, quando

R
ainda corria atrás de pipas pela escadaria que liga os dois bairros. A certeza
de Carlos era de que dia após dia perdia um desses meninos nos confrontos

o
ou nos enfrentamentos com a polícia. Quanto mais olhava a movimentação e
aC
aguçava seus ouvidos para os gritos, percebia que eram de sua mãe.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Sobre territórios, territorialidades e juventude negra: de onde
partem nossos incômodos?
visã

Não é novidade que o alvo da marginalização e da violência do braço


armado do Estado apresenta as mesmas características, bem como compar-
itor

tilham a mesma história marcada pela cor da pele, territorialidade e classe


a re

social. O lugar mencionado, Piedade, é um bairro do município de Vitória, e


a história vivenciada por Carlos não é um caso isolado diante das inúmeras
expressões de violência que seguem produzindo mortes físicas e simbólicas –
representadas pelo modo de ser e estar no mundo, pela constante negação de
par

direitos, pelos autos de resistência e pelas diversas formas de silenciamento


–, às quais estão submetidas a juventude negra.
Ed

Dados do Atlas da Violência (IPEA, 2020) informam que até o ano


de 2018 houve maior ocorrência de homicídios quando tratamos de homens
jovens, com pico aos 21 anos de idade. Ao comparar os dados com a Atlas
ão

da Violência do ano de 2019, foi verificado um significativo aumento da


morte de jovens. Outro dado alarmante é que esses corpos, adultos e jovens,
também são corpos negros. Das mortes, 74% são de pessoas negras, e neste
s

ano foi constatado, a partir de comparação com o ano anterior, que houve um
ver

aumento de vitimação da juventude. O exemplo do irmão de Carlos, junto aos


dados do IPEA, demonstra que corpos jovens, especialmente negros, estão
atrelados aos altos índices de letalidade, e que seu extermínio é legitimado.
A legitimação da morte para esses jovens negros paira pelas ruas, pelos
discursos, pelos noticiários e telejornais. A defesa do “cidadão de bem”
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 363

pressupõe a existência do cidadão que não é de bem, que é, portanto, exter-


minável. Os discursos e a narrativa sobre a trajetória de Carlos e sua perda,
representada pelo grito estridente de sua mãe, faz convergir o tema que tra-
taremos neste artigo: “as práticas e os discursos que legitimam mortes físicas
e simbólicas de jovens negros e as possibilidades de ação transdisciplinar”.
Este tema é tratado de forma exaustiva nos meios de comunicação e
mídias sociais, contudo, ainda, é carregado de armadilhas, sejam elas na forma

or
como emergem as pesquisas desenvolvidas com a juventude de periferias,

od V
sejam as armadilhas relativas às análises carregadas de pré-conceitos e equí-

aut
vocos das dimensões transversais da vida desses meninos e meninas em suas
comunidades. Nesse campo, sentimo-nos provocadas a pensar o que Marília
Sposito (2010) nos oferece como desafios para os estudos sobre jovens.

R
Um campo pouco investigado no conjunto de estudos sobre juventude situa-

o
-se no tema dos modos de vida de jovens a partir de seu local de moradia
aC
considerado como território de múltiplas relações sociais. Nesse caso, as
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

práticas cotidianas seriam analisadas, privilegiando-se sua dimensão trans-


versal – escola, trabalho, lazer, sociabilidade. [...] Ao examinar as interfaces,
os desafios e as especificidades do campo investigativo, essa perspectiva
visã
não inscreve a Sociologia da Educação ou a Sociologia da Juventude no
registro segmentado das sociologias especiais. Ao contrário, o pressuposto
de base reside na ideia de um domínio teórico – a Sociologia – que tenta
compreender como ocorrem os (des) encontros, conflitos e tensões em torno
itor

das relações de indivíduos ou grupos com o mundo social a partir de alguns


a re

protagonistas privilegiados, os jovens (SPOSITO, 2010).

Dessa forma, é importante dizer que a perspectiva deste texto está com-
preendida e atravessada por uma multiplicidade de repertórios sociais dife-
par

renciados, por vezes não lineares e por vezes contraditórios, como a própria
existência das periferias; é atravessado também pela escrita comprometida, a
Ed

qual chamamos de transdisciplinaridade, já que é construída a partir do entre-


laçamento de diferentes áreas do conhecimento, especialmente neste trabalho
e pesquisa, que é dialogado entre a Psicologia e a Terapia Ocupacional.
ão

Como o prefixo “trans” indica, transdisciplinaridade diz respeito ao que


está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de
s

toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos


ver

imperativos para isso é a unidade do conhecimento (NICOLESCU, 2005).

Os encontros entre a Psicologia e a Terapia Ocupacional, para fins deste


texto, partem das experiências obtidas no Centro de Referência Especializada de
Assistência Social (Creas) – ofertado pelo Sistema Único de Assistência Social
364

–, que é responsável pela oferta de trabalho especializado a famílias e/ou indiví-


duos em situação de violação de direitos. No município de Vitória, três unidades
de Creas são responsáveis por acompanhar, cada uma, cerca de 25 bairros.
Dentre os serviços ofertados pelo Creas, está o de proteção social aos
adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto,
regime destinado ao atendimento de adolescentes e jovens que cometeram
atos infracionais, que receberam como medida socioeducativa a realização

or
de atividades sem a privação de sua liberdade. Surge daí as inquietudes para
a produção deste texto. Assim, para operacionalizar o atendimento, são rea-

od V
lizadas diversas ações, que possibilitam processos emancipatórios para os/as

aut
adolescentes e jovens em acompanhamento, pautadas sempre nos pressupostos
do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).

R
Os encontros entre as duas profissões no fazer transdisciplinar ocorreram
– e ainda ocorrem – a partir das possibilidades evidenciadas pela abordagem

o
de caráter territorial. Para nós, o território é a principal parte da nossa prá-
aC
tica, pois é nele que a vida acontece e é nele que são possíveis agências que

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


corroboram com a garantia de direitos e com a produção de vida das pessoas
acompanhadas e atendidas por nós.
Entendemos que em qualquer acepção, território pressupõe poder, e esse
visã
poder está relacionado tanto ao poder político quanto ao poder de domina-
ção e apropriação. Nesse sentido, concordamos com Haesbaert (2004), ao
afirmarmos que fazer parte de um território-espaço físico têm implicações
itor

simbólicas relacionadas às apropriações territoriais que remontam as marcas


do que foi vivido ali com as apropriações pela dominação relacionada ao uso
a re

concreto e funcional e ao valor de troca. Carlos, por exemplo, sabe o que é


viver na Piedade; conhece as pessoas, as histórias que atravessam os becos
e as marcas históricas que sua comunidade traz em si. Sabe que seu corpo
é atravessado, transversalizado por experiências de moradia, escolarização,
par

trabalho e proximidade com o tráfico da quebrada.


Como vislumbrar, em meio a essas ações, uma atuação transdisciplinar?
Ed

Acreditamos que com ações estratégicas de um trabalho integrado e articu-


lado, a prática transdisciplinar se coloca como potencializadora e permite
uma compreensão ampliada entre os saberes e fazeres, constituindo atuações
ão

que se constroem na multiplicidade, pressupondo diversidade no processo


de intervenção da realidade.
É essa articulação que destacamos na presente escrita, delineada na tes-
s

situra de pontos de integralidade e complementação dessas disciplinas, espe-


ver

cialmente no que tange a compreensão das diversas dimensões que atravessam


o viver na periferia, vida que é atravessada todo o tempo pela possibilidade
da morte. Tal esforço converge no desafio de ações que viabilizam também
a superação das violações de direitos, em cuja exposição se encontra esses
meninos e meninas ao longo de suas vidas.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 365

A produção do perigo: histórias que se atravessam

Carlos é nosso personagem fictício, mas representa o que tem sido retratado
cotidiana e irrestritamente: as mortes que supostamente ocorrem em decorrência
dos conflitos territoriais, que consistem numa série de enfrentamentos entre os
chamados grupos rivais, em detrimento do controle e domínio do tráfico de
drogas e armas, e do confronto com o braço armado do Estado – a polícia mili-

or
tar. Para compreendermos o contexto atual, no qual se constrói a narrativa dos

od V
conflitos territoriais, como principal expoente para o crescimento da violência,

aut
assim como o extermínio da juventude negra, é preciso estruturar uma breve
análise acerca de outra construção histórica: o conceito de classes perigosas.
Esta análise vai nos mostrar que alguns discursos seletivos de ódio serão

R
produzidos, ao longo da história, de acordo com a necessidade de homogeneiza-
ção e sujeição de alguns grupos, principalmente negros e pobres. Esses discur-

o
sos serão utilizados, especialmente, para dar certos lugares a esses grupos, tais
aC
como o lugar de perigo e daquele que pode e, porque não, deve ser combatido
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e exterminado. Uma dessas produções, amplamente divulgada nos dias atuais,


pelos meios de comunicação, diz respeito ao alardeado aumento da violência
ocasionada pelo domínio, nas grandes cidades, das facções criminosas.
visã
Produção que não emerge, nos dias atuais, muito menos é retilínea, natu-
ral ou processual. Trata-se de uma construção que, ao longo da história, ganha
corpo e se reveste de “verdades” através do conceito de classes perigosas.
itor

Este conceito ganhará força a partir do movimento higienista do século XIX


a re

e começo do século XX, mais especificamente com o ordenamento e reorde-


namento de algumas teorias. Não obstante, é possível esbarrar nesse momento
histórico com produções legitimadas como científicas, que apontam carate-
rísticas anatômicas para a identificação de “criminosos natos” – Antropologia
Criminal –, assim como aquelas que irão considerar relevante aplicar o con-
par

ceito de seleção natural aos humanos, classificando-os como “bem nascidos”,


Ed

ou não, de acordo com suas características genéticas – a Eugenia –, que se


baseia na explicação naturalista para determinar corpos degenerados ou não.
Essas teorias constroem um caminho que separa, diferencia e elenca
ão

aqueles que merecem viver, daqueles cujos corpos podem ser deixados pelo
caminho – corpos virtuosos e corpos viciosos –, como bem referencia o Tra-
tado das Degenerecências, de Benedict-Augustin Morel, publicado em 1857.
s

Todas essas teorias têm um ponto em comum: apontam como inferiores pes-
ver

soas com deficiência, transtornos mentais, presos, negros e pobres. Elas cons-
troem um percurso de processos de exclusão, sujeição e confinamento do qual
devem sobreviver os mais fortes e mais aptos, os superiores.
Nesta perspectiva eugenista, de controle e dominação dos corpos, a
ciência considera o período entre a adolescência e a juventude como fase de
366

crescimento, transição e evolução necessária para se alcançar uma adultez


de valor. O que nos interessa, neste ponto, é observar que as abordagens dis-
cursivas, agregadas a esse discurso, eram biologizantes e consideravam as
questões socialmente produzidas como projetos naturais, ou seja, observamos
aqui, novamente, a empreitada eugenista que define o que é – ou não – ser
um sujeito jovem. Para nós, a objetividade de hoje também é historicidade, e,
neste contexto histórico, são atribuídas à infância e adolescência que vivem

or
em situações de violência exacerbada, características físicas e psicológicas –

od V
reconhecidas como próprias desse período de vida, para responderem questões

aut
referentes aos altos índices de infração juvenil, que, não por acaso, superam
marcas anteriores ao processo de industrialização.
Essas construções possibilitaram a separação que definiu, já no final do

R
século XIX e começo do século XX, quem seriam os dignos e quem seriam os
viciosos, aqueles que poderiam ser “cuidados”, teriam seus valores construí-

o
dos através do trabalho e da moral, e aqueles que deveriam ser destinados à
aC
prisão, ao manicômio, aos espaços de vigilância e controle e ao extermínio. Os

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


corpos perigosos poderiam ser deixados pelo caminho, afinal, mostravam-se
como ameaças aos “cidadãos de bem”.
Nesse período também, os espaços públicos foram considerados como
visã
“lugares do perigo”, das doenças e mazelas e onde eram instrumentalizados os
apontados como criminosos. Não por acaso, é também o período em que fervi-
lhavam os movimentos de resistência e contestação, manifestações não só na
itor

Europa, mas também no Brasil, onde as ruas se tornaram palco dos movimen-
a re

tos populares e os espaços se tornaram lugares ameaçadores à ordem vigente.


Desse modo, então, fez-se necessário esvaziá-los, torná-los inertes através do
perigo, fomentando o espaço privado como o lugar de cuidado e de proteção.

O medo se transfigura em sentimento, em afeto, em política econômica,


par

em projetos de lei, em fragmentos discursivos, em cenários, em políticas


sanitárias; ou, numa palavra, como ele invadiu e infectou todas as frestas
Ed

e cantos da vida [...] Ela evidencia como novas representações de temor


e perigo, enraizada em desigualdades sociais profundas e nas refinadas
fantasias raciais da ordem escravista agrária, se estenderam e se projetaram
ão

pela cidade, a partir de onde se difundiram para o campo político, jurídico,


médico e jornalístico (BATISTA, 2003).
s

É a partir da modernização dos espaços públicos, tornando-os assépticos


ver

e transformando-os nos espaços do trabalho, que as “balbúrdias” e os perigos


são desmobilizados e as ruas não mais vistas como lugares de encontros, mas
como espaço de produtividade, vidas empurradas para a margem. O processo
de urbanização dos séculos XIX e XX estava intimamente associado à pobreza
e, por consequência, à reconstrução do conceito de classes perigosas.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 367

Assim, para a proteção do desconhecido e do perigo em potencial, para


além da assepsia das ruas, teremos também a construção de muros, con-
domínios fechados, cercas elétricas, separação de vidas que, segregadas e
excluídas de maneira brutal e despudorada, manterão os inimigos distantes,
alijados e vigiados.
Como sabemos, as cercas têm dois lados. Dividem um espaço antes
uniforme em “dentro” e “fora”; o que é dentro para quem está de um lado da

or
cerca é fora para quem está do outro. Os moradores dos condomínios man-

od V
têm-se fora da desconcertante, perturbadora e vagamente ameaçadora – por

aut
ser truculenta e confusa – vida urbana, para se colocarem dentro de um oásis
de tranquilidade e segurança. Contudo, justamente por isso, mantêm todos os
demais fora dos lugares seguros, e estão absolutamente decididos a conservar

R
e defender com unhas e dentes esse padrão; tratam de manter os outros nas
mesmas ruas desoladas que pretendem deixar do lado de fora, sem ligar para

o
o preço que isso tem. A cerca separa o “gueto voluntário” dos arrogantes dos
aC
muitos condenados a nada terem (BAUMAN, 2009).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Exercendo-se não pela visão tradicional que proíbe, censura e reprime,


o poder produz verdades (FOUCAULT, 1979). O que faz com que o poder
se mantenha e seja aceito é simplesmente o fato de que ele não pesa apenas
visã
como a força que diz ‘não’, mas, do contrário, permeia, produz coisas, induz
ao prazer, forma saberes, produz discursos (MACHADO, 1988). Para Fou-
cault (1979), o poder se exerce por meio de estratégias e seus efeitos não
itor

serão imputáveis a uma apropriação, mas a manobras táticas e técnicas. Ele


a re

não deve ser pensado como fundamentalmente emanado de um ponto, mas


como uma rede que permeia todo o corpo social, articulando e integrando
os diferentes focos de poder. Ele circula, se exerce em rede e não está sob o
domínio ou controle de um eixo central, sendo que os indivíduos são os cen-
tros de transmissão desse poder que os atravessa. É assim que se produzirão
par

o lugar do perigo e o corpo que habitará o “perigoso”.


Ed

Ao estabelecer um saber sobre esses corpos, reforçam-se as chamadas classes


perigosas. Apresentado como homogêneo, identitário, uno e, portanto, imutável,
de forma unilateral e simplista, esse “rosto” aparece referindo-se àqueles que têm
ão

um destino já conhecido e previsível, um lugar determinado para a sua existência;


caso essa existência exceda essas delimitações, é autorizada a sua eliminação.
É nesse período que os processos de urbanização se associam aos pro-
s

cessos de industrialização. Temos, então, no que concerne especificamente ao


ver

município de Vitória, o início da formação dos bairros conhecidos, economi-


camente, como vulneráveis, os chamados “territórios da pobreza”.
É importante observarmos que todo o processo de formação desses
bairros, no município de Vitória, teve como base, entre as décadas de 1940
e1950, a vinda de um grande contingente de migrantes do Nordeste do Brasil,
368

especialmente do estado da Bahia, em busca de inserção no mercado de tra-


balho, moradia e melhores condições de vida. Foi um processo marcado por
embates, pelo uso dos espaços da cidade, o qual teve grande parcela dessas
famílias “enxotada” para regiões sem urbanização da cidade, acarretando no
crescimento populacional nas áreas de morro, encostas e proteção ambiental.
É assim que bairros como Piedade, Fonte Grande e tantos outros se consti-
tuíram, não só com total ausência do poder público, mas também a mercê de

or
toda sorte de invasões e domínio do comércio de drogas e armas.

od V
Para esses bairros, mais uma vez, são destinadas apenas a Segurança

aut
Pública, como forma de aproximação e “pseudogarantia de direitos”, militari-
zando seu cotidiano e mantendo a precariedade da vida que passará a valer tão
pouco, que só será lembrada nas páginas policiais quando a espetacular cobertura

R
midiática, acerca da formação e estruturação das ditas facções criminosas, se
tornar rentável e facilmente utilizada para operações policiais, invasões de resi-

o
dências e extermínio de uma parcela muito específica da população. Classe, raça
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e gênero serão bem delimitados quando os “autos de resistência” forem lavrados.
Contudo, esses corpos resistem e são constituídos de multiplicidades e
transversalidades que, como redes, tecem e são tecidas, configuram e recon-
figuram-se a todo instante, resistindo ao instituído, ao colocado no lugar a
visã
ser aniquilado. São corpos que através de processos socializadores constroem
um lugar de resistência.
itor

Pensando conflitos territoriais: e se os leões contassem suas


a re

histórias?

O tema (in) segurança pública no Espírito Santo vem tendo destaque local e
nacional, nos últimos anos, em decorrência dos altos índices de mortes violentas
par

que o estado tem apresentado, especialmente entre mulheres e jovens negros.


Esses índices vêm estimulando estudos e movimentos na sociedade capixaba e
Ed

tem produzido um “mapa de riscos e conflitos”, que é apresentado, exclusiva-


mente, por bairros pobres e periféricos, onde a maioria dos habitantes é negra.
Mas, como se configuram esses conflitos urbanos na cidade de Vitória?
ão

Como se constroem as rivalidades e os enfrentamentos, principais motivos


apontados para os inúmeros assassinatos de jovens no município? A história
oficial, aquela amplamente disseminada e difundida pelos meios de comunica-
s

ção, aponta para conflitos gerados pela disputa por pontos de vendas de drogas,
ver

além de fazer uma ligação direta entre pobreza, periculosidade e negritude.

Há várias maneiras de narrar a história de um país. Uma visão sempre


esquecida, conhecida como “ótica dos vencidos”, é aquela forjada pelas
práticas dos movimentos populares, nas suas lutas, no seu cotidiano, nas
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 369

suas resistências e na sua teimosia em produzir outras maneiras de ser,


outras sensibilidades, outras percepções. Práticas que recusam as normas
pré-estabelecidas e que procuram de certa forma construir outros modos
de subjetividades, outros modos de relação com o outro, outros modos de
produção. É dessa história que vamos falar um pouco; de uma história em
que os segmentos populares não são meros espectadores dos fatos, mas
produtores dos acontecimentos (COIMBRA, 2001).

or
História oficial, discurso visto como universal, “que se vangloria de ser

od V
a história verdadeira e, portanto, a única certa, e, em casos, a única possível”

aut
(GAGNEBIN, 2006). História que nos permite analisar os processos de exclusão,
como também de sujeição e extermínio de uma população em situação de risco.

R
A existência da periferia, dos bairros em conflito e daqueles que os habi-
tam será toda atravessada por três pilares: violência letal, racismo e ações de

o
extermínio praticadas, em sua maioria, pelo braço armado do Estado. Porém,
a história contada e recontada será calcada em ilegitimidade, desestrutura,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

pobreza e criminalidade.
É nesta ilegitimidade de existência que os conflitos são explicados,
roteirizados. Especialistas em Segurança Pública, que em sua maioria nunca
visã
estiveram nos bairros de risco, seguirão um roteiro bem conhecido. A partir
do enfrentamento entre bairros rivais, na disputa pelo comando do tráfico de
drogas, grupos adversários promoverão tiroteios, toques de recolher, bailes
clandestinos, venda e uso de drogas, a céu aberto, ameaças e assassinatos.
itor

Disputam os territórios mais rentáveis e estratégicos para o comércio de entor-


a re

pecentes, impondo medo e terror aos moradores ditos “de bem”.


É sobre esses corpos que o operar da necropolítica será visto como extre-
mamente necessário. Teremos, nas comunidades periféricas, índices de óbitos
altíssimos, causados, em sua maioria, por agentes do Estado contra corpos
par

majoritariamente negros – corpos que devem deixar de existir.


Ed

O biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que


devem viver e as que devem morrer. Operando com base em uma divi-
são entre os vivos e os mortos, tal poder se define em relação a um capo
biológico – do qual toma o controle e no qual se inscreve. Esse controle
ão

pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da


população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre
uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo (aparentemente
s

familiar) “racismo” (MBEMBE, 2018).


ver

Esses corpos negros serão sempre tratados como criminosos, sejam atuais ou
“futuros”. Essas mortes são a “solução para o problema da criminalidade do país”,
a política pública de segurança instituída e destinada a pretos e pobres – caminho
que se encontrou para produzir mortes nas histórias contadas nesta escrita.
370

A produção de morte passa a ser o único viés das histórias desses meninos
e meninas, dessas famílias; o roteiro comum, homogêneo, que acaba por
possibilitar que esses corpos sejam vistos como “não humanos”. Essa sen-
sação de se tornarem “inumanos” será como uma desconstrução, o desfazer
da percepção de perda, a insensibilidade à dor e ao sofrimento como meca-
nismo por meio do qual a desumanização se consuma (BUTLER, 2019).

or
É sobre o não lugar de existência, ou o lugar da guerra

od V
Adicchie (2019) tentou nos alertar sobre o perigo de uma história única,

aut
a fim de que nos atentemos às necessidades de criarmos e recriarmos nossas
histórias, para que não percamos a possibilidade do paraíso. Os jovens que

R
acompanhamos compartilham conosco, no cotidiano do serviço, um saber
sobre si, sobre sua comunidade, especialmente sobre como eles são constantes

o
combatentes e donos de suas próprias histórias. Meninos e meninas que tra-
zem no corpo o conceito de transversalidade, atravessada pelas experiências
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


familiares – do território de moradia, da escola que frequentam, quando os
conflitos permitem, das vivências cotidianas.
No dia a dia do serviço, ouvimos desses jovens histórias que vão desde
visã
torturas, sequestros e homicídios a flagrantes forjados e, muitas vezes, arqui-
tetados pela instituição que deveria atuar para a proteção de todos: a polícia
militar. Desse modo, sob a justificativa de remover da cidade o risco apresen-
tado pelas famigeradas “facções”, esses representantes fazem emergir diversos
itor

grupos de extermínio – com estreita ligação com o estado –, que articulam o


a re

mecanismo de dominação através da violência.


Colocamos nossos corpos prontos a acolher, a afiar a escuta para não dei-
xar que sejamos também vozes que ecoam o lugar de violência. A ideia é não
nos fecharmos nos domínios de sabermos em quais grupos somos colocados
par

como psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e pedagogos.


Como nos apresenta Rauter (2012), “a metodologia transdisciplinar opera por
Ed

meio de empréstimos e de recortes, aos moldes da bricolagem, deslocando


conceitos entre campos do saber distintos”. É nesse deslocamento de conceitos
que buscamos atuar, tencionando olhares para que possamos enxergar seres
ão

humanos em processos singulares de formação.


Em constante contramão, nosso caminho se faz ao caminhar. Identifica-
mos juntos, que a juventude em cumprimento de medidas socioeducativas no
s

município de Vitória é, muitas vezes, aquela que não comparece nos espaços
ver

garantidos por direito, a saber: as escolas, os diversos espaços públicos e de


fruição cultural presentes na cidade, dentre outros que, na lógica pela qual
a cidade de Vitória é nutrida, se localizam em lugares proibidos, inimigos,
que oferecem risco de morte. Entretanto, entre idas e vindas, e como sujeitos
sociais, essa juventude segue reagindo e existindo.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 371

Pautadas num pensamento e numa prática crítica, o fazer transdisci-


plinar – representado aqui pela Psicologia e pela Terapia Ocupacional, mas
que envolve diversas outras categorias, práticas e fazeres – consiste em não
reduzir as experiências e as relações, mas em desvelar alternativas concretas
para lidarmos com as condições cotidianas, haja vista que o cotidiano está
no centro das histórias e não fora delas. Portanto, a juventude negra se faz
necessária para nós, estando ela acompanhada de seus familiares e de sua

or
forma de existência e resistência apresentadas tanto na soltura de pipas, como

od V
no funk e nas mais variadas manifestações de uma vida digna.

aut
Cabe destacar, porém, que ao lidarmos diretamente com o território e com
o que ele nos oferece, não deixamos escondida e negligenciada a principal
causa do extermínio: a perversidade do racismo forjada nas instituições, nos

R
discursos, nas práticas e no dia a dia. Seja em grupo ou individualmente, dentro
de casa ou fora dela, dentro do Creas ou fora dele, nosso compromisso ético e

o
político, enquanto terapeuta ocupacional e psicóloga, é evidenciar o racismo
aC
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e sua forma de operar para, então, desmantelá-lo, rasurá-lo e deslegitimar seu


funcionamento despontado nas recusas de emprego, batidas policiais, olhares
tortos na rua e nas práticas cotidianas que reiteram a política de morte.
Assim sendo, nosso desafio é evidenciar e combater na prática o que
visã
Achile Mbembe conceitua como necropolítica: a política de morte que se
coloca como regra para que o Estado opere sua lógica de funcionamento,
que se dará a partir do extermínio de alguns corpos em detrimento de outros.
itor
a re

O racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercí-


cio do biopoder, ‘este velho direito soberano de matar’. Na economia do
biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar
possíveis as funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2018).
par

O racismo é o principal eixo de análise para produzirmos tanto esta escrita,


como nossa prática, nossas ações e intervenções. Partimos desta premissa para
Ed

entendermos que o extermínio de corpos específicos é reforçado das mais


variadas formas, seja em conflitos territoriais ou nos dados que comprovam
ão

quais realmente são os jovens que estão na mira do sistema penal, das apreen-
sões e das medidas socioeducativas. Como escapar dessa “sina necropolítica”?
Como é possível humanizarmos os que são, historicamente, desumanizados?
s

Como transformar, junto às comunidades, a ideia de que a periferia é o lugar


ver

do crime, do perigo e o lugar de preferência para ser eliminado?


Neste contexto, sermos terapeuta ocupacional e psicóloga, atuarmos
diretamente no cotidiano – a soma dos acontecimentos –, intervirmos junto
às relações e humanizarmos o desumanizado, nos implica enveredarmos pelas
histórias que não passam somente pelos conflitos e pela morte. Dar-nos a
372

entender como essas comunidades-vidas funcionam tendo o mínimo de acesso


a políticas públicas; como constroem redes de sociabilidade, relações comuni-
tárias, e, inclusive, como essas relações se transformam, em alguns momentos,
em conflitos armados. Como permitir que esses territórios e essas vidas não
sejam vistas apenas pelo recorte da morte, mas por um olhar transdiciplinar
que, como nos aponta Rauter (2012), pode ser concebido como um sistema
aberto, cuja prática é referida a um campo de dispersão do saber por oposição

or
a um saber que se pretende universal e ordenado?

od V
Embora pareça algo que está nas mãos das facções, o poder e a capaci-

aut
dade de ditar quem pode viver e quem deve morrer passa não por esses cor-
pos-facções, mas pelo contrário, atinge esses corpos. Os corpos que tombam
são os que não conseguem atingir a maioridade, e se atingem, duram pouco ou

R
nada, até a próxima rajada de tiro ser disparada. Apesar da constante beira da
morte, esses corpos escrevem suas trajetórias de resistência junto aos técnicos

o
do Creas, da comunidade e junto aos seus.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


De maneira geral, precisamos reconhecer que uma das principais cate-
gorias responsáveis pelos movimentos de resistência e de luta pela vida é a
juventude negra. Para não sucumbir ante os apagamentos históricos das lutas
e resistências, precisamos afirmar o compromisso de reconhecemos que esses
visã
jovens questionam e discutem sob quais condições querem viver. Diante do
racismo institucional, operado a partir de uma máquina do Estado – que deve-
ria proteger em vez de matar –, esses jovens ocupam os espaços e questionam
itor

com suas manifestações corporais e presenças marcadas no funk, no rock, nos


a re

terreiros, nas igrejas, na capoeira, nas universidades, na política, na rua, etc.


Enquanto o Estado segue matando, por meio da violência e da ausência
de políticas que garantem o direito à vida digna, do outro lado seguimos rea-
firmando coletivamente a dignidade, a existência e as histórias que costumam
par

ser apagadas e invalidadas. Nosso caminho é o da luta interminável. E como


profissionais atuantes para a garantia de direitos e afirmação das vidas negras,
Ed

não nos resta outra escolha, senão a de seguirmos indignadas, antirracistas


e alinhadas às ações profissionais para – e com – essa juventude assistida.
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 373

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aC
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


p. 181-191, jan./jun. 2012.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA:
considerações para uma práxis
comprometida com a realidade brasileira

or
od V
Rodrigo Toledo

aut
João Eduardo Coin de Carvalho

R
Para começar a nossa conversa

o
Nossos estudos sobre a temática da desigualdade social e seus desdobra-
aC
mentos estão imbricados com nossa trajetória de vida pessoal, atravessada por
nossa militância na garantia dos direitos humanos, por um modelo de ciência e
profissão psicológica que contribua para a desconstrução de relações de opressão,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

para superação da dialética inclusão/exclusão e para a construção do bem comum.


visã
A escolha por uma Psicologia Social dialógica, a experiência no campo
das Políticas Públicas e da formação e ação profissional em Psicologia Comu-
nitária, desvelaram, para nós, a problemática da desigualdade social, das vio-
itor

lências e opressões vivenciadas por muitos dos sujeitos que são usuários dos
serviços psicológicos disponíveis no campo das Políticas Públicas.
a re

A partir deste olhar, o presente estudo apresenta e discute o fenômeno


da desigualdade social considerando as transformações sócio-históricas no
campo da Psicologia e das Políticas Públicas.
par

O compromisso da formação em Psicologia com a superação da


desigualdade social
Ed

A história da Psicologia é marcada por um modelo hegemônico de ciência


ão

e profissão pautado em uma concepção de ser humano que desconsiderou,


durante muito tempo, o fato de que homens e mulheres são produtos e produ-
tores da história, seres ativos e sociais, ou seja, uma ciência que reproduziu
s

a ideologia dominante das sociedades ocidentais.


ver

Contrapondo-se a esse modelo, Lane (2002) explicita a emergência de


uma Psicologia que concebe o ser humano por meio das múltiplas determina-
ções da realidade, trazendo consigo uma dimensão ontológica fundamental,
que é sua condição social e histórica.
Esta concepção constitui a atuação profissional da psicóloga e do psicólogo,
mas se acentua, principalmente, na formação em Psicologia. Como adverte Bock
(1997), a formação das psicólogas e psicólogos tem sido dominada por uma
376

visão liberal de homem. Para a autora, a formação tem sido calcada na perspec-
tiva do individualismo, da naturalização do homem e do fenômeno psíquico.
Ao problematizar as motivações de estudantes que ingressam em cursos
de Psicologia (BOCK, 1997) bem como os elementos facilitadores para uma
atuação profissional comprometida com a realidade brasileira (RECHTMAN;
BOCK, 2019), duas pesquisas realizadas em um intervalo de mais de vinte anos
de diferença, percebemos que muitos estudantes escolhem cursar Psicologia

or
com base em valores individualistas ou em intervenções alusivas a práticas

od V
assistencialistas. Essas tendências convergem com uma concepção de Psicologia

aut
alicerçada em valores neoliberais e individualistas do fenômeno psicológico.
A priorização da prática clínica nos consultórios particulares acentua
a compreensão de que a formação profissional está fortemente vinculada a

R
certo modelo de Psicologia, que impossibilita, muitas vezes, a apresentação,
a apropriação e a construção de novas formas de atuação frente à leitura da

o
realidade social.
aC
Uma formação em Psicologia que considere como projeto principal a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


leitura, compreensão, produção cientifica e atuação frente à realidade bra-
sileira, exige um trabalho para a construção de uma concepção social do
psiquismo humano que possa contribuir com a análise e a prática conectada
visã
às realidades sociais.
Trata-se de uma formação que, nesse sentido, deve contemplar, entre
tantos outros conteúdos, um projeto de ensino de técnicas – entendidas como
itor

fatos culturais, alicerçados em teorias, métodos e práticas. E o ensino de


a re

métodos e práticas em Psicologia não pode ser compreendido como algo


fechado em si mesmo, referindo-se a instrumentos que podem contribuir em
processos de análise, diagnóstico e intervenção, circunscritos em uma dada
realidade sócio-histórica.
Pautando-nos nessa perspectiva, compreendemos que a formação em
par

Psicologia precisa ser atravessada por uma leitura do mundo que precede a
Ed

leitura da técnica, concordando com Freire (2003), quando este afirma que
“a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (p. 14).
Compreendendo a emergência por uma formação em Psicologia que
ão

contemple o exercício da práxis sob o fenômeno psicológico, as relações


de ensino e aprendizagem em Psicologia pressupõem a leitura do mundo e
a leitura da técnica psi, que englobam as dimensões da ciência e profissão,
s

inseridas em um determinado projeto ético-político de Psicologia.


ver

Por isso, defendemos que o ensino de Psicologia deve estar atrelado à


reflexão sobre a teoria e a prática profissional, de modo a atender uma nova
concepção de homem, orientada para uma Psicologia comprometida com a
realidade social do país. Entendemos que esse compromisso está articulado
com o campo da Políticas Públicas (GONÇALVES, 2010).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 377

A noção de Políticas Públicas adotada neste texto busca amparo em Pal-


meira e Lechner (1996), para os quais as políticas públicas são instrumentos
de garantia dos direitos constitucionais de cidadania, e seu principal objetivo,
no nível ideológico, é reduzir as desigualdades sociais e assegurar a justiça,
redirecionando a sociedade para o interesse acerca do bem estar coletivo.
Autoras como Silveira et al. (2007) ampliam a concepção de políticas
públicas, definindo-as como um conjunto de normas que orientam práticas e

or
respaldam os direitos dos indivíduos em todos os níveis e setores da sociedade.
Afirmam, ainda, que as políticas públicas devem ter como base os princípios

od V
da igualdade e da equidade, disseminando o sentido de justiça social. Por

aut
meio delas, os bens e serviços são distribuídos/redistribuídos, de maneira a
garantir o direito coletivo e atender às demandas da sociedade.

R
Como afirma Stamato (2016), é a busca por respostas para os problemas
sociais que impulsiona as políticas públicas, que nascem na perspectiva de

o
apresentar soluções concretas para as dificuldades percebidas em áreas como:
aC
saúde, educação, assistência social, trabalho e outras.
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Um destaque importante para compreender as Políticas Públicas é o seu


caráter democrático, ético político e de promoção da cidadania, como afirma
Gonçalves (2006). Para a autora, é por estas características que percebemos
visã
como a Política Pública se efetiva ao permitir o acesso universal aos direitos
sociais básicos, ao garantir o respeito às necessidades e peculiaridades da popula-
ção e promover o fortalecimento dos mecanismos de participação da população.
itor

Pensando o trabalho da psicóloga comprometido com a


a re

transformação da realidade
Como já discutimos, uma tradição da Psicologia brasileira tem sido
reproduzir os interesses das elites do país ao mesmo tempo em que tem se
par

construído como uma ciência e uma profissão para o controle, a categorização


e a diferenciação negativa das pessoas. Segundo Bock (2004) este fenômeno
Ed

acontece devido à concepção de Psicologia “tradicional” que está calcada em


ideias universalizantes e naturalizantes da subjetividade. Para a autora, atender
à demanda brasileira requer outra Psicologia, comprometida com a realidade
ão

social, econômica e cultural brasileira. Cabe, o questionamento sobre o papel


social da Psicologia e de quem a coloca em ação: a psicóloga e o psicólogo.
Martin-Baró (1996) argumenta que o trabalho profissional da psicóloga
s

deve ser definido em função das circunstâncias concretas da população, o


ver

fazer deve estar atrelado à conscientização, entendendo que a Psicologia deve


oferecer condições às pessoas para superação da identidade alienada, pessoal e
social. O processo de aceitação da conscientização como horizonte não exige
mudanças no campo de trabalho, mas sim da perspectiva teórica e prática a
partir da qual se trabalha.
378

Cabe à classe de psicólogas refletirem não apenas sobre quem são, mas
sobre o que poderiam ter sido e o que deveriam ter feito frente às necessidades
da população brasileira. Segundo Martin-Baró (1996), uma boa maneira de se
abordar criticamente o papel do psicólogo consiste em voltar às raízes histó-
ricas da própria Psicologia, algo que tentamos fazer no início deste capítulo.
Martin-Baró (1996), ao discutir a necessidade da Psicologia ter como hori-
zonte a conscientização, propõe que o fazer da psicóloga busque a desalienação

or
das pessoas e dos grupos, que as ajude a chegar a um saber crítico sobre si pró-

od V
pria e sobre sua realidade. O autor assume a conscientização como horizonte

aut
do fazer psicológico e reconhece a necessária centralização da Psicologia no
âmbito do pessoal, não como terreno oposto ou alheio ao social, mas como seu
correlato dialético e, portanto, incompreensível sem a sua referência constitutiva:

R
A conscientização não consiste, portanto, em uma simples mudança de

o
opinião sobre a realidade, em uma mudança da subjetividade individual
aC
que deixe intacta situação objetiva; a conscientização supõe uma mudança

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


das pessoas no processo de mudar sua relação com o meio ambiente e,
sobretudo, com os demais. Não há saber verdadeiro que não seja essen-
cialmente vinculado com um saber transformador sobre a realidade, mas
visã
não há saber transformador da realidade que não envolva uma mudança
de relações entre os seres humanos (MARTIN-BARÓ, 1996, p. 16).

Assim como Martin-Baró, entendemos que, em muitos momentos, não


itor

está nas mãos da psicóloga mudar as injustas estruturas socioeconômicas, mas


a re

é ela quem deve intervir nos processos subjetivos que sustentam e viabilizam
as estruturas injustas. Se também não lhe cabe conciliar as forças e interesses
sociais, compete a ela ajudar a encontrar caminhos para substituir hábitos
violentos por hábitos mais humanos.
par

Entendemos que a psicóloga deve repensar a imagem de si mesma como


profissional, sendo necessário construir mudanças teóricas e técnicas, colo-
Ed

cando o saber psicológico a serviço da população e as questões que lhe são


apresentadas, buscando a construção de uma sociedade nas quais as relações
humanas não sejam relações de dominação (MARTIN-BARÓ, 1996).
ão

Quais são os desafios no campo das políticas públicas?


s

Fruto de um processo continuado de acumulação (heranças, rentismo,


ver

baixa tributação da riqueza), a desigualdade econômica nos últimos anos, em


todo o mundo, alcançou níveis recordes. Relatório da OXFAM informa que
em 2019 os 2.153 bilionários do mundo detinham mais riqueza do que 4,6
bilhões de pessoas (OXFAM, 2020). Na América Latina, o panorama não é
diferente: a desigualdade econômica tem uma história sólida e estrutural no
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 379

continente, apoiada na cultura do privilégio, se realizando também com outras


facetas, como nas desigualdades de gênero, étnica ou etária, cuja manutenção
é um obstáculo para erradicação da pobreza. Em 2018, 30,1% da população
da América Latina estava abaixo da linha de pobreza e 10,7% estava abaixo
do limite da pobreza extrema. Em números/pessoas: 185 milhões em situação
de pobreza e 66 milhões na pobreza extrema (CEPAL, 2019).
No Brasil, em 2018, de acordo com a pesquisa “Síntese de Indicadores

or
Sociais 2019 – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasi-

od V
leira” (IBGE, 2019), 25,3% da população brasileira estava abaixo da linha

aut
da pobreza, com rendimentos inferiores a R$ 420 mensais (44% do salá-
rio mínimo vigente), atingindo aproximadamente 52,5 milhões de pessoas.
Essa situação reflete um processo de abandono pela sociedade e pelo Estado

R
daqueles que se pretende invisíveis, isto é, parcela importante da população
que historicamente o Estado não reconheceu como alvo de políticas públicas

o
específicas que visassem eliminar a desigualdade e a pobreza a partir da imple-
aC
mentação de políticas de direitos. De acordo com Bacelar (2003), trata-se da
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

“tradição” de se dar pouca ênfase ao bem-estar, ou seja, buscar como objetivo


o crescimento econômico (o bolo que nunca será repartido), beneficiando as
elites, ao invés da preocupação com a proteção social da sociedade.
visã
No que diz respeito ao trato com a pobreza e a vulnerabilidade social,
essa trajetória sofreu uma inflexão com as políticas públicas de Assistência
Social que foram preconizadas na Constituição de 1988, e potencializadas
itor

através da promulgação da lei 8742/1993, a Lei Orgânica da Assistência Social


a re

(BRASIL, 2016), e da PNAS - Política Nacional de Assistência Social (BRA-


SIL, 2005). Com a PNAS, vai se buscar a consolidação da assistência social
como política pública e direito social, na direção de um Sistema Único de
Assistência Social, política que vai se realizando na esteira do que foi insti-
tuído pelo SUS desde o início dos anos 1990, isto é, a criação de políticas de
par

direitos humanos e sociais voltadas para a defesa das garantias constitucionais


Ed

mais fundamentais: a defesa da vida e do viver.


Sposati (2011) entende que este movimento em direção aos direitos de
cidadania foi construído no Brasil a partir do final do século 20, quando lutas
ão

sociais promoveram a tentativa de novo formato nas relações entre o Estado


e a população. Isto se dá com o próprio reconhecimento pelo Estado de suas
responsabilidades sociais que não poderiam ser realizadas como beneficência
s

ou caridade – um “favor” do Estado, ou, na sua falta, um favor concedido


ver

por organizações da sociedade civil. A Assistência Social será compreendida


como uma política de proteção social, garantido seu acesso a todos sem a
necessidade de contribuição prévia.
Nesse sentido, ela conterá o conjunto de práticas e estratégias dirigidas
a uma condição social cuja razão e funcionamento são estruturais para a
380

sociedade e não focalizada no indivíduo – sem deixar de levar em conta as


diferentes demandas e condições destes indivíduos. Neste novo Estado Demo-
crático, pós-ditadura, a Assistência Social conduz sua atenção não apenas às
necessidades, mas também às potencialidades dos sujeitos. Isto é, uma política
pública com visão social capaz de identificar força e não apenas as fragilidades
que as diversas situações de vida possuem. Sua instalação deverá promover
o desenvolvimento das potencialidades na direção da autonomia, garantindo,

or
através do acesso e da distribuição de recursos demandados por indivíduos

od V
e famílias, que todo cidadão e cidadã possa ter as mesmas possibilidades e,

aut
ainda, possa exercer estas potencialidades.
Outro elemento que viria fazer diferença nesta política pública é a partici-
pação popular nas decisões de Estado, o controle social, como estava previsto

R
na PNAS, ultrapassando a concepção da Assistência como campo de favores
políticos e caridade. Entra em jogo, assim, a importância dada à participação

o
popular na plena gestão do serviço – do planejamento à execução, realizada
aC
em parte pela aposta na autonomia da gestão municipal que se realiza na

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


assunção de responsabilidades e no co-financiamento da política pública.
Se na Lei Orgânica da Assistência Social (BRASIL, 2016) está consagrada
a importância dada ao município, está lá também o acento na família e no
visã
território para a execução da Assistência.
A presença popular dentro da política pública, associada à sua territo-
rialização, é ponto importante para se destacar aqui uma das potencialidades
itor

das políticas públicas de Assistência Social, especialmente em tempos de


a re

grande incerteza como os que se seguiram às eleições nacionais de 2018.


Como outras políticas de direitos, o enraizamento territorial conduz o convite
para a participação da população, frente a frente com técnicos e gestores da
política pública. E é também uma possibilidade de produzir informações que
podem tirar da invisibilidade enormes contingentes da nossa população que
par

não seriam “vistos” pelo Estado. Em outras palavras, a política de Assistên-


Ed

cia Social, por meio de sua presença dentro dos territórios, de ferramentas
como o Cadastro Único, do fomento à participação da população, é capaz
de revelar um Brasil desconhecido – ou propositalmente ignorado – para o
ão

Estado Brasileiro, fazendo com que os grupos mais pobres e vulneráveis da


população possam ganhar materialidade: quem são, onde estão, quais suas
necessidades e potencialidades. Assim, a provisão da Assistência Social se
s

dá como satisfação das necessidades, desenvolvimento das potencialidades


ver

e será capaz de promover visibilidade para sujeitos, existências e discursos


que não teriam visibilidade fora desta estratégia de Estado.
Mas há desafios imensos que a proposição e a instalação da política
pública não anteciparam. Um dos motores da PNAS estava instalado no obje-
tivo de que esta Política Pública viesse a contrariar a concepção de Estado
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 381

mínimo e de política pública restritiva de direitos que alimentou os governos


nacionais com o fim da Ditadura Civil-Militar. Seus efeitos mais deletérios
foram a precarização do trabalho e a desqualificação de quadros técnicos.
Parte importante dos efeitos desta precarização, como indicados neste
documento do final do século passado, revelam um cenário que quase duas
décadas de Política Pública em boa parte não se conseguiu ultrapassar: falta
de profissionais qualificados, sem estabilidade no emprego, sem garantia de

or
continuidade de suas atividades (BRASIL, 2005).

od V
Mesmo se realizando dentro de um movimento de mudança e de abertura

aut
para a participação da população, essas políticas sociais, tanto no Brasil quanto
em outros países da América Latina (Argentina e Chile, por exemplo), foram
sendo subordinadas aos fundamentos das políticas econômicas neoliberais. Isto

R
fez com que propostas como a municipalização e o protagonismo oferecido às
ONGs na Assistência Social, por exemplo, possíveis motores de expansão e

o
transformação da Assistência, pudessem se converter em verdadeiros Cavalos
aC
de Tróia do neoliberalismo, desarmando ao menos parte das potencialidades
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

transformadoras destas políticas sociais.


Neste cenário, a realidade do esvaziamento das políticas públicas como
políticas sociais e de direitos, como se verifica nos últimos anos e perversa-
visã
mente tendo seus maiores efeitos justamente nos territórios mais desfavore-
cidos (YAZBEK, 2016; CARNEIRO; ARAUJO; DE ARAUJO, 2019) não
poderá ser entendida apenas por meio da lente crítica que a apresenta como
itor

um “retrocesso”. Tal situação responde a um processo que ainda não está


a re

consolidado, não é definitivo, cujas forças responsáveis por sua instituição


não poderiam deixar de se movimentar após sua instalação.
A luta por esta política deve ser compreendida como contínua e para
isso o combustível que a sustenta deve ser permanentemente injetado na
sociedade. Ele está na educação, na formação de sujeitos críticos e de pro-
par

fissionais engajados. Não se vá desqualificar as políticas sociais – discurso


Ed

conservador e neoliberal – pelas condições estruturais nas quais ela tenta se


sustentar, mas é preciso reconhecer que, em última instância, é a estrutura que
a sustenta que precisa ser questionada. Assim, como já visto acima, a política
ão

social não é fim em si mesma, mas estratégica para promover a participação


e a visibilidade da maioria da população, de seus interesses e desejos. E a
possibilidade – uma aspiração ainda mais difícil de ser alcançada – de uma
s

sociedade efetivamente democrática, justa e capaz de garantir bem-estar e o


ver

exercício das potencialidades a todos, cidadãs e cidadãos.


A construção de uma sociedade efetivamente democrática, a superação da
opressão, depende de um esforço coletivo, de um convencimento coletivo. E
esse é um processo que só se realiza a partir da educação. As políticas públi-
cas são vetores desta mudança, mas não promovem direta e inexoravelmente
382

a mudança. Elas são pontos de referência de um processo constante – como


é a educação – que orienta a mudança, mas não a finaliza. A educação é por
definição um processo continuado e a transformação da sociedade é resultado
deste processo continuado – que exige o pensamento crítico para reinventar
permanentemente o que sustenta esta transformação que enfrenta a oposição
do pensamento conservador e dos interesses das elites.

or
Para concluir

od V
aut
Desde o impeachment da presidenta Dilma Roussef, em 2016, o desmonte
no campo das Políticas Públicas se intensificou a passos largos. Nesse cenário

R
podemos citar, em especial, a aprovação da Emenda Constitucional n. 95, que
prevê o congelamento dos investimentos sociais para a Seguridade Social
(Saúde, Assistência Social e Previdência Social) e Educação por 20 anos.

o
Também acompanhamos a reforma trabalhista, de 2017, que transformou
aC

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significativamente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com uma
perspectiva de desregulamentação das relações de trabalho. E ainda acom-
panhamos a reforma da previdência social, que afeta diretamente a vida de
visã
toda a população brasileira, principalmente os mais pobres.
A proposta de estado mínimo, defendida pelo atual governo, gira em
torno de propostas reformistas no campo da economia, da educação, da saúde,
da habitação, da assistência social, além de de ações de privatização de ser-
itor

viços estatais. Trata-se de um projeto, portanto, que ameaça sobremaneira a


a re

manutenção do estado democrático de direito.


Entendemos, portanto, que é importante construirmos práticas e debates
que possibilitem uma compreensão das especificidades da Psicologia que con-
tribuam para a elaboração de projetos de intervenção psicológica que sejam
par

realmente comprometidos social e eticamente e que busquem, substancialmente,


a superação da desigualdade social, que cada vez mais se acentua em nosso país.
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 383

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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O VIÉS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS QUE
DESCREDENCIALIZA FAMÍLIAS DE
CRIANÇAS INSTITUCIONALIZADAS

or
od V
Áurea Gianna Azevedo Nobre

aut
Pedro Romão dos Santos Júnior

R
De acordo com Alves (2001) o termo “família” é derivado do latim
“famulus”, que significa “escravo doméstico”. Este termo foi criado na Roma

o
Antiga para designar um novo grupo social que surgiu entre as tribos latinas,
ao serem introduzidas à agricultura e também à escravidão legalizada.
aC
No direito romano clássico a “família natural” cresce de importância -
esta família é baseada no casamento e no vínculo de sangue. A família natu-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ral é o agrupamento constituído apenas dos cônjuges e de seus filhos. Esta


visã
tem por base o casamento e as relações jurídicas dele resultantes, entre os
cônjuges, e pais e filhos. Se nesta época predominava uma estrutura familiar
patriarcal em que um vasto leque de pessoas se encontrava sob a autoridade
do mesmo chefe, nos tempos medievais (Idade Média), as pessoas começaram
itor

a estar ligadas por vínculos matrimoniais, formando novas famílias. Destas


a re

fazia parte, também, a descendência gerada que, assim, tinha duas famílias,
a paterna e a materna (ALVES, 2001)
Como pontua Pereira e Gomes (2006) as várias mudanças ocorridas
no plano socioeconômico-culturais, pautadas no processo de globalização
par

da economia capitalista, vêm interferindo na dinâmica e estrutura familiar e


possibilitando alterações em seu padrão tradicional de organização.
Ed

Dessa forma fica difícil falar de família, a que se referir as famílias,


para que se possa tentar contemplar a diversidade de relações que convivem
na sociedade. No imaginário social, a família seria um grupo de indivíduos
ão

ligados por laços de sangue e que habitam a mesma casa. Pode-se considerar
a família um grupo social composto de indivíduos que se relacionam cotidia-
namente gerando uma complexa trama de emoções. Entretanto, há dificuldade
s

ao defini-la, cujo aspecto vai depender do contexto sociocultural em que a


ver

mesma está inserida (PEREIRA; GOMES, 2006).


A família é, portanto, uma construção social que varia segundo as épocas,
permanecendo, no entanto, aquilo que se chama de “sentimento de família”
que se forma a partir de um emaranhado de emoções e ações pessoais, fami-
liares e culturais, compondo o universo do mundo familiar. Esse universo
do mundo familiar é único para cada família, mas circula na sociedade nas
interações com o meio social em que vivem (AMARAL, 2001).
386

A noção de família remete ao relacionamento entre pessoas, que não


necessariamente compartilham o mesmo domicílio e os mesmos laços sanguí-
neos ou de parentesco. Essa ampliação da ideia clássica desse agrupamento
humano parece claramente assumida na literatura, nos marcos legais e no
discurso cotidiano das pessoas. Contudo, talvez ainda não esteja suficiente-
mente incorporada nas ações institucionais (GUEIROS, 2010).
Formada a partir das relações de parentesco, a família é concebida como uma

or
instituição social importante para a proteção e socialização dos indivíduos. Muitos

od V
estudiosos têm discutido as diversas configurações da família e suas mutações.

aut
Assim os novos arranjos familiares são formados, não sendo mais possí-
vel pensar a família a partir do modelo nuclear burguês, até mesmo a família
conjugal se apresenta em diversos formatos, sendo constituída através do

R
casamento, união estável, namoro, concubinato ou por uma união homoafetiva.
Bem como essas novas possibilidades de composição da família as ausências

o
que cercam a família popular devem ser consideradas como parte do contexto
aC
social, político e econômico, em que estar inserida, e que assim vão interferir

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


no seu funcionamento (SARTI, 2007).
Pesquisar sobre famílias, que tiveram o poder familiar destituído, é analisar
os olhares que as avaliaram e as descredencializaram. É falar dos caminhos que
visã
as levaram a perder o direito de estarem com os filhos, é verificar o quão difícil
é seguir um modelo ideal de família social e politicamente instituído, quando se
está cercado por contingências de desigualdades econômicas e sociais.
itor

Ao analisar o conteúdo dos prontuários, de crianças abrigadas em um


a re

abrigo da cidade de Belém, que tem por nome fantasia Abrigo Começo feliz,
cujos genitores haviam tido o poder familiar destituído. Foi possível verificar
nas entrelinhas dos escritos sob quais aspectos essas famílias são avaliadas
e assim descredencializadas a ponto de terem o poder familiar destituído.
Ao questionar esta realidade, busca-se entender como operam algumas
par

políticas em torno da família, bem como os efeitos sobre ela em termos de


Ed

controle social de uma sociedade desigual, disseminada e privatizada. Assim,


a pesquisa discute como a noção de direitos da criança, por exemplo, tem
recaído em uma mais intensa criminalização da família, despolitizando o
ão

movimento reivindicativo em favor das políticas púbicas e afirmando uma


concepção cada vez mais privada das relações sociais.
Como nos afirma Shenvair (2006) a família, no mundo moderno, tornou-
s

-se a referência imediata do indivíduo. Aos poucos, as pessoas deixaram de


ver

ser associadas preferencialmente a uma comunidade ou à sua proveniência


geográfica, passando a ser situadas a partir do seu núcleo familiar. Tal produ-
ção é nítida no caso de crianças, cujas famílias são convocadas legalmente, na
maioria dos países ocidentais, para responder por qualquer movimento tido
como fora dos padrões de normalidade instituídos.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 387

A família passou a constituir um espaço privado, cuja atribuição maior é a


responsabilidade por seus membros. Assumida por meio de uma série de estraté-
gias de controle disciplinar, a prática familiar produz efeitos tanto no seu âmbito
interno (privado), como no âmbito público (ordem pública). Os mecanismos de
gestão política em um Estado burguês autoritário como o brasileiro estão con-
centrados nas elites que se encontram no poder, desqualificando não apenas a
participação do coletivo, da comunidade, mas também impedindo qualquer inter-

or
venção dos técnicos responsáveis pela execução das ações (SHEINVAR, 2006).
O “corpo técnico” ou “especializado”, que vai ao campo de batalha

od V
enfrentar realidades enquanto representante do poder público é dificultado

aut
e até impedido de opinar e intervir nas decisões relativas à sua rotina, tendo
que se submeter a decisões superiores, que chegam a ser contraditórias com

R
as práticas também induzidas ou impostas pelo Executivo. A coordenação
da administração pública no Brasil é definida por alianças políticas. Sob esta

o
condição, se estabelece a relação com os trabalhadores públicos e com os
aC
usuários das políticas públicas (NASCIMENTO; SHEINVAR, 2005).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A área dos direitos da criança não é um objeto de deleite humano, mas uma
denúncia de processos de exploração e dominação que por séculos têm condicio-
nado a vida humana e o seu entorno a níveis inconcebíveis de degradação. No
visã
entanto, a família e a participação comunitária tornaram-se de forma mecânica
o centro das preocupações e, nessa medida, das preocupações do movimento
social, como se elas fossem as maiores causadoras dos problemas sociais.
itor

A partir da análise de conteúdo dos documentos que compõem os pron-


tuários, das crianças abrigadas, cujos pais foram destituídos do direito de
a re

estarem com seus filhos, do abrigo Começo Feliz, se construiu os escritos


intitulado de “O olhar sobre a família”
Sob esse título foram analisados os instrumentos que são utilizados para
classificar as famílias quanto sua estrutura, ou melhor, a sua composição, se
par

esta obedece aos padrões familiares social e politicamente instituídos; avaliar


o ambiente, espaço físico que ocupam, se o mesmo está de acordo com as nor-
Ed

mas de higiene sanitária, e por fim a avaliação das fichas e catalogações feitas
sobre as crianças, que servem de subsídios para descredencialização dos pais.
Diante de conceitos teóricos de reafirmação da família, da sua importância
ão

enquanto instituição social que protege e socializa seus membros, e que por
ocupar esse lugar de célula mater da sociedade deve estar sob constante ava-
liação quanto ao cumprimento de seu papel, e mediante a análise dos discursos
s

produzidos, através dos documentos, pela instituição de abrigo, percebe-se que


ver

a forma como a família, da criança institucionalizada, é vista e avaliada, pelos


profissionais que formam a equipe técnica do abrigo, contribuirá favorável ou
desfavoravelmente para o processo de destituição do poder familiar, dando à
estes profissionais o poder, que muitas vezes não têm consciência ou banali-
zam, de corroborar com decisões que mudam toda a história de uma família.
388

A partir das análises dos conteúdos dos discursos produzidos nos documen-
tos, foi possível perceber uma intensa preocupação em se avaliar a família, para
uma classificação, em comparação aos modelos familiares científico e social-
mente aceitos. Mas qual seria a imagem ideal que uma família precisaria atingir,
sob o olhar dos profissionais, para que tenha uma avaliação favorável mediante
um processo de destituição do poder familiar? Seria possível uma avaliação favo-
rável à família que já se encontra em processo de destituição do poder familiar?

or
Ao analisar os prontuários percebeu-se que o modelo, a imagem ou ideal

od V
de família são pautados em um conceito subjetivo de família, parece haver

aut
uma busca por encontrar uma representação do arquétipo familiar burguês
e uma vez iniciado o processo de destituição as avaliações culminam por
corroborar a desqualificação dos genitores enquanto pais.

R
Alguns trechos de relatos, encontrados nos documentos, demonstram
certa necessidade do profissional em enfatizar a realidade, capturada pelo

o
seu olhar, como demonstra o trecho de um relato de visita de um prontuário,
aC
que além de apontar as condições de pobreza em que a família se encontra,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


como a ausência de utensílios domésticos e estrutura física residencial de má
qualidade, ressalta “percebemos que a casa é a última da rua”, ou seja, não
bastasse todas as faltas materiais, a família ainda ocupa o último lugar de um
visã
espaço sem condições de habitabilidade.
Percebe-se uma preocupação em não deixar qualquer margem de argu-
mentação frente a sua análise, ao seu olhar sobre a família, o que demonstra
itor

um posicionamento tendencioso. O relato de visita domiciliar apresentado


a re

nesse mesmo prontuário, aponta somente as ausências ocasionadas por um


desfavorecimento econômico da família, como é possível observar nesses
trechos “A residência dos genitores das crianças fica em área de várzea, um
igarapé nas proximidades, cercada de árvores, passando por pontes e caminhos
alagados feitos de toros de açaí”. “Encontramos na casa apenas um fogão
par

velho, pratos, copos e redes em péssimas condições de conservação”.


Ed

As situações imprevistas que levam os projetos familiares a serem cons-


tantemente refeitos e à criação das inúmeras estratégias de sobrevivência da
família pobre urbana, são vistos como incompetência, bem como, são apontados
ão

como a causa motivadora da tão conclamada “desestrutura” familiar. A família


é concebida a partir das ausências, acima citadas, que a cercam (SARTI, 2007).
Aceita-se, irrefletidamente, um modelo imposto pelo discurso das ins-
s

tituições, da mídia e até mesmo de profissionais, que é apresentado não só


ver

como o jeito “certo” de se viver em família, mas também como um valor. Isto
é transmitido e captado, o discurso implícito de incompetência e de inferiori-
dade, referindo-se àqueles que não conseguem viver de acordo com o modelo.
Essa sensação de ser “diferente”, “menos do que” e “incompetente” aparece
no discurso daqueles que se desviam da norma (SZYMANSKI, 2002).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 389

Vê-se, aqui, uma avaliação amparada nesse discurso e na condição


econômica, a pobreza aparece enquanto condição para descredencialização
da família, porém o capítulo III do ECA (Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, 1990), art. 23º que trata do direito a convivência familiar e comunitária,
está promulgado que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui
motivo suficiente para perda ou suspensão do pátrio poder” (pág. 23), mas de
acordo com as análises dos discursos impressos nos documentos nota-se que

or
esta ainda aparece com bastante frequência e com grande peso nas avaliações

od V
das famílias das crianças abrigadas.

aut
Para um melhor entendimento vale ressaltar que o ECA (1990) ainda
mantém o termo Pátrio Poder, definido no Código Civil de 1916, porém a
Constituição de 1988, no art. 226, § 5º, estabelece uma nova concepção que

R
prevê: “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher”, constituindo-se o Poder Familiar,

o
termo usado no decorrer do trabalho.
aC
A descredencialização das famílias pautada nas ausências que as cercam
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pode ser constatada através da pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e


Economia Aplicada (IPEA, 2004) que por meio de levantamento dos abrigos da
Rede de Serviços de Ação Continuada (SAC) constatou que 86,7% das crianças
visã
abrigadas possuem família e que 50,1% desses casos de abrigamento foram
ocasionados por pobreza/carência material, vivência na rua e mendicância.
Mediante as análises dos documentos produzidos pela instituição, através
itor

de sua equipe técnica, observa-se que o olhar sobre a família, da criança abri-
a re

gada, é sempre de avaliação, há sempre um ajuizamento, um conceito sendo


formado, algo sendo medido. As inúmeras formas de intervenção sobre a
família podem ser observadas nos documentos como nesse trecho “... a técnica
de enfermagem M.A. descreveu que J. estava bem, mas sem registro civil e
carteira de vacina e que E. apresentava cicatrizes de escabiose e de modo geral
par

estava bem, mas também sem registro civil e carteira de vacina. Em seguida
Ed

foram higienizados, alimentados e encaminhados aos dormitórios que aten-


diam as respectivas faixas etárias” (Relatório Social de um dos prontuários).
Inúmeros são os motivos elencados para justificar a desestruturação das
ão

famílias, há uma tentativa em explicar as causas que impedem a família de se


manter coesa. A ausência de uma identidade civil e de registros médicos, que
comprovem a sua existência e seu bem estar, são pontuados de forma enfática. De
s

acordo com Ariès (2006) um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado
ver

com as exigências de identidade civil a que nos submetemos com naturalidade.


Esses registros passam a ser sinal de responsabilidade e motivo de orgulho.
Ariès (2006) afirma que a inclusão do primeiro nome já fora considerada
uma designação muito imprecisa, na Idade Média, fazendo-se necessário
complementá-lo por um sobrenome de família, muitas vezes representado por
390

um nome de lugar. Além do nome tornou-se conveniente uma nova precisão,


numérica, a idade. O nome faz parte do mundo da fantasia, o sobrenome ao
mundo da tradição e a idade corresponde o mundo da exatidão, do que pode
ser legalmente mensurável. Hoje, habituou-se a uma identidade civil ligada
a esses três mundos ao mesmo tempo.
Dessa forma como admitir pais que não sabem datar a idade de seus
filhos de forma precisa, que não tenham registros acerca do histórico de saúde

or
destes, uma vez que estes são hábitos legalmente instituídos? Esse olhar que

od V
pontua essas ausências encontra-se comprometido, o que dificulta uma ava-

aut
liação imparcial. Alcançar total neutralidade numa avaliação é tarefa difícil,
praticamente impossível, mas faz-se necessário certo distanciamento para não
permitir um julgamento de valor embasado em questões pessoais.

R
Mas de que forma seria possível os especialistas se desvencilharem de
seus conceitos subjetivos ao avaliarem essas famílias, pois como afirma Costa

o
(2004) perante os novos técnicos em amor familiar, os pais, via de regra, con-
aC
tinuam sendo vistos como ignorantes, quando não doentes. Há sempre um a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mais a corrigir, um a menos a tratar. Em resumo, quando se observa os resulta-
dos da educação higiênica, imposta até os dias atuais, uma conclusão se impõe:
a norma familiar produzida pela ordem médica solicita de forma constante a
visã
presença de intervenções disciplinares por parte dos agentes de normalização.
Com a descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o
desenvolvimento emocional posterior, a família passou a ser vista como o
itor

locus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis,


a re

felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequi-


líbrios e toda sorte de desvios de comportamento. Assim as interpretações
acerca das inter-relações, dos cuidados prestados aos filhos (como registrar,
manter as vacinas em dia), passaram a ser feitas no contexto da estrutura
proposta pelo modelo burguês e, quando a família se afasta deste é chamada
par

de “desestruturada” (SZYMANSKI, 2002).


Ed

No decorrer das leituras dos documentos foi possível constatar, que


alguns relatos foram produzidos, a partir do olhar de outrem, como rela-
tórios de outras instituições que atenderam a família antes do processo de
ão

abrigamento das crianças. Em um trecho do Relatório Social deste prontuário


consta o seguinte relato “... já residiram em quatro casas, todas eram sujas,
desorganizadas e sem banheiro interno”. Essa informação do número de resi-
s

dência pelo qual a família já havia passado parece ter sido obtida a partir do
ver

relato de um casal de amigos, que outrora abrigara a família, pois não consta
o relato de visita dos quatro endereços mencionados.
Esse olhar sobre a família, da criança abrigada, constitui-se na imagem
que a família possui, segundo a realidade de quem a avalia, e a que ela deveria
ter. Assim muitos dos fenômenos apontados, hoje em dia, como causas da
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 391

desagregação familiar nada mais são que consequências históricas da educa-


ção higiênica. Em outros termos as famílias se desestruturam por seguirem a
risca as normas de saúde e equilíbrio que lhe são impostas (COSTA, 2004).
A partir da análise de documentos que tratam das inúmeras abordagens
feitas às famílias, a partir da utilização de instrumentos que avaliam a estrutura
e o funcionamento destas, pode-se avaliar a compreensão acerca da estrutura
familiar. As fichas, que compõem esse conjunto de documentos, servem de

or
respaldo para a qualificação das famílias quanto a sua capacidade em perma-

od V
necer ou não com os filhos.

aut
O processo de abrigamento é mais uma das políticas específicas, do Estado,
que tem como alvo a família, que através de documentos cientificamente produzi-
dos, no caso as fichas de abordagem familiar e visita domiciliar, submetem o poder

R
da família a uma classificação. A inserção da medicina higiênica, no início do séc.
XIX, como nova aliada do Estado, muito contribuiu para afirmação dos espaços

o
de segregação higienizados dedicados aos “sem família” (SCHEINVAR, 2006).
aC
Rago (1997) afirma que enclausurar a criança pobre nos espaços disci-
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plinares dos institutos profissionais ou das escolas públicas apareceu como a


maneira mais eficaz de adestrar e controlar um contingente potencialmente
selvagem da população, aos olhos dos higienistas.
visã
De acordo com Costa (2004) a higiene das famílias se deu através da norma
que tem como fundamentação teórica a noção de dispositivo, que por sua vez
são formados pelos conjuntos de práticas discursivas, elementos teóricos que
itor

reforçam, no nível do conhecimento e da racionalidade, as técnicas de dominação,


a re

e as não-discursivas formadas pelo conjunto de instrumentos que materializam


o dispositivo como as técnicas de controle dos indivíduos e das instituições.
A normalização dos indivíduos através desses dispositivos tornou-se
indispensável ao funcionamento do Estado, e cresce e se estabiliza no campo
do poder e saber que ditam os “desvios” da normalidade. Para as famílias
par

torna-se cada vez mais difícil ir de encontro, as normas, dos técnicos em amor
Ed

familiar, uma vez que amar e cuidar dos filhos tornou-se um trabalho sobre
humano, mais precisamente, científico (COSTA, 2004). Os instrumentos de
avaliação e classificação utilizados pelo abrigo para avaliação da estrutura
ão

familiar corroboram com esse pensamento classificatório.


As diversas formas de estrutura familiar tornaram-se alvo de estudos nas
mais diversas áreas, dentre essas novas formações pode-se destacar o modelo
s

de família nuclear moderno em que o pai passa a assumir funções antes con-
ver

sideradas de responsabilidade apenas da mãe. Surge, assim, o conceito de


coparentalidade que se refere ao apoio e divisão da liderança entre os pais
em seus papéis parentais, o termo também pode ser usado a qualquer relação
em que dois adultos dividem as responsabilidades e os cuidados em relação
a uma criança (AMAZONAS; BRAGA, 2006).
392

O recasamento também é apontado como uma nova possibilidade de


composição familiar. Carter e McGoldrick (2001) afirmam que uma segunda
união envolve o emaranhamento de duas, três, quatro ou mais famílias e é
nesse contexto que o novo sistema familiar se estabiliza e passa ser tido
como uma nova fase no ciclo vital. Têm-se ainda as famílias monoparentais
composta por um único genitor com os filhos.
De acordo com Carvalho (2002) a literatura especializada internacional

or
há muito tempo insiste na desconstrução do “mito da família nuclear”, conside-

od V
rando que esta talvez seja uma “invenção moderna” sustentada pela difusão da

aut
cultura de massa. As alterações na estrutura familiar que ocorrem hoje em dia
no ocidente podem ser simplesmente “o retorno ao estado complexo e diverso
em que a família passou a maior parte do milênio” (CARVALHO, 2002). Por

R
mais que no passado as causas não tenham sido as mesmas, acontecimentos
como casamentos tardios, filhos fora do casamento ou aumento do número de

o
mulheres trabalhando fora, já eram vistos em outros momentos das sociedades
aC
ocidentais. O certo é que a adaptação às novas estruturas parentais está em

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curso e assim os novos sistemas familiares vão se instalando sendo este um
processo irreversível. Pedroso (2003) ao tratar da origem e da forma como
a família se estrutura afirma que as explicações acerca desta baseiam-se em
visã
fundamentações biológicas ou psicossociais. As características e a estrutura da
família no mundo ocidental têm passado historicamente por inúmeras trans-
formações na sociedade. Muitos rituais que antecediam sua constituição estão
itor

sendo abandonados ou modificados. As mudanças mais notadas referem-se à


a re

formação dos grupos de casais (heterossexuais e homossexuais), aos cuidados


com os filhos (biológicos ou adotados) e as redes de parentesco.
Têm-se, portanto inúmeras constelações familiares, que diferem do
modelo tradicional de família, dentre as quais pode-se citar: pais com filhos
biológicos, crianças com padrastos ou madrastas, filhos adotivos, filhos oriun-
par

dos de barriga de aluguel ou de inseminação artificial, casais do mesmo sexo,


Ed

mães solteiras por contingência ou opção (PEDROSO,2003).


Ainda segundo Pedroso (2003) é neste cenário de mudanças que encon-
tra-se grupos familiares que cumprem funções básicas de cuidados, para o
ão

desenvolvimento humano, que não estão contemplados nos modelos tradi-


cionais de família. Sendo assim faz-se necessário uma melhor compreensão,
acerca dos mesmos, quanto a sua organização e dinâmica de funcionamento.
s

Apesar de todas as variações de sistemas familiares, pode-se afirmar que


ver

esta ainda se mantém enquanto objeto de desejo idealizado, além de ser apontada
como artefato principal não apenas para a “continuidade da espécie”, mas também
para a proteção e a socialização de seus componentes. Ao mesmo tempo em que
é considerada como fundamental para o desenvolvimento da sociedade é também
desqualificada quando não atende aos métodos e práticas de controle científico.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 393

Um trecho do Relatório Social do prontuário, já mencionado, consta “...


realizamos o primeiro atendimento psicossocial ao casal de genitores, em
nossas avaliações sistemáticas percebemos que se trata de pessoas ignorantes,
com precárias condições de higiene sendo que a genitora apresentava ter dis-
túrbios mentais”. Aqui a estrutura familiar é desqualificada desde o primeiro
contato, o olhar que classifica é tão certo do que vê que chega até mesmo a
dispensar o uso de instrumentos científicos, tão valorizados tecnicamente,

or
para a avaliação do estado de saúde mental da genitora.
Assim como a capacidade mental, da genitora, pode ser aferida a partir

od V
do primeiro contato com a família, pode-se pensar que desta forma, também,

aut
são avaliados os aspectos que embasam essa estrutura familiar, principalmente,
quando o olhar de quem avalia tem como referência os modelos de família

R
social e cientificamente aceitos, não levando em conta a realidade vivenciada
pela família. Sarti, (2007) afirma que o universo moral de cada família é único

o
e defensável para quem o segue e justificam as relações, os lugares de homem
aC
e mulher que compõem aquela estrutura familiar.
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Os papeis e as relações de poder que constituem a base de sustentação


das famílias pobres urbanas, mostram a força simbólica, que ainda se mantém,
da autoridade masculina representada pelo papel central de homem como
visã
mediador com o mundo externo. O homem corporifica a ideia de autoridade,
como mediação da família com o mundo externo. Ele é a autoridade moral,
responsável pela respeitabilidade familiar (SARTI, 2007).
itor

Mas não se pode descartar as mudanças ocorridas nesses papeis centrais


de pai de família e mãe dona de casa. A “má” autoridade que abusa de seus
a re

direitos e descuida de seus deveres, contribuiu para as mudanças ocorridas


nos padrões patriarcais em que se baseia a família pobre urbana.
Assim, para constituir a “boa” autoridade, digna da obediência que lhe
corresponde, não basta ao homem pegar e botar comida dentro de casa e falar
par

que manda. Para mandar, tem que ter caráter, moral (SARTI, 2007, p. 63).
O deslocamento das figuras masculinas e femininas aponta para as outras
Ed

realidades em que estão estruturadas as famílias. Há os casos em que a mulher


assume a responsabilidade econômica da casa, o que acarreta em modificações
nas relações de poder. Para a mulher manter o papel masculino de provedor
ão

não se constitui em um problema, para ela, o problema está em manter a


dimensão do respeito, conferida pela presença masculina.
De acordo com Sarti (2007) o papel fundamental da mulher na casa dá-se,
s

portanto dentro de uma estrutura familiar em que o homem é essencial para


ver

própria concepção do que é a família, por que a família é pensada como uma
ordem moral, onde o homem representa a autoridade. Mesmo quando ele não
provê a família, sua presença “desnecessária” continua necessária.
Durante a análise dos documentos foi possível perceber que é sob esse
olhar de ordem moral que a família, da criança abrigada, é avaliada. Há uma
394

busca, por visualizar os papeis, que tornem aquela família um núcleo, em que o
homem possa ser definido enquanto autoridade provedora de sustento e a mulher,
equilibrada, ocupe seu lugar de mantenedora da união grupal. No documento
denominado de Relatório Técnico do prontuário, de um outro prontuário, consta
o seguinte trecho: “Família mantem-se do trabalho de pequenos biscates do pai.”
No Relatório Social, do mesmo prontuário, têm-se: “O pai continua vendendo
biscoitos e amendoim pela orla de Icoaraci e Outeiro, a mãe é do lar, ajuda o

or
pai a torrar amendoim”. “O pai nunca trabalhou registrado...” Vê-se aqui que

od V
apesar dos papeis ocuparem os lugares de homem e de mulher determinados

aut
socialmente, há uma cobrança quanto ao status desse papel do pai enquanto pro-
vedor, o quanto este é capaz de prover o sustento da família através de biscates.
É possível perceber certa desqualificação do trabalho praticado pelo pai,

R
visto como não digno de um pai de família que precisa prover o sustento dos seus
dependentes. Como fornecer a mulher e aos filhos moradia e alimentação, de

o
acordo com os padrões arquitetônicos e nutricionais exigidos, uma vez que nem
aC
se quer possui um trabalho com carteira assinada. A carteira de trabalho é vista

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como o documento que qualifica a pessoa enquanto trabalhador, quem não o
possui encontra-se às margens da sociedade contribuinte, na informalidade, não
podendo ser contabilizado como cidadão trabalhador que paga seus impostos.
visã
A autoridade masculina é seguramente abalada se o homem não garante
o teto e o alimento da família, funções masculinas, por que o papel de pro-
vedor a reforça de maneira decisiva. Assim a desmoralização ocorrida pela
itor

perda de autoridade que o papel de provedor atribui ao homem e que abala


a re

a base do respeito que lhe devem seus familiares, significa uma perda para a
família como totalidade (SARTI, 2007). Assim a descredencialização desta
é reforçada, pois a ausência dessa autoridade faz com que a família caia no
discurso redundante de desestrutura.
Sarti (2007) afirma que o status central do homem na família, como
par

trabalhador/provedor, torna-o também vulnerável, porque o faz dependente


Ed

de condições externas cujas determinações escapam a seu controle, fator este


acentuado no caso da população pobre, exposta à instabilidade estrutural do
mercado de trabalho que a absorve. A vulnerabilidade da família pobre, quando
ão

centrada no pai/provedor ajuda a explicar a frequência de rupturas conjugais,


que diante de tantas expectativas não cumprida, para o homem, que se sente
fracassado, e para a mulher, que vê rolar por água abaixo suas chances de ter
s

alguma coisa através do projeto do casamento.


ver

Ao analisar os prontuários observa-se um discurso de culpabilização


das famílias, principalmente da figura masculina (pai/provedor) por não con-
seguir manter a família coesa, pelas inúmeras rupturas pelas quais passam
essas famílias, sem se levar em conta os fatores políticos e econômicos que
as cercam e as colocam na condição de vulneráveis. O pai que não possui um
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 395

trabalho registrado em carteira, não o faz não só por uma questão de escolha
e sim por uma série de fatores, que empurra grande parte da população para
condição de trabalhador informal.
Carvalho (2002) afirma que essa visão da família/individuo a partir de
um referencial econômico instalou-se nos anos 70 com o chamado boom
econômico que o país vivenciava e assim a família concebida a partir das
relações de sociabilidade comunitária que a compunha, tornou-se descartá-

or
vel no Estado de bem-estar social, em que o indivíduo promovido a cidadão

od V
só poderia trilhar sua vida e ser socialmente reconhecido numa relação de

aut
dependência do estado e do trabalho.
O Estado e o trabalho aparecem como protagonistas do desenvolvimento
e da promoção dos indivíduos em sujeitos de direitos; sujeitos com liberdade e

R
autonomia. O Estado significou o grande tutor na distribuição de bem-estar social
e o trabalho o grande integrador e vetor de inclusão social (CARVALHO, 2002).

o
Ao estudar os documentos foi possível constatar que a avaliação acerca da
aC
estrutura familiar está diretamente relacionada à avaliação das condições eco-
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nômicas que a família se encontra, a capacidade que os genitores têm de prover


moradia, alimentação, educação, considerados pelos técnicos enquanto recursos
mínimos para o bom desenvolvimento de uma criança. No documento intitulado
visã
de Relato de visita buscou-se analisar de que forma o ambiente familiar é conce-
bido e qual a importância deste para qualificação ou desqualificação das famílias.
A família, que é reconhecida como um lugar ideal para um bom desen-
itor

volvimento físico e psíquico para seus membros é também apontada enquanto


a re

incapaz de gerir higienicamente seus membros. Inúmeras políticas paternalis-


tas foram criadas, pelo poder público, com o propósito de controle e contenção
social, principalmente das famílias pobres, a partir de um discurso de “incom-
petência” da família em resguardar e formar os filhos em “cidadãos de bem”.
A desqualificação dessas famílias ratifica a ideologia de destituição dos pais e
par

de seus deveres em relação aos filhos (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2005).


Ed

Segundo Rizzini (2004) a partir da oficialização da assistência às famílias,


pelo governo, ela passa a ser elemento-chave das práticas discursivas das ins-
tituições produtoras de saberes sobre essa esfera da sociedade, havendo assim
ão

um grande empenho na construção desses saberes, por parte de profissionais


como psicólogos, psiquiatras, cientistas sociais e médicos, no intuito de criar
uma rede de controle social das famílias, além de legitimar a necessidade de
s

intervenção junto a esse grupo social.


ver

Costa (2004) aponta para uma reflexão acerca dos “remédios” propostos
à família pelos especialistas, cabe verificar se estes ao invés de sanarem o
mal, não irão perpetuar a doença. Os peritos em reeducar terapeuticamente as
famílias dão-se conta de que a desestruturação familiar é um fato social, mas
raramente percebem que as terapêuticas educativas, por eles propostas, são
396

componentes ativos na fabricação deste fato. Presos à ideologia do <cientifi-


cismo>, acreditam na isenção política de suas práticas profissionais.
Durante a análise dos documentos foi possível constatar, em alguns tre-
chos relatados, a necessidade por legitimar a intervenção técnica e a neces-
sidade de abrigamento das crianças. Não se trata de negar as dificuldades,
principalmente de ordem econômica, pelas quais as famílias passam, mas sim
de despertar para o quanto esse olhar, sobre a família da criança abrigada,

or
responsável por qualificar essa estrutura familiar pode estar orientado para

od V
uma gestão cientifica e higiênica da pobreza.

aut
Um dos aspectos observados na análise das fichas, utilizadas no processo
de classificação das famílias, é o fato de que grande parte dos itens de avalia-
ção não está preenchida ou contém informações vagas. O item dois de uma

R
das fichas é denominado de Situação Familiar e está desdobrado nos seguintes
subitens convivência/relacionamento; condições de moradia e informações

o
complementares. Nas fichas de dois destes prontuários, o subitem condições
aC
de moradia consta apenas “sem moradia” e no espaço direcionado as infor-

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mações complementares não há nada escrito, os itens subsequentes em sua
maioria também encontram-se em branco.
Um dos documentos analisados é denominado de Ficha de Visita Domi-
visã
ciliar em que são abordados aspectos como situação habitacional (tipo de
moradia, número de cômodos, condições sanitárias, iluminação elétrica e
abastecimento de água); equipamentos e utensílios domésticos e condições
itor

gerais de habitabilidade. Na ficha encontrada em um dos prontuários consta a


a re

seguinte informação no que diz respeito a condições de habitabilidade “A casa


ainda se encontra só no tijolo e o chão é batido”. A mesma ficha de um outro
prontuário diz “Casa de madeira em condições precárias de habitabilidade”.
Essas transcrições demonstram quão vagas são as informações que com-
põem os relatórios que embasam as decisões judiciais de destituição do poder
par

familiar. Bem como denotam que o olhar sobre a composição do ambiente,


Ed

é por vezes, orientado para uma regulação higiênica da pobreza, focado nas
ausências, não descrevendo o que há, mas somente o que falta. Em nenhum
dos prontuários foi possível observar que no decorrer destas visitas algum
ão

profissional tenha orientado às famílias, ou mesmo, assistidos através das


políticas públicas já existem que possam subsidiá-las.
Os relatos denotam uma preocupação, por parte do técnico, em avaliar
s

durante sua visita o ambiente físico que cerca a família, há uma atenção dema-
ver

siada a aspectos como quantidade de cômodos, estrutura física da casa (se esta é
de alvenaria ou pau a pique) e utensílios domésticos que a família possui, assim
a avaliação do ambiente fica resumida ao espaço físico ocupado pela família.
Essa intervenção sobre a casa corrobora com os preceitos da medicina
social pontuados por Costa (2004) que tinha como movimentação estratégica
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 397

o espaço físico, ocupado pela família, para expansão dos conceitos de saúde
pública, que higienizariam o continente familiar, mas para que essas transfor-
mações no ambiente acontecessem fez-se necessário que os preceitos estatuídos
que garantissem a salubridade e asseio das habitações fossem prescritos por lei.
Assim, as normas técnicas de edificações que regem as construções e
tornam as residências habitáveis são impostas as famílias populares e o olhar
sobre o ambiente sai em busca por encontrar construções que obedeçam aos

or
cânones higiênicos, porém não são levados em conta que grande parte das

od V
insalubridades encontradas, nas casas visitadas, são em decorrência de uma

aut
falta de infraestrutura que deveria ser garantida pelo Estado.
Essa regulação higiênica da pobreza, através da medicina social, reduziu
a família a um estado de dependência, recorrendo, o que é mais significativo a

R
argumentos semelhantes aos atuais. Foi também pretextando salvar os indiví-
duos do caos em que se encontravam que a higiene insinuou-se na intimidade

o
de suas vidas (COSTA, 2004).
aC
Em um dos relatórios de visita doe um dos Prontuário constam os seguintes
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trechos “A residência dos genitores das crianças está localizada em área de inva-
são, sendo ainda a última casa da rua, ficando longe de postos de saúde, escolas
e áreas de lazer”. Ainda sobre o ambiente da mesma família consta “Casebre de
visã
madeira humilde, própria, contendo apenas um cômodo em condições precá-
rias de habitabilidade”. Há também um trecho que faz referência aos utensílios
domésticos que a família possui que diz “Foram encontrados na casa um armário
itor

contendo alguns pratos, talheres e panelas velhas, com um aspecto de sujeira...”.


a re

É evidente o quanto o espaço físico, habitado pela família, é levado em


consideração no processo de avaliação desta enquanto capaz ou não de cuidar
dos próprios filhos. Nos relatórios de visita analisados, nestes prontuários, não foi
possível perceber uma avaliação do ambiente enquanto relação entre os membros
da família, ou aos cuidados dispensados às crianças, que envolvem aspectos tanto
par

materiais quanto emocionais, está focada somente na estrutura física do ambiente.


Ed

De acordo com Costa (2004) transformação da casa colonial em casa


higiênica respondia a uma movimentação estratégica de intervenção sobre a
família, que através da ingerência médica, em todos os setores da vida pública
ão

e privada, fazia considerações sobre as habitações que iam desde a escolha


do lugar da casa (se em planícies, montanhas, colinas, florestas, praias, etc...)
até a disposição das peças de habitação (andares, assoalhos, janelas, portas,
s

iluminação, ordem, asseio etc...).


ver

A preocupação com a habitação, enquanto local salubre que deve ser, se


mantém e é arregimentada por mais saberes especializados como os arquitetos,
urbanistas, pedagogos, psicólogos, sociólogos e assistentes sociais, estes por
sua vez continuam a imprimir à família, desequilibrada pelo desenvolvimento
urbano, seu modelo de organização social.
398

De acordo com Rago (1997) a gestão cientifica da habitação popular


foi pensada desde meados da década de 20, mas foi na década de 1930 que
novos dispositivos estratégicos de moralização da moradia do proletariado
são discutidos no 1º Congresso de Habitação, realizado em 1931. Com o
intuito de favorecer o processo de industrialização no país o governo cria as
vilas operárias e, portanto estas precisam ser organizadas num espaço arqui-
tetônico literalmente cercado e fechado, o que possibilita uma melhor gestão

or
higiênica deste espaço.

od V
A questão da habitação popular passa a ser construída por um arsenal de

aut
conhecimentos, não só mais os higienistas detêm esse poder, o qual passa a ser
legitimado, também, por outras falas que se articulam sobre o social como a de

R
engenheiros, sociólogos e advogados. Porém a preocupação que sustenta toda
a discussão sobre o problema da moradia dos pobres está centrada muito mais

o
na vontade de regenerar as classes decaídas, do que no sentido de responder
funcionalmente ao problema habitacional (RAGO, 1997).
aC

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Costa (2004) afirma que através da habitação houve uma intervenção
sobre a privacidade familiar, que valorizou o convívio íntimo entre os mem-
bros da família e tornou necessária uma vigilância constante da casa. Surge
visã
a partir de então o interesse pelo desenvolvimento e educação dos filhos e
o amor paterno torna-se a força responsável pela união familiar. E assim a
medicina-estatal sob a forma de medicina doméstica passa a intervir e a criar
novas formas de subjetivação da família. No conteúdo analisado dos Rela-
itor

tórios de Visita, dos prontuários estudados, é perceptível uma preocupação


a re

com o ambiente enquanto um problema material ou financeiro, bem como


uma questão moral. Há uma semelhança com o pensamento ideológico dos
higienistas do período industrial, muitos aspectos conceituais sobre a moradia
dos pobres se estendem até os dias atuais, adequando-se as transformações
par

socioeconômicas vigentes.
Ainda se recorre à mesma operação conceitual que vincula pobreza-
Ed

-saúde-imoralidade. Os técnicos responsáveis por avaliar o ambiente em


que vivem as famílias das crianças abrigadas, possuem uma representação
imaginária sobre o ideal de ambiente familiar adequado para o bom desen-
ão

volvimento infantil. E é pautado nessa dimensão simbólica do real que os


conceitos acerca do ambiente, ou melhor, da habitação da família pobre são
s

construídos (RAGO, 1997).


ver

Assim, como afirma Sheinvar (2006) durante as análises foi possível


constatar que a culpa da ineficiência com que os programas políticos, voltados
para família, são planejados e geridos recai sobre o funcionalismo público, e
através desta figura explora-se a ameaça da “ingovernabilidade”. Tal reducio-
nismo é percebido também quando o próprio Estado se destitui de algumas de
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 399

suas tradicionais atribuições em relação à política social e convoca a sociedade


civil para participar da gestão da política pública, sabendo que esta não tem,
necessariamente, uma tradição participativa orgânica e, mesmo detendo parcos
e fragmentados espaços nos mecanismos de gestão é responsabilizada pelo
processo de democratização.
Há assim uma busca por estratégias de sobrevivência, que colocam a
família na mira, como se ela devesse, ou melhor, pudesse dar respostas a

or
uma crise global. Esta desagregação conduz à despolitização do movimento

od V
reivindicativo. Portanto a análise desses documentos não teve a finalidade

aut
de fazer um julgamento dos profissionais que atuam no abrigo, e sim refletir
sobre os constructos que fundamentam esses saberes e que passam a ideia
de que suas práticas são apolitizadas e que não os faz questionar as políticas

R
públicas, já existentes, quanto aos vieses que reforçam e perpetuam o processo
de descredencialização das famílias pobres.

o
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
400

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LOS DE A PIE: la ciudad vivida
como movilidad asimétrica

or
Bernardo Jiménez-Domínguez
Rosa Margarita López Aguilar

od V
aut
Para abarcar la ciudad analíticamente, se ha propuesto por parte de Soja
(2002), una trialéctica del espacio. Esta propuesta se inicia con el primer espa-

R
cio que corresponde al espacio percibido del urbanismo como modo de vida;
un segundo espacio que se refiere al espacio concebido desde una perspectiva

o
más psicológica, referida al imaginario y la representación simbólica, a nuestros
aC
mapas mentales sobre la ciudad. El tercer espacio incluye a los dos anteriores
y se refiere al espacio vivido, que es simultáneamente real e imaginado. Esta
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perspectiva reconoce la interconexión de los tres espacios: percibido, conce-


bido y vivido y advierte que la complejidad urbana puede ser mejor apreciada
visã
a través de sus dimensiones sociales, históricas y espaciales. La complejidad
del espacio urbano supone en consecuencia, que se pueden hacer una variedad
indefinida de interpretaciones y análisis de casos que nos faciliten repensar la
itor

ciudad en términos colectivos para que la planeación repercuta en una calidad


a re

de vida cada vez más autogestionada a partir de mecanismos de decisión par-


ticipativa. Esto, porque en todas las sociedades se les imponen a las personas
los itinerarios en los que experimentan el sentido de la relación con los demás,
como advierte Auge (1998) al hablar de los viajes urbanos.
La perspectiva mecanicista de los planificadores tecnócratas que actúan
par

bajo la premisa de que los espacios urbanos deben tener funciones definidas y
Ed

específicas los lleva a tomar decisiones a nombre de la sociedad y por encima


casi siempre de cualquier lógica social. Como por ejemplo y de forma ya
rutinaria, priorizar los flujos de movimiento por encima de los espacios de
ão

intercambio. Cuando es sabido que estos flujos en forma de vías extensas solo
tienen como futuro intensificar el tránsito y regresar a nuevos picos de satu-
ración en un círculo literalmente vicioso de aire cada vez más viciado. Ni se
s

resuelve el problema de los desplazamientos y articulación de la ciudad, ni se


ver

gana mayor fluidez, o solo se logra por muy poco tiempo, pero sí se destruyen
las tramas urbanas locales e identitarias restando espacios públicos, identidad
y cultura urbana en el conjunto de la ciudad.
Como lo plantea Engwicht (1999), los espacios que le agradan a la gente
y que forman parte de la naturaleza poética del espacio urbano no han sido
racionalizados con un fin único, como el que las calles y carreteras sean solo
para el movimiento de los autos, porque los flujos excesivos de cualquier tipo
404

de tránsito solo pueden llegar a destruir el potencial del espacio en movimiento


para cumplir su función como espacio de intercambio. De forma paradójica la
gente que conduce sus autos privados a través del espacio público se dirige a
un intercambio planificado, pero en el camino suprimen involuntariamente el
marco de los intercambios espontáneos.
El problema del transporte y los desplazamientos en los trayectos urba-
nos impuestos en nuestras ciudades forma parte de una problemática que sub-

or
yace a las diversas situaciones y al grado de desarrollo de los diversos medios

od V
implementados para afrontarlo en todo el mundo. Por ejemplo, el número de

aut
vehículos motorizados a nivel mundial creció de 500 millones en 1990 a 1,236
millones en 2014, siendo el 80% transporte personal. Se sabe que el incremento
en el número de carros no es sostenible y que la contaminación derivada de la

R
emisión de sustancias a pesar de la tecnología mejorada para su disminución,
contribuye al calentamiento global y amenaza cada día más la calidad de vida

o
urbana, también, una mayor cantidad de vehículos aumenta el nivel y la duración
aC
del ruido. Anualmente alrededor del mundo mueren 1,3 millones de personas

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en accidentes viales y entre 20 y 50 millones quedan heridos e incapacitados,
buena parte de los cuales son gente joven. Pero además sobra decir que los carros
ocupan cada vez más espacio urbano en detrimento del espacio público para los
visã
niños, el juego, las bicicletas, los peatones, los encuentros, invadiendo incluso los
escasos andenes y banquetas supuestamente peatonales y también las esquinas.
Los autos amenazan la accesibilidad a los destinos y las congestiones viales
itor

causan pérdidas enormes (STEG; GIFFORD, 2003). La lógica no cuenta en este


a re

campo a pesar de que ya se sabe cómo hacer carros menos contaminantes y más
seguros. Se sabe qué hay que hacer para que se usen menos y reforzar la experiencia
segura de un sistema de transporte público integral y sostenible, es reconocido que
las áreas más sustentables son aquellas con menos kilómetros de recorrido y se
conocen las experiencias históricas de organización del transporte público desde
par

las más costosas hasta las más económicas y provisionales. Pero sobre todo se
Ed

conoce la pesadilla que viven cotidianamente los usuarios del transporte público
local en estado salvaje y sus efectos trágicos, el impacto ambiental, psicosocial y
el deterioro adicional del paisaje urbano, la salud y la calidad de vida en la ciudad
ão

para la inmensa mayoría, pero parece que importa más el beneficio y las ganan-
cias de los empresarios. Es justamente, lo contrario a lo que planteaba Lefebvre
(1968, 2017) al definir el derecho a la ciudad como la apropiación colectiva de sus
s

habitantes y la prioridad del valor de uso sobre el valor de cambio.


ver

En el Área Metropolitana de Guadalajara (AMG) se construyen más y


más vías porque hay cada vez más autos -2 millones 408 mil 870 en 2018,
un auto por cada dos habitantes- y más congestiones, causadas en parte por
las obras públicas demoradas, deficientes y monofuncionales y costosas, las
cuales además pueden empeorar por su rápida saturación y desgaste. La gente
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 405

compra cada vez más autos porque cree que es la única forma de resolver el
problema de los trayectos eternos en ausencia de un sistema de transporte
público adecuado; pero a pesar de ello, cada vez permanecemos más tiempo
en las calles y avanzamos poco aunque vayamos más rápido y los carros sean
más potentes. Ello no implica que los conductores concluyan que la solución
es dejar el carro y usar el transporte público, porque nadie cree en el transporte
disponible y por el contrario lo consideran peligroso, incómodo e ineficiente.

or
Pero la inmensa mayoría no tiene carro ni como comprarlo y tienen que usar

od V
lo único que hay y que correctamente llaman “camiones”, porque eso son en

aut
realidad, chasises de camión, no son autobuses o buses diseñados para trans-
portar personas ni están estructurados como un servicio eficiente, ni forman
parte de un sistema bien organizado y en beneficio de la gente, sino que forman

R
parte de un negocio prepotente e impune cuyos resultados se cuentan en con-
diciones injustas de trabajo, accidentes frecuentes, contaminación y riesgos a

o
su paso, muertos y heridos, lesiones causadas por el simple hecho de abordar
aC
uno de estos camiones y el stress que implica soportar su velocidad y ruido
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siempre excesivos que alteran también la vida de los vecinos de las rutas. A
nadie escandaliza ya que a finales de año el número de muertes causadas por
el transporte público se acerque al ciento. Pero el problema no está solo en este
visã
nivel, los viajes urbanos son cada vez más largos y tardados porque la ciudad
está cada vez más fragmentada y la fragmentación espacial se corresponde con
la desestructuración de la vida cotidiana, y como muy bien lo resume Salvador
itor

Juan (2000) “a un espacio segmentado corresponde un tiempo tenso”.


a re

En las esperas y frente a los excesos de las congestiones cada vez mayores,
la gente recuerda que hubo un tiempo en que se podía recorrer la ciudad y se
podía caminar, en la que había más tiempo y menos avenidas solo para autos,
las calles no estaban llenas de carros por todos los rumbos y a todas horas, hasta
se podía ir a la casa a comer, había más tiempo para convivir y menos ruido
par

que soportar. Las fotos en sepia de un pasado menos reconocible nos muestran
Ed

que había un sistema ecológico de transporte que subsiste o se recupera en


ciudades del primer mundo, el tranvía y también los trenes y sus estaciones.
En el AMG (Area Metropolitana de Guadalajara), lo más cercano son
ão

alternativas minoritarias e insuficientes, un injustificablemente agónico sistema


de trolebuses; el sistema de autobuses de tránsito rápido Macrobús con una sola
línea troncal de 16.6 km totalmente saturada; un tren ligero completamente
s

insuficiente y cuyo crecimiento está detenido casi desde su inicio en dos líneas
ver

que no suman ni 20 Km. de recorrido, con una tercera actualmente en construc-


ción que no tiene fecha, ha sido cuestionada, sus costos se han multiplicado y
ya ha afectado viviendas, monumentos, comercio y vida vecinal, y finalmente,
el Sistema Integral del Tren Ligero SITREN que funciona con cuatro líneas de
autobuses que conectan y extienden las rutas de transporte masivo.
406

Ahora estamos todo el tiempo en movimiento y no estamos en un lugar


fijo, sino deslocalizados a fuerzas y localizables solo a distancia por vías elec-
trónicas. Y sin embargo la vida parece seguir igual, aunque compartimos el
cansancio y el no tener tiempo trivializa los encuentros o los pospone indefini-
damente, también nos adaptamos y adaptamos la velocidad a las costumbres.
Vemos como los lugares van desapareciendo junto con las banquetas y los
árboles en aras de las vías siempre ineficientes para descongestionar los flujos

or
excesivos de vehículos y crear la comodidad de los estacionamientos que sus-

od V
tituyen los espacios peatonales, pero los flujos siempre terminan congelados y

aut
con ello también nos desaparecen como peatones y como partes articuladas de
identidad urbana, porque la obra pública construida para tal fin crea paisajes
de lo que Gehl y Gemzoe (2002) llaman la ciudad abandonada. Es un proceso

R
de expropiación en el que lo que perdemos en últimas es la ciudad misma. Por
eso hay que reclamar el derecho a la ciudad que no es más que el derecho a la

o
vida urbana a poder habitar las calles, es ese grito y demanda del que nos habla
aC
Lefebvre (1974), que va más allá de la nostalgia y el turismo y que no solo no

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se contradice con la preservación de los espacios naturales y los lugares urba-
nos como espacio público, sino que nos remite a la preservación equivalente
de lo que constituye la esencia de la ciudad y de lo urbano, el intercambio, lo
visã
urbano como lugar de encuentro propuesto como el recurso más importante
inscrito en el espacio y el tiempo. Porque como recuerda el mismo Lefebvre,
puede haber un gran crecimiento económico y técnico, pero ello no implica
itor

desarrollo social y este se ejerce vía la apropiación social de la ciudad, y que a


a re

nivel espacial destruye en consecuencia el urbanismo tecnocrático al priorizar


la especulación y la comercialización del gran capital, restringiendo el derecho
al espacio público y al ejercicio de la cultura urbana como comunicación.
La propuesta de unidad de espacio y tiempo de lo urbano, remite también
como lo plantea Forray-Claps (1996) a la distinción de tres temporalidades de
par

la ciudad por Braudel (179): el tiempo corto de la historia de la vida cotidiana,


Ed

el tiempo largo de la historia económica y el tiempo de las permanencias o


memoria colectiva. Estos tiempos y espacios se inscriben en territorios con una
vida urbana cada vez más diversificada, cuya unificación relacional se deja en
ão

manos de los medios de transporte y de los medios de comunicación que son


en la práctica formas de aislamiento unilateralizado.
Este aspecto de la comunicación se relaciona con el de la inseguridad
s

y los miedos urbanos, porque como ha señalado Martín-Barbero (2004), la


ver

calle se abandona por la inseguridad percibida y el cansancio acumulado en


los desplazamientos forzados nos lleva directo a las pantallas que sustituyen
a la vida urbana, la vida en las calles, y se apropian de su tiempo y espacio.
La gente conoce y recorre cada vez menos la ciudad, pero atraviesa cada vez
más territorio. Los trayectos peatonales son recorridos interrumpidos que no
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dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 407

llevan a ninguna parte en un contexto fragmentado y desarticulado socioes-


pacialmente. Actualmente los niños se desplazan por la ciudad en carros o
buses y tienen dificultad para percibir la ciudad como un continuo, el carro
es una prolongación de la casa que conecta al niño con otros espacios y es así
como se apropian de la ciudad desde el coche. Los niños que van a la escuela
caminando conceptualizan la ciudad como un continuo, recuerdan con mayor
precisión y su percepción es más rica que la de los niños que se desplazan en

or
coche (GOLUBOFF; GARCÍA; GARCÍA, 2002).

od V
En el AMG la mayoría de la población se mueve en camión. Los camiones

aut
decíamos son eso, no son buses. Son chasises de camión que no cumplen con lo
más básico para ser considerados buses adecuados para transporte de personas
en el contexto urbano. Lo más escandaloso es que ostentan muchos de ellos el

R
logo de una de las empresas cuya producción en otros rubros es considerada a
nivel mundial como de las más seguras y de mayor calidad. El sistema de trans-

o
porte público del AMG conocido como el “Pulpo Camionero” propicia también
aC
que las multinacionales aprovechen las condiciones locales para aumentar el
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margen de sus ganancias sin ninguna ética o consideración por los usuarios y
víctimas. Porque no se diseña, ni se legisla desde la óptica de los usuarios, pero
si se propician las mejores condiciones para los empresarios del transporte.
visã
En los sistemas alternativos de ordenamiento eficiente y humanización
del transporte público en buses un punto clave es la redefinición y el estableci-
miento de criterios técnicos y de diseño adecuado sobre lo que debe entenderse
itor

por buses. Sánchez-Restrepo (2004:7) los define así:


a re

“un bus debe ser un vehículo diseñado para transportar personas y para ser
conducido en tráfico de ciudad, como tal, debe contar con un chasis bajo que
permita un fácil acceso de los pasajeros al interior del vehículo, un motor
ecológico, suspensiones suaves, caja de velocidades automático, una buena
par

comodidad tanto en los asientos como en los pasillos y un funcionamiento


silencioso en el motor, los frenos y el claxon. Para el transporte público de
Ed

pasajeros se recomiendan velocidades no mayores a 60km/h, el motor de un


camión o autobús de carretera queda sobredimensionado en un bus urbano,
por tanto, el bus urbano requiere de un motor que no facilite que el bus corra
ão

pero que si le dé la potencia suficiente para subir una cuesta empinada”.

Lo que sí es seguro es que cualquier sistema de transporte masivo en zonas


s

metropolitanas genera problemas y tiene efectos psicosociales sobre los usua-


ver

rios. Veamos algunos estudios al respecto. Las investigaciones a nivel individual


muestran según O’Regan y Buckley (2003) que los efectos a largo plazo de la
tensión producida por viajar en transporte público incluyen problemas cardio-
vasculares, tales como incremento en el ritmo cardíaco, la presión sanguínea y
también problemas en la espalda, y se ha mostrado una relación con ciertos tipos
408

de cáncer. Pero los efectos más obvios son fatiga, cambios en el estado de ánimo
y dificultades de concentración. Ello repercute en problemas en las organizaciones
laborales tales como retardos, ausentismo, bajo desempeño y pérdidas derivadas
del ausentismo. Eurostat (2004) llevó a cabo una encuesta europea concluyendo
que el estrés relacionado con el trabajo daba cuenta de más de un cuarto de todas
las ausencias en un periodo de dos semanas. El estrés mencionado repercute
también en otras áreas de su vida como la vida familiar, haciendo cada vez más

or
difícil encontrar un balance entre trabajo y hogar. Los efectos fisiológicos y psi-

od V
cológicos sobre la salud aumentan cuando hay demoras excesivas inesperadas e

aut
incontrolables en el viaje al trabajo por diversas causas, incluyendo problemas
en la espalda, presión sanguínea, ausentismo y bajos niveles de concentración
al llegar al trabajo, de acuerdo a Schaeffer (1998). El nivel de control percibido

R
de una situación tiene un impacto significativo sobre los niveles de estrés expe-
rimentado según Theorell (1997), lo cual supone que a mayor control y a mayor

o
predictibilidad de la situación menores niveles de estrés. En el caso del transporte,
aC
los niveles de estrés se pueden mantener en un nivel manejable cuando se tienen

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horarios fijos y se puede predecir con certidumbre la duración del viaje y este se
puede realizar de forma segura, agradable y rutinaria, permitiendo que la gente
pueda desarrollar otras actividades mientras viaja, incluyendo el hacerlo de forma
visã
relajada. En la investigación de Regan y Buckley con usuarios de diversos medios
de transporte al trabajo en la ciudad de Dublín se encontró que el 80% de los via-
jeros experimentan algún tipo de estrés durante el viaje. Parte del estrés es debido
itor

a la suciedad, falta de higiene y mal estado de los vehículos, las congestiones y el


a re

hacinamiento. Mientras más largos sean los viajes mayores niveles de estrés y de
cambios de ánimo, pero también sucede cuando los vehículos van muy rápido.
Se encontraron diferencias de género ya que el estrés es mayor en el caso de las
mujeres porque se sienten más vulnerables y experimentan mayor invasión de
su espacio personal. Una conclusión de este estudio es que la mayor dificultad
par

para el sistema de transporte es lidiar con los números excesivos de pasajeros en


Ed

las horas pico y que viajar a estas horas no es la mejor opción para minusválidos,
mujeres embarazadas, niños, enfermos y ancianos, el desborde de las horas pico
parece funcionar solo para los más jóvenes.
ão

Con respecto a los conductores, en el estudio de Ollé y Meliá (2003) se


concluyó en su evaluación que el contexto empresarial y la capacitación de
los conductores en términos técnicos pero también de habilidades sociales y
s

solución de problemas emergentes en la interacción con los pasajeros hace


ver

toda la diferencia unido al dominio de los avances en diseño que les permitan
conducir en forma relajada descargando el máximo de operaciones que no
se relacionen con mantener su concentración en conducir en forma segura
y de acuerdo a las normas. A este respecto Brookhuis y De Waard (2004)
han descrito el ADAS (Advanced Driver Assistance Systems) cuyo objetivo
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dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 409

es reducir al máximo los accidentes partiendo del hecho reconocido de que


la responsabilidad en el 90% de los accidentes es humana, y solo después es
debido a factores ambiéntales o técnicos. Por ello proponen resolver con el
mayor grado de automatización el proceso de conducir los vehículos de trans-
porte público siguiendo el modelo de los pilotos automáticos en el caso de la
aviación, pero manteniendo el nivel de alerta de los conductores en los sistemas
convencionales. Todos estos estudios corresponden a países del primer mundo,

or
en los que el asunto del transporte público está resuelto de forma sostenible

od V
y técnicamente adecuada en su mayoría. Poco se sabe al respecto en nuestro

aut
medio aparte de las estadísticas mortales y los atropellamientos frecuentes
de peatones (principalmente ancianos y niños), ciclistas y motociclistas, pero
también automovilistas. Menos se sabe sobre todas las lesiones corporales

R
que deja el simple hecho de ser usuario del pulpo camionero o peatón en sus
espacios suprimidos, mientras se vive la ciudad en sus movimientos peligrosos.

o
A continuación, revisamos algunos testimonios que forman parte de la
aC
experiencia de vivir la ciudad desde los trayectos variados de los camiones de
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transporte público en la versión de una mujer camionera y dos mujeres usuarias.


En el primer caso, se trata de un estudio que surgió durante un curso de Aplica-
ciones de la Psicología Social con base en una noticia en la que se informaba que
visã
la Mutualidad del Transporte Urbano de Jalisco (MUTUJAL) pensaba capacitar
mujeres como conductoras de camión bajo el supuesto de que eso reduciría el
alto número de accidentes causados por el transporte público y mejoraría la rela-
itor

ción con los usuarios. En esas mismas fechas apareció una noticia relacionada,
a re

una conductora de camión se fue de copas con sus colegas y al final se quedó
dormida en su vocho (VW) con un cigarrillo encendido y murió calcinada. Esa
noticia ya contaba algo diferente sobre el oficio de conductora. En ese momento
las estadísticas mencionaban que eran 10 las mujeres conductoras en el AMG,
pero en la práctica se logró establecer que los conductores solo sabían de dos y
par

las estudiantes Jáuregui y Ramírez (2005) lograron contactar solo a una de ellas.
Ed

Vero es una mujer de 35 años y 14 de experiencia, soltera con 4 hijos


de 14,12, 9 y 8 años que viven con ella y su madre que es la que los cuida. Se
acordó que, si ellas y la conductora estaban de acuerdo, se realizaran varios
ão

recorridos juntas en unidades de transporte de algunas de las 11 rutas que Vero


manejaba y se llevara a cabo observación participante, registros en diario de
campo, así como entrevistas conversacionales. Por fortuna, Vero estuvo de
s

acuerdo en todo y participó con un entusiasmo que contagió a las dos estudian-
ver

tes. En el primer recorrido la acompañaron en la ruta 54A que va de la Normal


hasta Las Juntas en la periferia urbana, por la carretera a El Salto. Algunos
aspectos que se pudieron observar es que la conductora excede los 55km/h
cada vez que el trayecto se lo permite, rebasando con brusquedad y frenando
en seco en las paradas con el consecuente vaivén y pérdida del equilibrio por
410

parte de los pasajeros que la miraban con disgusto y debían estar al pendiente
(so pena de terminar lastimados, algo muy frecuente en los usuarios de los
camiones), pero que decían nada. En la zona de Las Juntas el terreno no está
pavimentado y los saltos eran continuos y bruscos y la velocidad imprudente,
ni la conductora ni los pasajeros se alteraban, pero para las observadoras sí
fue muy estresante esta parte final del recorrido. La conductora contrarrestaba
la situación con sentido del humor en comentarios dirigidos a los pasajeros

or
silentes ya cuando el recorrido estaba por concluir.

od V
El exceso de velocidad se relaciona con el tiempo establecido para el

aut
recorrido y la competencia por el pasaje con otras unidades de la misma ruta
y de otras que comparten parte del trayecto. Su trato con el pasaje se hace más
cercano al final de la ruta cuando las dificultades son mayores y la unidad va

R
saturada. La conductora les comentó en una de las entrevistas que su relación
es mejor con los pasajeros masculinos, son las mujeres las que más desconfían

o
de su habilidad y hacen comentarios adversos por ser ella mujer. Le decían:
aC
“Ayy que feo frena, manejas muy rápido, no traes puercos”. Mientras algunos

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hombres le decían al bajarse: “oiga que bien maneja, felicidades”. En general
respetaba los señalamientos y las paradas, pero cuando iba a velocidad excesiva
y/o compitiendo con otras unidades, prefería pasarse en amarillo e incluso en
visã
rojo, según ella para evitar causar más daño al pasaje.
En el recorrido un conductor amigo la acompañó y aparte de la conver-
sación le apoyó cobrando. Eso ayudó a mantener su buen humor y facilitó la
itor

entrevista con las observadoras. En otros recorridos en zonas congestionadas


a re

su principal antagonista eran los automóviles particulares a los que acusaba de


atravesársele, pero a quien más teme es a los motociclistas y ciclistas a quie-
nes casi no ve o detecta a tiempo por el diseño mismo del camión. En estos
momentos -y aunque está prohibido- fuma sin importarle la gente y maldice en
voz alta. En uno de los recorridos estuvo peleando con su novio que también es
par

chofer por la radio y eso incidió en que tuviera primero un choque leve con un
Ed

automóvil privado y más adelante, rozara lateralmente otra unidad y se llevara


un espejo de un carro estacionado, lo cual solo le produjo risa y continuó sin
detenerse. Vero trabaja hasta 16 horas diarias sin horarios fijos para iniciar, ni
ão

para comer y a veces con problemas para poder ir al baño, y sin embargo se
declara satisfecha con su trabajo: “me encanta, desde la primera vez que puse
la pata arriba de un acelerador, desde entonces dije no lo dejo y hasta la fecha
s

no puedo dejarlo”. Su mundo gira alrededor de su camión a quien ella misma


ver

da mantenimiento y con el que tiene un vínculo afectivo muy especial.


Algo que es de llamar la atención es que Vero nunca habló de los recorridos
en términos de lugares o de la ciudad, la ciudad se atomiza en vías y obstáculos
y su mundo social son los otros conductores con quienes interactúa y compite,
y los pasajeros con los que mantiene una relación distante, pero con quienes
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dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 411

interactúa cuando así le parece. Los lugares no existen más que como salidas
y llegadas en un tiempo establecido y se relacionan con ir al baño y comer.
Como vamos a ver, con los pasajeros pasa algo similar con respecto a la
experiencia de la ciudad, la cual está determinada en buena parte por el contexto
que establecen los mismos conductores. Para ello se solicitó la colaboración
de dos usuarias cotidianas de transporte público para que, al término de sus
jornadas y trayectos diarios, elaboraran un diario de campo donde plasmaran

or
su experiencia en algunos de sus recorridos en camión urbano.

od V
En el diario de la primera observadora, una estudiante universitaria que

aut
hace varios recorridos durante el día y pasa varias horas en los camiones urba-
nos, tomando a veces más de un camión en un solo recorrido, se constata como
en las primeras horas de la mañana cuando se esperaría que la gente se relacione

R
mejor con el paisaje urbano, el camión se convierte en una prolongación de la
cama y la única preocupación es llegar rápido al trabajo o la escuela:

o
aC
… y creo que entiendo a la gente que va dormida porque yo también lo he
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hecho a veces, las rutas no están bien planeadas o vives muy lejos de la
ciudad y los sitios de tus actividades comunes, entonces tienes que levan-
tarte dos horas antes de tu actividad, la primera hora para cosas de aseo y
visã
la segunda para caminar al camión y tomarlo a tu destino. El que se pare en
cada esquina hace el paseo más largo y aburrido y más cuando por cosas
del destino se le hace tarde a uno y desearía que el camión ya no levantara
más gente y que avanzara más rápido…
itor
a re

Al mediodía la situación es similar pero de regreso y en condiciones


más desagradables:

A esta hora la ciudad es un caos, gente saliendo a comer de su trabajo, niños


que salen del colegio con grandes mochilas que estorban, filas de carros y
par

camionetas que estorban el paso porque las señoras no dejan pasar para nada
ya que sus lindos hijos se despiden de beso de todas las personas del colegio.
Ed

Escuchas claxons a todo pulmón de los autos, gritos con majaderías porque
el auto de adelante se les cruzó, o porque por la culpa de alguno de adelante
él no puede dar vuelta, miras a las personas convertidas en demonios a estas
ão

horas del día, entre hambre, cansancio y estrés del trabajo, el niño que no
para de hablar de su escuela y amigos, celulares que suenan, el horrible
calor que se siente y los terribles olores de las personas que no se asean…
s
ver

Por la noche el camión va lleno, suelen pasar rápido y es fácil perderlo, la


gente se distrae como puede de las inclemencias del viaje y el hacinamiento,
nadie parece disfrutar el recorrido o estar consciente de la ciudad que atraviesan,
miran sin mirar, es un registro que hacen sobre la gente las dos observadoras, su
tiempo es un presente indeseable y la única liberación es la parada en sus destinos:
412

Me siento en el cuarto asiento del pasillo de lado izquierdo. El camión va


demasiado lleno. Tuve que correr para alcanzarlo es de noche y tengo dificul-
tades para ver, las luces de los camiones son muy brillantes lo que dificulta
distinguir el número de la ruta. El chofer de aproximadamente 40 años estira
la mano exigiendo el pago, le doy el transvale, la credencial se atora en el
pantalón, hace un gesto de molestia, demora un poco y luego me entrega
el boleto. Una mujer viene con él, platican mientras él conduce, ella viene

or
sentada en la parte de atrás del conductor. Una mujer de aproximadamente 50
años pide el asiento de lado de la ventanilla y un hombre de unos 45 años

od V
se lo cede, ellos miran por la ventanilla intermitentemente, sube un joven,

aut
mira al fondo como buscando lugar mientras busca su dinero, finalmente se
para a un lado mío. Las personas que viajan solas miran hacia la calle, a las

R
personas. Los más jóvenes miran su celular o escuchan música, cada vez se
llena más el camión de personas, el calor aumenta y los olores se hacen cada
vez más perceptibles. El joven que va a mi lado de aproximadamente 25 años

o
mira hacia el frente la mayor parte del tiempo… mira algunas veces hacia
aC

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mi o afuera a la calle. Hay una mujer como de 60 años frente a mi (es mi
vecina, la señora Esther), mira la mayor parte del tiempo hacia la calle por
la ventana, la mirada baja, no parece que esté mirando algo en particular…
visã
En el caso de la segunda observadora, una maestra, aparece igualmente
la primera dificultad que es lograr que el camión se detenga en las paradas, la
primera experiencia con la velocidad que impide ver y solo deja ver pasar, el
itor

paisaje se torna repetitivo:


a re

... Por fin nos podemos subir al bus, ya cansados del calor, el ruido y el ritmo
vehicular. Callados hacemos el trayecto, solo mirando las calles pasar, el
calor es más fuerte y lo atonta a uno…. Uno observa sin mirar, todo pasa
rápido, la misma ruta de siempre, el mismo paisaje…
par

Al mediodía el asunto se percibe igual pero con el clima empeorando la


Ed

experiencia, de nuevo, el contexto está suprimido y la ciudad se invisibiliza


aún más con el cansancio de la jornada, afuera lo único que se encuentra es
prisas y congestiones equivalentes:
ão

... El panorama es el mismo solo que el calor intenso adormece, entre cabe-
s

ceo y cabeceo uno se ubica, hay congestión en el Centro, mucha gente, las
calles pasan de forma rápida y no las miras, uno no piensa, tal vez el can-
ver

sancio de la jornada laboral, el hambre, la gente va más callada y distraída


que por la mañana, la ciudad desaparece entre el calor.
… El ritmo del bus es rápido y constante y apenas si uno puede mirar, solo
en los altos hay más tiempo para ver la gente que corre o camina aprisa por
la calle, los puestos llenos de gente comiendo.
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dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 413

… Este chofer maneja horrible, frena brusco y va excesivamente rápido… el


recorrido lo hacemos a gran velocidad, nadie dice nada, el tráfico es intenso.
Abordo buses que tienen el motor adelante, son unidades más viejas y las
escaleras son muy incómodas y muy altas, todo un reto…

Cuando se va sentado, las condiciones del camión y el ambiente lo per-


miten y se puede mirar un afuera estéticamente agradable, el viaje cambia, la

or
ciudad se aparece y se reintegra al recorrido:

od V
Uno puede observar el paisaje y aislarse del contexto… algunas de las rutas

aut
que utilizo pasan por las zonas de la ciudad que son agradables, la Colonia
Americana, la zona de Chapultepec, es agradable mirar el paisaje cuando

R
te lo permite el ritmo del chofer y que el bus no venga lleno.
Al llegar a la zona Centro el paisaje cambia por lo estrecho de las calles y

o
el paisaje comercial cansa…
aC
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En uno de los trasbordos hay un encuentro que confirma lo declarado por


Vero la conductora, pero que es a la vez, una ratificación de lo desagradable,
peligroso y tenso que puede ser la experiencia de viajar en camión y la forma
visã
en que condiciona la percepción de una ciudad ausente y encierra al pasajero
en el viaje personal del conductor:

Me toca de chofer una mujer, tiene aspecto de marimacho, con gorro,


itor

pantalón de mezclilla, playera, sin maquillaje, maneja muy desigual, se


a re

siente mucho cuando frena, te manda hacia el frente entre frenada y arran-
cada… No se disfruta el viaje. Se para a hablar con otros conductores, un
poco imitándolos…

Pero los problemas tienen continuidad en los trasbordos cuando los usua-
par

rios tienen que caminar, porque los espacios peatonales deteriorados o adap-
tados como estacionamiento de los negocios que carecen de ellos, talando
Ed

árboles antiguos y adaptando las banquetas para el ingreso de los carros, con-
vierten estos espacios en una nueva amenaza para los que caminan como lo
consigna la estudiante en su diario:
ão

Doy vuelta a la izquierda en sentido contrario de Avenida Vallarta, me gusta


s

Vallarta, las primeras dos cuadras son muy bonitas, muchos árboles grandes
ver

que dan sombra, siempre y cuando camine uno en la acera de enfrente del
Centro Magno, terminando la zona arbolada se acercan los problemas de
nuevo como peatón, pues resulta que uno como peatón ya no tiene banquetas
seguras contra los automóviles, tengo que cruzar un sin fin de restaurantes
con entrada y salida de autos, que no se detienen a ver si venimos per-
sonas… es más, uno como peatón tiene que estar consciente de que hay
414

que hacer alto en los restaurantes si quiere salvaguardar su vida. Un carro


quería salir en reversa de un Banco y tomar por Vallarta pero el conductor,
un señor de aproximadamente 45 años, solo volteaba a la avenida y nunca
a la banqueta, solo importan los otros autos, así que me crucé por atrás,
porque cabe mencionar que no hay espacio suficiente para que pudiera
haber pasado por enfrente del automóvil. En cuanto pasé, el señor se echó
para atrás y yo alcancé a pegarle al automóvil y correr, el señor frenó y se

or
asustó y me gritó de injurias como si yo hubiera sido la causante de todo el
problema. Mi susto se esfumó rápido porque uno no se puede dar el lujo de

od V
ir quejándose. En todas las veces que he caminado en todo tipo de zonas

aut
de la ciudad he llegado a la conclusión que todas son peligrosas, incluso las
colonias bonitas, los carros y camionetas son más peligrosas no sé si porque
sienten que tiene dinero pueden pasar por encima de ti con su auto y no se

R
paran. Por otro lado, lo que hace de las colonias pobres peligrosas son los
camiones que por ser tantos, tan grandes y tan descuidados, no se fijan en

o
nada, niños, ancianos, jóvenes, ciclistas…
aC

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Otro ejemplo de usuarios esperando el camión a pleno sol gracias a la tala
de un árbol Hule enorme con la finalidad de hacer visible un negocio anodino
que seguro quebrará en poco tiempo tal como aparecen en el diario de la maestra:
visã

Esperamos en la parada ubicada en Pérez Verdía y Avenida México, el


bus tarda, hace mucho sol y calor, cortaron un gran árbol de hule que tenía
muchos años y que daba una sombra hermosa en la parada, para hacer
itor

visible un negocio instalado en una casa remodelada, y ya no hay donde


a re

resguardarse… Por fin pasa pero aunque nos ve y somos varios sigue de
largo a toda velocidad para que no le toque el alto. Todos nos frustramos y
tratamos de protegernos un poco del sol pero es imposible, no hay dónde.
Llega una joven con un bebé de meses y trata de protegerse del calor, el ruido
de los vehículos, el smog. Esperamos y esperamos y cuando pasa nos vuelve
par

a dejar, es como si no existiéramos, pasa veloz. Ya perdimos 20 minutos y


decido caminar a la siguiente parada. Al llegar piso un hoyo disfrazado con
Ed

basura y hojas y me lastimo el pie, quedo muy adolorida, la gente pasa y


ni mira. Pasa otro bus y tampoco nos da la parada, así que decido caminar
hasta la siguiente en la que hay una parada con mobiliario urbano… Ya muy
ão

cansados nos podemos subir al bus…

No es una caminata placentera y muy poco queda registrado en los diarios


s

de las dos observadoras sobre la experiencia urbana, ya que aún caminando y


ver

por las prisas la gente sigue atrapada en la lógica laboral salvaje de los tiem-
pos establecidos por los propietarios de los camiones y el monstruoso pulpo
camionero tapatío, intocable, protegido por todos los gobiernos, entre los que se
ha denunciado hasta a un Secretario de Gobierno como uno de sus accionistas
y corresponsable de la ruina del SISTECOZOME (Sistema de Transporte de
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dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 415

la Zona Metropolitana) cuando lo dirigió, que era el sistema paraestatal de


transporte público con varias rutas que formaron parte de los 5 mil camiones
que corretean por toda la ciudad con total impunidad y conducidos por lo que
en el argot popular se conoce como “vacunos” para referirse a los trabajado-
res sobreexplotados del volante que se convierten en eso por las condiciones
laborales y sus estados alterados inevitables.
Confirmamos como, la unificación relacional de los tiempos y espacios

or
inscritos en esa vida urbana cuyos espacios diversos recorremos cotidiana-

od V
mente, queda literalmente en las manos de estos medios de transporte y el

aut
encierro lo complementan los medios de comunicación privados que consti-
tuyen en la práctica formas de aislamiento unilateralizado, que no logran sin
embargo, encerrar a la gente que se mueve a pesar del peligro en sus intersticios

R
para seguir construyendo comunicativamente la ciudad de la mayoría de a pie.

o
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
416

REFERÊNCIAS
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ver
ver
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s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
CENTRO DE ATENDIMENTO
EDUCACIONAL ESPECIALIZADO:
implementação da política de educação

or
inclusiva junto à rede intersetorial

od V
no município de Maracanã - PA

aut
R
Robenilson Moura Barreto
Zureide do Socorro Ferreira Alves

o
Álvaro Pinto Palha Junior
aC
Introdução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O Centro de Atendimento Educacional Especializado (CAEE) no muni-


visã
cípio de Maracanã – PA surgiu a partir do conjunto de ações, diretrizes e reso-
luções para a implantação de uma Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI (BRASIL, 2007). Durante
itor

sua construção, as perspectivas políticas, educacionais, culturais e filosófi-


a re

cas da educação especial e inclusiva foram elementos norteadores na sua


implantação e posterior efetivação enquanto espaço de garantia dos direitos
dos alunos com necessidades educacionais especiais inspirados nos princípios
de liberdade e nos ideais de solidariedade dos Direitos Humanos. As diversas
correntes políticas ligadas aos direitos das pessoas com deficiência como os
par

movimentos sociais, as associações e os gestores municipais construíram


debates e ações em torno de propostas efetivas para demandas voltadas aos
Ed

alunos com necessidades educacionais especiais.


Dentre os espaços de debate, a conferência municipal, estadual e nacional
ão

dos direitos das pessoas com deficiências apresentou-se como um importante


canal de diálogo e um espaço democrático para apresentação das reais deman-
das e necessidades locais, bem como específicas de pessoas com necessida-
s

des especiais dentro do município. A partir das propostas aprovadas pelas


ver

conferências, os representantes do poder legislativo municipal, professores,


representantes dos movimentos sociais ligados às pessoas com deficiência
e os gestores apresentaram para a sociedade o CAEE. Nesse processo de
construção coletiva para implantação do Centro destaca-se um movimento
de democratização, participação e principalmente de descentralização como
um processo de transferência de poder dos níveis centrais (gestão) para os
periféricos (controle social). De acordo com Giaqueto (2010, p. 84):
420

A descentralização é um dos pressupostos que tem informado as iniciativas


de mudanças que ocorreram na gestão do setor social nas duas últimas
décadas. Como um processo de transferência de poder dos níveis centrais
para os periféricos das organizações, pretende colocar ao alcance dos
diversos segmentos sociais o poder de decisão sobre as políticas sociais.

Logo, o diálogo com o aparelho institucional pautou-se numa estratégia

or
participativa e democrática de diálogo entre gestão e setores sociais do municí-
pio. Diante do caminho percorrido para a construção do Centro e a orientação

od V
da PNEEPEI, podem-se notar os primeiros passos dados para colaboração de

aut
uma rede intersetorial na sua construção. Conforme Barreto (2014), o II Rela-
tório das Atividades do Planejamento Semestral do Centro traz como finalidade

R
prioritária o pleno desenvolvimento das pessoas com necessidades educacionais
especiais dentro de suas reais possibilidades de aprendizagem e autonomia

o
para a vida em sociedade garantindo-lhe o pleno exercício de sua cidadania.
aC
Nessa perspectiva, o Centro objetiva proporcionar o atendimento sócio-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


-educacional, numa visão biopsicossocial ao estudante com necessidades edu-
cacionais especiais da rede regular de ensino pública e privada e comunidade
em geral, bem como proporcionar meios de avaliação e acompanhamento por
visã
uma equipe multiprofissional que envolve diversas áreas do conhecimento.
Dentre as atuações desta equipe estão os atendimentos, aos estudantes, fami-
liares, cuidadores, educadores e a articulação com as demais políticas setoriais,
itor

sobretudo secretarias de saúde, assistência social e cultura para ampliar os


a re

processos de autonomia o acesso a direitos desses usuários em sua totalidade.


A perspectiva que tem como referência o modelo biopsicossocial tem-se
afirmado progressivamente. Ela proporciona uma visão integral do ser e do
adoecer que compreende as dimensões física, psicológica e social. A partir
desta perspectiva biopsicossocial é evidente a importância de uma comuni-
par

cação efetiva, no sentido de criar um vínculo adequado, assegurando que os


problemas e preocupações dos pacientes são entendidos por aqueles que ofe-
Ed

recem cuidados e que recomendações e tratamento são entendidos, lembrados


e efetivados pelos usuários.
ão

Sob esta orientação, a equipe estabelece um modelo de atendimento tera-


pêutico que visa potencializar a autonomia dos usuários do Centro. Atuam com
projetos como grupos de convivência e ações permanentes com oficinas terapêu-
s

ticas sociais e culturais. Estas ações objetivam garantir a inserção de alunos com
ver

necessidades educacionais especiais em espaços físicos e sociais, bem como a


estimulação adequada de suas potencialidades, visando o desenvolvimento para
além do espaço escolar. Tal movimento, a nível local no município de Maracanã
acompanha mudanças do paradigma educacional a nível nacional, marcado,
sobretudo com a apresentação da PNEEPEI pelo Mistério de Educação.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 421

Este novo paradigma, aponta uma conceituação de “necessidades educa-


cionais especiais” como um elemento que passa a ser amplamente disseminado
a partir da Declaração de Salamanca, ressaltando a interação das característi-
cas individuais dos estudantes com o ambiente educacional e social. Entre os
objetivos da política estão o acesso, a participação e o aprendizado do aluno
com necessidades educacionais especiais garantindo a transversalidade da
educação especial, o atendimento educacional especializado e a articulação

or
intersetorial na implementação das políticas públicas.

od V
Para assegurar a intersetorialidade na implementação das políticas públi-

aut
cas a formação deve contemplar conhecimentos de gestão de sistema educa-
cional inclusivo, tendo em vista o desenvolvimento de projetos em parceria
com outras áreas, visando à acessibilidade arquitetônica, aos atendimentos

R
de saúde, à promoção de ações de assistência social, trabalho e justiça (BRA-
SIL, 2007). O CAEE incorporou no seu conjunto de ações, parcerias com

o
as secretarias municipais de saúde e de assistência social, compreendendo o
aC
usuário em sua integralidade biopsicossocial histórica que demanda ações das
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

diversas políticas públicas, que deem conta do fortalecimento de sua auto-


nomia. Garantir desta forma o acesso a serviços de saúde de atenção básica,
média e alta complexidade, assim como os serviços de proteção social básica
visã
e especializada ancorados na política nacional de assistencial social.
Deste modo, surge uma reflexão a respeitos das ações desenvolvidas pela
equipe multiprofissional durante os anos de 2013 e 2014: O CAEE, ao longo
itor

desse período tem impulsionado a política de educação inclusiva junto à rede


a re

intersetorial no município de Maracanã? A partir dessa reflexão, foi realizado


uma análise documental dos relatórios semestrais, entrevistas semiestruturadas
com os gestores de referência na área da saúde, educação e assistência social,
a fim de verificar a hipótese de que as ações desenvolvidas pelo CAEE impul-
sionam a política de educação especial e inclusiva no município. Tais estudos
par

são importantes para destacar aos diferentes aspectos da gestão municipal e


Ed

questões presentes nos processos de inclusão, evidenciando a complexidade


da rede e setores institucionais.
Após a coleta e análise dos dados, foi realizada análise de conteúdo proposta
ão

por Bardin (1995) que consiste na leitura detalhada de todo o material transcrito,
na identificação de palavras e conjuntos de palavras que tenham sentido para
a pesquisa, assim como na classificação em categorias ou temas que tenham
s

semelhança quanto ao critério sintático ou semântico (OLIVEIRA et al., 2003).


ver

Considerações e concepções sobre rede intersetorial

A construção de uma rede intersetorial requer grandes esforços e a com-


preensão de espaços e sujeitos no sentido de coletividade. Assim, a definição
422

de alguns conceitos trará a luz da pesquisa uma ampla compreensão sobre uma
possível constituição da rede intersetorial no município de Maracanã – PA. De
acordo com Teixeira (2002), a concepção de rede surgiu como uma proposta de
intervenção capaz de tecer uma nova abordagem no enfrentamento das deman-
das da população, baseada na troca de saberes e práticas entre o Estado, as
empresas privadas e a sociedade civil organizada. Sua disseminação na atuali-
dade está relacionada com múltiplos fatores, cujos reflexos incidem diretamente

or
na forma de gerir as políticas públicas. Dentre os fatores que contribuíram

od V
para a sua proliferação, destaca-se a globalização, cujas influências alteraram

aut
os processos produtivos em direção à flexibilização, à descentralização e à
interdependência dos setores. Nesse sentido, o CAEE, como parte constituinte
de uma rede de serviços voltados para o âmbito da educação barganha saberes

R
e ações diante das políticas públicas de educação especial e inclusiva junto
às secretarias (gestão), alunos e familiares no município de Maracanã – PA.

o
Conforme Junqueira (1999) a ação em rede remete a uma interação de
aC
pessoas, instituições, famílias, municípios e estados mobilizados coletivamente

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


em torno de uma ideia. Entendida como uma construção social, a rede depende
da sensibilização e da organização coletiva dos atores sociais em torno de um
objetivo comum que melhor seria viabilizado através da parceria. A ideia pela
visã
qual apresenta Junqueira está diretamente ligado à assimilação e apropriação
da política pública voltada a educação especial e inclusiva. As concepções
de rede remetem para a noção de interconexão, articulação, parceria, intera-
itor

ção, cooperação entre organizações governamentais e não governamentais.


a re

Portanto, na defesa do pluralismo de bem-estar social, da corresponsabiliza-


ção de todos, na prestação de serviços sociais e na utilização dos recursos
mobilizados por cada tipo de organizações. No entanto, a concepção sobre
o trabalho entre a gestão pública e os setores não governamentais ainda se
distanciam de uma realidade prática para ideia de uma concepção efetiva de
par

trabalho com a constituição de uma rede (JUNQUEIRA, 1999).


Ed

Segundo Junqueira (1999), as complexidades dos problemas sociais


expõem a necessidade de que se busquem novos modelos de gestão. Nesse
contexto, a concepção de rede surge como uma superação de limitações através
ão

de conhecimentos e práticas. A perspectiva de redes intersetoriais nas políticas


setoriais e interior de uma mesma política é o que se defende como alterna-
tiva aos tradicionais modelos de intervenção ou gestão de políticas públicas.
s

De acordo com a PNEEPEI, a construção de uma rede intersetorial se faz


ver

necessária para efetivação e garantia dos direitos dos alunos com necessida-
des educacionais especiais junto a outras políticas sociais atravessadas pela
concepção do sujeito biopsicossocial em sua totalidade.
Portanto, o CAEE apresenta-se como uma instituição pública ligada
à secretaria de educação que faz parte de uma rede social com alternativa
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 423

organizacional para o enfrentamento das demandas do território. Para diferen-


ciar a rede social da rede intersetorial, a autora Guará et al (1998), acrescentam
duas redes que, em sua opinião, devem ser articuladas às redes sociais desta
classificação. São redes regionais e as redes intersetoriais. As primeiras são
formadas pela articulação “entre serviços em diversas áreas da política pública
e entre municípios de uma mesma região”. As segundas se constituem da arti-
culação do “conjunto das organizações governamentais, não governamentais

or
e informais, comunidades, profissionais, serviços, programas sociais, setor

od V
privado, bem como as redes setoriais, priorizando o atendimento integral às

aut
necessidades dos segmentos vulnerabilizados socialmente”.
Assim, pode-se identificar o CAEE como um componente elementar das
redes intersetoriais como organização governamental que envolve ações de

R
diversas esferas da sociedade em sua instância. Tendo em vista que os fami-
liares/cuidadores juntamente com a comunidade estão envolvidos diretamente

o
no compromisso para efetivação da política de educação especial e inclusiva.
aC
Segundo Pereira (2004), a intersetorialidade é compreendida como uma dinâ-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mica das relações entre governos e cidadãos com suas normas estabelecidas
para o funcionamento das instituições devidamente criadas e ainda compreende
a multidisciplinaridade, intervencionista e normativa. Ainda conforme a autora
visã
através da intersetorialidade é possível solucionar os problemas e necessidades
sociais, pois vendo que a gestão intersetorial define seguridade social como
iniciativa do poder público e da sociedade, assim como saúde, educação, pre-
itor

vidência social e meio ambiente deveriam ser integradas e intersetorializadas.


a re

O conceito de intersetorialidade de modo geral, pressupõe troca de expe-


riências e informações no desenvolvimento de ações sinérgicas, para a cons-
trução de uma rede de interação e cooperação social, entre os diferentes atores
envolvidos num mesmo processo. O que, para além disso, como uma proposta
de organização que busca complementaridade entre os serviços, influindo no
par

planejamento, na execução e na avaliação dos resultados alcançados (JUN-


Ed

QUEIRA, 1997; INOJOSA, 2001; REDE UNIDA, 2000).


Em decorrência desse paradigma conceitual se torna de fundamental
importância integrar as políticas de saúde, educação e assistência social para
ão

construir uma realidade educacional ampla, indispensável à garantia dos direi-


tos na sua totalidade, a partir das bases organizacionais, estruturais e filosó-
ficas da educação, sobretudo nas políticas de educação especial e inclusiva
s

no município. Nesse momento, o atendimento educacional especializado em


ver

questão irá atuar orientando e acompanhando alunos, professores, escola e


família, auxiliando e cooperando para que suas necessidades básicas sejam
garantidas. Ressalta-se aqui, o compromisso de identificar as lacunas sociais
para que junto à rede possamos provê-las a partir de uma relação de coope-
ração entre os atores envolvidos neste processo.
424

A intersetorialidade consta como diretriz explícita ou implícita em várias


políticas públicas, contudo, são inúmeros os entraves constatados na sua ope-
racionalização, a iniciar por suas configurações condicionadas a desenhos
jurídicos administrativos setoriais de governo. Tumerelo (2003) apresenta
outros aspectos relevantes que evidenciam entraves na prática intersetorial,
como o Estado brasileiro enquanto ordem capitalista, a propriedade privada,
bem como a frequente recorrência, na gestão pública, a paradigmas da gestão

or
privada. Assim a autora indica que no Brasil é possível identificar a esfera
pública composta de inúmeros atores que não apenas aqueles circunscritos ao

od V
quadro funcional estatal, o que indica a necessária problematização dos parâ-

aut
metros e referenciais utilizados na gestão e execução das políticas públicas.
Fato, que é corroborado por Schutz (2009, p.14) quando afirma tratar-se

R
de “estruturas marcadas pela fragmentação, excessiva burocratização, para-
lelismo de ações, endógena de departamentos, entre outros”. Inojosa (2001)

o
demarca três situações identificadas no aparato governamental que se tornam
aC
empecilhos à intersetorialidade. Tal aparato “é todo fatiado por conhecimentos,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


por saberes, por corporações [...] outra herança, que é a hierarquia verticali-
zada, piramidal, em que os processos percorrem vários escalões, mas as deci-
sões são tomadas apenas no topo [...] é objeto de loteamento político-partidário
visã
e de grupos de interesse” (INOJOSA, 2001, p.103-104). Para tanto, as políticas
públicas no contexto intersetorial levam os gestores aos maiores desafios
na rede de serviços socioassistenciais. Caberia aos gestores e colaboradores
itor

participarem de ações continuadas para assim entenderem as necessidades


de demanda territórializada, trabalhar planos e projetos agregados juntando
a re

as políticas existentes na esfera municipal. Portanto, as práticas intersetoriais


aqui discutidas entre os gestores municipais serão de grande relevância para
a mudança no modelo de gestão governamental. A concepção dessas práticas
trará uma autonomia dos setores educacionais, no que diz respeito à política
par

de educação especial e inclusiva. Dessa forma, a ação integrada desenvolvida


pelo CAEE possibilitou uma melhoria na partilha dos poderes e autonomia
Ed

política dos cidadãos que nelas se integram socialmente.

Procedimentos metodológicos
ão

A argumentação realizada, bem como o esforço metodológico, teve como


foco central fulgurar a análise e a interpretação das informações colhidas junto
s

aos gestores municipais (educação, saúde e assistência social) que protagoni-


ver

zam ações e projetos na rede intersetorial de Maracanã – PA. Diante da riqueza


dos discursos levantados junto aos gestores municipais, foi possível perceber a
concepção destes sobre a constituição de uma rede intersetorial no município.
Dentre as questões que provocaram esta análise, tomou-se como base a política de
educação especial e inclusiva envolvendo a constituição de uma rede intersetorial.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 425

Para entender de que forma as ações do CAEE estimulam uma política


pública de educação inclusiva junto à rede intersetorial no município trouxe-
mos aqui algumas análises feitas sobre as falas dos gestores de referência nos
campos da educação, saúde a assistência social do município de Maracanã
– PA. Para a coleta dos dados utilizamos o instrumento de entrevista. O fato
de o recorte da pesquisa objetivar a análise das ações intersetoriais do CAEE
no município nos concedeu a liberdade de estabelecer apenas um critério para

or
escolha dos entrevistados. O critério foi à escolha de um profissional de refe-

od V
rência (responsável) pela execução das políticas em suas secretarias (saúde,

aut
assistência social e educação). A expectativa era que os gestores falassem sobre
o seu entendimento sobre rede intersetorial e identificassem ações ligadas a
essa composição no município.

R
No início das entrevistas, foi apresentado e assinado pelos gestores o
formulário de consentimento livre e esclarecido. Interrogados sobre alguma

o
objeção quanto a publicidade das falas e dos nomes, recebendo autorização
aC
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de todos. No entanto, optamos por identificar por Gestor I, II e III já que a


intensão da pesquisa não é retratar o pensamento do gestor, mas o que revela
seu discurso através da entrevista. Na condução da entrevista nossa hipótese era
que as perguntas do questionário seriam diretas e que talvez os entrevistados
visã
por estarem em um cargo de confiança29 (temporário) teriam receio de respon-
dê-las, já que a gestão municipal tinha apenas um ano de trabalho. Entretanto,
ficamos surpresos pela facilidade e oportunidade de que tiveram para responder
itor

e contribuir com a pesquisa. O fato de sermos técnicos de contrato temporário


a re

também no município foi o aspecto que nos possibilitou uma rica analise dos
conteúdos respondidos durante a entrevista. Isso fez com que os entrevistados
se aproximassem do tema pesquisado e se sentirem confortáveis para contribuir
com a pesquisa. Para descrever os gestores pesquisados registramos nas entre-
par

vistas os dados: nome, formação acadêmica, cargo/função e área de atuação.


Ed

Quadro 1– Perfil dos gestores


Nome (Gestor) Formação Acadêmica Cargo Área de Atuação
ão

Secretaria de
Gestor I Assistente Social Assessoria Técnica
Assistência Social

Coordenação da
Gestor II Enfermeira Secretaria de Saúde
Atenção Básica
s
ver

Assistente Social
Gestor III Coordenação do CAEE Secretária de Educação
(em formação)

29 O exercício de cargo de confiança no serviço público, mesmo com anotação na Carteira de Trabalho e
Previdência Social (CTPS), não está sujeito ao regime celetista, e o detentor do cargo não tem direito,
consequentemente, ao FGTS e demais verbas asseguradas aos empregados abrangidos por esse regime.
426

Cabe dizer que na análise das falas dos entrevistados sobre a rede inter-
setorial no município tentamos identificar o conhecimento sobre essa rede,
as ações realizadas pelo CAEE e as dificuldades encontradas na composição
desta no município. Descolado de qualquer julgamento ou análise sobre a
gestão atual. Diante das análises fizemos uma divisão em categorias, e neste
artigo apresento duas delas, a saber: Concepções, articulações e dificuldades da
rede intersetorial; e ações desenvolvidas e sua importância para o município.

or
od V
Concepções, articulações e dificuldades da rede intersetorial

aut
Conforme a PNEEPEI, a garantia da sua implementação exige o conhe-

R
cimento da gestão educacional a respeito de outras políticas para atendimento
do aluno com necessidades educacionais especiais em toda sua totalidade.

o
Diante dessa perspectiva trazida pela política questionamos os gestores de
referência das secretarias sobre sua compreensão de rede intersetorial. Con-
aC

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tudo, nos revelaram que:

[Gestor I] […] As políticas públicas elas precisam trabalhar com três


visã
secretarias principais, saúde, educação e assistência social. […] Entre-
laçar de ações, não é uma entrelaçar de que eu faço um pedaço e tu fazes
um pedaço, mais a rede de serviço se faz num entrelaçado de ações.
itor

[Gestor II] […] Um conjunto de serviços, é que se relaciona né, que estão
a re

conectados entre si sejam eles na educação, na saúde e na assistência


social isso é o que eu entendo por rede.

[Gestor III] […] Seria uma forma de estar trabalhando em parceria com
outros setores, estar facilitando a vida de ambos os lados, de cada setor
par

de trabalho;
Ed

A fala dos gestores sobre a concepção de uma rede intersetorial quando


afirma: entrelaçar de ações, conexão entre si e trabalho em parceria, desem-
boca na compreensão de Junqueira (1999) quando revela que rede intersetorial
ão

sugere interação de pessoas e instituição, troca de saberes e corresponsabili-


zação das partes envolvidas. Essas falas nos colocaram a refletir de como os
s

gestores apreendem e compartilham (ainda que não saibam) uma forma de


ver

gestão que traz em sua conjuntura um modelo inovador de gerenciar com-


plexos problemas sociais contemporâneos com a interconexão dos atores
envolvidos visando assim intervenção propositiva. Dentre as possibilida-
des de articulação municipal revelada pelos gestores na entrevista, também
encontramos dificuldades inerente a todas as áreas de atuação. Cada um com
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 427

sua peculiaridade, mas todas, dentro de um grau de dificuldade passível de


resolutividade como apresentado nas seguintes falas:

[Gestor I] [...] nós não temos um plano de ação de políticas intersetoriais,


não temos um plano de ação em que a gente pode está fazendo. […] a
gente fazer um plano de ações, de ações mais macro dentro do município
né, que possa tá todas as secretarias trabalhando em conjunto, não temos.

or
[Gestor II] [...] uma dificuldade que a gente encontra muito grande as

od V
vezes em reunir os profissionais para o planejamento. [...] hoje os proble-

aut
mas que a gente tem na saúde, a gente não tem profissional especializado
na saúde pra desenvolver certos tipos de serviços.

R
[Gestor III] [...] Nós reunimos cada secretaria pra estar expondo de que

o
forma é o trabalho, como podemos fechar algumas parcerias, a base do
início de tudo é a boa conversa com ambos os setores. [...] com certeza tem
aC
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sim, grandes dificuldades pra fechar essa parceria, as vezes o secretário


se mostra interessado, mas no momento em que a gente mais precisa não
temos seu apoio.
visã
Como podemos notar, as falas trazem elementos substanciais no qual
foram apresentados pela autora Tumerelo (2003) a respeito do Estado brasi-
leiro capitalista e suas formas de gestão contratual de funcionários. Uma das
itor

situações trazidas por Inojosa (2001) ratificada pelos gestores na entrevista que
a re

traz a luz da gestão sobre a dificuldade de articular uma rede intersetorial é a


burocratização e hierarquização das ações, bem como a falta de conhecimento
e planejamento por parte dos gestores. Dessa forma, a composição de uma
rede intersetorial de caráter democrático para a construção da intersetoria-
lidade não pode ser compreendida como uma estratégia automática, natural
par

nem espontânea nas políticas públicas, nesse caso das políticas de educação
Ed

especial e inclusiva.

Ações desenvolvidas e a importância da rede intersetorial


ão

Tornou-se imperativo pensar ações articuladas que atendam os estudantes


com necessidades educacionais especiais numa concepção biopsicossociais
s

no município. Tendo em vista, a importância do envolvimento da saúde e da


ver

assistência social no contexto educacional, o Centro desenvolve suas ações,


dentro da política de educação especial e inclusiva junto a essas secretarias.
Nesse sentido, os entrevistados compreendem a importância da rede interse-
torial e aponta algumas ações a serem fortalecidas na gestão como mostra as
suas falas em seguida:
428

[Gestor I] [...] Na política de assistência social temos o programa Benefí-


cio de Prestação Continuada (BPC) na escola direcionado a pessoas com
deficiência [...] No planejamento anual conseguimos visualizar a impor-
tância de buscarmos junto as redes setoriais um plano de ação que consiga
visualizar algo macro que precisa da participação de outras secretarias.

[Gestor II] [...] A secretaria de saúde poderia ver a forma de nos inserir

or
nesse projeto (CAEE) com os profissionais que ela tem. [...] Mas é impor-
tante que a saúde esteja inserida isso com certeza, até porque existem

od V
ações específicas no campo da saúde embora tenhamos profissionais da

aut
educação que trabalha com alunos com necessidades especiais. [...] Acho
importante uma sensibilização com os gestores e os profissionais.

R
[Gestor III] [...] O CAEE procura proporcionar qualidade de vida para
mostrar que os alunos com NEE são capazes com ajuda da educação,

o
saúde e assistência social. [...] O importante é que a inclusão está acon-
aC
tecendo realmente, não é só no papel, mas no cotidiano a gente possa ver

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que está valendo a pena o trabalho.

Nas falas dos gestores podemos perceber, ainda que de forma tímida,
visã
indicadores de ações atravessadas pela rede intersetorial no município. As
diversas possibilidades de efetivação da rede intersetorial e a importância do
trabalho desenvolvido através de cada secretaria. Dessa forma verificamos
itor

como as ações, de forma simultânea, remete-nos ao trabalho em rede, com a


a re

interconexão dos atores envolvidos. Nesse contexto o CAEE aparece como


um dos autores responsáveis pela proposição da efetivação de uma política
pública voltada para os estudantes com NEE. Para o gestor I a efetivação da
estratégia de ação, é pertinente obter conhecimentos e informações quanto
à rede de serviços disponíveis. O conhecimento da rede é apontado por ele
par

como um dos princípios para se efetivar a intersetorialidade.


Ed

Embora os gestores não conheçam as ações desenvolvidas pelo Centro


relacionadas à rede intersetorial, o relatório semestral da instituição mostra
que um dos projetos importantes para compreender o estudante com NEE
ão

em sua totalidade são os projetos que ultrapassam os muros da instituição e


fazem conexão com outros autores sociais. Nessa relação com esses outros
autores estão envolvidos familiares, professores, técnicos, a comunidade, as
s

organizações não governamentais e as secretarias municipais. Assim o rela-


ver

tório revela que as ações junto às secretarias e a rede de apoio compreende o


contexto de projetos que favorecem a efetivação da política de educação espe-
cial e inclusiva trabalhada como prioridade pelo CAEE (BARRETO, 2014).
Contudo, o Centro aparece como instrumento aglutinador e impulsionador da
política ao articular e envolver atividades que tenham envolvimento de outras
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 429

secretarias e outros espaços potencializadores da inclusão. Nesse sentido,


Junqueira (1998) afirma que a intersetorialidade constitui uma concepção que
deve informar uma nova maneira de planejar, executar e controlar a prestação
de serviços para garantir o acesso igual dos desiguais. A intersetorialidade
então transcende a lógica da justaposição dos projetos realizados, acreditando
na suplementação entre setores. Ao explorar esta dimensão, o autor visualiza
na intersetorialidade a superação da fragmentação das políticas públicas, de

or
modo que a população seja pensada em sua totalidade.

od V
Ainda de acordo com a análise documental o CAEE vem trabalhando com

aut
novas tecnologias de gestão tentando compreender as dimensões complexas
de uma nova configuração dos problemas sociais, físicos e psicológicos dos
estudantes atendidos. Para isso, em alinhamento com a PNEEPEI o Centro

R
estabelece parcerias para desenvolver suas ações como revelado o trecho:

o
O centro possui inúmeras parcerias institucionais e atua em diversas esferas
aC
e contextos sociais. Esse campo de atuação exige uma articulação e um
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contato mais estreito com essas parcerias. A política de educação especial


na perspectiva da educação inclusiva assegura ações intersetoriais, ou seja,
em conjunto com outras políticas. Para isso entendemos ser necessário um
visã
instrumental cuja essa atuação não seja comprometida com as instituições
parceiras e os usuários do centro (BARRETO, 2014, p. 35).
itor

Deste modo, como revelado nas entrevistas com os gestores, as possibi-


lidades dos autores responsáveis pela execução da política se reunirem para
a re

encarar o desafio da materialização da intersetorialidade como possibilidade


de novo arranjo na gestão da política de educação no município. Assim, tor-
na-se manifesto o importante papel que o CAEE ocupa no município ao
desenvolver suas ações em parceria com as secretarias de saúde e assistência
par

social de forma intersetorial e articulando saberes numa perspectiva integral


para os alunos com NEE.
Ed

Considerações finais
ão

A problematização das ordens discursivas ajuda-nos a refletir sobre o


papel dos profissionais de educação, saúde e assistência social, responsá-
s

veis pela execução da política pública em seus diversos campos de atuação.


ver

O CAEE atualmente apresenta-se como uma das instituições de referência


em atendimento multidisciplinar, envolvendo diversos setores municipais
em suas atividades e no trabalho desenvolvido diante da política de educa-
ção especial e inclusiva. Entendemos que nesta pesquisa foram apontados
indícios da possibilidade de construção de uma rede intersetorial que tenha
430

como princípio a resolutividades dos problemas complexos que envolvem o


sujeito numa concepção integrada, ou seja, biopsicossocial dentro da reali-
dade local. Nesse contexto, sabemos que o trabalho de estabelecer uma rede
articulada, com pactuações fiáveis, é um processo complexo, mas necessário
para o cumprimento de ações públicas em favor da educação. Deste modo, é
necessário maior sensibilização entre gestores, técnicos e toda a comunidade
na busca por serviços que atenda a necessidade dos estudantes com NEE e

or
consequentemente uma qualidade nos serviços oferecidos pela rede municipal

od V
que lhe é de direito legalmente constituído.

aut
Dessa forma, entendemos que a cooperação, colaboração, parceria e troca
de saberes entre as instituições e a comunidade, trarão resultados significativos
ao atendimento desses alunos. Com isso, buscamos promover o protagonismo

R
dos integrantes, condição essa, imprescindível para o desenvolvimento social.
Cabe ressaltar aqui a necessidade do desenvolvimento e da efetivação de uma

o
ação intersetorial em âmbito prático por parte das instituições pressupondo
aC

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a sua necessária articulação (no planejamento, implementação e avaliação).
Assim, podemos acompanhar sistematicamente as ações desenvolvidas em
cada instituição, sobretudo, nas ações voltadas para as políticas de educação
especial e inclusiva em diversas secretarias para o estudante com Necessidade
visã
Educacional Especial.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 431

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od V
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aut
BARRETO, R. M. RELATÓRIO DAS ATIVIDADES DO PLANEJAMENTO

R
SEMESTRAL DO CENTRO DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPE-
CIALIZADO “LUIZ CARLOS DA COSTA ARAÚJO”. Secretaria Municipal

o
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a re

estrategias para el desarrollo regional. 2013.


par
Ed
s ão
ver
“EU NÃO TENHO FORMAÇÃO
PARA TRABALHAR COM ALUNOS
DESSE TIPO”: discursos de professores

or
e as contribuições da transdisciplinaridade

od V
para uma educação inclusiva

aut
R
Carolline Septimio
Letícia Carneiro da Conceição
Vanessa Goes Denardi

o
aC
Introdução
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Não é novidade que o foco transdisciplinar na educação é algo bastante


visã
recente. A pedagogia, em sua práxis educativa, tem buscado nas últimas déca-
das um fortalecimento cada vez maior em diferentes conhecimentos, tópicos
e/ou assuntos, haja vista a necessidade de integração e desenvolvimento do
itor

sistema escolar como parte fundamental do entorno social.


a re

Os paradigmas emergentes de um novo normal, a quebra de ideias extraor-


dinariamente conservadoras, de velhos hábitos e costumes têm dado espaço a
um reconhecimento urgente de superação dos conhecimentos herdados e quase
sempre tão herméticos que permanecem entre muitos profissionais da educação.
Ao refletirmos sobre esses paradigmas e as transformações epistemológicas
par

necessárias para um conhecimento socialmente construído, somos lembrados que


Ed

pensar é um ato interdisciplinar por excelência. Qualquer ação do pensa-


mento leva inevitavelmente a um cruzamento de diferentes áreas do saber.
A divisão em disciplinas distintas e com fronteiras rigidamente estabele-
ão

cidas é mera ilusão, miragem reducionista (MARQUES, 2015, p. 208).

Antes de conceituar interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, por-


s

tanto, podemos pensar a própria ideia de disciplina. Esta pesquisa se inspira


ver

nas teorizações e perspectivas analíticas de Michel Foucault - que, a rigor,


não criou nem métodos nem teorias e sim “algumas maneiras produtivas de
pensar o presente, bem como novas e poderosas ferramentas para tentar mudar
o que se considera ser preciso mudar” (VEIGA-NETO, 2011, p. 16).
Na obra Microfísica do Poder, Foucault reflete sobre o papel do intelec-
tual em um movimento para além da ilusão de esclarecer os sujeitos, as massas
“que sabem perfeitamente, claramente, muito melhor que eles; e elas os dizem
434

muito bem” (FOUCAULT, 2012, p. 131), mas de lutar contra as formas de


poder que barram, proíbem e invalidam justamente esse discurso e esse saber.
Foucault sugere que a teoria seja um sistema regional da luta - não para uma
tomada de consciência, mas “para a destruição progressiva e a tomada de
poder ao lado de todos aqueles que lutam por ela, e não na retaguarda para
esclarecê-los”. Assim, “a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará
uma prática; ela é uma prática” (FOUCAULT, 2012, p. 132).

or
Ainda sobre o papel da teoria, Deleuze, em diálogo com Foucault na

od V
mesma obra, lembra-nos que

aut
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o
significante… É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si

R
mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico
que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento

o
ainda não chegou (DELEUZE, 2012, apud FOUCAULT, 2012, p. 132).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Dentre essas maneiras e ferramentas que servem para nos ajudar a pensar
o nosso presente, Foucault aborda a disciplina como mecanismo de con-
trole e dominação, destinado a suprimir ou domesticar os comportamentos
visã
divergentes. Assim, podemos refletir sobre a disciplinarização e a produção
de conhecimento “é uma forma de construção de significado prestigiada na
sociedade e, portanto, impregnada das relações de poder inerentes à prática
itor

discursiva” (MOITA LOPES, 1996, p. 9).


a re

A disciplina se configurou no conceito definidor da modernidade, com as


sociedades modernas sendo consideradas disciplinares. O iluminismo consolidou
as chamadas instituições de sequestro (como escolas, prisões e hospitais) provendo
assistência e proteção aos cidadãos. Mas, também, inseriu nelas mecanismos con-
troladores e punitivos, que formariam o que o autor chamou de tecnologia política,
par

unificadas pela hierarquia e manejando espaço, tempo e registro de informações.


As disciplinas curriculares, como os próprios currículos e práticas curricu-
Ed

lares e de formação, configuram-se como dispositivos modeladores de jogos de


força e produção de subjetividades. A disciplinarização dos saberes, portanto,
opera também dispositivos de controle e punição, subordinados a uma hierarquia.
ão

Dentro do movimento de se afastar do papel de intelectuais como agentes


da consciência e do discurso, tentando expressar aos sujeitos “a muda verdade
s

dos fatos”, tentamos ouvir nossos sujeitos, buscando os discursos e saberes


ver

muitas vezes “barrados, proibidos e invalidados” por um sistema de poder.


Este trabalho se configura como um estudo de enunciados discursivos de
professores da educação básica sob o viés da transdisciplinaridade para uma edu-
cação inclusiva, dando inteligibilidade a uma questão social em que a linguagem
tem um papel central (MOITA LOPES, 2009). Para isso, consideramos o discurso
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 435

não apenas como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por regras
sintáticas de construção, mas como jogo estratégico, polêmico e de luta, pois

não existe enunciado livre, neutro e independente; mas, sempre um enun-


ciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um
papel no meio dos outros, apoiando-se neles e se distinguindo deles: ele
se integra sempre em um jogo enunciativo (FOUCAULT, 2008, p. 112).

or
Esses enunciados, enquanto unidades singulares que constituem uma

od V
formação discursiva, são práticas desenhadas a partir de superfícies de emer-

aut
gência e autoridades de delimitação que produzem subjetividades, as quais
podem ser transformadas por meio de interações sociais no convívio cotidiano,

R
como em uma sala de aula e na formação de professores. Em consonância
com Moita Lopes (2006), optamos em detectar essas subjetividades dos enun-

o
ciados saindo do campo da linguagem propriamente dito, articulando com a
aC
pedagogia e a sociologia, fazendo desta análise um estudo transdisciplinar.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Destarte, para a análise dos discursos dos professores partiremos dos


cinco pontos da transdisciplinaridade propostos por Gibbons et al. (1995, p.
3-8) - a) tipo de conhecimento produzido e contexto de produção; b) modo
visã
de produção de conhecimento; c) organização do conhecimento; d) responsa-
bilidade social e reflexão; e) mecanismos de controle de qualidade do que é
produzido - que nos auxiliarão a conhecer os objetivos, interesses e intenções
itor

desses atores sociais, compreendendo, assim, a dinâmica de seu trabalho


docente dentro de suas redes ou rizomas.
a re

Ao pensarmos a transdisciplinaridade como algo necessário e com-


plexo, tomamos ciência do caminhar indissociável do compromisso social e
do conhecimento, o qual por vezes é linear, estratificado e segmentado, e por
outras é indisciplinado, aquele que proporciona linhas de fuga e movimentos
par

de desterritorialização.
Deleuze e Guattari, em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, sugerem
Ed

que as teorias cortam as multiplicidades e reduzem o objeto, como as estruturas


quebram e aprisionam o rizoma. E, como o rizoma é contra um fechamento,
contra regras pré-estabelecidas, ele foge da unidade. Assim, não deriva do
ão

Uno (n), nem acrescenta nada a ele. Podemos pensar e definir o pensamento
rizomático como uma subtração do Uno, um n-1 que não se constitui de uni-
s

dades e sim de dimensões.


ver

Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu
crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação. Os
abortadores da unidade são aqui fazedores de anjos, doctares angelici,
posto que eles afirmam uma unidade propriamente angélica e superior
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13).
436

Pensando nessas multiplicidades, analisamos as narrativas de professores


sobre suas experiências com os saberes docentes. Para tanto, foram realizadas
entrevistas abertas no período 2018 e 2019 em uma escola pública de Belém
do Pará para fins de tese de doutorado30. As entrevistas não eram marcadas
em dia e horário prévio. A ideia era capturar momentos em que os professores
tinham algum horário livre e estavam dispostos ao diálogo. A questão que
levantamos tem simplicidade e profundidade: O que faz um professor se sentir

or
preparado para dar aulas?

od V
No total, sete professores participaram, sendo três do Ensino Fundamental

aut
(anos iniciais), quatro do Ensino Fundamental (anos finais) e um do Ensino Médio.
Os docentes não foram selecionados. Participaram da pesquisa todos aqueles que
se disponibilizaram a respondê-las e a serem acompanhados em alguns momen-

R
tos em sala de aula, por meio da assinatura de Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), garantindo o anonimato dos sujeitos envolvidos31.

o
Apesar de não ter sido critério de escolha, todos tinham acima de dez
aC

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anos de experiência docente. Numa perspectiva inclusiva, o estudante com
deficiência não foi destacado dos demais ou tomado como ponto de partida,
tampouco elegemos o tema da educação inclusiva para abordar os professores.
Tratava- se de uma conversa sobre saberes docentes.
visã
A partir dos discursos produzidos pelos professores, propusemo-nos
aqui ao pensamento rizomático que permeia a transdisciplinaridade, numa
perspectiva inclusiva. Transgredindo a estrutura disciplinar em que fomos
itor

formadas e que permanece norteando diversas práticas educativas, estrutu-


a re

ramos uma ideia em rede, na qual não há centro, mas entrecruzamento de


saberes. Nos discursos sobre os quais nos debruçamos, buscamos as lentes que
não intelectualizam e burocratizam as falas. Ao contrário, queremos ouvir os
professores, sabendo das complexidades que permeiam discursos e saberes.
par

Visão transdisciplinar: uma breve discussão


Ed

Antes de nos aprofundarmos na análise dos discursos, cabe esclarecer o que


compreendemos por transdisciplinaridade. Essa visão de “ir além” se fundamenta
ão

em princípios menos fragmentados que se preocupam com as questões éticas e


axiológicas que promovem o desenvolvimento de uma consciência social numa
espécie de multiplicidade rizomática, isto é, que “não tem nem sujeito nem objeto,
s
ver

30 Cf.: SEPTIMIO, C. Elogio da ignorância e o (não) saber docente na escola inclusiva. Tese (Doutorado
em Educação). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Humanas e da Educação,
Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis, 2019.
31 As respostas dos professores foram transcritas respeitando a fidelidade das falas, a fim de não obscurecer
detalhes da oralidade que também podem ser passíveis de análise, e utilizadas no texto como citação direta
com destaque em itálico.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 437

mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem
que mude de natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 5).
Essas mudanças são sempre provocadas pelas constantes transforma-
ções que ordinariamente estamos sujeitos, as quais propõem uma realidade
complexa e inacabável, algo que se encontra entre as coisas, numa espécie
de intermeio (DELEUZE; GUATTARI, 1995). E é nesse processo de multi-
plicidade e subjetivação que a transdisciplinaridade emerge, baseando-se em

or
valores, consciência, criação de redes e campos de aprendizagem.

od V
Destarte, a transdisciplinaridade está em um nível demasiadamente com-

aut
plexo, mas também eficiente de interação entre os diversos conhecimentos
escolares e sociais gerando um alto grau de cooperação e coordenação a fim de
alcançar um objetivo comum em uma “dinâmica gerada pela ação de vários níveis

R
de realidade ao mesmo tempo.” (NICOLESCU, 2000a, p. 12). Dessa forma, é
possível construir uma linguagem híbrida e uma nova epistemologia, isto é, uma

o
visão estratégica singular e consolidada frente a um projeto de transformação
aC
consciente e metodologia viável para alcançar um nível adequado de solução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de problemas complexos. Para Nicolescu (2000a, p. 12), sem essa metodologia:

[...] a transdisciplinaridade seria uma proposta vazia. Os Níveis de Rea-


visã
lidade, a Complexidade e a Lógica do Terceiro Incluído definem a meto-
dologia da transdisciplinaridade. Só se nos apoiarmos nesses três pilares
metodológicos poderemos inventar os métodos e modelos transdisciplinares
itor

adequados a situações particulares e práticas (NICOLESCU, 2000a, p. 12).


a re

A realidade de análise neste trabalho, que é o campo da educação básica,


possui diversos níveis, dentre os quais encontra-se a perspectiva inclusiva. E
defini-la não é simples. Numa tentativa de conceituá-la, temo-la como algo que
vive no mundo, que se movimenta e que segue uma lógica de acontecimentos. E
par

é essa realidade que gera uma certa complexidade inerente ao terceiro incluído,
que nada mais é que a multiplicidade de interações entre opostos, intercalando
Ed

conhecimentos idealizados através de diversos saberes que se dispõem entre


eles e se precipitam além dos já concebidos. São esses três pilares, portanto, que
dão o ponto de sustentação para o que compreendemos por transdisciplinaridade:
ão

como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo
tempo “entre” as disciplinas, “através” das diferentes disciplinas e “além”
s

de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente,


ver

para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento (NICO-


LESCU, 1999, p. 46).

A partir disso, Gibbons et al. (1995) entende a transdisciplinaridade rela-


cionada ao conhecimento produzido numa esfera específica e aplicada, seja a
438

partir de cenários teóricos e metodologias de pesquisa, seja pelas práticas em


si que fogem daquilo que se considera disciplinar. Um conhecimento homo-
gêneo que faz surgir novos laços sociais a partir de áreas diversas e sujeitos
distintos. Assim, é possível afirmar que a trajetória transdisciplinar produz
uma teoria no campo aplicado, ou seja,

a necessária (re)constituição do objeto no campo aplicado através de uma

or
reinserção desse objeto nas redes de práticas, instrumentos e instituições
que lhe dão sentido no mundo social [...] E esse processo de re-inserção é

od V
compreendido [...] como um mecanismo de neutralização e deslocamento

aut
de parte das reduções impostas pelos aparelhos teórico-metodológicos
das disciplinas de referência (SIGNORINI; CAVALCANTI, 1998, p. 13).

R
O objeto que tratamos neste texto é a inclusão dentro de um rizoma, de

o
uma rede específica de práticas sociais que é a escola. E essa abordagem só faz
sentido se for aplicada, como um saber eminente, uma práxis, uma ação reflexiva.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Dessa forma, a reinserção desse objeto na instituição de ensino vai além de um
reducionismo, constituindo-se dialógica por ter os sujeitos – e aqui, professores
- como protagonistas no complexo processo de construção do conhecimento.
visã
Essas novas configurações teórico-metodológicas, embora dialógicas,
são ‘próprias’ [...] Isto é, são articuladas a partir de um ponto de vista e
de uma apreciação valorativa únicos sobre o objeto de investigação [...]
itor

em relação ao qual as configurações dos saberes ou teorias de referência


a re

constituem como que um excedente de visão, embora ‘apropriadas’[...]. E é


justamente para construir essa articulação do ponto de vista e da apreciação
valorativa sobre o problema ou sobre o objeto que se faz necessária uma
leveza do pensamento, que vem sendo chamada de ‘transdisciplinaridade’,
ancorada no peso do objeto (ROJO, 2006, p. 261).
par

Essa complexidade de uma nova abordagem do conhecimento exige dos


Ed

sujeitos participantes uma “leveza de pensamento”, um alto grau de engaja-


mento e participação – a fim de lograr e aprimorar a emergente epistemologia
dos estudos complexos que constroem a linguagem transdisciplinar necessária
ão

para um trabalho em equipe com impacto integrador e até mesmo sustentável


– e, sobretudo, comprometimento, o qual, por sua vez, pode ser considerado
transgressivo, já que é impossível contê-lo (GIBBONS; NOWOTNY, 2001).
s
ver

Já não se busca mais “aplicar” uma teoria a um dado contexto para tes-
tá-la. Também não se trata mais de explicar e descrever conceitos ou
processos presentes em determinados contextos, sobretudo escolares, à
luz de determinadas teorias emprestadas, [...]. A questão é: não se trata
de qualquer problema – definido teoricamente –, mas de problemas com
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 439

relevância social suficiente para exigirem respostas teóricas que tragam


ganhos a práticas sociais e a seus participantes, no sentido de uma melhor
qualidade de vida, num sentido ecológico (ROJO, 2006, p. 258).

É preciso, pois, agir, aplicar, discutir, compartilhar, transgredir. E, por que


não, ser indisciplinar, denominação essa que subscreve à visão de conheci-
mento voltado para “as práticas sociais” (MOITA LOPES, 2006), para aquilo

or
que não se conforma ou se identifica com teorias, paradigmas ou modelos.

od V
Os termos em que se coloca hoje a transdisciplinaridade não tem mais como

aut
referência única os princípios científicos clássicos da redução do complexo
ao simples, da diversidade a uma unidade fundamental, do dinâmico e do

R
instável ao isomorfo e estático [...] a legitimidade que se busca agora é jus-
tamente a de uma prática científica de investigação do diverso, do complexo

o
e do instável ou provisório (SIGNORINI; CAVALCANTI, 1998, p. 8).
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A busca pelas possibilidades de ensino que as realidades complexas


impõem é o que move a prática pedagógica, ou pelo menos, o que deveria
mover. Deleuze e Guattari nos instigam: “Não seja uno nem múltiplo, seja
visã
multiplicidades!” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36). Sem começo nem
fim, aceleramos no meio das possibilidades de caminhos:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio,


itor

entre as coisas, inter-ser, intermezzo. [...] Entre as coisas não designa uma
a re

correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas


uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma
e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire
velocidade no meio (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 35).
par

A ressignificação de processos de aprendizagem e das vias metodológicas


Ed

precisam estar em constante movimento num constructo de perspectivas instáveis


e sempre abertas a novos saberes. E como saberemos se isso ocorre na escola?
Por meio das dialogias mediadas por perguntas, da metacomunicação e da autor-
ão

reflexão dos professores. Dessarte, partindo da noção de complexidade disposta


pela transdisciplinaridade, os discursos dos docentes nos levam a um maior
aprofundamento da práxis através da tarefa permanente de busca pela coerência.
s
ver

Na estreiteza e nos limites dos discursos

Pensamos a fala dos professores partindo dos cinco pontos da transdisci-


plinaridade propostos por Gibbons et al. (1995) num diálogo com as ideias de
Foucault acerca da análise de discursos. Nesse sentido, compreendemos que
440

A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que ela


utiliza. Sua questão é infalivelmente: o que, afinal, se dizia no que era dito?
Mas a análise do discurso tem uma finalidade completamente diferente;
trata-se de apreender o enunciado na estreiteza e na singularidade de seu
acontecimento; de determinar as condições de sua existência, de fixar da
maneira mais justa os seus limites, de estabelecer suas correlações com os
outros enunciados aos quais ele pode estar ligado, de mostrar que outras

or
formas de enunciação ele exclui (FOUCAULT, 2008, p. 92).

od V
Portanto, o olhar sobre o que dizem os professores não está isento

aut
das condições de nossa existência. Nada de verdades redentoras, sejam
elas teóricas ou dos discursos produzidos pelos professores; nada de silen-

R
ciamento de vozes ou beatificação de sujeitos, pois sabemos que “todo
discurso obedece a uma ordem” (TERNES, 2010, p. 196). A visita às falas

o
que fazemos nesse texto envolve “interrogar o solo a partir do qual certas
coisas podem ser ditas, por que alguns discursos podem aflorar, e outros
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


não…” (TERNES, 2010, p. 196).
A primeira questão lançada aos professores, muito ligada ao tipo, con-
texto e modo de produção do conhecimento (GIBBONS et al., 1995), tem
visã
origem no frequente discurso que afirma o não saber docente frente a algumas
práticas, tais como, o uso de tecnologias de informação e comunicação e o
trabalho com estudantes com deficiência. A questão levantada dizia respeito
itor

a “O que faz um professor se sentir preparado para dar aulas?”


a re

Então, quer dizer, não existe assim: ‘Ah! Eu tenho que saber isso!’ É o
momento que vai... não tem jeito! É porque cada um tem a sua dificuldade.
Não tem uma receita pra isso, eu penso que não tem uma receita pra isso.
É no dia a dia (ALEX).
par

Eu acho... Esse lado da pedagogia, esse lado de ser teórico, é desvanta-


Ed

gem. Eles te põe muito... Vygotsky, todas essas práticas. Quando chega na
hora, não adianta tu ter aquele lado teórico que a prática te exige outras
coisas, que está além (MARI).
ão

A dicotomia teoria e prática parece consolidada entre muitos professores.


Não haveria conexão entre os saberes construídos na relação entre elas; antes,
s

o fio condutor estaria no sentido de que a prática desfaz a teoria, porque é


ver

superior a ela. A teoria é classificada como desconectada, superficial e sem


contexto. A prática, por sua vez, está no lugar de legitimação dos saberes.
Mas a prática escolar não está livre de ser esvaziada pelo simples fazer,
pela mera repetição do “ir fazendo”, sem diálogo com o cotidiano dos estu-
dantes, com a transformação da vida das pessoas.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 441

Porque, às vezes, essa prática, ela é muito acomodada, vamos dizer assim.
Eu sou professor há 15 anos, então eu domino todo o conteúdo. Eu sou
professor do 6º ao 3º ano, eu domino tudo que é conteúdo, mas isso não
é o suficiente para transformar o conhecimento. Porque o conteúdo em
si, a informação, o conteúdo sozinho, ele não é suficiente. Porque eu per-
cebo, por exemplo, um aluno que recebe bem o conteúdo do professor, se
ele não consegue, por exemplo, associar o seu dia a dia, o seu ponto de

or
vista, aquilo que ele acha, aquilo que ele quer, com isso tudo, se ele não
consegue transformar isso tudo, isso é vazio (JUNIOR).

od V
aut
Ora, parece-nos que tanto a teoria quanto a prática são acusadas de falta
de diálogo. A teoria, fechada em si mesma, em seus conceitos e autores.

R
A prática, também fechada em si mesma e em seus conceitos e fazedores,
reproduzindo o conteúdo, esquemas e classificações. Contudo, as falas dos

o
professores carecem de mais atenção e olhar minucioso de nossa parte para
que possibilitem o deslocamento de análise para outro lugar.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Entendemos que o conhecimento escolar possui características específicas


e profundas, sem centros ou periferias, sem protagonistas ou coadjuvantes, sem
alunos como foco da ação educativa. Ele, da forma como o vemos aqui, é um
visã
verdadeiro rizoma por ser múltiplo e mobilizado, de “maneira simples, com
força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 4).
Por ser múltiplo, esse conhecimento atravessa barreiras disciplinares e,
itor

portanto, dicotomias entre teoria e prática. Esse modo não-linear que foge do
a re

padrão cartesiano, é transdisciplinar, heterogêneo e estruturalmente transitório


(GIBBONS et al., 1995), e ocasiona uma unidade do conhecimento para com-
preensão do mundo presente não compartimentada, mas partilhada, rizomática.
par

Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa


multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela
Ed

aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como
se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente
linhas (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 24).
ão

Ao tratarmos das práticas escolares, podemos entender que estamos tra-


tando de uma “educação menor”, como sugere Sílvio Gallo (2002, p. 173),
s

deslocando para a educação as características de desterritorialização, ramifi-


ver

cação política e valor coletivo da chamada literatura menor.

Uma educação menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta contra


os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula como
trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala de aula como espaço
442

a partir do qual traçamos nossas estratégias, estabelecemos nossa militân-


cia, produzindo um presente e um futuro aquém ou para além de qualquer
política educacional. Uma educação menor é um ato de singularização
e de militância. Se a educação maior é produzida na macropolítica, nos
gabinetes, expressa nos documentos, a educação menor está no âmbito
da micropolítica, na sala de aula, expressa nas ações cotidianas de cada
um (GALLO, 2002, p. 173).

or
Nessas trincheiras, lugares de resistência e singularização, encontramos

od V
conhecimento rizomático, que transcende a ideia da prática repetitiva e da teoria

aut
desconectada. E nada de exaltar a educação menor colocando-a em lugar arro-
gante. Nessa micropolítica há espaço para o dessabor, incompletude e errância.

R
Um dos questionamentos também enquanto professor que eu faço é:

o
quando estou preparando o meu material eu percebo ‘isso aqui vai ser
de fato benéfico pro aluno em que ponto?’. Porque eu sou professor de
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


língua portuguesa. Ensinar esse ponto da gramática pra ele vai ser bené-
fico em qual ponto? Em quê isso vai transformar o aluno? Ele vai escrever
melhor? Vai poder se comunicar melhor? Mas, isso aqui como? Aliado a
quê isso vai ser possível? Só colocar o conteúdo no quadro pro aluno e
visã
ele vai aprender que o sujeito e o predicado e o advérbio? Não! Ele vai
esquecer isso, entende? Ele vai esquecer. Se eu não conseguir associar
isso a outra coisa, pra mim, isso vai ser ser perda de tempo. Saber um
itor

adjunto adnominal, não sei o quê, em muitos casos não vai fazer diferença
a re

nenhuma na vida de um aluno. Sou professor de língua portuguesa, eu era


muito gramatiqueiro antes de entrar na universidade, muito! Vírgulas não
passavam, assim, sabe? Depois eu fui vendo que não, que a língua tem
várias formas de funcionar, que o funcionamento da língua é amplo e a
gente se prende às vezes só na gramática, só na gramática. Eu não sei,
par

por exemplo, dar aula, só chegar na sala, conteúdo, atividade, acabou. O


professor, na minha opinião, precisa ter esse olhar mais apurado. Eu sei
Ed

que é de pessoa pra pessoa, né? Mas o professor não pode, por exemplo,
hoje, dizer que, no meu ponto de vista, dizer que ser professor é chegar
na sala de aula e dar conteúdo pro aluno (JUNIOR).
ão

Como um dos resultados possíveis do encontro da educação com o pensa-


mento deleuziano, a abordagem de uma educação menor se configura em uma
s

das possibilidades de um devir na educação. Coletivizando projetos, valores


ver

e também fracassos, temos acontecimentos, individuações sem sujeito e sem


objetos - e sem ações centradas em um ou outro, sabendo que “A educação
menor é uma aposta nas multiplicidades, que rizomaticamente se conectam
e interconectam, gerando novas multiplicidades. Assim, todo ato singular se
coletiviza e todo ato coletivo se singulariza” (GALLO, 2002, p. 176).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 443

Lugar de trincheira, a toca do cão. A sala de aula e seus meandros. Os


professores se unem e se fortalecem; dialogam, pedem apoio, confiam. Pen-
sando no ato coletivo e singular, lembramos outras falas que chamam atenção

Porque nós não temos... eu não tenho formação pra trabalhar com alunos
desse tipo. A gente vai pedindo ajuda do técnico, da coordenação, das
meninas lá do AEE, uma forma de como a gente vai trabalhar com esse

or
aluno... então a gente se junta (WELL).

od V
Eu sinto como se eu não conseguisse atingir o objetivo meu para com

aut
eles e os objetivos deles enquanto alunos que dependem de mim enquanto
professor. Então eu sinto, assim, muita dificuldade, mas também muito

R
incômodo. Eu sempre discuto assim com as meninas do recurso, sabe,
por conta dessa falta de formação. Assim a educação inclusiva quando
começou, quando começou a ser uma coisa assim atual pra gente, foi

o
muito assim tá, pá, pá, pá, te vira! Agora começou a educação inclusiva,
aC
te vira, sabe? Então eu acho que me falta esse saber lidar melhor, pro-
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fissionalmente, formação, talvez, com esse tipo de aluno, com os alunos


que a gente chama de especial, que são inclusive os alunos da educação
inclusiva que fazem essa escola que caminha em vista da educação inclu-
visã
siva, porque os alunos da educação inclusiva contam muito. (JUNIOR).

Os professores Well e Júnior evidenciam o auxílio de seus pares do


Atendimento Educacional Especializado- (AEE). O discurso de ambos nos
itor

parece evocar a sala de recursos quando se trata de educação especial. Elas,


a re

“as meninas do recurso” detêm esse saber.


Quase disciplinar e tão hermética quanto às demais disciplinas (História,
Língua Portuguesa, Matemática etc.), a educação especial ganha corpus disci-
plinar. Se por um lado o compartimentar dos saberes nos remete a uma educação
par

não inclusiva, uma vez que deixa o lugar da pessoa com deficiência separado
dos demais estudantes, por outro marcamos a presença de um trabalho docente
Ed

tecido em parceiras, firmado em diálogo, trocas e possibilidades de aprendizagens

Aprender a conhecer significa ser capaz de estabelecer pontes − entre os


ão

diferentes saberes, entre esses saberes e seus significados para nossa vida
cotidiana, entre esses saberes e significados e nossas capacidades interio-
res. Esta abordagem transdisciplinar será o complemento indispensável
s

do procedimento disciplinar, pois ela conduzirá ao surgimento de seres


ver

continuamente re-ligados, capazes de se adaptarem às exigências cambian-


tes da vida profissional e dotados de uma permanente flexibilidade sempre
orientada em direção à atualização de suas potencialidades interiores [...]
aprender a fazer é uma aprendizagem de criatividade. ‘Fazer’ também
significa descobrir o novo, criar, trazer à luz nossas potencialidades cria-
tivas” (NICOLESCU, 2000b, p. 140, grifo nosso).
444

A descoberta de potencialidades, a possibilidade do confronto. Quando


traçamos o diálogo não nos furtamos dos embates, frustrações e tantas
outras situações que possam ocorrer entre os professores. Não isentamos
a dúvida, o erro, o conflito que marca a própria convivência humana. O
que advogamos aqui é a busca, o querer que desperta capacidades da vida
profissional e que pode, inclusive, questionar conceitos pré-estabelecidos,
ideias firmadas em rochedos da sala de aula ou do próprio atendimento

or
especializado que permitem a reflexão da responsabilidade social (GIB-

od V
BONS, et al., 1995).

aut
É que eu busco sempre pesquisar e sempre tô acompanhando com as
minhas amigas também que têm séries maiores do que e a gente. Sempre

R
tá nesse contato, né? Busca de materiais, busca de recurso, vamos falar
de educação, o que dá certo na tua, vamo experimentar. Então isso daí é

o
gratificante, eu sempre procuro fazer isso (MARI).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Hoje, por exemplo, eu não cheguei preparado pra trabalhar com o aluno
com deficiência, eu não saí da universidade preparado pra isso. Mas aí,
quando eu cheguei aqui, que eu conheci o meu aluno ‘Ah! Agora eu
visã
já sei’. É aquela também: o aluno tem uma deficiência X mas ele tem
várias outras que superam toda aquela deficiência dele aqui. Tato, visão,
até isso a gente vai e aprende. No meu caso, no meu exemplo, a minha
namorada, que também é professora, ela trabalha com o pré, jardim I,
itor

jardim II, e ela tem facilidade de notar a deficiência do aluno, que até
a re

outros funcionários, até pais não têm. A gente já troca conhecimento, o


que ela trabalha com aluno lá no maternal dela eu trago pra mim, pra
trabalhar com meu aluno dito normal do 6º ano, e assim por diante. Tem
que ter troca de experiência, troca de conhecimento sempre. É isso que
eu digo: olha, se você vier só com o conhecimento matemático, só com o
par

conhecimento que tu aprendeste lá, tu vai ter dificuldade aqui no ensino


público e em qualquer outro tipo de ensino (ALEX).
Ed

A gente ainda enfrenta dificuldades. Por exemplo, eu tinha muita dificul-


dade e ainda tenho algumas de elaborar material pra esse tipo de aluno,
ão

sabe? Eu penso também que precisa haver formação, sabe, continuada


pra nós, professores, que lidamos com alunos diversos: autistas, esquizo-
frênicos. Precisaria haver porque o professor, na maioria dos casos, é por
s

conta própria, assim, sabe? Nós temos um apoio aqui na professoras da


ver

educação especial que nos ajudam, mas sabe quando você sente que não
é suficiente? Muitas vezes dentro de sala de aula eu posso dar atenção
pra aquele aluno, porém, na maioria das vezes, ele vai ficar meio assim,
porque eu vou estar mais ocupado com aquele aluno que a gente diz, os
normais, por exemplo (JUNIOR).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 445

As potencialidades criativas, numa abordagem transdisciplinar, não apa-


gam o perigo da sala de recursos como lugar da educação especial. Numa
perspectiva inclusiva, como a que nos propusemos neste artigo, é mister
questionar a tentativa de separação dos corpos deficientes a partir da institu-
cionalização do padrão e dos corpos desviantes.

Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas

or
que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente.

od V
Assim como outras formas de opressão pelo corpo, como sexismo ou o
racismo, os estudos sobre deficiência descortinaram uma das ideologias

aut
mais opressoras de nossa vida social: a que humilha e segrega o corpo
deficiente (DINIZ, 2012, p. 10).

R
Defendemos que os estudantes com deficiência não sejam tratados como

o
pertencentes ao AEE, tampouco o conhecimento acerca da aprendizagem
aC
desse público esteja exclusivamente nas salas de recursos. Ao contrário, nossa
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ideia de educação inclusiva questiona o conceito de deficiência pautado na


perspectiva médica e excludente, a qual reconhece a lesão e separa o corpo
com limitação. Em nossa análise, a transdisciplinaridade contribui para a
visã
superação dessa visão excludente a partir do momento em que compreende
o pensamento rizomático, o fazer-se em rede, a unicidade de saberes que
dialogam pois estão interligados.
itor

Para Rodrigues (2006, p. 315), o professor tende ao seguinte pensamento


“‘Tenho uma turma de 22 alunos e um deles tem Trissomia 21. Que hei de
a re

fazer?’ A questão é que se continua a encarar os 22 alunos como ‘normais’, isto


é, iguais aos outros como fotocópia, e apenas um diferente”. Nesse sentido, a
diversidade humana é esquecida em prol de uma falsa ideia de homogeneidade.
O debate que lançamos é para as contribuições que a transdisciplinaridade
par

pode ter para que os 22 alunos sejam beneficiados, para que a turma inteira
pense ações coletivas e singulares para os problemas reais que vivenciamos.
Ed

A transdisciplinaridade envolve muito mais que uma justaposição de dis-


ciplinas, pois está ligada a uma solução conjunta de resolução de questões
ão

complexas, destinada, assim, a transmitir a integração de perspectivas


na identificação, formulação e resolução de problemas (GIBBONS;
NOWOTNY, 2001, p. 67, grifo nosso).
s
ver

Assim, podemos inferir que a transdisciplinaridade promove um conhe-


cimento mais “socialmente robusto” que transgride limites disciplinares e
institucionais. (GIBBONS; NOWOTNY, 2001) e que fortalece uma aprendi-
zagem permanente, impulsionando a formação dos sujeitos em uma dimensão
446

transpessoal” (NICOLESCU, 2000b). É nessa perspectiva transdisciplinar


que pensamos a educação especial, motivando uma atitude e uma capaci-
dade individual ou social para manter uma direção constante independente da
complexidade da situação ou dos acasos da vida. Portanto, compartilhamos
do pensamento de Nicolescu (2000b) ao afirmar que uma educação só pode
ser viável se for uma educação integral do ser humano, dirigida à totalidade
aberta dos sujeitos.

or
od V
Considerações finais: “riacho sem início nem fim”

aut
Como um pensamento rizomático, que trafega em direções movediças

R
no intermeio e “não começa nem conclui”, nosso movimento transversalizou
os enunciados de professores e as contribuições da transdisciplinaridade para
uma educação que inclua - até mesmo a diversidade escamoteada nas normas

o
e normalizações.
aC

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Em “uma direção perpendicular, um movimento transversal” entre as
margens roídas dos enunciados analisados, vislumbramos matizes de uma
teoria transdisciplinar e uma prática educativa disciplinarizada.
visã
Os professores acreditam que saber mais é saber melhor, para educar
e para incluir, carregando “uma e outra”, a prática transdisciplinar favorece
a educação inclusiva - tanto na didática docente como para os alunos. Mas,
como pensamento rizomático, as múltiplas entradas desta transdisciplinaridade
itor

se fazem com colaboração, respeito e liberdade de expressão: nem uno nem


a re

múltiplo, multiplicidades!
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 447

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a re
par
Ed
s ão
ver
SUBJETIVIDADE POLÍTICA:
quando novos sujeitos políticos
emergem na cena

or
od V
Vinicius Furlan

aut
Emanuel Messias Aguiar de Castro

R
Novos sujeitos políticos

o
As novas conformações sociais deslocaram o lócus privilegiado da cen-
aC
tralidade ontológica da classe trabalhadora enquanto sujeito político para
as outras formas de existências. Assim no dizer de Tiqqun (2019, p. 13) “A
unidade humana elementar não é o corpo – o indivíduo –, mas a forma de
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vida”. As atuais lutas sociais parecem seguir o caminho da luta por reconhe-
visã
cimento fazendo emergir uma multiplicidade de sujeitos políticos na cena
pública. Como destaca Nancy Fraser (2007), o reconhecimento se tornou a
principal gramática dos movimentos sociais. As identidades dos grupos sociais
itor

representam o principal motivo da mobilização política (FRASER, 2000), o


que, por sua vez, não reduz o status das classes sociais, mas o desloca para o
a re

campo das tensões entre as identidades e a “diferença”.


Como escreve Safatle (2015, 2016), as demandas por reconhecimento
de sujeitos não substanciais têm se tornado problema central no campo da
política. Tratar tais questões tem sido reivindicar um olhar com atenção para
par

o fenômeno de emergência das novas formas do reconhecimento a partir de


identidades coletivas.
Ed

Há um vínculo indissociável entre política e a produção de identidades


coletivas no cenário contemporâneo, em que a problematização do corpo
político se inscreve nas dinâmicas de produção de identidades coletivas que se
ão

apresentam como potência disruptiva pelo des-idêntico. Safatle (2016) insiste


que é necessário destituir o povo como lugar central do político para que os
sujeitos políticos – essas identidades coletivas – possam emergir. Para além a
s

ideia de um “povo” necessariamente induz a constituição de um Estado-nação


ver

idêntico a si. Desta forma, tal situação despotencializa os sujeitos políticos


transformando-os em uma massa determinada.
Essas problemáticas, por sua vez, têm se tornado pauta cada vez mais
presente nos moldes de funcionamento das atuais sociedades multiculturais
na medida em que, como demarca Fraser (2006), a mobilização política tem
se orientado na constituição de lutas para garantir o reconhecimento social
450

das diferenças entre identidades coletivas. Fraser (2002) destaca que a busca é
ser reconhecido como negro, LGBT, mulher, indígena, etc., e não mais como
proletário ou burguês, e, nesse sentido, ter garantido o direito do grupo do
qual se faz parte, como uma forma de minimizar ou sanar as formas de injus-
tiça produzidas na dimensão simbólica e cultural. Dessa forma, os conflitos
identitários alcançaram estatuto paradigmático exatamente no momento em
que o agressivo capitalismo globalizante está a exacerbar radicalmente as

or
desigualdades econômicas.

od V
Assim, a centralidade da luta de classes enquanto chave de leitura para

aut
os conflitos sociais se desloca para as lutas identitárias em busca de reconhe-
cimento. A luta de classes, nessa esteira, foi acusada de esbarrar no limite dos
conflitos sociais a problemas gerais de redistribuição igualitária de riquezas,

R
em que as dimensões morais e culturais não poderiam ser compreendidas
como meros reflexos de estruturas de classe. Assim, a leitura possível consiste

o
em pensar as modificações que interferem sobre as condições que elevam o
aC
reconhecimento como problema político central (SAFATLE, 2016).

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Tal esgotamento das lutas sociais sustentadas na classe operária leva
Honneth (2003) a afirmar que a própria crença no papel privilegiado do pro-
letariado no interior de uma política revolucionária não passava de um dogma
visã
histórico-filosófico (questão que o autor revê nos últimos trabalhos). Desse
modo, é com a saída de cena do proletariado enquanto figura por excelência
da subjetividade política que sobe à cena o problema das multiplicidades que
itor

precisam ser reconhecidas dessa forma no interior dos embates sociais. A com-
a re

preensão passava a configurar como as lutas políticas passaram necessariamente


de uma abordagem centrada no conflito de classes a uma abordagem centrada
em múltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual,
das etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais de pessoa.
Com o deslocamento da espoliação à inautenticidade no interior da crítica
par

do trabalho, Safatle (2016) destaca que se abre mais uma porta para secun-
darizar o conceito de luta de classes e elevar o problema do reconhecimento
Ed

a dispositivo político central, na medida em que se consolida uma sociedade


multiculturalista em que os processos de afirmação das diferenças inscrevem
um quadro pretensamente comprometido com a perpetuação de normas e
ão

formas de vida próprias a grupos culturalmente hegemônicos.


Pensado os novos sujeitos políticos afirma Laclau (1993, p. 77),
s
ver

“Política” é uma categoria ontológica: existe política porque existe sub-


versão e deslocamento do social. O que implica que todo sujeito é, por
definição, político. À parte do sujeito, neste sentido radical, somente exis-
tem posições de sujeito no campo geral da objetividade. Mas o sujeito, no
sentido que o entendemos neste texto, não pode ser objetivo: ele somente
se constitui nas bordas deslocadas da estrutura. Explorar o campo da
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 451

emergência do sujeito nas sociedades contemporâneas equivale, por fim,


a explorar os vestígios que a contingência tem inscrito nas estruturas
aparentemente objetivas das sociedades em que vivemos.

É nesse sentido que, para Ranciére (2018), a política – ou a subjetivação


política – acontece, quando há um processo de desidentificação (de não iden-
tidade) que interpela a ordem do dano social sustentado numa distribuição

or
hierárquica das identidades, ou seja, quando uma determinada identidade
se desidentifica com a parte que lhe é(era) pressuposta – o que implica em

od V
sua negatividade –, como uma forma de emergência de uma subjetividade

aut
não identitária, ou uma identidade não idêntica. As políticas de identidade
afirmativas produzem o político quando intervêm sobre ele pela sua negativi-

R
dade, quando o des-idêntico – formas identitárias que não se enclausuram às
identidades substancializadas – se afirma por via da negação da distribuição

o
hierárquica das identidades, produzindo um dano no status quo da ordem
aC
social. É justamente na brecha quando uma política de identidade busca legi-
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timar o lugar de exclusão de certas identidades coletivas que estas constroem


suas lutas em busca de intervenções emancipatórias.
Assim, é no território do desentendimento das identidades que Ranciére
visã
(2018) aponta que os enquadres ontológicos que definem a hierarquia social
das estruturas de poder são interpelados e fazem emergir o político. Desse
modo, os processos identificatórios no campo político são também constitu-
itor

tivos da própria dinâmica transformadora das lutas sociais. No lugar de iden-


a re

tidades que se dissolvem não emergem indivíduos pretensamente autônomos


e marcados por esquemas particulares de interesses, mas identidades políticas
atravessadas por identificações que despossuem e descentram o movimento
da política. A identidade não deve aparecer como substância social, mas como
potência de emergência. “Uma potência que ampliará sua força se for capaz
par

de se encarnar em um corpo social des-idêntico e inquieto, em vez do corpo


Ed

unitário do imaginário social. Pois a política é a emergência do que não se


estabiliza nos regimes atuais de existência” (SAFATLE, 2016, p. 94).
Safatle (2016) afirma que vivemos uma situação singular, na qual os
ão

sujeitos políticos podem e devem emergir em sua potência não identitária de


sujeitos. O político emerge, portanto, dos processos de des-identificação em
que aparecem sujeitos não substanciais, isto é, anamorfoses das políticas iden-
s

titárias excludentes, e produzem um dano ao status da distribuição hierárquica


ver

das identidades. Ao produzir esse dano nessa estrutura hierárquica, no jogo do


território da política, onde permeiam as demandas da cena pública, cria-se a
brecha para que o político aconteça, na medida em que novas identidades se
respaldam em processos de dessubjetivação, assim como quando se afirmam
políticas identitárias que apontam para um horizonte emancipatório.
452

Assim, as identidades coletivas se baseiam numa multiplicidade, expres-


sando demandas concretas de diferentes grupos distintos, muitas vezes
contraditórios entre si, mas capazes de serem agenciadas em uma rede de
equivalências que permite a constituição de uma identidade e a determina-
ção de linhas antagônicas de exclusão – agora politizadas. Assim, não existe
política sem identificação, pois só uma identidade afeta outra identidade. O
campo político é habitado por sujeitos identificados e, em esquemas sensí-

or
veis de identificação, basta haver um circuito social que há identidades em

od V
relação. Há uma des-identificação não identitária necessária como condição

aut
para a reabertura do campo político. As identidades políticas não estão con-
cebidas por traços de positividade, mas por sua negatividade, ao não definir
uma substancialidade nos processos de identificação e subjetivação política.

R
Nesse sentido, a luta política não se define por sujeitos políticos determi-
nados de antemão, mas caracteriza-se pela constituição de sujeitos políticos

o
que se antagonizam frente à impossibilidade de existência de uma totalidade
aC
de coesão numa comunidade política.

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Desse modo, os sujeitos políticos fazem-se não por sua positividades
(pelo compartilhamento daquilo pelo que são definidos – trabalhadores,
visã
mulheres, negros etc.) ou pela afirmação de um sujeito privilegiado da
história, mas por meio da negatividade, isto é, o adversário é identificado
como aquele que impossibilita a existência deles como seres iguais e
livres numa determinada comunidade política: que ela é sempre parcial e
itor

precária, pois é formada por relações de poder. Assim, a luta política não
a re

se caracteriza pela oposição entre sujeitos definidos em sua positividade


que lutam pela repartição das partes do interior da comunidade política
objetivada, mas, sim, pela afirmação do outro mundo possível, de uma
ruptura com o modo de distribuição dos corpos que parte dos ‘sem parte’
existir como sujeito (MACHADO; COSTA, 2016, p. 69).
par

A subjetividade política não é anterior à luta política, não é uma categoria


Ed

ontológica do político, mas uma categoria provisória, pois uma categoria de


construção provisória de identidades. Não se trata de subjetividades defini-
das positivamente que se politizam, mas elas se concretizam, diria Ranciére
ão

(2018), no desentendimento, em processos de identificação contingentes,


históricos e construídos numa relação antagônica.
s

Podemos dizer que o político acontece quando se rompe com as estruturas


das políticas de identidade determinadas a priori, assim como quando se usam
ver

políticas de identidades afirmativas que buscam alcançar intervenções eman-


cipatórias dos grupos sociais. As identidades coletivas produzem o político
somente a posteriori, na medida em que sua afirmação no modo de instituir o
ordenamento social do poder implica a exclusão de possibilidades distintas que
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 453

também podem se realizar num contexto histórico. A política emerge quando há


subversão e deslocamento do social, portanto, quando há deslocamentos iden-
titários e aquelas identidades que não têm parte na política nela se inscrevem.
A democracia, diz Ranciére (2018), trata-se de um modo de subjetivação
política, que se caracteriza por um processo de desidentificação que interpela
a dominação social num campo do sensível. Há democracia se identidades
excluídas, que não têm fala e estão fora do dispositivo estatal, nela se inserem.

or
Não há política sem (des)identificação, pois o campo político é cons-

od V
tituído de sujeitos identificados e em contingências de identificação que se

aut
afetam por identidades. Há identificação em grupos, em uma estrutura de
organização política, em movimentos sociais; basta haver circuito social para
que haja identidades em relação. Existe uma (des)identificação necessária para

R
a (re)abertura do campo político, como identificação não identitária. Faz-se
necessário pensar o campo político das identidades pelo des-idêntico, sujeitos

o
políticos que se dissolvem de sua identidade.
aC
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A política existe onde quer que a contagem das partes e das ‘partes’ da
sociedade é perturbada pela inscrição de uma parte dos sem-parte. Ela
começa quando a igualdade de qualquer um com qualquer um inscreve-
visã
-se como liberdade do povo. Essa liberdade do povo é uma propriedade
vazia, uma propriedade imprópria pela qual aqueles que não são nada
colocam seu coletivo como idêntico ao todo da comunidade. A política
existe enquanto formas de subjetivação singulares renovarem as formas
itor

de inscrição primária da identidade entre o todo da comunidade e o nada


a re

que a separa de si mesma, quer dizer, da mera contagem de suas partes


(RANCIÉRE, 2018, p. 135).

Singularidade qualquer como subjetivação política


par
Ed

“O ser que vem é o ser qualquer”, destaca o filósofo (AGAMBEN, 2013,


p. 09). O ser que vem não tem essência, não é categorizável, não se define a
priori, não é individual nem universal, não apresenta condição de pertença
ão

nem identidade pressuposta.

O Qualquer que está aqui em questão não toma, de fato, a singularidade


s

na sua indiferença em relação a uma propriedade comum (a um conceito,


ver

por exemplo: o ser vermelho, francês, muçulmano), mas apenas no seu


ser tal qual é. Com isso, a singularidade se desvincula do falso dilema
que obriga o conhecimento do universal. […] não é um universal nem
o indivíduo enquanto compreendido em uma série, mas a ‘singularidade
enquanto singularidade qualquer’ (AGAMBEN, 2013, p. 10).
454

Nesse sentido,

[…] o ser-qual é recuperado do seu ter esta ou aquela propriedade, que iden-
tifica o seu pertencimento a este ou aquele conjunto, a esta ou aquela classe
(os vermelhos, os franceses, os muçulmanos) – e recuperado não para uma
outra classe ou para a simples ausência genérica de todo pertencimento, mas
para o seu ser-tal, para o próprio pertencimento (AGAMBEN, 2013, p. 10).

or
Safatle (2012; 2016) tem enfatizado em seus últimos trabalhos que a

od V
questão central da política de nosso tempo é dar conta da emergência das

aut
novas subjetividades que não se apresentam pelas determinações substan-
ciais dos enquadres pedagógicos que definem a humanidade. Dito de outro

R
modo, a problemática central da política atual é dar conta das exigências de
reconhecimento das subjetividades não substanciais constituídas aos moldes

o
do de uma espécie de semiotização como sugere Lazzarato (2014). Nesse sen-
aC
tido, uma política de identidade assume a forma de uma sujeição social a um

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modelo de política que se situa em um horizonte fixo. Aqui esbarramos com
o problema do sujeito sempre pensado a partir da sujeição e não, no dizer de
Zizek (2016), a partir de sua dessemelhança. Os novos movimentos sociais,
visã
as novas identidades coletivas, os novos sujeitos políticos, têm emergido não
por determinações a priori dentro dos enquadres ontológicos que definem os
seres humanos no contexto da distribuição hierárquica que define os lugares
itor

sociais. O ser que vem, como aponta Agamben (2013), vem como ser qual-
a re

quer, sem determinações, sem substância – é não substancial –, sem essência,


sem conteúdo; a identidade que vem é uma identidade sem pessoa (AGAM-
BEN, 2014). Como aponta Safatle (2012), isso significa pensar o eu fora de
si mesmo, como despossessão de si, como condição in-humana. A questão
política da modernidade remonta ao fato de que as formas de reconhecimento
par

institucionais são sempre finitas e determinadas, enquanto o sujeito comporta


uma dimensão infinita e indeterminada (DUNKER, 2014).
Ed

“Anota aí: eu sou ninguém!”, como respondera um manifestante ao


repórter quem indagava acerca de sua identidade, marca uma forma de uso
estratégico da singularidade como subjetivação política como luta social no
ão

campo das disputas políticas. “Eu sou ninguém”, para além dos enquadres
identitários, demarca a emergência de sujeitos capazes de experiências pro-
s

dutivas de indeterminação (FURLAN, 2020).


ver

Como mostrou Agamben (2013), os poderes não sabem o que fazer com
a “singularidade qualquer” – eis o que estava em jogo nas manifestações de
junho de 2013. Significa que o poder busca atribuir um enquadramento à sin-
gularidade qualquer, busca dar substância a sujeitos não substanciais. O poder
confunde-se em meio ao que Hardt e Negri (2014) denominam de multidão.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 455

Daí a insistência de Safatle (2016) que o Estado governa a imanência da


multitude, ou seja, opera produzindo gramáticas temporais e espaciais para
afirmar um povo. Todavia, no posicionamento de Agamben (2015), é preciso
questionar-se sobre o que se quer negar quando se afirma um povo.
Safatle (2016) lembra o exemplo do proletariado, que na Roma Antiga era
a última classe sem nada, os despossuídos de si; que com advento do capital
retornam como classe assolada pela pobreza que necessita de amparo, e que Marx

or
(2017) transforma-a da passividade a atividade; o proletário, os despossuídos, que

od V
não possuem lugar, que não possuem propriedade, os necessitados de amparo,

aut
podem, nessa condição, implodir em qualquer lugar, têm potência política, na
medida em que são o qualquer um: “o ser que vem é o ser qualquer”. Como
apontou Agamben (2013) ser qualquer, nesse sentido, comporta potência política

R
para ser qualquer coisa, para ser o qualquer um; não é nada, mas pode ser tudo.
Assim, a singularidade qualquer tomada por uma negatividade não recu-

o
perável é fundamental para a estruturação de uma subjetividade política que
aC
não se perde no meio universal da política. Apenas desta forma poderá se cons-
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tituir um horizonte emancipatório, ainda que para isso necessitemos de uma


utopia. A resistência aparece no lugar da não identidade, dirá Safatle (2006).
visã
Estamos diante de uma crítica à anulação de toda dignidade ontológica
do que aparece como resistência e opacidade do objeto ao esquema inter-
subjetivo de significação, resistência do objeto ao acordo intersubjetivo a
itor

respeito da determinação nominal do que aparece como não idêntico ao


sujeito. Por outro lado, crítica também à anulação de toda dignidade onto-
a re

lógica da irredutibilidade do sujeito e de suas funções às determinações


positivas da palavra partilhada nos usos da linguagem da vida ordinária
(SAFATLE, 2006, p. 304, grifos do autor).
par

Lacan (1988) retoma insistentemente que o “objeto perdido” permanece


como “resto” dos processos de socialização. É importante lembrar que o que
Ed

está realmente em jogo é a constatação de que sujeitos podem se colocar


naquilo que não se submete integralmente à individuação. Esse esquema é
fundamental para que possamos quebrar a ilusão da subjetividade constitutiva.
ão

Trata-se da compreensão do sujeito como espaço de tensão entre exigências de


reconhecimento (submetidas a protocolos de alienação) e reconhecimento da
irredutibilidade da opacidade da identidade que não se conformam à imagem
s

de si. O reconhecimento especifica-se, assim, como algo inapreensível; uma


ver

maneira de insistir que algo fundamental do sujeito não encontra lugar no


campo intersubjetivo (FURLAN, 2020).
Zizek (2016) demarca que o paradoxo em ação aqui é que o próprio
fato de não haver um corpo positivado, ou dizendo de outra forma, que os
corpos resistem à positivação e, por isso, preexistente ontologicamente como
456

resistência aos dispositivos de subjetivação do poder. Isso é o que torna pos-


sível a efetiva resistência. Nesse sentido, o sujeito se manifesta como centro
ausente da ontologia política. Des-idêntico ou dessemelhante de um si mesmo
projetado por um horizonte político imaginário e, por isso, ideológico.
Nos protestos do Ocuppy Wall Street de 2011, Zizek (2012) aponta para
o potencial de resistência do silêncio à exigência dos poderes por pautarem
suas reivindicações. Os protestos de Wall Street se deram pelo descontenta-

or
mento com o modus operandi do capital, mas não tinham um programa. Para

od V
a indagação sobre o programa, a resposta foi o silêncio. Zizek (2012) aponta

aut
que tal resposta foi o violento silêncio para um novo começo.
Furlan (2020) demarca que a exigência por um programa implicara na
tentativa de enclausuramento identitário dos protestos. É como se dissessem:

R
digam o querem que saberemos quem são. A identidade, neste sentido, cons-
titui dispositivo político na tentativa de enclausurar, por parte dos poderes.

o
Como contragolpe, a singularidade aparece enquanto potencial de resistência
aC

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para a luta política. “A singularidade qualquer, que quer se apropriar do pró-
prio pertencimento, do seu próprio ser-na-linguagem e recusa, por isso, toda
identidade e toda condição de pertencimento é o principal inimigo do Estado”
(AGAMBEN, 2013, p. 79).
visã

Qualquer pode ser a política da singularidade qualquer, isto é, de um


ser cuja comunidade não é mediada por nenhuma condição de pertenci-
itor

mento (o ser vermelho, italiano, comunista) nem pela simples ausência


a re

de condições (comunidade negativa, tal como foi recentemente proposta


na França por Blanchot), mas pelo próprio pertencimento?[…] Pois o fato
do novo da política que vem é que ela não será mais a luta pela conquista
ou pelo controle do Estado, mas a luta entre o Estado e o não-Estado (a
humanidade), disjunção irremediável entre as singularidades quaisquer e
par

a organização estatal (AGAMBEN, 2013, p. 77, grifos do autor).


Ed

As singularidades como subjetividade política podem formar uma comu-


nidade sem reivindicar uma identidade, a que sujeitos copertençam sem uma
condição representável de pertencimento – eis o que o Estado não pode tolerar
ão

(AGAMBEN, 2013).

Qualquer é a figura da singularidade pura. A singularidade qualquer não


s

tem identidade, não é determinada relativamente a um conceito, mas tam-


ver

bém não é simplesmente indeterminada; ela é, antes, determinada somente


através da sua relação com uma ideia, isto é, com a totalidade das suas
possibilidades. Através dessa relação, a singularidade confina, como disse
Kant, com todo o possível e recebe assim a sua omnimo da determinatio
não através da participação em um conceito determinado ou de uma certa
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 457

propriedade atual (o ser vermelho, italiano, comunista), mas unicamente


através desse confinar. Ela pertence a um todo, mas sem que esse perten-
cimento possa ser representado por uma condição real: o pertencimento,
o ser-tal, é aqui apenas relação com uma totalidade vazia e indeterminada
(AGAMBEN, 2013, p. 63, grifos do autor).

Isto aponta uma singularidade que se apresenta como significante vazio.

or
Como enfatiza Safatle (2016) não basta que o lugar simbólico do poder esteja
vazio, é necessário que quem ocupa esse lugar também apareça como um signifi-

od V
cante vazio e que tal vacuidade seja decisiva na constituição de sujeitos políticos.

aut
Como bem salienta Zizek (2011)

R
O vazio do “povo” é o vazio do significante hegemônico que totaliza a
cadeia de equivalência, isto é, cujo conteúdo particular é “transubstan-

o
ciado” numa incorporação do todo social, enquanto o vazio do lugar do
poder é uma distância que torna “deficiente”, contingente e temporário
aC
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todo portador empírico do poder.

Os sujeitos políticos não aparecem como substância social, destaca


visã
Safatle (2016), mas como potência de emergência. Uma potência de emer-
gência capaz de ampliar sua força se encarnar um corpo social des-idêntico e
inquieto em de um corpo unitário do imaginário social, uma vez que a polí-
tica é a emergência do que não se estabiliza os regimes atuais de existência.
itor

Safatle (2016) demarca que os novos sujeitos políticos se transfiguram como


a re

espécie de polifigurabilidade:

Essa polifigurabilidade de sujeitos políticos é sua caracaterística funda-


mental, característica própria da natureza situacional da ação política e da
par

ausência de uma ontologia positiva que a fundamente. Tal polifigurabili-


dade dá à política seu caráter plástico, mutante (SAFATLE, 2016, p. 94)
Ed

A revolução, desde Marx e como estamos vendo, só pode ser feita pela
classe dos despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de iden-
ão

tidade, o que faz necessária uma certa experiência de negatividade e indeter-


minação, noutros termos, de singularidade qualquer.
Butler (2015) identifica que é de acordo com as normas que determinam
s

uma vida que possibilita que uma vida seja reconhecida. Não obstante, diante
ver

dessas normas sempre há um “resto” de vida que perturba incessantemente


a normatividade.
Do mesmo modo, uma subjetividade é produzida de acordo com as
normas pelas quais os sujeitos são reconhecidos, entretanto, nos enquadres
dessas normas, há um “resto” de subjetivação, a singularidade, que de modo
458

incessante perturba e interpela a política, que se subscreve enquanto forma


de resistência aos enquadres normativos de reconhecimento.
A singularidade qualquer é o desidêntico que se apresenta como potência
política para ser qualquer coisa, para ser o qualquer um; não é nada, mas pode
ser tudo. Assim, a política emerge enquanto subversão e deslocamento do
social, desse modo, enquanto deslocamentos identitários e aquelas identida-
des que não têm parte na política nela se inscrevem. Trata-se de um modo de

or
subjetivação política, que se caracteriza por um processo de desidentificação

od V
que interpela a dominação social num campo do sensível. Há democracia se

aut
identidades excluídas, que não têm fala e estão fora do dispositivo estatal,
nela se inserem, a ela ocupam.

R
Formas de vida como subjetividade política

o
Recuperando a passagem do início: “A unidade humana elementar não
aC

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o corpo – o indivíduo – mas a forma de vida (TIQQUN, 2019, p. 13). Ainda
que os corpos se afetem, afetam-se dentro do espaço-tempo de uma forma de
vida. Giorgio Agamben é perfeitamente consciente de que a problemática das
visã
formas de vida se encontra entre os temas mais relevantes no horizonte da
política do final do século XX e XXI. Como enfatiza Chantal Mouffe (2009)
a disputa política se trata da disputa entre formas de vida.
Numa leitura de Agamben, Safatle (2008, p. 12) afirma que uma
itor

forma de vida é
a re

[...] um conjunto socialmente partilhado de sistemas de ordenamento e


justificação da conduta nos campos do trabalho, do desejo e da linguagem.
Tais sistemas não são simplesmente resultado de uma imposição coercitiva,
par

mas da aceitação advinda da crença de eles operarem a partir de padrões


desejados de racionalidade, pois toda forma de vida funda-se na partilha
Ed

de um padrão de racionalidade que se encarna em instituições, disposições


de condutas valorativas e hábitos.
ão

Agamben (2010) enfatiza que o elemento político que marca a funda-


ção da modernidade é a separação da zoé da bios. O que, para os gregos,
zoé referia ao lugar próprio da oikía (a casa) e o bios, a pólis (cidade). É a
s

separação das formas de vida que inauguram a política da modernidade. Em


ver

outros termos, o que está em jogo na política de nosso tempo é o embate sobre
formas de vida, isto é, como os dispositivos do poder capturam as formas
de vida. Assim, uma das características fundantes da biopolítica moderna é
que ela separa a zoé das formas da bios, separa cultura de natureza, corpo
biológico de corpo político.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 459

Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica,


é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma libe-
ração da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida
nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bios da zoé. Daí,
também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a
liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto – ‘a vida nua’ – que
indicava a sua submissão. Por trás do longo processo antagonístico que

or
leva ao reconhecimento dos direitos e das liberdades formais está, ainda
uma vez, o corpo do homem sacro com seu duplo soberano, sua vida insa-

od V
crificável e, porém, matável. Tomar consciência dessa aporia não significa

aut
desvalorizar as conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de
uma vez por todas compreender por que, justamente no instante em que
parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido

R
seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar uma ruína
sem precedentes aquela zoé a cuja libertação e felicidade havia dedicado

o
todos seus esforços (AGAMBEN, 2010, p. 17).
aC
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O que Agamben (2010) denomina vida nua é, portanto, a forma de vida a


qual a política se dirige, e que continua presa sob a forma de exceção, isto é,
de alguma coisa que é incluída somente através de uma exclusão. A biopolítica
visã
do totalitarismo moderno, a sociedade de consumo e o hedonismo de massa
dão manutenção à exceção da vida nua. Do contrário de uma política nova,
a cidadania permanecerá aprisionada a sangue e morte na insensatez que a
condena. A vida nua é a vida natural enquanto objeto da relação política da
itor

soberania, quer dizer, a vida abandonada.


a re

‘Nua’, no sintagma ‘vida nua’, corresponde aqui ao termo haplôs, com o


qual a filosofia primeira define o ser puro. O isolamento da esfera do ser
puro, que constitui a realização fundamental da metafísica do Ocidente,
par

não é, de fato, livre de analogias com o isolamento da vida nua no âmbito


de sua política. Àquilo que constitui, de um lado, o homem como animal
Ed

pensante, corresponde minuciosamente, do outro, o que o constitui como


animal político. Em um caso, trata-se de isolar dos multíplices significados
do termo ‘ser’ (que, segundo Aristóteles, ‘se diz de muitos modos’), o ser
puro (ón haplôs); no outro, a aposta em jogo é a separação da vida nua
ão

das multíplices formas de vida concretas. Ser puro, vida nua – o que está
contido nestes dois conceitos, para que tanto a metafísica como a política
ocidental encontrem nestes e somente nestes o seu fundamento e o seu
s

sentido? Qual é o nexo entre estes dois processos constitutivos, nos quais
ver

metafísica e política, isolando o seu elemento próprio, parecem, ao mesmo


tempo, chocar-se com um limite impensável? Visto que, por certo, a vida
nua é tão indeterminada e impenetrável quanto o ser haplôs e, como deste
último, também poderia dizer dela que a razão não pode pensá-la senão
no estupor e no assombramento (AGAMBEN, 2010, p. 176-177).
460

A vida nua, como demonstra Agamben (2010), é a forma de vida que


só incluída na política através da exclusão, isto é, por meio a exceção, neste
sentido vida nua e soberania possuem relações simétricas, no qual tal forma
de vida é inscrita num campo em que os viventes são tornados sobreviventes
e despojados de todo estatuto político. Vida nua é a vida do homo sacer, a
vida matável, porém, insacrificável. Aqui temos demarcado aquilo que Zizek
(2013) denomina como suspensão dialética. Para incluir é preciso excluir e

or
na medida em que se exclui criam-se as condições necessárias para se pensar

od V
quais ações políticas deveriam ser efetivadas para o processo de inclusão.

aut
No campo da vida nua, a vida é destituída de qualquer qualidade humana,
a política desumaniza o sujeito político e seu desejo humano é esvaziado
de significado, o que faz com que qualquer reivindicação política perca sua

R
importância, esvaziando o sentido do direito como garantidor de demandas
coletivas; a vida nua é a vida produzida na exceção, como vida fora da política

o
que está dentro, excluindo-a. O biopoder contemporâneo, demarca Pélbart
aC
(2008) numa leitura de Agamben, reduz a vida à sobrevida biológica.

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Nessas formas mais ou menos móveis e segmentárias de administração
do terror, a soberania consiste no poder de manufaturar um monte de
visã
gente cujo próprio é viver na margem da vida, ou ainda na borda externa
da vida – pessoas para quem viver, é se explicar constantemente com a
morte, em condições em que a própria morte tende cada vez mais a se
itor

tornar algo espectral tanto pela forma que ela é vivida quanto pela forma
que ela é dada. Vida supérflua então, e cujo preço é tão pequeno que essa
a re

vida não tem nenhuma equivalência de mercado, e muito menos humana,


própria; essa espécie de vida cujo valor está fora da economia, e que só
equivale ao tipo de morte que lhe podem infligir (MBEMBE, 2017, p. 55).
par

Acompanhando Agamben (2010) e Mbembe (2018) em seu ensaio sobre a


necropolítica, podemos considerar que a vida nua é a vida capturada pelo estado
Ed

de exceção e as formas de administração do terror, sobre o qual o soberano decide


todas às vezes sem precedentes; é precisamente sobre a vida nua, que, na situação
normal, aparece reunida às múltiplas formas de vida, colocada explicitamente
ão

em questão como fundamento último do poder político. O sujeito último, que


se trata de excetuar e, ao mesmo tempo, de incluir na pólis, é sempre a vida nua.
Para Agamben (2010) o estado de exceção tornado regra como apontou
s

Walter Benjamin (1987) não perdeu nada de sua atualidade. A vida, no estado
ver

de exceção tornado normal, é a vida nua que separa em todos os âmbitos as


formas de vida de sua coesão em uma forma-de-vida. A cisão entre homem
e cidadão sucede, assim, aquela vida nua, portadora última e opaca da sobe-
rania, e as múltiplas formas de vida abstratamente codificadas em pessoas
jurídico-sociais (AGAMBEN, 2015).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 461

O político, por sua vez, desloca a vida nua do lugar que lhe era designado
ou muda a destinação de um lugar; ele faz reconhecer o irreconhecível, dá
visibilidade ao invisível, dá nome ao inominável, dá centro ao marginalizável.
Viera (2013), na contramão da política como biopolítica, compreende
o político como gestão da vida. Faz-se, neste sentido, necessário pensar a
vida nua (a vida abandonada) como parte integrante e imprescindível como
manifestação do político enquanto gestão da vida. Cremos que considerar

or
essa aporia implica levar em consideração as lutas e batalhas que tem se dado

od V
por aspectos materiais como condições básicas de vida e sobrevivência, bem

aut
como considerar as lutas travadas por coletivos e grupos que são despojados
de seus direitos e sofrem constantemente diferentes formas de violência, e
que os processos de gestão da vida e lutas pela sobrevivência já comportam

R
em si significante político.
Há no interior da vida nua (da vida abandonada), como forma de vida, uma

o
potência imanente para manifestação da subjetividade política, uma vez que
aC
aqueles que estão inscritos no campo da vida nua (incluídos através da exceção)
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comportam o lugar de reivindicação da parte na política da qual não fazem parte


e podem nela se inscrever, que, como vimos com Ranciére, a política acontece
quando a parte dos sem parte se inscreve na parte da qual não tem parte.
visã
A vida nua que estaria fora dos dispositivos do poder político, mas que
ao mesmo tempo é capturada por eles e é excluída justamente onde está sua
inclusão, ao contrário, é a forma de vida que se apresenta com o mais inex-
itor

cedível potencial a manifestação da subjetividade política.


a re

Assim, o que propomos é considerar a vida nua, como paradigma daquilo


que genuinamente é considerado como experiência e fenômeno daquilo que
habitualmente não conforma questão política, constitui-se como subjetividade
política de modo peculiar.
Se como afirma Agamben a vida nua no contemporâneo tomou uma
par

proporção inaudita que se coincidiu com a vida de qualquer um, na medida


em que virtualmente somos todos homines sacri, o qualquer (termo usado por
Ed

Agamben e Ranciére) emerge como forma de vida e singularidade enquanto


processo de dessubjetivação e des-identificação, ou seja, sujeitos que se dis-
solvem de suas identidades, que possibilita a produção do político. O vazio
ão

de significação política que reside na vida nua e na singularidade qualquer


invertem-se justamente no seu contrário, emergem como novas subjetividades
s

políticas enquanto produção do político que interpela os dispositivos de poder


ver

de administração da vida e da morte.


462

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par
Ed
s ão
ver
A TELA QUE ME SEDUZ NÃO
PRECISA DE INTERPRETAÇÃO

or
Diana Coeli Paes de Moraes
Bárbara Moraes de Carvalho Leite

od V
aut
Introdução

R
Em tese, as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs
estão a serviço da sociedade contemporânea garantindo a sua eficácia. Mas,

o
por outro lado, o poder das TICs seduz e assujeita o homem imprimindo
aC
novos modos de subjetivação comprometendo a sua humanização e o seu
poder de argumentação.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A preocupação básica desse artigo é com relação ao assujeitamento do


homem contemporâneo pelas NTICs, que vem e lhes rouba a humanidade. Nesse
visã
momento compreende-se que se torna imprescindível a atuação da educação
a fim de (re) configurar essa realidade. O objetivo é analisar a configuração
das relações sociais contemporâneas dessa era da comunicação e informação
itor

e nessa discussão argumentar o endividamento do homem com a sua humani-


a re

dade. Destaca-se e o importante papel da educação para a transformação dessa


realidade num contexto mais humanizado. A metodologia utilizada é a pesquisa
bibliográfica considerando as contribuições de autores como: Bauman, Eco, Fou-
cault, Freire, Castells, Foucault, Lemos, Lévy, Mendonça, Virilio, entre outros.
par

O assujeitamento dos homens às NTICs


Ed

Os avanços tecnológicos pós-segunda guerra mundial (1939 a 1945),


indiscutivelmente, provocaram mudanças impactantes do mercado econômico
ão

e nas relações sociais contemporâneas. A instauração da Internet ocorre na


década de 70 e culmina com a abertura comercial na década de 90 (CAS-
TELLS, 2003). A Sociedade da Informação e Comunicação, expressão utilizada
s

nos últimos anos do século XX, torna-se mais eficiente e eficaz com a utilização
ver

das NTICs.

A evolução das TICs não provocou mudanças apenas nas áreas de tecno-
logia e comunicação, mas em diversas áreas do conhecimento humano.
As TICs foram responsáveis por alterações de conduta, de costumes, de
consumo, no lazer, nas relações entre os indivíduos e nas formas como
eles se comunicam. Novos hábitos sociais foram adquiridos, surgiram
466

novas formas de interação, enfim, uma nova sociedade – A Sociedade da


Informação (PEREIRA; SILVA, 2010, p. 171).

As tecnologias sempre fizeram parte da vida do homem, o que difere


hoje é a sua atuação em distintas áreas trazendo significativo desenvolvi-
mento, amplo a diferentes setores. Essa nova realidade traz consigo, também,
preocupações que abalam a humanidade como a desumanização. A proposta

or
aqui discutida é a vulnerabilidade da humanidade diante à sua materialização
diante da utilização das NTICs.

od V
O homem é um ser eminentemente relacional, que através de suas rela-

aut
ções dialógicas se abre ao outro resgatando a sua humanidade e se recons-
truindo como homem, realiza-se. Perante a alteridade dialógica permite-se

R
o existir do outro. O que só é possível através das relações inter-humanas.
Conforme Lévinas (2000), o ser encontra o seu verdadeiro sentido e na sua

o
relação orientada para o outro, uma relação baseada na responsabilidade ética.
aC
A humanização, tudo o que diz respeito à pessoa. A pessoa com o prota-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


gonismo da relação. Um conceito muito trabalhado pela Política Nacional de
Humanização da atenção e gestão no Sistema Único de Saúde HumanizaSUS
(2004) que é comprometido com as pessoas que interagem está imbricado em
visã
comportamentos solidários visando o bem. Hoje, a fascinação pelas máquinas
onde prefere-se as práticas quantitativas em lugar das qualitativas o sujeito coi-
sifica-se, desumaniza-se. Para liberta-se de sua condição de desumanizado, a
itor

passagem de uma consciência ingênua a uma consciência crítica é fundamental


a re

para adquirir-se o protagonista de sua vida. Através da proposta de Freire de uma


educação libertadora fundamentada no diálogo constrói-se a autonomia do homem
através da construção de sua história. A falta de tempo e a falta de interesse pelo
humano instalam-se práticas no cotidiano que desumanizam a sociedade. Por isso,
a importância da tomada de consciência através do processo educativo baseado
par

no diálogo quando o homem através da alteridade abre-se para o encontro com o


outro, porém não se nega a importância das NTICs (FREIRE, 2008).
Ed

Faço questão de ir me tornando um homem do meu tempo. Como indiví-


duo recuso o computador porque acredito muito na minha mão. Mas como
ão

educador, acho que o computador, o vídeo, tudo isso é muito importante


(FREIRE, 2001, p. 198).
s

Desde os primórdios o homem, esse ser de relação, comunica-se por


ver

diferentes formas e motivos, exprimindo a sua cultura, seus sentimentos,


seus pensamentos, representando o mundo. Durante o seu trajeto, a história
da comunicação carrega elementos que marcam cada época da humanidade.
Como (COUTINHO, 2011, s/p), a arte rupestre, o papiro, a imprensa, o cor-
reio, o telégrafo, o jornal, o rádio, o cinema, entre outros. Depois, os aparelhos
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 467

de telefone e o computador surgem como grandes novidades que evoluem


aceleradamente nas suas formas mais sofisticadas, atraentes e eficientes. Hoje
ter um celular último modelo, uma TV com imagem definida de várias pole-
gadas e um computador ou tablete com internet, que nos fornece milhões de
acessos imediatos transforma a natureza humana ao utilizá-los. A conexão à
internet, a mais nova mídia em massa, sai das instituições e se impõem aos
meios domésticos fazendo parte da vida de uma parcela expressiva da popula-

or
ção. Um conjunto de eletrônicos conectados à internet interligam-se formando

od V
uma única comunidade global através de uma extensa rede interativa que se

aut
comunicam à distância.
O homem contemporâneo massifica-se pelo progresso econômico aliado
ao progresso técnico e científico numa relação difundida indiscriminadamente,

R
que dá importância ao ter e utiliza intensamente mídias eletrônicas diversi-
ficadas (celular, vídeo digital, internet, televisão digital, compact disc, jogos

o
eletrônicos, entre outros). Essas, além de causar dependência, traz novas possi-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

bilidades nas relações humanas e organização social ao influenciar a formação


e regulação da subjetividade humana, mudando comportamentos, muito por
suas aspirações de elevar o status social e incluir-se no mundo cibercultural,
assim, uma nova identidade molda-se na sociedade contemporânea globalizada.
visã
Os relacionamentos passam a ser visto como uma empresa lucrativa onde
a circulação em rede influencia e forma pessoas em meio a um utilitarismo do
mercado neoliberal num cenário macroeconômico provocadas pela velocidade
itor

da economia e das transformações tecnológicas adicionadas. Tudo é capita-


a re

lizado, as pessoas são classificadas pelos títulos e objetos que acumulam. Há


a ampliação e circulação das informações veiculadas aos meios mediáticos
formadoras de subjetividades num processo que não para de acontecer. Ora,
não se vive numa democracia? Observa-se que nessa democracia instalada
par

perde-se a liberdade a partir do momento que ela tem o foco na produtividade


estabelecendo padrões para viver em sociedade que dão importância às subjeti-
Ed

vidades que ficaram restritas à lógica mercadológica (LEMOS;REIS JR.; 2017).


Responsáveis pela saúde citam o desenvolvimento de algumas patolo-
gias frutos dessas transformações mediáticas, como consequências, anorexia,
ão

obesidade, depressão, problema de linguagem, desorientação no espaço real,


agressividade, entre outros.
s

“Eu literalmente não sabia o que fazer comigo”, disse um estudante do


ver

Reino Unido. “Fiquei me coçando como um viciado porque não podia usar
o celular”, contou um americano. “Me senti morto”, desabafou um jovem
da Argentina. Esses são alguns dos relatos entre os mil que foram colhidos
por pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
Eles queriam saber o que sentiam jovens espalhados por dez países, nos
468

cinco continentes, depois de passarem 24 horas longe do computador,


dos smartphones e tablets. As descrições, como se viu, são assombrosas.
E representam exatamente como sofrem os portadores de um transtorno
preocupante que tem avançado pelo mundo: o IAD (Internet Addiction
Disorder), sigla em inglês para distúrbio da dependência em internet. Na
verdade, o que os entrevistados manifestaram são sintomas de abstinên-
cia, no mesmo grau dos apresentados por quem é dependente de drogas

or
ou de jogo, por exemplo, quando privado do objeto de sua compulsão
(TARANTINO, 2016, s/p).

od V
aut
A dependência das pessoas às tecnologias tem, inclusive, uma deno-
minação específica a qual chamado de tecnose: Vejo cada vez mais pessoas

R
depender dos produtos tecnológicos. É o que nós chamamos de tecnose. Elas
simplesmente não conseguem imaginar a vida sem tecnologia, diz o psicólogo

o
americano Larry Rosen (2000) em entrevista. Numa dependência cada vez
maior aos produtos da tecnologia. As pessoas na atualidade não conseguem
aC

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desenvolver atividades corriqueiras sem a ajuda de um equipamento eletrônico.
O tempo real é o tempo mundial. A atual possibilidade da interatividade
instantânea de forma global abre espaço para um tempo sem relação com
visã
o tempo histórico. Existe um cataclismo em relação ao tempo no mundo.
Vive-se o imediatismo e o instantenieismo. Os intervalos de espaço e tempo
vêm sendo eliminados. A história vem sendo presentificada, que se deno-
itor

mina atualidade ou News, ou seja, se faz no presente. Há uma primazia do


presente, aqui agora, sobre o passado e o futuro. Apesar dessa perda, tem-se
a re

a favor a comunicação imediata, instantânea. Transforma-se a comunicação


sem perceber que comunicar é sobreviver, permanecer. A distância e o tempo
de outrora vividos hoje perde o seu romantismo vive-se a intermitência da
efetiva intempestividade. Olha-se sem olhar. O acontecimento é virtual onde
par

existe a forma de estar, simultaneamente, com todos, esse é o momento da


globalização, da instantaneidade (VIRILIO, 2000).
Ed

Diante de tamanha novidade vários estudos surgem pesquisando as novas


formas de relações do homem com o mundo. O homem é um ser eminente-
mente social (conforme Aristóteles) necessitando de seus semelhantes para
ão

satisfazer as suas necessidades material, cultural e afetiva. Socializa-se incor-


porando normas, comportamentos, simbologia da sociedade e à qual pertence.
s

Existem diversas formas de interação social, a mais básica, é aquela que


ver

possui o corpo como elemento essencial, em que os indivíduos encontram-se,


presentes fisicamente, numa relação face a face, presente à vista do outro,
dividindo ao mesmo tempo igual espaço limitado por bits. Entre as pessoas
envolvidas existe a responsabilidade ética de responder ao apelo do outro pela
reciprocidade tornando-o presença para si. Emissor e receptor envolvem-se
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 469

num conjunto de gestos, sorrisos, expressões, etc., que facilitam a compreen-


são da mensagem. Uma relação interacionista, muito mais rica do que a do
contato mediado por dispositivos tecnológicos no qual as comunidades on-line
apresentam algumas limitações quanto a riqueza das experiências, por sua
superficialidade apesar da facilidade oferecida à acessibilidade à rede pela sua
agilidade e diversidade como o de resolver diferentes questões do seu dia a
dia pelo meio mediático. Com a ligação às redes telemáticas e a construção

or
de um novo universo comunicacional, a experiência que o homem tem de

od V
si e do mundo que o rodeia nunca mais será a mesma (MARCELO, 2001).

aut
As relações sociais contemporâneas assumem novo perfil, diferente das
sociedades ditas tradicionais. Numa sociedade na qual as pessoas se mostram
naturalmente consumidas e consumadas pelas aparências parece difícil uma

R
possibilidade distinta. Antes, as relações humanas tinham interesse genuíno pelo
humano. Ainda, com considerável nível de privacidade e intimidade, a união pura

o
era a relação face a face, num encontro recíproco com o outro (PARREIRA, 2010).
aC
As múltiplas e sofisticadas ferramentas tecnológicas aliadas à internet
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transformam a imaginação revolucionando o mundo da comunicação, onde as


pessoas interagem independentes de barreiras geográficas alargando o sistema
comunicacional experimentando outras percepções outros relacionamentos.
visã
Uma comunicação que estimula e solicita frequentemente a imaginação, pois
ela acontece, não entre indivíduos, mas entre imagens.
A internet e os meios eletrônicos tornaram-se paradigmas de comunicação
itor

em massa constituindo a formação de identidades contemporâneas em rede,


a re

vive-se um novo momento histórico. Para Castells (1999), a sociedade em rede


constitui o resultado de um conjunto de transformações incorporados pelo
sistema capitalista que abrange, direta ou indiretamente, todas as camadas
sociais e os ambientes situacionais nas várias regiões do mundo acarretando
uma mudança cultural significativa provocando uma maior integração dos
par

continentes, apropriados pela internet e seus usos. Já a sociedade em rede


por Lévy (1999) denominada por cibercultura, é um espaço de interações
Ed

propiciado pela realidade virtual onde as pessoas experimentam uma nova


relação espaço-tempo formando uma inteligência coletiva. A internet é uma
tecnologia intelectual que produz conhecimento.
ão

O ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio de comunica-


s

ção que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica


ver

não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também


o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres
humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo
“cibercultura”, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais),
de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desen-
volvem juntamente com o crescimento do ciberespaço (LÉVY, 1999, p. 17).
470

Temos um mundo multicultural e comum à humanidade do planeta tor-


nando-o sem fronteiras. Deixa-se de lado a originalidade e adota-se o padrão.
Torna-se necessário a sabedoria de inserir-se e conviver com essas diferenças,
em época que tanto se valoriza a diversidade. Corre-se o risco de perder a
consciência histórica. O que requer sabedoria para filtrar as informações e
não torna-las tão nocivas a ponto de homogeneizar a subjetividade humana
e a cultura perdendo a sua originalidade. Além da ação do poder público de

or
organizar o estado social em meio ao novo mundo do ciberespaço.

od V
aut
Nas discussões da União Europeia sobre a sociedade da informação houve
uma evolução politicamente crucial: são necessárias políticas públicas que
possam ajudar nos a beneficiar das vantagens do progresso tecnológico,

R
assegurando a igualdade de acesso à sociedade da informação e uma dis-
tribuição equitativa do potencial de prosperidade (ASSMANN, 2000).

o
aC
Essa massificação cultural difere-se da cultura clássica. Rompe com

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o passado. Desumaniza-se. Provoca amnésia. Mais, ainda, um processo de
modernização social contemporânea que tem em sua volta a sofisticação tec-
nológica da informação. Ela envolve-se com o caráter econômico, a lógica
visã
do mercado onde tudo tem seu preço. Essa predominância do capital atinge
o globo de forma diferenciada excluindo a maioria da população, como nos
países emergentes. Ou seja, hoje a inclusão digital torna-se mais um limite
itor

a ser alcançado para ser inserido na sociedade do conhecimento. A vivência


tecnológica tornou-se requisito de cidadania. As habilidades tecnológicas
a re

tornam-se requisito de acessibilidade.


Observa-se que a cultura não é simplesmente a captura de hábitos e
costumes prontos e acabados, definidos de forma passiva, e sim, vai além
da receptividade de uma dada riqueza cultural de uma época existe uma (re)
par

construção dessas.
Ed

A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta


um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e
tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo
ão

selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade


de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de infor-
mação provoca a amnésia. Informação demais faz mal (ECO, 2011, s/p.)
s
ver

Reportando-se a Eco (1993) sobre seus conceitos, apocalíticos e inte-


grados, acerca da cultura de massa: numa postura apocalíptica, aqueles que
acreditam que a cultura de massa é a ruína dos altos valores, a anticultura,
assim como, através dos conceitos integrados, aqueles que acreditam que a
cultura de massa é resultado da integração democrática e cooperação entre
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 471

todas as camadas sociais. Mas, no entanto, o alargamento da área cultural


prove de diferentes ambientes culturais de forma padronizados e estereoti-
pados interligados em rede tornando os indivíduos incapazes de pensar de
forma crítica e autônoma.
Mas como resistir aos apelos sucessivos da mídia eletrônica? Nada
impede que,

or
O homem de cultura em determinadas horas ouve Bach, em outros momen-

od V
tos sente-se propenso a ligar o rádio para ritmar sua atividade através de
uma música de uso para ser consumida a nível artificial (ECO, 1993, p. 59).

aut
Uma cultura típica de uma democracia popular ao nível de todos os

R
cidadãos na qual interagem com direitos iguais e uma cultura que provoca
subversões pelos seus fins lucrativos e sem fins educativos que não se vincula

o
a valores culturais.
aC
Esta cultura da sociedade em rede considera a impotência do homem
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e o desumaniza, rouba-lhe a delicadeza, tira-lhe o senso crítico, estreita as


relações humanas submetendo-o a violência. Consequência da sociedade
contemporânea de consumo superficial que experimenta usualmente a cultura
visã
mediática e eletrônica sem restrição. Que não percebe a humanidade do outro.
Um mundo virtual que causa o empobrecimento das relações humanas
caracterizando uma ação da violência que oferece o adoecimento do indivíduo
itor

pela qualidade humana da sua relação com o eletrônico, segundo Adorno,


a re

causado pela frieza a tudo que penetra, a relação com a máquina que o assu-
jeita, que lhe dá o acesso ao mundo socialmente aceitável e consumido pelos
indivíduos sociais pela necessidade e interesse de vir a pertencer, capturando,
assim, a sua delicadeza. Pois a delicadeza entre seres humanos nada mais
é do que a consciência da possibilidade de relações isentas de interesse
par

(ADORNO, 1991: 34, apud MENDONÇA, 2003, p. 123)


Ed

Mais da metade da população mundial já conta com acesso à internet,


aponta o último relatório Digital in 2018, divulgado pelos serviços online
Hootsuite e We Are Social. De acordo com as duas companhias, somos
ão

mais de 4 bilhões de pessoas conectadas à rede, enquanto as estimativas


mais recentes apontam para uma população global de 7,6 bilhões de seres
humanos (CIRIACO, 2018,s/p).
s
ver

Sobre os aspectos culturais e históricos que constituem uma dada comuni-


dade observa-se de forma negativa a perca de suas raízes, características inatas
pela própria imposição da cultura global. Em menor escala, a dependência
da grande massa populacional desprovida de bens materiais submetidos ao
ditame da mídia eletrônica.
472

O consumismo estimulado pelos países desenvolvidos aguça desejos


legitimando-os como forma de felicidade e auto projeção. A vida é vivida
através de desejos individuais que se esvaem de compromissos éticos e de
respeito ao outrem. O que importa
é o eu, como eu me projeto perante o meio o qual pertenço.
De forma positiva observa-se, também, um maior conhecimento e interação
de diferentes culturas:

or
od V
Sob o aspecto de identidades biculturais, Arnett (2002) situa o fato de
que parte da identidade, especialmente de adolescentes, é enraizada na

aut
cultura local e parte é influenciada pela cultura global. Por cultura global,
entende-se aquela liderada por países ocidentais desenvolvidos que indu-

R
zem valores orientados por individualismo, consumismo e liberdade de
mercado, em consonância com o que preconizam os adeptos da teoria da

o
indústria cultural, mas também a democracia, direitos humanos e liber-
dades individuais. Ainda segundo Arnett (2002), uma certa confusão de
aC

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identidades está crescendo entre jovens de culturas não ocidentais devido
à globalização.(ARNETT ,2002, s/p., apud SILVEIRA, 2004,s/p.)

Dentre os problemas apresentados pela rede mundial cita-se a falta de


visã
organização e disciplina na sua utilização, principalmente o controle de edu-
cadores de crianças e jovens a fim de não comprometer as gerações futuras são
algumas medidas devem ser tomadas para promover o equilíbrio individual
itor

e social sadio e o desenvolvimento tecnológico. Que muitas vezes acessam


a re

conteúdos pouco confiáveis de alguns sites. Conforme Lévy entrevistado por


Moreira (2016):

Precisamos de uma espécie de alfabetização digital básica, para Estar


apto a selecionar as fontes de informação, a ser capaz de analisar dados,
par

a ser capaz de interagir em grandes comunidades online. São coisas rela-


tivamente difíceis, e são habilidades que deveriam ser aprendidas ainda
Ed

na escola. (MOREIRA, 2016, s/p).

A mídia eletrônica torna-se perigosa para o ignorante, pois não filtra as


ão

informações. Seria necessário criar uma teoria de filtragem, uma disciplina


prática (ECO, 2011, s/p), uma teoria e uma ferramenta nas universidades
funcionando para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar!
s
ver

As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só
falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a huma-
nidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo
direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis – ECO ao
jornal La Stampa (s/d).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 473

Vive-se, hoje, uma das mais profundas mudanças de todos os momentos


históricos. Que provoca o exercício da (re) constituição da identidade política,
social, ética, cultural, econômica, científica da sociedade contemporânea.
Reflexo das relações globais que permeiam a vida cotidiana experimentada
por seus indivíduos numa intensa interatividade homem-máquina. Uma relação
que tenta unificar parte da diversidade, construída culturalmente e historica-
mente, pelo ditame mercadológico com fins lucrativos formando uma massa

or
de consumidores genéricos.

od V
Tomando emprestada as palavras de Mendonça (2003) no seu artigo sobre

aut
a Televisão: da profusão de imagens à cegueira ética, a mídia eletrônica tem
se tornado o aporte da sociedade contemporânea, um campo privilegiado
para a profusão da violência banalizando a vida humana a medida em que:

R
Impede a reflexão dos sujeitos; provoca a nossa cegueira ética; afasta

o
o homem do real em favor de uma vida de substituição daquele pelo
aC
imaginário da mídia eletrônica; aprofunda o vazio existencial do homem
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contemporâneo; profunda os estados de impessoalidade e de incomuni-


cabilidade (MENDONÇA; 2003; p. 188).
visã
O pertencimento à sociedade atual é preciso o homem se abandonar e
desumanizar-se prevalecendo o desinteresse pelo humano do outro que se
coisifica pela conexão on line. Assim, resume-se a vida que sucumbe pela
itor

aparência provocada pela imagem que se desperta no contato com o outro.


a re

Um modo historicamente popular da época.


Em Virilio (1984) é demonstrada a impotência dos corpos e mentes
humanas diante da máquina-de-guerra, ou seja, como o aparato tecnológico
que circula e envolve o instante contemporâneo. O caráter tecnicista do mundo
atual provoca a destruição humana à sedução da máquina tornando os corpos
par

vulneráveis e impotentes ao atendimento às exigências do capital. Há o empo-


brecimento da sociedade civil massificada pela tecnologia. A tecnologia causa
Ed

a destruição humana agindo a serviço do consumo massificado causando a


inércia dos corpos, como se as sociedades tivessem perdido sua capacidade
de autor regulação. Produz uma determinada alienação do real que deforma
ão

nosso imaginário. Assim, nesse panorama da contemporaneidade, é exigida


tal velocidade ao corpo provocando a barbárie da exploração dos corpos
s

pela riqueza do capital. A violência manifestada aliena porque realmente não


ver

se sabe o que fazer, leva a cegueira pela ausência de reflexão. O capital já


colonizou todos os espaços do globo.
A discussão aqui não é o uso da tecnologia, mas a utilização que ela faz
de nós. Com a internet o espaço e o tempo das práticas sociais são substi-
tuídos pela ausência do encontro. As relações tornam-se instantâneas e logo
474

desaparecem. O tempo para o conhecimento é substituído pela velocidade da


informação que traz o prejuízo de não reverter-se na formação humana. Uma
velocidade que se recusa a pensar.
O movimento da máquina nos oferece uma falsa liberdade o que na ver-
dade nos tira a liberdade e nos impõe um espaço restrito e um tempo operado
pela tecnologia. Experimenta-se um espaço-tempo desumanizado. A fascina-
ção dos corpos pelas janelas eletrônicas provoca a inércia e o sedentarismo.

or
A satisfação com o conforto e a segurança oferecida pelo progresso técnico

od V
traz a insensibilidade de uma consciência militarizada.

aut
Percebe-se que numa sociedade que se submete à sofisticação tecnoló-
gica é massificada, vive a mundialização do capital. Não resta espaço-tempo
para reflexão e interpretação. O conhecimento torna-se superficial, os seres

R
humanos alienam-se, privando-se da sua mobilidade e, consequentemente da
autonomia. As relações se coisificam. O homem, que antes se deslocava, hoje,

o
é inerte, vive o instantaneismo do tempo. Não precisa deslocar-se. A chegada
aC
suplanta a partida: Tudo chega sem precisar partir (VIRILIO, 1993).

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A passagem da sociedade moderna do estado sólido para a líquida, ou
seja, com vínculos obsoletos que não garante permanência. É uma sociedade
líquida formada por relações descartáveis que não assume e nem exige com-
visã
promissos prefere a linguagem da conectividade que desaparece quando não
satisfazem mais. Por isso, teme-se que, pelo pouco esforço da proximidade
virtual, algumas habilidades humanas caíam em desuso, já que a alteridade
itor

na sociedade líquida praticamente não existe, todo o sentimento é uma árdua


a re

conquista (BAUMAN, 2004).


Conforme Virilio (1996), vive-se uma época do totalitarismo global em
que o imperialismo multimidiático detêm o total controle sobre as pessoas
impõe comportamentos que resultam na igualdade diante do que é imposto.
A opressão mediática é devido a sua capacidade de comunicar de forma
par

ultra veloz no mundo, instantaneamente. Vive-se uma ruptura na comuni-


Ed

cação, que desaparece com o ser perceptivo ativo, levando-o a solidão sem
precedentes. A proximidade com a máquina irradia solidão. Atualmente,
o verdadeiro problema da imprensa e da televisão não é mais tanto o que
ão

elas são capazes de mostrar, mas o que ainda podem apagar, esconder, e que
constitui, até aqui, o essencial de sua força (VIRILIO, 1996, p. 17).
Os meios eletrônicos de comunicação capturam a massa social que se
s

deixa mediatizar. Não desempenham mais o seu papel de conscientizar. A


ver

pressão econômica reina na aldeia global reduzindo os homens, ameaçados


de desaparecimento próximo, não o homem fisicamente, mas o homem como
figura do saber (FOCAULT ,1999).
Um montante de informações e serviços circula e cresce dia a dia numa
velocidade exponencial. A quantidade de informação ao usuário deve confundi-lo
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 475

tornando-o mais vulnerável a persuasão e ao controle pessoal enrijecendo a capa-


cidade de reação humana e, assim, maximiza o lucro pelo consumo exagerado
do que a rede oferta num ditame que soa quase como regulação (VIRILO, 1996).
A internet como uma mídia que oferece a interatividade passiva tem a facili-
dade de manipular a opinião pública impactando em diversos setores da sociedade.

A existência de uma categoria de operadores culturais que produzem para

or
as massas, usando na realidade as massas para fins de lucro, ao invés de
oferecer-lhes reais ocasiões de experiência crítica. (ECO, 1993, p. 19).

od V
aut
A vida do indivíduo, que antes, era preocupação do indivíduo, família,
comunidade na qual era engajada, hoje, a ciência e tecnologia cuidam do corpo

R
paciente controlado pelo desenvolvimento tecnológico que invade e coloniza
esse corpo. Interferindo no seu mundo interno tornando-o apenas uma estrutura,

o
uma embalagem. Há o investimento dos corpos, com o objetivo de adestrá-los,
torná-los úteis e dóceis (LEMOS, 2007, p. 24). Uma prática disciplinar que
aC
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violenta o humano tornando-o desumano, novas exigências do capitalismo.


As NTICs instalam-se na grande aldeia global com poder surreal que
impõe saberes. Adere-se ou se está de fora. Conforme Foucault (1999), o poder
visã
não é estático, não meramente visível, o poder é exercido em qualquer estru-
tura e relação de uma sociedade, nas micros e nas macro relações. Um poder
constrói discursos de verdade como controle e disciplinarização do corpo.
itor

As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele


a re

que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família.
Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conse-
guinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, micro lutas de
algum modo. Se é verdade que estas pequenas relações de poder são
com frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes
par

de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer


que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de
Ed

Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações


de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo,
o serviço militar, senão houvesse em torno de cada indivíduo todo um
ão

feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu pro-
fessor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal e tal ideia?
(FOUCAULT, 2003, p. 231).
s
ver

Foucault (2004), cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política
geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar
como verdadeiros. Percebe-se que as NTICs agem como uma forma de poder
de maneira muito produtiva causando o assujeitamento do outro, impondo
verdades, construindo subjetivações, produzindo corpos dóceis.
476

A mundialização dessa sociedade mediatizada eletronicamente, que


forma e informa, que não permite o diálogo face a face entre homens aumenta
a violência instalada pela sua passividade como ordenamento para a homo-
geneização do homem. O homem possui a liberdade de construir a sua pró-
pria existência e segue se amoldando à sua realidade. Esse agir humano,
caracterizado tanto pelo aspecto objetivo como o subjetivo, deve à ética o
controle e organização do excesso de poder adquirido pela tecnologia. Na

or
contemporaneidade a ética ganha outra dimensão devido ao progresso da

od V
ciência. O homem tem o dever da preservação da humanidade autêntica que

aut
respeita a sua diversidade.

Cada época da história produz um homem radicalmente estranho ao

R
homem de épocas anteriores, apenas por efeito das condições de vida
em que ela o coloca, e da evolução coletiva da Humanidade. (MOU-

o
NIER, 1967, p. 17).
aC

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O presente é uma preparação para o futuro e merece uma obrigação
prática do presente de proteger toda a vulnerabilidade que se sente ameaçada.
Antes, a ética orientava-se em função do presente. Hoje, o seu alcance é bem
visã
maior. A ética da responsabilidade diz respeito ao cuidar dos nossos descen-
dentes diante das novidades trazidas pela vida virtual. Trata-se de assumir a
responsabilidade pelo futuro do homem (JONAS, 2006, p. 353).
itor

Educação é um tema inerente à vida humana, na medida em que se inte-


a re

gram ao trabalho do ensinar e aprender, o socializar e humanizar. Dentro de


uma sociedade voltada ao progresso tecnológico necessário se faz inserir no
processo educativo não só o desenvolvimento intelectual e habilidades volta-
das para o trabalho produtivo, mas deve voltar-se, também, para a formação
do homem como humano e protagonista no mundo.
par

Ao moldar-se a sociedade dita artificial, que já está acontecendo, a preo-


cupação com o universo infinito de sedução que escapa ao controle do homem.
Ed

Ai a importância da índole epistemológica e da ética no debate para a for-


mação dessa sociedade híbrida que emerge e constitui novos conceitos desse
ão

mundo sem fronteiras que dialogam com toda a experiência da humanidade,


pois nada é desprezível.
s

Considerações finais
ver

É inegável que os avanços tecnológicos provocam mudanças signifi-


cativas no desenvolvimento do mundo contemporâneo. Porém, a preocu-
pação que se traz aqui é com o assujeitamento do homem às NTICs, que
lhes rouba a humanidade.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 477

As NTICs é uma forma de poder, uma exigência do capitalismo desen-


freado. Como Foucault, o poder é capaz de gerar discursos produzindo saberes
como verdade. A sociedade é atravessada por diferentes relações de poder e,
por conseguinte, a investida das novas tecnologias produz em sua prática o
controle dos corpos e subjetividades,
O isolamento do homem provocado pelo mundo cibercultural impede a
abertura do homem ao diálogo numa relação face a face, uma oportunidade

or
para que o homem se constitua como pessoa num encontro com o humano

od V
do outro. O não encontro, o não diálogo desumaniza-os.

aut
As ações mais humanizadas favorecem o protagonismo do sujeito na
oportunidade de ações solidárias e comprometidas com o outro. A privação
ao diálogo provoca a violência. Existem diversas formas de violência e a

R
privação diálogo é uma delas.
As múltiplas e sofisticadas tecnologias seduzem o homem ao oferecer

o
uma falsa liberdade e acesso a um mundo nunca antes possível. Uma facili-
aC
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dade que seduz a todos.


A educação permanente como instituição do conhecimento ao ser humano
tem ampla possibilidade interferência no debate pela humanização. A liberdade
é um fundamento da democracia
visã
A tomada de consciência da condição de seres desumanizados é condição
para partir-se na busca da humanização. Nesse sentido, a exemplo da educação
libertadora de Freire, o homem torna-se o sujeito do próprio processo educa-
itor

tivo e da sua própria história. É quando o homem transforma a sua consciência


a re

ingênua em consciência crítica e inicia um processo de humanização.


par
Ed
s ão
ver
478

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a re

1993.
par
Ed
s ão
ver
A MICROPOLÍTICA E SUA RELAÇÃO
COM O DESEJO EM FÉLIX GUATTARI

or
Thiago Tenório Pereira
Cristina Simone de Sousa Reis

od V
Bárbara Moraes de Carvalho Leite

aut
Pamella Augusta Passos Ventura Pina

R
Introdução

o
A vida social possui um emaranhado complexo de relações que nos
aC
enlaçam em campos de práticas que constituem a sociedade. A cada relação
de espaço, de saberes, de mídia, de sujeitos, há uma relação de poder. Este
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não se constitui como um poder central que submete o social as suas rédeas,
mas ele está entre os indivíduos, nas práticas cotidianas de cada coletividade.
visã
O poder, esse que intervém materialmente, [...] se situa ao nível do próprio
corpo social, e não acima dele, penetrante na vida cotidiana e por isso
itor

podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.32


a re

Essas formas que o poder toma para se imiscuir a própria realidade são da
ordem do político porque tudo provém de uma relação de força e, portanto, de
uma relação de poder. Podemos considerar que “tudo é político, mas toda polí-
par

tica é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica.”33 Desta forma, quando


tratamos de uma realidade, estamos tratando concomitantemente, de força e de
Ed

forma, elas estão sempre juntas. A micropolítica trata do campo das forças, do
que é invisível, enquanto a macropolítica trata das formas, do que é visível. O
desenvolvimento deste capítulo aborda a noção de micropolítica discutida na
ão

obra de Félix Guattari. A micropolítica constitui-se como uma análise dessas


relações de forças, que nos permite analisar cada saber, cada corpo, cada objeto
s

sob uma perspectiva de produção de realidade a partir das relações.


ver

Diante das entrelinhas da realidade, compostas por relações de poder, Felix


Guattari vai propor uma micropolítica, que adentra ao campo político e analise
cada ação, cada ato de produção de realidade. Esses atos nunca são isolados,
não se concebem apenas como formas, mas sempre estão contidos em uma

32 MACHADO, Roberto. Introdução. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Organização, Introdução e Revisão
Técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. VII a XXIII.
33 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, p. 514, 2010.
482

relação de poder. Assim, percebe-se que a micropolítica é um modo de recortar


a realidade a partir da sua capacidade de produzir relações, afetos, desejos.
Propõe-se um segundo recorte para delimitarmos o objeto deste capítulo,
a relação da micropolítica com o desejo. Este, por muito tempo, influenciado
pela metafísica clássica, concebe o desejo como falta, como uma constituição
interna incompleta, inacabada e que precisa ser preenchida por elementos
exteriores. Diversamente ao exposto, Guattari implementa um giro compreen-

or
sivo do desejo, abordando-o como produção, como sistemas maquínicos que

od V
produzem realidades de conteúdo estéticos, sociais, teóricos.

aut
Forjei, com Gilles Deleuze, uma expressão que pode parecer paradoxal,

R
mas que nos foi muito útil em nossa reflexão: é o conceito de “maquina
desejante”. É a ideia de que a desejo corresponde a um certo tipo de
produção e que de não é absolutamente algo de indiferenciado. O desejo

o
não e nem urna pulsão orgânica, nem algo que estaria sendo trabalhado,
aC
por exemplo, pelo segundo princípio da termodinâmica, sendo arrastado

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de maneira inexorável por uma espécie de pulsão de morte. O desejo, ao
contrário, teria infinitas possibilidades de montagem.34
visã
Esta nova forma de conceber o desejo possibilitou uma perspectiva
mais ampla para compreender os processos de subjetivação que alimentam
a produção de desejo. Antes de prosseguirmos com o raciocínio, a noção de
itor

subjetividade precisa ser melhor compreendida, assim:


a re

Seria conveniente definir de outro modo a noção de subjetividade, renun-


ciando totalmente à ideia de que a sociedade, os fenômenos de expres-
são social são a resultante de um simples aglomerado, de uma simples
somatória de subjetividades individuais. Penso, ao contrário, que é a
par

subjetividade individual que resulta de um entrecruzamento de deter-


minações coletivas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas,
Ed

tecnológicas, de mídia, etc.35

Com esta noção pontuada, a problematização da subjetividade e, conse-


ão

quentemente, do desejo possuem um caráter coletivo. Desta forma, ultrapas-


samos a concepção clássica de que a subjetividade e o desejo são da ordem
s

individual, para uma perspectiva que vislumbra uma existência coletiva de


ver

ambos. O desejo não se limita aos espaços individuais ou familiares, passando


a ser um construto social, que não é espontâneo, mas regidos por diversos
agenciamentos que nos transpassam cotidianamente. Félix Guattari afirma que:

34 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
35 Ibid, p. 34.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 483

Todas essas questões da economia coletiva do desejo deixam de parecer


utópicas a partir do momento em que não mais consideramos a produção de
subjetividade como sendo apenas um caso de superestrutura, dependente
das estruturas pesadas de produção das relações sociais.36

O desejo é da ordem da micropolítica, produz-se através de elementos


semióticos do social, científico, midiático. Neste último, temos uma expansão

or
com a potencialização da ordem capitalística. Este sistema tem grande influência

od V
na produção de subjetividade dos indivíduos, conforme aponta Félix Guattari:

aut
Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que nos chega
pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é

R
apenas uma questão de ideia, [...] trata-se de sistemas de conexão direta entre
as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as

o
instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo.37
aC
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Esse processo influencia a constituição de desejo, posto que este está


atrelado a práxis social. Assim, “vai incidir nos pontos de singularidade, em
processos de singularização que são as próprias raízes produtoras da subje-
visã
tividade em sua pluralidade.”38 Essa relação, onde desejo e subjetividade se
encontram, no campo da micropolítica que será objeto deste trabalho. Precisa-
-se compreender as facetas desta microrealidade, das diversas micropolíticas.
itor
a re

Micropolítica em Félix Guattari

No decorrer dos processos históricos, houve a permanente tendência de


analisar o tecido social através de um olhar macro a respeito dos elementos
estruturais que compõe a cotidianidade. Sinal dessa tendência é a concentração
par

dos discursos sobre o poder na esfera estatal, como se o Estado e seus agentes
Ed

possuíssem o monopólio do domínio e exercício deste poder. A predominância


desta forma de analisar as relações de poder foi, sub-repticiamente, tornada
ultrapassada frente às constantes invertidas do fascismo nos diversos âmbitos
ão

da sociedade. Dessa forma, tornou-se imperioso aprofundar o ato analítico


a instâncias mais rasas das relações sociais, e assim “desmitificar o poder,
mostrando seu enraizamento e penetração no cotidiano da vida”.39 O poder
s

toma diversas formas para se movimentar no tecido social, misturando-se a


ver

própria realidade e condicionando-a as mais variadas linhas. Tais fatos são da


36 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
37 Ibid, p. 27.
38 Ibid, p. 28.
39 RESENDE, G.; RODRIGUES, L. Micropolítica. Revista de Estudos Sociais. Campo Grande, v. 12, p. 23-32, 2011
484

ordem do político porque produzem uma relação de força, o que configura,


por conseguinte, uma relação de poder.
Estas relações de poder estão embrenhadas por todos os lados do tecido
social, configurando verdadeiros pilares da vida nas suas mais simples e banais
facetas. Por isso, não há dúvidas em afirmar que “tudo é político, mas toda política
é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica”.40 A macropolítica se ancora
nas macroestruturas sociais que sustentam todo o aparato burocrático de uma

or
sociedade capitalística. Concerne, sobretudo, a uma análise lógica que protago-
niza elementos rígidos que constituem orgânica e funcionalmente a teia social.

od V
Contrapondo-se a esta lógica – mas, não a excluindo, temos a micropolítica como

aut
conceito-ferramenta que desvela as mais óbvias relações sociais, na medida em
que, ousa analisar a realidade sob outra perspectiva. Disto resulta a particular

R
atenção dedicada ao pequeno, raso, cotidiano que desnuda todo o processo de
subjetivação nas relações de poder.41 O macro e o micro são dois modos de recortar

o
a realidade, “as duas efetivamente se distinguem mas são inseparáveis, embara-
aC
lhadas uma com a outra, uma na outra”.42 Quando tratamos de uma realidade, já

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tratamos de força e de forma ao mesmo tempo, elas estão sempre juntas.

A micropolítica trata do campo das forças, do que é invisível, enquanto a


visã
macropolítica trata das formas, do que é visível e é justamente pelo fato de
que esses modos são inseparáveis, que nos interessa a análise micropolítica.43

A micropolítica é âmbito dessas relações de forças, onde a intervenção do


itor

poder se dá ao nível do corpo, dos afetos, da forma potente ou impotente que


a re

saímos de cada relação. Ela situa em cada espaço as forças com que este espaço se
agencia, o que significa o mesmo que analisar os afetos que são por ele disparados.

A partir da ideia de que tudo é engendrado em uma relação de força, Felix


Guattari vai propor uma micropolítica, que devolve ao campo político
par

cada ação, cada ato de produção de realidade. Esses atos nunca são fatos
isolados, não são apenas formas, mas sempre estão engendrados em uma
Ed

relação de poder, em uma relação de força.44

Por isso, evidencia-se na micropolítica um modo de recortar a realidade


ão

a partir do campo das forças, na medida em que essas também produzem


realidades, afetos, desejos. A micropolítica nos permite analisar cada saber,
s

cada corpo, cada endereço, cada objeto sob uma perspectiva de produção de
ver

40 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
41 RESENDE, G.; RODRIGUES, L. Micropolítica. Revista de Estudos Sociais. Campo Grande, v. 12, p. 23-32, 2011
42 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
43 GUIZZO, Iazanna. Micropolíticas Urbanas. Revista de Arquitetura e Urbanismo (UFF). Rio de Janeiro, v. 10,
n. 23, 2013.
44 Ibid, p. 8.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 485

realidade a partir das relações de poder. O poder é um marcador central para


a compreensão da micropolítica na obra de Félix Guattari. Este conceito pos-
sibilita compreender o elemento motriz que agrega ou desagrega elementos
constantes na teia social diante na relação de forças.

“toda relação de força é uma relação de poder [...] é uma ação sobre a ação,
sobre as ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes, é um conjunto

or
de ações sobre ações possíveis [...] induzir, desviar, tornar fácil ou difícil,
ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável.”45

od V
aut
A cada relação de espaço, de saberes, de mídia, de sujeitos, há uma
relação de poder. Este, então, não se configura como um poder central que

R
submete os povos, mas ele está entre os povos, nas práticas cotidianas de cada
coletividade. Está em cada embate de forças, nos aumentos e nos constrangi-

o
mentos de potência, nas inúmeras relações de cores por todos os lados.46 “O
aC
poder esse que intervém materialmente [...] se situa ao nível do próprio corpo
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social, e não acima dele, penetrante na vida cotidiana e por isso podendo ser
caracterizado como micropoder ou sub-poder.”47 Esta lógica desloca a análise
para o nível das forças, mostra-nos que ações de poder podem ser encontradas
visã
todas as vezes que uma força se movimenta em uma teia social. O poder não
está apenas nas organizações estatais ou em grandes corporações, ou seja, em
macroestruturas, mas ele atua também na esfera micro:
itor

“com a condição de não entendermos ‘micro’ como uma simples miniatu-


a re

rização das formas visíveis ou enunciáveis, mas como um outro domínio,


um novo tipo de relações, uma dimensão de pensamento irredutível ao
saber: ligações móveis e não-localizáveis”48
par

Por isso, a microfísica (foucaultiana) e a micropolítica partem da análise


dessas relações de forças, onde a intervenção do poder se dá ao nível do corpo,
Ed

dos afetos, da forma potente ou impotente que construímos em cada relação. Ela
analisa em cada espaço da realidade as linhas transversais de poder que se emba-
tem e se agregam formando subjetividades, contornando processos históricos.
ão

45 SILVA, Roger A. L. Micro-história e micro-política: a novidade da filosofia de deleuze e guattari. Caderno


de resumos & 4º. SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA: TEMPO PRESENTE &
s

USOS DO PASSADO. Anais [...], Ouro Preto: EdUFOP, 2010.


ver

46 GUIZZO, Iazanna. Micropolíticas Urbanas. Revista de Arquitetura e Urbanismo (UFF). Rio de Janeiro, v. 10,
n. 23, 2013.
47 MACHADO, Roberto. Introdução. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Organização, Introdução e Revisão
Técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. págs.VII a XXIII.
48 SILVA, Roger A. L. Micro-história e micro-política: a novidade da filosofia de deleuze e guattari. Caderno
de resumos & 4º. SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA: TEMPO PRESENTE &
USOS DO PASSADO. Anais [...], Ouro Preto: EdUFOP, 2010.
486

Micropolítica e subjetividade

Os processos de subjetivação acontecem no campo da micropolítica, nos


entrelaçamentos intermináveis que tecem a cotidianidade. Por isso, constitui
como elemento importante a compreensão da subjetividade a partir de uma
análise pormenorizado da esfera social. A subjetividade “não se situa no plano

or
individual, seu campo é de todos os processos de produção social e material”49.
Aqui não usamos esse termo para definir os sujeitos a partir de algo interior a

od V
ele como um plano individual, mas, como disse Felix Guattari, os indivíduos

aut
são como terminais dessa subjetividade exterior, dessas relações de forças,
como toda a produção social e material.50

R
Compreendendo que a subjetividade é forjada na relação de forças, pode-
-se concluir que esta não pode ser imutável, não pode possuir uma essência ou

o
uma identidade interior, mas deve sim ser compreendida como um processo
aC
que se forma a cada relação com a exterioridade, com um plano multifacetado

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de forças externas. Os sujeitos são produzidos a cada instante por estas rela-
ções de forças, não possuindo de nenhuma maneira uma essência imutável,
havendo, contrariamente, forças que nunca cessam de incidir e muitas vezes
visã
de reincidir. Por isso, Guattari discorre:

Penso, ao contrário, que é a subjetividade individual que resulta de um


itor

entrecruzamento de determinações coletivas das mais variadas espécies,


a re

não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia, etc.”51

A formação da subjetividade movimenta-se na plêiade de linhas que


atravessam o sujeito, moldando-o aos ditames da produção de outras subjetivi-
par

dades hegemônicas que não cessam de subverter os desejos para adequarem-se


a um padrão normatizador social.
Ed

Seria conveniente definir de outro modo a noção de subjetividade, renun-


ciando totalmente à ideia de que a sociedade, os fenômenos de expressão
ão

social são a resultante de um simples aglomerado, de uma simples soma-


tória de subjetividades individuais.52
s

49 GUATARRI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo. Editora 34. Tradução: Ana Lúcia de
ver

Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. 2006.


50 GUIZZO, Iazanna. Micropolíticas Urbanas. Revista de Arquitetura e Urbanismo (UFF). Rio de Janeiro, v. 10,
n. 23, 2013.
51 GUATARRI, Felix (2006). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo. Editora 34. Tradução: Ana
Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão).
52 GUATARRI, Felix (2006). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo. Editora 34. tradução Ana
Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 487

Pelas questões postas, o que Guattari compreende é que não se pode


usar o termo subjetividade para definir sujeitos a partir de algo interior a
ele como um plano individual, mas compreender que os sujeitos acabam
se tornando terminais de diversas subjetividades exteriores, de inúmeras e
intermináveis relações de força, configurando-se produto de um circuito
material e social.

or
Os corpos, como os endereços, são forças em relação com outras forças que

od V
irão afetar-se e modificar-se a cada relação. Os jeitos de ser, os espaços,

aut
a mídia, a linguagem, tudo isso são formas, mas são formas associadas
a forças que estão em relações de poder; são os terminais de Guattari.53

R
Os sujeitos e os espaços são terminais e estão sempre sendo afetados
e afetando outras forças, estão sempre em movimento, se formando (refor-

o
mando-se) nessas relações, aumentando ou diminuindo seu poder. Guizzo
aC
exemplifica essa discussão da seguinte forma:
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Não há um sujeito, um José, mas um processo José que será interferido


incessantemente por inúmeras forças, inclusive os inúmeros endereços que
visã
ele irá, com a relação da sua própria força, também produzir.54

Dessa forma, o que deve ser compreendido é que não há um sujeito


itor

fixo, como não há um espaço fixo, subjetividades fechadas em uma essência.


a re

Isso não significa, no entanto, que não possam ser produzidos de forma fixa.
Nesse ponto, é preciso chamar a atenção para o entendimento de que a forma
fixa também é uma produção e que, portanto, tudo que é produzido pode ser
de outra forma, ou seja, toda forma, mesmo fixa, é passível de mudança.55
Subjetividade é elemento da ordem da micropolítica porque produz relações
par

sociais, afetando permanentemente o campo social. São essas relações que


os fazem acontecimentos políticos, porque os fazem produzir as formas com
Ed

que nos relacionamos no cotidiano raso da vida.


Quando tratamos de uma realidade, já tratamos de força e de forma ao
ão

mesmo tempo, elas estão sempre juntas. A subjetividade está aí, dispersa, flu-
tuante, metamorfoseando-se entre as relações de poder, esperando ser captada
por uma análise micropolítica. Guattari nos apresenta em sua teoria uma ideia
s

de individuação, ou melhor, de processo de subjetivação individual, onde nos


ver

deparamos com a concepção de subjetividade individual. É nesse sentido que

53 GUIZZO, Iazanna. Micropolíticas Urbanas. Revista de Arquitetura e Urbanismo (UFF). Rio de Janeiro, v. 10,
n. 23, 2013.
54 Ibid, p. 9.
55 Ibid, p. 7.
488

devemos compreender o processo de subjetivação como uma apreensão56


individual, ou mais adequadamente, um processamento individual de uma
multiplicidade de agenciamentos que produzem a subjetividade. A concepção
trabalhada por Guattari de indivíduo acaba por tornar este conceito sinônimo
de entrecruzamento, ou melhor, de terminal por onde passam, e se fazem
passar, os inumeráveis entrecruzamentos coletivos de enunciação.

or
A subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos

od V
os processos de produção social e material. O que se poderia dizer é que

aut
um indivíduo sempre existe, mas como terminal.57

No entanto, não podemos incorrer numa leitura ingênua sobre a noção de

R
subjetividade do autor, considerando-a, por exemplo, como algo que comporte
de tudo um pouco, numa espécie de arcabouços de elementos gerais.58 Mais

o
que isso, a subjetividade é produção, veja:
aC

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O processo ou processos de subjetivação, de produção da subjetividade indi-
vidual, não estão apenas centrados na individuação. Eles são totalmente
centrados na subjetividade individual e produzem essa subjetividade ao passar
visã
por ela, como quando as informações dos computadores de uma rede passam
pelo terminal, pela central. A ideia de individuo é, para Guattari, associada a
uma produção em massa promovido pelos sistemas capitalísticos, que buscam
produzir a subjetividade segundo um modelo fordiano serializado.59
itor
a re

Nesse ponto, interessa compreender de que forma esses processos de


subjetivação ocorre na teia social e qual sua implicação no âmbito conceitual
da micropolítica. Podemos iniciar esta compreensão com um exceto presente
em Micropolítica: Cartografias do desejo, vejamos:
par

Os processos de subjetivação [...], não são centrados em agentes indivi-


Ed

duais (no funcionamento de instâncias psíquicas, egóicas, microssociais),


nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados.
Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser de
ão

natureza extrapessoal, extraindividual (sistemas maquínicos, econômicos,


sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, enfim,
s

56 Nesse ponto, não devemos compreender apreensão como ato que o indivíduo traz para si e guarda per-
ver

manentemente, mas como elementos que são apreendidos e que, eventualmente, podem ser modificados
por forças constantes que o atravessa.
57 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
58 SOARES, Fábio M. A produção de subjetividade no contexto do capitalismo contemporâneo: Guattari e
Negri. Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 118-126, jan.-abr. 2016.
59 SOUZA, David B. A subjetividade maquínica em Guattari. 2008. 125 f. Dissertação (mestrado) – Universidade
Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Fortaleza.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 489

sistemas que não são imediatamente antropológicos), quanto de natureza


infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensi-
bilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, modos
de memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de automa-
tismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc.). 60

A subjetividade ajuda a construir, estagnar, movimentar todo o microcir-

or
cuito social que é da ordem da micropolítica. Nesse sentido, a subjetividade
se constitui em elemento que produz e, ao mesmo tempo, é produzido pelos

od V
vultos de poder que perpassam sua estrutura flexível, alimentando, assim,

aut
a realidade mesma. É nesse ponto que os indivíduos e a sociedade na sua
acepção macro acaba sendo condicionados por mecanismos (dispositivos) de

R
poder que exercem controle através de estruturas macropolíticas como a mídia,
o estado, as produções técnico-científicas etc. No sentido de reposicionar o

o
sujeito, possibilitando certa autonomia frente a esses raptos de subjetividade
aC
cotidianos realizados pelas instâncias e relações de poderes que Guattari vai
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propor uma Revolução Molecular, ao qual iremos nos aprofundar agora.

O Molecular e o Micropolítico
visã

Guattari propõe uma revolução molecular, a criação de máquinas de guerra


autogestivas que viabilizem e potencializem os devires minoritários e os micro-
itor

movimentos que subvertem os regimes molares já estratificados. Trata-se da


a re

afirmação de um plano instituinte em contraposição ao regime instituído; da pos-


sibilidade de se investir na própria subjetividade como estratégia de resistência
ao modo de funcionamento do capitalismo.61 Esse fato nos conduz à necessidade
de um mapeamento sobre como o tema dos processos de subjetivação vem se
configurando no cenário atual. Torna-se, portanto, pertinente uma leitura, tanto
par

sobre o modo de funcionamento do capitalismo na atualidade, quanto da própria


Ed

concepção de um estatuto coletivo da subjetividade no campo político.


Dessa forma, a subjetividade se encontra no centro do embate entre o
poder constituinte e o poder constituído representativo e legitimador do Estado
ão

regulador, pois se ela é singularidade, só pode assim se designar como expres-


são das potências da multidão, plena afirmação do poder constituinte como
garantia democrática de sua revolução. Consequentemente, apostar numa revo-
s

lução constante como base do poder constituinte imanente, em contraposição


ver

ao poder constituído do Estado, é afirmar novos modos de singularização que


sejam espontâneas manifestações desse poder, resistindo à captura ostensiva

60 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
61 SOARES, Fábio M. A produção de subjetividade no contexto do capitalismo contemporâneo: Guattari e
Negri. Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 118-126, jan./abr. 2016.
490

perpetrada pelas instituições e pelos diversos organismos que compõem o corpo


social em seus mais variados dispositivos de controle. Trata-se efetivamente,
de uma produção de subjetividades. Porém, de subjetividades capturadas. Se
o poder constituinte nos impele ao caráter revolucionário da multidão como
gênese das singularizações ou dos modos de existência, a contra revolução se
caracteriza justamente pelo cerceamento desta potência.

or
A estratégia do capitalismo contemporâneo consiste em capturar a potência

od V
revolucionária nela implícita, isto é, se apropriar da dimensão do tempo
como fundamento da multidão. Uma vez efetivada a captura, a produção

aut
de subjetividades passa a se orientar segundo uma lógica dita transcen-
dental, na qual a potência constituinte é expropriada num processo de

R
ordenação temporal, numa normatividade transcendente preestabelecida.
E é nesse sentido que o consideramos funestamente como um empreen-

o
dedor ontológico.62
aC

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Deparamo-nos aqui com um embate micropolítico por excelência, pois
se as potências da vida ou da multidão compõem o campo das práticas, tendo
por base a coletividade, estas dizem respeito a um verdadeiro plano imaterial
visã
ou molecular. Um plano heterogêneo de intensidades, de afetos, que se atra-
vessam, se conectam, se modulam e produzem, em seus agenciamentos, os
mais variados modos de existência.63 Por um lado, vemos o capitalismo em sua
vertente de apropriação da vida a partir da instituição do controle como forma
itor

de captura. Por outro, os fenômenos de expansão da multidão indicam também


a re

um agenciamento potencializador da própria vida, por isso, “a proposição feita


por Guattari de uma micropolítica como resistência às formas de dominação.”64
Mas cabe sempre lembrar que as multiplicidades emergem na gênese
e na metamorfose de uma produção eminentemente maquínica, centrada na
par

singularidade dos acontecimentos, no devir. A produção se configura como


um fenômeno da vida como um todo. Sendo assim, considerá-la como exclu-
Ed

siva ao homem ou ao sujeito da cultura que transforma a natureza, é a falácia


transcendental que oculta o verdadeiro sentido do poder da multidão. Porém,
a vida sempre escapa ao controle e nela a desmedida se impõe, subvertendo
ão

o estabelecido, o instituído. Investir na coletividade, na potência das mul-


tiplicidades, nos devires minoritários. Produzir em cada canto, revoluções
moleculares nas quais a maior virtude seja a de suplantar os dispositivos de
s

controle e escapar à lógica imposta pelo capitalismo contemporâneo.


ver

62 Ibid, p. 119.
63 SOARES, Fábio M. A produção de subjetividade no contexto do capitalismo contemporâneo: Guattari e
Negri. Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 118-126, jan./abr. 2016.
64 ZAMBONI, J.; BARROS, M. E. B. de. Um clínico da atividade desejante no campo social: Félix Guattari.
Revista Polis e Psique, Vila Velha, v. 2, n. 1, p. 23-42, set./dez. 2012.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 491

É preciso que cada um se afirme na posição singular que ocupa; a faça


viver, que a articule com outros processos de singularização e que resista
a todos os empreendimentos de nivelação de subjetividade.

Trata-se de afirmar a singularidade nela mesma como tal, de se apropriar


daquilo que acontece em si e a partir de si mesmo. A fim de resistir a esse
movimento, Guattari insiste num investimento constante na coletividade,

or
mas “não nos indivíduos ou grupos somente, mas principalmente na potência
heterogênea que se afirma no plano de imanência como base das novas singu-

od V
larizações neles perceptíveis.”65 A micropolítica, por sua vez, concerne a “uma

aut
linha muito diferente da precedente, uma linha de segmentação maleável ou
molecular, onde os segmentos são como quanta de desterritorialização”66. O

R
que é importante perceber é que, na perspectiva dos autores, “essa linha mole-
cular mais maleável [...] não é simplesmente interior ou pessoal.67 Em outras

o
palavras, há uma multiplicidade molar, composta por sedimentações, “esta-
dos”; e uma multiplicidade molecular, constituída por fluxos, devires, veja:
aC
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Vimos que a contribuição dos dois filósofos está precisamente em considerar o


“micro” como a dimensão molecular, do processo, dos fluxos, do devir, tanto
visã
ao nível individual quanto coletivo; enquanto o “macro” se refere à dimensão
molar, dos segmentos bem determinados, de divisões binárias, também tanto
ao nível individual como no coletivo. Em outras palavras, a fronteira não é
entre o plano individual e o coletivo, mas entre dois sistemas de referências
itor

distintos que os atravessam: a multiplicidade molar e a molecular.68


a re

O interessante em relação à linha de segmentaridade molar e à linha


de segmentaridade molecular é o fato de que “as duas linhas não param de
interferir, de reagir uma sobre a outra, e de introduzir cada uma na outra uma
corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez”.69 Portanto, o que
par

é preciso ter bem claro quanto à concepção de Deleuze e Guattari, é o fato


de que toda sociedade, mas também todo indivíduo, são atravessados pelas
Ed

duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e a outra, molecular. Se


elas se distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas
correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade.70
ão

65 SOARES, Fábio M. A produção de subjetividade no contexto do capitalismo contemporâneo: Guattari e


Negri. Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 118-126, jan./abr. 2016.
s

66 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
ver

67 SILVA, Roger A. L. Micro-história e micro-política: a novidade da filosofia de Deleuze e Guattari. Caderno


de resumos & 4º. SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA: TEMPO PRESENTE &
USOS DO PASSADO. Anais [...], Ouro Preto: EdUFOP, 2010.
68 SOARES, Fábio M. A produção de subjetividade no contexto do capitalismo contemporâneo: Guattari e
Negri. Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 118-126, jan./abr. 2016.
69 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
70 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
492

A partir destas considerações é possível observar que “as duas formas


não se distinguem simplesmente pelas dimensões, como uma forma pequena e
uma grande”, ou seja, o molecular, do mesmo modo que a organização molar,
é coextensivo a todo campo social. Desse modo, “a questão é, portanto, que
o molar e o molecular não se distinguem somente pelo tamanho, escala ou
dimensão, mas pela natureza do sistema de referência considerado”71 Sendo
assim, “a diferença não é absolutamente entre o social e o individual (ou inte-

or
rindividual)”72. Cabe dizer que no plano molecular a própria “distinção entre

od V
o social e o indivíduo perde todo sentido”73. Em outras palavras, percebemos

aut
que a dicotomia social e individuo concerne ao plano molar, não ao molecular.

Equívoco, mais uma vez, seria associar noções como multiplicidade,

R
molecular e micropolítica à fragmentação, indivíduo e lutas periféricas
em oposição à totalidade, social, lutas globais. Vimos que a micropolí-

o
tica e a macropolítica, cada uma a seu modo, visam tanto aos problemas
aC
individuais quanto aos problemas sociais globais.74

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A molecularidade dos elementos engendra todo o aparato micropolítico,
influenciando na formação de subjetividades condicionadas por desejos for-
visã
jados nas inúmeras relações de poder que perpassa as relações sociais. Por
isso, é importante compreendermos o desejo e suas implicações.
itor

Situando o desejo em Félix Guattari


a re

A concepção de desejo por muito tempo foi influenciada pela metafísica


clássica, concebendo o desejo como falta, como uma constituição interna
incompleta, inacabada e que precisa ser preenchida por elementos exteriores.
Diversamente ao exposto, Guattari implementa um giro compreensivo do
par

desejo, abordando-o como produção, como pertencentes a sistemas maquí-


nicos que produzem realidades de conteúdo estético, sociais, teóricos etc.
Ed

Forjei, com Gilles Deleuze, uma expressão que pode parecer paradoxal,
mas que nos foi muito útil em nossa reflexão: é o conceito de “maquina
ão

desejante”. É a ideia de que o desejo corresponde a um certo tipo de pro-


dução e não é absolutamente algo de indiferenciado. O desejo não é nem
s
ver

71 SILVA, Roger A. L. Micro-história e micro-política: a novidade da filosofia de deleuze e guattari. Caderno


de resumos & Anais do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do
passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010.
72 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
73 Ibid, p. 132.
74 SOARES, Fábio M. A produção de subjetividade no contexto do capitalismo contemporâneo: Guattari e
Negri. Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 118-126, jan.-abr. 2016.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 493

urna pulsão orgânica, nem algo que estaria sendo trabalhado, por exemplo,
pelo segundo princípio da termodinâmica, sendo arrastado de maneira
inexorável por uma espécie de pulsão de morte. O desejo, ao contrário,
teria infinitas possibilidades de montagem.75

Esta nova forma de conceber o desejo possibilitou uma perspectiva mais


ampla para compreender os processos de subjetivação que alimentam a produ-

or
ção de desejo, e consequentemente, aclarar os mecanismos de poder presentes
no âmbito micropolítico. A compreensão da subjetividade e, consequente-

od V
mente, do desejo possuem um caráter coletivo. Desta forma, ultrapassamos a

aut
concepção clássica de que a subjetividade e o desejo são da ordem individual,
para uma perspectiva que vislumbra uma existência coletiva de ambos.76 O

R
desejo transcende os espaços individuais ou familiares, passando a ser um
construto social, que não é espontâneo, mas regidos por diversos agenciamen-

o
tos que nos transpassam cotidianamente. Félix Guattari afirma que:
aC
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Todas essas questões da economia coletiva do desejo deixam de parecer


utópicas a partir do momento em que não mais consideramos a produção de
subjetividade como sendo apenas um caso de superestrutura, dependente
visã
das estruturas pesadas de produção das relações sociais.77

O desejo é da ordem da micropolítica, produz-se através de elementos


semióticos do social, científico, midiático. Neste último, temos uma expan-
itor

são com a potencialização da ordem capitalística. Este sistema tem grande


a re

influência na produção de subjetividade dos indivíduos, conforme aponta


Félix Guattari:

Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que nos chega
par

pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é
apenas uma questão de ideia, [...] trata-se de sistemas de conexão direta entre
Ed

as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as


instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo.78
ão

Esse processo influencia a constituição de desejo, posto que este está


atrelado a práxis social. Assim, “vai incidir nos pontos de singularidade, em
processos de singularização que são as próprias raízes produtoras da subjeti-
s

vidade em sua pluralidade.”79


ver

75 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
76 GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
77 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
78 Ibid, p.27
79 Ibid, p. 28.
494

Podemos dizer que por um lado, o sistema depende da produtividade


do desejo para sobreviver; por outro, ele deve reintegrar, modular, esta
produtividade, injetando transcendência, servidão e controle no plano de
imanência.80

Nesse sentido, o que percebemos é um sistema autopoiético em relação


a produção desejante, na medida em que, no seio da micropolítica, existem

or
mecanismo que condicionam os conteúdos de desejos e destes dependem
numa relação de causalidade permanente.

od V
aut
Significa dizer que o sistema capitalista é capaz como ninguém de liberar
desejos e ações para, em seguida, controlá-los (descodificação e dester-

R
ritorialização de um lado e sobrecodificação reterritorializante de outro).
Instaura-se um fenômeno de serialização hierarquizante, no qual todos

o
os desejos desterritorializados são habilmente controlados, deixando o
indivíduo inoperante para interagir consigo mesmo e com o outro em
aC

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função de suas próprias referências e desejos.81

A margem do coeficiente de transversalidade dos desejos fica totalmente


visã
delimitada por um incessante exercício de poder em mobilidade pelos inume-
ráveis fluxos das relações sociais próprias do campo micropolítico. A variação
de intensidade de tais fluxos, contudo, converge para uma mesma política
de desejo no campo social e de afirmação de um modo de produção da sub-
itor

jetividade e da relação com o outro. Para Deleuze e Guattari, é importante


a re

frisar, o desejo não pode ser confundido com a necessidade ou carência de


algo inalcançável e transcendente. Ele não comporta falta, pois se deixa afetar
constantemente por novos campos de imanência processuais.82
Em vez de estabelecer uma relação sincrônica de poder e submissão,
par

busca-se reconhecer a alteridade. trocar com ela e não apenas tolerá-la e


respeitá-la em seu respectivo território existencial, cada um mantendo-se
Ed

fechado e circunscrito a ele, inexistindo a partir daí qualquer possibilidade


de estabelecer para si uma dinâmica própria de criação autorreferente. As
máquinas de produção do desejo, as máquinas de criação estética pela
ão

mesma razão que as maquinas científicas, remanejam constantemente


nossas fronteiras c6smicas. Por essa razão, elas devem tomar um lugar
eminente no interior dos agenciamentos de subjetivação, eles mesmos
s
ver

80 ALVIM, Davis M. A megamáquina política: poder, resistência e deserção. Revista de Estudos Sociais: Campo
Grande, v. 14, n. 36, 2013.
81 PEIXOTO JR.; LAUREANO, PEDRO S. Dois desejos, dois capitalismos. Revista Lugar comum: Rio de
Janeiro, v. 21, n. 37-38, p. 63.
82 ALVIM, Davis M. A megamáquina política: poder, resistência e deserção. Revista de Estudos Sociais: Campo
Grande, v. 14, n. 36, 2013.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 495

chamados a substituir nossas velhas máquinas sociais, incapazes de seguira


eflorescência de revoluções maquínicas que fazem explodir nosso tempo
por todos os lados.83
Avançando nos percursos teóricos empreendidos por Guattari, depa-
ramo-nos com uma extensão das ideias desenvolvidas no âmbito da sub-
jetividade. Já compreendemos que tudo é produção, e que tal movimento
é incessante fluxo de relações de poder que engendra todos os elementos

or
sociais que perpassam. O conceito de máquina se insere tanto no campo cor-

od V
poral, da materialidade tecnológica, quanto no campo incorporal ou invisível.

aut
Essa dupla utilização é um dos motivos da dificuldade de se compreender
que o termo máquina pode ser usado tanto como produto como produtor
de subjetividades e desejos.84 O interessante nessa linha teórica é que nós

R
também fazemos parte destes fluxos materiais, podendo-se até mesmo ser-
mos compreendidos como máquinas. Máquinas que se expandem, contraem,

o
se arranjam, se desarranjam no processo contínuo de produção de desejos.
aC
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Mas, a inovação teórica empreendida aqui se situa no entendimento de que


as máquinas desejantes são uma multiplicidade positiva que supera a iden-
tidade. Por isso, tratar de máquinas nos possibilita avançar e se desprender
das ideias de identidade e sujeito.
visã

O que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de cone-


xão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções.85
itor
a re

Esse processo de produção desejante é contínuo na malha de relações que


perpassam nossas vidas. Somos frutos dessa produção desenfreada, forjados
na existência dos desejos que se criam, se fazem, se expandem e modificam-
-se nos condicionamentos determinados por poderes. A máquina desejante é
constantemente atravessada por energias advindas de substratos de realidade
par

constantemente alimentadas por relações de poder, o que acaba por torna a


Ed

máquina desejante e o desejo maquinado. Esse processo produz uma depen-


dência funcional de um em relação ao outro.
ão

Em uma megamáquina sobrevêm linhas de fuga que modificam sua


dinâmica e, no limite, destroem-na; mas existem também linhas de arti-
culação e segmentação que têm a função de endurecê-la e mantê-la viva
s

por mais tempo.86


ver

83 GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
84 SOUZA, David B. A subjetividade maquínica em Guattari. 2008. 125 f. Dissertação (mestrado) Universidade
Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Fortaleza.
85 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, p. 514, 2010.
86 ALVIM, Davis M. A megamáquina política: poder, resistência e deserção. Revista de Estudos Sociais: Campo
Grande, v. 14, n. 36, 2013.
496

Nesse sentido, a concepção de máquina, para Guattari acaba por substituir


o de estrutura, remetendo a ideia de produção, processualidade, singularização
etc.87 Depreende-se isso a partir do momento que:

Estendemos a ideia de produção, essencial na máquina, para todos os


níveis, inclusive do desejo, do inconsciente, da existência como um todo,
mas, por outro lado, também amplia a noção de produção.88

or
Diante disso, não devemos compreender o sentido de produção como

od V
ato que produz produtos independentes, que passam a desprender-se de sua

aut
instancia produtora, munido de autonomia frente a teia social. Ao contrário,

R
Produção não é só produção de coisas materiais e imateriais no interior de
campos de possíveis, quer dizer, produção de produções, de bifurcações,

o
de desequilíbrios criadores, de engendramentos a partir de singularida-
des, chegando até, finalmente, a ideia de auto-engendramento a partir de
aC

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singularidades, autoposicionamentos, autopoiese.89

São estes movimentos funcionais a partir de máquinas produtoras de


visã
subjetividade que são criados, moldados e lançados os desejos, condicionados
por um plexo intermináveis de elementos que forjam a microrealidade.

Micropolítica e desejo: repensando revoluções moleculares


itor
a re

Os fluxos de poder dominante construíram a conjuntura do mundo atual, pau-


tado pela heterogeneidade de produções dominantes que normalizam os sujeitos
em padrões pré-determinados. Somos, dramaticamente, serializados por linhas
intermináveis de elementos que nos subjetivam. A vida se tornou um emaranhado
par

infinito de desejos e elementos subjetivos heterogêneos que perpassa o sujeito,


tornando-o máquina. Esta máquina desejante, transforma-o em matéria-prima e,
Ed

ao mesmo tempo, em produto sempre inacabado, mas sempre útil temporalmente.


Desejo, para Guattari, é constituído de “todas as formas de vontade de
viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma
ão

outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores”90.


No entanto, esse mesmo desejo mantém-se, sub-repticiamente, condicionado
e disciplinado por uma concepção dominante na ordem social. O desejo tor-
s

nou-se escravo, os sujeitos produtos descartáveis, idênticos, massificados e


ver

87 SOUZA, David B. A subjetividade maquínica em Guattari. 2008. 125 f. Dissertação (mestrado) – Universidade
Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Fortaleza.
88 PELBART, P. Um direito ao silêncio. Cadernos de subjetividade - PUC. São Paulo, 1993.
89 Ibid, p. 44.
90 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 497

padronizados, de forma que aqueles que não adotam os modelos “disponíveis”


teriam três destinos: a culpabilização, a segregação e a infantilização. Pois
aqueles que não se acham à altura dos modelos preconizados pela máquina
capitalista sentem-se culpados e acreditam que perderam o direito de existir
e, com isso, acabam tornando-se objetos de segregação.

[...] devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e

or
só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida. [...] quais são
suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual

od V
linha abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros?

aut
Sua própria linha de fuga? [...] Você se desterritorializa? Qual linha você
interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem figuras nem símbolos?91

R
É neste sentido que a revolução molecular, proposta por Guatarri (1977),

o
pode ser compreendida como uma forma de resistência, que funciona no
âmbito da diferença e da multiplicidade. Afinal, ela visa criar pontos de ruptura
aC
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e abrir espaços para devires minoritários que coloquem em questão a primazia


da identidade, tanto individual quanto cultural. Diante disso
visã
Acaba tornando possível apreender a produção de linhas nômades e de
movimentos minoritários que criam interferências e resistências às repe-
tições do poder entre grupos sociais e hábitos regulares de identidade.92
itor

É importante atentar para o fato de que da mesma forma que a resistên-


a re

cia se dá de forma molecular, as estratégias de poder também se dão, pois


estão espalhadas em miniaturas de formas indiscerníveis e dissolvidas que
se produzem e reproduzem por toa parte93. Dito de outro modo, o poder tenta
capturar e codificar os movimentos minoritários em um alto grau de cálculo
e previsibilidade, enquadrando as diferenças em patologias em vez de as
par

conceberem como novas possibilidades de existência e, por isso, as formas de


resistência devem se dar de forma contínua e fluida.94 Neste sentido, é interes-
Ed

sante pensarmos os movimentos de desterritorialização e de reterritorialização


como formas de resistência às pretensões de objetivação e de anulação das
diferenças. Pois, no momento que uma categorização está prestes a se efetivar,
ão

a subjetividade em devir já se reterritorializou de outra forma e, quanto mais


o poder se solidificar, mais movimentos de resistência poderão advir. Afinal,
s
ver

91 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, p. 514, 2010.
92 PEIXOTO JUNIOR, C. A. A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da
diferença. Singularidade e subjetivação: ensaios sobre clínica e cultura. Rio de Janeiro: 7 letras/ Editora
PUC-Rio, 2008. p. 83-99.
93 GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
94 PEIXOTO JUNIOR, C. A. Sobre o corpo social como espaço de resistência. Singularidade e subjetivação:
ensaios sobre clínica e cultura. – Rio de Janeiro: 7 letras/ Editora PUC-Rio, 2008. p. 100-112.
498

O discurso é um índice de formações territoriais e, quando enrijecidos,


impossibilitam a criação de novos territórios por promoverem uma fixação
do desejo em territórios restritos.95

Evidentemente, é mais cômodo fixar-se em ritornelos do que construir


novos territórios, mas a repetição da mesma configuração territorial não possi-
bilita produzir nenhum movimento de desterritorialização. E muito menos de

or
autonomia.96 Isso ocorre porque os dispositivos de saber-poder temem que a
desterritorialização absoluta ocorra, pois essas ameaçam a organização sócio-

od V
-política e todo seu aparato de controle e, por isso, estão constantemente lutando

aut
para evitá-la. É nesse sentido que se pode concluir que o devir minoritário e
a potência criativa são os meios fundamentais de resistência: “A arte é o que

R
resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha”.97 A partir disso,
é possível depreender que a criação constante de linhas de fuga é o que possi-

o
bilita a ampliação dos espaços de singularização que, por sua vez, propiciam a
aC
invenção de novas formas de pensar, sentir, de se colocar no tempo e espaço,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de se relacionar com o outro, isto é, novas modalidades de existência.98
Nesta perspectiva, pode-se concluir que singularizar é criar e produzir
modos distintos daqueles que são exigidos pelo poder dominante e, por isso, a
visã
revolução molecular consiste nesse atrevimento de se singularizar e de se afir-
mar como diferença. Afinal, ao se criar novas modalidades de experimentação,
é possível viver colocando em xeque a matriz central de poder, a hegemonia e
itor

o imperativo dominante e evitar, com isso, a passividade existencial.99 Podem,


a re

entretanto, levarem a práticas que não sejam necessariamente superadoras


do sistema como um todo, como também, sendo mobilizada por desejos que
somente se realizam com destruição do sistema - por exemplo, acabar com a
exploração dos trabalhadores, a injustiça e opressão que se exerce contra o povo
pobre -, desenvolverá uma práxis que buscará destruir o sistema como um todo.
par

Mais do que esse aspecto negativo de destruir o sistema, mostra-se neces-


Ed

sário uma revolução molecular desalienada, que formule, adequadamente, uto-


pias que dizem respeito à cidade que queremos, à sociedade que queremos, às
relações humanas que desejamos.100 Mas, nesse processo microrevolucionário,
ão

95 PEIXOTO JUNIOR, C. A. A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da


diferença. Singularidade e subjetivação: ensaios sobre clínica e cultura. Rio de Janeiro: 7 letras/ Editora
s

PUC-Rio, 2008. p. 83-99.


ver

96 PEIXOTO JUNIOR, C. A. A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da


diferença. Singularidade e subjetivação: ensaios sobre clínica e cultura. Rio de Janeiro: 7 letras/ Editora
PUC-Rio, 2008. p. 83-99.
97 Ibid, p. 89.
98 Ibid, p. 90.
99 GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987
100 MANCE, E. A. Movimento Popular e revolução molecular. Revista Solidarius: São Paulo, v. 14, n. 32, 2016.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 499

mostra-se necessária uma micropolítica a ser praticada, consistente em fazer


com que os níveis moleculares não caiam sempre nos sistemas de recuperação,
de captura e reterritorialização, que neutralizam as ações, reduzem os afetos.101
Diferente disso, a micropolítica consiste em outras montagens de pro-
dução de vida, de produção de arte e desejo, trata de criar um agenciamento
que permita processos de singularização, que se apoiem uns nos outros, de
modo a intensificar-se. Para Guattari, qualquer pessoa que se proponha a um

or
processo revolucionário no âmbito da molecularidade, está no cruzamento da

od V
política e da micropolítica e, por isso, deve ser interpelada, para não incorrer

aut
no jogo da reprodução de modelos que impedem a criação de saídas para os
processos de singularização.102 Mais do que isso, por mais agudas e brilhantes
que sejam as ideias e as estratégias, por mais corajosas que sejam as ações,

R
e por mais êxitos que tenham em estabelecer novas estratégias de luta, elas
podem acabar por resultar em uma reacomodação da cartografia vigente se

o
não se acompanharem de um deslocamento no plano micropolítico.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

É que se a subjetividade e a cultura permanecem, predominantemente, regi-


das pela mesma lógica do ponto de vista micropolítico, tudo volta necessaria-
mente para o mesmo lugar, exatamente aquele do qual pretendíamos sair.103
visã

Por isso, os processos micro revolucionários no âmbito da micropolítica


devem ser, necessariamente, regidos por conexões subversivas ao sistema,
itor

que engendrem processos coletivos e práticas incessantes de produção de


a re

desejos autônomos.

Consideração finais

O ditador da Romênia, enfrentando adversidades no governo, decidiu


par

dar uma demonstração de força. Em 21 de dezembro de 1989, organizou um


Ed

evento gigantesco para mais de 80 mil pessoas no qual faria um discurso


de unidade e poder. Como modus operandi ditatorial, o partido obrigou a
todos os habitantes a sintonizar a televisão e o rádio. O evento começou,
ão

tudo parecia normal. Quando aconteceu o inesperado. Quando o ditador, que


governava firmemente há anos, começou a discursar, alguém no público vaiou.
De repente, 80 mil pessoas começaram a vaiar, impossibilitando o ditador de
s

continuar o discurso e de controlar o país. O regime caiu.


ver

Então foi possível perceber cada linha escrita pelo jovem Étienne de la
Boétie. O povo, tomado pela potência de mudar, descobriu que “aquele que
101 GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987
102 GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
103 ROLNIK, S. Entrevista intitulada: a hora da micropolítica. Folha: 01 maio 2015. Concedida ao Goeth Institut.
500

tanto vos domina não tem senão dois olhos, duas mãos e um corpo e em nada
difere do homem comum.” O que é isto senão espasmos de uma revolução
molecular? Que campo de luta é esse senão o da micropolítica? A energia celu-
lar que impulsionou cada músculo fonador a emitir sons de revolta, o pequeno
gesto – uma resposta micropolítica diante de um acontecimento macropolítico
– que deflagrou a coragem em sujeitos que alimentavam o desejo latente da
liberdade. As revoluções moleculares ocorrem assim: na surdina do medo,

or
nos corredores dos afetos, na tomada de controle dos desejos. Elas agitam-se

od V
e alimentam-se na revolta, na implementação de novas práticas, rompendo

aut
com a mesmice escravizadora do cotidiano.
A força disruptiva das revoluções moleculares é criar zonas autônomas
frente a desertos quase infinitos de condicionamentos subjetivos. É possibilitar

R
que cada um seja uma anomalia, que as relações se estabeleçam na própria
diferença, na capacidade de compor a subjetividade para além dos limites

o
normalizantes, nas singularidades que se compõe e se multiplicam. Mais do
aC

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que nunca, é preciso incitar a afirmação cotidiana do sujeito através de micro
revoluções nos pequenos pedaços de vida. Muitas destas podem até não trazer
as respostas almejadas, mas carregam consigo o incômodo. Este trabalho se
apresenta assim, como um incômodo.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 501

REFERÊNCIAS
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GUATARRI, Felix, Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo. Edi-

aut
tora 34. (tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. 2006.

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GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1987.

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GUIZZO, Iazanna. Micropolíticas Urbanas. Revista de Arquitetura e Urba-
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MACHADO, Roberto. Introdução. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.


visã
Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979. p. VII a XXIII.

MANCE, E. A. Movimeto Popular e revolução molecular. Revista Solidarius:


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São Paulo, v. 14, n. 32, 2016.


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PEIXOTO JUNIOR, C. A. A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão


da ordem ou afirmação da diferença. Singularidade e subjetivação: ensaios
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83-99.
Ed

PEIXOTO JUNIOR, C.A. Sobre o corpo social como espaço de resistência.


Singularidade e subjetivação: ensaios sobre clínica e cultura. – Rio de Janeiro:
7 letras/ Editora PUC-Rio, 2008. p. 100-112.
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PELBART, P. Um direito ao silêncio. Cadernos de subjetividade - PUC. São


Paulo, 1993.
s
ver

RESENDE, G.; RODRIGUES, L. Micropolítica. Revista de Estudos Sociais.


Campo Grande, v. 12, p. 23-32, 2011

ROLNIK, S. Entrevista intitulada: a hora da micropolítica. Folha: 01


maio 2015. Concedida ao Goeth Institut.
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SILVA, Roger A. L. Micro-história e micro-política: a novidade da filosofia


de deleuze e guattari. Caderno de resumos & Anais do 4º. Seminário Nacio-
nal de História da Historiografia: tempo presente & usos do passado. Ouro
Preto: EdUFOP, 2010.

SOARES, Fábio M. A produção de subjetividade no contexto do capitalismo


contemporâneo: Guattari e Negri. Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 118-

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126, jan.-abr. 2016.

od V
aut
SOUZA, David B. A subjetividade maquínica em Guattari. 2008. 125 f. Dis-
sertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia, Fortaleza.

R
ZAMBONI, J.; BARROS, M. E. B. de. Um clínico da atividade desejante no

o
campo social: Félix Guattari. Revista Polis e Psique, Vila Velha, v. 2, n. 1, p.
aC
23-42, set./dez. 2012.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
ATRAVESSADAS PELA DIFERENÇA:
o problema da medicalização

or
od V
Rafael Coelho Rodrigues

aut
Silvio Ricardo Munari Machado

R
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo

o
Tempo, tempo, tempo, tempo
aC Não serei nem terás sido
Tempo, tempo, tempo, tempo
(Caetano Veloso)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
Introdução

Este artigo tem como finalidade realizar uma análise do modo como
itor

temos discutido e problematizado o fenômeno que se tornou conhecido como


a re

medicalização da vida. Para isso, busca-se tensionar nossas práticas enquanto


pedagogos e psicólogos. Ao tensionar, objetiva abrir espaços para outros
modos de entender e pensar sobre esse fenômeno, realizando pontos de
inflexão. Sendo assim, apostamos que problematizar o fenômeno de medica-
lização passa por um processo de escrutar como isto se dá em nós, em nossos
par

corpos, e, talvez, principalmente, a partir de nós. Como estamos implicados


Ed

neste processo, mesmo que muitas vezes, o criticamos.


Inicia-se com uma discussão breve do encontro entre a psicologia e
educação e alguns dos seus efeitos ao longo da história e atualmente. Após,
ão

busca-se transitar sobre o conceito de medicalização ampliando o modo


como tem sido utilizado na maior parte dos estudos. Ao transversalizá-
-lo, almeja-se ampliar o alcance do campo de análise. Por fim, utiliza-se
s

a experiência em um ambulatório de saúde mental infanto-juvenil para


ver

descrever a metodologia de ocupação/habitação de dispositivos híbridos


que operam o processo de medicalização e medicamentalização em ato.
Através desta análise, construímos uma hipótese de trabalho. Segundo
esta, o enfrentamento ao fenômeno da medicalização da vida precisa se
dar em nós, envolvendo três esferas da existência: afetiva, temporal e
da racionalização.
504

Pedagogia e Psicologia

A expressão “psicologização da educação” tornou-se um sentido comum


para expressar relações entre psicologia e pedagogia. Contudo, estudos arque-ge-
nealógicos na área da educação há tempos vêm demonstrando que as implicações
do encontro entre ambas não implicaram somente no predomínio da psicologia
sobre a educação, mas também na entrada da educação e da pedagogia como

or
constituintes de muitos aspectos da psicologia moderna e contemporânea.

od V
aut
Desde o final do século XIX, com a necessidade do campo da educação
se estabelecer na constelação dos saberes científicos, o recurso aos con-
ceitos e às técnicas de investigação da psicologia foi importante para o

R
seu reconhecimento enquanto uma disciplina científica, tanto que foram
instituídos novos campos de conhecimento como a psicologia educacional

o
e a psicopedagogia (CÉSAR, 2004, p. 138)
aC

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Subordinação e centralidade. Noguera-Ramirez, em estudo que traça
uma genealogia da sociedade da aprendizagem, salienta que, ainda que tenha
ocorrido tal subordinação da pedagogia à psicologia, houve também uma
visã
“centralidade da pedagogia nesse processo de reformas republicanas e na
institucionalização e desenvolvimento de novas disciplinas, como a psicologia
experimental e a sociologia” (NOGUERA-RAMIREZ, 2011, p. 203).
Confusão de fronteiras, em que motivos distintos ajudam a contar suma-
itor

riamente a história algo paralela, algo transpassada, entre ambas as disciplinas.


a re

Pedagogia e psicologia também se interpenetram em movimentos de


domesticação da escola. Em obra recente, Masschelein e Simons (2018) pro-
blematizam os sentidos da escola no contemporâneo, colocando em perspec-
tiva histórica essa instituição. Título e subtítulo formam uma bandeira de luta:
par

Em defesa da escola - uma questão pública.


Os autores pensam a escola a partir da própria escola. Recuperando o sen-
Ed

tido etimológico da palavra, reconstroem etapas desta invenção que remonta


à Grécia antiga: escola estaria, desde suas fundações, identificada ao “tempo
livre”, tradução mais comum da palavra grega skolé.
ão

Não bastasse ser chocante pensar desta forma na escola, acusada cons-
tantemente de não fazer uma boa “gestão do tempo”, eles avançam em suas
provocações (p.26):
s
ver

Em outras palavras, a escola fornecia tempo livre, isto é, tempo não pro-
dutivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade (sua
“posição”) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo. Ou, dito ainda
de outra forma, o que a escola fez foi estabelecer um tempo e espaço que
estava, em certo sentido, separado do tempo e espaço tanto da sociedade
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 505

(em grego: polis) quanto da família (em grego: oikos). Era também um
tempo igualitário e, portanto, a invenção do escolar pode ser descrita como
a democratização do tempo livre.

Os autores sustentam que esta invenção de um espaço e um tempo comum


para pensar foi alvo, desde sempre, de tentativas de domesticação, ou seja,
tentativas de “governar seu caráter democrático, público e renovador” (p. 105).

or
Dentre as táticas de domesticação104 encontramos a pedagogização e a

od V
psicologização. A pedagogização diz respeito à privatização do espaço público

aut
escolar pelas demandas familiares. Aqui, é importante estabelecer uma distin-
ção entre o espaço da família e o espaço da escola: a escola não é nem uma
família, nem um lar (p. 115). A tática da psicologização, por sua vez, repre-

R
senta uma ameaça ao instaurar uma tendência de “substituir o ensino por uma
forma de orientação psicológica” (p. 126), tornando o ato de levar em conta o

o
mundo psicológico do aluno uma condição necessária para o ensino (p. 127).
aC
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Tais táticas ferem um outro aspecto essencial à escola enquanto insti-


tuição do espaço e do tempo comum: a igualdade. Filiando-se ao tratado de
pedagogia mais potente da contemporaneidade, que é O mestre ignorante,
de Jacques Rancière, Masschelein e Simons (p.69) apontam que a escola é
visã
o lugar da igualdade, da igualdade como ponto de partida. “A igualdade de
cada aluno não é uma posição científica ou um fato provado, mas um ponto
de partida prático que considera que ‘todo mundo é capaz’ e, portanto, que
itor

não há motivos ou razões para privar alguém da experiência de habilidade,


a re

isto é, a experiência de ‘ser capaz de’”.


Neste ponto, discursos psicológicos e pedagógicos passam a operar no
sentido de capturar essa força da experiência escolar, onde a igualdade repre-
senta a diferença em sua enésima potência, posto que é a afirmação de vidas
par

singulares que habitam o espaço escolar. “Monta-se um aparato que “trans-


forma as crianças e os jovens em objetos de classificação e intervenção e os
Ed

tranca em suas chamadas individualidade e diferença mútuas (sua aptidão


típica, seu talento único, seu nível particular de desenvolvimento, suas limita-
ções, as condições de seu cérebro, etc.)” (MASSCHELEIN; SIMONS, p. 70).
ão

Aqui há um aparente paradoxo. Aparente, pois trata-se de uma opera-


ção complexa: é ao mesmo tempo em que se fala abundantemente sobre “as
s

diferenças e as singularidades” para, tão somente, capturar a diferença e as


diferenciações que se operam nos processos de singularização de cada uma
ver

das vidas que habita o chão da escola. O que se chama de “diferente”, de


“singular”, entra nas operações e nos cálculos que buscam reduzir a diferença
aos clichês que enformam o sujeito contemporâneo.
104 Politização, pedagogização, naturalização, tecnologização, psicologização e popularização.
506

A medicalização da existência como analisador de práticas


pedagógicas e psicológicas ainda hegemônicas

Talvez seja no registro do processo que vem sendo chamado de medicali-


zação da existência que esse modo de funcionamento esteja mais consolidado,
instaurando práticas com vistas não apenas a domesticar a escola enquanto
potência, mas sobretudo a diferença que age nos processos de individuação

or
de crianças e adolescentes que não cabem nas formas prescritas.

od V
Lemos (2019) cita Ortega (2008), para quem o termo medicalização

aut
surge, no início da década de 1960, no campo da sociologia da saúde, em
uma análise que avalia o aumento de questões do cotidiano da vida social que

R
são, cada vez mais, atreladas à clave medicalizante, de forma reducionista.
Para Ortega (2008) (2010), este processo de medicalização é parte da
constituição de uma cultura somática amplamente medicalizada, tanto em

o
uma dimensão social quanto nas dimensões históricas, econômicas e políti-
aC

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cas. Neste sentido, há um processo no qual o corpo é tomado como objeto
de descrição médica e, na contemporaneidade, a emergência de fenômenos
que passam a definir aspectos-chave da subjetividade em termos biomédicos.
visã
Foucault analisa o fenômeno da medicalização da sociedade através
dos seus estudos sobre a biopolítica. Para este autor, o corpo passa a ser uma
realidade biopolítica através da qual a sociedade opera um controle sobre os
indivíduos não somente pela consciência ou pela ideologia, mas que se inicia
itor

no corpo, com o corpo (FOUCAULT, 2006).


a re

Este autor denominou como biopoder ou biopolítica a série de fenômenos


pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características bio-
lógicas fundamentais que entram em uma estratégia política, numa estratégia
geral de poder (FOUCAULT, 2008).
par

Sendo assim, vai se construindo uma série de práticas através das quais o
investimento na produção de um corpo saudável, considerado neste momento
Ed

como o próprio Estado, vai se delineando não como uma força de trabalho,
mas como força estatal. Assim, uma medicina de Estado vai se desenvolvendo
em meados do século XVIII.
ão

Essa medicina social se constrói não tendo somente o corpo como ins-
trumento de intervenção. É o processo de urbanização no século XVIII na
Europa, com o desenvolvimento das estruturas urbanas, que se desenvolve, na
s

França, uma medicina social (FOUCAULT, 2006). Esta estratégia biopolítica


ver

busca organizar o corpo urbano, regulamentando-o. As grandes cidades vão


surgindo e com elas, a necessidade de uma medicina urbana que vai intervir no
controle de circulação de elementos vitais como a água, o ar, redes de esgotos,
a propriedade do subsolo, os lugares comuns, os cemitérios, matadouros. Fou-
cault (2006) denominou essa intervenção biopolítica como a organização de
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 507

distribuições e sequências, ou seja, toda a elaboração estatal de onde colocar


diferentes elementos necessários à vida comum numa cidade.
Deste modo vai se delineando o que denominou medicalização da cidade.
Neste processo é fundamental, além de uma medicina que visava o Estado,
entendendo o corpo como corpo-estado e, que visava a cidade e seus meios
urbanos, um terceiro elemento: uma medicina dos pobres, da força de trabalho.
Este movimento, segundo Foucault, só é possível no século XIX, uma vez

or
que é neste momento com o aumento quantitativo da pobreza nas cidades que os

od V
pobres vão sendo considerados como um perigo. Um perigo tanto político quanto

aut
sanitário. A partir da epidemia de cólera em 1832, iniciada em Paris e depois alas-
trada por toda a Europa, se cristalizou uma série de medos da pobreza, fazendo
com que acontecesse uma divisão do espaço urbano em espaços ricos e pobres.

R
Assim, uma assistência controlada surge aos pobres. Uma intervenção
médica que é tanto uma forma de ajuda quanto uma forma de controle, atra-

o
vés da qual “as classes ricas ou seus representantes no governo asseguram
aC
a saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das classes ricas”
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(FOUCAULT, 2006, p. 95). Um cordão sanitário autoritário que passa a ser


construído no interior das cidades entre ricos e pobres.
A partir disso, Foucault entende que se inicia um processo de medicalização
visã
da sociedade, sendo que esse funciona pela promoção da saúde, pela prevenção das
doenças e por outras vias de governo das condutas dos indivíduos. Esta estratégia
de governo se daria numa série de práticas como as políticas de saúde, de educa-
itor

ção, de assistência social, de justiça, na cidade, entre outras (FOUCAULT, 2006).


a re

Neste sentido, a medicalização como estratégia biopolítica, produz nor-


mas de vida, regras de higiene, critérios de limpeza, técnicas terapêuticas, prá-
ticas de diagnósticos e tratamentos. Oferta medicamentos e vastos programas
e projetos que visam curar e prevenir doenças. Para (LEMOS et al., 2019),
trata-se de um “conjunto amplo de práticas constitutivas da expansão de saúde
par

e vida, não apenas face às doenças, mas especialmente voltadas à gestão dos
Ed

riscos, perigos e performances”. Deste modo, pensa-se a medicalização não


como fenômeno relativo apenas a uma prática limitada de medicar ou definida
pela ingestão e prescrição dos medicamentos de forma indiscriminada.
ão

Para Freitas e Amarante (2015), a medicalização é um processo amplo


pelos quais condições humanas e problemas ordinários passam a ser definidos
e tratados como condições médicas, tornando-se, portanto, objeto de estudo
s

médico, diagnóstico, prevenção e tratamento” (p. 131), ou seja, tratando-se


ver

de um fenômeno cultural, político e econômico.


Segundo o Relatório de Recomendações e Estratégias para Uso de Medi-
camentos, do Ministério da Saúde (2018), o fenômeno da medicalização, em
sua maior expressão, está vinculado a populações-chave, a saber: crianças
em idade escolar, adolescentes e adultos em privação de liberdade, usuários
508

que necessitam de atenção à saúde mental e pessoas com mais de 60 anos.


O Relatório tem como objetivo recomendar propostas de práticas não medi-
calizantes nas estratégias de cuidado com essas populações elencadas como
sendo mais susceptíveis a sofrer tal processo. Neste sentido, para a seleção da
população-chave, o relatório considera o debate atual sobre comportamentos
que não são aceitos socialmente e que passam a ser vistos apenas pela lógica
médica, levando, consequentemente, a um alto índice de prescrição de psico-

or
fármacos, entre outras classes farmacológicas, nestes grupos populacionais.

od V
No caso do uso de psicofármacos no sistema escolar, o Relatório reco-

aut
menda atenção ao uso de medicamentos para o tratamento do Transtorno de
Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (TDA e TDAH). Segundo o
documento, o Relatório da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes

R
(JIFE)105, sinaliza que a partir dos anos 2000, o uso do metilfenidato cresceu em
todo o mundo, acompanhado das discussões sobre o seu mau uso. Em 2014,

o
foram fabricadas 62 toneladas desse fármaco, e em 2016, esse número aumen-
aC
tou para 74 toneladas, a maior taxa já observada (BRASIL, 2018). O Brasil

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apresentou o uso de 0,57 S-DDD2 de cloridrato de metilfenidato por mil habi-
tantes106. Nesse contexto, segundo o Relatório, utiliza-se da lógica equivocada
de que é mais fácil medicar a criança do que mudar o sistema de educação.
visã
Ainda levando em consideração o Relatório do Ministério da Saúde,
o diagnóstico do TDAH ou TDA é dimensional, pois envolve padrões de
comportamento que são típicos da faixa etária (crianças), bem como questões
itor

de fundo social. Ademais, os sinais e sintomas dessas doenças podem ser


a re

encontrados no comportamento dos indivíduos com desenvolvimento típico.


“É necessário fazer um balanço entre benefício e risco antes de se iniciar a
administração de medicamentos para tratamento do transtorno do déficit de
atenção, principalmente quando o tratamento for de longo prazo” (BRA-
SIL, 2018, p. 14). Nesta perspectiva, sugere-se considerar outras alternativas
par

terapêuticas não farmacológicas, como por exemplo, intervenções sociais,


psicológicas e comportamentais”107. Neste sentido, o Relatório recomenda “o
Ed

uso de medicamentos para o tratamento do transtorno do déficit de atenção


com ou sem hiperatividade deverá ser prescrito apenas quando, e se, estrita-
mente necessário” (BRASIL, 2018, p. 14).
ão

105 Naciones Unidas. Informe de la Junta Internacional de Fiscalización de Estupefacientes (JIFE) correspon-
diente a 2017. Viena, 2018 eISBN: 978-92-1-363141-6 ISSN 0257-3733. Disponível em: http://www.incb.
s

org/documents/Publications/AnnualReports/AR2017/Annual_Report/S_2017_AR_ebook.pdf.
ver

106 United Nations. Psychotropic Substances International Narcotics Control Board in 2017. Nova Iork. 2018
ISBN: 978-92-1-048168-7. eISBN: 978-92-1-363146-1. ISSN: 0253-9403. Disponível em:
https://www.incb.org/documents/Psychotropics/technicalpublications/2017/Technical_Publication_2017_
English_04042018.pdf
107 Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde
(BRATS). Metilfenidato no tratamento de crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade.
ISSN 1983-7003 Ano VIII nº 23| março de 2014.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 509

Considerando a medicalização um conceito polissêmico (OLIVEIRA;


HARAYAMA; VIÉGAS, 2016), o Fórum sobre Medicalização da Educação
e da Sociedade (2015), explicita o conceito como:

medicalização envolve um tipo de racionalidade determinista que descon-


sidera a complexidade da vida humana, reduzindo-a a questões de cunho
individual, seja em seu aspecto orgânico, seja em seu aspecto psíquico, seja

or
em uma leitura restrita e naturalizada dos aspectos sociais. Nessa concepção,
características comportamentais são tomadas apenas a partir da perspectiva

od V
do indivíduo isolado, que passaria a ser o único responsável por sua inadapta-

aut
ção às normas e padrões sociais dominantes. A medicalização é terreno fértil
para os fenômenos da patologização, da psiquiatrização, da psicologização

R
e da criminalização das diferenças e da pobreza (2015, p. 01).

Essa racionalidade determinista contribui para uma cultura medicali-

o
zante que passa a funcionar de modo dependente dos saberes de especialistas
aC
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biomédicos, pedagógicos, jurídicos e psicológicos, tendo como propósito a


criação de um campo valorativo da saúde e do cuidado meticuloso com um
corpo saudável e pretensamente seguro. Estratégia biopolítica que se torna
modo de racionalidade ao qual são forjadas formas de vida e de relação.
visã
Esse processo de medicalização da vida baseia-se numa compreensão da
existência regida a partir de um ângulo de normatização, onde o que foge a ela,
seja a doença ou determinados comportamentos, devem ser melindrosamente
itor

controlados. Nesse processo, as experiências próprias da vida, como a tristeza


a re

e o sofrimento, são compreendidas como disfuncionais, sendo geridas a partir


de uma perspectiva biomédica, que procura gerenciar esses acontecimentos
na vida humana (CALIMAN; PASSOS; MACHADO, 2016).
Neste processo vai se criando um ideal de vida. Vida prescrita. Vida
par

contida em seu processo inerente de variação contínua. Assim, o processo


de gestão biopolítica da sociedade através da medicalização da vida se torna
Ed

modos de subjetivação, a partir dos quais, nos identificamos com a vida idea-
lizada. As singularidades da existência, concebidas e avaliadas a partir de
critérios estatísticos e biológicos regidos por padrões, aniquilam o múltiplo,
ão

a diferença, as singularidades, para ditar determinado modo ideal de sentir e


estar no mundo. Dessa forma, nossa existência passa a ser regida pelo ângulo
de normatização (CALIMAN; PASSOS; MACHADO, 2016).
s

Salienta-se que o processo de regulação biopolítica além de reprimir


ver

modos de existência, produz outros. Esta perspectiva importante se direciona


ao conceito de poder assim como elaborado por Foucault (2010). Este autor
entende poder não a partir do que seja o poder, como se fosse uma substância,
mas, principalmente, de como esse é exercido nas relações entre indivíduos
(ou grupos). O exercício do poder é um modo de ação de uns sobre os outros,
510

sendo que o poder só existe em ato. Pensar o poder, deste modo, é partir da
premissa que o poder produz, como diz o autor. O poder tem uma positivi-
dade, pois opera por táticas e normas e não apenas por leis e imperativos de
dominação das condutas. “As práticas de poder são dinâmicas e relacionais,
operam por meio de ações sobre ações, força em agenciamento com outras
forças. Poder não é uma composição dual de forças opostas; as relações de
poder são múltiplas e sempre operam entrecruzadas” (LEMOS, 2019).

or
No entendimento do poder como relação entre forças que contribui para o

od V
processo de produção de subjetividades no contemporâneo, entende-se como

aut
a biopolítica se capilariza nos modos de existência, regendo a vida e suas rela-
ções. Guattari (2005) elabora o que denomina funções da economia subjetiva
capitalística. Segundo ele, a culpabilização, a segregação e a infantilização

R
seriam funções deste modo de produção subjetiva que se dá no capitalismo
mundial e integrado. Aqui, entende-se que o processo de medicalização tam-

o
bém pode ser compreendido como uma função da economia subjetiva capi-
aC
talística, uma vez que se relaciona com fatores comuns aos demais, como

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a vinculação a identificação de qualquer processo a quadros de referência
construídos socialmente, dificultando os processos de singularização.
É como parte deste processo que como descreve Lefèvre (1991), o
visã
medicamento em nossa cultura somática se desdobra em símbolo de saúde
e como realidade material que, sob a forma de um produto existente, (e per-
feitamente acessível ao consumidor comum) no mercado de bens da saúde,
itor

ocupa o lugar de saúde.


a re

Trata-se de um conjunto amplo de práticas constitutivas da expansão de


saúde e vida, não apenas face às doenças, mas especialmente voltadas à gestão
dos riscos, perigos e performances. A medicalização não é apenas relativa ao
fenômeno de uma prática limitada ao ato de medicar e definida pela ingestão
e prescrição dos medicamentos de forma indiscriminada.
par

Na Sociedade do Espetáculo (1997), no qual os corpos passam a ser


Ed

cartões de visita de uma cultura somática, o processo de medicalização pode,


ainda, se materializar pela incitação de condutas com vistas à expansão da
saúde, e “pode agir insuflando os corpos a organizarem e a compensarem
ão

supostas incapacidades e, até mesmo, a aumentarem os rendimentos e desem-


penhos, independentemente das doenças e tendências à aquisição de doenças”
(LEMOS, 2019). Ou seja, fazem parte do processo descrito como medica-
s

lização da existência tanto o, cada vez mais frequente, processo de evitação


ver

da dor e do sofrimento que se entende como inerente à vida humana, assim


como também passa a existir todo um mercado, efeito de uma grande indús-
tria, de aperfeiçoamento estético, de aumento de desempenho funcional para
melhor atuação na lógica neoliberal do empreendedorismo de si e fabricação
do capital humano (FOUCAULT, 2008).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 511

Lemos et al (2019) perscrutam as resistências às práticas de medicali-


zação da vida, presentes em vários movimentos sociais e com a participação
ativa de psicólogos e, podemos dizer, também de pedagogos. Pedagogias
e psicologias plurais no embate contra forças que produzem o fenômeno
descrito aqui como medicalização, em uma luta contra a produção acrítica,
pretensamente neutra, de verdades sobre o outro. Entende-se que esta pro-
dução de verdades é erigida por relações de poder e saber, através das quais

or
as variações das experiências passam a ser totalizadas e idealizadas. Deste

od V
modo, o pensamento alicerçado sobre modos totalizantes de pautar a vida,

aut
com base num ideal ou numa moral, constroem a partir destas verdades sen-
tenças e aprisionamentos do movimento de variação que é o viver. Assim,
apontamos uma ampliação do processo de medicalização da sociedade como

R
forma de gestão do corpo social para uma medicalização que se torna também
uma racionalidade determinista e um modo estreito de lidar com a variação

o
diferencial da existência. Processos de subjetivação.
aC
Compreendendo o exposto até o momento, entende-se o processo de
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medicalização como uma limitação no modo como se relaciona com o inusi-


tado, com os acontecimentos da existência. Lida-se com o inusitado a partir
das marcas em nós, com modos rotineiros, presos aos hábitos, a um script
visã
sensório-motor (DELEUZE, 2018). De forma que limita-se o acontecimento
ao já acontecido, ao já pensado, ao já sentido, ao dado. Busca-se nomeá-lo,
julgá-lo, paralisá-lo, defini-lo, diagnosticá-lo. Deste modo, medicalização seria
itor

uma forma de rotular, de simplificar, de paralisar o movimento, definindo-o


a re

com o que já se sabe antes mesmo dele acontecer. Não há espaço aqui para a
diferenciação. Nada acontece com o acontecimento em nós.
Concordamos com Machado (2014) quando esta autora enfatiza que o
processo de medicalização é discursivo, com um modo de pensar totalizante,
é afeto, sensação, modo de vida, tendo, pois, vários aspectos envolvidos, não
par

sendo assim uma totalidade fechada.


Ed

Neste sentido, neste texto, temos uma hipótese de trabalho. Parte-se


do pressuposto que se faz necessário colocar as práticas e a nós mesmos em
análise constante, para o enfrentamento ao processo de medicalização da vida,
ão

entendida como exposto acima. Este trabalho de análise precisa abarcar três
esferas cruciais da existência: a relação com os afetos, o regime de raciona-
lidade e a percepção do tempo.
s
ver

Ocupar/habitar o dispositivo. Interrogar práticas. Interpelar a


nós mesmos

Marcondes (2010) afirma que há a necessidade de revisitarmos nossas


ações e falas para nelas investigarmos o perigo da produção do uno. É neste
512

sentido que neste artigo buscamos analisar determinadas pedagogias e psico-


logias propícias a serem arregimentadas por esta racionalidade e, por sua vez,
agenciam-se a ela, contribuindo na sua produção imanente. Revisitar nossas
práticas e modos de vida que podem, sem que percebamos, se agenciar com
o processo de medicalização da existência.
Quando menciona-se lutar contra esse processo, entendemos que trata-se
de um combate entre essas forças em nós, forças estas que nos constituem,

or
como demonstrou Deleuze (2004), numa ação agonística (FOUCAULT, 2006b).

od V
Pedagogias e psicologias que a partir do modo como são praticadas

aut
em ato, possibilitam o rachar das formas (DELEUZE, 2007) para que novas
formas se produzam. Rachar as formas diz de uma atitude filosófica (Fou-
cault, 2010) no qual a pedagogia e a psicologia se aliando às forças do mundo

R
e da vida, problematizam as demandas que lhes chegam. De práticas colocadas
no lugar da resolução dos problemas a um lugar entre seus campos discipli-

o
nares, no qual se consegue analisar essas demandas e perceber aquilo que as
aC
atravessam. Transdisciplinaridade. Deste modo, crianças com dificuldades de

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aprendizagem ou comportamentos tidos como inadequados ao ambiente esco-
lar podem ser percebidas como questões que precisam ser avaliadas de modo
que não fiquem atreladas apenas a supostas doenças ou carências familiares.
visã
Pensar o que impede a criação de vida exige considerarmos o processo
de constituição do que se instituiu como forma de viver e pensar, os limites
do instituído e a necessidade de instituir (MARCONDES, 2010). A começar,
itor

e isso é importante, por nós mesmos.


a re

Guattari (2005) já em 1989 localizava um perigo para os trabalhadores


sociais. Segundo ele, tais trabalhadores atuam na produção de subjetividades
e, por isso, precisam ser interpelados, já que se encontram numa encruzilhada
micropolítica fundamental. Ou fazem o jogo de “reprodução de modelos que
não nos permitem criar saídas para os processos de singularização ou, ao
par

contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na


Ed

medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para


funcionar” (GUATTARI, 2005, p. 37).
Nossa pedagogia e nossa psicologia estão a serviço da vida? De qual
ão

modo de vida? Enfatiza-se que a tarefa, sempre inconclusa, de análise de nossas


práticas e de nós mesmos não é simples. Tal objetivo busca tensionar práticas
psi e pedagógicas, ainda dominantes, que atreladas a racionalidade neoliberal,
s

compõem um diagrama de forças que possibilitam as condições de possibi-


ver

lidade para o processo que tem sido denominado de medicalização da vida.


Para tanto, buscamos realizar uma inflexão no movimento de denúncia
ou resistência a este processo. Seu vetor biopolítico precisa ser colocado em
análise constantemente, porém, faz-se necessário também, sua articulação com
os efeitos gerados pela resistência a ele (PASSOS, 2019). Há movimentos de
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 513

controle e gestão da população neste movimento, assim como, diariamente, há


efeitos irruptivos nas formas de revolta construídas no enfrentamento político
a esta problemática.
Temos realizado uma aposta metodológica. Ocupar/habitar dispositivos
híbridos nos quais o processo de medicalização (muitas vezes, medicamen-
talização) acontece. Estes híbridos entre a saúde e a educação, ou entre essas
esferas e a jurídica ou assistencial, efetivam a patologização, a judicialização,

or
a psiquiatrização, a criminalização de existências.

od V
Ao ocupar um lugar sem lugar (U-topos) (PASSOS; BENEVIDES, 2004),

aut
no entre disciplinas, saberes e práticas constituídas e tantas vezes enrijeci-
das, este método possibilita que vivenciemos a composição dos elementos
diferentes, heteróclitos, disparatados, que sustentam a composição daquele

R
dispositivo (OLIVEIRA; VICENTIN; MASSARI, 2018). Acessar/habitar
esses dispositivos híbridos, um tanto confusos, objetiva explicitar suas tensões,

o
a partir das quais a heterogeneidade das práticas apareça para a análise e não
aC
sejam caladas por verdades ou palavras de ordem contra isso ou aquilo, ou seu
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revés, uma descrição dita neutra ou imparcial. O desafio é criar dispositivos


e sustentá-los, assim como sustentar-se neles, a partir dos quais a heteroge-
neidade da experiência possa surgir e a polifonia das vozes que compõem
visã
a multiplicidade do presente se tornar visível. A aposta é no cultivo de uma
postura aberta ao ocupar esses dispositivos híbridos que nos possibilite acolher
tais multiplicidades e heterogeneidades que se dão no processo micropolítico
itor

(CALIMAN; PASSOS; MACHADO, 2016). A aposta naquilo que Varela


a re

(1992) denominou reencantamento do concreto das práticas, aqui, as práticas


que se dão em serviços públicos de saúde/educação/assistência/judiciário.

In[ter]venções clínicas
par

Deste modo, analisamos uma experiência de ocupação/habitação de um


Ed

ambulatório público de saúde mental infanto-juvenil. Ao intervir a partir de


grupos de sala de espera naquele espaço, criamos condições para o surgimento
de práticas desmedicalizantes, o que demonstra que outros modos de ofertar
ão

cuidado são possíveis. Assim, buscamos problematizar a diferença constitutiva


daquilo que parece se dar sempre num campo normativo, instituído e, por
tanto, já dado. Há muita luta numa vida que ousa sonhar. Que não esqueçamos
s

que não podemos perder a luta pelo imaginário da nossa própria existência!
ver

Porém, enfatiza-se, nada disso é simples na prática. Quando chega-se


ao ambulatório público de saúde mental infantojuvenil, as crianças e suas
responsáveis já estão enredadas num circuito de produção de sofrimento,
verdades e sentenças. Neste trajeto que muitas vezes se inicia na escola com
dificuldades de adaptação das crianças a rotina institucional, transita-se por
514

várias instituições e serviços. Conselhos tutelares, Varas da Infância e Juven-


tude, CRAS (Centro de Referência em Assistência Social), igrejas. Até que
chegam ao ambulatório, muitas das vezes já até nomeando o diagnóstico.
As famílias buscam uma terapêutica que finalize o sofrimento dela e da
criança. A escola encaminha justificando que há algo ali, naquela problemática,
que foge às questões pedagógicas e escolares.
Quando chegavam ao ambulatório, as extensionistas relatavam um

or
ambiente caótico. Cheio, mas muitas vezes, estranhamente, silencioso. Algu-
mas, o silêncio era quebrado por reclamações ao serviço. Quando se apre-

od V
sentavam para as famílias e tentavam iniciar um grupo na sala de espera,

aut
encontravam resistência. Quando puxaram papéis em branco e lápis, rapida-
mente, as crianças que estavam ao lado das responsáveis, se aproximavam

R
e começavam a conversar, a desenhar, a brincar. O silêncio monótono era
quebrado com a vivacidade infantil.

o
O movimento das crianças fazia com que as responsáveis também se
aC
movimentassem. Começavam a se aproximar, uma da outra, a conversar.

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Um grupo ia se iniciando. O modo ambulatório (Rodrigues; Andrade; San-
tana, 2020), como denominamos a forma de atendimento individualizado
e individualizante de acompanhar os processos que ali chegavam, rachava.
visã
Iniciávamos ali um processo de coletivização daquilo que, até então, estava
sendo vivido por todas aquelas famílias como se fossem mazelas individuais
apenas. Ouviam umas as outras e percebiam que os relatos eram, estranha-
itor

mente, muito próximos. As crianças diagnosticadas como hiperativas, com


transtorno opositor desafiador, autismo, e tantos outros que hoje permeiam o
a re

horizonte de possibilidades da infância, brincavam juntas. Práticas desmedi-


calizantes aconteciam e demonstravam que é possível lidar com o sofrimento
de modos distintos daqueles que tem sido comumente realizados.
Sim, muitas vezes o medicamento será necessário. Em tantas outras, tal-
par

vez, não. Porém, o que problematiza-se é o modo como temos lidado com o que
escapa ao que está instituído e normalizado. Se crianças iniciam a ingestão de
Ed

psicotrópicos e anos depois os sintomas persistem ou diminuem de intensidade,


mas produzem outros, qual a finalidade da medicação de longa permanência?
O que estamos contribuindo para produzir nos circuitos de medicamentalização
ão

da infância, quando percebemos que estimulantes, antipsicóticos, ansiolíticos


e antidepressivos são cada vez mais prescritos e não conseguimos através das
práticas pedagógicas e/ou psicológicas produzir estranhamentos e bifurcações
s

nesta linha reta em direção a uma vida privada daquilo que pode? A questão no
ver

âmbito da saúde ao acolher estas crianças e suas famílias é ofertar tecnologias


de cuidado que não se deem prioritariamente, ou exclusivamente, pela prescri-
ção e dispensa de medicação psicotrópica. Quando o cuidado se restringe a esta
modalidade de cuidado, avalia-se que há um processo de medicamentalização
(CALIMAN; PASSOS; MACHADO, 2016.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 515

Tempo crono-lógico

Ao analisar várias pesquisas longitudinais com crianças diagnosticadas


e medicadas, Whitaker (2016) revela que a patologização da infância, pelo
menos nos Estados Unidos, levou à criação de uma verdadeira carreira para
muitas: uma vida como deficiente mental (WHITAKER, 2016, p. 26). Caponi
(2016) identifica no Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais

or
- DSM-V uma tendência, já encontrada nas versões anteriores, de ser “um

od V
agrupamento de patologias sem consistência epistemológica, com forte ten-

aut
dência a multiplicar os diagnósticos psiquiátricos” (CAPONI, 2016, p. 29).
Essa autora o vincula com o dispositivo de saber-poder próprio das sociedades
liberais e neoliberais, denominado por Foucault (2008b) como dispositivo de

R
segurança, uma vez que identifica que este dispositivo encontra-se centrado
na lógica da prevenção e da antecipação de riscos, se aproximando, assim, da

o
psiquiatria do desenvolvimento da infância e adolescência que vai entender
aC
que os transtornos mentais são “comportamentos disfuncionais que se sucedem
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e agravam ao longo da vida de um indivíduo, desde sua infância até a idade


adulta, exigindo que seja reforçada a atenção nos primeiros anos de vida dos
indivíduos” (CAPONI, 2016, p. 30).
visã
Quando Guattari (2005) menciona que os trabalhadores sociais, aí incluídos
pedagogas/os e psicólogas/os, precisam ser interpelados na encruzilhada micro-
política na qual estão imersos, o autor já antecipava essa disputa que se dá em
itor

nós, neste combate constante entre as forças totalizantes, massificantes de con-


a re

servação das formas e dos hábitos em nós, e como se faz necessário a criação de
dispositivos e agenciamentos na medida das possibilidades que consigamos pôr
para funcionar, em prol da abertura para espaços/tempo de singularização. Skolé!
Caliman (2016) menciona um trabalho em grupo com mães de crianças
diagnosticadas e medicadas, no qual buscam construir juntos com as respon-
par

sáveis a tomada de decisões sobre o uso ou não das medicações. Ressalta a


Ed

importância de criar um tempo para coletivamente analisarem seus efeitos


e poder voltar atrás, se necessário. A importância de se ouvir a criança e do
acompanhamento do processo. “Sustentar um tempo que rivaliza com as
ão

urgências, com a demanda por respostas rápidas e únicas. Tempo que abre
espaço para a dúvida e a incerteza que só podem ser vividas quando coleti-
vamente sustentadas” (CALIMAN, 2016, p. 59). Cita Mol (2008), para quem
s

o tempo é necessário à efetivação da lógica do cuidado em contraposição à


ver

lógica individualizante da escolha e da responsabilidade individual.


Esse tempo sublinhado pela autora, não é justamente o que hoje, na socie-
dade regida pela racionalidade neoliberal, precisa ser capitalizado? Não é jus-
tamente esse tempo do qual não dispomos? Ou a partir desta lógica, que as
intervenções, análises e práticas precisam ser mais céleres? Não é sempre de
516

intervenções e diagnósticos mais precoces que se fala quando o assunto são


comportamentos disruptivos, inadequados ou agitados em crianças? Mas será
que aqui, não estamos falando do mesmo processo, só que a partir de modos
distintos de entendê-lo e lidar com ele? Ou seja, se a lógica do cuidado requer
tempo, porque apressar o tempo com diagnósticos que ao buscar prever ou conter
riscos, podem também, conter potenciais criativos e singulares nessas existências?
Qual a função do diagnóstico nesse cenário? Será que no afã de prevenir doenças

or
e desvios, não estamos patologizando comportamentos e modos de vida diferen-

od V
ciais? Um pouco do movimento que Lancetti (2015) descreveu denominando de

aut
contrafissura em relação às políticas públicas para a atenção ao uso de drogas.
Ou dizendo de outro modo: ao buscar prevenção e mitigar riscos futuros,
os diagnósticos construídos a partir da lógica do DSM-V, não buscam antecipar

R
um futuro, negando a esse, justamente seu tempo de criação?

o
Habitar o dispositivo e cultivar outros tempos (aion-lógicos,
aC

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kairós-lógicos)

Ao compreender que a sustentação de um tempo para que o movimento


visã
de incerteza, inquietude e interpelação apareça, necessário que se faz à efe-
tivação da lógica do cuidado, sublinha-se que esse tempo, num primeiro
momento, é entendido por Bergson (2010) justamente como sendo a própria
subjetividade. Para o filósofo, é no intervalo de tempo entre a recepção de
itor

um estímulo e a resposta motriz deflagrada pelos órgãos motores, que se dá


a re

a subjetividade. Subjetividade entendida aqui como uma consciência, órgão


de seleção de estímulos e escolhas de ações, mas compreendida por ele no
seu aspecto temporal, uma vez que esse intervalo de movimento é preenchido
por um tempo que dura, um devir durável. Um tempo que pode ser entendido,
par

como denomina Maciel (2007), como um momento de indeterminação.


Segundo Maciel, é neste intervalo de tempo que hesitamos, escolhemos,
Ed

gestamos escolhas. Tempo de indeterminação no qual se dá a gestação de um


novo desejo. É nesse tempo que “intuímos a atividade de criação quando, na
pausa indispensável que exige o pensar, vemos emergir, com ritmo próprio,
ão

uma ideia nova, uma ideia tempo que será desenvolvida em uma atividade
criativa” (MACIEL, 2007, p. 57).
Neste sentido, partindo da perspectiva de Bergson (2010), estamos com-
s

preendendo que a subjetividade se dá como exploração desse tempo indetermi-


ver

nado, atividade que supõe experimentações sensoriais que podem nos retirar
do âmbito dos hábitos consolidados pelos interesses práticos da existência, a
partir dos quais condicionam automatismos interesseiros, comprometidos que
estão com uma inteligência que só percebe representações, tidas como clichês,
ou seja, circuitos já trilhados a serviço da recognição (MACIEL, 2007).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 517

Compreende-se, assim, que a experimentação deste tempo da indetermina-


ção é hoje impedida pelas matrizes da racionalidade neoliberal que encontram-se
banalizadas e naturalizadas nas práticas pedagógicas e psicológicas que agem
para capturar a diferença. Práticas majoritárias que, ao serem realizadas na chave
desta racionalidade, alijam “n” experimentações de famílias e de crianças em suas
trajetórias pelos serviços pedagógicos, sociais, jurídicos, religiosos, de saúde.
Por um lado, as próprias famílias quando chegam aos serviços de saúde,

or
após o trânsito nas estradas da medicalização, já buscam diagnósticos e tera-

od V
pêuticas que lhes mostrem resolutividade no menor tempo possível, já que

aut
entende-se que ao não aprender ou ter dificuldades escolares, a criança está
“perdendo tempo” e sua família também, uma vez que precisam ficar sem
trabalhar nos dias ou horários de consultas nos distintos serviços. Conforme

R
escreveram Masschelein e Simons (2018): “hoje, um aparato de detecção e
classificação de alcance cada vez mais longo foi desenvolvido em nome da

o
garantia de um futuro para os nossos filhos (e nós mesmos)”.
aC
O que problematiza-se diretamente à pedagogia e a psicologia é o modo
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

como estas práticas têm lidado com esse tempo da análise, da ponderação,
da inquietação que, ao que tudo indica, se esvai. “Nunca se sabe como uma
pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio
visã
de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos”
(DELEUZE, 1987, p. 22, itálico nosso)
Interpela-se: como podemos contribuir em nossas práticas com a abertura
itor

de indeterminações, quando se busca a determinação, o predicado, o saber


a re

especialista, detentor da verdade científica e de uma suposta segurança? A


questão está nos outros que buscam em nós estas prerrogativas ou tanto está
em nós, porque não conseguimos lidar com essa demanda e suportar a não
correspondência da expectativa construída sobre nós? Será que ao não res-
ponder a tais demandas e, assim, muitas vezes, cumprir os critérios através
par

dos quais os outros nos reconhecem como competentes, não estamos tantas
Ed

vezes, nos enredando nas tramas da medicalização da vida?

Habitar o dispositivo e o cultivar mutações subjetivas - os afetos


ão

Precisamos de tempo para deixar surgir o novo. O novo altera o regime


afetivo. O que antes era tolerável, passa a ser intolerável. Deleuze (2016),
s

entende o possível não como o que pode acontecer, efetiva ou logicamente,


ver

onde busca-se várias alternativas para realizar um projeto ou um possível


desejado. Para ele, numa perspectiva que vem de Bergson, não temos o pos-
sível previamente, precisamos criá-lo. O possível, neste sentido, advém do
acontecimento. Nesse caso a revolução, por exemplo, não seria a realização
de um possível, mas uma abertura do possível. É a emergência dinâmica do
518

novo. É a criação de novas possibilidades de vida, o que supõe uma nova


maneira de ser afetado. Uma distribuição diferencial dos afetos. São fissuras,
algo imperceptível, mas a partir do qual tudo muda. Já não se suporta o que se
suportava antes, ontem, ainda; a distribuição dos desejos mudou e nós, nossas
relações de velocidade e de lentidão se modificaram, um novo tipo de angústia
nos atinge, mas, igualmente, uma nova serenidade (DELEUZE, 2007).
A criação do possível a partir do acontecimento opera em um espaço de

or
redistribuição da singularidade, buscando a construção de novos agenciamentos

od V
concretos, materiais, inventar combinações que atualizem as novas poten-

aut
cialidades de vida, não as deixando, com isso, serem esmagadas em antigos
agenciamentos. A injunção de uma nova sensibilidade, novos desejos e afetos.
Assim, o acontecimento cria o possível, que por sua vez não está dado a partir

R
do acontecimento. Precisa ser criado. É uma questão de vida. O acontecimento
cria uma nova existência, produz uma nova subjetividade (DELEUZE, 2016 ).

o
Criar o possível é criar o agenciamento espaço-temporal coletivo inédito,
aC

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que responda à nova possibilidade de vida, ela própria criada pelo aconteci-
mento, ou que seja a sua expressão. Trata-se de inventar formas sociais concretas
que correspondam a nova sensibilidade. Nossas relações habituais com o mundo
se revelam convenções arbitrárias, que nos protegem do mundo e o tornam
visã
tolerável para nós: e aí está o compromisso com a miséria de toda a natureza e
os poderes que a alimentam e propagam (ZOURABICHIVLI, 2000) os esque-
mas sensório-motores, respostas totalmente prontas a situações de sofrimento
itor

sempre singulares e evolutivas. Bom senso e senso comum. Besteira. Clichês.


a re

Tudo o que vemos, dizemos, vivemos, e até mesmo imaginamos e sentimos já


está, definitivamente, reconhecido; carrega, por antecipação, a marca da recog-
nição, a forma do já visto e do já ouvido. Uma distância irônica nos separa
de nós mesmos, e não mais acreditamos no que nos acontece, porque nada
par

parece poder acontecer: tudo tem, de saída, a forma do que já estava presente,
do que já está totalmente feito, do preexistente (ZOURABICHVILI, p.349).
Ed

Deleuze, citando Bergson, diz que nós percebemos sempre menos, per-
cebemos sempre o que estamos interessados em perceber, devido aos inte-
ão

resses econômicos, crenças ideológicas, a nossas existências psicológicas


(DELEUZE, 2007). Lidar com o sofrimento entendendo que este é uma doença
s

e precisa ser tratada, contida; Lidar com supostas incapacidades ou uma menor
ver

competência pelo jugo da medicalização é buscar meios químicos que visam


compensar tais supostas faltas em nós. Assim, quando algo acontece, roti-
neiramente, lidamos com isso com o repertório cognitivo, afetivo e temporal
que temos. Assim, nada acontece. Nada se cria. Porém, este processo produz
mal-estar, pois o novo está ali, exigindo passagem, visibilidade, atualização.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 519

Fechamos as brechas, por onde ele surgia. Damos um sentido, uma razão, um
sentimento. Ficamos seguros pois julgamos saber onde estamos e o que está
acontecendo. Medicalizamos.

Habitar o dispositivo e pensar (por uma outra racionalidade que


não a neoliberal)

or
Ter um tempo para durar. Subjetivar-se. Deixar ressoar um acontecimento

od V
que vai nos devir-outro. Possibilitar a produção de um pensamento. Criação.

aut
Criação de si e do mundo (KASTRUP, 2007). Quando perdemos a conexão
com o real ao lidar com ele a partir de marcas em nós, pela recognição e inva-

R
didos por clichês, o mundo perde sua realidade. “Decalca-se o transcendente
sobre o empírico, concebendo-o à imagem do atual ou da representação.

o
Evacua-se do campo do pensamento, de saída, o novo ou o acontecimento”
(ZOURABICHVILI, 2000). Este autor ressalta que, nessa situação sabe-se,
aC
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antecipadamente, que nada acontecerá ao pensamento, a não ser uma pseu-


do-experiência, cuja forma possuíamos previamente, e que não coloca em
questão a imagem que o pensamento fazia de si mesmo.
visã
Deste modo, tudo o que pensamos confirma que temos a possibilidade
de pensar, sem com isso atestar um ato efetivo de pensar. Uma experiência
real implica, ao contrário, a afirmação de uma relação radical com o que ainda
não pensamos (ZOURABICHVILI, 2000). O impensado. O encontro com os
itor

signos. Segundo Deleuze (2010), só ocorre pensamento quando algo nos força
a re

a pensar. Este movimento é uma espécie de violência, sendo mais importante


que o próprio pensamento, aquilo que o força a pensar. Em sua leitura de
Proust, Deleuze (2010) diz que o que nos força a pensar é o signo, sendo este
o objeto de um encontro; e é a contingência do encontro que garante a neces-
par

sidade daquilo que ele faz pensar. É uma criação, portanto, a gênese do ato
de pensar no próprio pensamento. Pensar é, neste sentido, sempre interpretar,
Ed

“explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um signo” (DELEUZE, 2010, p. 91).


Dardot e Laval (2016) apontam para uma racionalidade neoliberal. Espé-
cie de governamentalidade (FOUCAULT, 2008) a partir da qual a uma série
ão

de práticas de governos sobre os outros mas também de governo sobre si


mesmo. Uma forma de subjetivação. Casara (2017) identificou seu estudo
s

sobre o Estado Pós-democrático, uma forma dominante de pensar que se faz a


ver

partir de categorias rígidas, dentre outras características. Identifica esse modo


de pensar com um pensamento autoritário.
Estamos entrelaçando aqui uma racionalidade específica, a neoliberal, com
suas características e efeitos. Com um arranjo afetivo e uma certa percepção
do tempo estreitamente ligada a esta lógica neoliberal e suas premissas em
520

relação às formas de vida. Entendemos, assim, que a medicalização é uma


das várias facetas desta racionalidade neoliberal, que precisa de um regime de
afetos e modalidades de vivência do tempo que estejam nesta mesma órbita.

Tempo, afeto, pensamento

Pedagogia e psicologia, atravessadas pela diferença, podem constituir-

or
-se em algo distinto de ciências que criam recursos, ferramentas, conceitos,

od V
aparatos para enquadrar, moldar, imobilizar os corpos e as vidas que vivem,

aut
experimentam, criam modos singulares de habitar a existência?
Ao analisar o caso da medicalização vimos que tais ciências, ao serem atra-

R
vessadas pela diferença, podem atualizar formas hegemônicas de controle de vidas
e de corpos, esvaziando espaços públicos e comuns de condições para dar potência
a crianças e familiares que não cessam de atravessar os mares tempestuosos da

o
medicalização, de instituição em instituição, de dispositivo em dispositivo.
aC

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Ao mesmo tempo, vimos que há outros possíveis: pedagogias e psicolo-
gias plurais que podem habitar e cultivar outros tempos, outros afetos, outros
pensares, que escapam à inércia dos clichês, da racionalidade neoliberal que
visã
tenta se impor como única alternativa possível.
Levar em conta os mil modos existentes, e todas aquelas “n” possibili-
dades ainda não atualizadas, que crianças, adolescentes, jovens podem vir a
assumir no registro do contemporâneo. As incontáveis possibilidades de que
itor

profissionais da pedagogia e da psicologia possam criar modos disparatados


a re

de pensar, de sonhar, de habitar profissionalmente os espaços e os tempos


institucionais. Conclamamos aqui modos outros de habitar as instituições.
“Parece-nos que o pluralismo é um pensamento mais perigoso e mais arreba-
tador: não se esmigalha sem subverter” (DELEUZE, 2018, p. 271).
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 521

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O ESTADO BRASILEIRO E AS
POLÍTICAS EDUCACIONAIS
NO CONTEXTO NEOLIBERAL:

or
o currículo multi e intercultural e

od V
suas perspectivas e desafios108

aut
R
Oberdan da Silva Medeiros

o
Introdução
aC
O objetivo deste capítulo é discutir as políticas educacionais brasileiras
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

no que se refere à educação para populações Afro-brasileiras e Indígenas com


ênfase nos alcances dos movimentos negros e do arcabouço legal brasileiro
visã
no interior de políticas neoliberais que desafiam o estado de direito e a plena
realização da cidadania.
A nossa questão central ao discutir a educação e as políticas educacionais
itor

da perspectiva do currículo multi e intercultural consiste em destacar quais


a re

políticas públicas no formato da Lei e das práticas pedagógicas que buscam


atender as necessidades dos alunos e alunas nas suas diversidades culturais e
desenvolvimento de aprendizagem. A respeito da educação do campo Salo-
mão Hage (2006) afirma que nesse contexto há um modelo que fomenta a
par

homogeneização das culturas, na tentativa de um fortalecimento de valores


liberais de individualismo, competitividade, seletividade, meritocracia, e na
Ed

produção da discriminação, exclusão e desigualdade.


Os processos de homogeneização pela universalização de um saber fazer
que busca atender as necessidades de uma sociedade gerida pelo sistema
ão

capitalista abrange o conteúdo, o currículo, e principalmente os modos de


ver, viver e pensar o mundo. As problemas da educação brasileira se pauta
principalmente nos processos de exclusão e de fracasso escolar. E um fator
s

bastante perceptível que gera exclusão nas instituições escolares no Brasil


ver

está intimamente ligado com os desdobramentos das relações ético-raciais


tendo em vista os processos de discriminação racial e a herança colonial da

108 Este texto, cujo caráter é exploratório, é fundamentado em reflexões que expressam a relação sobre o meu
objeto de estudo, Educação em diálogo com a questão racial e cultura humana, à luz dos Estudos Pós-
-Coloniais como possibilidade analítica, teoria/tema abordado em textos científicos apresentados e debatidos
ao longo do ano de 2020 no período de “Isolamento Social” por conta da pandemia de Covide-19 que se
instalou no mundo.
526

escravidão e constantes empreendimentos de políticas econômicas brasileiras


que pouco desenvolvem ações diretas de desenvolvimento humano e social.
A partir de Frigoto (1984), podemos inferir que os vários mecanismos de
exclusão se devem a uma crise do capital, que se acentuou no final do século
XX pela incapacidade do capitalismo socializar sua capacidade produtiva com
os inúmeros atingidos por sua lógica gerando inúmeros processos de exclusão
e o que fica definido como desertos econômicos. Essa leitura nos leva a per-

or
ceber um caráter contraditório da prática educativa que reflete o que temos no

od V
interior do sistema como um todo. Podemos entender que a organização da

aut
escola desde os fatores técnicos indo aos desdobramentos políticos, perpas-
sando pelos conteúdos, método e currículo se constitui como algo estranho aos
interesses e valores da classe trabalhadora, e por consequência disso os grupos

R
mais vulneráveis, como determina uma “exclusão” precoce do trabalhador.
No caso das populações negra, em especial a quilombola, e indígenas,

o
que são caracteristicamente populações do campo, de acordo com Fernando
aC
e Molina (2004), em sua relação com o essa proposta do Estado mínimo um

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vários elementos apontam para a necessidade de se rever desde o processo
de democratização ao acesso a terra; a criação de unidades familiares no ter-
ritório rural que se revela como um espaço que transcende a mera produção
visã
de mercadorias, determinando isso como básico para processos de transfor-
mação das condições de vida de trabalhadores excluídos por esse modelo de
desenvolvimento. No que se trata da permanência desses atores no processo
itor

educativo só é possível pela estabilidade que o processo de acesso à terra pode


a re

garantir. Ainda para esses autores a inclusão ou exclusão são determinadas


por relações de poder que controlam a dinâmica de poder que controlam a
dinâmica dos coletivos sociais.

Educação, multiculturalismo e o estado neoliberal brasileiro


par
Ed

A força do movimento de resistência culminou com ações e leis que


alcançadas a partir do movimento negro, indígena, da educação de jovens e
adultos, da educação especial, dentre outros. Por conta de estarmos imersos
ão

no afã de vislumbrar um debate sobre as questões étnico-raciais daremos


destaques aos dois primeiros.
Nesse sentido, o Teatro Experimental Negro promoveu condições eman-
s

cipadoras da cultura negra, era composto por indivíduos de vários setores


ver

sociais. Dentro desse contexto de marginalização, insere-se também a escola


e as políticas educacionais desenvolvidas pelo Estado brasileiro.
A partir da década de 50 do século XX o movimento negro se direciona
para inclusão educacional dos conhecimentos científicos que abarca a negritude
brasileira. E paralelo a esse movimento podemos entender em Frigoto (2000)
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 527

que o Estado passa a se preocupar com o direcionamento de subsídios ao capital


privado, é a criação de ambientes como as escolas comunitárias, das organi-
zações de centros populacionais, das escolas cooperativas dentre outras desta
iniciativa. Enquanto o movimento negro quer vislumbrar sua problemática o
que temos no imaginário de planejamento para a educação em sentido econô-
mico é a ideia de repasse de dinheiro aos alunos pobres e suas famílias com a
possibilidade de escolha do tipo de educação e de instrução que este “quiser”, é

or
quando eclodem as escolas públicas-empresas, a filantropia e a proliferação de

od V
centenas de Ongs. Na década seguinte o esses movimentos pleitearam reivin-

aut
dicações em prol da Lei 4024/61 que defendia os princípios de liberdade e os
ideais de solidariedade humana. Legislaram a condenação a qualquer tratamento
desigual por motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a

R
quaisquer preconceitos de classe ou de raça (SILVA JUNIOR, 1998).
Nesta perspectiva, observa-se o posicionamento crítico de Neves (2005),

o
quando afirma que há um conjunto de fatores que determinam à política edu-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

cacional no Brasil contemporâneo, cuja massificação faz colocar em vigor


uma verdadeira pedagogia da hegemonia, amplamente debatida pela autora
em sua tese de doutorado.
No que diz respeito ao termo “pedagogia da hegemonia”, Neves (2005)
visã
buscou subsídios na afirmação de Gramsci de que toda hegemonia é pedagógica.
Dito de outra forma, hegemonia aqui é tratada como um conjunto de forças que
conduzem para a relação de dominação entre classes privilegiadas, a burguesia e
itor

as camadas populares alijadas das benesses do estado. Assim, a classe dominante


a re

faz uso do Estado gerencial, de forma coercitiva, para construção de um consenso


permeado pela educação brasileira. Neste contexto, a autora faz referência à
transição política no Brasil, aludindo para os governos de FHC que determinaram
o desmonte do estado desenvolvimentista para um estado neoliberal de terceira
par

via, cuja consolidação teria se dado no decorrer do governo Lula.


As políticas educacionais voltadas para os “excluídos”, neste sentido, ganha-
Ed

ram vigor no decorrer desse último governo, com a promoção de ações afirma-
tivas109 para a abolição do preconceito e desigualdades sociais, em 31 de agosto
a 7 de setembro de 2001 foi realizada à Conferência das Nações Unidas Contra
ão

o Racismo em Durban na África do Sul. Como afirma o Artigo 113 da seção 5:

Encoraja os Estados a adotarem estratégias, programas e políticas,


s

incluindo, interalia, ações afirmativas ou medidas positivas e estratégias


ver

ou ações, para possibilitar que as vítimas de racismo, discriminação racial,

109 Ações afirmativas, segundo Amaro (2005, p. 74), diz respeito a “qualquer política que, operando com o
critério de discriminação positiva, vise favorecer grupos socialmente discriminados por motivo de sua raça,
religião, sexo e etnia e que, em decorrência disto, experimentam uma situação desfavorável em relação a
outros segmentos sociais”.
528

xenofobia e intolerância correlata exerçam plenamente seus direitos civis,


culturais, econômicos, políticos e sociais, incluindo o melhor acesso a
instituições políticas, judiciais e administrativas, e concedendo aos mes-
mos maior oportunidade de participarem totalmente em todas as esferas
de vida das sociedades nas quais elas vivem (ONU, 2001).

A atenção às contribuições dos diversos elementos que compõem a nossa

or
história assinala-se no Artigo 216 que “Constituem patrimônio cultural bra-
sileiro os bens de natureza material e imaterial. A política do Estado abre um

od V
precedente para superação das disparidades que existem entre as diferenças

aut
culturais. Como assegura o Artigo 5º inciso XLII, “a prática do racismo cons-
titui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos
da lei” (BRASIL 1988).
R
Vale frisar que o debate das questões etnicorraciais é recente no corolário

o
educacional brasileiro, podendo ser mais facilmente percebido por força da
aC
implementação das leis 10.639/03 e 11645/08, que versam sobre o estudo da

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


história e cultura afro-brasileira e indígena e que de certa maneira não pas-
sam de promessas não cumpridas. Outros apontamentos são a lei do racismo
(lei 7.716/89) e o artigo 5º da Constituição Federal, que visa, sobretudo,
visã
estabelecer a igualdade e o acesso dos cidadãos nacionais aos vários direitos
enquanto ser humano, o que vem ao encontro de ordenamentos e convenções
internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da
itor

Organização das Nações Unidas (ONU).


a re

Uma situação a se destacar, inicialmente é a grande lacuna existente


entre a Declaração da ONU e a Constituição de 1988, justamente o lapso
temporal ao qual este trabalho se debruça, isto é, entre 1974 a 1984. Podemos
perceber, ainda, ausência de normas que regulem tais processos, falta de voz
de uma militância visibilizada, categoria afro-brasileira deixada às margens
par

dos processos sociais de cidadania pelo poder público e um Estado que não
cumpre suas funções no que tange à educação.
Ed

Os debates acerca das questões etnicorraciais, racismo, preconceito,


discriminação, intolerância e xenofobia começam a ocorrer de forma mais
ão

pontual apenas depois da Segunda Guerra Mundial, com base numa proposta
de rever as atrocidades de Rither aos judeus. Paralelo a isso, discute-se a
pendência com relação à escravidão negra a partir do início da modernidade
s

com relação aos diversos povos africanos e suas consequências materiais e


ver

ideológicas. Nesse cenário, percebe-se que o aspecto educacional da relação


escola ideal versus escola real não chega a uma concretização do que seria
a primeira, visto que a segunda é um instrumento utilizado para o exercício
da violência simbólica.
Neste universo, Piovesan (2007) é enfática ao afirmar que:
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 529

As ações afirmativas, enquanto políticas compensatórias adotadas para ali-


viar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório, cum-
prem uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático, que é a de
assegurar a diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas
que viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve
se moldar no respeito à diferença e à diversidade. Através delas transita-se
da igualdade formal para a igualdade material e substantiva (p. 40).

or
As pressões advindas das frentes humanistas e multiculturalistas foram

od V
relevantes à constituição de programas e legislações que amparem e valo-

aut
rizem a história e as prioridades culturais das diferenças étnicas. Dentre os
resultados, durante a década de 90 “aprofundaram os conceitos de diversidade

R
cultural, desenvolveram o conceito de nação multiétnica e Estado pluricultu-
ral e reconheceram o pluralismo jurídico, assim como reconheceram novos

o
direitos étnicos” (FRANCO, 2012, p. 43).
aC
Assumindo-se um viés de enfrentamento das desigualdades sociais e raciais
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que se configuram em torno do modelo civilizatório brasileiro, os esclarecimen-


tos contidos na obra de Romão (2013) vão ao encontro de elucidar os elementos
que promovem a construção de tais desigualdades frente aos diferentes.
visã
Trata-se, segundo Romão (2013), de uma repulsa natural dos seres huma-
nos frente ao estrangeiro, ao diferente que além de ser alguém que não merece
laços de afetividade, também é o sujeito que deve receber toda agressividade
itor

presente. Em outras palavras, Romão (2000, p. 326) afirma que:


a re

[…] O contato com o diferente, sob aspectos étnicos, raciais, nacionais


ou de gênero, mobiliza conteúdos internos reprimidos, em grande parte
inconscientes e, portanto, desconhecidos ao próprio sujeito. Esses con-
teúdos, em virtude de sua condição ameaçadora, são racionalizados e
par

projetados nas vítimas do preconceito, que então passam a ser consideradas


sujas, promíscuas, inferiores etc. […]
Ed

Por outro lado, compreende-se a partir da leitura de Cotrim (2009) que


Rousseau, em 1775, já afirma que a natureza das desigualdades entre as dife-
ão

renças étnicas está em torno da crença simbólica.


Acerca do pensamento de Bhabha (2010), entende-se este discurso como
de caráter colonialista, o qual denota suas lógicas políticas, filosóficas, cientí-
s

ficas e mercadológicas para muito além das suas fronteiras. Aliás, fronteiras
ver

é uma questão quase que indizível para estes, uma vez que são a hegemonia
nas relações internacionais acerca do poder político simbólico que perpetuou
a desigualdade em detrimento das liberdades das diferenças culturais. Forta-
lecendo seu discurso colonizador apreenderam em grande parte aqueles que
julgavam seres inferiores. Em simetria, Pinto (p. 81, 2010) compreende que:
530

O discurso pode ser inicialmente definido como uma bem sucedida, mas
provisória, fixação de sentidos, daí que o conceito de discurso e a teoria
do discurso partem do princípio que as verdades anteriores ao discursos
não existem, isto dito de outra forma se coloca diametralmente na opo-
sição a posturas essencialistas, que pensam em uma realidade pré-dada,
que deve ser descoberta através da mediação da teoria. Para a teoria do
discurso, a verdade é uma construção discursiva, afirmação que não pode

or
ser confundida com a simplista ideia de que a verdade não existe.

od V
Nota-se que o discurso político de hierarquização das diferenças culturais

aut
conquistou apoio nas teorias do darwinismo e nas políticas positivistas. Uma
vez que o pensamento etnocêntrico no “plano intelectual, pode ser visto como

R
dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de
estranheza, medo, hostilidade, etc.” (ROCHA, 1984, p.7). Freud explica esta

o
aversão ao diferente de si o qual é dado pela esquizofrenia do narcisismo.
Neste sentido, Fernandes (p. 75, 200) salienta que:
aC

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Freud assinala que a aversão e a repulsa que são dirigidas a outras pessoas
são expressão do amor por si mesmo, ou seja, expressão do narcisismo.
visã
Na tentativa de conservar-se o indivíduo toma toda e qualquer divergência
com determinada pessoa como critica a seus aspectos individuais. Isso,
segundo Freud, mostra a predisposição ao ódio e uma agressividade des-
conhecida e elementar do ser humano.
itor
a re

Laraia (2009, p. 67) afirma que na pós-modernidade “os antropólogos


estão totalmente convencidos de que as diferenças biológicas não são deter-
minantes das diferenças culturais”. As capacidades humanas estão dispostas
em um mesmo grau para todas as etnias, o que as diferencia é a forma com
que são trabalhadas, ou seja, educadas. Acerca da leitura do antropólogo
par

Felix Keesing o autor defende que se uma criança européia for criada por
Ed

uma família brasileira deixará de ter hábitos e costumes, valores intelectuais


e morais dos povos europeus em prol da brasilidade. Larraia (2009) afirma
que o homem não é nada mais nada menos daquilo que é educado.
ão

Compreende-se que o contexto educacional de uma determinada socie-


dade está de acordo com os discursos políticos que denota o seu Estado. A
saber, que o:
s
ver

Estado obtém um certo poder próprio – é ele quem toma as decisões quanto
aos problemas, à legislação e ao curso do desenvolvimento econômico
e social. Ao eleitorado cabe o poder de decidir qual grupo de líderes
(políticos) ele deseja para levar a cabo o processo de tomada de decisão
(CARNOY, 1988, p. 53).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 531

A cultura que permeia a educação etnocêntrica condiz com a lógica do


discurso colonizador, de um Estado monista que não condiz com a lógica
das diferenças culturais a qual denota o desenvolvimento humano em si. “As
condições de emergência são em síntese o que permite ao discurso existir,
fazer sentido em um dado contexto” (PINTO, 2011, p. 97).
Por outro lado, compreende-se a partir da leitura de Bhabha (2010) que
as performances dos povos marginalizados culturalmente não são apáticas no

or
tempo histórico. De tal modo, Pinto (2011, p. 92) compreende que:

od V
aut
Quanto mais se democratiza um país, mais haverá cidadãos falando de
seus problemas em locais não tradicionais da política. Portanto, no regime
democrático tende a haver uma democratização dos espaços, onde o discurso

R
político é enunciado. E quanto mais o discurso político for enunciado por
mais pessoas, mais democrático tende a ser o país e menos sentidos fixos

o
os discursos dominantes conseguirão deter. Já se disse que a democracia é o
regime da incerteza, poderíamos parafrasear dizendo que o discurso demo-
aC
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crático é o discurso da incerteza, porque ele, ao incorporar novas demandas,


novos sujeitos, novas problemáticas, reconstrói os próprios sentidos, nega
suas verdades. Ou seja, a questão não é desqualificar o deputado, o repre-
visã
sentante, como aquele que tem o privilégio do discurso político, mas fazer
com que ele tenha cada vez mais de dar conta do seu discurso político.

As Diretrizes Curriculares da Educação das Relações Étnico-Raciais inseri-


itor

ram o ensino de história e cultura dos povos indígenas, afro-brasileiros e africanos


a re

nas instituições escolares de diferentes níveis e modalidades. Cabendo ao sistema


educacional, no âmbito de sua jurisdição, orientar o trabalho pedagógico dos
docentes e supervisores ao cumprimento das Diretrizes. Como afirma o Artigo 1º:

A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-


par

cação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura


Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições de ensino
Ed

de Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Ensino Fundamental,


Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos, bem como na Educação Supe-
rior, em especial no que se refere à formação inicial e continuada de profes-
ão

sores, necessariamente quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais; e


por aquelas de Educação Básica, nos termos da Lei 9394/96, reformulada
por forma da Lei 10639/2003, no que diz respeito ao ensino sistemático de
s

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em especial em conteúdos de


ver

Educação Artística, Literatura e História do Brasil.(BRASIL, 2004).

No contexto de inclusão da temática referente a história e cultura afro-


-brasileira e africana na educação básica, pode-se perceber que tal iniciativa
buscou promover a democratização do conhecimento nas diversas matizes
532

culturais que formam o povo brasileiro, em especial àquelas de origem afri-


cana, fortemente impregnada em nossa sociedade. Por outro lado, também
se identifica um passo inicial em busca de amenizar as desigualdades sociais
e raciais que se configuraram em torno da formação do modelo civilizatório
no Brasil, tal como se verifica adiante.
A escravidão que ocorreu no Brasil desencadeou a exclusão dos negros no
seio da sociedade, refletindo uma herança cultural pejorativa da sua identidade.

or
Os movimentos abolicionistas cotejaram seus esforços junto a reorientações
jurídicas a partir da Lei Eusébio de Queiróz de 1850, que proibia o comércio de

od V
escravos negros na esfera mundial. Os países de economia escravocrata e não

aut
industriais continuaram a comercializar ilegalmente as sociedades africanas.
Neste cenário, eclodiu uma nova forma de lucratividade mercadológica dada

R
pelo tráfico de pessoas. Mediante as pressões oriundas do discurso político
desenvolvimentista civilizacional de caráter industrial, em 1871 instituiu no

o
Brasil a Lei do Ventre Livre que tinha como objetivo dar liberdade aos filhos
aC
de mulheres escravas nascidos a partir do ano em que foi vigorada a legislação.

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Tempos após, legislou-se a Lei do Sexagenário de 1885 a qual atribuía liberdade
a escravos e escravas com mais de 65 anos de idade, ou seja, período da vida
humana em que a força do trabalho braçal tem poucos haveres. Somente em 13
visã
de maio de 1888 a escravidão foi extinta com a promulgação da Lei Áurea.
Mesmo que a política jurídica brasileira possua uma legislação ocupa-
damente minuciosa a questão indígena que se arrasta no tempo histórico, o
dever do Estado quanto ao cumprimento dos decretos e leis que estabelece
itor

está no julgo da lógica monista do capitalismo. Visto que na prática “não se


a re

observa um atendimento satisfatório, seja por falta de recursos financeiros,


seja por negligência ou por falta de informação” (BARÃO, 2005, p. 125).
No decorrer dos anos 60 aos 90 do séc. XX a política ocidental capitalista
defrontou-se com os reflexos das suas performances emancipatórias, dadas
par

pelas grandes guerras. Nesse cenário, identifica-se que eclodiram mobilização


e organização política de diferentes segmentos socais de opinião divergente.
Ed

Em meados dos anos 90 as estruturas políticas da cultura ocidental monista


viram-se coagidas a negociar com os movimentos multiculturalistas. Aos quais
fervilharam seus ideais na arena política mundial, fundamentando-se na Carta
ão

Universal dos Direitos Humanos110 e na Carta111 da ONU em prol do princípio


de autodeterminação dos povos. A saber, Franco (2012, p.25) compreende que:
s

110 Constituída na Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 (FRANCO,2011)
ver

111 A referida jurisdição foi constituída em 1992 acerca de pactos Internacionais sobre:
Direitos Civis e Políticos adotados pela XXI Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 16 de
dezembro de 1966 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm. Acessado em 18 de
julho de 2014, as 21 h.
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi adotado pela XXI Sessão da Assembléia-Geral das Nações
Unidas, em 19 de dezembro de 1966 http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_economicos.htm.
Acessado em 18 de julho de 2014, às 21: 12 min.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 533

A ordem jurídica do pós-guerra, além de marcada pela inserção da pessoa


humana como sujeito de direito internacional, paradoxalmente, também o
foi pela instauração de um universalismo reducionista, encerrado no Estado
constitucional, cuja afirmação se moldou no princípio da autodeterminação
dos povos, como expressão da soberania dos países reconhecidos pela
comunidade internacional.

or
No caso dos afrodescendentes a defesa pelos direitos civis e respeito à
cultura negra percorreu lado a lado no tempo histórico desde a escravidão. Isto

od V
também se aplica para com os indígenas, a saber que Barão (2005) constata a

aut
performances política dos Mbyá Guaranis112 desde o período da colonização
até a constituição do Estado moderno brasileiro. Em simetria, Franco (2011, p.

R
20 e p. 21) evidencia a visibilidade das organizações das sociedades indígenas
na arena política, a partir de 1940:

o
aC
Convenção sobre o Instituto Indigenista Interamericano (1940); Convê-
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nio 107 da OIT, sobre Populações Indígenas e Tribais em Países Indepen-


dentes (1957); a Declaração de Concessão de Independência aos Países e
Povos Coloniais (1960); Convênio 169 da OIT, sobre Populações Indíge-
visã
nas e Tribais em Países Independentes (1989); e a Declaração das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), pode-se notar um
emergente direito internacional dos povos indígenas.
itor

Durante os anos 70 a Amazônia tornou-se a região dada aos indígenas,


a re

sua migração ocorreu em grande escala por meio da tutela do Estado. Nesse
território as fronteiras das adversidades e multiplicidade que detém a cul-
tura indígena aproximaram-se, emergindo em conflitos sociais entre etnias
distintas e/ ou adversárias. Bem como, eclodiram conflitos entre indígenas,
par

latifundiários e industriais em torno da distribuição assimétrica de terras. A


política brasileira se arrasta historicamente por distintivos jurídicos de um
Ed

Estado mercadológico que atua como uma mão-invisível e que está a mercê
das orientações das instituições econômicas privadas. Assim, a política desen-
volvimentista amazônida “ignora flagrantemente a associação histórica entre
ão

formação de pastagem e concentração de terra, conflitos violentos e degrada-


ção ambiental” (HALL, 1991, p. 84).
A questão indígena vem conquistando direitos civis que outrora foram
s

renegados. Franco (2011, p. 31) afirma que a partir dos anos 80 constitui-se
ver

“a incorporação dos direitos especificamente indígenas ao lado dos direitos à

112 E Etnia pertencente ao troco lingüístico dos Guarani, aos quais são ontologicamente compreendidos como
povos sul-americanos, proveniente dos países: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia. O tronco
lingüístico se subdivides entre os Kaiowá , Nhandéva e Mbyá . No Brasil os Guarani podem ser encontrados
vivendo entre o Espírito Santo e o Rio Grande do Sul (BARÃO, 2005)
534

identidade cultural, coletiva e individual”. Nos anos seguintes aprofundaram


as questões da diversidade cultural e o reconhecimento de nações multiétnicas
e Estado pluricultural norteando o pluralismo jurídico de direitos étnicos.
A Constituição de 1824 em seu Artigo 6º atribuía “que a escola estava
reservada aos cidadãos brasileiros”, desse modo os indígenas e escravos liber-
tos tinham legalmente o direito assegurado. Contudo, isto não ocorreu na
prática visto que a segregação racial era um elemento cultural consumado

or
pelas práticas e valores sociais, sendo legalizada juridicamente anos após.
Constata-se nas Diretrizes Curriculares Nacionais de 1854 e 1878 que este

od V
direito legal foi restringido pelo Decreto nº 1.331, vigorado em 17 de fevereiro

aut
de 1854, o qual estabelecia que nas escolas públicas a adesão de escravos
estava a mercê da aceitação da escola. Tempos mais tarde, O Decreto nº 7.031-

R
A, legislado em 6 de setembro de 1878, limitava a presença negra na escola
ao período noturno (PERREIRA, 2007).

o
Nesse contexto, a governabilidade política brasileira configurou-se como
aC
Estado inoperante dos direitos civis e da igualdade. Amparada legalmente, a

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escola constituía e ainda se constitui como um espaço de reprodução dos inte-
resses dos impérios industriais estrangeiros. Nas palavras de Coelho (2009):
visã
Essa reprodução se dá por duas razões: em primeiro lugar, porque a insti-
tuição é formada por agentes sociais que, a despeito dos hábitus diversos,
contribuem para a reprodução das estruturas da cultura dominante, no que
tange a questão racial; em segundo lugar, porque a instituição se omite de
itor

cumprir a sua função de fazer emergir um novo hábitus, profissional, no


a re

qual o preconceito, o racismo e a segregação não se manifestem, ainda


que persistam na convicção de cada um dos agentes (p.33 -34).

Identifica-se que a educação nos primeiros anos da República não contem-


plou as necessidades tanto dos negros quanto dos indígenas, o Estado não viabili-
par

zou a sua inclusão de forma satisfatória. Uma vez que a educação das sociedades
indígenas foi cotejada pela tutela das legislações curriculares ocidentais e pela
Ed

prática pedagógica dos não indígenas, ou seja, pela cultura de caráter europeu.
Nota-se que, foi necessário por parte dos movimentos negros a realização de
uma segunda abolição. Uma vez que, não se criou subsídios jurídicos por parte
ão

dos governos políticos e nem condições socioculturais plenas para a realização dos
direitos humanos. Como afirma o Jornal Quilombo, dirigido pelo militante negro
s

Abdias do Nascimento em sua primeira edição, na coluna “Nosso Programa”:


ver

[...] era necessário lutar para que, enquanto não for gratuito o ensino em
todos os graus, sejam admitidos estudantes negros, como pensionistas do
Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino
secundário e superior do País, inclusive nos estabelecimentos militares
(QUILOMBO, 2003).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 535

Paralelamente, a partir de meados da década de 80 ocorre a tomada da


redemocratização do país. Neste cenário, a Constituição de 1988 consolidou
o compromisso do Estado e da sociedade em promover uma educação para
todos seguindo os ideais democráticos. Esses princípios estão fundamentados
no Artigo 5º o qual denota que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

or
segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988).

od V
aut
A educação como produto da cultura

R
Ao longo de todos os tempos o homem em seus menores atos vem apri-
morando sua vivência e demarcando sua passagem pelo mundo. Mas, o que

o
influencia suas atitudes e faz adequar o mundo a sua volta? O ocidente sempre
valorizou a racionalidade e procura sempre descartar a possibilidade de o
aC
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homem buscar sua satisfação unicamente guiado por seus fatores biológicos
ou pela influência que o ambiente pode imprimir sobre o mesmo, comuns a
todos os animais e que condiciona sua herança genética. O que está por trás
visã
dessa atitude é o que podemos definir como cultura. Seus desdobramentos
podem acarretar situações em certa medida bastante conflitantes.
Em Todorov (1993), cultura sugere um movimento dialético entre a uni-
dade e a diversidade, entre o que o mundo universaliza e o que este relativiza,
itor

entre o que o mundo nos faz e o que fazemos no mundo. Neste sentido, pode-
a re

mos inferir que o homem é possuidor de signos que se multiplicam infinita-


mente, e que aprendidos, estimulados pelo seu contato com o mundo, e quando
o relativo e o universal são confrontados entramos em uma arena de debate
sobre poder. O que assegura a retenção de suas ideias, comunica-as para os
par

outros e é capaz de transmiti-las para descendentes, principalmente pela educa-


ção, em forma de herança, que sempre se amplia. Quando o subproduto deste
Ed

embate é o etnocentrismo, temos que considerar duas facetas deste problema.

O etnocentrismo, portanto, tem duas facetas: a pretensão universal, de um


ão

lado; o conteúdo particular (o mais frequentemente nacional) de outro.


Os exemplos de etnocentrismo são inumeráveis, tanto na história quanto
s

do pensamento da França como em outros países; não obstante, quanto se


busca ilustração mais apropriada – e no momento não se trata de nada além
ver

de uma ilustração que simplesmente se busca a ilustração que simplesmente


se busca fixar as ideias – a escolha parece claramente indicada: será que
Hyppolite Taine chamava, em Les origens de la France contemporaine, de
espírito clássico, o do século XVII e XVIII e que as vezes é identificado
(no estrangeiro) como o espírito francês. (TODOROV, 1993, p. 22).
536

A educação enquanto área do conhecimento guarda algumas nuances que


não são fáceis de serem vislumbradas, alguns clássicos são vistos como possui-
dores de uma imensa responsabilidade em construir e reproduzir situações que de
certo modo, se não bem articuladas podem gerar contributos catastróficos no que
tange a compreensão do homem. O termo cultura, do qual nos ocupamos neste
texto, engloba tudo inerente ao homem, sejam coisas ou os acontecimentos, este
conceito infere sua correlação a tudo o que é humano. O que há de aprendizado

or
ou transmissão da cultura impõe uma “clara” oposição à ideia de inatismo.

od V
Neste aspecto devemos atribuir destaque ao papel da educação. Há ocor-

aut
rência em algumas sociedades de escolas formais, é cargo destas instituições
completar a transmissão da cultura que inicialmente se dá na família e nos
outros meios de socialização.

R
A cultura não é nem o mero outro social nem (como sucede com «civi-

o
lização») o seu idêntico, movendo-se simultaneamente com e contra o
aC
fio do progresso histórico. A cultura não é, assim, uma vaga fantasia de

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realização, mas um conjunto de potencialidades criadas pela história, que
operam subversivamente dentro dela (EAGLETON, 2005, p. 37)
visã
O termo cultura engloba tudo inerente ao homem, sejam coisas ou os
acontecimentos, este conceito infere sua correlação a tudo o que é humano.
Não podemos perder de vista os fatores mais “íntimos” ao grupo que consti-
itor

tuem a cultura mas que estão mais próximo daquilo que classificamos como
a re

etnia. Oliveira (2010) é bem precisa quanto a esta conceituação, considera-se


aqui um grupo étnico deve possuir ascendência comum, ter a mesma lín-
gua, comungar da mesma religião, possuir uma cultura que os una, além de
residir num território geográfico comum. Evidente, que de forma subjetiva,
os indivíduos do grupo devem ter sentimento de pertencimento ao grupo,
par

considerar-se membro. Deste modo, o que há de aprendizado ou transmissão


da cultura impõe uma oposição à ideia de inatismo. Neste aspecto devemos
Ed

atribuir destaque ao papel da educação. Há ocorrência em algumas sociedades


de escolas formais, é cargo destas instituições completar a transmissão da
cultura que inicialmente se dá na família e nos outros meios de socialização.
ão

O homem foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor duas notá-
veis propriedades: a possibilidade da comunicação oral e a capacidade de fabri-
s

cação de instrumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico.


ver

Fanon (1983) aponta que surge nos contatos de culturas, a exemplo do


momento de colonização, uma espécie de complexo de inferioridade que se
instala no colonizado, quando do “sepultamento” do que se tem de original
na sua cultura. No caso dos povos negros a colonização desconsidera sua
possibilidade de posse de cultura, civilização ou até mesmo passado histórico.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 537

Surgem na biologia e nas ciências humanas do início da modernidade, a


serviço do colonizador a tentativa de se explicar as formas de cultura, de se
acreditar que o homem dá respostas mecânicas aos estímulos materiais, o
que resultaria em determinismo, que o estudo dos fatos nega. A natureza não
determina as ações do homem, ela no máximo as condiciona, sobretudo no
sentido de limitar a cultura e não no de promovê-la.
Hall (2003) define bastante bem o ponto acima, o determinismo é uma

or
das “linhas de tendência e direção”, logo, há um espaço para que ele sofra

od V
influências. No fim das contas, entretanto, essas linhas são “inexoráveis”.

aut
Até mesmo povos distintos apresentam determinadas características que
são inerentes ao homem maneira universal. Por que povos culturalmente tão
diferentes, que vivem em ambientes diversos, como os mongóis, os etíopes,

R
os europeus, podem ter comportamentos e atitudes que se assemelham? Amor,
religião, ódio, vergonha encontram-se em todas as culturas. Aqui cabe dialogar

o
com uma tendência natural a ser humano que em muito influencia os contatos
aC
entre culturas e os desdobramentos são adversos.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Os elementos apontados acima são, antes de tudo, instituições feitas por


sujeitos interdependentes e, portanto, não podem ser vistos como estruturas
que pressionam umas as outras, mas sim constituídas por indivíduos que se
visã
pressionam de maneira recíproca, gerando uma dinâmica simbólica da socia-
lização (SETTON, 2002).
É no âmbito simbólico que o homem produz coisas que se transformam
itor

em bens materiais e consumíveis para se manter vivo: alimento, roupa, abrigo,


a re

artefatos domésticos, meios de transporte, ferramentas, educação, etc. Aí


aparece a dimensão prático-material, técnico-científica da ação humana. O
mundo dos homens e de suas ações constrói e inventa coisas cuja utilidade
material, biológico-corpórea é indispensável: não se pode, por exemplo, viver
sem alimento, sem roupa, sem abrigo, etc.
par

Em Bourdieu (2005), a organização do mundo e a fixação de um consenso


Ed

a seu respeito constitui uma função lógica necessária que permite a ocorrência à
cultura, numa dada formação social, cumprir sua função político-ideológica de
legitimar e sancionar regimes de dominação de homens sobre outros homens.
ão

Para Fanon (1993) o processo de dominação colonial não é apenas a subordina-


ção material de toda uma população, ela também ocorre em sentido simbólico
na expressão se seus símbolos e se entendem por todos os meios possíveis, na
s

linguagem, nos métodos científicos, na literatura, teatro, cinema, etc.


ver

A verdadeira contribuição das culturas não consiste numa lista das suas
invenções particulares, mas na maneira diferenciada com que elas se apre-
sentam e são apreendidas. Em Stepan (2005) fatores políticos, econômicos,
sociais e culturais estão imbricados desde a elaboração de teorias científicas,
assim como em todas as práticas humanas, é por exemplo o debate que a
538

mesma faz na obra “A hora da Eugenia”. Dever-se-ia haver uma espécie de


sentimento de gratidão e de humildade de cada membro de uma cultura dada,
deveria ter em relação a todas as demais, não deve basear- se senão numa só
convicção: a de que as outras culturas são diferentes, de uma maneira a mais
variada e se a natureza última das suas diferenças nos escapa, deve-se a que
foram imperfeitamente penetradas.

or
Conclusão

od V
aut
As políticas educacionais implantadas no Brasil, entre as duas últimas
décadas do século XX até o presente momento, denotam apontam para o des-

R
monte do estado desenvolvimentista para o modelo de políticas neoliberais
de terceira via, cuja principal característica é colocar em vigor práticas hege-
mônicas de submissão à classe dominante, em detrimento da grande parcela

o
da população, conferindo algum tratamento para assistir aos “excluídos”.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


No bojo desse cenário de exclusão, as políticas afirmativas surgem como
alento às “minorias”, acenando para um viés compensatório do estado bra-
sileiro para com populações indígenas, afrodescendentes, ribeirinhas dentre
visã
outras. Fica evidente ao longo dos fatos históricos que a escravidão não acabou
de uma hora para outra por meio de uma liberdade instantânea e sem lutas,
tão pouco sem prejuízos para a construção de um Estado corresponsável com
o desenvolvimento último da democracia.
itor

A falta de justeza do sistema neoliberal incide na realidade social de


a re

negligência das garantias legais, não somente dos grupos indígenas e afro-
descendentes e sim de uma volumosa demanda social que paradoxalmente é
denominada como minoria.
As políticas culturais do Estado necessitam serem revistas minucio-
par

samente e refletidas a partir das vozes das minorias, para que possam ser
reelaboras à luz das suas prioridades. Visto que, o desrespeito e/ ou comercia-
Ed

lização ideológica dos signos das diferenças culturais não é capaz de abarcar
o desenvolvimento humano em si.
Vislumbra-se a relevância de discursos políticos educacionais e conhe-
ão

cimentos científicos pautados na lógica da diferença, a qual compreende as


aspirações e necessidades próprias de cada etnia ou grupo social. Desse modo,
os direitos jurídicos multiétnicos serão capazes de representar as vozes das
s

diferenças culturais em si.


ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 539

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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA
INFANTIL: proposta de atuação
em um contexto clínico

or
od V
Carla de Cassia Carvalho Casado

aut
Ícaro dos Santos Ferreira

R
Introdução

o
A neuropsicologia é um campo da neurociência que se propõe a estudar
aC
os princípios fundamentais que regem a organização funcional do cérebro,
suas principais unidades e o papel dos sistemas cerebrais individuais na orga-
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nização de processos mentais (LURIA, 1981). De acordo com Malloy-Diniz


et al. (2016), esta ciência tem como norte elucidar questões relacionadas a
visã
organização cerebral e suas relações com o comportamento e a cognição,
tanto em indivíduos típicos, quanto em casos de lesões e/ou enfermidades,
podendo ser aplicada em pesquisas, na escola, na família, na saúde (LEZAK
itor

et al., 2012) e no ambiente clínico.


a re

No contexto clínico a neuropsicologia direciona seus estudos para o


desenvolvimento de técnicas de exame e diagnóstico de alterações, enfo-
cando patologias que podem afetar o comportamento e a cognição em
diferentes etapas do desenvolvimento. Por meio da aplicação de entrevis-
par

tas, testes e exercícios quantitativos e qualitativos é possível avaliar os


processos cognitivos de atenção, percepção, memória, linguagem, funções
Ed

executivas, velocidade de processamento e raciocínio (LEZAK et al., 2004;


MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2010).
Na atualidade, os dois principais campos de atuação profissional que tem
ão

se consolidado são a avaliação e a reabilitação neuropsicológica. Na avaliação


neuropsicológica utiliza-se da observação em contexto clínico e situações
s

cotidianas, da administração de diferentes tarefas, escalas, entrevistas e testes


ver

psicométricos a fim de investigar o funcionamento cognitivo, social e afetivo


do cliente (HARVEY, 2012; HAASE et al., 2012). As respostas obtidas são,
então, classificadas e interpretadas, tendo por base a queixa principal, a história
clínica e a evolução dos sintomas. Diante dos resultados, obtém-se o perfil
do funcionamento cognitivo do cliente, identificando os déficits cognitivos e
as habilidades preservadas, o que permite elaborar um plano de reabilitação
individualizado (FERREIRA, 2010) e reduzir os efeitos de déficits cognitivos,
544

alterações comportamentais e emocionais decorrentes de disfunções do sistema


nervoso central (FRISON et al., 2017).
Costa et al. (2004) aponta que a avaliação neuropsicológica na infantil
permite um mapeamento qualitativo e quantitativo das áreas cerebrais e de
seu sistema funcional, tornando-se um dos elementos essenciais das consul-
tas de saúde infantil. Haja vista, que na infância, a neuropsicologia além de
avaliar e reabilitar apresenta um caráter preventivo, pois permite identificar

or
precocemente condições que podem interferir no desenvolvimento infantil.

od V
Assim, a proposta deste capítulo é descrever o protocolo de avaliação

aut
neuropsicológica utilizado em um ambulatório de neuropsicologia infantil.
Para tanto, optou-se por apresentar brevemente algumas particularidades refe-

R
rentes ao desenvolvimento neurológico da criança e em seguida descrever o
protocolo utilizado.

o
Avaliação neuropsicológica infantil
aC

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A avalição neuropsicológica infantil apresenta as especificidades relacio-
nadas a clínica infantil (Borges e Baptista, 2018), ao desenvolvimento neuro-
visã
lógico da criança (Ferreira et al, 2010) e a vivência de mudanças sistemáticas
e contínuas, nos domínios físico, cognitivo e psicossocial, as quais interagem
entre si e sofrem influências mútuas (UECHARA, 2018).
No que se refere ao desenvolvimento neurológico, Ferreira et al (2010)
itor

cita a ausência de modelos cognitivos específicos para crianças, o que obriga


a re

os profissionais a utilizarem modelos de correlação estrutura-função oriundos


dos modelos adultos o que tende a promover interpretações limitadas, devido
aos mecanismos de neuroplasticidade que altera a sua função ou a sua estrutura
em resposta às influências ambientais que o atinge.
par

O sistema nervoso é “edificado” majoritariamente durante o desenvol-


vimento do embrião, mas muitos eventos se prolongam por vários anos após
Ed

o nascimento (LENT, 2013). Ao nascer todo o processo de neurogênese e


migração celular está completo, contudo a formação de conexões, o estabe-
lecimento e o reforço de sinapses, assim como os processos regressivos ainda
ão

continuam ocorrendo.
Um dos processos básicos inerentes ao funcionamento cognitivo e
s

neuronal é a plasticidade cerebral, que consiste na capacidade de mudanças


ver

morfológicas e/ou funcionais nas quais células neuronais alteram suas cone-
xões conforme a vivência de situações de estimulação ou restrição (Ismail et
al, 2017). Além disso, no curso do desenvolvimento existem períodos limitados
de tempo onde certas vias neuronais são altamente maleáveis, variando con-
forme regiões, sistemas neurais, comportamentos e funções correspondentes
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 545

o que eleva a importância do meio para estimular o desenvolvimento cerebral.


Assim, os primeiros anos de vida de uma criança são considerados períodos
críticos, com elevada plasticidade cerebral e, onde pode estar a gênese de
inúmeros problemas futuros, entre estes, dificuldade de aprendizagem, alte-
rações na coordenação motora (ARAUJO et al., 2018), déficits na cognição
social (COSTA; ANTUNES, 2018) e alterações na linguagem (RODRIGUES;

or
FONTOURA; SALLES, 2019).
O ambiente físico e social determina a atividade de células neurais,

od V
cuja função, por sua vez, determina o comportamento (KANDEL; HAW-

aut
KINS, 1992). O ambiente fornece estímulos/informações que são captados
por receptores sensoriais e convertidos em impulsos elétricos, que são anali-

R
sados e utilizados pelo sistema nervoso central para o controle de respostas
vegetativas, motoras e cognitivas.

o
A maturação do sistema nervoso influencia o desenvolvimento da mente.
aC
Atos motores e cognitivos ocorrem à medida que a área do sistema nervoso
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que controla seu funcionamento se desenvolve. Logo, durante o processo ava-


liativo infantil, deve-se considerar que existem períodos distintos para o desen-
volvimento de certas habilidades e comportamentos, além do papel primordial
visã
do ambiente no processo de estimulação para aquisição dessas habilidades.
Portanto, cabe ao profissional de neuropsicologia considerar que o cére-
bro infantil ainda está em desenvolvimento e evolui singularmente a cada faixa
itor

etária (COSTA et al., 2004). Essa compreensão é fundamental na elaboração


a re

de protocolos de avaliação e acompanhamento do desenvolvimento infantil,


especialmente em crianças em risco e/ou com desenvolvimento atípico.

Protocolo de avaliação neuropsicológica


par

O Ambulatório de Neuropsicologia Infantil (ANI)


Ed

O Ambulatório de Neuropsicologia Infantil (ANI) é um projeto de exten-


são da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará, cujas ativi-
ão

dades de ensino, pesquisa e extensão são executadas na Unidade de Atenção


à Saúde da Crianças e Adolescentes (UASCA) do Hospital Universitário
s

Bettina Ferro de Souza (HUBFS), em Belém do Pará.


ver

O ANI oferece avaliação e reabilitação neuropsicológica às crianças em


situação de vulnerabilidade socioeconômica, faixa etária entre 3 e 15 anos
de idade, com demandas de alterações cognitivas e ou comportamentais,
associadas a transtornos do neurodesenvolvimento, alterações genéticas e/
ou lesões cerebrais.
546

Para ser atendida no ANI a criança precisa ser cadastrada no hospital e


ser encaminhada pelos médicos que atuam na instituição, sendo estes geneti-
cistas, neurologistas, psiquiatra, otorrinolaringologistas e endocrinologistas.
De forma geral, a avaliação neuropsicológica possui como objetivos:

• Diagnosticar ou identificar precocemente alterações das fun-


ções cognitivas;

or
• Avaliar e reavaliar para acompanhamento dos tratamentos cirúrgi-

od V
cos, medicamentosos e de reabilitação;

aut
• Basear a programação da reabilitação neuropsicológica.

Objetivos e etapas da avaliação neuropsicológica

R
A avaliação neuropsicológica reside num método de investigação

o
das funções cognitivas e do comportamento (MÄDER-JOAQUIM, 2010).
aC
Expressa-se através da administração de técnicas de entrevistas, observação

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comportamental, escalas de avaliação de sintomas e testes cognitivos, espe-
cialmente os que avaliam as funções que compõe a cognição (exemplo: aten-
ção, memória, linguagem, percepção e raciocínio). As respostas obtidas são
visã
então interpretadas por parâmetros quantitativos (comparação com parâmetros
populacionais de desempenho) e qualitativos (uso de ferramentas, exercícios e
observações) e sua relação com a queixa principal, a história clínica, evolução
itor

dos sintomas, modelos neuropsicológicos sobre o funcionamento mental e


a re

psicopatologia (MALLOY et al., 2016)


O processo avaliativo segue, basicamente, as etapas tradicionais de uma
avaliação psicológica: identificação dos objetivos, coleta de informações,
análise dos resultados, confecção do relatório ou do laudo, e, quando necessá-
par

rio, encaminhamento para as atividades de habilitação/reabilitação, tal como


ilustrado na Figura 1. Ocorrendo em aproximadamente 6 sessões com duração
Ed

de 1 hora de atendimento, podendo variar conforme a motivação da criança


para participar das tarefas.
ão

Figura 1– Etapas do processo avaliativo do ANI

Identificar Coleta de Análise dos Laudo/relatório Habilitação


s

os objetivos informações resultados Reabilitação


ver

Escolha dos instrumentos


avaliativos

Fonte: elaborada pelos autores.


PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 547

Entrevista clínica/anamnese

No ANI a avaliação inicia com a consulta do prontuário médico. Neste,


o neuropsicólogo tem acesso ao encaminhamento, atendimentos feitos por
outros profissionais, hipóteses iniciais, medicamentos e resultados de exames
já realizados. Por essa consulta documental o neuropsicologia tem uma ideia
preliminar sobre o motivo do encaminhamento e o objetivo específico da

or
avaliação, o que será posteriormente confirmado na anamnese e na observação

od V
clínica do paciente.

aut
Na primeira entrevista, o motivo do encaminhamento, já identificado no
prontuário, será investigado e os cuidadores serão informados sobre o objetivo
da avaliação neuropsicológica e as etapas e procedimentos envolvidos no

R
processo avaliativo, a fim de proporcionar um bom acolhimento ao paciente e
seus cuidadores (DE PAULA; COSTA, 2016), bem como favorecer a adesão

o
ao processo investigativo.
aC
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Na entrevista clínica o avaliador utiliza de anamnese, entrevistas com-


plementares e escalas selecionadas conforme a hipótese clínica. A entrevista
clínica é fundamental para identificar fatores de risco para os transtornos do
neurodesenvolvimento e compreender a história da criança em diferentes
visã
domínios, como social, afetivo e desenvolvimental.
O modelo adotado de anamnese no ambulatório é o semiestruturado, onde
perguntas predeterminadas são utilizadas e o avaliador conduz a entrevista
itor

com flexibilidade, permitindo abordar outros tópicos ou questões que possam


a re

surgir durante este processo (DE PAULA; COSTA, 2016). A seguir estão lista-
dos os principais tópicos que compõe a ficha de Anamnese utilizada no ANI.

1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DA CRIANÇA E DOS PAIS


par

(Realizar a caracterização sociodemográfica da criança)

2. MOTIVO DO ENCAMINHAMENTO
Ed

(Descrever como os sintomas surgiram e evoluiram até o momento do exame, o funcionamento da criança
antes de surgirem os sintomas, presença de diagnóstico neurológico, psiquiátrico prévio, identificar quem
observa os prejuízos da criança e em quais contextos, descrever as principais consequencias dos sintomas
na vida da criança, registrar hipóteses diagnóstica de outros profissionais que atendem a criança, registrar
ão

história de doença psiquiátrica ou neurológica na família e presença de limiitação sensorial e/ou motora).

3. HISTÓRICO DO DESENVOLVIMENTO
s

3.1. Gravidez e parto


ver

A. Gravidez B. Parto
Relação do casal durante a gestação: Quantas semanas de gestação
Pré-natal Tipo de parto
Consumo de substancias durante a gravidez Peso e altura
Complicações na gravidez escala Apgar
Cuidados intensivos após o parto
Problemas após o nascimento
548

3.2. Desenvolvimento da criança


A. Alimentação (particularidades quando bebê e atualmente)
B. Sono (dificuldades para conciliar o sono)
C. Desenvolvimento neuromotor (sentou sem suporte - presente aos 8 meses, caminhou sem suporte -
presente entre os 12 e 18 meses, presença de particularidade em relação à locomoção).
D. Controle esfincteriano (perda do hábito do controle esfincteriano já adquirido)
E. Linguagem (primeiras palavras – presente aos 12 meses, no limite de 24 meses, primeiras frases -
presente aos 24 meses, no limite de 36 meses, dificuldade na pronúncia das palavras, ritmo e entonação da
voz, houve regressão da habilidade já adquirida)

or
F. Desenvolvimento social/afetividade (idade em que ocorreram os primeiros sorrisos, compartilha atividades
prazerosas com outras pessoas, demonstra preocupação quando as pessoas se mostram tristes ou doentes,

od V
iniciativa de aproximação ou interesse por outras pessoas, responde, mas não toma iniciativa as investidas

aut
de coetâneos)
G. Brincar (funcional/simbólico, sozinho e com os outros)
H. autocuidado

4. ATIVIDADES EDUCACIONAIS:

R
A. Início da vida escolar e Intercorrências

o
B. Quando e como se deu o processo de alfabetização
C. Dificuldades de aprendizagem
aC
D. Escola que estuda atualmente, município, série atual, turno e escola (pública ou privada)

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Dias que frequenta a escola. Casos de reprovação e séries, pontos fortes e pontos fracos, acompanhante
Terapêutico, sala de recursos e plano de Ensino Individualizado.
E. Comportamentos relacionados ao ambiente escolar: (autonomia, relacionamentos).
F. Hábitos de estudo no ambiente familiar
visã
5. QUADRO CLÍNICO ATUAL
A. Uso de medicamentos
B. Apresentação de exames/testes/relatórios (data/conclusão):
C. Problemas de visão, audição, motor ou outra condição médica
itor

D. Acompanhamento profissional:
a re

A observação lúdica

A entrevista e a observação clínica habilitam uma adequada formulação


de hipóteses e estas direcionam a escolha dos testes e escalas que irão medir
par

os domínios cognitivos ou construtos psicológicos vinculados à hipótese que


Ed

será investigada.
A avaliação com a criança ocorre inicialmente de forma lúdica, com uso
de brinquedos e objetos pedagógicos, e posteriormente de forma estruturada,
ão

com uso de instrumentos padronizados. Como, em alguns casos, a observação


comportamental pode ser prejudicada pelo contexto do consultório (MAL-
LOY-DINIZ et al., 2016) as observações lúdicas podem ocorrer tanto na sala
s

de espera quanto no próprio consultório.


ver

Na sala de espera, o neuropsicólogo tem a possibilidade de observar a


criança interagindo com outras pessoas (adultos e crianças) de forma mais
natural, o que contribui para um melhor entendimento de alguns casos, onde
a queixa de dificuldade de interação social é predominante. Neste momento,
a observação da criança é qualitativa e depende muito da habilidade do
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 549

observador em coletar informações importantes sobre a queixa e os prejuízos


funcionais que são demonstrados. Contudo, de um modo geral, observa-se
aspectos relacionados a iniciativa e receptividade nas interações sociais, habi-
lidades verbais, funcionamento sensorial e motor, impulsividade, tolerância
à frustração, entre outros.
Na observação lúdica em consultório, busca-se identificar os itens de
preferência da criança, seu repertório verbal, habilidades de planejamento,

or
habilidades motoras e conhecimento básico relacionados ao contexto escolar.

od V
Tais estratégias favorecem a adequada seleção dos instrumentos formais que

aut
serão utilizados, além de permitir que o avaliador sustente as hipóteses ini-
ciais ou que evidencie novas hipóteses. A observação lúdica não segue uma
padronização, contudo, para facilitar sua execução foi elaborado um pequeno

R
roteiro, descrito na figura 2.

o
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
Figura 2 – Ficha de observação lúdica
550

Nome:__________________________________________________________________ Idade:___________ Prontuário:__________________


Dominância manual: ( ) destro ( ) canhoto ( ) não definido
Instrumentos/brinquedos utilizados ______________________________________________________________________________________________________________
IItens de preferência _________________________________________________________________________________________________________________________
Brincar funcional: sim / não Brincar simbólico: sim/ não

Funções Executivas Linguagem Sensório-motor


Atenção sustentada SD D MD Volume da fala SD D MD Pegada do lápis SD D MD
ver
Ed
Cooperação SD D MD Articulação SD D MD Marcha e postura SD D MD
s ão
Impulsividade SD D MD Não verbal SD D MD Tempo de resposta SD D MD
itor
par
Memória SD D MD Compreensão SD D MD Motora fina SD D MD
a re aC
Escolar
Letras SD D MD Forma
visã
SD
R D MD Número SD D MD

Palavras SD D MD Cor SD D MD Quantidade SD D MD


od V
o
Frases SD D MD Posição SD D MD Discriminação visual SD D MD
aut
or
SD = sem dificuldade D = Dificuldade MD = muita dificuldade
Data:____/_____/_____  Tempo de Observação: _________________ Avaliador:____________________________________

Fonte: elaborada pelos autores.

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PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 551

Bateria de instrumentos avaliativos

Com base na entrevista e na observação lúdica é possível reconhecer


novas hipótese e/ou sustentar as hipóteses iniciais. Nesse momento, é dado
início ao protocolo de testes, o qual é elaborado conforme o entendimento
sobre o que é necessário avaliar e quais as ferramentas mais indicadas
para essa missão.

or
Para escolher adequadamente os instrumentos é necessário conhecer

od V
as ferramentas e testes disponíveis para avaliar a condição em evidência,

aut
saber se a opção escolhida é adequada ao perfil da criança e conhecer
evidencias cientificas que justifiquem o seu uso na prática profissional
(RESOLUÇÃO CFP 009/2018).

R
Tendo identificado os instrumentos a serem utilizados o profissional
deve reconhecer se compreende todo o processo de aplicação, correção e

o
interpretação do instrumento escolhido, bem como o seu embasamento teórico.
aC
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Malloy-Diniz et al. (2016) afirmam que ao se escolher os instrumentos


de avaliação neuropsicológica, deve-se:

1. Selecionar tarefas que sejam relevantes para as hipóteses a


visã
serem testadas;
2. Considerar o nível global do paciente;
3. A avaliação da cognição geral do paciente pode ser útil para ajudar
itor

na seleção de outros instrumentos;


a re

4. É útil complementar os resultados dos testes com escalas;


5. Não se deve fornecer diagnósticos com base em resultados isolados
de testes.
par

Diante destes aspectos, adotou-se no ANI duas propostas de avalia-


ção, a Avaliação Pré-escolar, indicada para crianças com idade igual ou
Ed

inferior a 5 anos, ou com elevado atraso no desenvolvimento que impeçam


a administração de testes adequados para a sua faixa etária, e a Avalia-
ção Escolar, indicada para crianças com idade igual ou superior a 6 anos,
ão

com habilidades para compreender e responder aos testes e ou ferramentas


avaliativas. Cada proposta é desenvolvida seguindo uma bateria flexível,
composta por uma bateria básica complementada por testes especializados
s

adequados à hipótese clínica.


ver

A bateria básica de avaliação de pré-escolares do ANI é composta por


uma escala que avalia os marcos do desenvolvimento, um inventário que avalia
o comportamento da criança e um teste que avalia inteligência. Na tabela 01
são apresentadas algumas sugestões de instrumentos a serem selecionados
pelo profissional conforme o caso avaliado.
552

Tabela 1 – Sugestão de instrumentos para avaliação de pré-escolares


Habilidades Instrumento Descrição

Escala de triagem que verifica atraso no


desenvolvimento infantil aplicada em crianças
Escala Denver III com até 6 anos de idade. Avalia quatro
elementos: pessoal-social, motor-adaptativo,
linguagem e motor-grosseiro.

or
od V
Instrumento que avalia o funcionamento do

aut
desenvolvimento de bebês e crianças pequenas,
Marcos do
Escala Bayley III de 1 a 42 meses de idade. Avalia cinco domínios:
desenvolvimento
cognitivo, linguístico, motor, socioemocional e

R comportamento adaptativo

o
Instrumento que avalia crianças entre 1 e 60
meses. Avalia 5 áreas do desenvolvimento:
ASQ 3
aC
comunicação, coordenação motora ampla,

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Ages and Stages Questionnaires
coordenação motora fina, resolução de problemas
e pessoal-social.
visã
Inventário de Comportamentos
para crianças e adolescentes escala que fornece informações globais sobre
CBCL 2-3 – aplicável até os 5 psicopatologias do desenvolvimento
anos C-TRF 1 ½ - 5 anos
itor
a re

Avaliação do
Instrumento utilizado para avaliar o
comportamento
comportamento adaptativo das pessoas desde
o nascimento até a idade adulta (90 anos).
Escala de comportamento O instrumento consiste em uma entrevista
adaptativo Vineland-3 semiestruturada em formato de questionário, que
permite compreender as necessidades individuais
par

de cada pessoa, considerando as diferentes


etapas do desenvolvimento.
Ed

Instrumento não verbal de avaliação da


inteligência geral. População alvo: 2 anos e meio
ão

SON-R 2 ½ - 7 [a], a 7 anos e 11 meses. Indicado para crianças


surdas ou com suspeita de transtorno do
neurodesenvolvimento.
s

Inteligência geral
ver

Instrumento que tem como objetivo avaliar a


capacidade de raciocínio geral de crianças.
Escala de Maturidade Mental População alvo: 3 anos e 0 meses a 9 anos
Colúmbia (CMMS 3) e 11 meses de idade. A escala não necessita
de respostas orais e pouco depende da
motricidade dos participantes.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 553

A bateria básica da Avaliação de Escolares proposta pelo ANI é com-


posta por uma escala que fornece informações globais sobre psicopatologias
do desenvolvimento, dois testes que avaliam inteligência e um teste ou ferra-
menta para cada domínio específicos da cognição atenção, memória, funções
executivas, linguagem e visuoconstrução. Na tabela 02 são apresentadas
algumas sugestões de instrumentos a serem selecionados pelo profissional
conforme o caso investigado.

or
od V
Tabela 2 – Sugestão de instrumentos para avaliação de escolares

aut
Habilidades Instrumento Descrição

R Entrevista que fornece informações globais sobre


psicopatologias do desenvolvimento A plataforma
Aseba é composto por um conjunto de escalas
desenvolvidas para mapear a competência

o
social e os problemas de comportamento com
aC
crianças e adolescentes nos últimos seis meses.
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Achenbach System Inventário de comportamentos para crianças e


of Empirically based adolescentes, CBCL/ 2-3 anos (aplicável até os
assessment (ASEBA) 5 anos de idade) e CBCL/ 6-18 anos de idade,
ambos preenchidos pelos pais ou cuidadores
visã
das crianças; o Inventário dos comportamentos
Avaliação do de crianças C-TRF 1 ½ -5 anos de idade e o
Comportamento TRF/ 6-18 anos, ambos respondidos pelos
professores e o Inventário de Auto avaliação para
adolescentes YSR/11-18 anos de idade.
itor
a re

Instrumento utilizado para avaliar o


comportamento adaptativo das pessoas desde
o nascimento até a idade adulta (90 anos).
Escala de comportamento O instrumento consiste em uma entrevista
adaptativo Vineland-3 semiestruturada em formato de questionário, que
permite compreender as necessidades individuais
par

de cada pessoa, considerando as diferentes


etapas do desenvolvimento.
Ed

Instrumento que avalia a capacidade intelectual


das crianças e o processo de resolução de
problemas. População alvo: 6 anos e 0 meses a
Escala Wechsler de 16 anos e 11 meses. É composto por 15 subtestes,
ão

inteligência para crianças sendo 10 principais e 5 suplementares, e dispõe


(WISC IV) de quatro índices: Índice de Compreensão Verbal,
Índice de Organização Perceptual, Índice de
s

Inteligência Memória Operacional e Índice de Velocidade de


Processamento, além do QI Total.
ver

Teste destinado a mensurar a inteligência


(Fator g) e informar sobre a habilidade
Matrizes progressivas
dos indivíduos para gerar novos insights,
coloridas de Raven (CPM)
(habilidade edutiva). População alvo:
crianças entre 5 a 11 anos de idade.

continua...
554

continuação
Teste que avalia praxia visuoconstrutiva,
Figuras complexas de Rey motricidade, habilidades perceptivas e
Visioconstrução visuoespaciais. População alvo: 4 a 88 anos

Teste que avalia maturação percepto-motora.


Teste Gestaltico de Bender
População alvo: 6 aa 10 anos.

Teste de Atenção visual Teste que avalia atenção seletiva, alternada e


(TAVIS IV) sustentada

or
Atenção Ferramenta que avalia a habilidade de atenção
Teste de Atenção por
seletiva e atenção alternada. População alvo: 5 a
cancelamento (TAC)

od V
14 anos;

aut
Ferramenta que avaliar funções
Domínios cognitivos

executivas, em particular as habilidades


Torre de Londres
de planejamento e solução de problemas.
Funções
executivas

R
Teste Wisconsin de
categorização de cartas
População alvo;: 4 a 89 anos

Teste que avalia flexibilidade cognitiva População

o
alvo: 6 a 89 anos
(WCST)
aC

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Ferramenta que permite avaliar a compreensão
Token Test (versão reduzida) da linguagem por meio da execução de comandos
simples. Público alvo: 7 a 10 anos de idade.
Linguagem Ferramenta utilizada para avaliar a habilidade de
visã
nomeação. Possibilita a avaliação da linguagem
Teste infantil de nomeação
expressiva e do acesso a memória de longo prazo.
População alvo; 3 a 14 anos.

Teste de aprendizagem Teste que avalia retenção, memória


itor

Memória auditivo-verbal de Rey recente e memória de reconhecimento.


(RAVLT) Público alvo: 6 a 92 anos.
a re

É fundamental que se entenda que as baterias descritas apenas permi-


tem identificar alguns sintomas, os quais demonstram a existência ou não de
indicadores para um determinado diagnóstico. Assim, dependendo da hipó-
par

tese clínica deve-se acrescentar novos instrumentos que possam identificar


diferentes indicadores.
Ed

A avaliação dos sintomas é feita pela administração de escalas ou


questionários, reconhecidos pela comunidade científica, capazes de auxiliar
no rastreio de diferentes tipos transtornos neurocognitivos, como por exemplo
ão

os Transtornos do Neurodesenvolvimento (TN).


Conforme o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais
(DSM-5), da American Psychiatric Association (APA), os TN correspondem a
s

um grupo de condições em que suas alterações são identificadas precocemente,


ver

ainda no período de desenvolvimento, e podem evidenciar prejuízos cognitivos


e adaptativos que interferem funcionalmente na vida de uma pessoa. Entre os
TN encontram-se descritos o transtorno do espectro autista, o transtorno de
déficit de atenção com hiperatividade, as deficiências intelectuais, o transtorno
específico da aprendizagem, transtornos motor e transtornos da comunicação.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 555

A literatura que abrange os TN é extremamente ampla, sendo assim,


discutir as particularidades inerentes a cada um dos transtornos ultrapassa
os objetivos do presente capítulo. Contudo, cabe enfatizar que conforme a
hipótese diagnóstica o ANI possui um protocolo operacional específico que
englobam informações sobre os critérios diagnóstico, descrições da literatura
científica sobre os prejuízos cognitivos e comportamentais, e possíveis
estratégias de intervenção. O conhecimento destes aspectos, assim como, o

or
entendimento sobre o desenvolvimento infantil torna-se fundamental para

od V
uma melhor qualificação do processo investigativo.

aut
Assim, a título de exemplo, seguindo a proposta descrita, se o
neuropsicólogo recebe o encaminhamento de um neuropediatra para avaliar
uma criança de 4 anos de idade com suspeita de autismo este deveria,

R
inicialmente, identificar os sintomas descritos pela família, compreender os
marcos do desenvolvimento e os sinais descritos como característicos de uma

o
criança com TEA para em seguida realizar a observação lúdica.
aC
Costa e Antunes (2018) registram que a avaliação do autismo é clínica,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e, portanto, baseada na observação das características comportamentais do


paciente. Segundo o DSM- 5, existem dois grupos de prejuízos diretamente
associados ao TEA: 1) déficits na comunicação e interação social; e 2) presença
visã
de interesses restritos e comportamentos repetitivos. Além dos critérios
descritos, cabe observar presença de comprometimento intelectual e/ou da
linguagem, se os sintomas são notados precocemente no desenvolvimento e
itor

se trazem prejuízos na vida diária dessa criança.


a re

Considerando estas particularidades é recomendado fazer uso de


uma bateria de testes que permitam caracterizar o perfil de dificuldades e
habilidades da criança para então concluir se esse perfil corresponde ou não
a hipótese previamente levantada.
Lederman, Negrão e Schwartzman (2018) afirmam que existem pelo
par

menos três teorias cognitivas que procuram explicar o quadro observado em


Ed

pessoas com TEA; Disfunção Executiva, sugerindo que pessoas com TEA
possuem prejuízo em seleção e monitoramento de respostas, flexibilidade
cognitiva, planejamento e memória de trabalho, o que pode justificar os
ão

comportamentos repetitivos; Teoria da Coerência Central, pessoas com


TEA tendem a focar em aspectos particulares e não a integrar o todo, o que
contribui para alterações no processamento das informações perceptiva,
s

visuoespacial e semântico-verbal; e Alterações em Cognição Social, as quais


ver

podem ser fragmentadas em percepção emocional, percepção social, teoria


da mente e estilo de atribuições.
Assim, quando se utiliza a bateria pré-escolar para crianças com suspeita
de TEA, por exemplo, deve-se acrescentar escalas específicas para rastreio
do transtorno, tais como a escala Modified Checklist for Autism in Toddlers
556

(M-CHAT – versão em português) (LOSAPIO, et al., 2008) e a Childhood


Autism Rating Scale (CARS – versão em português), bem como, instrumentos
que avaliem motricidade, linguagem, teoria da mente e habilidades sociais.
Considerando ainda as particularidades de cada caso, havendo dificuldade
de aprendizagem na leitura, por exemplo, deve-se incluir instrumentos que
investiguem as habilidades acadêmicas e o processamento fonológico.
Há na literatura o consenso de que não existe um instrumento padronizado

or
autossuficiente, capaz de avaliar todos os componentes cognitivos. Sendo
assim, recomenda-se utilizar pelo menos dois instrumentos para avaliar o

od V
mesmo componente (FONSECA; JACOBSEN; PUREZA, 2016) e comparar

aut
o desempenho do paciente com a variação de um grupo representativo da
população típica, a fim de garantir maior segurança na interpretação dos

R
resultados (LEZAK et al., 2012). Após a coleta de informações segue a etapa
de integração das informações coletadas durante todo o processo avaliativo.

o
aC
Finalização do processo avaliativo

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A integração das informações é uma tarefa de grande complexidade
que exige do profissional conhecimento cientifico e experiência profissional,
visã
além de habilidade para identificar variáveis que possam ter influenciado o
desempenho da criança nas avaliações: como cansaço, fome, sono, falta de
compreensão da tarefa, falta de empatia com o examinador, má cooperação,
itor

entre outras (MALLOY-DINIZ, MATTOS; FUENTES, 2016) e articular as


informações obtidas durante a avaliação com as informações contidas em
a re

exames e relatórios de outras especialidades (fonoaudiologia, pedagogia,


terapia ocupacional, psiquiatria, neurologia, entre outros), conforme a queixa
apresentada (BORGES; BAPTISTA, 2018).
A conclusão do processo avaliativo se dá confirmando ou não as hipóteses
par

inicialmente consideradas. Assim, deve-se descrever as evidências teórico-


científica que sustentam o seu entendimento e garantir o compartilhamento
Ed

dessas informações com os cuidadores e profissionais que solicitaram a


avaliação e, em alguns casos, com a própria criança. Para tanto, realiza-se uma
entrevista devolutiva onde além de apresentar os resultados obtidos indica-se
ão

as intervenções necessárias.
Em crianças com menos de 6 anos de idade ou nos casos de difícil manejo
dos instrumentos ou quando a criança é encaminhada à reabilitação recomenda-se
s

nova avaliação no curso do desenvolvimento para identificar os ganhos obtidos


ver

com a idade e/ou com intervenções terapêuticas que lhe foram propostas.
Além da devolutiva para os cuidadores, entrega-se a estes um relatório ou
laudo psicológico de avaliação neuropsicológica encaminhado aos profissionais
que solicitaram a avaliação. A entrega deste documento é realizada junto à
orientação parental.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 557

Considerações finais

A avaliação neuropsicológica tem se tornado uma das práticas essenciais


das consultas de saúde infantil uma vez que auxilia no entendimento da
queixa, favorece o processo diagnóstico e auxilia na identificação de práticas
terapêuticas mais eficazes.
Todo o processo segue uma sequência de passos que se complementam.

or
Contudo, a escolha dos instrumentos (qualitativos e quantitativos) assume um

od V
papel primordial, cabendo ao neuropsicólogo elaborar protocolos que atendam

aut
de forma mais satisfatória a demanda.
De forma geral o profissional escolhe os instrumentos conforme sua
experiência e formação teórico-prática, mas sempre deve reconhecer que os

R
testes não são soberanos, são ferramentas que auxiliam o acesso a informações
momentâneo de um ser em pleno processo de desenvolvimento.

o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
558

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ão

realização de Avaliação Psicológica no exercício profissional da psicóloga e


do psicólogo, regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos -
s

SATEPSI e revoga as Resoluções n° 002/2003, nº 006/2004 e n° 005/2012


ver

e Notas Técnicas n° 01/2017 e 02/2017. Brasília, DF: Conselho Federal de


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or
od V
aut
R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
CONSELHO TUTELAR E O ESTATUTO
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

or
Ronilda Bordó de Freitas Garcia
Helder Côrrea Luz

od V
Helena Carollyne da Silva Souza

aut
Antônio Soares Júnior
José Augusto Lopes da Silva

R
Edilene Silva Tenório

o
A história e implementação do ECA
aC
O Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) foi promulgado no dia 13
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de julho de 1990, a partir de um conjunto de normas manifestadas em conso-


nância à carência de instrumentos jurídicos especializados para a promoção
visã
de uma política de proteção de direitos humanos para crianças e adolescentes,
bem como a necessidade de sobrepor Código de Menores, cujas normas ainda
se pautavam no contexto da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). Nesse
itor

sentido, a proposta do estatuto afasta-se da noção de “menor”, passando agora


a re

a caracterizar a criança e adolescente, sobretudo, como sujeitos de direitos.


O Estatuto, tendo por fonte material o fenômeno da violência contra
crianças e adolescentes e a chamada “questão do menor”, aparece como res-
posta humanitária à injustiça vivida por milhões de seres em situações de
par

vulnerabilidade (AMARAL; SILVA, 1999). De acordo com Lemos, 2007:


Ed

“A Constituição de 1988, após amplas disputas ligadas aos interesses


de grupos diversos, é promulgada e estabelece um marco divisor entre a
Ditadura, a transição para o regime democrático através da abertura polí-
ão

tica lenta e gradual e o período de consolidação da democracia do país”


(LEMOS, 2007, p. 90).
s

Também se faz necessário compreender que a criação do Estatuto da


ver

Criança e Adolescente (ECA), é uma conquista da sociedade brasileira, que


por meio de lutas dos movimentos sociais, entidades civis de proteção à
infância e adolescência, bem como pressões de movimentos internacionais,
favoreceram a criação do estatuto, a constituir-se a partir de uma perspectiva
coletiva, através de debates, fóruns, cujo resultado se deu na aprovação da
Lei Federal n° 8.069, que dá direito à proteção à infância e a adolescência,
como garantias especiais de direitos.
562

A criação do Estatuto da Criança e do Adolescente foi um marco histórico


que repercutiram nacionalmente em favor do direito à infância e juventude,
como fruto de lutas e conquistas da nação brasileira, fortalecendo a intervenção
de políticas públicas no combate a violações a crianças e adolescentes no campo
dos Direitos Humanos. O art. 2º, do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA),
diz que considera criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 anos de
idade incompletos e adolescentes aquela entre 12 e 18 anos de idade. Garan-

or
tindo-lhes todos os direitos fundamentais, sejam eles no seu desenvolvimento

od V
físico, mental, moral, espiritual e social, na promoção de direitos, ao que possam

aut
gozar como sujeitos e prioridades absolutas. A criança e adolescente em seu
desenvolvimento e potencialidade, um sujeito que atravessa por várias mudan-
ças, descobertas, fantasias, aprendizados o qual precisa de proteção e respeito

R
de todos, por ser uma fase em que ela se encontra em total vulnerabilidade.
A importância de idade que foi definida para a criança e o adolescente

o
por se tratar de seus direitos e violação que não eram garantidos a elas, desde
aC
de que os portugueses chegaram ao Brasil e também na contemporaneidade,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


por consequentemente o adulto considerar ser mais resistente que a criança,
violando os direitos delas e prejudicando sua fase em desenvolvimento, tanto
físico como emocional. (PAGANINI; MORO, 2009). Dentro desse contexto,
visã
como foi colocado acima, a criança e adolescente, pode ser o autor de sua
própria história, quando não são respeitados pelos adultos, por se tratar de
sua condição física e menos frágil.
itor

O Estatuto da Criança e Adolescente, (ECA), atualmente completa


a re

seus 30 anos, contribuindo através dos avanços e retrocessos, para que a


criança e adolescente sejam dignas de proteção. Ademais, o Estado, família,
sociedade e todas as instituições, bem como os Conselhos Tutelares devem
priorizar o cuidado e a garantia de direitos desses sujeitos por estar na Cons-
tituição da República Federativa do Brasil, logo sendo, garantindo proteção
par

integral e total a todas as crianças e aos adolescentes. Os 30 anos, do Estatuto


Ed

da Criança e adolescente (ECA), apesar dos avanços em alguns pontos ao


que diz respeito às prioridades e necessidades da infância e juventude, alguns
avanços são considerados como conquistas das lutas por esses direitos, sem
ão

deixar de observar que a classe mais atingidas por reconhecimentos prioritário


que são direitos delas, são a mais pobres, como as comunidades tradicionais,
ou seja, os quilombolas e indígenas que são os mais prejudicados por esses
s

direitos não chegarem a elas como garantias de igualdades (PEDROZA, 2020).


ver

No que tange ao art. 4° do Estatuto da Criança e Adolescência (ECA), é


colocado que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
à convivência familiar e comunitária. Essas devem ser as prioridades em
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 563

que a criança e adolescente devem receber, com responsabilidades a serem


atendidas por políticas públicas, atendimento prioritário no Sistema Único
de Saúde (SUS), educação de qualidade, proteção da família e da sociedade.
Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veio para garan-
tir direitos que já estavam presentes na Constituição de 1988. Contudo, a partir
de uma perspectiva mais assertiva no que se refere ao que prevê a constituição
no campo dos direitos humanos para as crianças e adolescentes do Brasil.

or
od V
“O Estatuto propõe a construção de um modelo de proteção integral às
crianças e aos adolescentes, não se restringindo, apenas à atenção após os

aut
direitos serem violados, mas antecipa-se à violação, promovendo ações
conjugadas entre o Poder Público e ONGs de caráter preventivo, que se

R
estendam não só às crianças e aos adolescentes que tiveram seus direitos
violados, mas a todos aqueles que estão ameaçados de terem os seus

o
direitos violados” (LEMOS, 2007, p. 91).
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Este modelo referido pela autora, que a criança e adolescente precisarão


de cuidados e proteção quando seus direitos forem ameaçados, mas também
é responsabilidade do Estado, implementar políticas de prevenção à violên-
visã
cia e promoção do cuidado, de forma a garantir que o poder público e outras
organizações também possam intervir em práticas que visem, acima de tudo, a
garantia de direitos a crianças e adolescentes. Portanto, os 30 anos do Estatuto
da Criança e Adolescente (ECA), desde que foram reconhecidos esses direitos
itor

por esse período de anos é importante a comemoração dessa conquista, mesmo


a re

entendendo das necessidades de avanços que ainda precisam ser alcançados,


em busca dos direitos desses pequenos cidadãos, principalmente a igualdade
racial em que a infância e juventude são as mais afetadas e a menos valori-
zadas, por se tratar do meio em que elas convivem em maior quantitativo de
par

desigualdade, sendo mais atingida, como exemplificação da população negra,


indígenas, os mais pobres e quilombolas. O Estatuto da Criança e Adolescente
Ed

(ECA), um marco legal muito importante na sociedade brasileira em que a


infância e adolescência têm como prioridade absoluta, seus direitos e deveres,
mostrando como elas devem ser adotadas, valorizadas, por serem elas sujeitos
ão

de direitos, livres de discriminação, abandono e a falta de cuidados.

O Conselho Tutelar no Brasil


s
ver

A partir do Art.227 da Constituição Federal de 1988 que versa sobre a


cooperação entre família, sociedade e estado para assegurar os direitos funda-
mentais das crianças e adolescentes surge a discussão de que forma cada um
desses estaria contribuindo para assegurar esses direitos, a fim de regularizar
essa situação foi promulgada a lei 8.069 de julho de 1990 (Estatuto da Criança
564

e do Adolescente) estabelecendo as obrigações que cabem a cada “institui-


ção” envolvida. Na parte que cabe ao estado, dentre a criação de políticas
públicas em seu art. 131 estabelece o que é o conselho tutelar: “O Conselho
Tutelar é o órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado
pela sociedade civil de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente, definidos nesta lei.”
Pode-se dizer que o conselho tutelar é um órgão colegiado de responsabili-

or
dade do município ou de cada região administrativa do distrito federal como versa

od V
o art 132 do ECA que também estabelece que para sua composição é necessário 5

aut
membros escolhidos pela população local, esta escolha é feita através de voto
direto, secreto e facultativo a todos os cidadãos maiores de 16 anos, tais membros
escolhidos são denominados de conselheiros tutelares e tem mandato de quatro

R
anos, podendo ter recondução mediante novo processo de escolha.
O Conselho Tutelar surge, portanto, como um equipamento no campo

o
social, destinado à defesa e proteção dos direitos básicos das crianças e ado-
aC
lescentes dentro do modelo garantista, já utilizado pelas Nações Unidas e por

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


outros países como princípio básico da cidadania plena nos Estados democráti-
cos (ISHIDA, 2000). As atribuições específicas do conselho tutelar são versadas
no Art.136, do inciso I a XII do ECA, no qual podemos destacar atendimento a
visã
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade que ameacem ou violem
seus direitos; atendimento e aconselhamento aos pais e responsáveis com obje-
tivo de fortalecer e/ou restabelecer os vínculos familiares, afim de minimizar
itor

ou extinguir os riscos para as crianças e adolescentes; promover a execução de


a re

suas decisões podendo requisitar serviços públicos de saúde, educação, serviço


social, previdência, trabalho e segurança; encaminhar ao ministério público ou
autoridade judiciária os casos de competência destes; requisitar certidões de nas-
cimento e de óbito de criança ou adolescente quando necessário; dentre outros.
A partir dessas análises, podemos concluir que o conselho tutelar no Brasil é
par

na prática o equipamento social responsável de aplicar medidas protetivas aos


Ed

direitos das crianças e adolescentes e tende a contribuir para diminuição de


violências causadas pelo estado, sociedade e família, que segundo a constituição
de 88, deveriam assegurar os direitos fundamentais destes.
ão

O Conselho Tutelar e a garantia de direitos de crianças e


adolescentes vítimas de violência sexual
s
ver

No ano de 2020 o ECA completa 30 anos de existência e apesar dos


inúmeros avanços no amparo e proteção legal a crianças e adolescentes, com
esse período considerável de existência, esperava-se um país mais evoluído
nestas questões, o que infelizmente, não é o que se vê. A exemplo, os casos de
Violência Sexual (VS) contra crianças e adolescentes que são uma realidade
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 565

presente em quase todo território brasileiro. De início, vale salientar que neste
texto adota-se a concepção de VS postulada Minayo (2001, p. 92) que a entende
como: “todo ato ou omissão cometidos por pais, parentes, outras pessoas e
instituições capazes de causar danos físico, sexual e/ou psicológico à vítima”.
A VS é um crime bastante complexo, pois, na maioria das vezes, os
casos ocorrem no ambiente familiar e envolvem parentes e pessoas próximas
à vítima, o que dificulta o diagnóstico. Além disso, há poucas políticas públi-

or
cas eficientes para prevenir e atender aos adolescentes violentados, ainda que

od V
exista diversas normas jurídicas que dão suporte às ações de combate a esse

aut
tipo de crime (HABIGZANG; KOLLER; AZEVEDO; MACHADO, 2005).
A Constituição Federal, a Normativa Internacional e o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) são exemplos de leis e normas jurídicas que abrangem o

R
combate à VS e estabelecem o dever da família, da sociedade e do Poder Público
para com os menores. Esta última, regulamentada através da Lei n° 8.069/90,

o
merece destaque especial em seus principais artigos que tratam do referido tema.
aC
Com relação a VS, o ECA, sustenta de forma generalizada em seu art. 5°
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a proteção de crianças e adolescentes contra “qualquer forma de negligência,


discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, e enfatiza no art.
18 que: “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente,
visã
pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante,
vexatório ou constrangedor” e, no art. 70, com teor preventivo dispõe que:
“é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos
itor

da criança e do adolescente” (BRASIL,1990).


a re

A fim de dar concretude a tais disposições, o ECA impõe nos arts. 13


e 56, no inciso I, que os profissionais da área da saúde e da educação também
têm a obrigação de comunicar ao Conselho Tutelar os casos de mera suspeita
ou de confirmação de maus tratos praticados contra crianças e adolescentes.
Com relação a isto, a Lei n° 8.069/90 dispõe no art. 130 que “verificada
par

a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais


Ed

ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida


cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum” (BRASIL, 1990).
Tal medida garante a permanência da criança ou adolescente na companhia
ão

de seus familiares, não estando entre estes quem causou o crime, e evita o
encaminhado a entidades de acolhimento institucional.
Contudo, toda normativa jurídica disposta no ECA só adiantará se os
s

órgãos e autoridades públicas responsáveis funcionarem em sua plenitude. Um


ver

dos órgãos citados pela Lei n° 8.069/90 como sendo uma instituição essencial
ao Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA)
é o Conselho Tutelar e ele tem um papel muito importante na proteção inte-
gral dessa categoria de cidadãos e com isso, no enfrentamento dos casos de
violência, abuso e exploração sexual.
566

O Conselho Tutelar é caracterizado pelo art. 131, da Lei n° 8.069/90


como “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela
sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”
(BRASIL, 1990). Destarte, o Conselho Tutelar atua de forma estratégica na
composição e funcionamento do SGDCA tendo o papel de mediação entre o
Estado e as demandas decorrentes de violações de direitos (CAMPOS, 2014).
Atualmente, existem cerca de 5.956 Conselhos Tutelares pelo Brasil

or
(BRASIL, 2019). Sobre eles o ECA estabelece em seu art.132 que deve haver

od V
ao menos um em cada município e que deve ser composto por cinco membros

aut
escolhidos pela comunidade local que exercerão mandato de três anos com
a possibilidade de uma recondução, embora as regras de funcionamento e a
eventual remuneração dos conselheiros sejam reguladas por lei municipal.

R
Para torna-se conselheiro é imprescindível a reconhecida idoneidade moral
da pessoa, além de ser maior de 21 anos de idade e residir no município em

o
que o conselho funciona (NASCIMENTO et al., 2009).
aC
Para tanto, deve o Conselho Tutelar, usando de seus poderes/deveres

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e prerrogativas legais, dentre as quais se encontra a de “assessorar o Poder
Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e pro-
gramas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente” (BRA-
visã
SIL, 1990), buscar junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e
do Adolescente (e ao governo e órgãos públicos municipais, que o integram),
a elaboração e implementação de uma política pública específica, voltada à
itor

prevenção e ao atendimento especializado de crianças e adolescentes vítimas


a re

de violência sexual, e suas respectivas famílias (DIGIÁCOMO, 2003).


É inegável o papel do Conselho Tutelar no SGDCA, porém a instituição
enfrenta inúmeros desafios que dificultam a plena execução dos seus deveres.
Dentre esses empasses os conselheiros tutelares precisam lidar com a ausência
de reconhecimento da sua função de agente protetor, que muitas vezes carrega
par

o estereótipo de repressor ou alguém a quem se deve temer. Além disso, a falta


Ed

de capacitação, a grande demanda de trabalho, a escassez de infraestrutura e a


dificuldade de se trabalhar em rede são mais algumas adversidades (BATISTA;
CERQUEIRA-SANTOS, 2012; CAMPOS, 2014; DIGIÁCOMO, 2003)
ão

Para Digíacomo (2003) a solução para os problemas dos Conselhos


Tutelares perpassa pela implementação de recursos, ações articuladas com
inúmeros setores governais e não governamentais, bem como a capacitação
s

de profissionais. Além do mais, é necessário um trabalho de conscientização


ver

social sobre a responsabilidade de todos sobre os problemas que atingem as


crianças e adolescentes. Essa concepção também é aplicável para o atendi-
mento e busca de uma solução mais efetiva da VS.
Ibid., (2003), nos casos de VS, o Conselho Tutelar deve atuar junto ao
Ministério Público, as Polícias Civil e Militar, a Justiça da Infância e Juventude,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 567

o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente e os órgãos públicos


responsáveis pela execução de políticas nas áreas da saúde, educação e assis-
tência social. Desta forma, a instituição pode fornecer informações sobre as
demandas, comunicar omissões, aplicar medidas cabíveis, elaborar políticas
públicas com ações preventivas que visem a solução do problema, entre outras.
Ainda conforme Digíacomo (2003), as ações do Conselho Tutelar, princi-
palmente nos casos de crime de VS, devem ser conjuntas com os demais órgãos

or
que compõem o SGDCA e toda a sociedade, ao contrário, uma ação isolada

od V
ou precipitada pode inviabilizar uma intervenção policial eficaz e dificultar a

aut
investigação e coleta de provas, trazendo ainda mais prejuízos a vítima. Para
solucionar de forma definitiva os casos de VS contra crianças e adolescentes é
necessário que cada ator social cumpra seu propósito. Ainda há um longo cami-

R
nho a se seguir e o Conselho Tutelar é o órgão que vai a frente dessa caminhada,
quando se trata de garantia de direitos. A tarefa não é fácil, é importante que se

o
façam ajustes em vários níveis do órgão para se prover uma atenção de qualidade
aC
a crianças e adolescentes em todas as esferas, assim como se prevê no ECA.
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A Relação entre a Psicologia o ECA e o Conselho Tutelar


visã
O ECA sendo uma conquista social é um instrumento de transformação,
na medida em que tem como foco o direito da criança e do adolescente, que
são alvos de violências, sendo esta, uma realidade mundial em diferentes
itor

classes sociais. A partir de sua criação o ECA “têm o papel de aglutinar for-
a re

ças para reverter a dinâmica das políticas sociais que funcionam mais como
reprodutoras da desigualdade” (SOUZA NETO, 2006, p. 187).
Dessa forma, a psicologia compreendida com ciência da saúde, atua jun-
tamente ao Conselho tutelar no processo de garantia dos direitos da criança e
par

do adolescente visando a proteção, promoção e prevenção em saúde mental


das crianças e adolescentes, combatendo ações reprodutoras de desigualdades.
Ed

Além disso, O ECA denomina o desenvolvimento da criança e do adolescente


como desenvolvimento que deve ser integral enxergando-os como sujeito com
desejos, direitos, aspectos sociais, emocionais e subjetivos. Logo, A Psicologia
ão

atua juntamente com a necessidade de um desenvolvimento saudável, em um


ambiente que permeia a integridade física e moral da criança e do adolescente,
sua subjetivação e direito ao desenvolvimento pessoal e social esse previsto
s

pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (CASTRO, 2002).


ver

Apesar de ainda não ser uma realidade social, muitas formas de violências
direcionadas às crianças e adolescentes têm sido questionadas e combatidas,
desde a criação do Estatuto da criança e do adolescente. A partir do ECA,
se tem um compromisso social ao desenvolvimento integral, doutrina está,
também presente na constituição de 1998:
568

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao ado-


lescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, cruel-
dade e opressão” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1988, Art. n. 227)

or
Sendo assim o ECA surgiu visando a proteção e preservação da criança
e adolescente com ênfase à proteção para preservação da vida e seus direi-

od V
tos fundamentais, solicitando quando necessário autoridades jurídicas para

aut
denúncias de abusos, sendo assim, “Nenhuma criança ou adolescente será
objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,

R
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais” (OLIVEIRA, 1995, p. 2).

o
Advindo da criação do ECA, o conselheiro tutelar é o profissional res-
aC
ponsável pelo atendimento às crianças e adolescentes em situações de vul-

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nerabilidades, apresentando riscos para sua integridade e violação dos seus
direitos. A partir da utilização da lei o conselheiro tutelar contribui para a
garantia dos direitos das crianças e adolescentes (ROCHA, 2009). Além disso,
visã
o conceito presente no ECA, denomina: “órgão permanente e autônomo, não
jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente” (BRASIL, 1990).
itor

O Conselho tutelar sendo um órgão administrativo, é imprescindível


a re

para orientação da população acerca da proteção dos direitos da criança e do


adolescente e é necessário o atendimento interdisciplinar para que o desenvol-
vimento integral seja um fator indispensável para as organizações, decisões e
atendimentos voltados ao público em específico. Ainda segundo o Conselho
Federal de Psicologia (2003), é papel do Psicólogo, integrante da equipe
par

interdisciplinar do conselho tutelar, considerar as crianças e adolescentes


como sujeitos de suas histórias e direitos, dessa forma integrando um espaço
Ed

político, público e visando efetividade do seu trabalho juntamente com os


demais integrantes da equipe nos atendimentos nas situações de risco e res-
saltando nas suas metodologias de trabalho interdisciplinar as especificidades
ão

das demandas e intervenções, sendo essas de acordo com cada caso.


s
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 569

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Ed
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ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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ESTATUTO DO IDOSO, SAÚDE
COLETIVA E A DEFESA DOS
DIREITOS DA PESSOA IDOSA

or
od V
Ronilda Bordó de Freitas Garcia

aut
Helder Corrêa Luz
Helena Carollyne da Silva Souza
Antônio Soares Júnior

R
Pamella Augusta Passos Ventura Pina
Cristina Simone de Sousa Reis

o
aC
Introdução
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O Estatuto do Idoso, Lei n° 10.741, de 1 de Outubro de 2003, representa


uma enorme conquista por ampliar os direitos da pessoa idosa com idade igual
visã
ou superior a 60 anos, porém, ao pensarmos em sua constituição torna-se
necessário compreender o processo que originou tal Lei, a partir da ampliação
de direitos que já estavam presentes na Constituição Federal, Declaração dos
itor

Direitos Humanos e na Política Nacional do Idoso, por exemplo.


a re

A Constituição Federal de 1988 teve grande impacto na defesa da cidadania,


assegurando direitos aos diversos grupos sociais, entre eles a população idosa,
que passou a ter ampla segurança jurídica, como indicado no Art. 230 da referida
Constituição, que dispõe sobre os deveres atribuídos a família, a sociedade e ao
par

estado, quanto ao amparo da pessoa idosa e sua participação na comunidade,


defendendo a dignidade e o bem-estar desta. Para isso trata nos parágrafos §1° e
Ed

§2° do mesmo Art., dos programas de amparo ao idoso e as execuções em seus


respectivos lares, bem como a gratuidade nos transportes coletivos urbanos.
Tais direitos conquistados proporcionam uma maior integração social
ão

das pessoas idosas e da adoção de medidas que possam favorecer o cuidado


para com as mesmas. Esse conjunto de pessoas passa a ser reconhecidas por
suas características naturais, ocasionadas pelo envelhecimento humano, e
s

começam a ser observadas mais de perto pela sociedade, bem como todos os
ver

aspectos envolvidos e que estão relacionados à própria condição natural em


que se encontram ou aos aspectos que são gerados em função disso, como os
estereótipos que servem de base para o preconceito, por exemplo, e que se
tornam extremamente prejudiciais à vida em sociedade.
A Lei 8.842 de 4 de Janeiro de 1994, referente a Política Nacional do
Idoso, que tem por objetivo assegurar os direitos sociais da pessoa idosa, de
forma que possam ser atendidas as condições necessárias para a promoção da
574

autonomia e a integração na sociedade, traz princípios fundamentais e incen-


tivos para a criação de projetos destinados ao engajamento e aproximação da
sociedade, familiares e o do próprio estado. Outro ponto de destaque trata-se
da tentativa de resgatar a participação nos espaços, proporcionando a pessoa
idosa o convívio tanto em seu próprio grupo quanto aos demais grupos de faixas
etárias diferentes. Essa Política foi essencial para a garantia da subjetividade
da pessoa idosa promovendo qualidade de vida e a garantia dos seus direitos

or
como, por exemplo, de seguridade social previsto na Constituição de 1988.

od V
É possível observar, ao analisarmos o contexto que antecede a criação

aut
do Estatuto do Idoso, como um período onde já havia determinadas garan-
tias legais que asseguravam direitos básicos a população idosa. Camarano e
Pasinato (2004) destacam o Brasil como um dos pioneiros na América Latina

R
quando se trata da implementação de uma política de garantia de renda para a
população em geral e em específico a população idosa, sendo que essa política

o
de seguridade social já podia ser observada em 1988.
aC
Essas Leis já representavam um grande avanço na conquista legal de

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direitos dessa população, e a consolidação dessas e outras demandas, apresen-
tada ao congresso em 1997, com envolvimento da Confederação Brasileira dos
Aposentados e Pensionistas (COBAP), bem como apoio político, contribuíram
visã
para a elaboração do Projeto de Lei n°3.561/1997, que mais adiante culmi-
naria em sua escolha e sanção presidencial, vindo a ser o Estatuto do Idoso.
Dentro desse contexto, o Estatuto do Idoso, amplia e ao mesmo tempo
itor

sistematiza direitos já verificados em outros espaços legais, visando questões


a re

familiares, de saúde e discriminação, por exemplo, bem como direitos con-


siderados fundamentais à vida humana. Em seu Art. 2, o Estatuto enfatiza
que é assegurada a pessoa idosa todas as facilidades e oportunidades para a
garantia de sua saúde física e mental, e ainda seu aperfeiçoamento do ponto
de vista moral, intelectual, espiritual e social.
par

Os inúmeros benefícios proporcionados pelo Estatuto do Idoso podem ser


Ed

observados em diversos aspectos, desde questões relacionadas à saúde como


o próprio direito de ir e vir, de forma que tenha sua locomoção facilidade,
diante da concessão de benefícios de transporte, por exemplo. Outro ponto
ão

importante e que traz benefício à população idosa, diz respeito às medidas


protetivas, pois são aplicáveis frente a qualquer violação dos direitos, diante
da ação ou omissão da sociedade ou Estado, bem como por parte da família,
s

responsável legal ou instituição onde esteja sendo cuidado. Neste sentido, o


ver

Art. 45 do Estatuto do Idoso trata de medidas protetivas caso se constate vio-


lação de direitos presentes no Art. 43, estas se referem ao encaminhamento aos
responsáveis legais, as orientações, apoio e acompanhamentos temporários,
requisição para tratamento do idoso, inclusão deste em programas de auxílio,
entre outras medidas.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 575

Os aspectos jurídicos do Estatuto do Idoso destacam no Art. 99 que, “Expor


a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a
condições desumanas ou degradantes ou privando-os de alimentos e cuidados
indispensáveis, é crime”. Logo, quem comete tal ato, pode ser punido com pena
de detenção, ou seja, torna-se dever do estado e da sociedade permitir que a
população idosa tenha um envelhecimento saudável garantindo condições dignas.
É possível observar ainda que o Estatuto do Idoso apresenta uma visão

or
psicossocial aos aspectos de vida da pessoa idosa, tendo um olhar de valoriza-

od V
ção à dignidade com a garantia de direitos, por exemplo, a educação, cultura,

aut
esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços, como constam
no Art. 20. Em uma sociedade em que a visão direcionada a pessoa idosa
é pautada por preconceitos, desrespeito a sua personalidade, encaixando o

R
indivíduo idoso em um estereótipo baseado no apagamento de subjetividades
que o faz inválido socialmente, a Política Nacional do Idoso (lei 8.842) jun-

o
tamente com seu produto o Estatuto do Idoso representam um marco social
aC
de extrema importância.
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A saúde do idoso e o sistema único de saúde no Brasil


visã
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como princípios doutrinários, de
acordo com o ABC do SUS, baseado nos preceitos constitucionais: a Univer-
salidade, sendo esta a garantia da atenção à saúde a todo e qualquer cidadão,
itor

independente de renda, classe social, gênero, entre outros aspectos. Logo, a


a re

pessoa idosa possui direito de acesso a todos os serviços ofertados pelo SUS.
O segundo princípio doutrinário é a equidade, que tem como objetivo assegurar
as ações de todos os níveis de atenção de forma a garantir que aos cidadãos
atendimento, de acordo com suas demandas, sem privilégios ou discriminações,
par

independentemente da idade que venha apresentar, pois todos possuem direito


a valorização da vida e atendimento conforme suas necessidades, visando
Ed

sempre à integralidade, que é mais um dos princípios doutrinários do SUS. A


integralidade por sua vez visa o reconhecimento das subjetividades do sujeito,
o reconhecendo como único, levando em consideração seus aspectos sociais e
ão

considerando os três níveis de atenção: primária, secundária e terciária.


Com a criação do SUS a partir da Constituição Federal de 1988 e sua
efetivação em 1990, através das Leis nº 8.080 e a 8.142, mudou-se a forma
s

como a saúde Pública era tratada no Brasil. De acordo com a Lei 8.080, os
ver

objetivos do SUS são: a identificação e divulgação dos fatores condicionantes


e determinantes da saúde, a formulação de políticas de saúde e a assistência às
pessoas por intermédio de ações, promoção, proteção e recuperação de saúde,
com realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas
para todo cidadão sempre visando à universalidade, equidade e a integralidade.
576

A saúde, participação social e a segurança da pessoa idosa são aspec-


tos imprescindíveis para que ocorra uma participação ativa do sujeito na
sociedade. Um idoso com a capacidade funcional preservada insere-se na
sociedade de forma mais ativa, de acordo com a Política Nacional de Saúde
da Pessoa Idosa (PNSPI) regulamentada em 1996, assegura direitos sociais à
pessoa idosa, criando condições para promover sua autonomia, integração e
participação efetiva na sociedade e reafirmando o direito à saúde nos diver-

or
sos níveis de atendimento do SUS (Lei nº 8.842/94 e Decreto nº 1.948/96).

od V
Esta política considera que a autonomia e independência em contraste com a

aut
ausência ou não de doença, é o que determina se o idoso é saudável, ou seja,
a funcionalidade global do sujeito.

R
A Portaria n° 2.528 de 19 de outubro de 2006, que aprova a Política
Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI), demonstra que esta tem como

o
diretrizes: promoção do envelhecimento ativo e saudável; atenção integral,
integrada à saúde da pessoa idosa, estímulo às ações intersetoriais, visando à
aC

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integralidade da atenção, provimento de recursos capazes de assegurar quali-
dade da atenção à saúde da pessoa idosa, estímulo à participação e fortaleci-
mento do controle social, formação e educação permanente dos profissionais
visã
de saúde do SUS na área de saúde da pessoa idosa, divulgação e informação
sobre a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa para profissionais de saúde,
gestores e usuários do SUS, promoção de cooperação nacional e internacional
das experiências na atenção à saúde da pessoa idosa e apoio ao desenvolvi-
itor

mento de estudos e pesquisas.


a re

Além da Política Nacional da Pessoa idosa (PNSPI) é possível obser-


var outros marcos legais que sustentam os direitos deste público, tais como
a Lei 8842 de 4 de janeiro de 1994, intitulada como Política Nacional do
Idoso que cria o Conselho Nacional do Idoso e visa garantir mecanismos
par

que impeçam a discriminação do idoso quanto a sua participação no mercado


de trabalho, no setor público e privado, entre outros fatores. Mais adiante,
Ed

em 1999, com a portaria nº 1395 de 10 de dezembro de 1999, foi intitulada a


primeira política no Brasil voltado especificamente para a população idosa.
Em 2002 foi realizado e aprovado pela ONU o Plano de Ação Internacional
ão

para o Envelhecimento em Madrid, esta política estimula a preservação de


dados dos idosos para a formulação de pesquisas em diversos âmbitos, além
s

de assegurar a promoção de bem-estar físico e social.


ver

Ademais, a Lei nº 10.741, de outubro de 2003, estabeleceu o Estatuto


do Idoso, assegurando as pessoas com idade igual ou superior aos 60 anos,
segundo o Art. 3 desta Lei, que é obrigação da família, da comunidade, da
sociedade e do poder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a
efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 577

esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito


e à convivência familiar e comunitária. Em 2005 foi estabelecido o Plano de
Ação para o enfrentamento da violência contra a pessoa idosa, posteriormente
foi estabelecida a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa de 2006, neste
mesmo ano foi criado o dia nacional do idoso pela Lei nº 11.433, de 28 de
dezembro de 2006. Além disso, consta no Parágrafo Único desta Lei que
os órgãos públicos se tornam responsáveis pela realização e divulgação de

or
eventos para a valorização do idoso na sociedade.

od V
Ainda foi estabelecido o plano de ação sobre a saúde das pessoas idosas,

aut
incluindo o envelhecimento ativo e também saudável, Fundo Nacional do
Idoso através da Lei nº 12.213, de 20 de janeiro de 2010, o Programa Nacio-

R
nal de Imunizações (Portaria nº 1498) instituindo calendários de vacinação
para população idosa, em 2013 com o Decreto nº 811, de 30 de setembro

o
de 2013, é estabelecido o compromisso nacional para o envelhecimento ativo,
e mais recentemente ocorreu a Convenção Interamericana sobre a Proteção
aC
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dos Direitos Humanos dos Idosos (15 de junho de 2015).


No entanto, apesar de muitos avanços observados pelas políticas públicas
para a pessoa idosa, ainda é evidente que a partir do declínio funcional deste
visã
sujeito, passa a ser institucionalizado e, então, seguido em muitos casos de
hospitalização e a morte, seja ela de modo propriamente físico ou relacionado
à morte social, diante das limitações e exclusões evidentes no meio onde
está inserido. Bauman (2004; 2013) salientava o processo de mortificação e
itor

exclusão social sofrido por várias parcelas da população, entre estas, os ido-
a re

sos. Este segmento seria vítima de uma desfiliação social na medida em que
passou a ser vista como improdutiva e um peso para a sociedade capitalista.

Atuação do psicólogo em contextos de violência ao idoso


par

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência é


Ed

“O uso intencional de força física ou poder, real ou em ameaça contra si pró-


prio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte
ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico,
ão

deficiência de desenvolvimento ou privação” (OMS; 2002). Em 2005 foi


criado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), tendo como objetivo a
s

proteção social aos cidadãos, este possui serviços de acolhimento institucional


ver

aos idosos onde são presentes unidades que têm como objetivo o cuidado,
como as Casas Lar e também as Instituições de Longa Permanência (ILPI).
Os primeiros casos de maus tratos a pessoa idosa foram relatados ini-
cialmente no ano de 1975, por meio de uma revista científica britânica que
informou agressões cometidos contra essa população. A violência contra
578

idosos no Brasil teve maior proporção e impacto nas últimas duas décadas,
com aumentos dessa população no país, o que se intensificou um quan-
titativo de denúncias realizadas. Entende-se, que a violência contra essa
classe cresce rotineiramente, desencadeada por vários fatores e também nos
diversos núcleos, como o próprio grupo familiar ou os responsáveis legais
dentro das instituições e cuidado.
Segundo o Relatório de Inspeção a Instituições de Longa Permanência

or
para Idosos (ILPIs), realizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP),

od V
juntamente com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a maioria dessas

aut
instituições de longa permanência não possuem infraestrutura mínima para
abrigar os idosos. Neste levantamento foram visitadas 24 instituições, entre
setembro e outubro de 2007, e apesar das informações disponíveis encon-

R
tram-se desatualizadas, o relatório reflete um cenário bem comum nos dias
atuais e serve para possamos compreender, de forma parcial, o que acontece

o
no interior dessas instituições com esse grupo de pessoas.
aC

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É possível constatar ainda que a garantia dos direitos previstos pela
Política Nacional do Idoso- Lei 8.842 de 4 de janeiro de 1994, que demandam
sobre questões sociais, de autonomia e integração desses sujeitos na sociedade,
se encontra distante da realidade dos idosos em vários Estados do Brasil. A
visã
seguir, é apresentado um quadro que sintetiza alguns dos locais presentes no
Relatório de Inspeção a Instituições de Longa Permanência para Idosos, bem
como impasses e pontos positivos encontrados:
itor
a re

Quadro 1 – Relatório de Inspeção a Instituições


de Longa Permanência para Idosos
Alguns dos pontos
Nome da Alguns dos impasses envolvendo
Estado positivos das
Instituição os direitos dos idosos.
par

instituições

Problemas de saúde física e mental,


Ed

precariedade no atendimento à
Casa de Longa
saúde, não oferecem vestuários aos
Permanência Ieda Pernambuco
internos, ausência de orientação
Lucena
adequada à sexualidade, não
ão

possuem vínculos familiares.

Centro Dourado da
Má qualidade nas refeições,
s

Fraternidade ou Vila Preservação dos vínculos


Bahia furtos (ausência de segurança)
Fraternidade – ONG familiares
ver

infraestrutura precária.
Nzinga

Pouca participação social (não


Lar dos Idosos costumam sair do local, não Não há superlotação nos
Minas Gerais
Tereza Cristina há atividades para fazerem e quartos dos idosos
ausência de privacidade)

continua...
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 579

continuação
Alguns dos pontos
Nome da Alguns dos impasses envolvendo
Estado positivos das
Instituição os direitos dos idosos.
instituições

Falta de acesso à cultura, educação,


ausência de conhecimento
Clínica de Repouso
São Paulo sobre procedimentos para seus
Estância Cantareira
quadros clínicos, ausência
de assistência religiosa.

or
od V
Não há atendimento que envolva
Abrigo Núcleo Solar
estudo da pessoa idosa com suas

aut
Espírita Apóstolo Goiás Boas instalações físicas.
singularidades, poucas atividades
Tomé
comunitárias.

Abrigo São José Amapá

ROciosidade (ausência de atividades


físicas) furtos.
Preservação dos vínculos
familiares (visitas diárias)

o
Prática de exercícios
aC
Lar Torres de Melo Ceará Ausência de visitas, exclusão. físicos, boa qualidade da
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alimentação.

As observações dos impasses encontrados nas instituições de longa


visã
permanência dos idosos, conforme expressado no quadro, refletem proble-
mas que vão desde questões estruturais dos espaços até as de saúde física
e mental dos sujeitos. A logística inadequada, por exemplo, onde o idoso é
privado de atividades que proporcionem o convívio social, seja internamente
itor

ou externamente, implica diretamente na falta de engajamento em ações pes-


a re

soais ou de cunho individual, como motivação para a prática de exercícios


e cuidados coma saúde.
Há de forma perceptível nessas instituições o desrespeito à singularidade
do idoso, onde não se valoriza o convívio com membros da família, despren-
par

dendo-o de sua história de vida e colocando-os em um lugar de invalidez. A


exclusão é um fator que permeia a vida dos idosos da maioria dessas institui-
Ed

ções, visto que há casos em que a família do idoso não é encontrada.


De acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos em 2017,
foram contabilizados mais de 33 mil denúncias no Brasil, referente à prática de
ão

abusos e agressões contra a terceira idade, porém, esses números não mostram
os dados reais, uma vez que a violência contra essa classe não é amplamente
denunciada por motivo de medo, o que demonstra muitas vezes que nesses
s

casos o agressor tem proximidade, ou seja, parentesco com a vítima.


ver

Ademais, o processo de trabalho no SUS, com a população idosa, também


envolve a Estratégia de Saúde da família (ESF), tendo como objetivo melhorar
a qualidade de vida da população, levando a saúde para as famílias, partindo
do conhecimento do perfil destas na comunidade. Visando melhorias a atenção
580

integral, o Ministério de Saúde em 2008 criou os Núcleos de Apoio a Saúde


da Família (NASF) apoiando a inserção da Estratégia Saúde da Família- ESF.
Logo, a equipe multiprofissional dos diferentes níveis de atenção tem como
uma das atividades principais promover a proteção às pessoas idosas, a partir
da prevenção da violência.
A equipe interdisciplinar, juntamente com o psicólogo, no Centro de Refe-
rência da Assistência Social- CRAS atua de acordo com as especificidades:

or
od V
O CRAS atua com famílias e indivíduos em seu contexto comunitário,

aut
visando à orientação e ao convívio sociofamiliar e comunitário. Neste
sentido é responsável pela oferta do Programa de Atenção Integral às
Famílias. Na proteção básica, o trabalho com famílias deve considerar

R
novas referências para a compreensão dos diferentes arranjos familiares,
superando o reconhecimento de um modelo único baseado na família

o
nuclear, e partindo do suposto de que são funções básicas das famílias:
aC
prover a proteção e a socialização dos seus membros; constituir-se como

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referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal,
além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras insti-
tuições sociais e com o Estado (BRASIL, 2004, p.35).
visã

Nesse sentido, o psicólogo juntamente com a equipe, deve atender os


idosos em situação de vulnerabilidade e risco social, em situações de violência
itor

psicossocial, atuando, dessa forma, juntamente com os serviços socioassis-


tenciais da proteção social básica do Sistema Único de Assistência Social
a re

(SUAS). De acordo com Cruz (2009), o SUAS considera a atuação do psi-


cólogo indispensável para a equipe da política nacional de assistência, exi-
gindo deste o saber psíquico para que possa influenciar na transformação de
realidades sociais e comunitária do sujeito no seu convívio familiar.
par

Logo, é papel do Psicólogo atuar na proteção aos idosos buscando a pro-


moção da saúde mental destes em situações de vulnerabilidades e violências,
Ed

promovendo acolhimento, tendo qualidade no atendimento das demandas


apresentadas pelo público idoso. É importante que o trabalho deste, seja rea-
lizado juntamente com todos os integrantes da equipe e de forma que alcance
ão

os membros da comunidade, para que não sejam perpassados os estigmas


de silenciamento e apagamento dos idosos, pois estes devem exercer sua
s

cidadania e expressar suas subjetividades nos diversos espaços. Dessa forma,


ver

“[...] o Psicólogo deve oferecer serviços de qualidade, diminuir sofrimentos,


evitar a cronificação dos quadros de vulnerabilidade, defender o processo
democrático e favorecer a emancipação social” (CONSELHO FEDERAL
DE PSICOLOGIA, 2008, p. 27).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 581

Considerações finais

O texto pode ser concluído com a afirmativa de que a saúde dos idosos
fica comprometida por inúmeros processos de exclusão social e violências
bem como por violações de direitos humanos. O racismo de Estado e de
sociedade da biopolítica, de acordo com Foucault (1999; 2008) afeta grupos
específicos no deixar morrer, um dos mais afetados como alvo deste deixar

or
morrer são os idosos.

od V
A precariedade da vida dos idosos se tornam maior quando o orçamento

aut
reservado pelo Estado para as políticas sociais voltadas a este segmento da
população irrisória e o acesso dos mesmos ao atendimento bem restrito face
às suas necessidades e demandas. Assim, se tornam vidas descartáveis e inten-

R
samente vulneráveis, classificadas como incapazes e improdutivas, vidas que
não parecem importar para a sociedade e podem ser definidas em um quadro

o
de guerra como inimigas do capitalismo neoliberal (BUTLER, 2018; 2019).
aC
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visã
itor
a re
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s ão
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a re

tes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fon-


tes, 2008.
par

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de


Ed

poder. Tradução: Maurício Liesen. BH: Editora Âyné. 2018.


s ão
ver
PANÓPTICO, BIOPOLÍTICA E A
NECROPOLÍTICA NA PANDEMIA DO
NOVO CORONAVÍRUS: o enxame viral

or
od V
Flávia Cristina Silveira Lemos

aut
Felipe Sampaio de Freitas
Dolores Galindo
Jéssica Modinne de Souza e Silva

R
Fabiana de Lima e Silva

o
aC
Introdução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Este artigo é um ensaio, o qual visa problematizar algumas práticas coti-


dianas a respeito da emergência da pandemia por Covid-19, na atualidade.
visã
São escritos iniciais com vistas a pensar pistas e vestígios, analisar rastros e
efeitos, interrogar os modos de vida por uma breve história do presente. O
texto é formulado pela escolha de algumas apostas analíticas a partir de uma
itor

perspectiva pautada em aportes selecionados da História Cultural, da Filosofia


a re

Política e da Psicologia Social.


Em especial, parte-se de elementos conceituais da biopolítica, da necro-
política e da chamada “sociedade de disciplinar”, isto é, a da vigilância panóp-
tica. Busca-se realizar um breve mapa diagramático da pandemia do novo
coronavírus com algumas linhas de força, entrecruzadas a partir de operadores
par

conceituais de Foucault, Mbembe e Butler, em especial. Os conceitos de vida


precária, de quadros de guerra e vidas dignas de luto são importantes para
Ed

uma problematização das práticas efetuadas face à pandemia de COVID-19.


Pensar o acontecimento em tela é importante e se tornou uma prática
ética e política, na história do presente. Trazer uma analítica do poder-corpo
ão

e saúde, na geopolítica contemporânea, também é uma aposta de estudo a ser


realizada com cuidado e atenção face aos efeitos da pandemia do coronavírus,
no ano de 2020, na grande maioria dos países, trazendo impactos gravíssimos
s

e preocupantes para toda a sociedade. Portanto, vale problematizar algumas


ver

questões específicas da referida pandemia, bem como, oferecer pistas para a


ampliação de estudos a respeito.

Pistas a respeito do enxame viral

Os conceitos e autores supracitados permitem o ensaio de interrogações


e reflexões sobre a transmissão, a taxa de letalidade e as medidas tomadas
584

como prevenção, controle e tratamento, bem como, a maneira de intervir face


às mortes em função do coronavírus, que são diferentes em cada país e região.
Assim, postula-se que há uma geopolítica da doença, e também, uma história
da mesma. A distribuição espacial do contágio é um efeito diferenciado na
transmissão em função de modos de objetivar e subjetivar a doença.
As formas de apreensão e reconhecimento de um ser tem uma materia-
lidade histórico-cultural e geopolítica baseadas na gestão da vida adotada no

or
momento do evento. No caso de uma pandemia como a do coronavírus, há

od V
riscos e vulnerabilidades específicos, resultantes da precariedade das vidas

aut
em cada local, a partir dos parâmetros de enquadramento da ideia de “guerra
declarada à transmissão”, e aos efeitos do contágio face à capacidade de cui-

R
dado organizada pelos valores afetivos, culturais e sociais; dados às vidas,
pelos quadros de apreensão e reconhecimento. Neste ponto, consideramos os

o
trabalhos de Butler (2018), a respeito dos quadros de guerra.
Há uma historicidade dos conceitos de saúde, doença, epidemia, pan-
aC

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demia, vírus, contágio, endemia, normal, anormal, patológico, diagnóstico e
tratamento. Com efeito, uma doença não é um fato natural; e os modos de
lidar com ela, menos ainda (CZERESNIA, 1997). O coronavírus (Sars-Cov-2)
visã
possui uma taxa alta de transmissão, se comparado ao primeiro vírus pandê-
mico do século XXI, o H1N1 (também nomeado de influenza, transmitido
aos seres humanos através dos porcos, denominado de “gripe suína”).
A endemia é uma grande infecção de caráter local de um agente infeccioso,
itor

em uma região específica, como exemplo: a febre amarela. Já, a epidemia é um


a re

contágio que acontece em diversas localidades e regiões de um país. No caso da


pandemia, há uma infecção de grande contágio, a qual se generaliza por vários
continentes (GORDIS, 2004). O intenso índice de contágio do vírus Covid-19
produziu uma pandemia com resultados catastróficos, sobretudo, nos países com
par

menores condições de infraestrutura sanitária e com políticas públicas deterioradas


e sucateadas. Assim, o Covid-19, um novo tipo de coronavírus, ainda sem cura
Ed

e altamente transmissível, escancarou uma crise global política, cultural, social e


econômica, de diferentes matizes e intensidades.
Com efeito, trata-se de uma crise bastante corrosiva, não apenas à saúde
ão

dos cidadãos de diversos países, mas ao nosso próprio modo de vida, em


uma sociedade marcada pela ideia de empreendedorismo e de cobranças por
s

extrema produtividade, baseada na racionalidade neoliberal. Os diversos paí-


ver

ses do mundo sentem os efeitos nefastos da pandemia de forma diferente, em


função das histórias de cada um deles e pela conjugação de um conjunto de
práticas: econômicas, sociais, culturais e políticas. Em certas ocasiões, nas
quais houve ocorrências muito drásticas, isso se deveu à total ignorância da
periculosidade do vírus – mesmo quando ele já apresentava dados alarmantes
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 585

em Wuhan, na China, epicentro da doença –, como foi o caso da Itália. Em


outros exemplos, como o da própria China, o governo logo agiu fazendo uso
ostensivo de sua avançada tecnologia biovigilante para lidar de maneira “mais
eficaz” com a crise instalada. Uma atitude que, hoje, se reflete no controle da
transmissibilidade do vírus, e, no mais, traz à tona a questão ética da retirada
da privacidade e da liberdade virtual (HAN, 2020).
No Brasil, resultados de pesquisas (NERY, 2019) indicam que, em 2018,

or
o país tinha, pelo menos, 13,5 milhões de pessoas com renda salarial de até

od V
R$ 145; há também cerca de 30 milhões (16% da população) sem água enca-

aut
nada; 74,2 milhões não tem saneamento básico, e, com isso, sem coleta de
esgoto; 5,8 milhões não possuem banheiro em casa; 11,6 milhões residem

R
em imóveis com mais de 3 moradores por compartimento. Tudo isto quer
dizer que o número de pessoas que não dispõem das mínimas condições de

o
sequer manter-se em isolamento, que vivem amontoadas em suas casas, sem
condições de manter a assepsia ideal para a prevenção do Covid-19 é, no
aC
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mínimo, alarmante. Com o que vimos até agora, resta a dúvida: qual será a
lógica utilizada pelas autoridades políticas brasileiras para manter a salvo a
população em meio à crise?
visã
É importante fazermos nota de que existiram diversas crises pandêmicas
às quais já assolaram o mundo em outros momentos da história. Em um dos
mais conhecidos, retomemos o caso da peste bubônica, de 1348, nomeada
como “peste negra”, responsável por uma das maiores baixas demográficas
itor

da história europeia, que se estendeu até seu desaparecimento, no século


a re

XIX. Durante este tenebroso acontecimento, faça-se nota de que o modelo


da quarentena fora um dispositivo de suposta contenção do que poderia ser
classificado como um enxame, tal como ocorre hoje, no tempo do Covid-19.
Na medida em que a pandemia é politizada, inúmeros aspectos e atra-
par

vessamentos são analisados, tanto no plano dos efeitos quanto no enquadra-


mento realizado pelos Estados e sociedade, sendo que há explícitos elementos
Ed

racistas, classistas, de gênero, de faixa etária, de acesso desigual às políticas


públicas, de habitação, de luto e modos de gerenciar as crises e problemáti-
cas desencadeadas pelo grande e forte impacto do contágio. Neste sentido, o
ão

espraiamento do vírus se torna um enxame difícil de conter, dado o seu poten-


cial de se espalhar e causar situações estarrecedoras em termos de catástrofes
s

sociais, econômicas, subjetivas, culturais e geográficas, fatores que levam os


ver

analistas deste acontecimento a afirmarem que se trata do problema mais grave


na sociedade global desde a II Guerra Mundial (Mascaro, 2020).
Percebem-se os impactos da pandemia na vida de vários segmentos e gru-
pos sociais específicos com nuances singulares de incidência do acontecimento
Covid-19, tais como: mulheres com o aumento da cobrança das atividades
586

na família concomitantes às exigências no trabalho; idosos são considerados


inelutáveis e a morte deles é naturalizada e banalizada por muitos governantes;
cidadãos moradores de áreas classificadas como periféricas à margem dos
centros urbanos – em geral, pobres e negros – sofrem com o maior contágio
e descaso público, no que tange a agilizar políticas sociais de atenção face aos
impactos econômicos e sanitários, decorrentes do desemprego e da ausência
de acesso à água e saneamento básico, fatores estes que os fragilizam na

or
imunidade e nas condições difíceis de habitação para realizar a prevenção

od V
higienista ao vírus. De fato, iniquidades ganham expressão significativa na

aut
incidência e gravidade de manifestação do contágio (MASCARO, 2020).
Com efeito, diante das encomendas higienizadoras, há uma incitação

R
à disciplina, organizada por meio da vigilância minuciosa para diminuir os
índices de contágio e de morte por Covid-19. Todavia, os mecanismos de

o
quarentena e isolamento ganham nuances diferentes, quando as condições de
moradia, bem como, socioeconômicas, são agentes envolvidos na expansão da
aC

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pandemia e dos seus efeitos nefastos; assim, não respondendo à racionalidade
higienista/disciplinar de um modelo panóptico de sociedade.
visã
Vigilância disciplinar em tempos do novo coronavírus

Um dos comuns modos de se lidar com os contágios foi o dispositivo da


itor

quarentena, discutido por Michel Foucault (1999a), em Vigiar e Punir, ao ana-


lisar a sociedade disciplinar. Deste modo, entre os escritos contemporâneos, os
a re

estudos sobre disciplina, soberania e vigilância, são relevantes para pensarmos a


pandemia do Covid-19, que também está inserida meio aos usos de mecanismos
de quarentena, isolamento e esquadrinhamento social. A disciplina explicitou o
modo de funcionamento do poder, passando a ser definido como uma relação
par

capilar e produtiva, investindo os corpos e os docilizando politicamente, em nome


da promessa de defesa, saúde, educação e proteção social.
Ed

Essa capilaridade do poder incidiu sobre o corpo de maneira tão ponde-


rosa a ponto de provocá-lo, ou melhor, justapô-lo, aos limites mais ínfimos
ão

da pontualidade, da proatividade e da domesticação, por meio daquilo que


Foucault chamou de disciplina. Algo que mais tarde, com a chamada Revo-
lução Industrial (ou técnica), conduziu e recodificou as relações de trabalho
s

nas antigas fábricas, sendo ampliada para toda a sociedade, e tendo por base
ver

a ideia de uma vigilância generalizada.


No caso das pandemias, controlar os contágios é um objetivo político da
vigilância disciplinar, com fins de proteger os corpos e torná-los produtivos.
Um modo de vida asséptico nasce enquanto racionalidade médica e econômica
no cuidado rigoroso do corpo. Na sociedade capitalista, nada se torna mais
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 587

alvo de investimentos do que o corpo saudável para o trabalho. Neste caso,


um corpo doente e com as suas capacidades diminuídas e impedidas por vírus
é um problema político e econômico em uma sociedade disciplinar e capita-
lista, pois o lucro e a produção são diminuídos drasticamente, dependendo
da incidência do contágio.
O panoptismo se tornou, então, um modelo de organização social pautado
no olhar, uma máquina de visibilidade, cujo funcionamento envolve todos e

or
todas, num controle mútuo, onde cada qual opera, também, se autovigiando

od V
e se autocontrolando. O panóptico é um operador da sociedade disciplinar, a

aut
qual emergiu no século XVII e se tornou vigilante, segundo Foucault (1999a).
Com efeito, para disciplinar os corpos, tornando-os dóceis e produtivos, há

R
a combinação de técnicas de poder: a construção de quadros, a prescrição de
manobras e a organização de táticas.

o
O enquadramento do Covid-19 é correlato à prescrição das manobras
e da organização das estratégias em saúde, na economia e na política atual.
aC
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O jogo de recompensas e punições face à pandemia, em escala global, traz


para o primeiro plano a concorrência entre os países no mercado mundial
em vários indicadores chamados de desenvolvimento econômicos e social.
visã
Neste plano, a geografia humana é o contágio com seus efeitos nefastos; é
capturada e deslocada por metáforas militares, tais como: região, domínio,
campo, enfrentamento, combate e guerra. Devemos lembrar que a própria
noção de disciplina é fruto da ideia de sociedade como um acampamento
itor

militar, segundo Foucault (1999a).


a re

Diante da desobediência, postulam-se sanções normalizadoras e punições


variadas. No caso do aumento da docilidade e produção, há recompensas e pre-
miações diversas aplicadas aos corpos. A disciplina objetiva criar submissões
políticas concomitantes à ampliação da produção, por meio dos mecanismos
par

de vigilância hierárquica e dos controles finos dos corpos no espaço e no


tempo. A atenção à saúde é calculada pela vigilância e obediência às normas,
Ed

administrada por tecnologias de gestão disciplinar do espaço e do tempo, pelos


usos do exame e da sanção normalizadora. No caso do panoptismo focado na
seguridade social da atualidade, é possível problematizar como na gestão da
ão

pandemia do novo coronavírus são propostas várias punições panópticas por


meio de multas, prisões, advertências, isolamentos obrigatórios e mecanismos
s

de controle da circulação os mais variados no campo da defesa social e de


ver

uma determinada produção de saúde.


Os quadros são esquadrinhamentos, exames e avaliações que permitam
classificar e nomear os acontecimentos, com fins a organizar as forças dos corpos
de modo que sejam manobradas com utilidade política e econômica. Quanto às
manobras: são visadas as técnicas de regulação do tempo e das atividades regradas,
588

em um cronograma bem administrado, rigoroso e detalhado. Vale salientar que a


organização das táticas implica em posicionar cada indivíduo no seu lugar; esta-
belecer adaptações dos corpos aos objetos e às instituições e, no caso da pandemia
de Covid-19, há um governo das condutas meticuloso de cunho disciplinar no
que tange a regulação dos corpos no espaço, em uma administração policial das
políticas da saúde, da assistência, trabalhistas e da educação materializadas para
organizar o detalhe das relações, das atividades, do controle no tempo e no espaço

or
de indivíduos alcançados por estas tecnologias.

od V
Para tanto, em nome da saúde passa-se a justificar a perda da privacidade,

aut
a aceitação do monitoramento e dos registros de cada ato, minuciosamente.
Com efeito, para enfrentar a expansão do Covid-19 e para cuidar das pessoas

R
já infectadas por este vírus, técnicas disciplinares e panópticas foram usadas
em detalhes, transpostas a um aparato político focado no modelo das prisões

o
para as adjacências sociais, ou seja, em práticas parajudiciárias de garantia
dos direitos, tal como o direito à saúde e à vida, por exemplo.
aC

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Além das tecnologias panópticas disciplinares, trabalha-se neste texto com
o governo da vida por meio da biopolítica enquanto ferramenta de uma analítica
dos modos de objetivar e gerir a pandemia no plano da regulação das populações
visã
e de seus segmentos. A biopolítica emerge na segunda metade do século XIX e
trata da entrada da vida na história pela emergência da biologia como ciência,
isto é, quando o corpo se torna espécie, e, a vida, objeto dos cálculos políticos. A
biopolítica ocasiona o “fazer viver” e o “deixar morrer”, modus operandi da e na
itor

governamentalidade moderna (FOUCAULT, 1988; 2008a; 2008b).


a re

Emerge uma nova investida: não mais só e somente o corpo, mas a popu-
lação; isto é, não mais só e somente o homem-indivíduo, mas a espécie “como
todo” é alvo central das investidas de governamento; não só a vida pública, mas
a vida íntima e privada entram nos cálculos e engrenagens ininterruptas do fun-
par

cionamento do poder e da constituição de subjetividade. Michel Foucault passará


a utilizar o léxico da “biopolítica” (biopolitique) para definir os diversos acon-
Ed

tecimentos ao nível da gestão e da administração da vida; na medida em que a


mesma se caracteriza como um agente modificador do cerne das decisões políticas,
à revelia de ser somente um agente complementador ou “alargador” das últimas.
ão

Não só o bio, mas o tanato, o necro, o psico político, dependendo da variância


ao qual se dá a análise do assunto. E, de fato, várias estão sendo as respostas da
s

comunidade acadêmica em relação à crise do Covid-19.


ver

No caso do novo coronavírus, à primeira vista, dois mecanismos passa-


ram a ser usados, sendo de cunho disciplinar quanto às normas de comporta-
mento. Trata-se da quarentena e do isolamento: ambos surgem na Idade Média,
aplicados aos navios vindos do Oriente. Depois, passam a ser uma estratégia
de proteção social face a supostos riscos e perigos, na modernidade. Enquanto
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 589

a quarentena incide sobre os indivíduos considerados saudáveis, o isolamento


é voltado aos que estão infectados. Ambos mecanismos são práticas sociais
disciplinares de bloqueio dos corpos em nome da saúde e da segurança social,
isto é, são ações de defesa social, na sociedade disciplinar e de vigilância.
Neles, há uma positividade das relações de poder, pois objetivam produzir
saúde e impedir a transmissão de um vírus ou de outro agente infeccioso.
Todavia, vale mencionar que o panoptismo opera não apenas por blo-

or
queios dos corpos por quarentenas, isolamentos e internações. Os mecanis-

od V
mos de disciplinares podem ser de outra ordem também, a de mecanismos

aut
abertos de controle dos corpos de vigilância panótica. Neste caso, podemos
pensar as táticas chamadas de abertura gradual do comércio, das escolas, de

R
universidades, de acessos às praças e locais de esporte, de retorno ao trabalho
presencial e aos espaços culturais etc. O uso de máscaras e os controles de
distanciamento social seriam o ou um dos modos de governar as condutas

o
por vigilâncias abertas, em cada um de nós vigia os pares e é vigiado por eles
aC
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e pela comunidade.

Biopolítica, necropolítica e as vidas consideradas inelutáveis


visã
durante a pandemia da COVID-19

A decodificação e reconfiguração do corpo social para uma série de


itor

números estatísticos, voltados ao controle dos mais variados desníveis nos


“nichos”, isto é, adensamentos da demografia, das redes de comércios, entre
a re

outros; bem como, da administração e gerência da vida ao nível da população,


não é algo novo. Na verdade, descende de pelo menos dois séculos, com a
aparição, inserção da gestão e da administração populacional, no seio dos
Estados modernos. Se buscarmos por razões genealógicas para corroborar
par

este argumento, poderemos ver que os modelos de cidades as quais foram


projetadas para permitir o escoamento de seus produtos, que eram higieni-
Ed

zadas, e que viabilizavam o exercício de uma vigilância constante, ou pelo


menos, “fácil” de ser exercida, foi um problema advindo do século XVIII
(Foucault, 2008a). De maneira geral, se por um lado a soberania se exercera
ão

sobre um território e a disciplina sobre a reorganização do espaço; a noção


fulcral/biopolítica que emerge durante aquele século, qual seja, a de segu-
s

rança (sécurité), estará totalmente alinhada à noções advindas da biologia,


ver

por exemplo, como a de meio (milieu).


O meio, objetivamente falando, “é o que é necessário para dar conta da
ação à distância de um corpo sobre o outro” (FOUCAULT, 2008a, p.7); isto é,
o meio é um locus específico que deve ser tratado, projetado, organizado e averi-
guado milimetricamente, para que se possa ter a noção literal da circulação e da
590

causalidade, ou seja, do que transita em uma cidade (pessoas, produtos, animais,


meios de transporte, e, até mesmo, o vento por entre as ruas, etc.), e do que acon-
tece em uma cidade (epidemias, catástrofes naturais, crimes diversos, etc.). Para
que tudo ocorra de maneira correta, conta-se com o desenvolvimento de diversos
“dispositivos de segurança” para controlar os eventuais desníveis do meio. Assim,
entende-se que nunca irão se encerrar os crimes, erradicar o aparecimento de
possíveis crises de saúde, de escassez alimentar e etc. Entretanto, controlar estes

or
níveis e adequá-los a “números aceitáveis” é possível de ser executado. E aí está

od V
presente a “lógica biopolítica”: às vezes, o mantimento desses níveis requererá a

aut
padecimento de uns em detrimentos de outros. Melhor dizendo: contentamo-nos
com os baixos níveis de roubos, assassinatos, epidemias e crises, mesmo que
eles signifiquem o sofrimento de alguns, para que se mantenham a maior parte

R
da população, economicamente falando, sadia e ativa.
A gerência biopolítica focada na geopolítica e na racionalidade biomé-

o
dica, enquanto uma das formas de governo do meio, é estratégica no caso
aC

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da atenção em saúde nas pandemias, especialmente, no caso em tela, a do
novo coronavírus. Com efeito, há neste ponto um encontro entre biopolítica,
soberania jurídica e panoptismo disciplinar, incidindo sobre o que Foucault
(1979) delimitou como biopoder. A seguridade social é um mecanismo de
visã
segurança assentado no biopoder e opera pela polícia da saúde, atualizadora
do poder pastoral, em que a vida se torna alvo de valor a ser governada (como
um rebanho em nome da saúde), pois o pastoreio se dava como governamen-
itor

talidade semelhantemente, outrora, como governo das almas rumo à salvação


a re

em outra vida. A medicina como religião deseja salvar corpos em nome da


saúde (FOUCAULT, 2008a).
Como já dito, o Covid-19 assolou e continua assolando diversos países
pelo mundo. Mas, será mesmo que as medidas de contenção da proliferação da
par

doença funcionarão de maneira equitativa para todos? Pensemos no Brasil, e,


especificamente, em nossas diversas periferias, através e por onde, há muito, é
Ed

relatado o contraste de um país que é rico, em PIB, e pobre em medidas para


asseguramento da qualidade de vida da população, ou, o chamado IDH. Quem
são aqueles que estão sob o risco constante da exposição ao vírus, caso haja
ão

um colapso em nosso sistema de saúde? Estaremos preparados para o “pior”?


Percebemos, com isso que, se um dia se falou em “afirmação da vida”, nos
termos biopolíticos (mesmo que sejamos desconfiados de tal assertiva), em
s

nossa nação, pouco percebemos isto de forma analítica. O que há, na verdade,
ver

é um exercício do biopoder que fere, marca, exclui, oprime, coage e mata,


muito mais rápido e de forma mais expressiva do que àquele que mantém
a vida, que dá saúde, que a potencializa. Mesmo que ainda contemos com
um programa de saúde pública de qualidade como Sistema Único de Saúde
(SUS), os números e estatísticas indicam que não podemos dar conta do que
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 591

poderíamos denominar de enxame viral. A lógica biopolítica seguirá a mesma:


morre, massivamente, o mais fraco na “terra do carnaval”.
O fazer viver e o deixar morrer é uma questão crucial da biopolítica e está
presente nos cálculos estatísticos, socioeconômicos e geopolíticos da pandemia
em todo o globo. O acesso às condições de imunidade e prevenção, em fun-
ção das condições sanitárias, por quarentena e isolamento, efetivamente, está
atravessado pela questão de classe social, de raça/etnia, de gênero e de faixa

or
etária. Trata-se do próprio paradoxo da biopolítica, em nome da vida: cresce

od V
a morte pelo “deixar morrer”, na medida em que, para que alguns vivam,

aut
muitos outros são deixados à própria sorte, em uma evidente decisão política.
No bojo do que vinha trabalhando Foucault, Butler (2018) também salien-
tou que determinadas vidas são choradas quando morrem. O luto por elas gera

R
intensa comoção, enquanto outros corpos são despidos da condição humana,
isto é, da vida digna de ser valorizada e chorada em casos de luto, violência

o
e violação de direitos. O enquadre de números e fotos, por exemplo, é uma
aC
interpretação de uma verdadeira guerra em que certos corpos são enterrados
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em valas comuns, jogados como “sem valor” e “sem comoção social”, como
tem-se visto em muitos países, nos enterros dos mortos pela Covid-19, den-
tre eles, o Brasil. O descaso acontece até mesmo em setores do Estado e na
visã
cultura necropolítica que o embasa, atualmente.
Achille Mbembe (2019), filósofo camaronês ainda vivo e em atividade,
designa muito bem esta lógica, chamando-a de necropolítica. O grande ganho
itor

qualitativo deste último termo fora o de tornar explícito seu relacionamento às


a re

mútuas investidas coloniais e neocoloniais, em países diversos, que suplicia-


ram e objetificaram o corpo negro/escravo, nos mais variados casos em que
os sistemas de plantation foram utilizados como base estrutural-econômica
para desenvolvimento das nações no Novo Mundo, pondo à frente dos olhos
a lógica da submissão racial, presente na escravidão. Mbembe (2018) ressalta
par

as novas formas de colonização, nas últimas décadas, e como a necropolítica


Ed

é materializada nelas por meio da construção de apartheids e racismo, Estado


de emergência e racialização das políticas, biopoder e política da morte, na
explicitação de uma materialidade colonial/racista no Estado de Direito e
ão

na governamentalidade neoliberal. A ideia de concorrência entre os Esta-


dos modernos atualiza a racionalidade da conquista nos períodos colonial e
imperial que os precedem. Há um deslocamento do conceito de colônia para
s

o exercício do terror, à margem da lei, e até mesmo em nome da lei.


ver

Fazendo uso do referencial exposto, poderíamos interpretar que a crise


a qual nos sonda atingirá, principalmente, nossa população menos abastada em
recursos e condições de manter perante as dificuldades impostas pelo vírus. É
histórica a permanência de tais desigualdades, oriundas de questões raciais, em
nossa sociedade, que um dia já fora escravista. E isto, infelizmente, tenderá
592

à intensificação, se for posto na conta, também, nossa atual crise política de


governamento (na feitura deste texto nos referimos ao governo instituído
em 2019). Arriscando-nos, então, a uma transposição, ou ressignificação,
do termo de Mbembe (2019) para os parâmetros brasileiros dos dias atuais,
diríamos que, em grande parte, o corpo morto pelo novo coronavírus é o
das pessoas negras. Não somente elas, mas indígenas, quilombolas, idosos e
habitantes das periferias urbanas. Pessoas que são sobrepujadas pelos efeitos

or
da gestão necropolítica da pandemia. Traduzindo: no Brasil, a vida em vul-

od V
nerabilidade é a dos menos favorecidos e assistidos na tomada de decisão.

aut
A ação “diferenciadora” do novo coronavírus atestaria uma necropolí-
tica, na medida em que potencializa dificuldades práticas para se lidar com o
mesmo e escancara um modus operandi que flutua em torno do deixar morrer.

R
Uma destas dificuldades gira em torno da necessidade de se ter respiradores
artificiais em quantidade suficiente e à disposição, para quem deles necessite,

o
pois o Covid-19, como sabido, compromete o sistema pulmonar/respiratório
aC
dos acometidos. No entanto, o acesso seletivo aos respiradores e aos leitos

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das unidades de tratamento intensivo (UTIs) é filtrado por supostos fatores de
risco e critérios de valoração da vida, algo que não deveria acontecer.
Para entendermos melhor iremos nos remeter a uma notícia lançada ao
visã
público por meio do jornal britânico The Telegraph, em 14 de março de 2020.
Nela ficou exposto, através de um documento de uma unidade de controle e
gerenciamento de crises, em Turim, na Itália, que diante da impossibilidade
itor

de se manter a todos em respiradores de terapia intensiva, deveriam ser segui-


a re

das algumas medidas básicas, ditas “preventivas”, dentre elas, a de decidir,


literalmente, quem deverá viver e quem deverá morrer. No caso mencionado
na matéria, a escolha seria feita entre os mais velhos (com menos chances de
sobreviver à enfermidade) e os mais jovens (principalmente os mais saudá-
veis). E por quê? A lógica é: salva-se o mais jovem e com maior capacidade
par

de voltar a ter uma vida ativa e saudável na condição de trabalhador, em


Ed

detrimento daquele que já estava com uma baixa produção nas atividades
produtivas e atingindo um momento de maior demanda por proteção, isto
é, a chamada seguridade social, logo, implicando em um custo maior para o
ão

Estado. Assim, uma questão socioeconômica, de cunho gerontocida, é justa-


posta também a um protocolo de guerra, que expõe, da forma mais aviltante, o
Estado de emergência se materializando por uma necropolítica na gerência do
s

que se passou a nomear como governo da crise do novo coronavírus. Mbembe


ver

(2019) descreve esta mistura de fatores políticos e econômicos nomeando o


sistema neoliberal de produção, como sendo o de um necroliberalismo.
Há um limite nos usos da ciência como racionalidade de práticas deci-
sórias na política neoliberal. O conhecimento validado é aquele que serve
aos interesses de grandes corporações e os da concorrência entre os Estados.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 593

Parece existir uma instrumentalização científica da sociedade por meio da


biopolítica, da disciplina e da necropolítica, nas quais a medida de intervenção
é o valor conferido à determinadas vidas. Os saberes são utilizados mais para
alguns do que para outros nas políticas públicas – dependendo das tomadas
de decisão dos Estados modernos –, em nome da segurança e do controle
das liberdades individuais e da desregulação dos mercados. Os níveis de
confiabilidade na ciência vêm diminuindo com o crescimento e a expansão

or
das ações desregulamentadoras do Estado neoliberal.

od V
Isto não quer dizer que a ciência deixa de ter importância na política

aut
de cuidado de vítimas de doenças como as que foram infectadas pelo novo
coronavírus e outras, bem como, para a resolução de diferentes problemáticas
sociais e econômicas. O ponto de tensão é o homem empresário de si mesmo

R
e o vetor economicista que o move na racionalidade neoliberal, na qual a
liberdade deve ser balizada pelo termômetro do mercado, estando acima das

o
vidas e dos chamados direitos humanos universais. Os direitos nomeados
aC
como fundamentais ficam em segundo plano face à lógica empresarial. Neste
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ponto, a ciência é profanada pelo mercado. Porém, há vírus que profanam o


mercado, mesmo quando este insiste em fazer valer os seus interesses acima
da vida e da ciência. É neste âmbito que o mercado tenta flertar com a instru-
visã
mentalização da ciência e da vida.
Até mesmo o poder de morte e o deixar morrer podem lançar mão da
ciência e dos direitos em nome de interesses nada éticos, focados no lucro
itor

exorbitante de pequenas parcelas da população mundial. A voracidade mer-


a re

cantil não cessa de crescer e atropelar princípios básicos de dignidade e reci-


procidade em nome do crescimento econômico como sinalizador de êxito
político. Assim, o Covid-19 se torna uma ameaça ao mercado e à avidez do
mesmo; limita lucros e circulação de bens; diminui a produção e o consumo
de mercadorias específicas; e, tanto mata quanto afasta trabalhadores do dia
par

a dia da hiperexploração do trabalho. A precarização se intensifica para as


Ed

pessoas que estavam em trabalhos com poucos ou quase nenhum direito


garantido, sobretudo, os informais que pouco podem se proteger de infecções
e dependem de cada dia, horas e minutos para gerarem renda, pois não têm
ão

salários fixos (MASCARO, 2020).

Consideração finais
s
ver

É possível afirmar que o novo coronavírus trouxe uma série de efeitos e


limites à sociedade atual, implicando em regulações biopolíticas da vida, em
disciplinas e vigilâncias panópticas e em uma gestão da morte pela necropo-
lítica. As diversas formas de gerir a pandemia e as consequências da mesma
possibilitou perspectivas distintas de operacionalizar as forças de governo das
594

condutas nos Estados modernos. Mecanismos de segurança de ordem e lei


foram criados e instalados especificamente para o enfrentamento da pandemia.
Este artigo procurou problematizar estas práticas com atenção e crítica,
apontando elementos do acontecimento Covid-19 e pandemia no que tange a
gestão da vida e da saúde nas correlações com a seguridade social, os efeitos
nefastos do grande contágio na economia, na política, na cultura e na socie-
dade contemporânea. Para tanto, optou-se por descrever e analisar práticas

or
delimitadoras das maneiras de cuidar das pessoas na prevenção e promoção

od V
de saúde bem como no tratamento referentes às decisões políticas tomadas

aut
pelos Estados modernos, em um período neoliberal, marcadamente centrado
no mercado.

R
O preconceito e o estigma foram parte do dispositivo racista da biopolí-
tica e da necropolítica abordado neste texto. Parker (2013) destaca a dimensão

o
de estigma das doenças e, no caso da infecção do novo coronavírus, ficou
patente tanto o preconceito e a discriminação negativa por regiões, países,
aC

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cidades quanto de grupos de profissionais e pessoas de determinadas faixas
etárias, raças/etnias, gênero, classe social e locais de habitação bem como no
enterro daquelas que passaram a ser tratadas como vidas não dignas de luto,
visã
pois, foram lançadas em valas comuns e sem direito à velório e a outros rituais
de elaboração da comoção diante das perdas.
O que Esposito (2010) classificou como mecanismo imunitário foi ana-
lisado na biopolítica como a decisão de fazer viver e deixar morrer de infec-
itor

ção por novo coronavírus em função da ausência de imunidade biológica,


a re

de imunidade no sistema de recursos e políticas sociais e de contratualidade


na configuração dos países e de cidadania face à pandemia por Covid-19.
Ter imunidade não é uma natureza biológica meramente, implica em estar
em menos precariedade, como delimitou Butler (2018, 2019) ao conversar
par

sobre os quadros de guerra e as vidas precárias, em dois livros que escrevera


com relevantes análises a respeito das vidas inelutáveis e daquelas conside-
Ed

radas como dignas de luto em função dos recortes de valoração dos corpos,
no presente.
As táticas panópticas de vigilância, cada vez mais sofisticadas, conforme
ão

Antoun (2010) ganharam chips, drones, câmeras, códigos de entrada e saída,


medição de temperatura obrigatória, inspeções em navios e aviões, fechamento
s

de fronteiras e de aeroportos, mecanismos de quarentena e isolamento, de


ver

lockdown obrigatório e sob pena de punição legal por prisão e multas caso
descumprido, entre outras estratégias disciplinares. No aspecto do apartheid
sanitário, a ideia de cidades como negócios (ALVAREZ, 2015) ganhou intensa
visibilidade em função da geopolítica da pandemia centrar-se no controle
do meio como espaço de centros urbanos a serem geridos na biopolítica e
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 595

na necropolítica. A economia política citadina neoliberal e higienista, extre-


mamente valorizada e comercializada com o rótulo de qualidade de vida foi
colocada em xeque e novas formas de vivenciar a cidade pela solidariedade
e cuidado ganharam espaço nas práticas cotidianas.
O endividamento tornou-se central e deu indícios do que Lazzarato havia
nomeado como governo do endividamento (2014) porque até bancos e empre-
sas aéreas foram socorridos nas dívidas acumuladas por prejuízos causados a

or
partir da pandemia. Entretanto, pobres e pessoas em vulnerabilidade demora-

od V
ram e ainda aguardam políticas sociais de enfrentamento ao endividamento e

aut
de atenção psicossocial sejam efetivamente implementados. Por fim, o novo
coronavírus escancara as iniquidades de uma sociedade capitalista, embasada
na biopolítica, no regime panóptico e na necropolítica.

R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
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ver
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ver
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par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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O CURRÍCULO SOB A PERSPECTIVA
DOS DOCENTES EM FORMAÇÃO NO
PARFOR NO MUNICÍPIO DE MUANÁ-PA

or
od V
Luiz Miguel Galvão Queiroz

aut
Paulo Sérgio de Almeida Corrêa
Rafael da Silva Queiroz
Terezinha Sirlei Ribeiro de Souza

R
o
Introdução
aC
No presente texto, aborda-se a compreensão que os docentes em forma-
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ção por meio do Programa de Formação de Professores da Plataforma Freire


visã
– PARFOR, no município de Muaná-PA expressam sobre o currículo. Ainda
que as reflexões sobre o currículo tenham alcançado espaço significativo no
contexto escolar, decorrente da implantação da Base Nacional Curricular
Comum – BNCC, no ano de 2019, seja por educadores que contestam o
itor

referido documento, ou por educadores que apoiam a presença de uma base


a re

como referência para o ensino, o estudo do tema é pertinente no âmbito aca-


dêmico e científico.
Cotidianamente, quando o currículo é mencionado na escola, os profis-
sionais da educação, em sua maioria, vislumbram para a seleção e organização
par

de conteúdos prescritos no documento oficial da instância gestora do processo


educativo, desdobrado no plano de ensino que a escola deve oportunizar aos
Ed

alunos durante os duzentos dias letivos previstos na legislação educacional,


os quais são capturados e sistematizados por um corpo técnico-pedagógico,
com auxilio de docentes, oriundos de sumários de livros didáticos e repas-
ão

sados aos alunos.


As restrições acerca do conhecimento sobre o currículo, entre os profis-
s

sionais da educação, elevam o fosso da luta pela transformação da qualidade


ver

do ensino e da sociedade, uma vez que é de interesse do modo de produção


capitalista, aliado ao Estado, que a escola, principalmente a pública, man-
tenha-se como espaço de reprodução social, para dispor apenas as mínimas
habilidades de desenvolvimento da leitura, da escrita e do cálculo.
A reflexão sobre o currículo é fundamental para a formação do professor,
visando oportunizar o esclarecimento dos aspectos objetivos e subjetivos
constituintes da prática educativa, tornando-o capaz de discernir os obstáculos
600

construídos pelo sistema de ensino na promoção da educação escolar, como


também, possibilitar a elaboração de estratégias voltadas a transgredir a lógica
estabelecida para reprodução da desigualdade por meio da educação escolar.
A construção da problematização do tema deste estudo, foi suscitada a
partir da discussão realizada com os alunos cursantes do terceiro módulo do
curso de Pedagogia do Programa de Formação de Professores da Plataforma
Freire - PARFOR, na disciplina Currículo e Diversidade Cultural, vinculado

or
à Universidade do Estado do Pará – UEPA, no Polo do município de Mua-

od V
ná-PA, por meio da exposição da matriz curricular do referido curso, a qual

aut
serviu para formular a seguinte indagação: O currículo resume-se unicamente
ao documento oficial informativo do conhecimento sistematizado e prescrito
para um determinado curso?

R
Utilizou-se como estratégia para suscitar o interesse pela indagação a roda

o
de conversa, compreendida por Fazenda (2017) como um momento em que os
sujeitos vinculados a um grupo específico expõem suas argumentações sobre
aC

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determinado tema em debate, dando-se vez e voz a todos os participantes,
com a mediação do docente. Assim, é possível debater o tema em nível de
profundidade, expondo-se diferentes formas de ver e descrever a realidade.
visã
A reflexão sobre o tema a partir da problematização, possibilitou a cons-
trução de questões norteadoras visando a compreensão da totalidade desse
fenômeno histórico educativo: O que compreende de fato o currículo escolar?
Que forças simbólicas se materializam no currículo? Como os docentes vali-
itor

dam a fragmentação da compreensão do currículo na escola?


a re

Entre os profissionais da educação, ainda predominam as limitações sobre


a compreensão da relevância do currículo no processo educativo, enquanto
objeto de discussão na escola, o que inviabiliza a transgressão da ordem esta-
belecida na sociedade, por meio da seleção de conhecimentos e de práticas
par

educativas críticas e autônomas.


Assim, constituiu objetivo deste estudo analisar os limites da compreen-
Ed

são entre os prospectivos docentes de que o currículo se resume unicamente


ao documento oficial informativo do conhecimento sistematizado e prescrito
para um determinado curso.
ão

O estudo é de cunho histórico educativo, construído por meio de depoi-


mentos de alunos em formação no curso de Pedagogia-PARFOR, os quais
s

foram analisados de acordo com a técnica da análise de conteúdo descrita por


ver

Bardin (1978) como uma oportunidade de assegurar que as vozes dos sujeitos
sejam transformadas em documento, tornando-se parte da história, comple-
mentado por artigos científicos capturados em sites eletrônicos, que possi-
bilitaram fundamentar teoricamente as arguições expostas. De acordo com
Saviani (2015), os relatos dos sujeitos não estão desconectados da realidade
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 601

concreta da produção existencial, portanto, são testemunhos vivos, da des-


crição do contexto em que estão inseridos.

Reflexões sobre as teorias do currículo

De acordo com Brandão (2000), a educação se faz presente em todos


os tempos e espaços da vida humana, portanto, ninguém está alijado desse

or
processo formativo cultural. Assim, em toda e qualquer sociedade, a educa-

od V
ção assume a centralidade na busca da promoção do bem-estar de homens e

aut
mulheres, sujeitos históricos, e detentores de direitos.
Para Freire (2010), a educação concebida como um processo de forma-

R
ção humana tem por finalidade libertar e emancipar os sujeitos, tornando-os
produtores de sua história, e, consequentemente, capazes de transformar as

o
condições materiais e existenciais.
No estágio social contemporâneo, demarcado pelo uso da tecnologia
aC
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digital, a automação de diferentes processos, a comunicação e as relações no


mundo virtual, a educação é desafiada enquanto instrumento de construção
de novas concepções destinadas à formação dos sujeitos para a convivência
visã
social. Assim, é fundamental a reflexão sobre as instituições em que acontece
a educação humana, especialmente, na família, na igreja, nas associações
recreativas e profissionais, nos diversos grupos sociais, visando, acima de
itor

tudo, compreender o papel da diversidade na construção dos sujeitos sociais.


Brandão (2000) considera que a educação não acontece unicamente na
a re

escola, e, talvez, nem seja esse espaço suficientemente destinado à forma-


ção humana, uma vez que o currículo escolar está repleto de conhecimentos
científicos, distribuídos em diferentes conteúdos, que os professores e equipe
gestora e pedagógica das escolas precisam dar conta, para atender as prescri-
par

ções contidas na legislação educacional brasileira.


Nesse contexto, a reflexão sobre a concepção de educação, nos auxilia a
Ed

compreender o quanto é complexa a definição de um currículo que assuma o


compromisso com a transformação social, visto que, dependendo da concep-
ão

ção defendida por gestores públicos municipais, dirigentes escolares, docentes,


e a comunidade, os destinos da municipalidade são desenhados, com reflexos
consideráveis na formação das atuais e futuras gerações.
s

A educação se torna um elemento fundamental na construção da socie-


ver

dade democrática, compreendida a democracia enquanto exercício da vontade


coletiva na condução da estrutura administrativo-política do Estado, e, nesse
contexto, é essencial que se advogue a educação como princípio de liberta-
ção dos sujeitos das condições opressivas impostas historicamente, desde o
período da colonização no Brasil. Segundo Freire (2000), a educação é algo
602

compartilhado por diversas instancias que contribuem no processo de aper-


feiçoamento do ser humano.
É por meio da educação que um povo se desenvolve. E na medida em
que se apropria do conhecimento histórica e socialmente produzido, é capaz
de refletir sobre a própria realidade, e transforma-a, visando promover a qua-
lidade de vida, o bem-estar, a dignidade, com a diminuição do fosso da desi-
gualdade. Diante dessa perspectiva, homens e mulheres podem ser capazes

or
de transformar sua realidade, além de promover o bem comum.

od V
aut
Por isso é que é importante afirmar que não basta reconhecer que a Cidade
é educativa, independentemente de nosso querer ou de nosso desejo. A
Cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de aprender, de ensi-

R
nar, de conhecer, de criar, de sonhar, de imaginar de que todos nós, mulhe-
res e homens, impregnamos seus campos, suas montanhas, seus vales, seus

o
rios, impregnamos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, seus
edifícios, deixando em tudo o selo de certo tempo, o estilo, o gosto de
aC

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certa época. A Cidade é cultura, criação, não só pelo que fazemos nela e
dela, pelo que criamos nela e com ela, mas também é cultura pela própria
mirada estética ou de espanto, gratuita, que lhe damos. A Cidade somos
visã
nós e nós somos a Cidade (FREIRE, 1986, p. 13).

Percebe-se, pois, que a educação promove a transformação nos sujeitos


e, consequentemente, no meio social em que ele convive, de modo que é
itor

possível apostar no potencial por ela assumido na construção de um mundo


a re

mais humano, solidário, fraterno, participativo e capaz de respeitar e conviver


com as diferenças.
De acordo com Gadotti (2000) a educação escolar transitou por diferentes
formas de conceber o homem e o mundo, e nesse contexto, a pedagogia tradi-
par

cional que ainda perdura nas salas de aula, assegura que é necessário adotar o
rigor no cumprimento das normas e regras de convivência social, como forma
Ed

de se garantir o aprendizado. Cientificamente, o paradigma da educação tra-


dicional, parte do pressuposto de que a inteligência é uma estrutura superior
que possibilita ao sujeito armazenar informações, das mais simples até as
ão

mais complexas (MIZUKAMI, 1986), e nesse caso, o ensino escolar deve


partir de situações simples até o alcance de situações complexas que desafiem
o estudante a utilizar tudo o que aprendeu para solucionar um problema. Tal
s

concepção nega o trabalho coletivo, a experiência em grupo como alternativa


ver

favorável à produção de conhecimento.


A educação tradicional sobrevive nas salas de aula, representada por
atividades educativas, tais como a cópia, a repetição de tarefas, a memoriza-
ção, a busca da resposta antecipadamente certa, destituído do incentivo e da
valorização da criatividade:
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 603

...atribui-se ao sujeito um papel irrelevante na elaboração e aquisição do


conhecimento. Ao indivíduo que está adquirindo conhecimento compete
memorizar definições, enunciados de leis, sínteses e resumos que lhe são
oferecidos no processo de educação formal a partir de um esquema ato-
místico (MIZUKAMI, 1986. p. 11).

Por mais que tal prática educativa esteja evidenciada até aos dias atuais no

or
cotidiano das salas de aula, há necessidade de refletir no âmbito do currículo,
possibilidades de construção de alternativas pedagógicas que vislumbrem

od V
novas formas de conceber o aluno, especialmente na condição de protago-

aut
nista na produção do conhecimento. Entende-se que o cenário contemporâneo
requer um sujeito proativo, que diante de uma situação desafiadora, tenha a

R
iniciativa de buscar soluções possíveis.
Para Mizukami (1986), a educação tradicional adotou o método expo-

o
sitivo que privilegia o papel do professor enquanto transmissor dos conhe-
aC
cimentos e o ponto fundamental desse processo é que o aluno seja capaz de
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memorizar os conteúdos e reproduzi-lo integralmente durante as avaliações


da aprendizagem, geralmente representadas por provas e testes. O foco do
ensino é essencialmente a memorização de informações, pois não considera
visã
os aspectos das dimensões emocional ou afetiva dos estudantes.
A concepção de educação tradicional, por meio da perspectiva reden-
tora, descrita por Luckesi (2000) como uma forma de assegurar o equilíbrio
itor

social, objetiva definir comportamentos e atitudes em conformidade com a


a re

ordem social, de modo que as contradições não sejam consideradas como um


empecilho da desigualdade.
No entanto, é importante considerar que toda prática educativa prescinde
de uma opção política, ainda que ela não esteja evidente nas entrelinhas, mas
se manifesta no cotidiano das salas de aula. De acordo com Gadotti (2000),
par

a educação destinada à transformação das condições sociais das classes tra-


balhadoras, deve promover o desenvolvimento do espírito crítico e criativo,
Ed

visando construir a consciência de classe, fundamental no processo de parti-


cipação na construção da sociedade democrática.
ão

Nesse contexto, do ponto de vista discursivo, a concepção de educação


prescrita no currículo da escola pública, em que a maioria dos estudantes são
vinculados aos segmentos das classes populares, fundamenta-se na dimensão
s

libertadora, em conformidade com o pensamento de Paulo Freire, em que é


ver

possível transformar as condições materiais da sociedade, reduzir a desigual-


dade, promover o respeito as diferenças, por meio de uma educação em que
o estudante seja capaz de se apropriar do conhecimento cientifico, dialogar e
reconhecer o outro em sua diversidade, e promover o bem comum, por meio
do exercício da democracia.
604

Compreendendo que a escola é o lugar privilegiado para a apropriação do


conhecimento historicamente acumulado pela sociedade, além de ser ainda um
espaço de convivência social e de formação humana, a concepção de educação
assumida no cotidiano das escolas faz a diferença nas perspectivas formativas
dos sujeitos, na construção de sua visão de mundo, de homem e de sociedade.
A sociedade contemporânea se caracteriza pela utilização das tecnologias,
tornando mais rápido a circulação da informação, da solução de problemas,

or
da facilidade de locomoção para qualquer espaço habitado, de modo que

od V
essa condição torna possível o contato permanente dos sujeitos com outras

aut
culturas. De acordo com Silva (2018), ao mesmo tempo em que tudo acontece
rapidamente, também tudo passa em questões de segundos, e imediatamente

R
surgem diversas questões a serem resolvidas, as quais exigem intensa mobi-
lidade de conhecimentos.

o
Segundo Freitas (2018), cada vez mais a sociedade exige das pessoas
aC
maiores níveis de escolarização, de domínio das tecnologias, da habilidade

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de leitura e análise de situações simples até as mais complexas. Um simples
ato de retirada de dinheiro em terminal de caixa eletrônico, exige a habilidade
e o domínio das tecnologias, pois os processos automatizados reduzem cada
visã
vez mais as chamadas atividades operacionais.
A sociedade contemporânea também se caracteriza pela globalização,
em que a circulação da informação e da comunicação percorre todo o globo
itor

terrestre, as culturas se entrelaçam e cada vez mais há necessidade de com-


a re

preender a diversidade e conviver com ela. Assim, a educação é desafiada a


promover a articulação entre as diferentes culturas, visando alcançar o bem-
-estar, a construção de relações pacíficas por meio do exercício permanente
do diálogo.
De acordo com Frigotto (2018) as disparidades da desigualdade também
par

representam um elemento que demarca a sociedade contemporânea, visto


Ed

que, apesar dos avanços científicos e tecnológicos terem sido acentuados


durante todo o século XX, com a conquista do espaço por meio das missões
espaciais ocorridas na década de 1960, no entanto, as riquezas materiais se
ão

concentram a apenas uma dezena de grupos econômicos113 , que ditam os

113 Concentração de renda mostra “brasilianização do mundo”. Desigualdade é crescente, atinge recorde,
s

está fora de controle e só beneficia ricos e empresas, dizem ONU e Oxfam... Leia mais em https://www.
ver

cartacapital.com.br/economia/concentracao-de-renda-mostra-brasilianizacao-do-mundo/. O conteúdo de
CartaCapital está protegido pela legislação brasileira sobre direito autoral. Essa defesa é necessária para
manter o jornalismo corajoso e transparente de CartaCapital vivo e acessível a todos.
No Brasil, o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país (no Catar essa proporção é de 29%). Ou
seja, quase um terço da renda está nas mãos dos mais ricos. Já os 10% mais ricos no Brasil concentram
41,9% da renda total. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/09/brasil-tem-segunda-
-maior-concentracao-de-renda-do-mundo-diz-relatorio-da-onu.ghtml
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 605

rumos da economia, reproduzindo a polaridade descrita por intermédio do


acúmulo de capitais de um lado e pobreza e miséria de outro.
Sob esse cenário, ainda que a sociedade contemporânea tenha avançado
no combate ao analfabetismo, ainda há muito caminho a percorrer para a erra-
dicação do contingente de sujeitos analfabetos, e especialmente no Brasil, o
quadro é mais dramático devido a maioria dessa população estar concentrada
nas periferias das cidades, vivendo em condições de indigência, com perfil

or
econômico abaixo da linha da pobreza, e assistidos por programas sociais,

od V
representado pelo Programa Bolsa Família, como única renda capaz de garantir

aut
a dignidade 114.
No entanto, o contingente de analfabetos no Brasil 115, também está loca-

R
lizado na região do Campo, o qual se torna a importante fronteira de expan-
são da acumulação do capital, representado pelo Agronegócio. Para Frigotto

o
(2018), essa situação limita toda e qualquer participação desses sujeitos na
produção da vida material em condições dignas, visto que a ausência de esco-
aC
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larização, do domínio das habilidades básicas de leitura, escrita e do cálculo,


coloca tais sujeitos à margem da participação efetiva no mundo do trabalho.
Segundo Antunes (2018), a massificação das tecnologias e da automação
visã
em praticamente todas as atividades produtivas, coloca a margem da socie-
dade um contingente extraordinário de trabalhadores, e no campo, com a
mecanização das atividades de plantio e colheita, a população de analfabetos
e sem acesso ao trabalho braçal, constituem-se em classe de desemprega-
itor

dos e sem qualquer perspectiva de acesso ao trabalho formal. Essa condição


a re

amplia as perspectivas de trabalho informal, trabalho temporário, e sem vín-


culo empregatício.
A sociedade contemporânea é descrita por um código de ética que prioriza
a individualidade, a competição entre os sujeitos, a justificativa de ascensão
par

pautadas na lógica da meritocracia, e de acordo com Freire (2010) a desuma-


nização é um processo que aliena os homens e mulheres do verdadeiro sentido
Ed

da produção existencial. Portanto, é fundamental que a educação assuma o


compromisso com o diálogo, como uma vocação essencialmente voltada à
construção do ser humano.
ão

A educação deve possibilitar a reflexão dos estudantes sobre a realidade


concreta do modo de produção capitalista e seus reflexos na produção da
s
ver

114 IBGE: Brasil tem quase 52 milhões de pessoas na pobreza e 13 milhões na extrema pobreza. A situação
é mais crítica no Maranhão, que tem um a cada cinco moradores na indigência. Disponível em: https://
g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/11/12/ibge-brasil-tem-quase-52-milhoes-de-pessoas-na-pobreza-
-e-13-milhoes-na-extrema-pobreza.ghtml
115 Brasil tem quase 12 milhões de analfabetos, diz IBGE. Os dados do IBGE revelam o atraso na educação
brasileira. Metade da população adulta não tem nem o nível fundamental. Disponível em: http://g1.globo.
com/jornal-hoje/noticia/2017/12/brasil-tem-quase-12-milhoes-de-analfabetos-diz-ibge.html
606

desigualdade. A esse respeito, Santos (2018) indica que a relação da educação


com a sociedade é fundamental para se desenhar políticas sociais destinadas
à promoção do desenvolvimento econômico e social. É impossível assegurar
unicamente o desenvolvimento econômico, isento de medidas destinadas a
promoção do bem-estar de toda a sociedade.
Nesse contexto, a educação articulada ao mundo do trabalho, pode con-
tribuir de forma significativa para a transformação das relações sociais, e por

or
meio do acesso ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade,

od V
homens e mulheres podem mudar os rumos descritos nas relações de poder,

aut
e estabelecer de fato uma sociedade democrática, que valorize fundamental-
mente o ser humano.

R
A construção de um modelo de sociedade justo, solidário, fraterno, pau-
tado nos princípios democráticos e na sustentabilidade, visando proporcionar

o
às atuais e próximas gerações um mundo com maiores níveis de qualidade de
vida, é o desafio posto a todos os países, e a educação assume a centralidade
aC

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nessa busca, e para tanto, Frigotto (2018) ressalta a urgência em promo-
ver um currículo que de fato corresponda com as necessidades de formação
humana, com vinculação ao trabalho enquanto princípio educativo. Assim, a
visã
sociedade que se busca construir deve valorizar a diversidade, as diferenças,
como elemento constitutivo das etnias, e, nesse caso, a educação pautada nos
princípios da democracia oportuniza reconhecer a cada sujeito, seus direitos
fundamentais de acesso à escola.
itor

Inegavelmente a escola desempenha um papel crucial no processo de


a re

transformação da sociedade, mediante a possibilidade de disponibilizar um


conhecimento científico historicamente produzido, visando à plena apropria-
ção dos estudantes, e a partir dele desenvolver as habilidades e competências
essenciais à participação efetiva no tecido social. De acordo com Gadotti
par

(2000) a escola cidadã é aquela que educa o sujeito para que ele se torne um
agente de transformação da realidade.
Ed

A busca de uma sociedade emancipada, em que os sujeitos sejam autô-


nomos e empreendedores, criativos e críticos, requer uma educação que seja
capaz de desafiá-los para a busca do novo, do inusitado, capazes de solucio-
ão

nar problemas, de conviver no ambiente coletivo, com plena participação


nos processos decisórios. Para Santos (2018) uma sociedade se desenvolve
s

quando são oportunizados níveis de qualidade de vida satisfatórios a todos,


ver

independentemente de classe social.


Nesse contexto, o currículo só terá efetividade a partir do envolvimento
de toda a comunidade na construção de referenciais que promovam o bem-es-
tar, a união, a paz, a prosperidade, e, acima de tudo, o respeito às diferenças
de credos, de sexualidade, de ideologias. Freire (2010) já anunciou que a
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 607

educação transforma as pessoas, as pessoas transformam o mundo. Portanto,


é essencial que a concepção de sociedade aqui descrita, interfira de forma
significativa nas práticas de gestão escolar, nas práticas educativas, visando
responder aos anseios da sociedade.
O currículo tem sido o protagonista de discussões no âmbito educacional,
tido como um dos elementos fundamentais para a promoção da melhoria da
qualidade do ensino, a elevação do desempenho dos estudantes nos exames

or
de larga escala, com destaque para a Provinha Brasil, Prova Brasil e Enem.

od V
De acordo com Arroyo (2010) o currículo abrange todos os aspectos relativos

aut
ao ensino, sejam aqueles que acontecem no interior das escolas, nas secreta-
rias municipais e estaduais, como também, transcende os muros escolares e
alcança a sociedade em geral.

R
Portanto, refletir sobre o currículo é de relevância no alcance de possíveis
mudanças na organização do trabalho pedagógico escolar, como também,

o
identificar elementos que permitam a melhoria do diálogo entre a educação e a
aC
sociedade. Dependendo da concepção de currículo prevalecente na sociedade,
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o processo formativo humano realizado pela escola, atenderá logicamente aos


objetivos propostos.
Para Saviani (2015) costumeiramente quando se reflete sobre o currículo
visã
escolar, vem a ideia de que se trata de um conjunto de disciplinas, de diferentes
áreas do conhecimento, as quais apresentam uma carga horária diferenciada, a
ser cumprida pela escola durante os duzentos dias letivos, com um mínimo de
itor

oitocentos horas. Assim, trata-se de conhecimentos prescritos, na maioria das


a re

vezes, os professores se orientam por meio dos sumários dos livros didáticos,
para organizar os conteúdos na sequência a ser trabalhada em sala de aula.
Por outro lado, o currículo também se alinha ao processo de organiza-
ção do trabalho pedagógico escolar, e nesse sentido, a cada ano, as equipes
pedagógicas das escolas e das secretarias de ensino, reúnem-se para realiza-
par

ção do planejamento anual das atividades educativas, e uma das atividades


Ed

consideradas mais relevantes é a definição dos dias comemorativos a serem


realizados na rede pública, os quais compõem os dias letivos.
Diante de tal realidade, em geral as escolas da unidade federativa
ão

paraense organizam o calendário letivo articulado ao currículo, dispostos da


seguinte maneira: no mês de fevereiro ou março, a semana do carnaval; abril,
semana santa; maio, homenagem as mães; junho, semana do meio ambiente,
s

festas juninas; julho, férias escolares; agosto, homenagem aos pais; setembro,
ver

semana da pátria; outubro, Círio de Nazaré; novembro, semana da consciência


negra; dezembro, festividades natalinas.
Percebe-se que as datas comemorativas dispõem de um espaço privile-
giado no cotidiano das escolas, no entanto, como essas atividades dialogam
com o currículo, ou melhor, em que contribuem para o processo de formação
608

humana dos estudantes, além de relacionar os eventos comemorativos com


o conhecimento científico. Talvez, esse seja um dos grandes desafios que a
escola necessita romper, visando proporcionar um currículo capaz de dialogar
com a cultura em que os estudantes estão inseridos, e assim, atribuir outros
sentidos aos conhecimentos.
De acordo com Goodson (2010) o currículo atravessou séculos no coti-
diano escolar e a partir do início do século XX, com a consolidação da ordem

or
capitalista, a escola passou a ser a instância formadora da força de trabalho e

od V
com isso, o currículo deveria atender aos objetivos de ensino, visando respon-

aut
der as necessidades do modo de produção. Nesse sentido, o fundamental na
prática educativa era a definição de objetivos de ensino, visando alcançá-los

R
e consequentemente atender aos interesses do capital.
Diante de tal fato, a concepção tradicional de currículo pautou-se na

o
lógica da pedagogia bancária, em que a transmissão do conhecimento é o foco
central da prática pedagógica dos professores, concebendo-se os educandos
aC

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enquanto receptáculos de informações, os quais, não deveriam questionar a
palavra do professor. De acordo com Goodson (2010,) priorizou-se a disci-
plina, a autoridade do professor, a memorização dos conteúdos, a centralização
visã
da gestão, de modo que a escola se caracteriza pela rigidez no processo de
formação humana.
A concepção tradicional de currículo convive até os dias atuais no coti-
diano escolar, e ainda que alguns educadores neguem a sua presença, nas
itor

entrelinhas das práticas educativas ela se manifesta. Para Silva (2010), nessa
a re

perspectiva a escola atende as determinações da sociedade, sem questionar


os objetivos prescritos na formação dos sujeitos para o mundo do trabalho,
pois o que interessa é o trabalhador obediente, cumpridor de suas tarefas, e,
acima de tudo, contribuir para a manutenção da ordem social.
par

Uma das questões centrais debatidas na concepção de currículo é: a


que interesses a escola serve? A partir dessa indagação, a nova sociologia da
Ed

educação, apontou para o caráter reprodutivista da educação escolar, identifi-


cando a escola como componente dos aparelhos ideológicos do Estado. Nesse
contexto, o currículo reproduz desigualdade, atribuindo o mérito àqueles que
ão

conseguem alcançar o êxito escolar, e a culpa aos que fracassam em face dos
rituais escolares.
s

De acordo com Althusser (2000), a escola enquanto aparelho ideológico


ver

do Estado define por meio do currículo, aqueles que pertencerão à classe


dirigente, e também os indivíduos que serão dirigidos, ou seja, subalternos.
Assim, o currículo reproduz desigualdade serva aos interesses do modo de
produção capitalista, visto que impede a ascensão social das classes econo-
micamente menos favorecidas.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 609

O currículo reprodutor da ordem social inviabiliza o pensamento crítico


e criativo dos educandos, e para tanto, aposta na pedagogia tecnicista como a
via necessária para a formação dos sujeitos destinados ao mundo do trabalho.
De acordo com Apple (2000) é fundamental que se questione o papel da escola,
por se tratar de uma instância formadora, o ensino não pode atender unica-
mente ao aprendizado de habilidades destinadas ao exercício de um ofício.
É importante destacar que a teoria critica do currículo, contribuiu de

or
forma significativa para mudanças na organização do trabalho escolar no sis-

od V
tema de ensino brasileiro após a década de 1980, especialmente pela ruptura

aut
com a pedagogia tecnicista, de modo a viabilizar um processo de trabalho
coletivo, em que os profissionais da educação passaram a formular as pro-
postas pedagógicas com relativa autonomia.

R
Segundo Hage (2010), no momento contemporâneo, o processo de glo-
balização veio expressar a diversidade cultural, de modo que esse fato levou a

o
questionar o currículo, a organização do trabalho pedagógico, o funcionamento
aC
da escola, as relações de dialogo entre a escola e a cultura em que ela está
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inserida. Assim, os estudos culturais proporcionaram avançar na direção de


questionar a escola, reconhecendo as diferenças como algo concreto, impos-
sível de ser encoberto.
visã
Nesse contexto, a escola é um recorte da sociedade, e está inserida num
universo cultural, pois dele faz parte, de modo que as questões relacionadas
ao gênero, sexualidade, religiosidade, passaram a compor o debate sobre
itor

o cotidiano escolar. Maués (2015) ao discutir o currículo a partir da teoria


a re

pós-crítica ressalta que a organização do trabalho pedagógico requer o reco-


nhecimento do tempo e do espaço em que os sujeitos vivenciam, de modo
que a flexibilidade curricular é o ponto de partida para assegurar a inclusão
de todos no processo educacional.
A escola ao abrigar a diversidade, reconhece a necessidade de promover
par

um currículo flexível, visando articular o conhecimento científico e o saber


Ed

popular, e nesse contexto, o ensino deve partir do que os educandos conhecem


em suas vivências práticas, tornando mais interessante e motivador o processo
ensino-aprendizagem. De acordo com Freire (2010) os discentes constroem e
ão

trazer saberes oriundos de suas práticas, e o papel da escola é reconstruir tais


saberes, visando à plena compreensão da realidade concreta.
s

Currículo e concepções de mundo dos docentes da educação básica


ver

A reflexão sobre o currículo alcança um espaço significativo no processo


de formação do professor, a partir da necessidade dele compreender que a
prática educativa comporta elementos objetivos e subjetivos, os quais estão
expostos ou ocultos, dependendo dos interesses em conflito.
610

Arroyo (2010) entende que o currículo é um artefato social, e logicamente


é produto das relações humanas, e especialmente no modo de produção capi-
talista, em que a escola pública mantida por meio de recursos oriundos dos
tributos recolhidos junto à população, e apropriados pelo Estado burguês, é a
instituição formadora do capital humano, a prescrição do que se deve ensinar
responde a determinados interesses.
Na região ribeirinha amazônica, a reflexão sobre o currículo ocupa um

or
espaço significativo na compreensão da dinâmica social, e especialmente

od V
quanto à função social da escola, que par Veiga Neto (2007) é a instituição

aut
responsável em garantir que o conhecimento historicamente acumulado esteja
disponível a toda população. No entanto, esse discurso tem sido questio-

R
nado, no momento em que a escola reproduz uma ordem desigual, por meio
de um currículo que não espelha as particularidades dos sujeitos, inseridos
num contexto sócio cultural em que a escola não se apropria para promover

o
a escolarização.
aC

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No município de Muaná, no Estado do Pará, localizado no arquipélago
da Ilha do Marajó116 , a locomoção no espaço geográfico, entre a sede do
município e das diversas localidades, é realizada em sua maioria por meio da
visã
navegação fluvial, e o processo educativo requer a habilidade de navegar nos
rios, igarapés, furos, por meio de rabetas e rabudos117 , de modo que o nave-
gador, criança, jovem, adulto, idoso, habitante desse espaço, em sua maioria
não possui instrumentos eletrônicos, sonares, que possibilitem visualizar o
itor

que há no fundo das aguas, no entanto sabem decifrar os perigos à vista e


a re

aqueles ocultos.
Em relação ao currículo não é diferente, e para tanto é fundamental ao
educador saber identificar a realidade objetiva prescrita ao processo educativo,
reconhecer a que interesses a prática educativa se efetiva dentro e fora da sala
par

de aula. Além disso, é importante problematizar as situações, especialmente


quando não estão diretamente enunciadas ou descritas nos documentos oficiais.
Ed

De acordo com Veiga Neto (2007), o currículo envolve a cultura, repre-


sentada por conhecimentos científicos, historicamente produzidos pela huma-
nidade e também práticas que se incorporam às relações sociais e contribuem
ão

com o processo formativo dos sujeitos. Assim, a descrição de situações concre-


tas vividas dentro e fora da escola, torna-se fundamental para a compreensão
dos elementos que determinam a educação de um grupo social.
s
ver

116 A Ilha do Marajó está localizada na foz do Rio Amazonas e é o maior arquipélago fluvio-marítimo do mundo,
com quase 50 km² e abriga 12 municípios. De acordo com os índices oficiais, mais de 50% da população do
Marajó vive com renda per capita inferior a meio salário mínimo e onde a pobreza impera, reina a violência, a
exploração sexual de crianças e adolescentes, tráfico de drogas e de pessoas (https://amazoniareal.com.br)
117 Espécies de embarcações típicas utilizadas para realizar o transporte de pessoas e produtos pelos rios,
furos e igarapés.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 611

... então, um currículo guarda estreita correspondência com a cultura na


qual ele se organizou, de modo que ao analisarmos um determinado cur-
rículo, poderemos inferir não só os conteúdos que, explícita ou implici-
tamente, são vistos como importantes naquela cultura, como, também, de
que maneira aquela cultura prioriza alguns conteúdos em detrimento de
outros (VEIGA NETO, 2007, p. 44).

or
As relações de poder construídas historicamente na região da Ilha do
Marajó, cujo foco tem sido a exploração humana em suas mais variadas for-

od V
mas, incorporou-se na educação da população e adentra o cotidiano escolar

aut
com tamanha sutileza e violência simbólica, e na maioria das vezes não con-
segue ser observada pelos profissionais da educação que atuam nas unidades
escolares, tornando-as naturais.
R
As condições socioeconômicas da maioria das crianças que frequen-

o
tam a escola pública brasileira 118, impedem o usufruto de qualidade de vida
aC
satisfatória no campo nutricional e muitas vezes a ida a escola também é
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uma forma de assegurar uma alimentação mínima diária visando promover a


sobrevivência, especialmente entre os extratos sociais que vivem abaixo da
linha da pobreza no Brasil.
visã

As crianças chegam às sete e quinze da manhã na escola. Algumas chegam


molhadas devido a maresia. Para chegar as sete e quinze na escola, essa
itor

criança tem que acordar as cinco horas da manhã, e algumas não tomam
café em casa, muitas vezes porque não tem. Assim, a escola tem que ofe-
a re

recer a merenda, ou algo pra criança comer, e na maioria das vezes não
tem, pois é impossível ter um freezer porque depende de ter um gerador
de energia na escola (depoimento da Professora 1).
par

As reflexões expostas pelos docentes relativas ao cotidiano escolar, ainda


que estejam inseridas num currículo destinado a produzir desigualdade, não
Ed

são concebidas como algo projetado pelas classes dominantes para assegurar
a manutenção do poder local, e nesse contexto, é pertinente apontar para o
pensamento de Apple (2000), em que o currículo nunca é simplesmente uma
ão

montagem neutra de conhecimentos ou alheia de compromissos políticos


e econômicos.
A frequência à escola em condições adversas inviabiliza a possibilidade
s

da maioria das crianças se apropriarem do conhecimento científico em níveis


ver

118 Estudo desenvolvido por Iosif (2007, p.8), evidenciou que “... o Estado brasileiro está falhando na oferta de
uma educação de qualidade para a população historicamente marginalizada e oferece uma escola pública
que prioriza uma aprendizagem mecânica e fraca em detrimento do pensamento crítico, global, autônomo,
com professores, gestores e coordenadores pedagógicos desestimulados e desqualificados, com precárias
condições de trabalho, som o apoio institucional e da comunidade e com alunos desmotivados para aprender”.
612

satisfatórios, e de acordo com Saviani (2015) é fundamental que os extratos


populares dominem o saber científico como estratégia de luta para a transfor-
mação de sua realidade. No entanto, o Estado ao proporcionar um atendimento
precário relativo à educação escolar, empurra os educandos para fora de escola,
como uma estratégia de responsabilizá-los pelo seu fracasso escolar.
As condições objetivas para a oferta da educação pública no município
de Muaná-PA, não diferem da maioria das redes de ensino, cuja lógica é a

or
da precariedade, visando unicamente reproduzir a desigualdade. Ofertar uma
educação indigente às classes populares é justificado pelos gestores munici-

od V
pais por meio do discurso da complexidade geográfica, tida como obstáculo

aut
natural, como se fosse impossível equipar as escolas ribeirinhas com gerador
de energia, iluminação, instalações sanitárias adequadas, freezer para armaze-

R
namento de alimentação escolar, e demais equipamentos para funcionamento
adequado da escola.

o
Nos municípios vinculados à Ilha do Marajó, no qual se insere o muni-
aC
cípio de Muaná, os Índices de Desenvolvimento Humano, compostos por

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indicadores educacionais, longevidade, são comprometedores, e revela um
quadro caótico de atendimento de politicas sociais básicas, visando respon-
der as demandas das populações locais, abrangendo, infraestrutura de esgoto
visã
sanitário, distribuição de agua tratada, rede de distribuição de energia elé-
trica, iluminação pública, segurança pública, assistência judiciária, e também,
a precária rede de educação pública, ausente de creches e pré-escolas nas
itor

localidades distantes da sede do município, e restrições de oferta na sede dos


municípios 119.
a re

Em determinados momentos a cultura local amazônica, principalmente


nas regiões ribeirinhas, historicamente desprovida dos bens sociais, tais como
a disponibilidade de água tratada, rede de distribuição de energia elétrica
para as populações habitantes às margens dos rios, acesso à rede pública de
par

saúde e assistência judiciária, servem de justificativas aos governantes quanto


a ausência de políticas sociais favoráveis à transformação das condições de
Ed

vida da população.
Segundo Goodson (2010), o currículo elenca um conjunto de conheci-
mentos prescritos com objetivo de desenvolver habilidades necessárias para
ão

atender as atividades produtivas, e nesse contexto é possível apontar para a


presença da teoria tradicional como referencial de ação da prática educativa.
Assim, é possível assegurar a reprodução das condições de desigualdade
s

historicamente construídas no arquipélago da Ilha do Marajó, por intermédio


ver

da oferta da educação pública precarizada.

119 A esse respeito, consultar a matéria IDH no Marajó: Paulo Rocha acerta ao dizer que os municípios
da região têm os piores índices do Brasil. Dos 16 municípios marajoaras, 14 deles estão nas últimas
posições no ranking do IDH no Brasil. Disponível em: https://apublica.org/truco2018/2018/08/17/
idh-no-marajo-paulo-rocha-acerta-ao-dizer-que-os-municipios-da-regiao-tem-os-piores-indices-do-brasil/
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 613

É possível perceber que a docente não consegue vislumbrar que as con-


dições objetivas de oferta da escolarização precária, descrita por meio das
condições de infraestrutura escolar, as formas de acesso da criança à escola,
muitas vezes por meio de um transporte escolar precário, a distância geográ-
fica entre a residência da criança e a escola, também não são apontadas pela
docente como elementos constituintes de um currículo excludente.
As limitações quanto à compreensão do currículo como elemento de

or
possibilidade de transformação da realidade, produz uma relação de depen-
dência no campo das relações de poder entre os docentes e a gestão muni-

od V
cipal, e nesse contexto, é descrita uma relação promiscua para assegurar a

aut
permanência do vínculo laboral temporário na rede municipal de ensino. No
munícipio de Muaná, a economia local é basicamente mantida por meio dos

R
vínculos laborais em regime de contrato temporário dos servidores públicos,
e o quadro de profissionais da educação lotados nas unidades de educação

o
infantil e ensino fundamental menor, cursistas do PARFOR, em sua maioria
aC
possui contrato temporário de trabalho.
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É melhor ter um pouquinho de dinheiro, mesmo que atrase. Também


quando termina o semestre, nós todos somos desligados e só voltamos a
visã
ter contrato quando reinicia as aulas. A gente não pode cobrar educação
de qualidade, porque se a gente reclamar, a SEMED demite a gente e
coloca outro no nosso lugar. Como também, a gente precisa ver quem vai
ganhar a eleição e aí tem que apoiar para garantir uma vaga na SEMED
itor

(depoimento da Professora 2).


a re

As relações de poder descritas na sociedade desembocam no currículo


escolar, configurando-se um quadro de opressão e supressão da dignidade
humana, em que a troca da força de trabalho por um salário, também é acom-
panhada pela perda da liberdade de expressão em favor da transformação das
par

relações sociais, ou mesmo de apoiar um projeto de sociedade diferente do


modelo hegemônico.
Ed

Os docentes também não conseguem compreender que o vinculo labo-


ral temporário na rede pública municipal de Muaná, repercute no currículo,
pois resulta em limitações quanto à luta de classes em favor da educação
ão

de qualidade social, e, em contrapartida, reforça a desigualdade, exclusão,


precarização, tecida por meio dos grupos mantidos historicamente no poder
municipal. Esse quadro, além de omitir o valor do concurso público para o
s

ingresso no serviço público municipal, também, mantém a lógica da moeda


ver

de troca entre o posto de trabalho e o voto.


As forças opressivas manifestas no currículo, restringem a participação
dos docentes na luta por uma educação digna e de qualidade para a popu-
lação atendida pela rede pública municipal de Muaná-Pa. Os docentes não
614

conseguem vislumbrar que o vínculo laboral interfere ou não faz parte do


currículo escolar. De acordo com Lessa (2015), a dominação exercida por
meio do capital, primariamente é econômica e secundariamente é ideológica,
visando resguardar seus interesses.
Os docentes em determinados momentos conseguem identificar ele-
mentos restritivos no currículo que impedem crianças, adolescentes, jovens
e adultos de terem assegurado o direito à frequência regular à escola, no

or
entanto, quando se referem ao calendário escolar, não conseguem articula-lo

od V
ao currículo. É relevante considerar o quanto os docentes vislumbram o pro-

aut
cesso educativo de forma fragmentada e desarticulada de um viés orientado
por relações de poder.

R
A relação construída entre o currículo e a cultura é descrita entre os
docentes como algo relevante para o funcionamento da escola e a frequência

o
regular dos alunos, visando assegurar a apropriação do conhecimento, além
de relacionar as práticas sociais ao processo educativo.
aC

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O planejamento aqui em Muaná podia ter um calendário diferente. Por
exemplo, no mês de junho, durante o festival do camarão, é o momento
visã
que todo mundo vai pescar camarão, e aí a escola deveria não funcionar.
Também a partir de julho, agosto e setembro, quando a produção do açaí
é maior, até as crianças apanham açaí e ganham seu dinheirinho. Mas o
planejamento da escola não faz um calendário diferente e aí tem muita
itor

evasão (depoimento da Professora 3).


a re

A flexibilidade do calendário escolar, ainda que esteja articulado ao


currículo, adequado ao contexto sócio cultural dos sujeitos que vivenciam a
escola, não é vislumbrado entre os docentes, pois concebem que o calendário
par

escolar é apenas produto do planejamento escolar. A falta de compreensão da


relação estabelecida entre o currículo e a cultura, inviabiliza a permanência na
Ed

escola, em que os alunos têm que optar entre a frequência a essa instituição
educativa e a produção da existência por meio do trabalho.
A desarticulação da escola com as relações de produção existencial,
ão

implica também na construção de um olhar fragilizado sobre o valor que a


educação escolar deve ter no processo de transformação social. Exatamente
por isso, é pertinente considerar o quanto o currículo sob a égide do neoli-
s

beralismo, restringe cada vez mais as possibilidades de transformação social


ver

por meio de uma educação libertadora.

A lógica da desigualdade, da exclusão, da concorrência e da discriminação


está no centro do neoliberalismo, e este está rapidamente se tornando hege-
mônico em escala mundial. Isso tem pelo menos dois efeitos imediatos sobre
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 615

o currículo. Em primeiro lugar, parece que mais do que nunca o conheci-


mento está sendo desigualmente distribuído. Então, como evitar isso? Em
segundo lugar, a distribuição desse conhecimento segue a lógica neoliberal,
isto é, o conhecimento escolar – e, de resto, a própria escolarização – deixa
de ser entendido como um elemento socializador e como um direito social,
e passa a ser entendido como uma mercadoria a ser adquirida. E é claro
que aqueles que podem comprá-lo terão melhores chances de concorrer e

or
dominar com mais êxito… (VEIGA NETO, 2007, p. 46).

od V
Assim, as alternativas apresentadas para a produção da existência das

aut
classes populares no Município de Muaná, resumem-se ao exercício do labor
nas atividades extrativistas, dentre estas a coleta de açaí durante a safra que

R
começa no mês de maio e se estende até novembro, e também na pesca
artesanal do camarão. Nesses períodos, a maioria dos educandos deixa de

o
frequentar as aulas, para compor a força de trabalho familiar na busca da
complementação da renda para sobrevivência.
aC
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O currículo prescrito e destinado a promover o modo de produção domi-


nante, seleciona e determina quem deve avançar no processo de escolarização,
e quem deve se apropriar unicamente das habilidades de leitura, escrita e
visã
cálculo, a ser utilizado minimamente em suas relações sociais e de trabalho.
As condições ofertadas para o funcionamento do ensino básico, mediante um
currículo que reproduz a pobreza e a miséria entre os municípios componente
do arquipélago do Marajó, é orientado também por meio da infraestrutura de
itor

acesso à escola.
a re

O transporte escolar aqui em Muana é muito complicado. O barqueiro não


tem condições de reparar os alunos e dirigir o barco ao mesmo tempo.
Tem barco que leva até trinta alunos. Tem menino que se curva no barco
par

ou vai pra proa pra ficar vendo o movimento da maresia (depoimento da


Professora 4).
Ed

As limitações quanto a compreensão da dinâmica que o currículo produz


no cotidiano das práticas educativas, impede que os docentes vislumbrem que,
ão

no momento em que a criança se desloca para a proa do barco, ou curva-se


para observar o movimento da maresia, ele está investigando o movimento
das aguas durante o percurso realizado pela embarcação. Deve-se considerar
s

que os alunos vivenciam esses momentos durante as viagens que realizam


ver

com familiares, nas viagens até a sede do munícipio ou nas vizinhanças, além
dos momentos em que estão na labuta, visto que o único meio de locomoção
ocorre por meio da navegação fluvial.
É como observou Brandão (2000), para quem a construção do aprendi-
zado é mediada pela cultura, e assim, toda produção do intelecto humano é
616

fruto da cultura em que está inserido, portanto, é dessa forma que a criança
ribeirinha consegue interagir no espaço geográfico em sua maioria composto
por rios, igarapés, lagos, furos, para se comunicar com outros sujeitos, além
de dominar as águas para pescar ou transportar sementes como fontes de
alimento.
O percurso do transporte de ida e volta da escola para a residência,
integra o currículo da escola ribeirinha, no entanto, os docentes não con-

or
seguem relacionar o caráter global do processo educativo, e muitas vezes a

od V
escola não reconhece esses saberes e práticas que os alunos experimentam,

aut
portanto, não é considerado como parte integrante do currículo, muito menos
enquanto saber válido para ser adicionado como conhecimento relevante na
aprendizagem escolar.

Conclusão R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


O estudo sobre a compreensão de currículo entre professores em processo
de formação em nível de licenciatura, no contexto do município de Muaná,
levou-nos a afirmar que historicamente a limitação sobre o currículo, reservado
a uma seleção de conteúdos que escola deve proporcionar aos estudantes per-
visã
siste, o que limita a mobilização dos docentes para superação das condições
objetivas que o Estado oferta no intuito de promover o ensino.
A restrição quanto à compreensão do currículo, tem reproduzido histori-
itor

camente as péssimas condições para funcionamento da escola pública brasi-


a re

leira, visto que os docentes também não conseguem esclarecer à comunidade


que o currículo está para além de um simples ato de seleção e prescrição
de conteúdos.
Conclui-se que os docentes em processo de formação não conseguem
par

vislumbrar o currículo para além das instalações físicas da escola, tampouco


compreender que os alunos trazem saberes e práticas significativas que, de
Ed

forma intencional ou não, incorporam-se ao currículo, porém, sua invisibi-


lidade no processo educativo, impede que a escola contribua de fato para a
sua formação humana.
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 617

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Ed
s ão
ver
PRÁTICAS DE EXTERMÍNIO E
NARRATIVAS DE FAMILIARES
ATINGIDOS PELA VIOLÊNCIA:

or
um olhar para a formação e atuação

od V
da psicologia frente à violência

aut
R
Luizane Guedes Mateus

o
Passava um pouco das dez da manhã quando os fogos de artifício, segui-
aC
dos de tiros, começaram a explodir. O corpo do menino franzino acabara de ser
enterrado no cemitério destinado a pobres e negros. Os amigos de seu bairro e
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de bairros vizinhos, que a mídia insistia em chamar de “Complexo”, iniciaram


a saudação conjunta 120. Era possível ouvir os estampidos ao redor, tanto nos
visã
bairros considerados economicamente vulneráveis, como na região mais nobre
da cidade – por mais de dez minutos o barulho dos fogos e tiros era o único a
adentrar os ouvidos dos mais desavisados. O ruído trazia também, aos mais
itor

atentos, alguns significados e muitas interrogações: os tiros e fogos eram de


a re

luto pelo menino-homem – um perverso opositor à ordem, perigo iminente


– ou só mais um menino morto na lógica cruel do falso combate às drogas?
Bem de perto do cemitério pude observar quem entrava e quem saía:
eram mulheres negras, pobres, marcadas pela vida; meninos negros, pobres,
par

marcados pela invisibilidade das políticas públicas; poucos homens adultos –


pretos, brancos, amarelos, ricos ou pobres. Pergunto-me, aqui, se os homens
Ed

não habitam o lugar cuja sina insiste em chamar de Complexo? Será que eles
vivem até a vida adulta ou são abatidos como o “menino-homem” que foi
morto pelo atirador da polícia? Há uma única certeza: a vida nas comunida-
ão

des parece negar a existência desses homens, ainda meninos, quando lhes
apresenta a morte como o único caminho – Necros – Negros – Necropolítica
– Mortos.
s

O barulho dos fogos agora é abafado pelos tiros, que afirmam não só o
ver

lugar de existência desses corpos, mas também do luto que lhes é negado;
luto negado quando esses corpos são expostos em fotos do Instituto Médico

120 O texto faz referência ao enterro do adolescente C.M.S., de 17 anos, que, segundo relatos, foi morto por
policiais militares no bairro da Penha, cuja região compõe o que a mídia intitula como “Complexo da Penha”
– conjunto de bairros que fica no entorno de todo esse território. O assassinato de C. desencadeou uma
série de manifestações, como a ocorrida no dia de seu enterro, com fogos e tiros por mais de dez minutos,
em toda a região, bem como passeatas pela cidade de Vitória - Espírito Santo.
620

Legal, sofrem escárnios comentários de redes sociais, em notícias de jornal


ou mensagens de Whatsapp Luto que é negado quando a existência do meni-
no-homem é reduzida ao “Complexo” – desestrutura social e homogênea
existência.
Ouvindo bem de perto, por mais de dez minutos, os fogos e tiros, conti-
nuo meu atendimento a uma família dita em situação de risco pessoal e social,
de acordo com os parâmetros do Sistema Único de Assistência Social – SUAS.

or
A responsável legal do núcleo familiar me confidencia que o jovem morto

od V
era amigo de seus filhos, criados juntos pelas vielas da comunidade. Quando

aut
finalizo o acolhimento, algumas perguntas insistem ainda em ecoar meus
pensamentos de psicóloga: é este o destino reservado aos meninos-homens
negros e pobres? Qual o lugar da Psicologia frente à violência que se tem

R
perpetuado junto dessa parcela da população? Como produzir outros lugares
de existência quando pensamos o trabalho e a formação em Psicologia em

o
relação ao testemunho daqueles que sofrem com a violência? Sigo cheia de
aC
perguntas, sem respostas, enquanto, em mais uma terça-feira ensolarada,

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direitos e lutos são negados a esses corpos, que têm suas vidas visibilizadas
somente na morte.
visã
Introdução: sobre histórias e memórias, a construção de quebra-
cabeças incompletos a partir da greve da Polícia Militar do estado
do Espírito Santo
itor
a re

Perguntaram-me se acredito em Deus. Respondi com os versos de Chico:


Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já mor-
reu. Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que
par

chegará amanhã ou a que arruma o quarto para o filho que não chegará?
(ALVES, 2002).
Ed

Mesmo estando em casa, debruçada sobre estas linhas, ainda assim,


assisto mentalmente a procissão de mulheres negras, entrando e saindo do
ão

cemitério. São mães, tias, irmãs, avós – familiares de pessoas que foram
atingidas pela violência no estado do Espírito Santo e que ousaram narrar
suas trajetórias. Seriam somente mais algumas das tantas histórias, de dor e
s

sofrimento, contadas por uma pesquisadora de Pós-doutorado , mas, como


ver

faíscas e lascas, são narradas por essas personagens, um narrar cheio de frag-
mentos que acabam constituindo certas formas de viver, existir, lutar e resistir.
São discursos-práticas de pessoas que romperam com os lugares de vítimas
e perigosas que lhes foram imputados, simplesmente por pertencerem aos
territórios criminalizados pelas estatísticas de violência, ou por sua negritude.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 621

Esta escrita emerge a partir de dois incômodos: o primeiro se refere a


uma lista que parece nunca ter sido oficializada e nem finalizada – a de atin-
gidos pela violência letal, no período da greve da Polícia Militar do estado
do Espírito Santo, em 2017. E o segundo perpassa a formação e atuação da
Psicologia frente às demandas que apresentam como viés principal a violência
e o testemunho, especialmente a violência estatal. Violência esta que “é tida

or
no campo das exceções”, conforme propõe Angela Davis (2018).

od V
Acho que, com frequência, tratamos esses casos como se fossem exceções,

aut
como se fossem aberrações. Ao passo que, na realidade, eles acontecem o
tempo todo. E presumimos que, ao punir o autor, a justiça terá sido feita.

R
Mesmo quando policiais são indiciados não podemos ter certeza de que
a transformação esteja em pauta (DAVIS, 2018).

o
A greve da Polícia Militar do estado do Espírito Santo teve início em 03
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de fevereiro de 2017, com um tímido protesto de familiares da corporação em


frente ao destacamento da polícia, no município de Serra, impedindo a saída
das viaturas nas ruas. Essa paralisação ganhou força na madrugada seguinte,
visã
de 04 de fevereiro, quando foi desdobrada para outras cidades da Grande
Vitória e do interior. Sem policiamento nas ruas, o estado mergulhou no que
alguns chamaram de “guerra civil” e outros nomearam como a maior crise da
itor

segurança pública já vivenciada no estado. Guerra ou não, foram contabiliza-


a re

das de 180 121 a 215 mortes entre os dias 04 e 25 de fevereiro de 2017. Mortes
que tinham endereços certos – as periferias – e uma cor determinada – a negra.
Os escritos e análises sobre esse período e essas mortes buscaram não só
possibilitar um espaço de fala e de escuta das mães e familiares dos atingidos
por essa violência, mas também compreender o papel da Psicologia frente às
par

demandas contemporâneas de atendimento e cartografia do caminhar dessas


Ed

famílias, por meio de suas narrativas, conhecendo e fazendo emergir, cole-


tivamente, as histórias de vida daqueles que foram atingidos pela violência.
Um dos nossos maiores desafios foi caminhar junto dessas famílias e falar de
ão

possíveis execuções nas comunidades com altos índices de violência, justa-


mente no período da greve da polícia militar, pois sabíamos que algumas delas
já tinham sofrido represálias. Outra questão que nos perpassou foi o receio de
s

que a escuta feita a elas poderia nos desviar para a armadilha da revitimização,
ver

uma vez que a angústia de repetir inúmeras vezes tais vivências de dor e de
sofrimento seria uma possibilidade. Encontra-se entre as atribuições da Psi-
cologia não apenas promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das

121 Número apresentado pelo Sindicato dos Policiais Civis do Estado do Espírito Santo.
622

coletividades, mas também contribuir para a eliminação de todas as formas


de discriminação, violência, crueldade, negligência e opressão, zelando ainda
pela garantia de dignidade para todas as pessoas.
Mas, como fazer isso em meio ao luto e às expressivas violações de direi-
tos junto dos grupos mais fragilizados? Como isso pode constituir a formação
e a atuação do psicólogo? Apostamos, dessa maneira, em um único caminho
que nos foi possível, o de confiança e construção de vínculos, procurando não

or
transformá-los em mais uma encruzilhada, tampouco usar o lugar de vítima

od V
como palco para a busca por vingança ou endurecimento dos processos penais

aut
que já assolam tanto a população pobre e negra do país.

Interessa-nos pensar que interesses estão sendo contemplados com esse

R
“elogio” da vítima. De que forma a vitimização generalizada, acom-
panhada da supremacia dos afetos de compaixão e do crescimento das

o
demandas de reparação dirigidas à justiça, tem servido para endurecer cada
aC
vez mais o direito penal? Que categorias profissionais, que instituições,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vêm sendo favorecidas graças à mobilização emocional produzida por
meio do sofrimento das vítimas? Por que as interpretações dos aconteci-
mentos sociais têm privilegiado a exaltação da vítima, mais do que outros
visã
aspectos colocados em jogo? Será mesmo benéfica para as próprias vítimas
a exaltação de sua vitimização, de sua fraqueza, e não, ao contrário, a
possibilidade de sua potência? (REIS, 2011).
itor

Posto isto, é de extrema importância mencionar, neste artigo, que estar


a re

por dez anos como servidora pública de um Centro de Referência Especia-


lizado de Assistência Social – CREAS 122 – da região do Centro, na cidade
de Vitória, capital do Espírito Santo, foi um fator primordial para a execução
da pesquisa e construção dessa escrita, já que atuar junto às comunidades,
par

por tantos anos, me tornou conhecida de algumas famílias que confiaram na


minha atuação como profissional e militante tanto da área de direitos huma-
Ed

nos como das relações étnico-raciais. Compartilhar essas histórias foi uma
forma também de reafirmar essa confiança no trabalho das equipes junto aos
territórios ali compreendidos.
ão

As comunidades ditas em situação de risco pessoal e social 123 apre-


sentaram inúmeras questões ligadas diretamente à violação de direitos, o
s
ver

122 O Creas é uma unidade pública estatal, composta pela Política de Assistência Social, onde famílias e
indivíduos em situação de risco pessoal ou social – que vivenciaram casos de violação de direitos; vítimas
do trabalho infantil e de abandono; pessoas em situação de rua ou que tenham sofrido violências física,
psicológica e sexual ou mesmo foram discriminadas por razão de sua orientação sexual ou de sua etnia e
adolescentes que estejam em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto – são atendidas.
123 Desconfiamos de construções e conceitos fechados, que tendem a patologizar e produzir subjetividades
homogêneas e identitárias, como o conceito de risco pessoal e social, que produz, nas periferias das cidades,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 623

que colocou em cheque, por vezes, meu papel, indagando-me se existiria a


suposta neutralidade do pesquisador, que também é profissional da Assistência
Social. Distantes dessa “pseudoneutralidade” que nos inquieta, realizamos
entrevistas e dispositivos grupais com essas famílias, buscando trazer, em
suas narrativas, algo que pudesse nos direcionar às constantes configurações
e reconfigurações que se formularam ao longo dos anos, para produzir esses
corpos matáveis e passíveis de extermínio, e também para entender como a

or
Psicologia pode fortalecer não só sua atuação em defesa da vida, mas também

od V
na produção de estratégias de resistência à morte violenta. Acreditamos que

aut
a partir desses testemunhos de violência, é possível pensar numa ferramenta
clínico-política no campo da formação em Psicologia, pautada na construção

R
de uma memória antes coletiva que individual (MOURÃO, 2009; RAUTER,
PASSOS; BARROS, 2002).

o
Do berço à sepultura: narrar o indizível é sobre resistir, é sobre
aC
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o testemunho

O tema “(In) segurança pública no Espírito Santo” vem sendo desta-


visã
que local e nacional devido aos altos índices de mortes violentas no estado,
especialmente entre mulheres e jovens negros, segundo dados levantados nos
últimos anos, o que tem instigado vários estudos e movimentos na sociedade
itor

capixaba. Como bússola para cartografar o caminhar das famílias diante das
mortes de seus entes queridos, buscamos, como viés metodológico, a utiliza-
a re

ção de pesquisa documental, entrevistas individuais e de dispositivos grupais.


Através da pesquisa documental e da coleta de dados nas entrevistas,
observamos que os dois caminhos apontavam para mortes obscuras. De um
lado, os familiares alegavam a inocência da maioria daqueles que foram viti-
par

mados, culpando, por vezes, a própria instituição policial; de outro lado, as


mídias pesquisadas ora falavam em redes de tráfico de drogas, ora em acertos
Ed

de contas entre grupos rivais – denominados conflitos territoriais. Assim, a


única certeza de todo o percurso dessa escrita era a de que a história oficial,
contada e amplamente difundida nos meios de comunicação, ligava, direta-
ão

mente, pobreza, periculosidade e negritude; mas não era essa história que
nos interessava.
s
ver

Há várias maneiras de narrar a história de um país. Uma visão sempre


esquecida, conhecida como “ótica dos vencidos”, é aquela forjada pelas
práticas dos movimentos populares, tanto nas suas lutas e resistências,
como no seu cotidiano e na sua teimosia por produzir outras maneiras de

uma aproximação entre pobreza e periculosidade.


624

ser, outras sensibilidades e percepções. Essas práticas recusam as normas


pré-estabelecidas e procuram construir, de certa forma, outros modos de
subjetividades, de relação com o outro e de produção. É dessa história
que vamos falar um pouco (COIMBRA, 2000).

Contrariando, portanto, a lógica do silenciamento e dessa história oficial,


buscamos fatos que afirmavam a memória daqueles que foram mortos e que

or
tentavam quebrar a sequência de silêncios que ainda prevaleciam no período

od V
de greve da polícia militar. Os silêncios quebrados, por vezes, nos levaram a

aut
outros momentos e relatos sobre sobreviver. Passeando pelos caminhos não
retilíneos da História, encontramos análises dos crimes e genocídios nazis-
tas ocorridos nos campos de concentração, em especial de Auschwitz. São

R
análises que trazem relatos dos sobreviventes desses campos e a forma como
produziam e elaboravam memórias a partir das experiências traumáticas. Esses

o
fatores nos levam diretamente ao modo como as experiências traumáticas dos
aC
familiares de atingidos pela violência no período de greve da polícia militar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do Espírito Santo foram elaboradas, vividas e revividas.

Os sobreviventes, aqueles que ficaram e não se afogaram definitivamente,


visã
não conseguiam esquecer-se nem que o desejassem. É próprio da experiên-
cia traumática essa impossibilidade do esquecimento, essa insistência na
repetição. Assim, seu primeiro esforço consistia em tentar dizer o indizí-
itor

vel, numa tentativa de elaboração simbólica do trauma que lhe permitisse


continuar a viver e, simultaneamente, numa atitude de testemunha de algo
a re

que não podia nem devia ser apagado da memória e da consciência da


humanidade (GAGNEBIN, 2006).

A memória é a base de um processo que faz com que as lembranças


par

jamais sejam esquecidas, como também é a forma encontrada de não permitir


que o esquecimento seja perpetuado. É ela que vai delineando e possibili-
Ed

tando aos sobreviventes de dizerem o indizível. Assim, entendemos que são


elaboradas também as memórias daqueles que foram atingidos e tiveram seus
familiares mortos não só no período da greve da polícia militar, mas também
ão

em outros eventos violentos. Buscamos trazer as memórias dessas famílias


na escrita, o caminhar de mães – irmãs – tias – esposas – que faz emergir,
s

coletivamente, a história de vida de seus mortos. São contadas não somente


as histórias de suas mortes, mas também de suas vidas.
ver

Paralela a esta reconstrução das memórias e construção do testemunho,


problematizamos também o lugar da Psicologia nesta seara – posição que
implica abertura não somente à experiência das pessoas com que nos encon-
tramos, mas à nossa própria experiência e ao modo como nos afetamos e nos
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 625

transformamos neste percurso. Neste outro espaço de produção de saberes


– que não é mais o da sala de aula, do consultório ou das salas assépticas de
atendimento psicológico – somos confrontados com as diferentes realidades
geográficas, culturais, étnico-raciais, econômicas e sociais. Confrontados,
especificamente, com os nossos saberes instituídos e pré-determinados his-
toricamente a serviço das classes mais abastadas.
Em um dos encontros uma das entrevistadas conta que foi presa em fun-

or
ção da alardeada “guerra ao tráfico” que há tempos já vinha sendo articulada

od V
nas comunidades periféricas da cidade de Vitória. Seu irmão foi morto dois

aut
dias antes de sua liberdade, fato que a persegue todos os dias de sua vida e
a faz indagar se ele teria morrido, caso ela estivesse em liberdade. Esta é a
pergunta que ela se faz todos os dias quando acorda: ele teria morrido?

R
Ouvindo seu relato e tantos outros, as ideias relacionadas à escrita per-
meiam meu corpo negro de pesquisadora. A escrita se delineia: mulher negra,

o
retinta, que narra como a morte do irmão mais novo era atravessada pela
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

extrema violência, racismo e pelas ações do estado embasadas no fracassado


combate ao tráfico de drogas – que mais se parece um combate aos pobres e
negros...vidas passíveis de eliminação, “vidas precárias” (BUTLER, 2019).
É a partir da ampliação dos conceitos apresentados em Bodies That Matter
visã
(1993) que Butler trabalha o corpo como um caminho para os processos de
precarização da vida; corpos que em última instância de desumanização esta-
rão lançados à morte; corpos – pobres, negros, periféricos.
itor
a re

O corpo implica mortalidade, vulnerabilidade, agência: a pele e a carne


expõem-nos ao olhar dos outros, mas também ao toque, e à violência,
e os corpos põem-nos também em risco de se tornarem a agência e o
instrumento de tudo isto. Embora lutemos por direitos sobre os nossos
próprios corpos, os próprios corpos pelos quais lutamos não são apenas
par

nossos. O corpo tem a sua dimensão invariavelmente pública. Constituído


como um fenômeno social na esfera pública, o meu corpo é e não é meu.
Ed

Dado desde o início ao mundo dos outros, carrega a sua marca, é formado
dentro do cadinho da vida social; só mais tarde, e com alguma incerteza,
reivindico o meu corpo como meu, se é que de fato alguma vez o faço
ão

(BUTLER, 2018a).
s

A existência da periferia e de todos aqueles que foram mortos, no período da


ver

greve, é atravessada por três pilares: violência letal, racismo e ações de extermínio
praticadas pelo braço armado do estado. Corpos que são, em última instância,
ilegítimos cultural e socialmente para sua existência enquanto humanos.
Em outra narrativa, a mãe entrevistada traz à memória o momento em
que seu filho foi morto. Era um fim de tarde ensolarado, como tantos outros.
626

A notícia era de que o filho estava ferido em uma escadaria próxima à resi-
dência, e que ela precisava correr até o local. Ela sabia – mães sempre sabem
– que a notícia sinalizava outra verdade que ela conhece muito bem: de que
o filho estava morto. Nas comunidades, onde a violência atravessa vidas, as
mães não são chamadas quando os filhos estão feridos, mas, sim, quando já
estão mortos.

or
Aquele já não era mais um fim de tarde ensolarado. Em sua fala, esta mãe
conta que todos os dias, ao voltar do trabalho, se pega olhando o entardecer,

od V
aut
buscando respostas que lhe digam o porquê daquela tarde e daquela morte;
o porquê de parte de sua vida ter sido levada por quatro tiros disparados por

R
desconhecidos. São quebra-cabeças incompletos que – para os que pregam
a neutralidade e a desejável individualidade – parecem habitar no privado

o
dessas famílias.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Uma perda pode parecer totalmente pessoal, privada, isolada, mas também
pode fornecer um conceito inesperado de comunidade política, até mesmo
uma premonição de uma fonte de não violência. Se a vida que é minha
visã
não é original ou finalmente separável da tua, então o nós que somos não é
apenas uma combinação de tu e eu e de todos os outros, mas um conjunto
de relações de interdependência e paixão (BUTLER, 2018b).
itor
a re

Desordenar os fatos que aproximavam essas narrativas de individualida-


des foi nosso objetivo neste percurso, acontecimentos que pareciam mergu-
lhados em silêncios e que deveriam estar fora da memória histórica da cidade
de Vitória e dos familiares entrevistados, mas que, insistentemente, fizeram
par

a vida pulsar, e, assim, pulsando, fizeram com que nenhuma morte caísse no
esquecimento e no imobilismo.
Ed

A experiência de ouvir essas narrativas nos possibilitou algumas inquie-


tações. Uma delas é de como constituir uma intervenção pautada não em
ão

individualidades, e sim numa Psicologia que se produz no “entre” – a relação


de quem escuta histórias de violência e de quem, em sua dor, é escutada; uma
Psicologia produzida através dos afetos para com o outro, mas também para
s

si e para o mundo como modo de intervir.


ver

Em um dos processos grupais, alguns familiares descreviam as comidas


favoritas de “seus meninos e meninas” – como carinhosamente chamavam
os que haviam partido precocemente. Ao final da atividade, uma das mães
me chamou no privado, e com um sorriso largo, disse o quão importante foi
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 627

relembrar e rememorar as coisas boas da curta história que construiu com o


filho que foi morto aos dezenove anos. A narrativa, neste contexto de resis-
tência, está intimamente ligada à produção de memória, aos usos e desusos
do tempo pretérito para repensar as vidas para além do momento devastador
da morte. Uma disputa que faz com que a escuta das narrativas do passado
não se coloque somente como um espiral que leva à morte, mas também que

or
produz vida. Psicologia como produção de vida.

od V
Essas mulheres – porque são só mulheres – se jogam num espiral de

aut
tempo, numa encruzilhada entre o vivido e aquilo que poderia ser vivido,
especialmente num instante em que as temporalidades deflagram um lugar

R
doce de existência anterior à morte, cujo passado se dá através do que foi
construído junto de seus entes queridos, e não pelo que se construiu a partir

o
do lugar em que são colocados depois de mortos. Sem perceber, fazem com
aC
que o olhar desconfiado do leitor dessas linhas nada alinhadas os enxerguem
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também para além da morte.


Para BENJAMIM (1993), “a narrativa seduz, possibilita ação que abre
visã
novas possibilidades para o futuro”. O autor descreve que a narrativa tem
origens remotas que correspondem a um tipo de experiência e encontra na
modernidade sérias dificuldades:
itor

[...] a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
a re

pessoas que sabem narrar devidamente [...] é como se estivéssemos pri-


vados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade
de intercambiar experiências [...] O bom narrador possui sua genealogia
no povo, sendo que o aporte popular não pode ser desprezado para o
par

desenvolvimento da narrativa, não no sentido didático, mas na capacidade


Ed

de difusão e na técnica de vincular a atenção dos ouvintes. O narrador


figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para
alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio.
ão

Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida, uma vida que não inclui
apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia
(BENJAMIN, 1993).
s
ver

Seguindo este viés, a narrativa das entrevistadas ocupa o vão central da


escrita, pois é a partir dela que reconstruímos as histórias de alguns dos atin-
gidos pela violência do estado. É a partir dessas histórias que refizemos a lista
de mortos, não mais por serem mortos, mas por sermos nós as testemunhas.
628

Oyá porta os braceletes de cobre com os quais faz barulho para


afastar a morte: sobre coletivizar a vida nos encontros grupais

Xangô era um grande rei, muito temido e respeitado, gostava de exibir


sua bela figura, pois era um homem muito vaidoso e adorava mostrar
seus poderes de feiticeiro, sempre experimentando sua força. Em certa

or
ocasião, Xangô estava no alto de uma montanha: em altos brados, evocava

od V
os raios, desafiando essas forças poderosas. Sua voz era o próprio trovão,

aut
provocando um barulho ensurdecedor. De repente, o céu se iluminou e os
raios começaram a aparecer.
As pessoas ficaram impressionadas com a beleza daquele fenômeno, mas,

R
ao mesmo tempo, estavam apavoradas, pois nunca tinham visto nada pare-
cido. Xangô, orgulhoso de seu extremo poder, ficou extasiado com o

o
acontecimento. Foi, então, que, do alto de sua vaidade, viu a situação fugir
aC
ao seu controle. Tentou voltar atrás, implorando aos céus que os raios, que

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cortavam a Terra desaparecessem. Mas era impossível, a natureza havia
sido desafiada, desencadeando forças incontroláveis!
Xangô então correu para sua aldeia, assustado com a destruição que pro-
visã
vocara. Quando chegou próximo ao palácio, viu o erro que cometera - a
destruição era total e, para piorar a situação, todos os seus descendentes
haviam morrido. Ao ver que o rei estava muito perturbado, seu próprio
itor

povo tentou consolá-lo. Mas Xangô, sem dar ouvidos a ninguém, foi
embora da cidade. Com o passar dos dias não suportou tanta dor e injustiça
a re

e enforcou-se numa gameleira.


Iansã, quando soube da morte de Xangô, chorou copiosamente, formando
o rio Niger. Ela, que tinha o poder de transportar os espíritos dos mortos
do Aiyê para o Orun, com amplo conhecimento do reino dos eguns, foi
par

até lá para trazê-lo da morte, que veio envolto em panos brancos e com o
rosto coberto, pois não podia ser reconhecido por Ikú, o Senhor da Morte.
Ed

Xangô ressurge assim dos mortos, tornando-se um ser encantado (Charles


Corrêa D´Oxum, 2018).
ão

Na realização de grupos com as famílias, encontramos uma das propos-


tas iniciais enquanto metodologia, porém com algumas questões que ainda
s

nos inquietavam: como formar grupos com pessoas que tinham medo de se
ver

expor, tanto pelo modo violento com que seus familiares haviam sido mor-
tos, quanto pelas ameaças sofridas após essas mortes? Como falar desses
meninos e meninas sem permear os caminhos dicotômicos da vitimização
ou da produção do lugar do perigo? As respostas para essas perguntas foram
surgindo a cada encontro.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 629

Falamos das incursões policiais e dos tiroteios travados entre as for-


ças de segurança e os grupos de traficantes do bairro, de como isso atingia,
diretamente, a vida de quem morava nas comunidades ditas violentas, domi-
nadas pelo tráfico de drogas; discutimos o papel da polícia militar, o uso da
força desproporcional e de como alguns familiares foram mortos por meio
dela; discutimos, ainda, sobre os grupos de extermínio, até que chegamos ao
período da greve da polícia militar e nos entreolhamos...seria possível falar

or
das estratégias de mortes, usadas nas comunidades em meio à greve, sem

od V
sentir-se amedrontado?

aut
Uma das formas de desumanizar é impossibilitar que se vivencie o luto,
transformando vidas perdidas naquelas que não merecem ser lamentadas,

R
identificando-as como “menos humanas”. É assim que os discursos produzem
o inumano – “funcionam sem fornecer nenhuma imagem, nenhum nome,

o
nenhuma narrativa, de forma a concluir que ali nunca houve morte, tampouco
vida” (BUTLER, 2019).
aC
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Apagar a humanidade daquelas mulheres e de seus familiares era a prática


adotada, já que havia dificuldade desde a retirada dos corpos cravejados por
balas de dentro das comunidades, até a identificação dos filhos no Instituto
visã
Médico Legal. Dor e repetição – loop infinito – fazem o corpo esmorecer,
desistir das batalhas. Mas rememorar bons momentos e lutar pela memória
dos familiares mortos, ao contrário, faz com que o sofrimento tome outros
caminhos, não mais apenas no lamento e indignação, mas promovendo trans-
itor

formações e outras formas de “estarem” com seus filhos.


a re

É a partir da força e luta por justiça e para provar que esses corpos não
são “descartáveis” que essas mulheres têm “o poder de transportar os espíri-
tos dos mortos do Aiyê para o Orun”. Como Iansã, são as mães dos espaços
sagrados, com amplo conhecimento do reino dos eguns ou – para aqueles que
par

não sabem – reino dos mortos. É através da memória e da narrativa que elas
podem trazê-los da morte, não permitindo de tal maneira que sejam reconhe-
Ed

cidos por Ikú, o orixá da Morte – “ressurgem assim dos mortos, tornando-se
seres encantados”, conforme as palavras de Charles Corrêa.
Essas mulheres quando falam, aumentam momentaneamente o tom de
ão

voz; é como se falar mais alto sobre a vida e a morte de seus familiares
pudesse, por alguns instantes, trazer de volta e refazer a história desses jovens
s

mortos – todos negros – em um dos muitos dias de greve da polícia militar.


ver

Sim, não poderíamos apagar os efeitos do racismo que atravessaram essas


histórias, afinal, todas as vítimas tinham uma similaridade: eram negras. O
racismo é operado em toda a estrutura das instituições do Estado, o que legi-
tima os processos de produção e manutenção de desigualdades entre brancos
e negros, e funciona como uma política – de morte.
630

Achille Mbembe trará para a discussão o conceito de necropolítica, uma


política de morte que se coloca enquanto regra para o funcionamento do
Estado, que se dará através do uso da força desproporcional e do extermínio
de alguns corpos; uma política que elege quem pode e deve morrer. Esses
corpos serão majoritariamente negros.

O racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercí-

or
cio do biopoder, ‘este velho direito soberano de matar’. Na economia do

od V
biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar

aut
possíveis as funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2018).

O operar da necropolítica será visto com extrema facilidade nos territó-

R
rios pobres das cidades, e mais especialmente ainda nas cidades capixabas,
que foram o nosso foco de pesquisa. Temos, nas comunidades periféricas,

o
índices de óbitos altíssimos, causados, em sua maioria, por agentes do estado
aC
contra os corpos majoritariamente negros. São ações que têm um único alvo:

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corpos negros.

O biopoder parece funcionar a partir da divisão entre as pessoas que devem


visã
viver e as que devem morrer. Operando com base em uma divisão entre
os vivos e os mortos, tal poder se define em relação a um capo biológico,
do qual toma o controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe
itor

a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população


em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e
a re

outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo (aparentemente familiar)


‘racismo’ (MBEMBE, 2018).

Praticamente do berço à sepultura, esses corpos serão sempre tratados


par

como criminosos, sejam atuais ou “futuros”. Essas mortes são a “solução


para o problema da criminalidade do país”, cuja política de segurança pública
Ed

é instituída e destinada a pretos e pobres. Dentro dessa lógica de morte, os


encontros grupais nos mostraram que o espaço de fala sobre essas questões é
emergencial e necessário para que a produção de morte não seja o único viés
ão

da história dessas famílias.


Mas o que fazer com a experiência de escuta dessas falas? A escuta da
s

violência e do testemunho afeta. Mesmo sem termos vivenciado a experiência


propriamente dita de violência, nossos corpos reagem através de sensações
ver

dolorosas, e embora não sejamos aquelas mães, irmãs, tias e avós marcadas
pela memória da dor, nos invadimos dessa dor diante da imensidão dos teste-
munhos. Mas entendemos que o testemunho também move. O espaço para a
escuta da dor torna possível dizer o indizível. Para isso, é preciso lançar mão
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 631

de uma Psicologia que produza possíveis caminhos de potência de afirmação


da vida, do vivido, mesmo na morte. Para além da morte que espreita essas
pessoas e comunidades, elas querem falar da vida, querem espaços onde suas
vidas e as vidas dos entes queridos perdidos tenham sentido. Mas não qual-
quer escuta, e sim, uma escuta menos “especializada e técnica”, no entanto,
mais ética-política: escutar aquilo que sobreviveu à violência, implicar-se
na história e apropriar-se dela (KESSLER, KVELLER, RODRIGUES;

or
SZUCHMAN, 2017).

od V
aut
Conclusão: “porque para nós, desde que chegamos aqui, só nos
foi oferecida a guerra...”

R
Possibilidades! Possibilidade de compartilhar a maternidade para além

o
da dor, de escapar da “sina necropolítica” e de não sucumbir-se às lineari-
dades e homogeneidades que desqualificam as formas de viver, sentir, agir e
aC
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lutar. As famílias seguem, lutam contra o apagar das histórias de seus entes
queridos e contra os efeitos do “não humano” que atravessaram seus corpos
desde que morreram. A sensação de se tornarem “inumanos” será como uma
visã
desconstrução, o desfazer da percepção de perda e insensibilidade à dor e
ao sofrimento como um mecanismo por meio do qual a desumanização se
consuma (BUTLER, 2019).
Humanizar o que a maioria luta para tornar monstro, desumano - esta
itor

talvez seja a batalha diária dessas famílias e também da Psicologia. As palavras


a re

de uma avó, num dos grupos realizados para a construção dessa pesquisa,
foram: “revisitar as lembranças”. O desafio, junto a todos os familiares com
quem estive, foi deixar, por alguns instantes, a dor da casa vazia e enveredar
pelas histórias que não passaram somente pela morte e entender como eram
par

e como viviam seus filhos, irmãos, netos.


Reunir pedaços de histórias, construir, inventar novas relações que
Ed

pudessem de alguma forma, fazer emergir algo que fosse além da “ótica dos
vencedores”. Este foi o desafio com os familiares de atingidos pela violência.
Nossa principal ferramenta, nos caminhos trilhados, foi narrativa, testemunho,
ão

dispositivos que estiveram presentes em todas as encruzilhadas da pesquisa.


O que nos interessou foi apreender, através das narrativas, os modos de fun-
s

cionamento singulares da vida como potência, mesmo em meio à morte.


Morte! Enquanto penso na organização desta conclusão e em todas as
ver

vivências que foram possibilitadas, envolvo meus pensamentos na pandemia


da COVID-19, que atravessou a finalização da pesquisa e atravessa também
esta escrita. Assim, ao mesmo tempo em que agradeço aos ventos fortes de
Oyá, por terem acelerado o processo de caminhada junto aos familiares em
632

relação às narrativas, rogo à Omolú por suas vidas em meio ao caos; muitas
mães continuam enterrando seus filhos com caixões lacrados, ora pela vio-
lência, ora pela pandemia. Ainda são os corpos negros que tombam e não têm
seus lutos respeitados e nem mesmo direito ao enterro digno.
O poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer
passam não só pelos corpos expostos à violência, mas também por aque-
les expostos à pandemia. “Fazer viver e deixar morrer”, políticas de con-

or
trole social através da morte; o poder se materializa pela expressão da morte

od V
(Mbembe, 2018). Morte que é atravessada, em toda a sua extensão, pelo

aut
racismo, aquele que muitos insistem em dizer que não existe ou reduzem-no
à individualização.
O racismo permeia meus pensamentos, permeia a pandemia e também

R
estas linhas. Agora, alguns meses depois da finalização da pesquisa e do
último encontro com os familiares e o isolamento social, pergunto-me como

o
estão essas pessoas? Como a busca por outros sentidos para a vida ganha
aC

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corpo em meio ao confinamento, por mais precário que seja para essas famí-
lias negras e pobres? Tento reunir, mentalmente, pedaços das narrativas que
partilhamos, para me certificar de que estão enfrentando mais uma batalha e
que irão sobreviver. É preciso acreditar nisso para finalizar esta história, caso
visã
contrário, como no “loop da morte”, ficaremos presas, para sempre.
Foram construídas não apenas histórias tristes – contadas e recontadas
no campo privado dessas famílias; não somente a versão dos “vencedores”,
itor

divulgada pelos amplos meios de comunicação, que colocava os mortos como


a re

algozes homogêneos em suas vivências e histórias, sempre contadas como


desestruturadas, sem o brilho de vidas que valessem ser vividas – desorgani-
zamos os fatos! Algumas das mulheres possibilitaram não apenas esta narra-
tiva, mas a produção de relações potentes entre elas e nós, relações que lutam
par

contra a sina de que pretos e pobres têm como os únicos caminhos a violência
generalizada, a família desestruturada e a morte violenta como final da linha
Ed

tênue da vida. É sobre isso que acreditamos serem os caminhos para a for-
mação e atuação enquanto Psicologia; sobre potência de vida, vida invenção.
O Estado segue matando, tanto pela violência, como pela ausência de
ão

políticas públicas mínimas para a existência dessas narradoras. Mas, ao con-


trário do que se espera, elas buscam na pesquisa, na vida e na história – que
contam e recontam sobre seus entes queridos perdidos – reafirmar a dignidade,
s

a memória e, principalmente, sua existência. Escrever sobre elas é também


ver

reafirmar essa existência.


PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 633

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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or
od V
aut
R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
O TRABALHO DE PESQUISA COM
DOCUMENTOS EM PSICOLOGIAS:
memória e produção da diferença

or
od V
Flávia Cristina Silveira Lemos

aut
Daiane Gasparetto da Silva
Adriana Elisa de Alencar Macedo
Bruno Jáy Mercês Lima

R
Antonino Alves da Silva
Luis Wagner Dias Caldeira

o
aC
Introdução
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visã
O trabalho com documentos ainda é pouco usual em pesquisas na Psi-
cologia brasileira. Todavia, há trabalhos que atuam em um esforço de apro-
ximar os estudos com arquivos e documentos das Psicologias, em especial,
da Psicologia Política, Social, Comunitária, Educacional e em Saúde mental
itor

e coletiva. A apropriação da memória e a transformação da mesma em docu-


a re

mentos passou a ser uma prática valorizada nos últimos anos, na área.
Portanto, este capítulo visa trabalhar com esta história recente, basica-
mente, propondo uma breve incursão pelos modos de escrever a História e
costurar as historiografias e teorias na história com as Psicologias. Todos os
par

documentos são resultantes de uma fazer histórico e gera efeitos nas maneiras
de pensar, de agir, de viver, de nos relacionar e de experienciar a vida. Os atos
Ed

cotidianos micropolíticos e os macropolíticos são articulados em documentos


nas políticas públicas e também nas privadas.
A conservação e o armazenamentos dos documentos em arquivos,
ão

museus, bibliotecas, arquivos digitais, em prontuários e pastas de armários,


em gavetas, em microfilmes e na memória coletiva podem ser narrados e
interrogados, em uma rede de intrigas e tramas a serem descritas, publica-
s

das e difundidas com o objetivo de contribuir para uma ontologia histórica


ver

do presente.

Os estudos históricos para desnaturalizar práticas psicológicas


e romper cristalizações
Para que possamos trabalhar com acontecimentos no campo das disputas
de narrativas e das práticas múltiplas e heterogêneas nas lutas pelas memórias,
636

pelas lembranças e pelo tempo. A produção da subjetividade tem elementos


do tempo como dimensão constitutiva dos modos de agenciamento presentes
nos processos de subjetivação contemporâneos (BERT, 2013). Assim, há um
encontro entre Psicologia e História na perspectiva da relação entre tempo e
espaço na produção da subjetividade e da saúde coletiva e mental, na medida
em que os processos de subjetivação são constituídos por práticas delimitadas
por tempo e espaço.

or
Os estudos históricos permitem desnaturalizar as práticas psicológicas
e a pensar as relações entre subjetivações com uma complexidade de acon-

od V
tecimentos singulares, formando uma rede de intrigas e uma trama de linhas

aut
entrecruzadas, forjadas como uma teia-diagrama. As tensões sociais, econô-
micas, culturais e políticas são colocadas em xeque pelo estudo cuidadoso

R
com os documentos psicológicos e as interferências dos mesmos na esfera
política de uma determinada sociedade e na interrogação da própria dimensão

o
política da construção de uma subjetividade.
Os arquivos presentes nas organizações de diversas políticas públicas são
aC

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fontes relevantes para descrevermos e analisarmos as cristalizações dos modos
de existência, às quais aprisionam vidas e esvaziam a potência de transfor-
mação das práticas discursivas e não-discursivas. Problematizar práticas por
visã
meio de documentos é uma preocupação para a Psicologia Política na medida
em que opera rupturas com governos das condutas específicos, os quais se
tornam formas de opressão, de dominação, de coerção e violência além dos
jogos de saber e de poder, na dinâmica das relações de força com força.
itor

Um documento pode explicitar tensões em uma política e assinalar rei-


a re

vindicações e denúncias, operar encaminhamentos e exigir direitos, abordar


relatos psicologizantes de um laudo e demandar supostos tratamentos e manei-
ras de excluir/incluir grupos em espaços de segregação e/ou de atendimen-
tos na saúde, na assistência social e no Poder Judiciário. Os arquivos estão
repletos de narrativas detalhadas das maneiras de viver, de sentir, de pensar
par

e de agir, em um certo tempo e espaço. Um álbum de fotografias pode trazer


fotos das posses em cargos públicos, a memória dos acordos celebrados para
Ed

um consenso após uma guerra, as lembranças dolorosas de bombardeios de


uma cidade, de um jantar entre parlamentares para destinarem verbas a um
programa e organizarem alianças em uma eleição etc.
ão

Uma pasta de arquivos pessoais pode armazenar documentos sobre uma


biografia de estudos e diplomas da formação universitária de um/a pesqui-
sador/a; pode ainda ser uma pasta de portarias governamentais e decretos do
s

executivo que versam sobre alterações de cargos e leis. Um armário de um


ver

hospital pode guardar medicamentos e instrumentos cirúrgicos, pode arma-


zenar prontuários de pacientes e relatórios médico-psicológicos das pessoas
atendidas, se tornando importantes registros para a própria formação médica
e psicológica bem como para decisões políticas e econômicas no âmbito
da promoção, garantia e atenção à saúde. “A simples reclassificação de um
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 637

documento guardado numa pasta para outra consiste em uma operação de ava-
liação de relevância, de seleção e de produção de memória” (CASTRO, 2008,
p. 31).
Um prédio, uma planta arquitetônica, móveis, jornais, currículos, ates-
tados, atas de reunião, formulários para preenchimento, veículos, praças e
estátuas, museus com obras diversas, bibliotecas, objetos antigos, artefatos
arqueológicos, adornos seculares e milenares, músicas e instrumentos, roupas

or
e talheres, iconografias, armas e mapas, aparelhos eletrônicos, vestígios e

od V
emblemas, sinais e marcas, anotações em um caderno e carteira de trabalho,

aut
certidões de nascimento e casamento, testamentos e diplomas, leis e regimen-
tos, denúncias e processos, avaliações de desempenho e atestados de qualidade
de um produto, rótulos e propagandas etc. são fontes históricas.

R
Assim, o estudo dos documentos se torna um dispositivo de interven-
ção do pesquisar e analisar com operadores conceituais e ferramentas meto-

o
dológicas do trabalho com estudos históricos. Busca-se propor o trabalho
aC
com arquivos como dispositivo de ruptura com preconceitos, discriminações
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negativas, estigmas e naturalizações que estão na base de processos de domi-


nação, opressão, coerção, controle e moralização das condutas, dos valores,
das relações sociais e culturais. “Muito mais que qualquer outra fonte, o
visã
depoimento oral ou escrito necessita esforço de sistematização e claras coor-
denadas interpretativas” (BOSI, 2003, p. 49).
itor

Narrativas em disputas e tramas tecidas


a re

na produção social da diferença

O trabalho com a pesquisa documental é importante para a área de ciên-


cias humanas e sociais. Ampliar os usos desta metodologia é um exercício
par

relevante a ser constituído para expansão das analíticas de acontecimentos,


sobretudo em conversação com a História Nova. A prática de historicizar é
Ed

um ato que permite desnaturalizar as cristalizações e gerar aberturas ao novo e


outras narrativas, em uma rede política das relações entre História e memória.
Conforme Nora (1993), há uma confusão entre história e memória na gestão
ão

do passado, pois, apesar de articuladas, as duas são distintas.


Com efeito, a memória é um conjunto de lembranças não organizadas
s

em arquivos historiográficos. Já, a História como disciplina é um ofício, um


ver

trabalho de análise das memórias submetidas ao escrutínio dos historiadores,


os quais atuam com metodologias sociais baseadas em análises de documen-
tos. “A instituição histórica se organiza segundo hierarquias e convenções
que traçam as fronteiras entre os objetos históricos legítimos e os que o são
e, portanto, são excluídos ou censurados” (CHARTIER, 2016, p. 68).
638

Em especial, pensar o trabalho com arquivos nas políticas públicas, com


os movimentos sociais e os registros orais é uma iniciativa crucial para a
transformação de condições de existência e ruptura com desigualdades sociais
e econômicas, as quais são reproduzidas no tempo e espaço. Historicizar os
fazeres abre brechas para a criação de outros olhares, escutas, escritas e aná-
lises. As Psicologias ganham com as conversações com a História na medida
em que cada prática e acontecimento têm uma singularidade e esta só pode

or
ser problematizada com a construção de mecanismos intercessores entre a

od V
Historiografia e as Psicologias, tanto nas pesquisas quanto nas atuações pro-

aut
fissionais de psicólogos(as).
O privado e íntimo, também é político e produz e reproduz racionalidades

R
agenciadas com outras organizações, equipamentos, grupos, instituições e
estabelecimentos, em redes entrecruzadas de relações. As Psicologias atuam

o
com a política o tempo todo, ela é política e não pode deixar de ser politizada
analiticamente porque o privado não está apartado do público, nem o micro
aC

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do marco nas relações entre Psicologia, sociedade e saúde (BUTLER, 2019).
Também é importante assinalar que o corpo é um acontecimento emi-
nentemente histórico (FOUCAULT, 1979) e as Psicologias atuam com os
visã
corpos, inclusive, deles como documentos performados sociohistoricamente
e culturalmente. Butler (2019) salienta que o corpo está atravessado e produ-
zido pela História, materializa-se em uma biohistória. Logo, há uma política
da existência pautada em uma vertente materialista da vida e da gestão dos
itor

corpos na sociedade pelas relações entre Biologia, Psicologias e História,


a re

atravessando e compondo os corpos.


Ora, no bojo desta discussão é possível pensar que os discursos são
constituídos pela objetivação dos corpos e das relações, em um amplo campo
de saberes e poderes em exercício nas disputas de narrativas e na escrita da
par

História. Assim, há uma História das existências na trama com os corpos


e nas relações entre os mesmos. Uma política pública organiza e gerencia
Ed

um conjunto das artes de governar os corpos com muitos saberes e poderes,


formando relações e subjetividades singulares no tempo e espaço de uma
determinada sociedade (RAGO, 2019).
ão

Como nos salienta Sant’Anna (2000), o conhecimento sobre o corpo


não se restringe ao solo fértil da história, ou mesmo da medicina, mas sim
s

de todas as ciências e das artes. Segundo Louro (2007), os corpos não são
ver

apenas as supostas evidências definidoras de uma subjetividade, já que a


sujeição e a sociedade estão em permanente transformação, principalmente
na contemporaneidade onde os investimentos sobre os corpos são contínuos
e constantes, esses investimentos passam pela roupa, tatuagem, cosméticos,
plásticas, dietas, hormônios, lentes etc.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 639

Portanto, todo corpo possui um regime de verdade na história. O corpo


está engendrado por fatores sociais, culturais e de linguagem. Busca-se pensar
a formação dos corpos por um conjunto de tecnologias de poder e de saber,
o qual o performa e o posiciona em um campo complexo de relações que o
constituem (LAURETIS, 2019).

Conclusões

or
od V
O trabalho com documentos e a História permite desnaturalizar as práti-

aut
cas sociais, culturais, psicológicas e econômicas, em uma ação afirmativa da
singularização das existências. Os arquivos fornecem importantes pistas meto-

R
dológicas e conceituais relevantes para as Psicologias e permitem intervenções
éticas, estéticas e políticas nas disputas pelas memórias, narrativas e também
pelas performances corporais, em amplo espectro de complexas análises.

o
Estigmas, estereótipos, preconceitos, discriminações negativas, rotu-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

lações e práticas morais podem ser colocados em xeque pelas conversações


entre Psicologias e História. Desta forma, há uma incidência de um projeto
ancorado na singularização e na produção da diferença em uma pesquisa com
documentos que pode contribuir grandemente para as Psicologias Política,
visã
Social, Comunitária, Educacional e na Saúde Coletiva. Historicizar é poder
agir com o passado sobre o presente para analisarmos como vivemos e nos
relacionamos, mapeando as processualidades e os movimentos singulares, ou
itor

seja, em marcações analíticas críticas que constituem uma ontologia histórica


a re

do presente.
par
Ed
s ão
ver
640

REFERÊNCIAS

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od V
aut
R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
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ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
DAS VICISSITUDES, LIMITAÇÕES E
POSSIBILIDADES DE UMA PESQUISA
TEÓRICO-BIBLIOGRÁFICA: a

or
reconstrução enquanto conceito operador crítico

od V
aut
Aluísio Ferreira de Lima
José Alves de Souza Filho

R
o
O que ele [Ulisses] escuta não tem consequências para ele, a
aC
única coisa que consegue fazer é encenar com a cabeça que
o desatem; mas é tarde demais, os companheiros – que nada
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escutam – só sabem do perigo da canção, não de sua beleza


visã
– o deixam no mastro para salvar a ele e a si mesmos. Eles
reproduzem a vida do opressor juntamente com a própria vida,
e aquele não consegue mais escapar a seu papel social
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 45).
itor
a re

Pierre Bourdieu ofereceu uma grande contribuição para as ciências


humanas quando tratou de teorizar o que chamou de “campo científico” 124.
Principalmente porque demonstrou claramente que esse campo funciona da
mesma forma que qualquer um outro que, sob a lógica do capital acadêmico
par

e econômico, obedece a uma lógica específica e reproduz um lugar histórico


Ed

de sustentação de verdades trans-históricas. Entre as propriedades singula-


res desse campo científico, Bourdieu assinalou que possivelmente a mais
fundamental está o fechamento sobre si (mais ou menos total), que implica
ão

em possibilitar a criação e manutenção de um conjunto de pesquisadores e


aplicadores que somente conversam, compreendem e criticam-se mutuamente.
s

Fechamento que, por sua vez, ao contrário do que sustentaria uma leitura
ver

ingênua da ciência que acreditaria no falsificacionismo proposto por Karl


Popper como caminho natural do conhecimento, teria o objetivo de conseguir
o monopólio da representação cientificamente legítima do Real e de seus pes-
quisadores, que devem aceitar tacitamente o arbítrio desse Real. Nas palavras
do próprio Bourdieu, tudo ocorrendo como se,
124 o que é o campo científico?
644

[...] ao adoptarem uma atitude próxima daquilo a que os fenomenólogos


chamam a atitude natural, os investigadores concordassem tacitamente
sobre o projecto de dar uma representação realista do real; ou, mais exac-
tamente, como se aceitassem tacitamente a existência de uma realidade
objectiva pelo facto de assumirem o projecto de dar uma representação
realista do real; ou, mais exactamente, como se aceitassem tacitamente a
existência de uma realidade objectiva pelo facto de assumirem o projecto

or
de investigar e de dizer a verdade do mundo e aceitar ser criticados, con-
traditos, refutados, em nome de uma referência ao real, assim constituído

od V
em arbítrio de investigação (BOURDIEU, 2008, p. 98 – grifos do autor).

aut
Análise que permite perceber que o campo científico não se configura

R
como um coletivo integrado e desinteressado, mas como um campo absolu-
tamente singular, no qual as relações de poder e de luta entre os agentes e

o
as instituições estão articuladas diretamente e submetidas às leis específicas
decorrentes de interesses dos participantes do campo que buscam aumentar
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


seu capital acadêmico – fechamento sobre si e concorrência entre os pares –
e interesses da sociedade capitalista – sobretudo da burocracia e do Estado
liberal 125.
visã
Em síntese é possível dizer, com as lições de Bourdieu, que aquilo que
torna-se reconhecido como conhecimento científico sobre alguma coisa no
mundo é aquilo que sobrevive ao discurso hegemônico. O conhecimento
itor

válido é aquilo que determinada comunidade de pesquisadores concordam em


considerar como real, “a verdade é o conjunto das representações consideradas
a re

verdadeiras por serem produzidas segundo as regras que definem a produção


da verdade” (BOURDIEU, 2008, p. 101).
Ora, Max Horkheimer em seu clássico ensaio sobre a teoria tradicional
e a teoria crítica proferido em 1937 já adiantava essas discussões. As ciências
par

modernas experimentais e morais apresentaram como resposta ao pensa-


mento idealista a redução da racionalidade contemplativa à racionalidade
Ed

formal, onde a validade dos conteúdos se resume a validade dos resultados.


Essa proposta como bem sabemos aposta na supremacia da racionalidade dos
procedimentos com que se tentam solucionar problemas – problemas que são
ão

empíricos e teóricos constituindo um paradigma 126 para uma comunidade de


pesquisadores; e de ordem jurídica e prática constituindo e/ou fortalecendo
s

uma moral no seio da comunidade de cidadãos.


ver

O que passa a ser convencionado como racional não é a ordem das coisas
em sua materialidade, mas a solução de um problema encontrado de forma
pressuposta, devido a forma convencional com a qual lidamos com a realidade.

125 Cf. Habermas, ciência e técnica como ideologia.


126 sobre paradigma: khun, Popper, feyerabend & lakatos
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 645

Com essa antecipação da totalidade perde-se a perspectiva a partir da qual a


metafísica diferenciou a essência do fenômeno. Além disso, a proposição do
falibilismo pelas teorias cientificistas, que colocaram as hipóteses frente a
justificação com base em consequências (seja pela confirmação empírica ou
coerência com outros enunciados já aceitos), a tornaram incompatível com
qualquer tipo de saber que até o momento sustentava a Prima Philosophia.
O desafio, como assinalou Horkheimer (1937/1980), é superar essa forma

or
de produção de conhecimento e não apenas descrever a sociedade, mas com-

od V
preendê-la à luz de uma emancipação ao mesmo tempo possível e bloqueada

aut
pelos mecanismos de dominação presentes. Posicionamento crítico que requer
uma atitude diante do conhe- cimento tão prudente quanto aquela que é reco-
mendada para as leituras do senso comum e exige um estado de alerta diante

R
dos conhecimentos atuais e uma disposição interna para colocar as verdades
escolares em questionamento.

o
Ambos autores, cada um ao seu modo, ensinam que frente as possibili-
aC
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dades de instrumentalização da produção de conhecimento é a adoção de um


posicionamento crítico na construção da pesquisa que pode oferecer alterna-
tivas capazes de produzir pesquisas potentes. Ou seja, que o próprio método
deve oferecer a possibilidade de ultrapassarmos a mera aplicação de técnicas
visã
para alcançar o exercício de um olhar questionador na problematização dos
enunciados e posições epistemológicas dos discursos teóricos.
Nesse cenário a pesquisa teórico-bibliográfica tem aparecido como uma
itor

ferramenta imprescindível para proporcionar novos aprendizados e propiciar


a re

o reconhecimento de novas metodologias e técnicas para pesquisador, no caso


de pesquisas empíricas, ou mesmo novas reflexões e teorizações sobre determi-
nado temas. Subsidia, também, o autor na construção da redação de seu futuro
texto, quando as fontes lidas mobilizam-no a aproximar-se das discussões já
par

existes, tanto por apropriação conceitual como por uma produção textual de
leitura compreensível (PIZZANI; SILVA; BELLO; HAYASHI, 2012).
Ed

A pesquisa bibliográfica busca a resolução de um problema (hipótese)


por meio de referenciais teóricos publicados, analisando e discutindo as
ão

várias contribuições científicas. Esse tipo de pesquisa trará subsídios para


o conhecimento sobre o que foi pesquisado, como e sob que enfoque e/
ou perspectivas foi tratado o assunto apresentado na literatura científica
s

(BOCCATO, 2006, p. 266).


ver

É certo que os estudos metodológicos sobre pesquisa bibliográfica, con-


forme advertem Lima e Mioto (2007), caem repetidamente no vício de tratá-la
como uma simples revisão de literatura, estruturada por procedimentos de acu-
mulação de fontes, delimitação conceitual, leituras e fichamentos. Endossando
646

a percepção das autoras, os manejos adotados nas propostas de pesquisa teó-


rico-bibliográfica restringem-se a uma reflexões sobre procedimentos, levan-
tamento e seleção da bibliografia, quando muito trabalhando a importância
do ato da leitura a ser feita. Posturas que descrevem o modo instrumental e
funcional do fazer ciência hoje. Mobilizado por atender fins, à medida que
é útil e eficiente, o conhecimento científico despotencializa seu olhar crítico
para com a polissemia dos discursos quando se mobiliza atender prescrições

or
e normas de métodos (LIMA; MIOTO, 2007; HABERMAS, 2014).

od V
Entendemos que a produção de um conhecimento não deve contentar-se

aut
com a aplicação de métodos sem problematizar os interesses que permeiam os
conhecimentos da aplicação de um método ou técnica (HABERMAS, 2014).
Logo, é crucial questionar sobre as implicações de determinados procedimen-

R
tos, como a escolha de determinada bibliografia e seus recortes, pois, aí, já
sinalizam quais discursos participaram na produção de determinado conhe-

o
cimento. Em nossas pesquisas temos nos apropriado das pistas apresentadas
aC

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pela Teoria Crítica, sobretudo das discussões acerca da relação entre métodos
científicos e análise crítica, que devem “superar os limites das ciências espe-
cializadas e organizar seus resultados reconstruindo o objeto de pesquisa em
seu próprio processo histórico concreto” (ANTUNES, 2014, p. 26). Nossa
visã
posição aproxima-se de uma perspectiva implícita que atravessa os escritos
habermasianos, para quem “reconstrução”, “significa que uma teoria é decom-
posta e recomposta em uma nova forma para que possa atingir o fim que ela
itor

mesma se pôs” (HABERMAS, 2016, p. 25).


a re

Jürgen Habermas tem mérito de reconstruir uma teoria social que viabi-
liza um “diagnóstico das tendências, crises e patologias das atuais sociedades
desenvolvidas”, conforme bem assinalou Siebeneichler (2012, p. XIII), ou
seja, uma leitura capaz de desvendar as estratégias de controle e administra-
par

ção instrumental e funcional do mundo da vida (Lebenswelt) pelas ordens


sistêmicas. Logo, quando opera de modo crítico sobre os atravessamentos
Ed

históricos e a dinâmica social de construção e manutenção do Mundo da vida


e as estratégias de intervenção Sistêmica, onde a Reconstrução
ão

procura identificar estruturas fundamentais da vida social que não foram


suficientemente exploradas na realidade das sociedades capitalistas avan-
çadas, o que levaria a crises persistentes e ao mesmo tempo apontaria para
s

possibilidades reais de formas de vida mais democráticas e emancipadas


ver

(BANNEART JUNIOR; REPA, 2016).

Em outras palavras, o projeto reconstrutivo de Habermas estrutura-se


como um trabalho investigativo de desvendar, no processo de produção da
cultura e da sociedade, os potencias de seu próprio desenvolvimento, de modo
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 647

especial, que figuram a riqueza dos referenciais simbólicos, que dão sentido e
contornos aos processos sociais. Marcos Nobre e Luiz Repa (2012) exploram
essa perspectiva da reconstrução, na medida em que a situam como via gené-
tica de explicitação das estruturas de socialização dos sujeitos, em especial,
da sua participação no jogo simbólico e de sentidos da cultura.

Como as estruturas geradoras são também de natureza simbólica, ou seja,

or
elas também são apreendidas pelos atores no seu processo de socialização,

od V
a reconstrução genética deve poder explicar como se dá esse processo de

aut
aprendizagem. Isso significa que tal reconstrução deve poder explicar
como sujeitos socializados podem aprender e criar novas estruturas com
base nas anteriores até chegar ao nível das sociedades contemporâneas

R
(NOBRE; REPA, 2012, p. 21).

o
É possível observar nos autores um reforçador da ideia de reconstrução
aC
como uma postura crítica de pesquisa teórica. Enquanto “operador teórico”
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

(NOBRE; REPA, 2012, p. 7), a reconstrução viabiliza duas atitudes críticas


inteiramente imbricadas. Por um lado, “incorpora os resultados das teorias
sociais não críticas, das teorias tradicionais.” (NOBRE; REPA, 2012, p. 7), à
visã
medida que esses resultados também falam da estrutura normativa que atra-
vessa as relações sociais e produções culturais. Por outro, pela reelaboração
minuciosa desses conhecimentos, temos viabilidade de “[...] identificar os
itor

potenciais de emancipação inscritos na realidade social presente” (NOBRE;


a re

REPA, 2012, p. 7).


Justamente pela conjunção desses duas atitudes, a crítica reconstrutiva
filia-se na esteira da projeto frankfurtiano inaugurado por Max Horkheimer
quando teorias tradicionais podem ser articuladas dentro de uma teoria crí-
par

tica comprometida na reconstruir as tramas de uma teoria social, pela qual


os fundamentos normativos de uma sociedade possam reconstruir também a
Ed

história de sua própria criação, mas, sobretudo, iluminar novos caminhos, meio
e ações de construções de vias emancipatórias. “A forma metódica de como se
apreende a realidade está indissoluvelmente liga às potencialidades melhores
ão

dessa realidade e aos seus bloqueios e, assim, ao que permite o conhecimento


mais amplo possível dessa realidade [...]” (NOBER; REPA, 2012, p. 9-10) Ou
s

seja, pela reconstrução temos uma (re)apropriação dos elementos sociais, por
ver

suas estratégias e interesses, determinantes que engendraram as razões que


oferecem teorias sobre a dinâmica de sociedade, como também permite-nos
uma (re)apropriação de desses mesmos elementos sociais pelos quais escolhe-
remos qual sociedade poderá ser articulada, especialmente pela apropriação
dos determinantes que viabilizem a emancipação.
648

Quanto a proposição de “reconstrução” enquanto “operador crítico”,


para sua melhor compreensão, vale fazer dois esclarecimento: primeiro, sobre
o princípio histórico dentro do pensamento habermasiano, que implica, no
segundo momento, para que possamos situar sobre as acepções que envol-
vem a operação crítica. Como já trabalhamos, a Reconstrução aparece como
perspectiva crítica que estrutura o pensamento de Habermas no seu projeto
de construção de uma Teoria da Crítica Social, sobretudo, quando permite

or
que a articulação das teorias tradicionais no empreendimento crítico sobre os

od V
fundamentos normativos da sociedade que participamos. Ou como Repa &

aut
Nobre (2012) melhor definem, trata-se de um diagnóstico do tempo ao desco-
brir as estruturas profundas geradores de objetos simbólicos enquanto formas
de conhecimento social. Especificamente, são “[...] as regras, as estruturas,

R
os critérios de avaliação e os processos sociais mais amplos em que determi-
nados objetos simbólicos se inserem e ganham um sentido social e racional

o
que é alvo da teoria reconstrutiva” (REPA; NOBRE, 2012, p. 18). Refletir as
aC

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regras e estruturas, seja por suas gêneses, procedências e regências, viabiliza
compreender a construção dos sentidos sociais simbolicamente materializados
em racionalidade imanentes as formas que naturalmente compreendemos o
mundo. Por essa condição histórica, uma crítica as regras e as estruturações
visã
das produções sociais viabilizam a desnaturalização dos fatos sociais, cor-
riqueiramente tomado como resultados, quando na (re)apropriação de sua
construção temos como (re)conhecer os interesses e valores que dão contornos,
itor

sobretudo morais, nas formas como adotamos e reproduzimos essas regras.


a re

Pelo reconstrução, podemos diagnosticar quais são as racionalidade que não só


mantem um status quo social, mas agenciam as formas de vida que produzem
os sentidos e significados pelos quais a realidade social pode ser percebida,
ou não, dentro do interesses das próprias estruturas normativas da sociedade.
par

A maneira como essas regras e proferimentos são reciprocamente com-


Ed

preendidos pelos atores depende de seu saber intuitivo sobre certas estru-
turas sociais, que não podem ser confundidas, nesse sentido, com o que
resulta delas. Nesse aspecto, tais estruturas são chamadas por Habermas
ão

também de sistema de regras ou padrões de racionalidades (NOBRE;


REPA, 2012, p. 20).
s

Concomitante a discussão das regras e estruturas sociais que regimentam


ver

a dinâmica social encontramos melhores acepções que pelos quais pode-


mos compreender o empreendimento reconstrutivo enquanto uma “operação
crítica”. Sabemos que corriqueiramente a palavra “operação” traz consigo
perspectivas instrumentais que delimitaria modo preciso e específicos de
execução. Mesmo não negligenciado essa condição, Repa (2012) esclarece
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 649

que atividade crítica articula suas operação por dois pressupostos: por um
lado, reconhecer na imanência dos conhecimentos as contradições entra suas
possibilidades teóricas e reais efetividades de suas discussões, os seja seus
déficit teóricos; por outro lado, o resultado de seus deficts, devemos situar
quais são os limites de um arcabouço teórico, referindo-se aos seus limites
explicativos de sua abordagem teórica. É partindo desses dois pressupostos
que a condição operativa de reconstrução volta-se sobre as possibilidades

or
teóricas que podem ser desenvolvidas a partir de um conjunto simbólico, como

od V
uma teoria social, seja pelas delimitações de uma teoria ou mesmo o defict

aut
de seus discursos e discussões. Logo, a condição prática da reconstrução se
efetiva pelos interesse da aplicação de uma determinada operação de criticar.

R
Efetiva-se quando reconstruímos, pela atualidade da teoria no reconhecimento
de seus limites, as “[...] regras que permitem determinadas operações simbó-

o
licas, ou seja, visando descobrir um potencial de razão e de explicação não
aproveitado praticamente” (REPA, 2012, p. 61).
aC
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As acepções que desenvolvemos acima enquanto as operações de uma


crítica organizam o projeto reconstrutivo que singulariza a atividade intelectual
da Teoria Crítica de Habermas. As acepções que resgatamos acima são frutos
visã
da reflexões de Nobre e Repa (2012) quando nas mais diferentes abordagens
e estratégias dos trabalhos teóricos de Habermas encontraram um conjunto
implícito de ideias e estratégias que permitem trabalhar teorias e discursos
de maneiras distintas como instrumentalmente se trabalha quando se idea-
itor

liza uma pesquisa teórico-bibliográfica. Em um artigo interessante, Boccato


a re

(2006) resume a realização da pesquisa teórico-bibliográfica pela elabora-


ção dos fichamentos advindos das leituras feitas. Acredita que o processo de
fichamento poderá criar as condições para seleção definitiva e “a elaboração
da redação do trabalho científico” (BOCCATO, 2006, p. 268). Ora, em nossa
par

perspectiva os fichamentos não deixam de possuir sua importância, entretanto


somente tornam-se potentes quando desde a escolha dos primeiros achados
Ed

na leituras pelos discursos de um texto, o contexto de sua produção é levado


em consideração. Ou seja, é importante considerar que todos os discurso de
produções teóricas “estão marcados de um modo particular por seus contextos
ão

históricos” (HABERMAS, 2015, p. 21).


Dentro das diversas metodologias presentes nas pesquisas em Psicologia
s

Social Crítica, especificamente na construção e fortalecimento do projeto


ver

teórico epistemológico do Sintagma Identidade-metamorfose-emancipação,


temos desenvolvidos investigações de cunho epistemológico discutindo as
intersecções entre as teorias críticas contemporâneas e a Psicologia Social,
sobretudo quando a primeira pode viabilizar um crítica as novas formas e
configuração de capitalismo contemporâneo (LIMA, 2017; LIMA 2018).
650

Comprometidos com a atitude crítica e interessados pela construção de vias


de emancipação, temos nos apropriado e nos aproximados dos referenciais
teóricos do projeto reconstrutivo de Habermas quando, ao nos apropriarmos
de metodologias tradicionais, viabilizamos um prática de pesquisa que não
se contente com um mera descrição da realidade, mas procure questionar as
formas de manutenção de naturalização e instrumentalização da realidade
buscando sinalizar vias, meios e estratégias de (re)construção de um mundo

or
autônomo com indivíduos apropriados de suas existências (SOUZA FILHO;

od V
SANTOS, 2017; SOUZA FILHO, 2017) .

aut
Dentro de nossa pesquisas, temos implicado criticamente a técnica de
fichamento na pesquisa bibliográfica resgatando duas referências da obras de

R
Habermas que julgamos importantes para uma operação crítica a partir de um
pesquisa reconstrutiva: (com)texto, trabalhado no livro “Textos e Contextos”,

o
e discurso/discussão do livro “Pensamento pós-metafísico” (DUTRA, 2015,
HABERMAS, 1990; HABERMAS, 2015).
aC

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Em “Textos e contextos”, Habermas (2015) nos ensina que ao problema-
tizar as linhas argumentativas de um texto, estamos questionando as condições
históricas que demarcam a lógica produtiva de seu próprio contexto discursivo.
visã
Trata-se de evidenciar, conforme assinala Dutra (2015, p. 11), como um con-
texto confere uma “forma especial” (do autor) ao conteúdo argumentativo do
texto em questão. Problematizar o contexto, dentro de uma crítica reconstru-
tiva, significa situar a condição genética de produção textual-argumentativa.
itor

A reconstrução, pela crítica dos contextos, assim, “pretende transformar o


a re

saber implícito e intuitivo (saber pré-teórico) incorporado no uso daquelas


regras em um saber explícito (saber teórico)” (NOBRE; REPA, 2012, p. 25).
Ela deve evidenciar a lógica operante na construção dos discursos.
Vale salientar que na seleção de recortes ou citações de um texto, deve-
par

mos compreender que não se trata de um levantamento de sintético da teoria


abordada. A seleção de citações diretas ou indiretas deve ser capaz de realizar
Ed

uma crítica dos textos e dos contextos, de forma a reconstruir a dinâmica dos
interesses dos conhecimentos ai presentes. Sobretudo, quando a leitura que
realizamos nos permite sair de uma de posição receptiva, ou seja passiva,
ão

sobre a teoria estudada, para um empreendimento ativo e (re)construtivo de


novas acepções sobre a realidade a partir do que tradicionalmente se conhece.
s

Habermas melhor esclarece essa passagem em “Pensamento Pós-metafí-


ver

sico”, pelas implicações da reviravolta pragmática da linguagem, distinguem


os conhecimentos por dois níveis de articulação linguística. Segundo Haber-
mas (1990), as formas racionais de inteligibilidade na modernidade tenderam
muito a construção de conhecimentos sobre a égide de um conceito forte de
teoria, quando desprezaram qualquer forma de intersecção mundana, como
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 651

no materialismo, empirismo e pragmatismo, na formulação do conhecimento.


Sua aproximação está relacionada ainda as antigas formas de vida de con-
templação do mundo, onde “A teoria exige o abandono do enfoque natural
mundano e prometo o contato com extraordinário” (HABERMAS, 1990, p.
42), ou seja, interpretações idealista sobre as formalidades do mundo. A con-
dição teorética do conhecimento, na sua atitude contemplativa, permanecem
presa na tradição metafísica do conhecimento, acreditando nas competência

or
da consciência de mergulhar na profundidades de suas ideias sejam capaz de

od V
evidenciar as faces obscuras de sua própria identidade.

aut
Assim se fecha o círculo de um pensamento da identidade, que se intro-
duz a si mesmo na totalidade que pretende abranger, cuidando, portanto,

R
de satisfazer à exigência de fundamentar todas as premissas a partir de
si mesmo. A independência da condução teórica da vida sublima-se na

o
moderna filosofia da consciência, assumindo a forma de uma teoria que
aC
se fundamenta sobre si mesma (HABERMAS, 1990, p. 42).
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Por outo lado, com a reviravolta pragmático linguística, onde as idealiza-


ções caem por chão, destranscendentalizam-se rumo a sua condição mundana,
visã
o conhecimento passa a ser reconhecido pelos contornos de seus textos e con-
textos de suas realizações. Mas, sobretudo, cada conhecimento materializa-se
enquanto discurso praticado por uma comunidade com seu conjunto de prática
itor

e ações que conferem significados e validades pelas ações ai construídas. “A


a re

inserção das realizações teóricas em seus contextos práticos de formação e de


aplicação desperta a consciência para a relevância dos contextos cotidianos do
agir e da comunicação” (HABERMAS, 1990, p. 43). Ou seja, é o momento
da construção de discursos clarificadores que viabilizam possibilidades de
entendimento esclarecedores do mundo enquanto uma realidade produzida
par

pela historicidade das práticas que a constitui. Sobretudo, no conhecimento,


Ed

enquanto discurso, narrativas e oralidades dos textos e contextos:

[...] esconde-se realmente uma discussão sobre a consistência e a enverga-


ão

dura das velhas verdades que ainda podem ser assimiladas criticamente,
mas também sobre o modo de transformação do sentido pelo qual devem
passar as velhas verdades no caso de uma apropriação crítica (HABER-
s

MAS, 1990, p. 24).


ver

A produção de um saber passa a ser contextualizado a partir de uma


história, atravessada pelas contingências do tempo. Aquilo que seria extraor-
dinário passa a ser visto como algo normal que é produzido pelo seu próprio
mundo. A suposta necessidade de neutralidade para conhecer cede lugar para o
652

esclarecimento da intervenção dos conhecimentos, situando o mundo segundo


seus interesses particulares (HABERMAS, 1990).
Ora, podemos observar que o método reconstrutivo em Habermas ofe-
rece enquanto uma teoria normativa da dinâmica social. As discussões dos
seus processos de significação permitem situarmos a dinâmica que atravessa
a própria estrutura do mundo da vida e as relações humanas, com algumas
intervenções sistêmicas (SOUZA FILHO, 2017). Cada bibliografia não se

or
resume apenas a uma fonte a ser estuda para fichamentos que, por ventura, for-

od V
talecerá argumentos por citações diretas ou indiretas. Segundo Dutra (2015),

aut
sobre diferentes textos filosóficos e psicossociológicos, diz que Habermas
busca compreender os conteúdos normativos explícitos e implícitos em cada
discurso. Ou seja, que ele trabalha cada argumento a partir da dinâmica de

R
sentidos e significados que o texto pretende comunicar. Assim, o empreendi-
mento crítico da Reconstrução deve operar na desnaturalização dos discursos

o
sobre a realidade, ao mesmo tempo em que deve comprometer-se com uma
aC

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produção de conhecimento que (re)conheça os fragmentos de emancipação
das formas de vida comprometidas em (re)existir.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 653

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O MAPA IMPOSSÍVEL: sobre o rigor
do decalque e a arte da cartografia

or
Thiago Cardassi Sanches
Márcio Alessandro Neman do Nascimento

od V
aut
“Essa foi uma das coisas que aprendemos no seu país: como fazer

R
mapas [...]. Mas nós demos aos mapas um emprego muito mais amplo
[...]. Construímos o mapa do país na escala de uma milha para milha!”

o
“E vocês o utilizaram muito?”, eu perguntei.
“Ele nunca foi aberto, até hoje [...]. Os fazendeiros se
aC
opuseram, dizendo que o mapa cobriria todo o nosso território
e impediria a recepção da luz do sol! Por isso, atualmente,
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usamos o nosso próprio território como mapa do país, e eu lhe


visã
asseguro que ele funciona muito bem”. [Lewis Carroll] 127

Conta-se que em um certo império, a Arte da Cartografia chegou a


tamanha perfeição que os mapas tornaram-se cada vez maiores e mais rea-
itor

listas ao ponto da obsessão dos cartógrafos levar à construção de diagramas


a re

em tamanho real que representavam com fidelidade o território completo.


Nessa época, os mapas do império coincidiam exatamente com seu território
em uma escala de “um por um”. Entretanto, com a passagem do tempo, as
gerações seguintes acreditaram que um mapa de tamanhas proporções era
par

inútil devido à sua dificuldade de manipulação e, sem piedade, lançaram


esses mapas ao deserto, onde ainda sobrevivem aqui e ali suas ruínas128 .
Ed

Esse relato fantástico denuncia certa parte de pretensão que pode acometer
os cartógrafos em sua ânsia pela representação de um território. Mas seria
ão

o mapa uma cópia perfeita daquilo que lhe deu origem? Ou ao menos uma
cópia fiel? Um mapa é tão melhor quanto corresponda ponto a ponto com
a realidade que representa? Ou será que, no final das contas, nenhum mapa
s

teria essa capacidade de totalização?


ver

Para uma ciência rigorosa dos mapas, que reproduza com fidelidade total
os elementos de um território, alguns requisitos fazem-se necessários para
se atingir com sucesso determinada façanha. Em primeiro lugar, um mapa
que tenha a pretensão de coincidir com seu território deve ser construído na
127 CARROLL, Lewis. Algumas aventuras de Sílvia e Bruno. São Paulo: Iluminuras, 1997
128 BORGES, Jorge Luis. Do rigor na ciência. In: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. v. 2. São Paulo: Globo,
1999.
656

escala “um por um” e, portanto, ser coextensivo a ele. É fundamental que
seja, de fato, um mapa e não um decalque, pois seria inadimissível cobrir
o território com um material maleável que imprimisse nele o seu relevo129
. Nesse caso, poderíamos falar de empacotamento ou selagem ao invés de
um verdadeiro mapa. Isso porque o mapa é muito diferente de um decal-
que. O decalque obedece a um princípio genético que o vincula à estruturas
profundas que devem ser descobertas para, então, serem traduzidas em uma

or
representação gráfica que coincida com, ou ao menos simule, a realidade

od V
mapeada130 . Sua lógica se limita a um modo de funcionamento especular no

aut
qual o que está embaixo deve estar necessariamente em cima, estabelecendo
uma correlação estática e segura daquilo que, pelos sentidos da experiência,
é puro movimento e instabilidade.

R
Com frequência, toma-se como regra que um mapa perfeito deve repre-
sentar com o máximo de detalhamento possível e para isso deve cobrir não

o
apenas o relevo e a arquitetura de um território, mas também os artefatos
aC

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dispostos sobre ele e a posição exata das pessoas que nele habitam. Contudo, a
satisfação desses requisitos levará, fatalmente, a dificuldades práticas e para-
doxos teóricos intransponíveis que merecem ser enumerados. Em primeiro
visã
lugar, para que se corresponda ponto a ponto com seu território, um mapa
de tamanha proporção precisaria ser içado e estendido sobre o território com
postes de altura idêntica em seus pontos culminantes. O mapa só poderia ser
consultado ao se olhar para cima, desviando o olhar do próprio território.
itor

Disso decorre o incoveniente de que cada porção do mapa só poderia ser


a re

observada se estivesse estendida sobre a sua porção correspondente e, assim,


as pessoas não poderiam obter mais informações diferentes da localização
em que já se encontravam no momento da consulta 131. Guiar-se exclusiva-
mente pelo mapa implicaria desviar a atenção da própria vida, seguindo como
par

verdadeiro aquilo que, por definição, constitui-se como duplo ou réplica


da existência, aquilo que surge pela igualação do não-igual e que, agora,
Ed

descobre-se uma designação uniformemente válida e impositiva do lugar e


modo que deve ocupar cada coisa 132.
Imaginemos que, talvez, essa dificuldade pudesse ser solucionada com
ão

uma estratégia de sobrevoamento do mapa, porém isso não o tornaria ape-


nas inútil (pois sobrevoar o mapa do alto teria a mesma eficácia que fazê-lo
s

sobre o próprio território) como também representaria um mapa infiel, pois


ver

129 ECO, Umberto. Da impossibilidade de construir a carta do Império em escala um por um. In: ECO, Umberto.
O segundo diário mínimo. Rio de Janeiro: Record, 1994.
130 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: Rizoma. In: DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia 2, v. 1. São Paulo: 34, 1995.
131 ECO, op. Cit.
132 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira. São Paulo: Hedra, 2008.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 657

a pessoa que realizasse essa “consulta aérea” estaria ao mesmo tempo fora
e também retratada no mapa, o que faria dele uma representação incorreta.
Além do mais, depois de traçado o mais perfeito mapa de um território, as
pessoas que o povoam não poderiam se movimentar, pois qualquer mudança
de posição alteraria a fidedignidade do mapa, ao menos que se procedesse
uma correção contínua e em tempo real com base nas modificações ocorridas
no território, o que obrigaria a população a deslocamentos que o mapa não

or
teria como registrar. Se as pessoas não puderem alterar suas posições, o mapa

od V
carecerá de manutenção e reparos depois de atingido pelas intempéries do

aut
clima e do forte sol e acabará se danificando, o que culminará em uma nova
cópia imperfeita da realidade133 .

R
Toda essa especulação a respeito da possibilidade de construção de um
mapa em uma escala que seria, ao menos teoricamente, a mais perfeita repre-

o
sentação de um território, nos é útil para que possamos extrair três proposições
lógicas que derivam por encadeamento dedutivo da problemática exposta.
aC
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A primeira delas é que toda pretensão de mapa em escala “um por um” traz
sempre uma representação infiel do território, o que implica na impossibili-
dade de produção de um mapa idêntico à realidade cartografada. Em segundo
visã
lugar, no momento em que se empreende a realização do mapa, o território
se torna irrepresentável. Terceiro, todo mapa “um por um” de um território
determina o fim do próprio território e, portanto, é mapa de outra coisa que
itor

não o território134 . Dessa maneira, nenhum mapa corresponde ponto a ponto


a re

com aquilo que mapeia, como também não esgota suas possibilidades, já que
não é capaz de representar tudo de um território. Uma cartografia adequada
pode resultar em um índice de contiguidade com aquilo que lhe deu origem,
o que justifica a sua utilização, porém todo mapa é sempre uma visão parcial
que está submetida à perspectiva subjetiva de seu cartógrafo. Por essa razão,
par

todo mapa é ao mesmo tempo mapa de alguma coisa e mapa do próprio car-
tógrafo, com suas premissas, habilidades, visão de mundo, etc. Esse processo
Ed

faz com que esteja incluída em toda representação, em escala reduzida, o


mapa do mapa por meio do qual é possível rastrear as escolhas, as rupturas e
ão

continuidades que o cartógrafo optou por fazer 135.


Disso decorre que o mapa seja, ao mesmo tempo, o instrumento de
medição descrito pelos dicionários e também outra coisa além do que o
s

senso comum determina, pois o mapa não é apenas uma ferramenta de traba-
ver

lho, mas um conceito. Perseguir os contornos desse conceito sem, contudo,

133 ECO, op. Cit


134 Ibid.
135 KORZYBSKI, Alfred. Science and Sanity: an introduction to non-aristotelian systems and general semantics.
Nova Iorque: Institute of General Semiotics, 2000.
658

resumí-lo a uma forma única e acabada é, portanto, o objetivo deste ensaio.


Para começar, é preciso insistir que a natureza do mapa confeccionado pelo
cartógrafo se difere em muito do método da decalcomania. O decalque é
uma técnica de transferência que busca reproduzir um mesmo desenho em
diferentes suportes. Sua aplicação prática no traçado de mapas resultaria
em uma tentativa de réplica do espaço e da posição do que nele se encontra
no exato momento de sua reprodução. De certa maneira, ele funciona como

or
a fotografia ou uma chapa de raio-x, que precisa sacrificar todo e qualquer

od V
movimento em favor da replicação do real. Entretanto, se partirmos do pres-

aut
suposto que a vida é aquilo que só pode existir no incessante movimento do
devir e em sua inscrição no fluxo do tempo, o decalque não conseguirá captar
a parte da realidade que mais nos interessa: o processo da vida se fazendo a

R
todo momento. E talvez seja próprio da vida estar permanentemente rasgando
as tentativas de decalques cognitivos pré-fixados que tentam, a todo custo,

o
aprisioná-la. Dessa forma, ou o decalque mata a vida, ou a vida invalida a
aC
pretensão do decalque, como vimos na fábula dos mapas de proporção “um

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por um” abandonados no deserto.
Mas enquanto o decalque investe na reprodução do real, a prática carto-
gráfica constitui-se, por sua vez, em um processo de experimentação ancorada
visã
no real, e que carrega todas as “impurezas” e dificuldades que essa experiên-
cia pode oferecer. Por isso é uma prática sincera. A cartografia assume sua
parcela de responsabilidade na recriação de seu mundo ao reconhecer que um
itor

mapa é sempre uma produção fragmentária e comprometida com os modos de


a re

existência do cartógrafo, ou seja, com os filtros de subjetivação e limitações


temporais de quem o produz. Por outro lado, o decalque funciona por meio
de uma tendência que busca incessantemente rodear uma coisa ou assunto
para deles reproduzir uma imagem. É, de fato, possível rodear um território
por diversos lados, porém só se pode estar em uma posição determinada a
par

cada momento. O decalque busca somar todos os pontos de vista possíveis de


um objeto para, assim, reconstituir a impressão de sua totalidade, porém esta
Ed

se trata de uma reconstituição artificial que ainda conserva o distanciamento


seguro e protetor do manto da imparcialiade. É por isso que diremos que
constitui um método analítico, pois ele decompõe a realidade em fragmentos
ão

somente para depois reuní-los novamente em um suporte gráfico que pretende


constituir um Todo verídico136 . Mas, com isso, o decalque ignora que o Todo
s

não se define por si próprio e sim pelas relações que se atribuem entre suas
ver

partes. Todo conjunto é aberto em alguma parte, o que faz com que o Todo
se divida em seus elementos e, concomitantemente, que os elementos percam
seus contornos e se desmanchem no Todo (disjunção-inclusiva).

136 BERGSON, Henri. O mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista.... In: BERGSON,
Henri. A evolução criadora. São Paulo: UNESP, 2010
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 659

Dessa forma, o decalque constitui um método moral, pois a moral cons-


titui um conjunto de regras coercitivas que afirmam o que é certo ou errado,
verdade ou mentira, a respeito de um determinado território e que são “aplica-
das” sempre de fora para dentro seguindo um consenso estabelecido137 . Que
esse consenso provenha da imaginação ou da ciência, pouco importa. Ainda é
uma prática de “etiquetagem” que percebe fixidez onde só existe movimento.
É um tipo de conhecimento que serve às necessidades de gregariedade do

or
humano, já que é uma prática utilitarista que organiza o pensamento sobre

od V
determinado tema a fim de assegurar um entendimento único e conclusivo de

aut
seu conjunto. Para isso acontecer, é necessário que se traduza o mundo e seus
acontecimentos em designações uniformes e se pretenda que a representação,
seja gráfica ou discursiva, coincida com a experiência. Mas imagem e lingua-

R
gem não passam de apenas uma metáfora dos acontecimentos e podem dizer
apenas a sua parte atualizada. É da inobservância do que é singular na vida

o
que podem se formar as representações, perdendo-se em experiência singular
aC
para ganhar em capacidade de comunicação138 .
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Ao contrário disso, uma prática que se afirme cartográfica funciona como


uma pequena máquina a-significante, uma experimentação em intensidade. O
resultado de um mapa dessa natureza depende fundamentalmente dos encaixes
visã
que se fazem entre os contornos da experiência e os processos de subjetivação
do cartógrafo. Essa tendência intuitiva de conhecimento diz respeito a um
esforço constante em se colocar, não ao redor, mas imediatamente em meio
itor

às coisas. Afinal, pensar entre é muito diferente de pensar sobre. Colocar-se


a re

no meio de um processo significa acompanhá-lo tão perto quanto possível,


seguir seus movimentos enquanto eles se fazem. Só podemos tentar apreender
um processo enquanto ele dura, uma vez que, depois de terminado, tudo o que
resta dele é apenas um eterno falar sobre o que um dia foi. A duração surge,
portanto, como a própria substância da realidade139 . O que é real é o puro devir
par

no qual todas as coisas mergulham e onde todas as durações se encontram.


Por isso o intelecto representativo sempre está em defasagem em relação à
Ed

duração intensiva da existência, ele capta apenas estados quando a vida é,


em sua essência, movimento. Uma processualidade imanente da cartografia é
aquela que se propõe a captar o território não naquilo em que ele conserva de
ão

estável, mas justamente nos micromovimentos que estão reconstituindo a cada


acontecimento as configurações desse território. Essa apreensão deve ser feita
s

no mesmo momento em que a experiência se dá, uma vez que “não se pode
ver

atingir a duração por um desvio: é preciso instalar-se nela de uma vez” 140.

137 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: 34, 1992.


138 NIETZSCHE, op. cit.
139 BERGSON, op. cit
140 Ibid. p. 325
660

Diante do exposto, o cartógrafo sabe de antemão que a realidade, o


“território em si”, é algo inapreensível, o que faz com que seus mapas digam
menos a respeito da permanência de estados do que das relações de forças
que se agitam e atravessam esse campo no qual objetos, seres e potências se
encontram. Consequentemente, não apenas as paisagens geográficas podem ser
mapeadas, mas também as paisagens afetivas, artísticas, psicossociais e toda
sorte de micromovimentos que só existem na duração de um acontecimento.

or
Essa característica concede à prática cartográfica um campo inesgotável de

od V
experimentação, desde que observadas as características e preconceitos que

aut
envolvem a produção de mapas. Um mapa da realidade, diferente de sua
contraparte decalcada, deve ser livre de qualquer desejo de representação.
Se o decalque formaliza um projeto pensado, o mapa configura-se enquanto

R
um agir inato, sem finalidade ou intenção, mesmo que ao final de seu traçado
estejam presentes linhas de coincidência entre o traço do mapa e as possíveis

o
utilidades de seu decalque 141. Pois não é verdade que o decalque seja, em si
aC
próprio, uma prática equivocada. Nada impede, inclusive, de reconhecer sua

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necessidade. Contudo, sua limitação jaz no fato de que ele só pode se con-
tentar em reproduzir o mesmo a respeito de seu objeto, aquilo que já estava
dado e que foi ocultado apenas para ser novamente revelado. O decalque já
visã
conhece seu destino e finalidade desde seu princípio. Ao contrário, o mapa
é pura experimentação dos devires que reverberam em um dado território,
agitam-no de uma ponta a outra e o fazem tornar-se outra coisa imprevisível
itor

que só surge conforme o mapa é traçado. Consequentemente, a cartografia


a re

não pode ser considerada um método, trata-se sim de uma processualidade,


uma condução, uma ética do pesquisador que pode ser conjugada com outras
metodologias. Afinal, todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam
múltiplas142 . Se o decalque reproduz um senso comum, o mapa cria um corpo
comum graças à afinidade que se estabelece entre a prática do cartógrafo e o
par

traçado do território. De fato, a invenção de um corpo comum é aquilo que


Ed

torna um espaço qualquer em um verdadeiro território. Assim, é necessário


que o espaço seja antes desterritorializado para que possa ser retorritorializado
no mapa. Por essa razão, espaço e mapa não coincidem necessariamente, con-
ão

tudo guardam uma relação de continuidade na qual fazem passar as mesmas


potências de um ao outro.
O perigo dos mapas decalcados que se pretendem fidelíssimos ao terri-
s

tório é a sedução de se imporem como substitutos do real. Sob a chancela de


ver

um discurso de verdade, esses mapas se insinuam como arautos da salvação,


os únicos corretos, subsidiando visões muito específicas da realidade. Ao
141 DELIGNY, Fernand. O Aracniano e outros textos. São Paulo: n. 1, 2015.
142 ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre:
Sulina; UFRGS, 2016.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 661

vestirem o traje do verídico eles passam a se proliferar de forma indiscri-


minada e espalham-se por contágio, sobretudo na era da internet, quando as
ferramentas de rápido compartilhamento facilitam sua distribuição. Adotados
como modelo explicativo da realidade por pessoas que, geralmente, já pen-
savam da mesma forma, esses mapas concedem respostas fáceis e definitivas
para fenômenos complexos e transitórios, matando qualquer possibilidade de
experimentação de um território e, com ela, a oportunidade de pensar dife-

or
rente. Se suas imagens se correspondem com aquilo em que já acredito, elas

od V
se tornam suficientemente poderosas para tomar o lugar do próprio real, o que

aut
evidencia a natureza autorreflexiva dos mapas. Pois os mapas não dizem o
próprio território, e sim a perspectiva de seu cartógrafo a respeito do territó-

R
rio que, com isso, carrega grande parte de seus valores e produção subjetiva
para o mapa. Esse cartógrafo pode ser este ou aquele autor, um determinado
grupo social, uma linguagem, uma corrente política, uma matriz religiosa, a

o
biologia, a ciência, etc143 .
aC
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Nesse caso, ao invés de termos esquecidos os mapas do império aban-


donados no deserto, estaríamos justamente habitando sobre eles, acreditando
que se tratam do próprio território. O que teria se degradado é o princípio de
visã
realidade baseado na experiência para dar lugar a um consumo de modelos de
verdade que são vendidos aparentemente de forma gratuita pelos mais variados
cambistas de internet e vedetes da mídia. O território, então, não mais prece-
deria o mapa, mas é o mapa que agora precede o território e o substitui, pois
itor

ele não mais encobre a realidade, ele se tornou a própria realidade. O processo
a re

de autonomia na experimentação da existência, da capacidade de se traçar


os próprio mapas, seria justamente aquilo que foi abandonado, tornando-se
farrapos ao longo do deserto do próprio real. A proliferação vertiginosa dos
decalques, dos modelos prontos oferecidos como supostos mapas do real,
par

consolidaria uma era de simulação que liquida os referenciais baseados na


experimentação e os ressucita artificialmente nos sistemas de signos .
Ed

O acúmulo de conhecimentos representativos pode, assim, criar um duplo


da realidade que se coloca em seu lugar. Muitas disciplinas só são capazes de
produzir suas teorias ao paralisar o movimento vital e recortar de um Todo
ão

complexo e inseraparável conjuntos semióticos muito específicos que serão


analisados e colados novamente de forma a reconstituir este Todo na forma
s

de conhecimento sistêmico. Nessa perspectiva, para que o conhecimento viva


é necessário que seu objeto morra. Paradoxalmente, somente ao desligar-se
ver

do movimento de seu objeto é que o conhecimento pode se afirmar em sua


forma mais pura. A crítica nietzscheana já havia denunciado esse caráter mor-
tificador da cultura moderna que se traveste de cultura, mas que não passa de
143 KORZYBSKI, op. cit
662

uma repetição artificial de conhecimentos, valores e acontecimentos passados.


Em toda espécie de representação cultural permanece latente uma relação
intrínseca entre cultura e interioridade (tal qual pedras indigeríveis de saber
que arrastamos conosco) ou exterioridade (como máscaras sociais vestidas
quando queremos ser reconhecidos). Esses entendimentos a respeito da cul-
tura conservam, mas não geram vida, a qual se retrai no interior ou exterior
da representação fazendo com que a cultura se assemelhe muito mais a um

or
saber sobre o mundo do que com a própria vida144 .

od V
Para escapar dessa armadilha, a prática cartográfica olha para esses mes-

aut
mos conhecimentos sem, contudo, ver a mesma coisa. Podemos olhar, mas
“olhar não é ver”145 . O verbo ver, com frequência, exige um complemento
que o defina ou explique. Quem vê, vê sempre alguma coisa. Por outro lado,

R
o verbo olhar se adequa melhor a uma pura experimentação sensorial. No sen-
tido intransitivo, o olhar dispensa definições, constituindo-se apenas enquanto

o
um puro vagar pela paisagem que observa diante de si, já que vagar é um
aC
infinitivo que não requer complemento. Em contraposição aos “mapas do

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ver”, esses “mapas do olhar” constituem um outro tipo de máquina semiótica
inteiramente diferente do modo analítico de se produzir conhecimento. Um
modo que não se define, mas funciona de acordo com outros regimes de sig-
visã
nos e outros regimes de corpos 146. O homem do conhecimento sempre quer
alguma coisa e nada compreende fora da definição, não se reconhece. Se não
consegue captar uma finalidade nas coisas, fica desamparado, uma vez que,
itor

sob o princípio da finalidade, tudo deve possuir um propósito e explicação.


a re

Por isso, a cartografia não pode ser dita uma prática intencional. A intenção
exige um projeto ou programa para se chegar em um resultado, o que acaba
por ocultar durante o processo outras possibilidades impensadas, até mesmo
impensáveis147 . A cartografia, por sua vez, também alcança resultados, ainda
que não possua qualquer intenção de prevê-los em favor de que se mantenham
par

em aberto durante o processo de experimentação. Somente dessa forma o


Ed

novo pode aparecer.


Os resultados obtidos pela prática cartográfica são da ordem do encon-
tro, da surpresa, do inesperado. Quando se menos espera, o mapa começa
ão

a ser traçado e continua indefinidamente, fazendo com que o cartógrafo se


questione a todo momento se é ele quem traça ou se é traçado. Isso porque o
mapa não é uma solução, mas uma necessidade vital, traça-se mapas para se
s

continuar vivo. O mapa mantém, assim, uma relação de contiguidade com a


ver

144 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água; 1991.


145 NIETZSCHE, op. cit.
146 DELIGNY, op. cit. p.72.
147 MIGUEL, Marlon. Guerrilha e resistência em Cévennes. A cartografia de Fernand Deligny.... Revista Trágica:
estudos de filosofia da imanência. Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 57-71, 2015.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 663

vida, relação de contaminação. Porém não coincide perfeitamente com ela.


Reside justamente nesse fato a potência da cartografia, potência de não-repe-
tição. Não temos acesso a natureza profunda das coisas que nos cercam, mas
podemos diagnosticar como elas se relacionam com o mundo que habitam
e a maneira como afetam umas às outras. Somente nesse sentido, imagem e
linguagem deixam de representar e podem ajudar a traçar mapas variáveis
de uma realidade que também é variável. Mas entre o que a imagem mostra

or
e o que a linguagem fala não pode haver homogeneidades, apenas uma série

od V
de cruzamento, ataques, flechas lançadas de um plano ao outro, uma ver-

aut
dadeira batalha148 . Uma prática cartográfica não teria por objetivo superar
essas diferenças em favor de uma média ou de um senso comum pertinente

R
a todas as formas, mas dizer em que exatamente consistem essas diferenças,
determinando a medida de sua variação.
Dessa forma, decidimos que um mapa que se pretenda nas proporções

o
de “um por um” não apenas é uma façanha inviável, mas também se mostra
aC
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uma maneira pouco eficaz de apreensão da realidade, já que não existe real
sem mediação. Todo cartógrafo carrega em si seus próprios filtros da subjeti-
vação que ele utiliza, mesmo inconscientemente, na fabricação de seus mapas,
visã
motivo pelo qual o mapa não reproduz a realidade, ele a recria segundo outros
modos de existência possíveis. Por esse motivo, a criação de mapas mantem-se
enquanto um processo em aberto, uma experiência variável que se conecta à
realidade em diferentes pontos de passagem, produzindo resultados que não
itor

podem ser previstos, uma vez que é próprio do real estar sempre em movi-
a re

mento. Nada de representação estática como exige o decalque. A reprodução


dos decalques remete a uma ambiciosa competência, enquanto a produção dos
mapas está relacionada à uma questão de performance. Isso porque o mapa é
um processo vivo, reversível, suscetível de receber modificações constante-
par

mente 149. Ao rigor de uma pretensa ciência dos decalques, a cartografia coloca
em questão a criação de uma arte dos mapas, arte do cartógrafo, sem com
Ed

isso abandonar os princípios de regulação do conhecimento. Dessa maneira,


a rigorosidade na confecção de mapas da realidade não está relacionada à
correspondência ponto a ponto com o que mapeia, mas configura-se em um
ão

compromisso sincero com a mobilidade que é característica da existência.


Surge, então, enquanto uma ética do pesquisador, cujo rigor não se expressa
s

apenas por regras e formalismos, mas na sinceridade para com suas limitações
e pela simpatia com o objeto de interesse que ele cartografa, reconhecendo
ver

que não existe divisão arbitrária entre sujeito e objeto, mas um continuum de
forças que os vincula.

148 DELIGNY, op. cit.


149 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
664

REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água;
1991.

BERGSON, Henri. O mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão

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mecanicista. Relance sobre a história dos falsos sistemas. O devir real e o
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od V
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R
Completas. v. 2. São Paulo: Globo, 1999.

CARROLL, Lewis. Algumas aventuras de Sílvia e Bruno. São Paulo: Ilumi-

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nuras, 1997.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: 34, 1992.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: Rizoma. In: DELEUZE,


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a re

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Record, 1994.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2012.
par
Ed

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systems and general semantics. Nova Iorque: Institute of General Semio-
tics, 2000
ão

MIGUEL, Marlon. Guerrilha e resistência em Cévennes. A cartografia de


Fernand Deligny e a busca por novas semióticas deleuzo-guattarianas. Revista
Trágica: estudos de filosofia da imanência. Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p.
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ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas


do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina; UFRGS, 2016.
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO EM
TERRITORIALIDADES URBANAS:
deslocamentos decoloniais na pesquisa-

or
inter(in)venção em psicologia

od V
aut
João Paulo Pereira Barros
Lara Brum de Calais

R
Dagualberto Barboza Silva
Carla Jéssica de Araújo Gomes

o
aC
Introdução
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O presente capítulo teve como ponto de partida o convite para a mesa


visã
“Pesquisa-intervenção, cartografia e o acompanhamento de processos de sub-
jetivação em territorialidades urbanas”, na ocasião do evento “Conversações
em Arqueogenealogia, Esquizoanálise e Análise Institucional”. Seu objetivo
itor

é traçar uma cartografia dos movimentos de pesquisa e intervenção, realiza-


a re

dos no contexto de Fortaleza/CE, no âmbito do nosso grupo de pesquisas,


o VIESES - Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão
Social e Subjetivação, ligado ao Departamento de Psicologia e ao Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
par

Ao traçar esses planos cartográficos de pesquisa e intervenção, dois pontos


serão levantados para discussão ao longo do capítulo: 1) Cartografia de um
Ed

percurso de pesquisa-inter(in)venção do VIESES em territorialidades urbanas


de Fortaleza; 2) Experimentando deslocamentos decoloniais na pesquisa-in-
ter(in)venção em psicologia.
ão

O foco das discussões se deu sobre as pesquisas, intervenções e car-


tografias que buscamos experimentar no contexto cearense e fortalezense,
entre 2015 e 2019, após a finalização de um ciclo de investigações desenvol-
s

vidas pelo VIESES. Esse período foi guiado por uma pesquisa, costumeira-
ver

mente chamada de pesquisa guarda-chuva, intitulada “Juventude e Violência


urbana: cartografia de processos de subjetivação na cidade de Fortaleza”.
Contudo, considerando as intercessões com estudos no campo das filosofias da
diferença, tais como a esquizoanálise, costumamos identificar essa pesquisa a
partir de uma outra imagem de pensamento, vinculando-a à ideia de pesquisa
rizoma (BARROS; SILVA; GOMES, 2020), pois esta produziu diferentes
linhas que formam uma rede que se articula pela busca de problematizar os
666

processos psicossociais que são acionados pelas dinâmicas da violência no


Ceará, das desigualdades, sejam elas raciais, de gênero, socioeconômicas
ou geracionais, e também pelas práticas de enfrentamento que movimentos
e coletivos locais têm experimentado face a essas práticas de violências e a
esses processos desiguais.
Neste sentido, pretendeu-se realizar uma cartografia desse próprio movi-
mento de pesquisar/intervir nas temáticas da violência, sobretudo aquelas

or
que atingem os segmentos infantojuvenis periferizados em territorialidades

od V
urbanas de Fortaleza. Assim como, produzir inquietações sobre as relações

aut
estabelecidas no e com o campo de pesquisa, provocando - a partir da dis-
cussão metodológica da pesquisa-intervenção – possíveis fissuras em modos
universalizantes e instrumentalizados de produção do conhecimento, abrindo

R
espaço para deslocamentos decoloniais em nossas pesquisas.

o
Cartografia de um percurso de pesquisa-inter(in)venção em
aC

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territorialidades urbanas de fortaleza

Delineamos nosso percurso de pesquisa-inter(in)venção no VIESES


visã
em 2015 partindo do posicionamento ético-estético-político no qual não era
possível tocar nossos estudos e trabalhos em psicologia junto a segmentos
infantojuvenis em territorialidades urbanas periferizadas sem considerar a
força avassaladora de eventos que foram se tornando cada vez mais frequentes
itor

no Ceará. Um deles foram as chacinas, como a chacina do Curió (DIÁRIO


a re

DO NORDESTE, 2016), a qual aconteceu no final de 2015 e foi organizada


e executada por policiais. Nesta chacina, 11 pessoas foram mortas e várias
outras foram feridas.
Outro acontecimento- chave foram as transformações e os efeitos das
par

dinâmicas da violência no Ceará, com uma espécie de “faccionalização” dos


conflitos e do crime, não só pela vinda de “facções” 150 de outros estados,
Ed

como Rio de Janeiro e São Paulo, mas também pela criação e fortalecimento
de organizações locais que passaram a tornar cada vez mais fragmentadas
e acirradas as disputas armadas nas periferias de Fortaleza, considerando
ão

as relações dessas dinâmicas da violência nas periferias com as dinâmicas


prisionais (PAIVA, 2019).
Um terceiro fenômeno avassalador se relaciona ao incremento da vio-
s

lência policial e do encarceramento em massa nos últimos anos. De acordo


ver

com dados da Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará, o destino orça-


mentário direcionado à Segurança Pública no estado cresceu 238,4% entre
os anos de 2001 a 2019 (CEDECA-CE, 2020). Em contrapartida, nesse

150 Grupos criminosos ligados ao tráfico de drogas consideradas ilícitas.


PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 667

mesmo período, o investimento na área de assistência social, por exemplo,


foi reduzido, passando de R$314,7 milhões para R$303,6 milhões (CEDE-
CA-CE, 2020). Esse aumento no orçamento na área da segurança pública
no estado tem se refletido, principalmente, na ampliação da chamada polícia
ostensiva, representada pelas polícias militares estaduais, o que aponta um
investimento do governo cearense no fortalecimento de um Estado penal-pu-
nitivo. Apenas entre 2006 e 2019, o orçamento da Polícia Militar no Ceará

or
teve um aumento de 220,82% (CEDECA-CE, 2020). Em paralelo, segundo

od V
nota técnica produzida pelo Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios

aut
na Adolescência (CCPHA), que analisou dados fornecidos pela Secretaria
da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), as mortes por intervenção

R
policial no Ceará cresceram 439% nos últimos cinco anos, atingindo o seu
pico em 2018 com 221 óbitos (CCPHA, 2020a).

o
Os contextos do sistema prisional e do sistema socioeducativo no Ceará
também são bastante preocupantes. Após inspeções realizadas entre fevereiro
aC
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e março de 2019, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura


(MNPCT) elaborou um relatório que denunciou o cenário de hiperencar-
ceramento, violações de direitos e tortura presentes em presídios do estado
visã
(BRASIL, 2019). Além do MNPCT, no início de 2019, sob a coordenação
do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, um grupo composto
por 16 instituições organizou um relatório que além de sistematizar diver-
sas acusações de violações de direitos no sistema penitenciário, listou pelo
itor

menos dez denúncias de mortes suspeitas ocorridas em seis centros de pri-


a re

vação de liberdade no Ceará (CCPHA, 2020b). Nos anos que antecederam


nosso percurso de pesquisa e no próprio curso desta, presenciamos situações
aviltantes também no sistema socioeducativo, incluindo queixas de tortura e
superlotação por parte dos adolescentes e seus familiares, que resultaram em
par

denúncias internacionais contra o estado do Ceará (O POVO, 2016; FÓRUM


DCA, 2017; ANISTIA INTERNACIONAL, 2018).
Ed

Nesse cenário, observamos a ocorrência de um considerável aumento


no número de mortes de crianças, jovens, adolescentes e mulheres no Ceará
(CCPHA, 2020b), mortes estas cada vez mais brutais e espetacularizadas.
ão

Ademais, vale ressaltar que nos espaços em Fortaleza, por exemplo, em que
a letalidade por Covid-19 alcança os maiores índices, os números de violência
s

urbana também são os maiores (CCPHA, 2020c; O POVO, 2020). Isso denun-
ver

cia, então, que a violência está intimamente relacionada a um fenômeno de


precarização sistemática e desigual da vida, sendo a pandemia mais uma das
expressões desse processo que se espraia escancaradamente em territorialida-
des periferizadas constituídas como “zonas de morte” por uma necropolítica
à brasileira (BARROS, 2019).
668

Por seu turno, não era possível realizar a contento nosso trabalho aca-
dêmico sem considerar a força dos movimentos insurgentes e das atuações
micropolíticas de diversos coletivos e movimentos afetados por esses múl-
tiplos vetores e dispositivos necropolíticos. Com efeito, como poderíamos
desenhar uma pesquisa que pudesse acompanhar processos multivetoriais em
seus aspectos macro e micropolíticos e ao mesmo tempo fazer da investigação
um próprio ato inter(in)ventivo de performar realidades outras, articulando

or
questões como violência, territorialidade, política, subjetividade, arte, clínica,

od V
etc? Como poderíamos pesquisar não só sobre esses processos mencionados

aut
anteriormente, mas também nos processos já mencionados? Como podería-
mos conhecer essas dinâmicas instituídas da violência colocando em análise

R
suas condições de possibilidades, seus planos de produção e ao mesmo tempo
acompanhando/compondo/potencializando movimentos e práticas instituintes

o
nas micropolíticas de resistência que visam transformar esse estado de coisas
que aniquila corpos vistos e tratados como coisas e, assim, descartabilizados
aC

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como objetos supérfluos?
É necessário indagar ainda: que dispositivos poderíamos criar e pôr em
ação como máquinas de fazer ver e falar sobre processos que parecem tão
visã
naturalizados por uma Fortaleza indiferentemente branca? Como interpelar a
própria branquitude que, em seus aspectos performaticamente narcísicos e em
institucionalidades, diz frequentemente nos meios de comunicação, nas redes
sociais, nos espaços institucionais de poder: “morreu porque estava envol-
itor

vido”, “era uma alma sebosa, não era um cidadão de bem”? (TORRES, 2017)
a re

Como se as mortes infantojuvenis nas periferias ora não interessasse, por


se tratarem de vidas racializadas e não passíveis de luto (FANON, 2008;
MBEMBE, 2014; 2016; BUTLER, 2016), ora pudessem ser consumidas como
objeto de entretenimento ou até comemoradas nos inúmeros “programas poli-
par

cialescos”, por se tratarem de vidas abjetificadas e anormalizadas, tidas como


ameaça à ordem social colonial-capitalística? Como se aos supostos “envol-
Ed

vidos” (BARROS, 2019) só existissem dois caminhos, segundo declarou um


dos secretários que ocupou a pasta da segurança pública e defesa social do
Ceará no período da pesquisa: “justiça ou cemitério” (G1, 2017).
ão

Frente a esses desafios e a essas indagações, optamos por pensar a nossa


prática de pesquisa no VIESES como pesquisa-inter(in)venção, uma pesquisa
s

participativa que se interroga sobre a vida dos sujeitos, grupos, práticas, ter-
ver

ritorialidades, em seus diversos sentidos e movimentos, interpelando particu-


larmente práticas sociais e institucionais nos planos instituídos e instituintes e
seus efeitos de subjetivação. Esse tipo de pesquisa visa cartografar, colabora-
tivamente, processos de subjetivação acompanhando sua própria produção e
o plano coletivo das forças que os engendra, (re)inventando seus problemas,
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 669

suas caixas de ferramentas teóricas e seus dispositivos metodológicos no pró-


prio processo de pesquisar e habitar/compor territórios existenciais (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015).
A pesquisa-inter(in)venção torna-se um convite a mergulharmos nos
planos coletivos e ao mesmo tempo singulares das experiências, tornando-nos
corpo presente em meio aos movimentos que constituem os campos/planos de
pesquisa. Planos estes que se constituem em territórios existenciais periferi-

or
zados em suas linhas de fluidez e suas linhas de estabilidade, em seus planos

od V
molares e em seus planos moleculares. Trata-se, portanto, de um convite a

aut
não reconhecermos apenas saberes produzidos dentro da academia, mas a
aprenderemos com outros saberes, criarmos dialogicamente outros saberes,

R
inventarmos outras gramáticas a partir da insurreição de saberes assujeitados
dentro e fora da academia por matrizes coloniais de poder, que amplificam

o
epistemicídios e desautorizam pesquisas que rechaçam a objetividade, a repli-
cabilidade e a neutralidade científicas e outras falácias que a modernidade e
aC
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seu lado oculto, a colonialidade, forjou (KILOMBA, 2019).


Com base no nosso percurso nos últimos cinco anos, algumas linhas
foram se destacando nessa pesquisa-rizoma, a partir desse campo problemático
visã
que fomos constituindo no próprio plano da imanência. Destacaremos aqui
três grandes linhas a partir das quais fomos criando alguns dispositivos para
pesquisar-intervir, como grupos – sejam no formato de oficinas ou de rodas
itor

de conversas –, entrevistas – estruturadas, semi-estruturadas ou narrativas –,


a re

acompanhamento de práticas, movimentos e articulações, produções de diários


de campos como narrativas implicadas, andanças, caminhadas comunitárias,
conversas no cotidiano e análises documentais. A primeira dessas três gran-
des linhas visava investigar mais particularmente os aspectos psicossociais
da violência; a segunda linha de investigação, as produções narrativas sobre
par

violência, juventude e resistência; a terceira interpelava práticas institucionais


que se propunham à “prevenção” e ao “enfrentamento” da violência.
Ed

A construção dessas três linhas foi tecida em diálogo com alguns atores
e atrizes sociais no contexto de Fortaleza, como profissionais que atuam com
ão

juventudes e segmentos infanto-juvenis, profissionais de equipamentos cul-


turais voltados aos jovens e que estão localizados em regiões periferizadas
da cidade, como a Rede CUCA 151 e o Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ),
s

profissionais da atenção primária em saúde, especialmente na Estratégia de


ver

Saúde da Família, profissionais das escolas públicas localizadas em regiões

151 Equipamentos públicos que integram a política de juventude da cidade de Fortaleza e oferecem cursos profis-
sionalizantes, em artes, formação audiovisual, atividades culturais, esportivas e, também, educação em direitos
humanos. Esses equipamentos se destinam ao atendimento de jovens de 15 a 29 anos moradores de regiões
com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) e altos índices de homicídios desses segmentos.
670

com altos índices de homicídios e profissionais de organizações-não-governa-


mentais (ONGs), como o Centro de Defesa da Vida Hebert de Souza (CDVHS)
e a Rede de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (DLIS), ambas
localizadas na região do Grande Bom Jardim, que concentra bairros com altos
índices de letalidade juvenil. Um outro conjunto de parceiros e parceiras com
quem fomos tecendo essas linhas foram familiares de adolescentes e jovens
assassinados ou privados de liberdade. Dessa forma, tivemos a oportunidade

or
de acompanhar a própria tessitura de grupos de mães de jovens que morreram

od V
por conta das transformações da dinâmica da violência ou da própria violência

aut
de Estado, dentre esses as mães do Curió152 , e o grupo de mães de adolescentes
e jovens em cumprimento de medida no sistema socioeducativo ou no sistema

R
prisional. Tivemos a possibilidade também de participar da tessitura de grupos
de apoio psicossocial a mães, especialmente na região do grande Jangurussu

o
(região periférica de Fortaleza), acompanhando a organização e a luta de
aC
mulheres, de mães de jovens assassinados, por memória, justiça e reparação.

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Além dos nossos parceiros profissionais e familiares, trabalhamos dire-
tamente com segmentos infanto-juvenis, como jovens e adolescentes que
trabalham, atuam ou estão inseridos em escolas públicas, tendo em vista que
visã
a escola é um dos grandes equipamentos afetados pela violência segundo
pesquisa do CCPHA (2016). Contamos com a parceria também de jovens que
estão inseridos em organizações-não-governamentais compondo festivais da
itor

juventude e/ou grupos em seus territórios, jovens que coordenam fóruns de


a re

juventude, jovens que fazem parte de coletivos juvenis e de arte e cultura,


jovens de bibliotecas comunitárias e, até, jovens tidos como “envolvidos”
(BARROS, 2019), ou seja, jovens faccionalizados, que estão inseridos de
maneira subalternizada nas dinâmicas do tráfico de drogas e armas na peri-
feria de Fortaleza, especialmente o mercado varejista. Também tivemos a
par

possibilidade de acompanhar movimentações juvenis da periferia como festas


Ed

de reggae, saraus, rolezinhos e a ocupação de anfiteatros e de equipamen-


tos culturais. Mais recentemente, temos investido no trabalho com crianças,
atuando não só com a formação de grupos com esse segmento, mas também
ão

em andanças pelos seus bairros para entender o sentido que produzem sobre
seus cotidianos e como territórios periferizados e territórios da infância se
constituem coextensivamente.
s

Além disso, lançamos um olhar mais crítico sobre as racionalidades


ver

das práticas institucionais voltadas ao enfrentamento da violência, incluindo


as práticas de equipamentos culturais, as práticas educacionais, como por
exemplo a elaboração de um fórum de escolas pela paz no Bom Jardim, e as

152 Grupo de mulheres formado pelas mães das vítimas da chacina do Curió já mencionada anteriormente.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 671

práticas de segurança, mais detidamente a instalação de torres de segurança153


em territorialidades periféricas sob o pretexto de proteção comunitária. A
partir disso, questionamo-nos: proteção para quê(quem)? Que racionalidade
necrobiopolítica (BENTO, 2018) é essa que intensifica a partir do incremento
de tecnologia de vigilância, práticas de controle e segregação socioespacial
e zoneamento? Além de práticas no âmbito da mídia, estudamos sobretudo
programas televisivos e portais de notícias, especialmente nas repercussões

or
das chacinas no Ceará.

od V
aut
Experimentando deslocamentos decoloniais na pesquisa-inter(in)
venção em psicologia

R
Para finalizar este capítulo, refletimos sobre alguns pontos a respeito

o
do que implica pesquisar-intervir a partir das tessituras e linhas que foram
mencionadas. Assim, perguntamos: é possível fazer uma movimentação de
aC
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pesquisa-intervenção sem precisar pôr em análise e sem resistir à coloniali-


dade na e da própria pesquisa? Como encarar a necessidade de problematizar
a colonialidade, nem sempre visível, que se reproduz nas relações cotidianas
visã
e, portanto, no encontro entre pesquisadores/as e campo de pesquisa (OLI-
VEIRA; ALMEIDA; OLIVEIRA, 2019)?
No campo da pesquisa-intervenção e das pesquisas que tomam a
itor

cartografia como seu método, é necessário haver uma análise da própria


movimentação da pesquisa, os efeitos e as condições de realização das inter-
a re

venções articuladas ao seu processo de produção (ROCHA; AGUIAR, 2003;


PASSOS; BARROS, 2010). Então, pensar criticamente em rechaçar a colo-
nialidade da e na própria pesquisa versa sobre estarmos atentos/as a como
nos movimentamos. Mais do que atingir objetivos ou confirmar e refutar
par

hipóteses, é importante nos implicarmos na processualidade da pesquisa,


de modo a reconhecermos como nossa presença afeta o plano de forças que
Ed

engendra as territorialidades com as quais nos relacionamos e como essa


relação também afeta politicamente a pesquisa e a nós (KASTRUP, 2008;
ão

BARROS et al., 2017). Pesquisar-intervir partindo dessa perspectiva é pen-


sar em como habitamos o campo, como nos relacionamos com este e como
podemos fazer corpo a partir da pesquisa. Isso porque a abertura ao campo
s

não deve acontecer só na tentativa de saber sobre o outro, mas para se deixar
ver

afetar e constituir o plano da experiência da pesquisa nos encontros com o


outro, abrindo assim a tessitura de um plano do comum.
153 Torre blindada em formato arredondado com visão para todos os lados. Conta, ainda, com armamento de
alta letalidade, aparato tecnológico de vigilância eletrônica e servidores que monitoram as ruas que fazem
parte do perímetro da Célula de Proteção Comunitária (CPC) a que fazem parte (FORTALEZA, 2017).
672

Costuma-se imaginar que uma pesquisa-intervenção provoca transforma-


ções sobretudo no campo, porém, vale destacar e assumir as transformações
que os processos de pesquisa provocam em nós, pesquisadores e pesquisa-
doras, nos encontros que produzimos com os campos; nas ressonâncias das
movimentações e modificações a partir do que ouvimos, vimos, fazemos e
das relações que estabelecemos. Dar conta dos reposicionamentos subjetivos
acionados a partir da escuta das realidades é também situar outras linhas

or
de processos de subjetivação possíveis através das intervenções realizadas

od V
(PASSOS; KASTRUP, 2013). Isso fez com que nós do VIESES, por exemplo,

aut
ampliássemos sobremaneira nossa caixa de ferramentas teórica e metodoló-
gica, lançando-nos ao diálogo não somente com a esquizoanálise, com os

R
estudos foucaultianos, com análise institucional, mas também com os estudos
decoloniais, assim como com os estudos do campo diverso do feminismo.

o
Desse modo, pensar uma pesquisa em psicologia que se pretenda deco-
lonial deve levar em consideração o lugar que esse campo do conhecimento
aC

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estabelece nas relações de saber-poder que reforçam uma pretensa univer-
salidade narrativa, sendo necessário fazer da pesquisa um espaço que possa
subverter as normatizações que controlam modos de ver e ouvir subjetivi-
visã
dades plurais às brancas, cristãs, cis-heteronormativas, etc. (LIMA; MAL-
CHER, 2019). Além disso, são necessários deslocamentos que indaguem os
atos de investigação historicamente impregnados de colonialismo e lógicas
de saber-poder sobre o outro, abrindo espaço para as condições do dizer que,
itor

justamente, interpelem as relações de hierarquização e subalternização da vida


a re

(OLIVEIRA; ALMEIDA; OLIVEIRA, 2019). Não basta, então, pesquisar


as margens, pesquisar nas margens, pesquisar as periferias e nas periferias.
É preciso tensionar as relações imanentes entre a produção do centro e a
produção de periferias enquanto pesquisamos. A partir de nossas experimen-
par

tações de pesquisa-intervenção, as territorialidades urbanas periféricas não


devem ser representadas como objeto, mas sim como forma de questionar o
Ed

centro e as suas operações de periferização. Ou seja, tendo como ponto de


partida a problematização das hierarquizações instituídas, para então produzir
os deslocamentos.
ão

No paralelo com o debate sobre as questões raciais, é preciso compreen-


der que debater essas questões não envolve apenas discutir como um outro é
s

inventado pela colonialidade, pelo colonialismo como um outro racializado,


ver

mas também questionar a branquitude: a branquitude e as políticas do medo; a


branquitude e a sua própria ação de invenção do outro como desviante; a bran-
quitude e a sua marginalização a partir de um motor racial (MBEMBE, 2014;
2016) que se articula a outros como de gênero e de geração; a branquitude
em sua ação incessante de corroborar com a militarização da vida. Então, é
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 673

necessário que estejamos atentos e atentas para que nossas pesquisas, ainda
que se pretendam participativas, não corroborem com a produção de restos
sociais, com a produção desses outros cujas vidas são precarizadas sistema-
ticamente e que são mais afetados pela lógica necropolítica em curso.
É preciso escapar das representações que designam “o jovem periférico”
ou “a criança periférica”, “o periférico”, “a periferia”, e ensejam a produção
de um “eles” homogeneizante, totalizante, essencializado, perdendo de vista

or
as suas diversidades e heterogeneidades. Isso implica em desnaturalizar posi-

od V
ções binarizantes e processos de fixação (BALLESTRIN, 2013) para que a

aut
pesquisa, então, possa compor e cartografar a insurreição de saberes sujeitados
pelo epistemicídio, como já mencionado.

R
Inserir-se num território existencial para acompanhar os fluxos produ-
zidos entre sujeitos, entre saberes, entre lugares e entre territórios, convoca

o
realizar um deslocamento no sentido de radicalizar o caráter participativo da
pesquisa. Assim, uma pesquisa-intervenção é aquela cujo ato de intervir está
aC
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voltado para potencializar bons encontros, ou seja, inventar e fortalecer ações


conjuntas no sentido de transformação micropolítica do estado de coisas que
visa desnaturalizar, compreendendo a proposta de deslocamento decolonial
visã
da pesquisa para além do mero uso de referências que têm debatido as mar-
cas da colonialidade mas também como um projeto de intervenções sobre
a realidade (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROS-
FOGUEL, 2018). Isso implica pensar que a ética na pesquisa-intervenção
itor

(BICALHO, 2019) envolve também decolonizar esse campo, ressaltando as


a re

relações de vínculo e confiança que produzem planos do comum e construções


conjuntas que nos possibilitam pesquisar com jovens, com crianças, com mães.
Correr o risco de desmanchar essas fronteiras que fixam o lugar do pesquisador
e o lugar do pesquisado. Desse modo, a radicalidade do caráter participativo
par

da pesquisa estaria no movimento de fissurar o entendimento hegemônico de


que a ciência, no pedestal de sua neutralidade, é capaz de produzir “verdades”
Ed

sobre o outro e/ou de realizar interpretações/leituras sobre modos de vida


plurais por uma lente única, lente esta apartada do “mundo real” (HÜNING;
CABRAL; RIBEIRO, 2018), fazendo-se necessária o co-engendramento de
ão

articulações e intervenções com os/as interlocutores/as.


Essa fissura é produzida quando tomamos a pesquisa como ferramenta
s

para intervir no mundo com aqueles/as que acompanhamos e com quem nos
ver

aliançamos e produzimos comunalidade. Fissurar/rachar essa lente universal


que busca impor uma leitura única do mundo, portanto, diz da necessidade
de compreendermos a pesquisa-intervenção como inventora de dispositivos
proporcionados pelo encontro e tensionamento de visões, sentidos, narrativas,
memórias, etc. Isso implica em processos de coletivização das práticas de
674

pesquisa e de produção do conhecimento, em “desindividualizar” os planos


éticos e estéticos ao habitarmos um campo a ser investigado/acompanhado
e a nos abrirmos para a produção do comum que acontece entre os sujei-
tos que compõem os processos de pesquisa (BICALHO, 2019; OLIVEIRA;
ALMEIDA; OLIVEIRA, 2019). Assim, cabe desenquadrar a participação dos
moldes da racionalidade instrumental e nos lançarmos no horizonte de pesqui-
sas e intervenções que sejam capazes de tensionar forças, ser corpo coletivo,

or
mover conhecimentos, borrar fronteiras e situar-se nos entrecruzamentos que

od V
produzem as contradições da vida.

aut
Pensar a colonialidade na e da pesquisa também implica problematizar
as nossas próprias posições enunciativas, questionando quem fala a partir da
pesquisa e de onde fala a própria pesquisa. Em diálogo com as discussões

R
sobre lugar de fala (RIBEIRO, 2017), não se trata de não ser possível falar
sobre algo mas, justo, de colocarmos em análise o lugar de onde se fala.

o
Analisar, portanto, o que a fala pode produzir no sentido de (in)visibilidades,
aC

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especialmente sob os moldes da branquitude e suas formas acadêmicas. Isso
implica questionar os especialismos do saber de um lado e os salvacionismos
– brancos – de outro, sobretudo quando estamos pesquisando contextos mar-
cados pela violência e pelas resistências à necropolítica. Não se trata, neste
visã
sentido, de dar voz às periferias, pois estas já vivem e dizem de sua realidade;
mas sim de compor planos coletivos de forças e acionar espaços de escuta
para uma composição polifônica de vozes, deslocando-nos para processos de
itor

inter(in)venção insurgentes diante das formas de dominação que se atualizam


a re

no contexto do neoliberalismo.
Tal deslocamento não se faz possível sem que o próprio grupo que pes-
quisa seja plural, diverso e rizomático. Ou seja, em formatos em que os
próprios pesquisadores, pesquisadoras e instituições não reproduzam as domi-
par

nações implementadas pela branquitude e pelo colonialismo. Assim, o VIE-


SES, em sua experimentação como grupo de pesquisa é composto por jovens
Ed

negros, jovens negras, jovens LGBT’S, jovens de periferias urbanas, jovens


de periferias rurais, entre outros cenários que interpelam as posições de quem
esteve historicamente situado no centro da produção do conhecimento. Des-
ão

centra-se, assim, das pessoalidades vinculadas à figura do pesquisador, para


o exercício constante de experimentação da diferença e do deslocamento das
forças cristalizadas nos processos institucionais (BARROS; BARROS, 2013).
s

Não é possível pensar em pesquisa-intervenção sem que sejam produ-


ver

zidos estranhamentos direcionados às relações extrativistas reproduzidas nas


pesquisas mais tradicionais, relações estas que visam completar dados e/ou
retirar informações do campo. No percurso de uma pesquisa-intervenção,
há sobretudo a relação de troca do que a de uma coleta de dados. Para que
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 675

serve a pesquisa-intervenção, se não for para também compor lutas políti-


cas junto com as pessoas envolvidas no processo de pesquisa? Se o intento
for somente para responder a uma pergunta de partida, essa não se produz
enquanto pesquisa-intervenção. Desse modo, nós do movimento de pesquisar-
-intervir não temos buscado apenas cartografar produção de subalternidades,
mas sim produzir re-existências a processos de marginalização, exclusão e
fixação de estigmas, compreendendo o ato de re-existir como a possibilidade

or
de reinventar criativamente as relações e, portanto, os modos de viver frente

od V
a projetos de assujeitamento (ACHINTE, 2017).

aut
Nessa movimentação de pesquisar-intervir, re-existir tem despontado
como sinônimo de entrar em composição com as lutas historicamente engen-
dradas por segmentos populacionais subalternizados e como prática inventiva

R
que busca fazer da pesquisa um dispositivo para fazer ressoar não só as denún-
cias que esses segmentos realizam, como também para inventar coletivamente

o
modos outros de fazer e habitar territórios existenciais. É dessa forma que
aC
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afirmamos nosso compromisso ético, estético e político de tomar a pesquisa


pela prática da invenção, contrapondo-se à lógica mercantilista/iluminista
da descoberta de verdades pré-estabelecidas por concepções colonizadoras.
O caminho, portanto, para a pesquisa-intervenção não é o dado, mas o que
visã
precisa ser ainda inventado com quem pesquisamos e caminhamos.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
676

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COMITÊ CEARENSE PELA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS NA ADO-


itor

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a re

Movimento Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, Assem-


bleia Legislativa do Estado do Ceará: Fortaleza, 2020b.

COMITÊ CEARENSE PELA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS NA ADO-


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Ed

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COMITÊ CEARENSE PELA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS NA ADO-


ão

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s
ver
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par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA
E MATERIALISMO HISTÓRICO-
DIALÉTICO: alguns elementos para o debate

or
od V
Robert Damasceno Rodrigues

aut
R
Introdução

o
Marx & Engels (2010) afirmavam, na metade do século XIX, no Mani-
aC
festo Comunista, que um espectro rondava a Europa; era o espectro do comu-
nismo. Furtado (2009), parafraseando a célebre frase, considera que a ausência
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de um pensamento crítico consolidado também é um espectro que ronda a


psicologia. A verdade é que até mesmo entre os fantasmas a disputa se faz
visã
acirrada e, lutando contra este último, um espectro de elevada envergadura
não apenas ronda, como penetra e se fortalece no interior da psicologia: o
espectro do marxismo. Com esta assertiva, não pretendo insinuar nenhuma
itor

hegemonia de pensamento para dentro da psicologia, mas tão somente – e ao


a re

longo deste texto – levantar alguns elementos mais gerais para o debate sobre
a Psicologia Social Crítica, sua constituição, desenvolvimento e consolidação,
destacando, em sua vertente marxista, suas principais influências advindas do
materialismo histórico-dialético.
par

Neste intento, apresentarei brevemente algumas das principais contradi-


Ed

ções na Psicologia Social que produziram a Psicologia Social Crítica como


uma síntese dialética dos embates estabelecidos, para em seguida, visualizar
seus desdobramentos na América Latina e no Brasil. No caminho proposto,
ão

adentraremos este movimento dialogando com determinadas ferramentas


teórico-metodológico-políticas do marxismo que serviram para catalisar as
mudanças engendradas. É inegável a força das ideias, tanto de Marx quanto
s

de seus seguidores, sejam psicólogos ou de outros campos do conhecimento,


ver

para uma redefinição do papel da psicologia e de seus profissionais ao longo


do tempo. Há quem diga, porém, que o marxismo ainda apareça, em alguns
momentos e lugares, como algo estranho à psicologia, agente de um temor
pueril, como se fosse destruir com seus fundamentos e ruir o castelo sagrado
dos psicólogos. Acontece que a destruição já começou, mas produzindo novas
formas de pensar, abordar e intervir; superando dogmatismos, dicotomias e
682

sectarismos; enfim, edificando uma práxis psicológica baseada na emancipação


humana e na transformação radical da sociedade.
Esta reflexão vai ao encontro do que Paiva, Oliveira e Valença (2018, p.
1798), postulam, ao afirmarem que, “se a psicologia ou vertentes dela almejam
tencionar seus limites nas discussões sobre indivíduo e, consequentemente,
sobre seu papel/lugar de classe, a imersão em Marx é requisito inegociável”.

or
Neste sentido, o marxismo, sua teoria e método, não são prerrogativas restri-
tas à Psicologia Social Crítica, mas coexistem permanentemente com outras

od V
abordagens nos mais diversos âmbitos da prática e ciência psicológicas. Não

aut
há nesta afirmação o que se estranhar, pois segundo Lane (1989a, p. 15-16),
“é dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos encontrar

R
os pressupostos epistemológicos para a reconstrução de um conhecimento que
atenda à realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo”. Neste momento,

o
porém, priorizaremos o debate a partir da Psicologia Social Crítica, com
aC
destaque para sua vertente marxista.

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A dialética histórica na constituição da Psicologia Social Crítica
visã
O desenvolvimento da psicologia, como campo científico e prática psi-
cológica, é marcado por diversas contradições, saltos qualitativos, rupturas
epistemológicas, conflitos e alianças. O curso da sua progressão transcorre
itor

confluindo com a história social, política e econômica do lugar onde é pro-


a re

duzida e o seu objeto de estudo, também ele efêmero, mutável e transitório,


transforma-se conforme o conjunto de suas determinações (PATTO, 2009).
Dede a sua constituição como ciência, no final do século XIX, e ao longo do
século XX, ela foi marcada por uma diversidade de jogos operando no discurso
par

psicológico sobre o sujeito e a subjetividade, denotando oposições no nível


teórico e prático: “subjetivismo x objetivismo; mentalismo x materialismo;
Ed

individualismo x coletivismo; naturalismo biologicista x perspectivas sociais


e históricas” (FILHO; MARTINS, 2007, p. 15).
Como síntese desses embates, constituintes de “uma ciência que se pro-
ão

punha ser objetiva no estudo da subjetividade” (GONÇALVES, 1998, p. 139),


delineou-se um duplo reducionismo no pensamento psicológico dominante.
s

De acordo com Souza & Torres (2015), predominou, de um lado, um reducio-


ver

nismo intrapsíquico, ao definir a subjetividade associada apenas aos processos


psicológicos individuais e, de outro, um reducionismo social determinista,
que considerava a supremacia das influências externas na determinação do
comportamento humano. Esse conjunto de contradições marcaram profunda-
mente a psicologia como ciência e profissão e se fazem presentes, com mais
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 683

ou menos intensidade, no conjunto de suas abordagens até os dias de hoje,


incluindo-se aí a Psicologia Social.
Em uma entrevista concedida aos professores Ciampa, Ardans e Satow
(1996), Silvia Lane afirma que “toda psicologia é psicologia social” (p. 3), ao
considerar, neste campo, a psicologia que estuda o homem e este, por sua vez,
como iminentemente histórico e social. Com essa afirmação, ela faz também
questão de deixar explícito que não pretende provocar nenhuma revisão na

or
subdivisão da psicologia em psicologia social, pois ela cumpre um papel

od V
histórico, que é o de estimular a reflexão crítica na prática do psicólogo, nos

aut
mais diferentes contextos e ramos, desenvolvendo inúmeras funções e em
espaços e instituições diversos. Segundo a autora, a relação entre psicologia

R
e psicologia social deve ser entendida em termos históricos, resgatando a sua
forma de manifestação após a segunda guerra mundial, que desdobrou em

o
duas principais tendências: uma norte-americana, de tradição pragmática, que
buscava a elevação da produtividade; e a outra, seguindo a tradição filosófica
aC
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europeia, buscou a construção de um conhecimento voltado à prevenção de


novas catástrofes mundiais (LANE, 1989a).
Guareschi (2012) também, incita-nos a pensar a psicologia social a partir
visã
de duas influências: do materialismo cientificista e do individualismo carte-
siano. Já com Wundt – considerado o pai da psicologia moderna – temos, de
um lado, a produção de uma psicologia experimental, de base quantitativa e
desenvolvida em laboratório e, de outro, uma psicologia social, que separava
itor

o indivíduo da sociedade, em dez volumes que foram solenemente ignorados.


a re

Robert Faar (2000), em seu livro As raízes da Psicologia Social Moderna, dirá
que Durkheim e sua teoria das representações coletivas defendia uma forma
sociológica de psicologia social, responsável pelos estudos da subjetividade
e da cultura.
par

Em contraposição, desenvolveu-se nos Estados Unidos uma linha de psi-


cologia social experimental, individualista e mecanicista, que buscava entender
Ed

as problemáticas sociais a partir dos indivíduos e, estes, em suas dificuldades


de adaptação à sociedade, tendo Kurt Lewim como seu principal representante.
George Mead, por seu turno, é considerado como o primeiro a formular uma
ão

síntese dialética entre o individual e o social, e entre o biológico e o psíquico,


desenvolvendo o conceito de self. Dessa forma e, valendo-se da linguagem
s

como elemento central, ele afirma a dupla determinação entre o sujeito e o


ver

mundo se constituindo reciprocamente (LIMA, 2010; GUARESCHI, 2012).


O modelo de psicologia social individualista e mecanicista, no entanto,
foi o que se tornou hegemônico no ocidente, sendo exportada para o restante
do mundo junto com a ideologia estadunidense. Entretanto, a euforia em
torno deste novo ramo científico dura relativamente pouco, tendo sua eficácia
684

“questionada a partir de meados da década de 60, quando as análises críticas


apontavam para uma “crise” do conhecimento psicossocial que não conse-
guia intervir nem explicar, muito menos prever comportamentos sociais”
(LANE, 1989a). Segundo Lima (2010), Serge Moscovici, fazendo a crítica
da hegemonia da psicologia positivista e com sua teoria das representações
sociais, defendia a tese de que a crise da psicologia social “era resultante da
aplicação cega da teoria que acabava resolvendo problemas da sociedade

or
norte-americana como se fosse o problema de cada nação” (ibidem, p. 75).

od V
A crítica de Moscovici a essa psicologia social estava no fato dela excluir

aut
as contradições e não conseguir dar conta do “social” em sua multiplicidade.
Para ele, o que faltava à psicologia social eram as contribuições de Durkheim –

R
a quem deve os princípios da sua teoria – Piaget, Freud, Marx: “a questão das
desigualdades, o fenômeno da linguagem, a força das ideias na construção da

o
sociedade, a realidade social. Ela deveria ser uma ciência mais do movimento,
do que da ordem” (GUARESCHI, 2012, p. 37). Esse conjunto de elaborações,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vai aos poucos sendo apropriado pela psicologia social. O sujeito, dessa forma,
começa a ser pensado em termos históricos e sociais e o psicólogo, ao mesmo
tempo, passa a assumir cada vez mais um papel decisivamente político frente
visã
aos problemas da sociedade e suas implicações na subjetividade.
Essa perspectiva encontra a sua expressão máxima na Psicologia Histó-
rico Cultural, desenvolvida pelo psicólogo soviético Lev Vygotski (1896-1934)
e continuada por seus seguidores Alexei Leontiev e Alexander Luria, dentre
itor

outros. Podemos considerar que Vygotski dá o primeiro grande passo para a


a re

construção de uma psicologia marxista e, portanto, eminentemente social e


crítica. Ao buscar na obra de Karl Marx o método de análise para compreender
o objeto da psicologia, ele não só critica as psicologias burguesas, pautando
a sua necessária superação, como também afirma a inseparabilidade entre a
par

formação da consciência individual e as relações sociais (TULESKI, 2008).


Ao lado dos autores russos, as principais influências para a construção da
Ed

Psicologia Social Crítica vieram, em boa medida, de outros campos do conhe-


cimento, como a filosofia, a sociologia, a história e a linguística. Encontramos
valorosas contribuições nos pensadores da Escola de Frankfurt e sua teoria
ão

crítica, como Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse. Teóricos


marxistas, como Lucien Sève, Georges Politzer, Louis Althusser e György
s

Lukács, apesar de não serem psicólogos ou se dedicarem à psicologia como


ver

tema central, também escreveram sobre a psicologia do ponto de vista crítico


e lhe influenciaram decisivamente. A verdade, portanto, é que o pensamento
crítico entra, na psicologia, pela porta dos fundos.
Considerando, deste modo, a própria diversidade das correntes teóri-
cas, autores e campos do conhecimento que constituem a Psicologia Social
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 685

Crítica, Lima e Lara Junior (2014, p. 9) descrevem-na como “um campo (ou
rede) constituído por produções múltiplas, práticas variadas e metodologias
diversas”, consistindo, a sua tarefa, em elaborar conceitos e propor alternati-
vas subjetivas e concretas frente à realidade. De modo semelhante, segundo
Lacerda Jr. (2013, p. 217), ela constitui um conjunto de ideias e práticas “que
buscam contribuir para algum projeto emancipatório e/ou elaborar novas

or
formas de pensar o indivíduo, a subjetividade, o sujeito e outras categorias
importantes para a psicologia”.

od V
Já Furtado (2009), defende a ausência de um pensamento crítico conso-

aut
lidado na psicologia, segundo o autor, para se constituir como crítica, a psi-
cologia precisa produzir um conhecimento decisivamente revolucionário, que

R
estude o sujeito como ser da transformação, “sua subjetividade e que relacione
tal subjetividade dialeticamente com as condições objetivas da transformação

o
social” (p. 254). Olhando para o desenvolvimento da Psicologia Social Crítica
aC
na América Latina, fica mais fácil observar alguns traços que lhe aproximam
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

dessa perspectiva crítica proposta, eminentemente marxista.

A Psicologia Social Crítica na América Latina


visã

As psicologias produzidas na América Latina são a expressão de sua


história social, econômica e política. O colonialismo, seguido de séculos de
itor

dominação imperialista, determinaram, na região, uma forma de produção


a re

do conhecimento psicológico inseparável das diversas contradições que mar-


cam profundamente os processos de exploração, roubo e destruição de suas
riquezas, subjugação e aniquilamento de seus povos e suas culturas. Em um
primeiro momento, a psicologia desenvolvida no continente foi uma repro-
par

dução do pensamento colonial, o que começa a ser modificado na medida


em que se intensificam os processos de lutas por libertação, independência e
Ed

democratização em seus diversos países.


Nesse contexto, a necessidade de conhecer as condições materiais – sócio-his-
tóricas – que constituem os sujeitos na América Latina (LANE; SAWAIA, 2006),
ão

associada ao descontentamento com as teorias psicológicas europeias e norte-a-


mericanas que, por serem deslocadas da realidade dos povos latino-americanos,
s

não conseguiam interpretá-la, proporcionou um giro na perspectiva do pensa-


ver

mento psicológico produzido na região, levando a eclosão do movimento de uma


“nova Psicologia Social, Psicologia Social Crítica, ou Psicologia sócio-histórica”
(SILVA, 2013, p. 34, grifo do autor). Todo este processo esteve interligado ao
conjunto das transformações que o pensamento social e a psicologia social vinham
passando desde a década de 1960.
686

Neste período foi fundada a Associação Latino-Americana de Psicologia


Social (ALAPSO), esta, porém, era hegemonizada por psicólogos sociais
experimentais, que tinham as bases teóricas da psicologia social norte-ameri-
cana como principais referências. Em contraponto, a crise da psicologia social
começa a ser denunciada; primeiro no Congresso Interamericano de Psicolo-
gia, realizado em 1976, em Miami (EUA), a partir de críticas sistematizadas e
propostas inovadoras de psicólogos sociais de vários países latino-americanos

or
e, principalmente, no congresso de 1979, que ocorreu em Lima, no Perú,

od V
quando são lançadas as premissas para a construção de uma psicologia social

aut
com bases materialistas-históricas e voltada para as realidades próprias de
cada país (LANE, 1989a; GONÇALVES; YAMAMOTO, 2015).

R
O conjunto das produções contra-hegemônicas, a partir do pensamento
crítico, influenciou fortemente inúmeros psicólogos latino-americanos, muitos

o
dos quais vivenciavam levantes de massas contra a opressão dos regimes mili-
tares e políticos em seus países (LIMA, 2010). Como consequência, diversos
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


grupos na psicologia social aproximaram-se das comunidades e ingressaram na
luta política, valendo-se de contribuições marxistas para analisar a realidade
e buscar formas de intervenção coletiva visando a superação das contradi-
visã
ções geradoras de desigualdades sociais, opressões e violações de direitos; ao
mesmo tempo, buscaram descentralizar e consolidar uma perspectiva crítica
na organização e produção dos psicólogos, constituindo entidades nacionais,
como a Associação Venezuelana de Psicologia Social (AVEPSO) e a Asso-
itor

ciação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO).


a re

Compreender este movimento é fundamental para entender a constituição


da psicologia social crítica na América Latina, influenciada, inicialmente, pelo
educador brasileiro Paulo Freire e pelo sociólogo colombiano Fals-Borda,
seguidos de um conjunto de psicólogos como Silvia Lane, Ignácio Martín-
par

-Baró, Maritza Montero, Gladys Montecino e Fernando Conzález Rey, dentre


outros de uma geração que construiu a base do pensamento crítico na psico-
Ed

logia latino-americana (FURTADO, 2009). Estes pensadores, baseando-se


sobretudo em perspectivas teórico-metodológicas advindas dos aportes mar-
xistas e a partir da experiência concreta nas múltiplas realidades dos territórios
ão

onde atuavam, contribuíram para a elaboração de teorias da psicologia social


crítica autenticamente latino-americanas, como a psicologia comunitária e
s

a psicologia da libertação, ambas comprometidas com a construção de uma


ver

“práxis psicológica” voltada à transformação de indivíduos, grupos e socie-


dades (ORTEGA, 2012).
Ignácio Martín-Baró foi um psicólogo, filósofo e padre jesuíta espano-
-salvadorenho que contribuiu com as bases ontológicas e epistemológicas da
psicologia social crítica na América Latina, exercendo, também, importante
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 687

influência na concepção dos estudos decoloniais no continente, ao afirmar a


necessidade de libertação da psicologia e dos povos latino-americanos de sua
histórica dependência colonial (DIAS, 2020). Neste sentido, Boechat, Vieira
& Pizzi (2020), ao apresentarem a “Visão Histórica da Psicologia Social”
de Martín-Baró, destacam o interesse do autor em constituir uma psicologia
social não sobre ou para a América Latina, mas desde ou a partir da realidade
latino-americana e que seja, ao mesmo tempo, crítica ao positivismo, indivi-

or
dualismo e psicologismo na psicologia social hegemonizada pela perspectiva

od V
norte-americana, assentada em bases materialistas-histórico-dialéticas e que

aut
assuma a perspectiva dos oprimidos se deseja contribuir em seu processo
de emancipação.

R
Para Matín-Baró (2013), o ponto de partida para uma psicologia social na
América Latina deve ser a realidade latino-americana, que contribua para “o

o
desmonte questionador da ordem sociopolítica estabelecida” (p. 558), tendo
em vista a ação política do psicólogo, almejando “criar consciência política
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

na psicologia e elaborar uma psicologia sobre a consciência política” (p. 570).


Do mesmo modo, no artigo O Papel do Psicólogo, ele chama atenção para
a situação de injustiça estrutural, guerras ou quase-guerras revolucionárias
visã
e perda da soberania nacional vivenciada pelos povos latino-americanos,
propondo um quefazer psicológico voltado à conscientização das pessoas,
visando a superação de identidades alienadas e das condições opressivas do
seu contexto social (MARTÍIN-BARÓ, 1996).
itor

De modo semelhante, a psicóloga venezuelana Maritza Montero vem


a re

formulando uma psicologia política comunitária autenticamente latino-ame-


ricana, conjugando definições para um trabalho comunitário transformador
e uma práxis psicopolítica emancipatória e afirmando, ao longo de sua obra,
a necessidade do compromisso da psicologia social com uma interpretação
par

crítica, acurada e global da especificidade das questões mais urgentes de


nosso continente (COSTA, 2015). Suas contribuições para a constituição da
Ed

psicologia social crítica em nossa região são inquestionáveis. Ao postular


sobre as influências teóricas na psicologia comunitária, Montero (2004, p.
56) enfatiza que, as ideias de Marx e das correntes marxianas, “de forma
ão

explícita ou implícita, son la base de gran parte de la psicología comunitária


latínoameriacana”. Esta concepção se traduz em sua afirmação da psicologia
s

comunitária como psicologia da transformação social, dada a imanência entre


ver

mudanças individuais e coletivas, “pues todo cambio en el hombre produce


cambios en su ambiente y viceversa. Se plantea así el desarrollo em una
relación dialéctica de transformaciones mutuas (MONTERO, 1984, p. 390).
Também Fernando González-Rey, psicólogo e educador cubano, tendo
feito sua passagem em 2019, nos legou uma valiosa e original contribuição
688

para a psicologia social crítica latino-americana, principalmente a partir de


seus estudos sobre a personalidade, a subjetividade, os processos educativos e
a pesquisa qualitativa (GONZÁLEZ-REY, MARTÍNEZ-GUZMÁN; RAMÍ-
REZ, 2019). Defendendo a compreensão da subjetividade desde uma pers-
pectiva cultural histórica, o que implica profundas mudanças na abordagem
social do psicólogo, tendo a obrigação de assumir uma postura crítica ante a
realidade, González-Rey (2012) e González-Rey, Goulart & Bezerra (2016),

or
denunciam a ação profissional na américa latina de caráter privado, orientada

od V
para o lucro, e argumentam a favor de uma prática psicológica comprometida

aut
com os direitos da população e voltada para os processos de desenvolvimento
e transformação individuais e coletivos.
Como podemos ver, a psicologia social crítica que se desenvolveu na

R
América Latina foi fortemente influenciada pelo marxismo desde sua consti-
tuição, fundamentando-se no materialismo histórico-dialético e materializando

o
sua prática em abordagens sistematicamente voltadas para os processos de
aC

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transformação individuais e coletivos como indissociáveis. Olhando agora
para o Brasil podemos encontrar contradições semelhantes com as do pro-
cesso mais geral da Psicologia Social Crítica, que se reatualizam e assumem
novos rostos com tempo, mas também, visualizamos uma corrente marxista
visã
profundamente enraizada na superação de antigas dicotomias e de uma ação
psicológica comprometida com as mudanças sociais.
itor

A Psicologia Social Crítica no Brasil


a re

Tomada no interior da totalidade da psicologia, enquanto construção glo-


bal de conhecimento científico e prática profissional, a psicologia social crítica
brasileira deve ser considerada em seus múltiplos aspectos que constituem
par

o que lhe é específico e, ao mesmo tempo, identifica-lhe com a diversidade


do campo ao qual pertence. É nesse sentido que precisamos compreendê-la
Ed

como síntese de múltiplas determinações, construção histórica que pode ser


apreendida na materialidade da correlação de forças da sociedade brasileira,
imbuída em profundas contradições e antagonismos de classe que determinam,
ão

dialeticamente, o seu processo evolutivo, suas posições assumidas, a negação


e superação de umas para dar lugar a outras (ANTUNES, 2012).
Como já mencionamos, a crise de referência sofrida na década de 1970
s

atingiu a psicologia em todos os níveis. Centrando a análise na psicologia


ver

social no Brasil, podemos classifica-la em duas fases distintas: uma, antes


de sua crise, marcada pela hegemonia da psicologia social norte-americana,
de cunho positivista e tendo Aroldo Rodrigues como um de seus principais
representantes; na fase seguinte, é caracterizada por uma severa crítica ao
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 689

modelo biologicista-mecanicista e, principalmente, pela defesa de uma ciência


comprometida com a transformação social (CORDEIRO, 2013). Esta segunda
fase da psicologia social brasileira – que se mantém até os dias atuais – é a que
nos interessa, pois sedimenta no seu decurso a formação de uma perspectiva
crítica sólida e enraizada nos processos reais de mudança que ocorreram no
Brasil; ela teve, dentre inúmeros representantes, a professora Silvia Lane
como uma de suas principais expoentes.

or
Seguindo o lastro dos acontecimentos que marcaram o giro na psicolo-

od V
gia social latino-americana, em 1980 foi fundada a ABRAPSO, tendo Silvia

aut
Lane como sua primeira presidenta e buscando superar, “de forma crítica
e progressista, o abismo que separava a realidade brasileira e a psicologia
social” (LACERDA JR., 2013, p. 242). No campo da produção acadêmica,

R
uma diversidade de pesquisadores vinha se desafiando a produzir estudos
dentro desta visão; nesse caminho, a partir da publicação, em 1984, do livro

o
Psicologia Social: o homem em movimento, organizado por Lane e Wanderley
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Codo – considerado um primeiro esforço de síntese desses trabalhos – “vários


outros manuais brasileiros de Psicologia Social se sucederam, na perspectiva
da Psicologia Social Crítica” (FERREIRA, 2010, p. 59) efetivando assim,
desde sua emergência, uma enorme pluralidade de temas no interior da psi-
visã
cologia social crítica no Brasil.
Deste modo, a psicologia social brasileira passa a produzir um campo
de reflexão e atuação com caráter eminentemente de classe, só que agora da
itor

classe mais precarizada, oprimida e explorada, a classe trabalhadora em sua


a re

configuração antagônica à burguesia. Essa virada ocorre pela inserção dos


psicólogos nos espaços concretos que produzem as experiências subjetivas
dessa classe, não mais em espaços físicos determinados – a clínica, a indús-
tria, a escola – mas no cotidiano dos trabalhadores, nas suas comunidades e
par

situações concretas de vida (JACÓ-VILELA, 2007; PORTUGAL, BOECHAT,


GONÇALVES; PIZZI, 2012). Ocorreu também, uma diversificação das análi-
Ed

ses e pesquisas sobre conceitos e processos psicossociais específicos afim de


contribuir para uma crítica da sociedade capitalista no Brasil, com trabalhos
sobre consciência, alienação, ideologia, violências, pobreza, desigualdade
ão

social, mídia, preconceito, identidade, direitos humanos, movimentos sociais,


dentre vários outros (LACERDA JR, 2013).
A psicologia social crítica no Brasil tem o seu nascedouro, portanto, em
s

um período de grande efervescência política e retomada das possibilidades


ver

de participação popular e de setores progressistas da sociedade, marcado


pelo processo de redemocratização e abertura do regime civil-militar. A sua
consolidação ocorre na entrada do ciclo democrático popular, que teve como
uma de suas marcas a implementação de diversas políticas públicas sociais,
690

abrindo um grande leque de atuação para a psicologia. Em todo este processo


houve grande participação e engajamento de psicólogos e psicólogas. Boechat
(2017), analisando a conformação da psicologia brasileira nos ciclos demo-
crático-nacional e democrático popular, dirá que foi neste último em que ela
arrogou a concepção do seu compromisso social, com grande influência da
Escola de São Paulo (PUC-SP), liderada por Silvia Lane, seguida da criação
de diversos outros cursos de pós-graduação no Brasil com linhas voltadas ao

or
estudo da Psicologia Social Crítica.

od V
Silvia Lane cumpriu um papel fundamental para o desenvolvimento

aut
da psicologia social crítica brasileira. Retomando a diversidade das elabo-
rações teóricas que constituem essa corrente, ela contribuiu decisivamente

R
para a divulgação, no Brasil, do conjunto de autores que fundamentam o
pensamento crítico na psicologia social. Destacamos, primeiramente, a vin-

o
culação de Lane à psicologia soviética, principalmente aos pensamentos de
Vygotski e Leontiev, ao reconhecer o homem como um produto-histórico e
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


social, colaborando assim para a construção da psicologia sócio-histórica no
Brasil (GONZÁLEZ-REY, 2007). Segundo Lacerda Jr. (2013), ela também
foi importante para a difusão de vários teóricos europeus, como Moscovici,
visã
Politzer e Lucien Séve, e latino-americanos, como Martín-Baró, González-Rey
e Maritza Montero, contribuindo com as bases da psicologia comunitária e
inaugurando os estudos em psicologia política e psicologia da libertação.
O conjunto das sínteses extraídas, como unidade na diversidade des-
itor

sas abordagens, definiram os limites do campo da psicologia social crítica


a re

no Brasil. Nesse sentido, de acordo com Lima, Ciampa & Almeida (2009),
“A implementação de uma Psicologia Social Crítica inaugurava a ideia de
indissociabilidade entre teoria e prática, conferindo ao pesquisador o papel
de agente político, responsável pela transformação da realidade e promotor
par

da emancipação”. Essa concepção advém, necessariamente, do caráter emi-


nentemente marxista do pensamento de Lane. A sua busca, portando, é por
Ed

uma psicologia social que parta da “materialidade histórica produzida por e


produtora de homens” (LANE, 1989a, p. 15) e que tenha no materialismo
histórico e na lógica dialética os pressupostos para a reconstrução de um
ão

conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo,


“sem rupturas entre objetividade e subjetividade, indivíduos e sociedade,
s

mente e corpo” (SAWAIA, 2007, p. 83).


ver

A partir do exposto temos uma breve descrição de como a psicologia


social crítica vai tomando corpo no Brasil. Isso não quer dizer, no entanto,
que essa vertente conseguiu se constituir como hegemônica; ela teve que
coexistir e resistir, demarcando posição sempre, junto a outras abordagens
na psicologia social. Ao mesmo tempo, as formulações a partir da psicologia
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 691

social crítica também visam influenciar a psicologia como um todo. Segundo


Furtado (2009), a renovação teórica a partir do desvelamento da realidade, do
cotidiano do trabalhador, do morador da periferia, deve estar aliada à discussão
do compromisso social do psicólogo e da intervenção política, conformando
assim uma verdadeira práxis social. No mesmo sentido, para Yamamoto (2007,
p. 36), o grande desafio para a psicologia é “ampliar os limites da dimensão
política de sua ação profissional” (grifos do autor), tanto em torno da luta por

or
políticas públicas sociais voltadas aos mais pobres, quanto pela elaboração

od V
teórico-metodológica visando intervir para a melhoria de vida desses grupos.

aut
Por outro lado, a psicologia social crítica, que veio se consolidar na
máxima do compromisso social no ciclo democrático popular brasileiro, tam-

R
bém guarda inúmeras contradições que mereceriam ser exploradas com mais
cautela, mas pelo espaço que temos, por ora, fiquemos com a consideração

o
de Boechat (2017), para quem o processo de inflexão sofrido pela psicolo-
aC
gia, neste período, tal como ocorreu com o Partido dos Trabalhadores (PT)
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e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), conformando um processo de


capitulação e apassivamento, também acarretou um abandono progressivo,
em suas formulações, do núcleo central da teoria social marxiana, na medida
visã
em que a perspectiva marxista de emancipação humana perdeu espaço para
uma concepção de emancipação política. Torna-se necessário, deste modo, e
mais do que nunca tendo em vista o momento de profunda crise econômica,
itor

social, política, ambiental e sanitária pela qual passamos, que os princípios


a re

fundamentais do materialismo histórico-dialético se façam presentes na psi-


cologia, em sua produção científica e prática profissional.

Alguns elementos do materialismo histórico-dialético para a


par

Psicologia
Ed

Segundo Lane (1989a, p. 15), “Se o homem não for visto como produto
e produtor, não só de sua história pessoal mas da história de sua sociedade, a
Psicologia estará apenas reproduzindo as condições necessárias para impedir
ão

a emergência das contradições e a transformação social”. Esta visão, por sua


vez, deriva da aplicação do materialismo histórico-dialético na compreensão
s

tanto do objeto quanto da forma de ação da psicologia. No uso deste método,


ver

porém, atentamo-nos primeiramente à advertência de Netto (2011, p. 52),


quando afirma que, “para Marx, o método não é um conjunto de regras for-
mais que se “aplicam” a um objeto que foi recortado para uma investigação
determinada”, ou seja, as categorias, conceitos ou procedimentos de análise
não obedecem um padrão previamente estabelecido pelo pesquisador a fim
692

de conhecer as partes de seu objeto, mas aparecem no confronto com esse


objeto, na medida em que ele se torna conhecido, não em partes abstratas,
mas na totalidade de sua materialidade.
O método nos provoca partir da realidade tal como ela se apresenta e
analisá-la em sua concretude, a partir do máximo de elementos que a compõe.
Deste modo, distanciando-se da lógica hegeliana assentada sob o primado das
representações ideais sobre o objeto como fonte do conhecimento, o método

or
marxista parte da condição material do objeto de pesquisa – daquilo que ele

od V
é no real –­ para só assim expor sua estrutura e dinâmica. Diferentemente

aut
de Hegel, para quem a realidade é a manifestação externa do pensamento,
para Marx (2017, p. 90), “ao contrário, o ideal não é mais do que o material,

R
transposto e traduzido na cabeça do homem”. A investigação, portanto, deve
ter como meta apropriar-se em detalhe da matéria investigada, “analisar suas

o
diversas formas de desenvolvimento e descobrir seus nexos internos. Somente
depois de cumprida tal tarefa, seria possível passar à exposição, isto é, à
aC

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reprodução ideal da vida da matéria” (GORENDER, 2017, p. 34-35).
Nesta concepção, a realidade não se apresenta de maneira estática, imutá-
vel e constante, pelo contrário, ela é dinâmica, perene e transitória. A dialética
visã
é o que permite analisar a realidade a partir de suas contradições, das quais ela
é produzida e também as produz e que, do ponto de vista de sua totalidade,
configuram contínuas transformações no estatuto do real. Quer dizer, o essen-
itor

cial, na dialética, é a análise das contradições; estas, no entanto, só existem


no marco da superação de uma totalidade para dar lugar, em seguida, a uma
a re

outra. Para Netto (2011), o caráter essencial das totalidades é a sua dinâmica,
sua contínua transformação desencadeada pelas contradições; estas, por sua
vez, têm sua natureza, seu ritmo e as condições de seus limites, controles e
soluções determinadas pela estrutura de cada totalidade.
par

Ao mesmo tempo, na aplicação da dialética materialista, o tratamento


histórico é indispensável para se compreender as múltiplas determinações de
Ed

um objeto. Marx, por seu lado, impetra uma “radical superação do histori-
cismo (entendido o historicismo, na acepção mais ampla, como a compreen-
são da história por seu fluxo singular, consubstanciado na sucessão única de
ão

acontecimentos ou fatos sociais)” (GORENDER, 2017, p. 35). Deste modo,


na concepção histórica advinda do método marxista, “a história do homem
s

é compreendida “de frente para trás”, ou seja, partindo do presente de volta


ver

ao passado, numa concepção inversa ao modo tradicional de se “contar” a


história” (SOBRAL, 2012, p. 11).
Este modo de operação decorre do caráter indissociável entre o materia-
lismo histórico dialético e a teoria econômica de Marx. Segundo Netto (2011,
p. 55), “não é possível, senão ao preço de uma adulteração do pensamento
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 693

marxiano, analisar o método sem a necessária referência teórica”. O método


legado por Marx, portanto, é fruto da experimentação prática na análise do
modo de produção capitalista, da formação da sociedade burguesa e da repro-
dução do capital. Esta análise, por sua vez, tem como preocupação fundamen-
tal as condições de vida dos trabalhadores na atualidade histórica em que ela
se processa, ou seja, com o tempo presente e suas condições de transformação.
É neste sentido que podemos afirmar que a formulação teórico-metodoló-

or
gica marxista suscita, necessariamente, uma ação política, pois em nenhum

od V
momento ela se dissociou da prática transformadora da realidade. Não há,

aut
deste modo, separação entre a teoria e a prática; pelo contrário, é a prática
política como ação na realidade que dá sentido à teoria.

R
O conjunto da elaboração marxista deve ser compreendida como ins-
trumento teórico-metodológico-político para o uso dos trabalhadores no pre-

o
sente – e, portanto, dos psicólogos e psicólogas – tendo a “prática social e
histórica” como “instância de verificação de sua verdade” (NETTO, 2011,
aC
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p. 23). Nessa concepção, “a prática é o fundamento da teoria e a teoria é o


reflexo da prática” (LIMA, CIAMPA; ALMEIDA, 2009, p. 230). Isso quer
dizer que, a elaboração teórica na psicologia deve, necessariamente, estar
visã
aliada à uma função atuante na realidade; toda prática fundamenta e produz
uma série de proposições teóricas e estas, por sua vez, materializam em ações
concretas o arcabouço teórico. Nas palavras de Silvia Lane (1989b, p. 149),
“a comprovação da teoria se dá através da transformação da realidade pela
itor

prática decorrente dela”.


a re

Conclusão

Concluímos, mas sem encerrar o debate, pois ainda há muito para ser
par

explorado nessa discussão. Se, de um lado, durante muito tempo a psicologia


funcionou como instrumento de manutenção da dominação burguesa, por
Ed

outro, a partir de um certo ponto, desenvolveu-se, a partir dela, uma crítica


radical à sua posição que desdobrou, deste modo, em várias tentativas de
repensar e modificar as estruturas injustas da sociedade. A Psicologia Social
ão

e, no seu interior, a Psicologia Social Crítica, são marcadas, na atualidade, por


uma pluralidade de produções, influenciadas por diversas correntes: “análise
s

institucional francesa; arqueologia foucaultiana; teoria social e psicanálise


ver

lacaliana; teoria crítica da escola de Frankfurt; psicologia histórico-cultural e


teoria da atividade; psicologia da libertação; antipsiquiatria e outros” (LAR-
CERDA JR. 2013, p. 237).
Até aqui, contudo, podemos extrair algumas afirmações mais gerais a
partir do debate proposto: a Psicologia Social Crítica que reivindica o leito
694

do marxismo é aquela fundamentalmente baseada no materialismo histórico-


-dialético como concepção teórico-metodológico-política (GRUDA, 2016);
ela busca superar as falsas oposições entre a subjetividade e a objetividade,
colocando, como seu objetivo central, a compreensão dos indivíduos em sua
relação dialética com a sociedade e, ao mesmo tempo, as suas possibilidades
de ação frente às determinações sociais tendo em vista a superação dos anta-
gonismos de classe e a edificação de uma nova sociedade (BOCK et al., 2007).

or
O espectro do marxismo continua vivo na psicologia. Ele resiste, apesar

od V
dos ataques, movidos seja por medo ou preconceito. Talvez porque ele não

aut
seja um fantasma, etéreo e inofensivo; pelo contrário, ele é material, histórico
e determina um conjunto de transformações. Por que não se deixar ser levado
por ele? É chegada a hora da psicologia assumir verdadeiramente o seu papel

R
na mudança radical da sociedade para a construção de um mundo novo. A
Psicologia Social Crítica nos ajuda a compreender essa tarefa e fornece as

o
ferramentas necessárias para empreendê-la. O compromisso social da psicolo-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


gia é, na verdade, a sua responsabilidade histórica com a classe trabalhadora.
visã
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a re
par
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PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
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s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
SOBRE OS ORGANIZADORES
E AUTORES

or
Adelma do Socorro Gonçalves Pimentel

od V
Professora Titular no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Faculdade

aut
de Psicologia. Orientadora de Doutorado. Coordenadora do Programa de
Pós-graduação em psicologia da UFPA: Mestrado e Doutorado - período 2015-

R
2017. Especialista em desenvolvimento infantil pela Universidade Estadual do
Pará; Especialista em Psicologia Clínica: Gestalt-terapia e Terapia Centrada

o
na Pessoa pela UFPA; mestrado em Educação: políticas públicas pela UFPA
aC
(1999), doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo (2002). Pós-doutorado em Psicologia e psicopatologia do
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Desenvolvimento na Universidade de Évora, Portugal (2007). Pós-doutorado


visã
em Ciências Interdisciplinares da Saúde UNIFESP (2013). Linha de pesquisa:
Fenomenologia: teoria e clínica. Temas de estudo: processos de subjetivação;
sexualidades, linguagens e ideologia, efeitos subjetivos das TIC, sofrimento
itor

humano, envelhecimento, racismo, depressão, linguagens artísticas aplicadas


a re

a saúde mental; clínica gestáltica da corporeidade.

Adriana Elisa de Alencar Macedo

Aide Esmeralda López Olivares


par

Doutoranda em Psicologia PPGP-UFPA, Mestre em Artes (PPGArtes/UFPA);


Ed

Pesquisadora do Núcleo de Estudos Fenomenológicos (NUFEN-UFPA). Nas-


ceu no México em 15 de julho de 1986. Atualmente mora na cidade de Belém,
no estado do Pará, Brasil. Foi bolsista da Organização dos Estados Americanos
ão

(OEA 2014). Licenciada em Coreografía pela Escuela Nacional de Danza


Clásica e Contemporánea; (México, 2011) Realizou as carreiras técnicas em:
s

Técnico Professional em Dança Terapêutica (Menção honorífica, Cédula:


ver

6256018) e Técnico em Desenho Coreográfico (Cédula: 6256093) no Centro


Universitario de la Danza&quot; (México, 2008). Posse um aperfeiçoamento
em Psicomotricidad (Excelencia Académica) pela Universidad del Valle de
México (México, 2008). Estudou no ensino médio uma especialização em
Dança, no Centro de Educación Artística Frida Kahalo (México, 2004) Tem
experiência na área de Artes, com ênfase em no desenvolvimento social, na
educação Artística e Dança-Movimento-Terapia.
702

Alcindo Antônio Ferla

Alonso Bezerra de Carvalho


Graduado em Filosofia, Ciências Sociais e Mestre em Educação pela Uni-
versidade Estadual Paulista – UNESP/Marília. Doutor em Educação pela
Universidade de São Paulo USP e Livre-Docente pela Universidade Estadual
Paulista – UNESP. Pós-Doutor em Ciências da Educação pela Universidade

or
Charles de Gaulle, Lille, França. Docente do Departamento de Didática e do

od V
Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Estadual Paulista –

aut
UNESP/Marília. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Ética
e Sociedade (GEPEES), cadastrado no CNPq. E-mail: alonso.carvalho@
unesp.br

R
Aluísio Ferreira de Lima (Org.)

o
Doutor em Psicologia Social pela PUCSP. Professor do Programa de Pós-
aC
-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC. Líder

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do Paralaxe: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em
Psicologia Social Crítica da UFC. Bolsista de Produtividade CNPq.
visã
Álvaro Pinto Palha Junior

Ana Carolina Araújo de Almeida Lins


itor

Possui graduação, licenciatura plena e formação em Psicologia pela UFPA.


a re

É especialista em Psicologia da Educação com ênfase em Psicopedagogia


Preventiva pela UEPA, em Saúde da Família também pela UEPA e em Psico-
logia Hospitalar e Psicologia em saúde pelo Conselho Federal de Psicologia.
É Mestre em Psicologia pela UFPA e membro da Sociedade Brasileira de
Psicologia Hospitalar e da Comissão Estadual de Enfrentamento ao Acidente
par

com Escalpelamento. Atua como psicóloga hospitalar na Clínica Cirúrgica


Ed

e como preceptora da residência em Atenção Integral a Saúde da Mulher e


da Criança, na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará. Atua ainda
como docente de graduação e pós-graduação na Faculdade Metropolitana da
ão

Amazônia, nos cursos de Psicologia, Enfermagem e Odontologia, bem como


preceptora de estágio em Psicologia Hospitalar pela Escola Superior da Ama-
zônia. Tem experiência nas áreas de Psicologia Social, da Saúde e Hospitalar.
s
ver
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 703

André Benassuly Arruda

Antonino Alves da Silva

Antônio Soares Júnior


Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal
do Pará (UFPA); Arte Educador do Serviço de Convivência e Fortaleci-

or
mento de Vínculos do Centro de Referência de Assistência Social do Guamá

od V
(FUNPAPA/PMB); Acadêmico do curso de Psicologia da Universidade Fede-

aut
ral do Pará (UFPA). E-mail: junior8830@hotmail.com

Arkley Marques Bandeira

R
Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente

o
é Docente do Ensino Superior da Universidade Federal do Maranhão - Inte-
gra o Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade PGCult - UFMA
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Coordena o Observatório Cultural do Maranhão - PGCult - UFMA e a Casa


da Memória do Instituto do Ecomuseu do Sítio do Físico, em São Luís - MA.
visã
Ataualpa Maciel Sampaio
Possui graduação (1997) e mestrado (2005) em Psicologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Leciona Psicologia Social e Psicologia
itor

Aplicada ao Direito no Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM).


a re

Atua como psicólogo no Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF3), rea-


lizando trabalhos com as equipes de saúde da família e com a população por
elas assistidas. Tem experiência e interesse de pesquisa nas áreas de saúde
mental e de modelos de atenção e de promoção à saúde.
par

Áurea Gianna Azevedo Nobre


Ed

Psicóloga -UFPA, Mestre em Psicologia na UFPA, Prof. assistente na UFMA.

Bárbara Moraes de Carvalho Leite (Org.)


ão

Arquiteta, especialista em desenvolvimento urbano e meio ambiente, mes-


tra em arquitetura. Atua como professora de nível superior desde 2013. Foi
coordenadora acadêmica de curso (2016-2017) no Centro Universiário Ruy
s

Barbosa (BA), procuradora institucional na Faculdade Internacional de São


ver

Luís (2017-2018) e gestora operacional (2018-2020) da Superintendência


de Educação e Ciência do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (SP). Atualmente
é consultora de transformação em educação, inovação e pesquisa na área
de saúde.
704

Beatriz Nayara Farias das Chagas

Bernardo Jiménez-Domínguez
Centro de Estudios Urbanos / CUCSH - Universidad de Guadalajara.

Brunno C. Bonini Luengo


Graduando do Curso de Medicina da Universidade do Oeste Paulista –

or
UNOESTE/Presidente Prudente. E-mail: brunnocbl@outlook.com

od V
aut
Bruno Jáy Mercês Lima

R
Carla de Cassia Carvalho Casado

o
Carla Jéssica de Araújo Gomes
Graduanda em Psicologia pela UFC. Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


CNPq). Integrante do VIESES-UFC. E-mail: carlajessica.cjag@gmail.com

Carolline Septimio
visã

Crissia Roberta Pontes Cruz


É psicóloga graduada pela Universidade da Amazônia (2014). Mestranda do
itor

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará


a re

(PPGP/UFPA). Especialista em Psicologia da Saúde pelo Conselho Federal de


Psicologia (2017). Pós-graduada em Atenção à Saúde da Mulher e da Criança
(Residência Multiprofissional) pela Universidade do Estado do Pará e Fun-
dação Santa Casa de Misericórdia do Pará (2017). Membro da coordenação
par

do Núcleo Belém da Associação Brasileira de Psicologia Social e membro


da Comissão Psicologia e Gênero do Conselho Regional de Psicologia - 10°
Ed

Região. Tem experiência de atuação nas áreas de Psicologia da Saúde e Clí-


nica. Seus interesses em pesquisa são nas áreas de Psicologia Social e da
Saúde com ênfase nos seguintes temas: violência contra as mulheres, relações
ão

de gênero e sexualidade.
s

Cristina Simone de Sousa Reis (Org.)


ver

Cyntia Santos Rolim


Psicóloga, Especialista em Gestão e Planejamentos de Políticas Públicas em
Serviço Social. Trabalhadora do SUAS, com experiência em Proteção Social
Básica e Saúde Mental.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 705

Dagualberto Barboza Silva


Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Bolsista de
iniciação científica (PIBIC/CNPq). Mestrando pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).Integrante
do VIESES. E-mail: dalgobarboza92@gmail.com/ dalgobarboza@gmail.com

Daiane Gasparetto da Silva

or
Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia – UFPA.

od V
aut
Daniel Castro Silva (Org.)
Graduando de Psicologia da UFPA.

Denise Machado Cardoso


R
o
Diana Coeli Paes de Moraes
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal do Pará – UFPa. Psi-


copedagoga. Pedagoga (UFpa). Mediadora de Conflitos TJ/PA. Professora de
Crianças. Instrutora/Facilitadora de Educação Profissional EGPa.
visã

Dolores Galindo (Org.)


Possui Pós-Doutorado (2015-2016), Doutorado (2006) e mestrado (2002)
em Psicologia Social pela Universidade Católica de São Paulo (PUCSP),
itor

com Doutorado Sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona (2004).


a re

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),


em 1999. Atua como Professora Permanente dos Programas de Pós-Graduação
em Psicologia e Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato
Grosso. Foi vice-coordenadora e posteriormente Coordenadora do Programa
par

de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Estudos de Cultura Contempo-


Ed

rânea. Na graduação, atua como Docente do Departamento de Psicologia da


Universidade Federal de Mato Grosso (2013-2014). Lidera o Grupo de Pes-
quisa Ciências, Tecnologias e Criação (LABTECC). Foi da Diretoria Nacional
ão

da Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO (2016-2017).

Edilene Silva Tenório


s

Acadêmica do curso de Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).


ver

E-mail: edileneneves909@gmail.com

Eleazar Venancio Carrias (Org.)


Nasceu em 1977, no sudeste do Pará. Publicou artigos sobre relações de
gênero e sexualidade na educação, além dos livros de poesia Regras de fuga
706

(2017) e Quatro gavetas (2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de


Literatura 2008. Doutorando em Educação na Amazônia pela Universidade
Federal do Pará (UFPA) e mestre em Educação pela Universidade de Brasília
(UnB), atua como pedagogo no Instituto Federal do Pará - Campus Tucuruí.
Vive em Breu Branco (PA).

Emanuel Messias Aguiar de Castro

or
Psicólogo, Especialista em Saúde Mental pela Universidade Estadual do Ceará

od V
e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará Possui graduação

aut
em Psicologia pela Universidade Estadual do Ceará (2014) e mestrado em
Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (2017). Atualmente, cursa

R
doutorado na Universidade Federal do Ceará sob orientação do professor
doutor Aluísio Ferreira Lima. Trabalhou como Professor Temporário da Uni-

o
versidade Estadual do Ceará (2018-2019). É coordenador e professor do curso
aC
de Psicologia da Faculdade Princesa do Oeste.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Enock da Silva Pessoa
visã
Fabiana de Lima e Silva

Fabiola Colombani
itor

Psicóloga graduada pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis


a re

(2001). Especialista em Psicologia Escolar e Educacional. Mestre em Psico-


logia da Infância pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis (2009).
Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília
(2016) e Pós-Doutora em Psicologia da Educação pela Universidade Esta-
par

dual Paulista - UNESP/Marília (2017). Docente e coordenadora do curso de


Psicologia da Faculdade Católica Paulista – FACAP. Psicóloga do NUAPP
Ed

(Núcleo de Atendimento Psicológico e Psicopedagógico). Atua desde (2002)


como psicóloga da saúde no município de Campos Novos Pta – SP É membro
do Núcleo de Medicalização do Social no Contemporâneo, membro do Grupo
ão

de Estudos e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (GEPEES), cadastrado


no CNPq. E-mail: fabiola.colombani@uca.edu.br
s
ver

Felipe Sampaio de Freitas

Fernanda Cristine dos Santos Bengio


Docente da Universidade Federal do Pará. Graduada em Psicologia pela UFPA
e em Gestão de Órgãos Públicos pela Universidade da Amazônia. Doutora em
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 707

Psicologia UFPA. Interesses pelo campo da Educação, infância e juventude,


cultura, memória e subjetividade. Experiência como técnica na Assistência
Social, filiada a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO).

Fernanda Nazaré da Luz Almeida

Fernanda Teixeira de Barros Neta

or
Psicóloga, formada pela Universidade Federal do Pará, doutoranda em Psi-

od V
cologia Social e Clínica pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

aut
UFPA, mestre em Psicologia Social e Clínica pelo Programa de Pós-graduação
em Psicologia da UFPA pela linha “Subjetividade, Sociedade e Saúde”. Par-

R
ticipa da Comissão de Gênero do Conselho Regional de Psicologia, CPR10,
e do grupo de estudos “Transversalizando”; Tem como interesse de estudos

o
temas transversais como infância, juventude, violência, políticas públicas,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

direitos humanos, inclusão, justiça, educação, Michel Foucault, Paulo Freire,


Carl Rogers, outros. Atualmente é Professora Substituta da UFPA e conselheira
do Conselho Regional de Psicologia Pará/Amapá.
visã

Flávia Cristina Silveira Lemos (Org.)


Possui formação em Psicologia/UNESP (1999), Mestrado em Psicologia e
itor

Sociedade/UNESP (2003) e Doutorado em História Cultural/UNESP (2007).


a re

Foi bolsista FAPESP no Doutorado. Professora na graduação e no Programa.


de Pós-Graduação em Psicologia/UFPA. Professora colaboradora no Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação/UFPA. Bolsista de Produtividade do
CNPQ-PQ-2. Estuda as relações entre Psicologia, Filosofia contemporânea,
par

História Cultural e Política.


Ed

Flávio Luiz de Castro Freitas


Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com
estágio sanduíche pela Université Paris 1 - Panthéon Sorbonne. Além disso, é
ão

professor efetivo adjunto no campus V e professor permamente do Programa


de Pós-Graduação (nível mestrado) Interdisciplinar em Cultura e Sociedade
s

da Universidade Federal do Maranhão - PGCult. Também é líder do Grupo


ver

de Pesquisa em Teoria da Afetividade na Idade Moderna, Filosofia das Psi-


cologias e das Psicanálises e é membro integrante do GT Deleuze- ANPOF.

Franco Farias da Cruz


Psicólogo pela UNAMA. Mestre e Doutor pela UFPA.
708

Gabriela Di Paula Dias Ribeiro

Helder Corrêa Luz (Org.)


Mestre em Serviço Social (Ufpa); especialista em Saúde Pública (Ufpa).
E-mail Heldercorrealuz@gmail.com

Helena Carollyne da Silva Souza

or
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).

od V
Bolsista de Extensão Sobre Saúde Mental, da Universidade Federal do Pará

aut
(UFPA).

Hélio Rebello Cardoso Júnior


R
o
Ícaro dos Santos Ferreira
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Isabel Rosa Cabral

Jéssica Modinne de Souza e Silva


visã
Docente do curso de Psicologia e Educação Física (Bacharelado) da Faculdade
Estácio Belém - Campus Nazaré (Belém-PA) e coordenada o grupo de estudos
em gênero, sexualidade, raça, classe e território, chamado Ver-O-Gênero, na
itor

mesma instituição. Também atuou como coordenadora do Núcleo de Apoio e


a re

Atendimento Psicopedagógico da Faculdade Estácio Belém - Campus Nazaré.


Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP)
da Universidade Federal do Pará (UFPA) e graduada em Psicologia/Formação
do Psicólogo pela mesma instituição. Tem experiência e ênfase em Psicologia
par

Social, tanto na área de pesquisa, quanto na vivência em docência. É pesqui-


sadora do grupo de estudos Transversalizando (UFPA). Integrou a Comissão
Ed

de Gênero do Conselho Regional de Psicologia da 10° Região (CRP/10). Tra-


balha com os seguintes temas para pesquisa: saúde mental e saúde da mulher
ão

na Amazônia; gênero; internet, redes sociais e discursos midiáticos; estudos


e métodos foucaultianos; psicanálise e esquizoanálise; Anti-Colonialismo;
História Oral; Teoria Feminista Comunitária; Psicologia Social; Psicologia
s

Política; Relações Raciais, de Classe e de Sexualidade. Foi educadora popular


ver

e psicóloga no Cursinho Popular da Rede EMANCIPA-PA. Atua também


como artista visual, usando as técnicas de colagem digital, desenho e pintura
para compor ilustrações, charges e quadrinhos. Membro do coletivo M.AR.
- Mulheres Artistas Paraenses.
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 709

João Eduardo Coin de Carvalho


Psicólogo, doutor em psicologia (IPUSP), pós-doutorado em Antropologia na
Johns Hopkins University (Baltimore, EUA). Professor Titular e Supervisor
do Curso de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade
Paulista (UNIP). Coordenador do GECOMP, Grupo de Estudos e Pesquisas
em Escola, Comunidade e Políticas Públicas. Atuando nos campos da Psico-
logia Social Comunitária, Assistência Social e Saúde Comunitária. E-mail:

or
joaocoin@yahoo.com

od V
João Paulo Pereira Barros (Org.)

aut
Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenador do

R
VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social
e Subjetivação. Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: joaopaulobar-

o
ros@ufc.br
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

José Alves de Souza Filho


Mestre e doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC. Membro do Paralaxe:
visã
Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia
Social Crítica da UFC. Bolsista CAPES.

José Augusto Lopes da Silva


itor

Mestrando em Educação- Linha Formação de Professores e Práticas Peda-


a re

gógicas pela Universidade do Estado do Pará (UEPA); Acadêmico do curso


de Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA); E-mail: augusto-
lopes10@yahoo.com.br

José de Arimatéia Rodrigues Reis


par

Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2001).


Especialização em Saúde Coletiva pela UFPA (2006). Mestre em Psicologia
Ed

pela UFPA (2014). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia


da UFPA (2016-2019). Pesquisa nas áreas de Psicologia da Saúde, Psico-
logia Social (práticas discursivas e produção de sentidos), Saúde Coletiva
ão

(integralidade, cuidado e redes de saúde), Crack, Álcool e outras Drogas e


Saúde Mental.
s
ver

Karla Dalmaso de Souza

Lara Brum de Calais


Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espí-
rito Santo (UFES). Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em
710

Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: laracalais@


hotmail.com.

Lauany Câmara Chermont Pinheiro (Org.)


Graduada em Psicologia pela Universidade da Amazônia (2017). Psicóloga
Clínica. Mestranda em Psicologia (PPGP/UFPA). Pós-graduanda em Psico-
logia Jurídica na Faculdade Brasil Amazônia (FIBRA). Aprimoramento na

or
Abordagem Centrada na Pessoa pelo Núcleo de Estudos e Práticas Psico-

od V
lógicas - Abordagem Centrada na Pessoa (NEPPSI-ACP) (2018).Leandro

aut
Passarinho Reis Júnior

Letícia Carneiro da Conceição

Lorena Schalken de Andrade R


o
aC
Lúcia Cristina Cavalcante-da-Silva

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Tem graduação, mestrado e doutorado em Psicologia, atualmente é Profes-
sora Adjunta e membro do Núcleo de estudos em Psicologia da Educação e
Desenvolvimento da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Sul
visã
e Sudeste do Pará (Unifesspa).

Lucivaldo da Silva Araújo


Docente do Departamento de Terapia Ocupacional (DETO) da Universidade
itor

do Estado do Pará (UEPA). Professor orientador (Mestrado) no Programa de


a re

Pós-Graduação em Psicologia (PPGP/UFPA), linha de pesquisa Fenomeno-


logia: Teoria e Clínica. Pós-doutorado em Psicologia (UFPA/2017), Doutor
em Psicologia Clínica (PUC-SP/2015), Mestre em Psicologia Clínica e Social
(UFPA/2007) e Especialista em Desenvolvimento Infantil (UEPA/2004). Edi-
par

tor Geral da Revista Nufen: Phenomenology and interdisciplinarity. Terapeuta


Ocupacional (UEPA/2002), coordenador do Grupo de Pesquisa Práticas Clíni-
Ed

cas em Terapia Ocupacional (PRACTO/UEPA/CNPQ), pesquisador vinculado


ao Grupo de Pesquisa em Ciência da Ocupação (UFPA/CNPQ) e Núcleo de
Pesquisas Fenomenológicas (NUFEN/UFPA/CNPQ). Interesses atuais: reli-
ão

giosidade e saúde, fenomenologia do cuidado, saúde mental, fenomenologia


existencial hermenêutica e ciência da ocupação.
s

Luis Wagner Dias Caldeira


ver

Luiz Miguel Galvão Queiroz


Pedagogo. Doutor em Educação. Especialista em educação da rede estadual
do Pará. Docente substituto da Universidade do Estado do Pará - UEPA.
mscluiz59@hotmail.com
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 711

Luizane Guedes Mateus


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Fluminense.

Maíra da Maria Pires Ferraz

Marcelo Moraes Moreira (Org.)


Possui graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia (1995),

or
pós-graduação lato sensu pela Universidade Católica de Brasília (2009) e

od V
Mestrado em Psicologia Social e Clínica pela Universidade Federal do Pará

aut
(2013). Tenho boa capacidade para falar em público e boa experiência como
palestrante. Sou professor do ensino superior, com experiência de docên-

R
cia nos cursos de Psicologia, Farmácia, Nutrição, Fisioterapia, Odontologia,
Enfermagem, Direito, Educação Física e Administração. Também dou aulas

o
na Pós-graduação lato sensu nas áreas da Educação, Saúde e Engenharias.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Já tive a oportunidade de assumir a Coordenação do curso de Psicologia por


quase 03 anos numa IES, onde pude aprender muito nas minhas relações com
o corpo docente e discente. Atualmente, estou na Coordenação do Curso de
visã
Psicologia da Faculdade Estácio Belém, além da docência nesse curso. Sou
professor, ainda, na Faculdade Ciência e Conhecimento - FCC, nos cursos
de Bacharelado em Educação Física e Tecnólogo em Gestão Desportiva e
itor

de Lazer.
a re

Marcelo Ribeiro de Mesquita (Org.)


Mestre em Currículo e Gestão da Escola Básica pelo Programa de Pós-gra-
duação em Currículo e Gestão d escola básica (PPEB) do Núcleo de Estudos
Transdisciplinares em Educação Básica (NEB) da Universidade Federal do
par

Pará UFPA). A pesquisa foi na linha de Currículo da Educação Básica e


Ed

foi orientado pelo Professor Doutor Wladirson Cardoso, sendo a pesquisa


voltada para currículos em projetos de aceleração da aprendizagem a partir
das ferramentas de Foucault. Possuo Graduação em pedagogia e Letras pela
ão

Universidade do Estado do Pará e especialização em Tecnologias em educa-


ção pela PUC - RIO. Atuo profissionalmente como professor de Educação
Básica pela Rede municipal de Educação de Belém e como Especialista em
s

Educação pela Rede Estadual de Educação. Membro do Grupo de Estudos e


ver

Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea - COGITANS.

Márcio Alessandro Neman do Nascimento


Psicólogo. Doutor em Psicologia e Sociedade: Subjetividade e Saúde Coletiva
pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista - Júlio
712

de Mesquita Filho (UNESP/Campus Assis-SP). Professor adjunto do curso


de Psicologia da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR-MT). Coor-
denador do Laboratório Esquizoanalista de Produção de Subjetividades e(m)
Interseccionalidades (LEPSI). E-mail: marcioneman@gmail.com.

Marcio José de Araújo Costa


Psicanalista. Bacharel e Especialista em Filosofia. Psicólogo, Mestre e Doutor

or
em Psicologia Social (UERJ). Pós-doutorado em Psicologia Clínica (PUC-SP)

od V
e em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Coordenador do grupo de estudos e pes-

aut
quisas Transversalidades (Departamento de Psicologia UFMA) e supervisor
no estágio obrigatório em clínica segundo a abordagem da Esquizoanálise

R
no curso de graduação em Psicologia da UFMA. Professor permanente do
Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMA. E-mail: marcioja-

o
costa144@gmail.com
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Márcio Mariath Belloc

Maria Luiza Lemos Azevedo


visã
Graduanda de Psicologia- UNICEUB.

Mariane Lopes da Paixão Costa


itor

Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará


a re

(UNIFESSPA). Atualmente é psicóloga educacional escolar da Universidade


do Estado do Pará, campus Marabá (UEPA-Marabá).

Marlize Ruth Albuquerque Pacheco


par

Psicóloga.
Ed

Mayara Barbosa Sindeaux Lima


Tem graduação, mestrado e doutorado em Psicologia pela Universidade
Federal do Pará- UFPa. Atualmente, é Professora Adjunta e coordenadora
ão

do Núcleo de estudos em Psicologia da Educação e Desenvolvimento da


Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
s

(Unifesspa). Mãe do Felipe Sindeaux. L. S. Lima.


ver

Michele Torres dos Santos de Melo


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - PPGP/
UFPA (2018). Bacharelado, Formação e Licenciatura em Psicologia, pela
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 713

Universidade Federal do Pará (2003). Atuação nas áreas da Psicologia Clí-


nica, Organizacional e do Trabalho. Experiência profissional em processos de
Gestão com Pessoas, Análise Institucional, Cultura e Clima Organizacional,
Gestão por Competências, Plano de Carreiras e Sucessão, Desenvolvimento de
Lideranças, Processos Trabalhistas e Relações Sindicais, Gestão de Benefícios,
Recrutamento e Seleção de Pessoal, Treinamento e Desenvolvimento, Con-

or
sultoria Organizacional, Educação Corporativa, Comunicação Empresarial,

od V
Suporte em Medicina Ocupacional e Saúde do Trabalhador, Programas de

aut
Ergonomia, Segurança no Trabalho e Programas de Responsabilidade Social.
Interesse em estudos e pesquisas voltadas à Saúde Mental e Psicodinâmica

R
no Trabalho (Prazer e Sofrimento Psíquico), Saúde Mental na Assistência em
Saúde Coletiva em HIV/AIDS. Membro do Grupo de Pesquisas em Saúde na

o
Amazônia, pelo PPGP/UFPA.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Milene Maria Xavier Veloso

Normando José Queiroz Viana


visã
Graduado em Psicologia, especialista em Psicologia Social e Comunitária –
FAFIRE, mestre em Psicologia – UFPE e Doutor em Psicologia Cognitiva.
Atualmente é professor adjunto e coordenador do Núcleo de Estudos Psicos-
itor

sociais em Saúde da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Sul


a re

e Sudeste do Pará (Unifesspa).

Oberdan da Silva Medeiros


Professor efetivo do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do
par

Pará (IFPA), Campus Tucuruí, acadêmico do curso de Doutorado do Pro-


Ed

grama de Pós-graduação em Educação – PPGED. E-mail: oberdanazul@


yahoo.com.br
ão

Pamella Augusta Passos Ventura Pina (Org.)


Graduada em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA); Espe-
cialista em Saúde pelo Programa de Residência Multiprofissional, na área de
s

Concentração em Saúde do idoso, do Hospital Universitário João de Barros


ver

Barreto (HUJBB), pela Universidade Federal do Pará (UFPA); Mestranda


em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP), do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade Federal
do Pará (UFPA).
714

Patrícia do Socorro Magalhães Franco do Espírito Santo (Org.)


Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1995), Espe-
cialista em Psicomotricidade pela Universidade do Estado do Pará (1998),
Mestre em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
da Universidade de São Paulo (2003), Doutora em Psicologia pela Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(2006). Experiência na área de Psicologia, com ênfase em docência, atuando

or
principalmente nos seguintes temas: Abordagem Centrada na Pessoa, Psico-

od V
logia da Saúde, Psicologia Humanista, Fenomenologia e Políticas Públicas.

aut
Atualmente é docente da Universidade Federal do Pará.

Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira

Paulo Sérgio de Almeida Corrêa R


o
Doutor em Educação. Professor Titular. Faculdade de Educação. Instituto
aC
de Ciências da Educação. Universidade Federal do Pará. Poeta. Músico.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Compositor.

Pedro Paulo Freire Piani


visã
Professor Associado da Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Saúde. Ambiente e
Sociedade na Amazônia. Gerente de Ensino e Pesquisa do Complexo Hospi-
itor

talar da UFPA/EBSERH. Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP.


a re

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (Org.)


Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica, mestre e doutor em Psicologia.
Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
par

vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia e ao Programa de


Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bolsista de pro-
Ed

dutividade em pesquisa (CNPq) – ppbicalho@ufrj.br

Pedro Romão dos Santos Júnior


ão

Rafael Coelho Rodrigues


Psicólogo. Professor Adjunto do Centro de Ciências da Saúde - Universidade
s

Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB. Pós-doutorado em Psicologia pela


ver

Universidade Federal Fluminense/UFF. Doutor em Psicologia/UFF. Mestrado


em Psicologia - Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros: O Estado
Penal e a Sociedade de Controle: O Programa Delegacia Legal como Disposi-
tivo de Análise (ed. Revan, 2009) e Juventude como capital (Ed. Juruá, 2014).
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 715

Pesquisador do Grupo de Pesquisa Produção de Subjetividade e Estratégia


de Poder no campo da infância e da juventude (UERJ/UFF) e do Grupo de
Pesquisa Saúde, Organizações e Trabalho (SORT/UFRB) e integrante do
Centro de Referência Regional em Educação Permanente em Crack, Álcool
e outras drogas (CRR/UFRB). Foi representante do Conselho Regional de
Psicologia (CRP/05) no Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Tortura da

or
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Atuou como consultor de pesquisa
para Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em projeto

od V
de Cooperação com a UNESCO. Como membro da Coordenação Executiva

aut
do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, dentre outras ati-
vidades, coordenou a equipe de assessoria técnica para a Comissão Especial

R
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Presidência da República, assim
como, o Centro de Referência em Direitos Humanos. Foi representante do

o
CDDH junto a Rede Latino-americana Terra do Futuro e na Rede de Discus-
aC
são sobre Políticas Públicas e Práticas de Cuidado para usuários de drogas do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

município de Petrópolis. Atualmente pesquisa temas como a genealogia das


práticas psi no campo social com ênfase nas áreas da saúde e as possibilidades
de resistência a partir de uma clínica de território.
visã

Rafael da Silva Queiroz


Licenciado em Letras – Língua Portuguesa. Mestre em Literatura Amazônica.
itor

Docente da Rede Estadual de Ensino do Pará.


a re

Rafaele Habib Souza Aquime


Psicóloga, Graduada pela Universidade da Amazônia (UNAMA), Mestra em
Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Pará (UFPA) e Doutoranda em Psicologia pelo mesmo Programa.
par

Atualmente é Professora Efetiva da Universidade Federal Rural da Amazô-


Ed

nia (UFRA) e ministra disciplinas nos campos da educação, organizações,


ética e formação docente. Interesses em estudos sobre educação, infâncias,
juventudes, políticas públicas e direitos humanos. Atuou como Conselheira
ão

do Conselho Regional de Psicologia 10ª Região, gestão 2016- 2019, sendo


presidenta da Comissão de Ética (COE).
s

Renata Almeida
ver

Robenilson Moura Barreto


Psicólogo, Especialista em Educação Especial e Inclusiva, Mestre em Psicolo-
gia e Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental
da Universidade Federal do Pará (LPPF – UFPA).
716

Robert Damasceno Rodrigues


Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA
(PPGP/UFPA).

Rodrigo Toledo
Psicólogo, Doutor e Mestre em Educação. Professor Adjunto Doutor na Uni-

or
versidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e Universidade Paulista
(UNIP). É pesquisador nos grupos “Dimensão Subjetiva da Desigualdade

od V
Social e suas diversas expressões” e “GECOMP - Escola, Comunidade e

aut
Políticas Públicas”. Especializou-se em temáticas de enfrentamento à desi-
gualdade e social e atendimento da população LGBT em contextos educativos

R
e comunitários, bem como em formação em Psicologia e Ética Profissional.
E-mail: toledordg@gmail.com

o
aC
Ronilda Bordó de Freitas Garcia (Org.)

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Acadêmica do curso de Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA)
E-mail: ronilda123bord@gmail.com
visã
Rosa Margarita López Aguilar
Departamento de Psicología Aplicada / CUCS - Universidad de Guadalajara.
itor

Rovana Patrocinio Ribeiro


a re

Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo.

Sheyla Pereira Rocha (Org.)


par

Silvio Ricardo Munari Machado


Formado em Pedagogia (UNESP), com mestrado e doutorado em Educação
Ed

(UFSCar), atuando nas áreas da educação, cultura e assistência social, desen-


volvendo pesquisas a partir de temas que daí emergem.
ão

Terezinha Sirlei Ribeiro de Souza


Pedagoga. Mestre em educação. Docente da Universidade do Estado do Pará
s

– UEPA.
ver

Thiago Cardassi Sanches


Doutor em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal
do Mato Grosso (UFMT). Mestre em Comunicação pela Universidade Esta-
dual de Londrina (UEL). Participante do grupo de pesquisa Artes Híbridas:
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA, SAÚDE COLETIVA E FORMAÇÃO:
dispositivos transdisciplinares nas políticas públicas v.12 717

intersecções, contaminações e transversalidades (UFMT/Campus Cuiabá).


Participante do Laboratório Esquizoanalista de Produção de Subjetividades
e(m) Interseccionalidades (LEPSI). E-mail: thcardassi@gmail.com

Thiago Tenório Pereira


Advogado e Consultor Jurídico. Graduado em Direito pelo Centro Univer-

or
sitário Metropolitano da Amazônia (UNIFAMAZ), Graduando em Psicolo-
gia pela Universidade Federal do Pará (UFPA); Especializando em Teoria e

od V
Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

aut
(PUC-MINAS) e em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Men-
des (UCAM-RJ); Sócio fundador do Escritório Thiago Tenório & Advogados

R
Associados; Pesquisador na área de Hermenêutica Jurídica.

o
Thuany Steffane Lima Martins
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Graduanda em Psicologia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará


(UNIFESSPA), tendo sido bolsista do projeto “Caracterização de adolescentes
acolhidos institucionalmente no município de Marabá-PA” (PIBIC/FAPESPA).
visã
Valber Luiz Farias Sampaio
Possui graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA);
Especialista em Gestão e Planejamento de Políticas Públicas em Serviço Social
itor

pela Escola Superior da Amazônia (ESAMAZ); Mestrado em Psicologia pela


a re

Universidade Federal do Pará (UFPA) na linha de “Psicologia, sociedade e


saúde” e, atualmente, é doutorando pela Universidade Federal do Pará – UFPA
na mesma linha. Docente do curso de Psicologia e de Serviço Social da Facul-
dade UNINASSAU (Belém). Foi docente da Pós-Graduação da Faculdade
par

de Educação Superior de Paragominas (FACESP); Conselheiro do Conselho


Ed

Regional de Psicologia 10ª Região, PA/AP (CRP 10) na gestão de 2016-2019


e atualmente faz parte diretoria na gestão de 2109-2022; Representante do
CRP 10 na Comissão Nacional de Psicologia na Assistência Social (CONPAS)
ão

e no Grupo de Trabalho do Conselho Federal de Psicologia (CFP) de Medidas


Socioeducativas. Coordenador da Comissão de Psicologia e Políticas Públi-
s

cas do CRP10; Conselheiro suplente do Centro de Referências Técnicas em


ver

Psicologia e Políticas Públicas? CREPOP do CRP 10; integrante dos GT’s, do


CRP 10, de Saúde Mental, Crack, Álcool e outras Drogas; do GT de Infância
e Juventude e Psicologia e Assistência Social. Foi integrante da Comissão de
Ética (COE) do CRP. Agrega experiências em atividades voltados às Políticas
718

Públicas, com ênfase na Política Nacional de Assistência Social, Psicologia


Social, Infância e Juventude, Psicologia da Saúde e Saúde Mental com ênfase
na Política Sobre Drogas. Contato: valbersam-paio@hotmail.com

Vanessa Goes Denardi

or
Vinicius Furlan

od V
Zureide do Socorro Ferreira Alves

aut
R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
or
od V
aut
R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 X 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 11,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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