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FORMAÇÃO

EM PSICOLOGIA

or
SOCIAL E

od V
SOCIOLOGIAS

aut
INSURGENTES

R
o
Tramas históricas em educação libertária
aC
ORGANIZADORES:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

FLÁVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS


DOLORES GALINDO
visã
PEDRO PAULO GASTALHO DE BICALHO
JOÃO PAULO PEREIRA BARROS
ALUÍSIO FERREIRA LIMA
ANA CARLA CIVIDANES FURLAN SCARIN
ROBENILSON MOURA BARRETO
itor

DANIELE VASCO SANTOS


ATAUALPA MACIEL SAMPAIO
a re

BRUNO JÁY MERCÊS DE LIMA


ADRIANA ELISA DE ALENCAR MACEDO
RENATA VILELA RODRIGUES
JÉSSICA MODINNE DE SOUZA SILVA
GEISE DO SOCORRO LIMA GOMES
ANA CAROLINA FARIAS FRANCO
par

LARISSA AZEVEDO MENDES


LUCIANA BATISTA DA SILVA
Ed

BRUNA DE ALMEIDA CRUZ


PAULA PAMPLONA BELTRÃO DA SILVA
MELINA NAVEGANTES ALVES
AYUMI GABRIELA DOMINGUES
ão

DANIEL CASTRO SILVA


ANDRÉ BENASSULY ARRUDA
MÁRIO NUNES NASCIMENTO NETO
JOELMA DO SOCORRO LIMA BEZERRA
s

LAUANY CÂMARA CHERMONT PINHEIRO


ver

ANA CLAUDIA ASSUNÇÃO CHAVES


JÉSSICA COSTA VEIGA
MARIA EDUARDA DE PINHO OLIVEIRA
ANDERSON REIS DE OLIVEIRA

COLEÇÃO
TRANSVERSALIDADE E CRIAÇÃO
ÉTICA, ESTÉTICA E POLÍTICA
VOLUME 16
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
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o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Flávia Cristina Silveira Lemos| Dolores Galindo
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho| João Paulo Pereira Barros
Aluísio Ferreira Lima| Ana Carla Cividanes Furlan Scarin
Robenilson Moura Barreto| Daniele Vasco Santos

or
Ataualpa Maciel Sampaio| Bruno Jáy Mercês de Lima
Adriana Elisa de Alencar Macedo| Renata Vilela Rodrigues

od V
Jéssica Modinne de Souza Silva| Geise do Socorro Lima Gomes

aut
Ana Carolina Farias Franco| Larissa Azevedo Mendes
Luciana Batista da Silva| Bruna de Almeida Cruz

R
Paula Pamplona Beltrão da Silva| Melina Navegantes Alves
Ayumi Gabriela Domingues| Daniel Castro Silva

o
André Benassuly Arruda| Mário Nunes Nascimento Neto
aC
Joelma do Socorro Lima Bezerra| Lauany Câmara Chermont Pinheiro
Ana Claudia Assunção Chaves| Jéssica Costa Veiga
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Maria Eduarda de Pinho Oliveira| Anderson Reis de Oliveira


(Organizadores)
visã
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
itor

E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
a re

tramas históricas em educação libertária

Transversalidade e Criação – Ética,


par

Estética e Política Volume 16


Ed
s ão
ver

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Arte da Capa: Freepik
Revisão: Analista de Escritas e Arte

or
od V
aut
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE

R
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

F692

o
aC
Formação em Psicologia Social e sociologias insurgentes: tramas históricas em educação
libertária / Flávia Cristina Silveira Lemos et al. (organizadores) – Curitiba : CRV, 2021.
770 p. (Coleção Transversalidade e Criação – Ética, Estética e Política, v. 16)

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Bibliografia.
visã
ISBN Coleção 978-85-444-1750-8
ISBN Volume Digital 978-65-251-2017-1
ISBN Volume Físico 978-65-251-2016-4
DOI 10.24824/978652512016.4
itor
a re

1. Psicologia 2. Formação – insurgência 3. Psicologia Social 4. Educação libertária I. Le-


mos, Flávia Cristina Silveira et al. org. II. Título III. Coleção Transversalidade e Criação – Ética,
Estética e Política, v. 16

CDU 159.9 CDD 150


par

302
Índice para catálogo sistemático
Ed

1. Psicologia Social - 302


ão

ESTA OBRA TAMBÉM SE ENCONTRA DISPONÍVEL EM FORMATO DIGITAL.


CONHEÇA E BAIXE NOSSO APLICATIVO!
s
ver

2021
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)

or
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Fauston Negreiros (UFPI)

od V
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)

aut
Celso Conti (UFSCar) Helmuth Krüger (UCP)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)

R
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) João Ricardo Lebert Cozac (PUC-SP)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcelo Porto (UEG)

o
Élsio José Corá (UFFS) Marcia Alves Tassinari (USU)
aC
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Gloria Fariñas León (Universidade Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de La Havana – Cuba) Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)


Guillermo Arias Beatón (Universidade Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
visã
de La Havana – Cuba) Virgínia Kastrup (UFRJ)
Helmuth Krüger (UCP)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
itor

Josania Portela (UFPI)


Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
a re

Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)


Lourdes Helena da Silva (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
par

Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)


Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Ed

Rodrigo Pratte-Santos (UFES)


Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
ão

Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)


Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
s
ver

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
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valer a formação com coragem e crítica!


Aos(às) educadores(as) que resistem e ousam fazer
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Ed
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
AGRADECIMENTOS
Agradecemos com homenagens a quem nos inspira a escrever em um país
como o Brasil, face a tantas mazelas e limites, um pouco de ar e um acreditar

or
no mundo se faz quando lemos aqueles e aquelas que por tantas vezes foram

od V
silenciados e silenciadas.

aut
“Pedindo a todos que abram a cabeça e o coração para conhecer o que
está além das fronteiras do aceitável, para pensar e repensar, para criar novas

R
visões, celebro um ensino que permita as transgressões – um movimento
contra as fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma a

o
educação em prática de liberdade.”
aC
(bell hooks)
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A heresia e a ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos meca-


nismos doutrinários, elas lhes pertencem fundamentalmente.
visã
(Michel Foucault)

Eu também não acredito que a literatura possa nos ensinar a viver, mas
itor

as pessoas que têm dúvidas sobre como viver tendem a recorrer à literatura.
a re

(Judith Butler)
par
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
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par
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“Realizar una Psicología de la liberación exige primeiro lograr


una liberación de la Psicología” (Ignacio Martín-Baró)
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Ed
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO������������������������������������������������������������������������������������������ 19

or
FEMINISMOS NUMA CAMA DE GATO

od V
E NA MICROPOLÍTICA:

aut
ciências e saberes na universidade em uma conversa com
Donna Haraway, Michel Foucault e Félix Guattari������������������������������������������ 21

R
Dolores Galindo
Flávia Cristina Silveira Lemos
Renata Vilela Rodrigues

o
Fábio Henrique Martins da Silva
aC
Aline Maira Herculano Oliveira da Silva

REFLEXÕES TEÓRICA-METODOLÓGICAS
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

FEMINISTAS DECOLONIAIS����������������������������������������������������������������������� 39
visã
Adriane Raquel Santana de Lima

CARTÃO POSTAL DOS OPOSTOS: uma visão sobre limite


entre o ver-o-peso e a estação das docas, em Belém/PA������������������������������� 57
itor

Renata de Godoy
a re

Felipe Vasconcelos de Sá

OFICINAS PEDAGÓGICAS ANTIRRACISTAS:


a experiência do grupo ErêYá/UFPR�������������������������������������������������������������� 77
par

Sara da Silva Pereira


Lucimar Rosa Dias
Ed

FORMAÇÕES DE PROFESSORES E ENSINO DE HISTÓRIA


EM PERSPECTIVAS DECOLONIAIS NAS AMAZÔNIAS�������������������������� 97
Raimundo Erundino Santos Diniz
ão

Edilson Mateus Costa da Silva

SOBRE BURBURINHOS E DESATINOS: inscrições biográficas


s

feministas nas escritas e epistemologias de pesquisa���������������������������������� 113


ver

Simone Maria Hüning


Érika Cecília Soares Oliveira
Késia dos Anjos Rocha
Aline Kelly da Silva

A EDUCAÇÃO COMO POTÊNCIA EM TEMPOS


DE NEOLIBERALISMO E FUNDAMENTALISMOS���������������������������������� 131
Domenico Uhng Hur
A PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL: análises de um campo múltiplo���� 147
Amanda Gabriella Borges Magalhães
Marina Oliveira
Fernanda Teixeira de Barros Neta

or
O TEATRO DO OPRIMIDO
DE AUGUSTO BOAL:

od V
formação e transformação social������������������������������������������������������������������ 167

aut
Flávia de Bastos Ascenço Soares
Anna Karollina Silva Alencar

R
Alexandre Silva Nunes
Aline Maira Herculano Oliveira da Silva

o
A CONSTRUÇÃO DE VERDADES NO DISCURSO JORNALÍSTICO:
aC
estudo comparativo das coberturas jornalísticas da libertação
do ex-presidente Lula pelos blogs O Antagonista e Brasil 247��������������������� 183

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Michel Renan Rodrigues de Andrade
Monalisa Pontes Xavier
visã
Luciana Lobo Miranda

A PESQUISA NA RUA JUNTO


A SEUS HABITANTES:
itor

ética e política em saúde mental a partir de uma investigação etnográfica�� 201


a re

Milena Silva Lisboa

O TRABALHO COM A NOVA HISTÓRIA CULTURAL E A ANÁLISE


DAS PRÁTICAS DE PATRIMONIALIZAÇÃO COM A PSICOLOGIA������� 219
par

Fernanda Cristine dos Santos Bengio


Dolores Galindo
Ed

Flávia Cristina Silveira Lemos

ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES


ÉTNICO-RACIAIS EM CONECTIVIDADE COM A PESQUISA
ão

HISTORIOGRÁFICA: a experiência do projeto cartografia������������������������� 231


Antônia Maria Rodrigues Brioso
s

FENÔMENOS PSICOSSOCIAIS CONTEMPORÂNEOS:


ver

cartografando experiências formativas em Psicologia Social����������������������� 243


João Paulo Pereira Barros
Larissa Ferreira Nunes
Carla Jéssica de Araújo Gomes
Isadora dos Santos Alves
Lúcia Maria Bertini
Camila dos Santos Leonardo
Dagualberto Barboza da Silva
CRIAÇÕES DE SI PELAS TRILHAS DA AUTOETNOGRAFIA���������������� 261
Anna Amélia de Faria
Carlos Alberto Ferreira Danon
Juliana Maia
Mônica Ramos Daltro

or
Suzane Bandeira de Magalhães

od V
FORMAÇÃO E SEMIFORMAÇÃO: em nome da civilização?�������������������� 275

aut
Maurício Rocha Cruz
Aline Lima da Silveira Lage

R
CARTOGRAFIA TEMÁTICA E CARTOGRAFIA PARTICIPATIVA:
contribuições para uma abordagem materialista do

o
tripé ensino-pesquisa-extensão�������������������������������������������������������������������� 289
aC
Daniel Sombra
Otávio do Canto
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Carlos Jorge Nogueira de Castro


Madson José Nascimento Quaresma
visã
ENTRE CORPOS NA SALA
E CORPOS NO PÁTIO:
envolvimento e multiversidade���������������������������������������������������������������������� 317
itor

Caio Monteiro Silva


a re

Igor Monteiro Silva

OS ESTUDOS DAS MASCULINIDADES NA PSICOLOGIA


BRASILEIRA: uma revisão sistemática da literatura nacional��������������������� 331
par

Daniel de Castro Barral


Valeska Zanello
Ed

Iara Flor Richwin

FORMAÇÃO DE PROFESSORAS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA:


da maloca à sala de aula������������������������������������������������������������������������������ 369
ão

Cleude Alcantara Alves Storch


Maria Ivonete Barbosa Tamboril
s
ver

DESAFIOS PARA UM TRABALHO PARTICIPATIVO NO CURSO


DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS:
formação, história e compromisso social (1995-2021)���������������������������������� 387
Iolete Ribeiro da Silva
Marck de Souza Torres
Ana Cristina Fernandes Martins
POVOS DA FLORESTA DA AMAZÔNIA SUL OCIDENTAL:
um olhar histórico-social da pesquisa social e política���������������������������������� 399
Enock da Silva Pessoa

O ENSINO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA: uma proposta decolonial

or
para a educação básica�������������������������������������������������������������������������������� 417

od V
Alerrandson Afonso Melo Pinon
Luiz Augusto Pinheiro Leal

aut
(UMARI)ZAL:

R
resistência quilombola em proximidade, Baião/PA���������������������������������������� 429
Oberdan da Silva Medeiros

o
ENTRE AS MARGENS E O PROTAGONISMO:
aC
o viver inventivo das juventudes negras no Brasil���������������������������������������� 453
Juan de Araujo Telles

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Maria Helena Zamora
visã
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: relatos de pesquisa na Campanha 21
dias de ativismo contra o racismo����������������������������������������������������������������� 471
Giovanna Marafon
itor

Júlia Muniz de Alvarenga


Michelle Villaça Lino
a re

Larissa Fernandes Pereira


Marcela de Toledo Piza Costa Machado
Andréa Chiesorin Nunes
Yohanna Gomes de Souza Almeida
par

SOBRE A URGÊNCIA DA DESMILITARIZAÇÃO POLICIAL


DE NÓS MESMOS:
Ed

educação e trabalho em ressonâncias���������������������������������������������������������� 493


Thiago Colmenero Cunha
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
ão

VIGOTSKI E A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO NO CAMPO


HISTÓRICO-CULTURAL: o método na pesquisa��������������������������������������� 511
s

Herculano Ricardo Campos


ver

Marilda Gonçalves Dias Facci

POLÍTICAS AFIRMATIVAS E A FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA:


o capital humano em questão����������������������������������������������������������������������� 529
Renata Vilela Rodrigues
Luiz Guilherme Araújo Gomes
Alexandra Marcelina da S. Barros
Dhiânelly Santos Tolentino
Emily Thainá Meneguzzo
TRANSDISCIPLINARIDADE E SITUAÇÕES CATASTRÓFICAS:
contribuições de Pierre Benghozi para pensar o presente��������������������������� 553
Thaís Seltzer Goldstein

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

or
SOBRE O SUICÍDIO:
da literatura aos profissionais do CAPS II em Santarém-Pará��������������������� 573

od V
aut
Kássya Christinna Oliveira Rodrigues

PARÂMETROS DE PROTEÇÃO DO DIREITO À VIDA DE

R
DEFENSORES E DEFENSORAS DE DIREITOS HUMANOS
NO PARÁ������������������������������������������������������������������������������������������������������ 593

o
João Gabriel Soares
Paula Arruda
aC
ENTRE TROCAS COMERCIAIS
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E PALAVRAS TROCADAS:
construção de vínculos e encontros no mercado municipal
visã
de Araguaína – TO���������������������������������������������������������������������������������������� 617
Angélica Cabral Oliveira Alves
Jaíne Daise Alves dos Santos
itor

Stefania Cardoso Brito


Sthefany Monteiro Salazar Ataide
a re

Kamila Soares de Araújo Coimbra


Robenilson Moura Barreto

O LUGAR DOS OPRIMIDOS


NA “POLÍTICA NACIONAL
par

DE EDUCAÇÃO ESPECIAL:
equitativa, inclusiva e com aprendizagem ao longo da vida”������������������������ 637
Ed

Carolline Septimio Limeira


Izane Flexa Santa Brigida 
Reginalva do Socorro Ribeiro Colares
ão

O USO EXCESSIVO DAS TELAS E AS POSSÍVEIS


REPERCUSSÕES PSÍQUICAS NAS CRIANÇAS DURANTE
s

A PANDEMIA COVID 19������������������������������������������������������������������������������ 651


ver

Luana Souza de Deus Neto Almeida


Niamey Granhen Brandão da Costa

INCLUSÃO ESCOLAR DO CAMPO:


um retrato a partir das experiências emergentes do Parfor-Matemática
da UFPA�������������������������������������������������������������������������������������������������������� 663
Aline Beckmann Menezes
David Coutinho
NUCLEAÇÃO DAS ESCOLAS DO CAMPO:
as faces de uma política pública e suas implicações na garantia
do direito de acesso e permanência������������������������������������������������������������� 683
Areli Ferreira Vasconcelos

or
PROVITA: algumas considerações descoloniais
para a Psicologia Social�������������������������������������������������������������������������������� 701

od V
Marcelo Moraes Moreira

aut
Alcindo Antônio Ferla
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira

R
Daiane Gasparetto da Silva
Hélder Côrrea Luz
Shirle Rosângela Meira de Miranda

o
ÍNDICE REMISSIVO����������������������������������������������������������������������������������� 725
aC
SOBRE OS ORGANIZADORES/AUTORES��������������������������������������������� 741

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
APRESENTAÇÃO
Quando formar, ensinar, pesquisar, educar, fazer extensão e se tornar
escritor(a) se torna um desafio diário de afirmação em resistência cotidiana,

or
experimenta-se o caminhar em fios de navalhas em que publicar e criar é

od V
uma revolução molecular, na acepção de Félix Guattari. Queremos e deseja-

aut
mos fazer deformações libertárias e insurgentes face às forças centrípetas do
capitalismo mundial integrado e de seus tentáculos asfixiantes/silenciadores
do pensar e do experienciar.

R
Esta coletânea reúne as seguintes universidades: IAEN (Equador), UFPA,
UEM, UNIR, UFCAT, UFR, UFPR, UERJ, UFRJ, UNIFAP, UFAC, UFAM,

o
UEL, UFG, UFRGS, UFES, UFMT, UFS, UFF, UNB, UFSJ, UNIFESPA,
aC
UFC, UFAL, UNESP, UFMA, UNIR, UNICAMP, USP, Escola Bahiana de
Medicina e Saúde Pública, PUC-SP, UEPA, IFPA, Faculdade Ari de Sá - FAS;
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

UNILAB. CESUPA, UNIAVAN, UNINOVE, UNAMA, UNINASSAU, UNI-


VAG, UFOPA, IFPA, CESUPA e Faculdade Católica Dom Orione (FACDO).
visã
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a re
par
Ed
s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
FEMINISMOS NUMA CAMA DE GATO
E NA MICROPOLÍTICA:
ciências e saberes na universidade em

or
uma conversa com Donna Haraway,

od V
Michel Foucault e Félix Guattari

aut
R
Dolores Galindo
Flávia Cristina Silveira Lemos

o
Renata Vilela Rodrigues
Fábio Henrique Martins da Silva
aC
Aline Maira Herculano Oliveira da Silva
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Introdução
visã
Este artigo é um ensaio temático, o qual visa discutir feminismos cibor-
gues numa analítica da trama dos fios que são tecidos nos movimentos e teo-
itor

rias feministas transculturais e antirracistas proposta pela bióloga, filósofa,


escritora e professora estadunidense Donna Haraway (1944). Pretende-se,
a re

especialmente, pensar três das suas obras: “Gama de gato”, “Manifesto


Ciborgue” e “Manifesto em favor das espécies de companhia”. Para a autora,
as figuras dos ciborgues e das espécies companheiras que animam os seus
últimos textos mantêm entre si uma relação de parentesco por meio de
par

conexões parciais num mundo em ruínas. Retomamos a noção de “cama de


gato”, proposta em texto publicado na década de 1990, por entendermos que
Ed

é um dos principais operadores que nutrem as alianças entre as diferentes


figurações propostas pela autora, valendo-nos, para tal, principalmente do
livro “Seguir com el problema”.
ão

Mais do que uma rastreadora de mundos, Donna Haraway se apresenta


como uma fabuladora que conjuga um atento exercício tentacular de atenção
s

ao presente e aos fios soltos que permitem traçar brechas que funcionam como
ver

exercícios de ficção.
Também abordamos aspectos de um campo de análise de uma rede tecida
com fios, tecidos na Filosofia da Diferença, entrecruzados aos saberes locais
da produção de conhecimentos que podem ser situados na materialidade de
corpos universitários de mulheres acadêmicas, os quais forjam linhas de fuga,
às quais possibilitam um outro habitar ao mundo. Para tanto, nos apropria-
mos de alguns conceitos de Félix Guattari para pensarmos as resistências
22

micropolíticas realizadas nestes corpos universitários por meio das obras


“Revolução Molecular” e “As três ecologias” e com Michel Foucault, na
parresía e agonística da coragem da verdade.

Rede de fluxos diagramáticos em “Cama de Gato”

or
od V
Em ‘Cama de Gato’, Donna Haraway utiliza de diversos recursos figura-

aut
tivos para para criar um dispositivo analítico de fluxos interligados, em uma
multiplicidade de tramas. Esta figura, que entre nós é conhecida como jogo

R
do barbante, chega às mãos de Donna Haraway por meio das relações com a
cultura indígena Navajo.
Com efeito, busca traçar quais são os fios que estão entrecruzados nas

o
redes de linhas múltiplas, em heterogênese. Inicialmente, Donna Haraway
aC
destaca dois cordões em suas pesquisas sobre a ciência. Em um primeiro
momento, descreve um dos cordões o qual alimenta suas expectativas biblio-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


gráficas, as quais são compostas pelos projetos das tecnociências feministas,
visã
transculturais e antirracistas. O segundo cordão é delineado pelas produções
de releituras que não são suficientes, nem mesmo quando o próprio texto se
define como o mundo. No bojo destas análises, Haraway ressalta que duas
fibras coloridas correm por seus trabalhos, sendo que a primeira atrai linhas
itor

de análise divisoras e, a segunda se dedica a lidar com as complexidades das


a re

narrativas em um campo de nós e buracos negros.


Os trabalhos de Haraway estão repletos de contribuições para nos apro-
fundarmos no que diz respeito às mudanças criadoras de corpos híbridos por
meio de mutações, das ficções e da fabricação de performances ciborgues. O
par

‘Manifesto Ciborgue’ (1985) e trabalho ‘Saberes Localizados’ (1988), poste-


riormente fizeram parte da elaboração da escritura ‘Cama de Gato: Estudos
Ed

de ciência, teoria feminista, estudos culturais’, no ano de 1994.


O conjunto destas obras ressalta a necessidade de o mundo ‘poder ser de
outra forma’; diante da ‘desordem estabelecida’, e o que ‘os estudos de tecno-
ão

ciências podem ser’ (HARAWAY, 1994). Segundo Donna Haraway ressalta que
há um jogo, o qual funciona como uma cama de gato, o qual opera como meca-
nismo-analisador para indagar-se a respeito das categorias configuradas como
s

redes de indagações em termos do que é público, acessível, legítimo, coletivo e


ver

traçado em um ativismo político. Trata-se de realizar uma aproximação dos estu-


dos de uma teoria crítica, constituída como jogos em e como uma cama de gato.
A cama é composta por emaranhados para a produção de uma efetiva
prática crítica, forjada tal qual um jogo que requer jogadores heterogêneos,
de categorias diferentes. Estes jogadores estão em mobilidade e podem se
tornarem anominalistas, em uma rede repleta de surpresas, na medida em que
é jogado com e por muitas mãos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 23

Dessa forma, Donna Haraway apresenta modos de visualizar o jogo no


qual os feminismos ciborgues são tecidos de forma figurativa e encontram-se
inseridos em composições de nós, enredados tais como: conexões, campos
de forças e estratégias coletivas. Segundo Haraway, a cama de gato convida
a um senso de trabalho coletivo, ao considerar que uma pessoa apenas não é

or
capaz de criar sozinha padrões. 

od V
A investigação amparada em dispositivos das tecnociências são aqui,

aut
segundo Haraway uma prática analítica amarrada, que se materializa ema-
ranhada com as redes de discursos não-hegemônicas e não-exclusivas, fre-
quentemente mutuamente constitutivas, mas não-isomórfica. Haraway nomeia

R
esta investigação sem vírgulas e de forma tendenciosa como “estudos de
tecnociência feminista multicultural e antirracista”.

o
Aqui estão as regras do jogo “cama de gato” que para anominalistas como
aC
Haraway não conseguem desejar o que não podem ter, pois pressupõem que
os movimentos encadeados dependem das habilidades dos jogadores. Para
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Haraway, não se vence a cama de gato; o objetivo é mais interessante quando


é aberto. Sair dos padrões e inventar saídas são propostas que acompanham
visã
as obras de Haraway, que visam apontar um caminho que segundo ela, não
passa pelo primitivo, pelo zero, pela fase do espelho e seu imaginário.
Este jogo é composto tanto por mulheres quanto por outros ciborgues
itor

no tempo presente que recusam os recursos ideológicos da vitimização, de


modo a ter uma vida real (HARAWAY, 1994). No ‘Manifesto’, Haraway loca-
a re

liza os ciborgues da vida real, quando nos remete ao exemplo das mulheres
trabalhadoras de uma aldeia no sudeste asiático, nas empresas eletrônicas
japonesas e estadunidenses, descritas por Aihwa Ong, “elas estão ativamente
reescrevendo os textos de seus corpos e sociedades. A sobrevivência é o que
par

está em questão nesse jogo de leituras” (HARAWAY, 2000, p. 99).


A cama de gato de Haraway está explicitada em fluxos sociais em padrões
Ed

que funcionam e são tecidos nos entremeios das habilidades dos nós e das
estratégias tecnocientíficas. Ela adverte que nem sempre é possível repetir
padrões interessantes, mas ressalta a importância de uma habilidade analítica
ão

incorporada, que nos faça descobrir os padrões e que resulte de forma intri-
gante a novos modos de existir e de jogar. Ao admitir que o jogo é realizado
por jogadores ao redor do mundo, destaca que os jogos e suas maneiras de
s

ser jogado têm considerável significância cultural. Desta forma, Haraway é


ver

enfática ao escrever: “Cama de gato é ao mesmo tempo, local e global, dis-


tribuído e amarrado juntos” (HARAWAY, 1994). 
Mas como se aprende a jogar a cama de gato? Por que nos interessa
pensar nossas articulações com o Estado associadas às figurações desse jogo
nos efeitos performáticos dos nossos próprios corpos também? A cama de
gato é, sobretudo, um jogo matemático sobre práticas complexas e cola-
borativas para se fazer e com o objetivo de fazer passar padrões culturais
24

interessantes: “A cama de gato não pertence a ninguém, a “nenhuma” cultura


ou eu, a nenhum sujeito ou objeto congelado. Cama de gato é um maravi-
lhoso jogo para se desmistificar noções como posições do sujeito e campos
de discurso” (HARAWAY, 1994). A cama de gato é onde podemos pensar
que a ação e ativismos estão não nos jogos militarizados alienadores de

or
encontros agonísticos infindáveis e tentativas de força operam como teoria

od V
crítica e como tecnociência. A cama de gato está para ser pensada, repensada,

aut
experimentada e desejada até onde nossas ideias possam conquistar novas
configurações nos espaços que queremos ocupar.

R
Um campo para acompanhar os feminismos ciborgues:
a universidade pública e a micropolítica

o
aC
A universidade é uma instituição pluridisciplinar na formação de quadros
profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão, da apropriação de

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saberes e cultivo da crítica. Com a chegada da família real, ao Brasil, em 1808,
visã
foi construída a primeira universidade do país, destinada apenas aos homens,
a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Somente sete décadas depois, em
1879, as mulheres tiveram a oportunidade de se matricular nessa instituição.
Porém, até a primeira metade do século XX, o número de universitárias
itor

ainda era extremamente menor do que o de homens. A realidade do século


a re

passado mudou e, hoje, as mulheres são a maioria na universidade brasileira.


Segundo o Censo do Ensino Superior de 2010, produzido pelo Ministério da
Educação, as mulheres ocupavam 57% das matrículas, em cursos de gradua-
ção no país. A mesma realidade acontecia na conclusão dos estudos, 60% das
par

pessoas que chegaram até o final dos cursos universitários eram mulheres.
Mas, se por um lado os dados assinalam que as mulheres já são a maio-
Ed

ria; por outro, a universidade e a sociedade continuam reproduzindo a cultura


patriarcal machista de intensa exclusão, enraizada na construção da nossa
sociedade. É, a partir disso que propomos, com este artigo em formato de
ão

ensaio para, em certa medida, provocar fazeres micropolíticos de uma car-


tografia das ações coletivas e emancipatórias, bem como suas articulações
e marginalidades, não apenas para as mulheres e feministas da comunidade
s

acadêmica, mas também na comunidade local.


ver

Na cidade de Assis, no interior do São Paulo, há quatro décadas, a presença


do campus da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP) faz a
diferença na formação com objetivos libertários, na microrregião e recebe estu-
dantes de todo o país. O campus é nomeado como Faculdade de Ciências e Letras,
hoje, a FCL-Unesp/Assis-SP, abriga 05 cursos de graduação, sendo 03 da área
de humanas (Letras, História e Psicologia) e dois da área de Biologia (Ciências
biológicas e Engenharia Biotecnológica). É neste recorte local, que pretendemos
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 25

avançar com as pesquisas, a partir das articulações dos coletivos amparados por
uma rede, para cartografar localizações feministas, antirracistas e multiculturais,
segundo Donna Haraway formam a opinião da qual precisamos para um outro
lugar, pois a “diferença” é inegável. Esta é a posição não-reconciliada para a
investigação crítica sobre aparatos performáticos dos corpos e subjetividades.

or
A Psicologia Social tem investido em pesquisas e ações das quais novos

od V
aparatos de tecnociências são forjados enquanto dispositivos para produção

aut
de novos lugares de fala e outras possibilidades para os corpos produzirem
diferença e emancipação. Empenha-se em produzir uma tecnociência em que
amplie e se conecte ao cenário criado pela realidade que é produzida e, ao

R
mesmo tempo, a qual produz um desvio, um questionamento e uma nova
potência. Assim, tenta-se configurar com esta investigação cartográfica cores

o
e vidas, pelas tintas e pincéis emprestados por autoras situadas no campo dos
aC
feminismos, subjetivações e das intensidades que constantemente produzem
enunciados ao gerarem acontecimentos que vão contornar os corpos e ações dos
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coletivos universitários, suas atividades e expansões corporais, locais e sociais.


Conceição Nogueira (2003) em “Metodologias feministas na Psicologia
visã
social: a ciência a serviço da mudança social”. Apresenta-nos importantes
respostas para perguntas em Psicologia:
A intervenção feminista na Psicologia, procurando comprometidamente
itor

estreitar a distância entre o pessoal e o político, entre o privado e o público,


a re

entre as mulheres e os homens, presta um enorme contributo na prevenção e


na erradicação de fenômenos violentos praticados na intimidade. Os modelos
feministas, ao serem adaptados pela Psicologia, desempenham um papel de
enorme importância no desenvolvimento de um pensamento crítico que desafie
par

a tentativa de padronização e de classificação dos comportamentos humanos


(NEVES; NOGUEIRA, 2003, p. 18).
Ed

Para Nogueira, tanto o empiricismo feminista quanto o ponto de vista


feminista perseguem o propósito de construir uma ciência feminista que possa
permitir ampliação dos focos e perspectivas das análises problematizado-
ão

ras do mundo, pelo menos de um modo menos incompleto e desalinhado


(HARDING, 1987). Para os pós-modernismos feministas e para nós corpos
universitários o grande problema do modernismo feminista é que este falha-
s

ria na análise de como a opressão funciona discursivamente e, sendo assim,


ver

não permitiria avaliar como as múltiplas linguagens de poder (manifestas ou


encobertas) se articulam de modo entrecruzado, no cotidiano das pessoas.
O pensamento de Judith Butler (2003) também colabora para que teorias
sejam articuladas com expressões ainda não fechadas ao dizer que a própria
noção do que é mulher está em devir, ou seja, é um conceito aberto a ressig-
nificações, o que cai por terra qualquer eixo hierarquizante, fixo e horizontal.
Butler (2003) destaca que gênero é uma performance, podendo ser de cunho
26

disciplinar, que nos enraíza aos moldes de gênero ou uma performance de


gênero que confunde e transforma essas categorias, em mutações diversas.
Ao apresentar nossas possibilidades iniciais e entrosados no campo uni-
versitário, tecidos pelos fios dos estudos feministas e de gênero, partimos
para a contextualização das ações que interessam ao nosso olhar localizado;

or
no entanto, temos que nos referir à marginalidade da qual os ‘feminismos’

od V
passaram e como a academia tem acolhido estas transformações e produções

aut
dos movimentos feministas. Narvaz (2007), ao escrever sobre a marginalização
dos estudos feministas e de gênero na Psicologia acadêmica contemporânea
ressalta que o preconceito e este lugar marginal imputado a tais estudos têm

R
sido apontados por diversas pesquisadoras, o que se constitui em importante
obstáculo à sua legitimação acadêmica (p. 218).

o
Tal marginalização parece estar associada à relação do surgimento e
aC
da institucionalização deste campo de estudos com os movimentos sociais,
sobretudo em sua estreita vinculação com os partidos de esquerda e com os

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movimentos de mulheres. No Brasil, o processo de formação do movimento
feminista ocorreu, em grande parte, no contexto da história dos partidos de
visã
esquerda na luta contra a Ditadura Civil-militar. Tributários das ações con-
duzidas pelo movimento de mulheres, a partir dos anos 60, no século XX os
movimentos feministas envolveram pesquisadoras, acadêmicas e militantes
itor

que atuavam dentro de um mesmo projeto político, qual seja, o de confrontar


a re

e de contestar as discriminações bem como as relações de poder existentes


na sociedade (COSTA; SCHMIDT, 2004; MALUF, 2004; TONELI, 2003).
Narvaz (2007) atenta ainda que enquanto sociólogas, antropólogas e
historiadoras buscavam denunciar a opressão patriarcal e capitalista vivida
par

pelas mulheres, sobretudo, na família e no mercado de trabalho. O campo de


estudos de gênero, inicialmente voltado para os estudos sobre as mulheres
Ed

foi-se consolidando, no Brasil, no final dos anos 70, século XX, concomi-
tantemente ao processo de redemocratização política, ao fortalecimento
dos movimentos sociais e do movimento feminista no país (COSTA, 1994;
ão

FARAH, 2004). Porém, Narvaz já aponta que na década de 80 outras inten-


sidades começaram a aparecer:
Nos anos 80, a produção acadêmica sobre o tema cresceu e diversificou-se.
s

Começaram a surgir, nas Universidades, os núcleos de estudos e pesquisas


ver

sobre a mulher, sendo que as publicações e teses envolvendo tal temática


aumentaram consideravelmente nesta época. No final da década de 1990, as
principais associações de cientistas do país, entre elas, a Associação Brasileira
de Psicologia Social (ABRAPSO), contavam com grupos de trabalhos especia-
lizados na temática de gênero. Apesar da crescente consolidação deste campo
de estudos no Brasil, sua inserção no espaço acadêmico sempre foi marginal,
ocorrendo predominantemente na pesquisa, em detrimento do ensino. A maioria
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 27

dos cursos foi (e ainda é) oferecida na pós-graduação, onde há maior flexibi-


lidade curricular, sendo que, na graduação, são oferecidas apenas disciplinas
optativas, não havendo cursos regulares sobre relações de gênero. (p. 219)
As interdições que tentaram silenciar as vozes do feminismo podem
ser compreendidas como resultado da repressão (especialmente às Ciências

or
Humanas e Sociais) a qual estava sujeitada a Universidade. Pesquisadoras

od V
feministas, oriundas geralmente das áreas das Ciências Humanas e Sociais,

aut
“limitadas por dificuldades financeiras e institucionais impostas pelo referido
regime, criaram, então, centros de pesquisa privados e independentes nas

R
universidades, buscando apoio e financiamento de agências internacionais
para a realização de suas pesquisas” (NARVAZ, 2007, p. 219).
Para Prehn (2005), que escreve também sobre o movimento feminista e

o
a Psicologia, a relativa aceitação dos núcleos de estudos de gênero nos cursos
aC
de pós-graduação das universidades evidencia que gênero é tomado como
temática apenas de especialistas, bem como desvela o conservadorismo de
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parte do meio acadêmico, que tem dificuldade para atualizar seus currículos e
visã
sua agência política das relações. Esta ordem do discurso que cala e silencia
lugares de fala e possibilidades de participação social e política materializa
controles discursivos e governos dos corpos que assujeitam modos de ser e
maneiras de falar e escrever (FOUCAULT, 2004).
itor

Os estudos de gênero estão presentes apenas em algumas universidades


a re

e em alguns campos do saber, sobretudo na História e nas Ciências Sociais,


como se outras ciências pudessem prescindir do gênero. A institucionalização e
a transversalização dos estudos de gênero em todas as áreas de conhecimento é
uma importante reivindicação das pesquisadoras feministas reforçando a crença
par

de que homens e mulheres são intrinsecamente diferentes, a Psicologia terminou


por fortalecer a fixação de papéis específicos para homens e mulheres. Assim,
Ed

às mulheres caberiam as virtudes ditas feministas aos homens as virtudes ditas


masculinas, determinando a cada um o seu espaço social, influenciando e ser-
vindo como justificativa até mesmo para a divisão sexual do trabalho (p. 67).
ão

Contudo, estas críticas sobre a produção dos enunciados atravessados


pela série homem-branco-heterossexual-europeu não invalidam ou deslegi-
timam as produções de autores que se localizam neste eixo, autores, como
s

Deleuze, Guattari e Foucault, autores os quais essa produção textual se utiliza


ver

para antropofogizar como um alimento para propor novos conceitos, alargando


o território de cultivo híbrido de práticas, dando novo estilo às performances,
ao possibilitarem apropriações para o contexto pós-colonial as discussões
feitas por esses autores enquanto um legado relevante.
No plano teórico, essa ruptura inicialmente assumiu a forma de uma revi-
são crítica sobre o feminismo, operada pelas lésbicas e pelas pós-feministas
americanas, apoiando-se sobre Foucault, Derrida e Deleuze. Reivindicando
28

um movimento pós-feminista ou queer, Teresa de Laurettis, Donna Haraway,


Judith Butler, Judith Halberstam (nos Estados Unidos), Marie-Hélène Bourcier
(na França), mas também as lésbicas chicanas como Gloria Andalzua ou as
feministas negras como Barbara Smith e Audre Lorde, atacarão a naturaliza-
ção da noção de feminilidade que havia sido, inicialmente, a fonte de coesão

or
do sujeito do feminismo. A crítica radical do sujeito unitário do feminismo,

od V
colonial, branco, proveniente da classe média alta e dessexualizado foi posta

aut
em marcha (PRECIADO, 2011, p. 11).
É necessário questionar o lugar antropocêntrico, que coloca o ser humano,
homem, branco, europeu e heterossexual no lugar de privilégio. Por isso, con-

R
voca-se neste artigo uma produção por psicologias multiculturalistas feministas
e antirracistas, conjugando o não-lugar irrepresentável (IRIGARAY, 1984) e

o
invisível da mulher, ao acrescentar-se aqui outras categorias irrepresentáveis
aC
como a figura do ciborgue. Assim, podemos dizer que um campo para acolher
os feminismos ciborgues pode ser a Universidade em seus meios e setores mais

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


abertos à produção da diferença. Afirmamos isso a partir dos processos de
subjetivação sobre os corpos neste sistema institucional e sinalizamos a impor-
visã
tância de constantes estudos e teorias feministas que sejam localizadas pelas
relações dos corpos atravessados pelos fluxos e intensidades que os circundam.
Interrogar a constituição dos modos de subjetivação passa por diversas
itor

questões, como a questão das relações de poder, expressa por Foucault em


a re

suas obras “Vigiar e Punir” (1987), “A coragem da verdade”, “Microfísica


do Poder” (1979) e na aula “A ordem do discurso” (2004). Também se faz
necessário mapear as linhas de forças que formam a subjetividade, formando
uma teia complexa, que revela um paralelismo e uma conectividade dos seus
par

elementos. As ciências e, principalmente, as ciências humanas as quais têm


como objeto de estudo os processos de subjetivações que passam por um
Ed

crivo, falam de um lugar, são criadas para e por alguém, localizado em um


espaço, tempo e uma história.
Os saberes localizados (HARAWAY, 1995) e saberes subalternos (SPI-
ão

VAK, 2010) nos ajudam a problematizar as verdades que são produzidas na


Europa e o desprezo e/ou desconhecimento de outras produções; sendo, assim
os saberes considerados subalternos podem figurar como saberes menores
s

em termos de potência deoclonial, em uma reunião das produções de pesqui-


ver

sadores(as) do Sul, produzidos como periféricos. Deleuze e Guattari (2013)


nomearam como saberes menores os que forjam resistências e tensionam os
que estão cristalizados e são reproduzidos de modo colonial com reverência.
Assim como Foucault (1979) fez ao produzir sua “Microfísica do Poder”,
ao tentar interrogar o poder em suas ramificações no bojo da própria engre-
nagem do poder, nos corpos dos prisioneiros, loucos e os considerados dege-
nerados. Ele se propõe a saber das histórias e ouvi-los ao invés de teorizar
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 29

a partir do lugar de fora desta realidade, estar ali no encontro com essas
pessoas e criar conjunturas para que esses sujeitos subalternizados ampliem
seus universos de referências.
A escolha do termo subjetivações é pontual nesse aspecto processual e
guarda uma ruptura com as noções fechadas e dicotômicas sobre a subjetivi-

or
dade, sociedade e modos de vida (GUATTARI, 1993). Isso consiste em dizer

od V
que, desagua-se em uma noção de corpo que não é só a dimensão carnal e

aut
biológica, porém, também social e subjetiva. Portanto, constituímos nosso
corpo em meio ao caos e ao acaso, esses são os aspectos singulares de cada
corpo, os blocos de devires de cada sujeito. Esses devires “não são fenôme-

R
nos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não
paralela, de núpcias entre dois reinos”, (DELEUZE, 1992, p. 08) e o próprio

o
ato de desejar é passear por entre devires.
aC
Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação, identifi-
cação), mas uma outra forma de viver e de sentir assombra ou se envolve na
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nossa e a “faz fugir”. A relação mobiliza, portanto, quatro termos e não dois,
divididos em séries heterogêneas entrelaçadas: x envolvendo y torna-se x’,
visã
ao passo que y tomado nessa relação com x torna-se y’. Deleuze e Guattari
insistem constantemente na recíproca do processo e em sua assimetria: x não
“se torna” y (por exemplo, animal) sem que y, por sua vez, venha a ser outra
itor

coisa (por exemplo, escrita ou música) (ZOURABICHVILI, 2004, p. 24-25).


a re

Sendo assim, a própria definição de subjetivações se aproxima da noção


de devir, ou seja, o devir releva uma potencialidade deste corpo (DELEUZE;
GUATTARI, 2013). O devir universitário, o devir feminista, o devir pós-hu-
mano e o devir ciborgue estão todos atravessados por constantes processos
de subjetivação e são territorializados, desterritorializados ou ainda reterrito-
par

rializados, deslocando-se assim, por caminhos errantes de constantes fluxos e


intensidades do contemporâneo. Para tanto, Haraway (2013) nos contextualiza:
Ed

O ciborgue nos força a pensar não em termos de “sujeitos”, de mônadas,


de átomos ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades, tal como
sugerido, aliás, por uma “ontologia” deleuziana. O mundo não seria consti-
ão

tuído, então, de unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras


unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas
unidades em sua passagem. Primários são os fluxos e as intensidades, relativa-
s

mente aos quais os indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários (14).


ver

Se falamos das intensidades e dos fluxos que atravessam os corpos das


jovens universitárias e espiamos um pouco de seus feminismos ciborgues, isso
se deve ao agrupamento, ao plano comum e coletivo e as forças de intensidades
outras que estão recriando o contexto universitário. Segundo Aguiar (1997):
A emergência de grupos de consciência com uma agenda política para
a mudança de práticas que permanecem na reclusão doméstica, bem como o
projeto de reapropriação do próprio corpo pelas mulheres, são temas resultantes
30

do movimento feminista em muitas partes do mundo, assumindo diferentes


características em cada lugar e em cada espaço social, incluindo-se, aí, a uni-
versidade. Paralelamente ao processo de reflexão em grupos e da politização do
privado, observamos, no contexto universitário internacional, o nascimento de
pelo menos dois processos influenciados pelo feminismo: o primeiro refere-se à

or
constituição de novas práticas pedagógicas que recriam a questão da consciência

od V
de gênero nas atividades de ensino, e utiliza-se da experiência das alunas e alu-

aut
nos, para preencher os vazios de ordem teórica e empírica sobre o tema. Desta
maneira, foram levantadas questões sobre os limites do conhecimento humano
para dar conta da condição de vida das mulheres, bem como do relacionamento

R
de gênero, uma vez que essas mulheres pouco foram contempladas no âmbito
das Ciências Humanas, apesar dos pressupostos universalistas que geralmente

o
incorporam os campos teóricos de suas disciplinas. Essas práticas de ensino
aC
incluem a democratização da sala de aula, quando o corpo docente busca enco-
rajar a criatividade e a independência analítica de estudantes, e se depara com

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a omissão das mulheres, excluídas dos vários campos de conhecimento (p. 12).
E, se podemos conhecer hoje é certamente por um conjunto de esforços
visã
feministas, implicados na produção de enunciados coletivos alinhavados por
acontecimentos que nascem de encontros e desencontros das práticas híbridas.
Para Foucault (2004), a singularidade dos coletivos implica em fazer circular
itor

discursos de saberes locais e insurreição daqueles que foram sujeitados por


disciplinas e comentários no sistema de citação e ensino pautado na colonia-
a re

lidade dos corpos, pensamentos e desejos.

Os enunciados coletivos dos feminismos ciborgues: arte e resistência


alinhavadas por atividades marginais residuais
par

É importante iniciarmos essa discussão partindo do que Guattari em


Ed

“Linhas de Fuga” (2013) nos antecipa a respeito da desterritorialização dos cor-


pos. A produção de novos enunciados que possam intensificar os fluxos locais
ão

frente a toda organização do social, criará “atividades marginais residuais”,


tendo em vista o sufocamento sobreposto de uma certa ‘ditadura do signifi-
cante’. Para Guattari (1985), nossos corpos tendem a todo momento a pertencer
s

a um território de linguagens que permita produções de sentido na vida.


ver

A produção de sentido, que ocorre em nível verbal, pressupõe a depen-


dência de uma língua significante. A falta de palavras para os sentidos nos
aprisiona como se estivéssemos condenados a esperar por cadeias de signi-
ficantes linguísticos para interpretar e controlar os caminhos autorizados, os
sentidos proibidos e as brechas toleradas. São as atividades marginais resi-
duais, dos corpos que não se submetem a cadeia de palavras de dado território
que produzirá uma linguagem desterritorializada e marginal.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 31

As ações artísticas de resistência operam nos mais diversos fluxos, através


das mídias, rede, passeatas, conversas, rodas de companheiros. Porém nenhum
modo poderia justificar a necessidade de domesticalização das pulsões, e, de
fato, os diversos modos atuais de assujeitamento econômico e social são em
grande medida o que se sobrepõe a ditatura do significante. Para Guattari

or
(1993), a arte não é apenas o instituído de uma cultura, sobretudo como cultura

od V
de elite e enquanto entretenimento e lazer. A arte é uma prática de estilização

aut
de si e do mundo, estilística da existência.
Essa ditadura do significante (p. 22) fará aos poucos que os corpos dentro
de uma universidade, sejam submetidos a uma domesticalização de suas inten-

R
sidades e uniformizará até criar o perfil que contorna o significante universi-
tário. Assim, a competência, a submissão, o silenciamento fará no passar dos

o
dias de toda graduação, dos corpos universitários saudáveis, uma preparação
aC
para o mercado, que os faça ser normais, viris, iguais... É por meio de uma
ditadura do significante universitário que muitos jovens acabam morando em
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determinados bairros da cidade, ocupam uma fragmentada ideia da cidade que


o cerca, tem poucas intervenções no campo social, que não sejam acadêmi-
visã
cas, e independente do gênero dos corpos, estarão submetidos a tendenciosos
enunciados machistas, brancos, falocêntricos que estão presente em culturas
nas quais o capitalismo ainda se sustenta.
itor

Aqui vemos o perigo dos corpos marginais, dentre os feminismos cibor-


gues que enfrentam a vida com posturas coerentes e que estão permeados
a re

por intensidades outras, corpos de meninas e meninos, que não acreditam


mais na ciência senão numa tecnociência que comtemple seus corpos, seus
pertencimentos afetivos, culturais e principalmente nas tendências ciborgues
pós-humanas. Haraway (2013), na tentativa de desenvolver uma perspectiva
par

epistemológica e política, esboça uma possível unidade política, uma imagem


que deve muito aos princípios socialistas e feministas de planejamento político.
Ed

A moldura para minha imagem é determinada pela extensão e pela impor-


tância dos rearranjos das relações sociais, mundialmente, nas áreas de ciência
e tecnologia. Em uma ordem mundial emergente, análoga, em sua novidade
ão

e abrangência, àquela criada pelo capitalismo industrial, argumento em favor


de uma política enraizada nas demandas por mudanças fundamentais nas
relações de classe, raça e de gênero (p. 58).
s

Assim, segundo Haraway (2013), passamos por uma transição das velhas
ver

e confortáveis dominações hierárquicas para novas e assustadoras redes que


ela chamará de ‘informática da dominação’ (p. 65). É por meio de seus estudos
que percebemos o quanto não podemos analisar os objetos como ‘naturais’ e;
em relação a objetos tais como componentes bióticos, podemos pensar não em
termos de propriedades essenciais, mas em termos de projeto, restrições de
fronteiras, taxas de fluxos, lógica de sistemas, custo para reduzir as restrições
no plano dos processos de dominação. 
32

Ao propormos aqui a relação dos enunciados sobre os corpos, atentamos


para os corpos que são afetados pelas questões de gênero e ainda sofrem terrí-
veis ameaças de extinção advinda de uma tendenciosa e falo-antropocêntrica
realidade. Estes corpos formam o contorno de um corpo híbrido, cruzado por
tecnobiologias e afetadas por relações de condutas normativas que tentam

or
contornar os limites éticos de pertencer a dados territórios. Existem em dadas

od V
proporções, intensidades que produzem os novos enunciados e produções de

aut
sentidos coletivas que de antemão já são práticas marginais residuais.
O ciborgue é ao mesmo tempo ficção e realidade, portanto não pode ser
compreendido apenas no plano da historicidade, é necessário remetê-lo às linhas

R
de fuga que o ligam ao campo do possível. Ciborgues são um certo modelo de
agenciamento que envolve pessoas e coisas que assumem configurações onto-

o
lógicas singulares rompendo velhos dualismos. São configurações ontológicas
aC
mais próximas do rizoma que comporta o crescimento das dimensões numa
multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta

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suas conexões. Ciborgues falam da reconfiguração de fronteiras corporais e de
encaixes políticos entre elementos de diversas ordens (GALINDO, 2003, p. 04).
visã
A produção de vídeos, escritas, fanzines, músicas, palavras de ordem, são
visíveis e constantes no campos da FCL-UNESP-Assis-SP. Contamos com
dezenas de corpos preocupados com os espaços e novas formas de ocupa-los
itor

e para além da questão de gênero, é importante registarmos aqui que a maioria


a re

destas práticas são protagonizadas por corpos que configurados ontologica-


mente atuam de forma ativa e contínua, seja na representação discente no
diretório acadêmico, composto por uma chapa de mulheres, nos Conselhos
Acadêmicos, nos coletivos negro, LGBTT, dentre outras intensidades que
par

compõe o diverso campus universitário.


Consideramos residual a denúncia e a militância das empenhadas em
Ed

registrar em vídeos e atas as principais pautas pensadas e articuladas, demons-


trando assim sua linguagem clara, objetiva e comprometida. Sem contar as
inúmeras paredes de cimento que até então eram frias pela cidade de Assis-SP,
ão

e agora fortes ditos e posturas são grafitadas, expelidas de profundas afecções


e colorindo com verdades feministas e marginais os bairros em que puderam
alcançar os passos marginais.
s

São estas práticas marginais residuais que nos importa e aqui neste artigo
ver

são apresentadas como expressões estéticas coletivas em poesia, grafite, fan-


zine, performances, intervenções em processos paradigmáticos próximos a
proposta ética-estética-política de Deleuze e Guattari (1995). São os enuncia-
dos dos feminismos ciborgues que ressoam sobre os corpos que coletivamente
constroem ações possíveis. Nesta empreitada de novas intensidades e fluxos,
Haraway manifesta que: “As feministas-ciborgues têm que argumentar que
‘nós’ não queremos mais nenhuma matriz indenitária natural e que nenhuma
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 33

construção é totalidade” (HARAWAY, p. 58). Sendo assim, devemos consi-


derar ainda que para Galindo (2003) ao tratar das figuras de borda, atenta-nos
que para contornarmos a figura do ciborgue é importante que:
Aqui vale retomar um dos princípios de desnaturalização que orientou
a formulação da metáfora do ciborgue, o de que o estabelecimento das fron-

or
teiras ou dos traçados corporais é uma questão conceitual e política e que o

od V
melhor modo de ver mais amplamente é ver a partir de algum lugar. Talvez o

aut
problema esteja em tomar a figura do ciborgue como categoria de classificação
e não como uma metáfora que em determinado momento funcionou como
uma figura de borda, capaz de fazer ruir um conjunto de dicotomias (p. 9).

R
Sim, o ciborgue rui e desmorona todos os conjuntos de dicotomias e os
corpos de universitários extrapolam os limites do dentro e do fora, do sagrado

o
e do profano, da ciência e do senso comum, do público e do privado, reve-
aC
lando-nos presença de fluxos que questionam a todo momento as relações de
poder pela autogestão. Acompanhar e pertencer a estas intensidades, tendo
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como armas as leituras de teorias feministas, permite-nos relacionar com


realidades criadas e enunciados que movimentam devires e nos façam ser
visã
criaturas conectadas nas relações do cotidiano.
No bojo destas costuras realizadas, acima, é possível visualizemos a
coragem da verdade, fazendo valer a parresía com todos os riscos de sua efe-
itor

tuação em cada atitude crítica e nas cotidianas composições de uma agência do


a re

pensar-fazer ciborgue. A parresía é o franco falar, contrariando a bajulação e a


retórica. Falar a verdade se tornou um risco de ser exilado, morto, silenciado
e de ser condenado no ostracismo, segundo Foucault (2010).
par

Considerações finais
Ed

Os feminismos ciborgues agem sobre os corpos, simultaneamente por


meio de ‘intervenções’ que vêm afetado os dois tipos de ‘seres’, os que são para
Haraway de um lado seres humanos que se tornam em variados graus, mais
ão

‘artificiais’ e por outro se tornam mais ‘restauradas’ no território local. Assim,


de acordo com a taxonomia proposta por Gray, Mentor e Figueiroa-Sarriera
(1993, p. 03) as tecnologias ciborguianas podem ser: 1. Restauradoras: permitem
s

restaurar funções e substituir órgãos e membros perdidos; 2 normalizadoras:


ver

retornam as criaturas a uma indiferente normalidade; 3. Reconfiguradoras: criam


seres humanos e, ao mesmo tempo, criatura diferente deles; 4. Melhoradoras:
criam criaturas melhoradas, relativamente ao ser humano (SILVA, p. 14).
A corporação e nutrição desta proposta de Psicologia transcultural femi-
nista e antirracista (HARAWAY, 1997) produz uma força para se buscar con-
ceitos nos Estudos Culturais. Ao evocar a figura da Híbrida, da Mestiça e da
Ciborgue, coloca-se em voga linhas de conjugações, aproximações, misturas
34

e conexões entre essas três figuras, capazes de semear um território novo


de pensamento das psicologias um território necessário para acompanhar as
subjetivações marginais.
De acordo com Kern (2004, p. 56), o hibridismo possui duas dimensões,
uma política caracterizada pelo agir no discurso e na ação e uma dimensão

or
estética, que se caracteriza por um modo de construção de objetos culturais diz

od V
respeito a campos, tais como: a música, o artesanato e o cinema, expressando

aut
seu interesse na questão dos modos como “os artesãos nomeados indígenas
conseguem colocar seus produtos no mercado, e as estratégias de hibridação
formal que adotam, suas poéticas visuais, os modos de construção de suas

R
obras” (KERN, 2004, p. 58). É necessário não caminhar por linhas naturali-
zantes e que podem reduzir o hibridismo a uma homogeneização das culturas,

o
pois quando fala-se do aspecto potente do híbrido:
aC
Queremos nos referir a um processo de ressimbolização em que a memó-
ria dos objetos se conserva e em que a tensão entre elementos díspares gera

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novos objetos culturais que correspondem a tentativas de tradução ou de ins-
crição subversiva da cultura de origem em uma outra cultura, então estamos
visã
diante de um processo fertilizador (BERND, 2004, p. 100-101).
Haraway (2013) caminha neste lugar de re-figuração da mulher, do
humano, para escapar das amarras identitárias e categorias universais, pro-
itor

põe uma figura híbrida, uma subjetivação ciborgue. Esse híbrido máquina-
a re

-homem, máquina-mulher é uma ficção que “mapeia nossa realidade social


e corporal” e se dá, também como um recurso imaginativo que pode sugerir
alguns frutíferos acoplamentos” (PRECIADO, 2011, p. 37). Ciborgues estão
no contexto da tecnologia e estão sempre em conexão, “vivem em um mundo
par

intimamente reestruturado por meio de relações sociais da ciência e tecnologia


que estariam gerando novas formas sociais que por sua vez demandam novas
Ed

formas de compreensão” (GALINDO, 2003, p. 05).


Com essa breve definição de ciborgue busca-se evidenciar a ressonância
entre os conceitos de hibrida e mestiça, para ao longo da confecção deste
ão

projeto os conceitos sejam um instrumente forte e rigoroso de conjugação


com a cartografia do processo de criação artística em coletivos de jovens uni-
versitárias. Por fim, gostaríamos de localizar ainda na escrita deste capítulo,
s

o que a figura do ciborgue pode proporcionar as teorias feministas.


ver

Libertadas da necessidade de basear a política em uma posição supos-


tamente privilegiada com relação à experiência da opressão, incorporando,
nesse processo, todas as outras dominações, podemos, da perspectiva dos
ciborgues, vislumbrar possibilidades extremamente potentes. Os feminismos e
os marxismos têm dependido dos imperativos epistemológicos ocidentais para
construir um sujeito revolucionário, a partir da perspectiva que supõe existir
uma hierarquia entre diversos tipos de opressões e/ou a partir de uma posição
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 35

latente de superioridade moral, de inocência e de uma maior proximidade com


a natureza. Sem poder mais contar com nenhum sonho original relativamente
a uma linguagem comum, nem com uma simbiótica natural que prometa uma
proteção da separação “masculina” hostil, estamos escritas no jogo de um texto
que não tem nenhuma leitura finalmente privilegiada nem qualquer história de

or
salvação. Isso faz com que nos reconheçamos como plenamente implicadas no

od V
mundo, libertando-nos da necessidade de enraizar a política na identidade, em

aut
partidos de vanguarda, na pureza e na maternidade. Despida da identidade, a
raça bastarda ensina sobre o poder da margem e sobre a importância de uma
mãe como Malinche. As mulheres de cor transformam-na, de uma mãe diabó-

R
lica, nascida do medo masculinista, em uma mãe originalmente alfabetizada
que ensina a sobrevivência (HARAWAY, 2013, p. 89).

o
Que nossos corpos continuem conectados a agenciamentos coletivos,
aC
que novos conceitor e modos de existir germinem e que possamos ocupar
espaços são propostas que este capítulo tentou nos trazer. Buscou-se também
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evidenciar constantes esforços para que os corpos se juntem e gerem outros


acontecimentos, só assim novos devires-mulher-ciborgue-feminista poderão
visã
transformar realidades. Galindo (2003) assinala o quanto ontologicamente
desejamos encontrar sentidos ao nos perguntarmos que aspectos têm um cibor-
gue fora do umbigo do monstro que o (re)produz?
itor

Assim, aponta-se que para algumas pessoas, os ciborgues podem resultar


a re

mais em uma imagem ambivalente de um ‘outro’ do que uma reconfiguração


provocativa de um ‘eu’. Que ciborgues povoam os nossos sonhos e outros
sonhos?’ (p.8) Saber o que os corpos que são hoje ciborgues e não preferem
se igualar a ideia de uma deusa, que passam pelo processo universitário irão
par

reproduzir como profissionais das áreas biológicas e humanas dependerão da


constante disposição ao hibridismo e à conectividade política.
Ed

Assim, aponta-se como o agenciamento da micropolítica é uma revolução


molecular, operando linhas de uma cama de gato, diagrama e agenciamento
de resistências e agonísticas, produção da diferença no corpo a corpo das
ão

relações. Desfazer e desdisciplinarizar as práticas é um ato de coragem e


demanda atenção cotidiana, em uma ética da existência e em uma história
política da verdade como rede de controvérsias e tensões que não façam
s

proliferar desqualificações e desautorizações e sim afirmem a potência dos


ver

encontros e expandam afecções estéticas ciborgues.


Profanar a babel da universidade é poder criar linhas de fuga ao cien-
tificismo patriarcal, heteronormativo e misógino e colonizador de corpos e
saberes por capacitismos e sexismos. Com efeito, é possível constituir um
dispositivo ciborgue que desorganiza as linhas duras do fechamento acadê-
mico em sectarismos de privilégios da branquitude bacharelesca e classista.
36

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aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
REFLEXÕES TEÓRICA-
METODOLÓGICAS FEMINISTAS
DECOLONIAIS

or
od V
Adriane Raquel Santana de Lima

aut
Introdução

R
A mulher de cor iniciante é invisível no mundo dominante dos

o
homens brancos e no mundo feminista das mulheres brancas,
aC apesar de que, neste último, isto esteja gradualmente mudando.
A lésbica de cor não é somente invisível, ela não existe
(Glória ANZALDUA, 2000, p. 229).
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visã
Neste artigo apresentamos construções iniciais por uma epistemologia
feminista, especialmente, as pulsantes a partir de uma concepção na América
Latina, que desvela nas interseções as ausências deixadas pelo feminismo
de supremacia branca, europeu e norte-americano. O debate deste texto está
itor

circunscrito no chamamento de Anzaldúa (2000), que aponta os perigos


a re

enfrentados por nós, mulheres de cor, mulheres latinas, mulheres indíge-


nas, mulheres afroindígenas, mulheres chicanas, mulheres lésbicas, por nós
mulheres não-brancas. Perigos que não estão na mesma proporção que para
as mulheres brancas, apesar de enfrentarmos alguns perigos comuns. É neces-
par

sário denunciar a invisibilidade que nos foi imposta, como pontifica a autora
na epígrafe do início desse texto.
Ed

Para Anzaldúa (2000), as mulheres de cor nunca tiveram privilégios e


os perigos que enfrentamos são múltiplos e, às vezes, podem parecer intrans-
poníveis. Todavia, a autora nos alerta que os perigos não podem ser apenas
ão

transcendidos, porque é necessário que sejam atravessados, pois atravessar


é quebrar, dissipar e fazer em pedaços os perigos que nos assombram. Des-
construir a condição de subalternização das mulheres mestiças, no Sul, não
s

é uma tarefa simples e/ou imediata, bem como visibilizar um pensamento


ver

histórico e epistemológico feminista do Sul, que tem como base o lugar


das mulheres colonizadas1/subalternizadas da América Latina e de outras
regiões do Sul global, tampouco é tarefa fácil A ação em desconstruir um
1 O termo mulheres colonizadas ultrapassa a demarcação histórica do período colonial, pois entendemos
que há uma colonialidade que ainda incide sobre as mulheres do Sul global, violando seus corpos, desejos,
prazeres e vidas. Sentimos o peso do racismo, do patriarcado e da inferiorização imposta desde o período
colonial até os dias atuais.
40

determinado tipo de feminismo e construir outro não está ligada à tentativa


de estabelecer hierarquias de qualidades ou importância entre um e outro,
mas demarcar as diferenças entre um feminismo branco euro-norte-ameri-
cano e um feminismo sul-latinoamericano.
Em 2007, na I Conferência Internacional Vozes de Nuestra América, a

or
pensadora Baltodano (2010) declarou que a criação e a construção de um outro

od V
mundo possível nasce do “Sol” que vem do Sul. Para essa autora, a mudança

aut
e as novas práticas sociais nascem dos países de “baixo”, do Sul global. Na
mesma direção, defende Boaventura Santos (2006) a criação do que ele chama
de Epistemologias do Sul, nascidas em “Nuestra América”, assim como na

R
África e na Ásia, de forma contra-hegemônica, procurando valorizar os conhe-
cimentos das populações ancestrais e estabelecer um novo padrão de relações

o
locais, nacionais e transnacionais entre conhecimentos e populações, assentado
aC
ao mesmo tempo na igualdade e no reconhecimento da diferença.
Para Baltodano (2010), emerge do continente latino-americano uma

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variedade de sujeitos e movimentos econômicos, políticos e culturais. O sur-
gimento desses novos e diferentes sujeitos é irreversível no mundo contempo-
visã
râneo e afronta o monopólio de velhos sujeitos e formas tradicionais de pensar
a sociedade. Podemos imaginar a emersão dessas múltiplas realidades e grupos
sociais como uma teia das diferenças culturais, que produzem perspectivas
itor

alternativas para pensar o mundo e entender o lugar das mulheres em muitas


a re

outras dimensões. Por exemplo, entender o papel da mulher na história e no


conhecimento da humanidade e, também, a denúncia como um ato político
e construtivo sobre as condições inferiores que foram impostas a elas. Neste
artigo, o nosso destaque é para o conhecimento histórico, político e cultural
par

produzido pelas mulheres latinas, que, pelos pilares opressivos do sistema


mundo moderno/colonial, nos atravessa por violências múltiplas.
Ed

É nesta perspectiva, parafraseando Gayatri Spivak (2010), perguntamos:


“Podem as mulheres subalternas do Sul falar?”. Colocamos a questão no
plural para evidenciar a diversidade dos grupos de mulheres. Spivak (2010)
ão

propõe em sua teoria a “desaprendizagem”, pois, segundo ela, precisamos


desaprender o que foi padronizado pelo paradigma dominador-oficial; desa-
prender a subtração histórica imposta ao subalterno, em geral, e às mulheres
s

subalternas, em específico. Para esta autora, a mulher desaparece entre o


ver

patriarcado e o imperialismo no processo de constituição do sujeito-objeto.


E o desaparecimento torna-se mais violento quando se trata das mulheres da
periferia do sistema-mundo (WALLERSTEIN, 1996).
Daí o compromisso de nós intelectuais e do movimento feminista do
Sul global de tornar evidentes essas “vozes delirantes” que pulsam nos/as
subalternos/as, nos/as “outros/as” e nas mulheres subalternas. Spivak (2010)
destaca o compromisso das intelectuais em romper essa opressão e atribuir
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 41

valores, destacar direitos e exigir respeito às subalternizadas nessa ordem


social. Nesta lógica de denúncia e anúncio, consideramos que as mulheres
subalternas do Sul, em especial da América Latina, têm muito a dizer, a con-
tribuir e a produzir para uma nova ordem social-histórico-cultural.
Trata-se, agora, de desconstruir este discurso e esta imagem instituídos

or
pelo colonialismo, pela epistemologia eurocêntrica e pela história oficial que

od V
caracterizam as mulheres como não-sujeito, uma cópia mal-feita do homem,

aut
sem direitos sociais e como indivíduo não-pensante. Mulheres destinadas,
exclusivamente, a atender às necessidades da família, aos desejos sexuais

R
masculinos e aos cuidados das crianças e dos homens. É importante esclarecer
que as mulheres brancas têm sido historicamente subjugadas por sua suposta
inferioridade física, biológica e afetiva. Todavia, para as mulheres do Sul,

o
para além das dimensões já citadas, é acrescida a condição étnica, racial e de
aC
classe (mestiça, indígena, negra e da classe trabalhadora), para legitimar a
colonização, não só das terras, mas também dos desejos e dos nossos corpos.
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Isso nos leva a seguir perguntando: há feminismos pulsantes no Sul


visã
global? O feminismo que precisamos vai além da igualdade de direitos civis?
Nosso feminismo é para além do capitalismo? Podem as mulheres latinas
falarem? Quando falam são ouvidas? São questionamentos políticos e episte-
mológicos em curso sobre o conhecimento dominante e a cultura conservadora
itor

e repressiva produzida pela modernidade/colonialidade.


a re

Este artigo está organizado em duas partes centrais, além desta introdu-
ção e das considerações finais. Apresentamos na primeira parte uma reflexão
decolonial sobre o patriarcado como um pilar da modernidade/colonialidade;
na segunda, apresentamos uma reflexões teóricas-metodológicas feministas
par

a partir das diferenças, ou, como estamos chamando, dos feminismos que
pulsam do Sul.
Ed

A colonização de territórios, corpos, desejos, sexos e gêneros:


o patriarcado como pilar da modernidade
ão

A colonização é um processo histórico que valoriza e centraliza a subje-


s

tividade masculina europeia, ao mesmo tempo em que inferioriza duplamente


a mulher mestiça, a mulher colonizada, a mulher indígena, a mulher a afro-
ver

descendente. Já destacamos que as condições de subordinação impostas às


mulheres brancas europeias e norte-americanas não são as mesmas sentidas
e impostas às mulheres mestiças e colonizadas da América Latina e de outras
regiões do Sul do mundo. Portanto, consideramos existir uma diferença fun-
damental, política e epistemológica, entre o feminismo branco do hemisfério
Norte e os feminismos não-brancos existentes no Sul.
42

É neste sentido que é necessário pensar que a ação colonizadora está


diretamente relacionada à construção da modernidade. No contexto da moder-
nidade são produzidas ações dominadoras e práticas de colonização, que
envolvem a exploração de terras e pessoas, subjugação do trabalho ao capital,
etnocentrismos e epistemicídios das culturas e dos conhecimentos das popu-

or
lações originárias da América Latina.

od V
Apesar do discurso da modernidade estar associado ao progresso, à justiça

aut
e à igualdade, a modernidade é, na realidade, um mito, porque esconde, sob sua
retórica salvacionista, práticas de exclusão e violência sobre grupos colonizados.
La Modernidad tiene un “concepto” emancipador racional que afirma-

R
remos, que subsumiremos. Pero, al mismo tiempo, desarrolla un “mito” irra-
cional, de justificación de la violencia, que deberemos negar, superar [...] De

o
manera que 1492 será el momento del “nacimiento” de la Modernidad como
aC
concepto, el momento concreto del “origen” de un “mito” de violencia sacri-
ficial muy particular y, al mismo tiempo, un proceso de “en-cubrimiento” de

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lo no-europeo (DUSSEL, 2008, p. 8-9).
Daí que, para este autor, a modernidade nasce com o propósito e o desafio
visã
de desmitificar os mitos que sustentavam crenças teocêntricas na Europa e
simultaneamente cria outro mito, o da superioridade europeia, como razão
para justificar a dominação do outro. O autor descreve que essa racionalidade
itor

encontra sua melhor formulação no ego cogito, que é a base da subjetividade


a re

moderna (1492-1636), teorizado por Descartes. O ego cogito, sustentado por


um ego conquistador, possibilitou à Europa as conquistas e a exploração de
outros territórios e povos.
Ainda para Dussel (2008), as conquistas de territórios, de culturas, de
par

sexos são encobertas pelo mito da modernidade. A era das Conquistas foi um
momento crucial para a história da modernidade, porque é aí que a Europa
Ed

se afirma como centro do mundo, e é também neste contexto que o homem


europeu e branco se apresenta como o exemplo paradigmático de civilidade e
de humanidade. Portanto, o ego cogito legitima, no contexto da modernidade,
ão

a soberania do homem hetero-civilizado-europeu-branco-cristão, justificando


a sua conquista por meio da violência simbólica e física contra os povos con-
siderados “bárbaros” de outros continentes. Então, temos um homem soberano
s

e que faz de seu território o “centro do mundo”, estabelecendo uma relação


ver

assimétrica com o resto do mundo. Desse modo, o “descobrimento” da América


e de outros territórios deve ser entendido, mais propriamente, como conquista,
um processo histórico que fez da América Latina a primeira periferia do mundo.
É necessário fazermos uma diferença entre conquista e colonização. A
conquista da vida e da cultura é o processo inicial que impõe e justifica da
maneira mais vil a exploração e a escravidão de índios e africanos, mas é com
a colonização que se concretiza a centralidade da subjetividade europeia e
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 43

da civilização ocidental no sistema mundo (DUSSEL, 2008). A dominação


colonizadora que tem acometido a América, a África e a Ásia compreende uma
violência avassaladora de conquista erótica, espiritual, cotidiana e corporal
sobre indígenas, negros e mulheres.
Essa ação violenta, desenvolvida como uma totalidade dominadora, atinge

or
fortemente as mulheres do Sul. O europeu promove uma alienação erótica

od V
nas mulheres indígenas, apresenta-se como macho-conquistador-guerreiro

aut
que possui e domina a índia violentamente, sem qualquer consideração à sua
humanidade, que lhe é negada, levando a uma dupla submissão ao patriarcado

R
(DUSSEL, 2007). A relação sexual, por exemplo, não assume um sentido
sagrado, nem para a religião do conquistador e nem para a religião da conquis-

o
tada, e por isso não se reconhece a união entre esses dois, porque o interesse era
apenas o de satisfazer a voluptuosidade, a sexualidade puramente masculina
aC
opressora e alienante do conquistador. E é nessa ação violenta e de dominação
erótica que as mulheres do Sul têm seus corpos, vozes e desejos silenciados.
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Em meio à violência sexual praticada pelo homem colonizador foram


visã
se constituindo as mulheres latino-americanas. Ou seja, essas mulheres são
fruto da violência. Ainda para Dussel (2007), essa mulher se produz histo-
ricamente na mestiçagem de várias raças, culturas e etnias. Para ele, nasce
uma mulher latino-americana bonita, com um tipo de beleza negra, simpática,
itor

com a alma interessante, companheira e extremamente humana, mas que tem


a re

uma vida marcada pela solidão, pela rugosidade do trabalho pesado e pela
brutalidade da violência sexual.
É fundamental ressaltarmos que a negação da mulher foi justificada
inclusive do ponto de vista das interpretações psicanalíticas. Segundo Dussel
par

(2007), a teoria freudiana é marcada por uma Totalidade-masculina, na qual


o masculino compreende o sujeito, a atividade e a posse do falo, enquanto
Ed

que a mulher integra o objeto e a passividade. A vagina é reconhecida como


albergue do pênis. Trata-se de uma totalidade constituída a partir de um ego
fálico, e a mulher fica definida como um objeto passivo, como um não-eu,
ão

um não-falo, indivíduo castrado.


A totalização deformante da interpretação edípica freudiana funda-se
s

numa experiência europeia e capitalista de família. É preciso, portanto, alcan-


ver

çar uma interpretação que supere esta visão sobre sexualidade eurocêntrica
e capitalista, possibilitando visualizar novas e alternativas relações entre
homem-mulher, pais-filhos, ou seja, conceber a realidade para além de uma
família totalizada, promovendo uma verdadeira morte da família machista.
Diante disso que é necessária a superação da injustiça erótica (a mulher como
objeto sexual), que se estende na injustiça pedagógica (a menina castrada)
e na injustiça política (a mulher com salários menores que os dos homens).
44

Para a historiadora Mary Del Priore (2009), outros elementos são neces-
sários para entendermos a dominação do que chama de “mulheres coloniais”.
Para ela, o processo de adestramento pelo qual passaram tais mulheres foi acio-
nado por dois instrumentos de ação. O primeiro, um discurso sobre padrões
ideais de comportamento, importado da Metrópole, que teve nos moralistas,

or
pregadores e confessores os seus mais eloquentes porta-vozes.

od V
Elementos para esse discurso normatizador já se encontravam impreg-

aut
nados na mentalidade popular portuguesa – mesmo europeia –, como será
mostrado, cabendo à Igreja metropolitana adaptar valores conhecidos das
populações femininas, para um discurso com conteúdo e objetivo específicos

R
(DEL PRIORE, 2009, p. 23).
O segundo instrumento utilizado para a domesticação da mulher foi o

o
discurso normativo médico sobre o funcionamento do corpo feminino. “Esse
aC
discurso dava caução ao religioso na medida em que asseverava cientificamente
que a função natural da mulher era a procriação” (p. 24). Para a autora, fora da

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maternidade, a mulher estava condenada à melancolia, à luxúria, à exclusão.
Desse modo, o projeto da modernidade/colonialidade é marcado fun-
visã
damentalmente pela dominação da mulher latino-americana, ainda que este
tema não tenha recebido o destaque necessário do movimento feminista e
das epistemologias feministas dominantes brancas. De muitas formas, esse
itor

feminismo continua preso ao paradigma da modernidade, ao seu mito, à sua


a re

retórica salvacionista, deixando de reconhecer, como afirma Walter Mignolo


(2007), que a colonialidade é constitutiva, e não derivativa, da modernidade.
A herança da modernidade para a América Latina é a configuração da
inferioridade, da criação do selvagem indígena e do negro escravizado. Neste
par

sentido, o selvagem é a representação concreta da violência cultural desse


milênio e produz uma diferença incapaz de se tornar alteridade, pois o sel-
Ed

vagem é sem valor, um não-ser completamente subtraído da “civilização”,


servindo apenas como “escravos naturais”.
A modernidade criou dois lados, dois mundos e uma cisão cultural, estabe-
ão

lecendo-se, de um lado, o ocidente civilizado e, do outro lado, o não-ocidente


selvagem. A modernidade como mito, como descoberta imperial e/ou impe-
rialismo, constituiu formas/nomes que produziram uma tessitura cultural jus-
s

tificadora de conflitos, de mortes, de derramamento de sangue e da escravidão.


ver

Para Santos (2006), o imperialismo produziu desigualdades profundas e um


imaginário de discriminação que promoveu a subalternização dos ameríndios.
No entanto, é preciso enfatizar que a América Latina, apesar da pecha de
“selvagem” atribuída pelo mito da Modernidade, é também o lugar de ques-
tionamento, de rebeldia e de reflexão crítica sobre essa conquista imperial. A
consequência desta reflexão tem sido a desordem, a recusa de ser um território
“exótico” para a exploração da natureza e a dominação do e da “selvagem”.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 45

Questionar é um sentimento de inconformismo e de recusa em permanecer


no lugar inferior. Santos (2006, p. 190) afirma que é importante e urgente o
reconhecimento de um paradigma do subalterno.
As pertinentes reflexões sobre a herança da colonização e da construção
do “mito” que formou e consolidou a modernidade levam-nos a perguntar:

or
Como é vista essa mulher latino-americana formada por um amálgama de

od V
etnias e relações de poder? Por que o homem branco europeu dominou e

aut
alienou erótica e socialmente a mulher latina? A condição das mulheres colo-
nizadas é a mesma condição das mulheres brancas europeias? São questiona-

R
mentos que nos provocam a uma reflexão epistemológica sobre o feminismo
latino-americano das mulheres do Sul, que sofrem colonialidade do gênero.
É o que seguiremos discutindo no próximo tópico.

o
aC
Não somos uma, somos diversas: reflexões teórica-metodológicas
feministas
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visã
Há uma urgência em pensarmos recursos teóricos-metodológicos a partir
do prisma dos feminismos pulsantes no Sul global. Assim, destacamos alguns
pontos que possam nortear o olhar e as reflexões sobre como as metodologias
feministas promovem formas outras de pensar e a produção do conhecimento:
itor

1 – Corpo-território como recursos de integração com tudo que estamos envol-


a re

vidos (corpo-sentimentos-movimento-espaço). Entender que o corpo território é


algo vivo, dinâmico e que para entender essa categoria no processo de educação
feminista nos exige romper como a forma de conhecimento tradicional que
concebemos e anunciar uma sabedoria viva ancestral; 2 – Sabedoria-feminista,
par

a necessidade de legitimar a produção do conhecimento produzido pelas lutas


feministas e que incidem sobre a formar de estar no mundo. Entender que a
Ed

produção e a vivência de sabedorias é um caminha de cura do corpo e da alma


feminina; 3 – Sexualidade-sentimento, inserir o debate da sexualidade como
forma de sentir o mundo e as emoções vividas nas mais diversas relações
ão

humanas; 4 – Vida-liberdade, é uma categoria central para visualizarmos como


centralidade a vida como garantia de direito e liberdade como uma reivindi-
s

cação histórica das mulheres e das populações originárias.


ver

O processo de ruptura é doloroso e nos desafiar pensar estruturas outras


de leituras da realidade, porque somos diversas e as opressões que incidem
sobre nós mulheres também necessitam ser vistas com o prisma das diferenças
e talvez seja nosso maior desafio aceitar as diferenças como parte das nossas
vidas, pois, quando universalizamos e/ou padronizamos um determinado
retrato social, se produzem violências e extermínios de realidades, culturas,
povos, epistemologias e sociedades.
46

A reflexão teórica-metodológica feminista feminismo caminha na con-


tramão da lógica racionalista, individualista e heteronormativa, porque tem no
seu horizonte o enfrentamento da modernidade/colonialidade e, para isso, pre-
cisamos ler o corpo-território de múltiplas maneiras, entender a participação e
a organização coletiva das mulheres, que nos possa revelar as subjetividades

or
desse sujeito coletivo. A nossa vida-liberdade será alcançada de forma coletiva

od V
e não individualista, porque estamos envolvidas no emaranhado de opressões.

aut
Para sermos nós e, não mais outro subtraído, implica que criemos uma resis-
tência cultural, que pode, também, se contrapor a mulher branca (CELEN-
TANI, 2015). Para debatermos estas questões, compartilhamos de algumas

R
reflexões da feminista decolonial de María Lugones (2010), quando propõe
um quadro de abstração distinto, ou uma lente que nos permita ver e ler o

o
que está oculto na relação entre raça, gênero, classe e sexualidade na América
aC
Latina. A autora provoca, assim como Dussel, uma releitura da modernidade
colonial capitalista, e propõe a superação de uma abordagem reducionista e

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fragmentadora, que não pensa tais categorias em suas inter-relações.
Para a autora, a modernidade opera com uma lógica compartimentada,
visã
que organiza o mundo em categorias distintas (gênero, sexo, classe, raça,
geração), como se uma categoria não interferisse, simultânea e contradito-
riamente, na outra. Lugones (2010) afirma que a categorização distinta de
itor

“mulher” e de “negro” levou a uma análise isolada destas categorias que não
a re

revela a especificidade das mulheres negras, assim como também é ausente,


no paradigma da modernidade e do feminismo branco, uma reflexão mais
específica sobre a mulher mestiça ou a mulher indígena. Isso porque, para
a modernidade, existe a categoria mulher (com um único sentido) e o negro
par

(com único sentido). Assim, é necessário estabelecer a interseção entre essas


duas categorias na representação da mulher negra, mestiça, latino-americana,
Ed

o que a leva a pensar na superação dessas categorias isoladas, propondo a


imbricação e a superação do caráter opressor e preconceituoso que foi sendo
construindo ao longo da modernidade.
ão

A Modernidade organiza o mundo, ontologicamente, em termos de cate-


gorias atômicas, homogêneas e separáveis. As mulheres contemporâneas de
cor e a crítica das mulheres do terceiro mundo ao universalismo feminista
s

centralizam a alegação de que a intersecção de raça, classe, sexualidade e


ver

gênero ultrapassa as categorias da modernidade. Se mulher e negro são termos


para categorias homogênas, atômicas e separáveis, então sua intersecção nos
mostra a ausência de mulheres negras em vez de sua presença. Portanto, para
ver as mulheres não brancas é necessário ultrapassar a lógica das ´categorias`.
Proponho o sistema de gênero moderno, colonial, como uma lente através
da qual teorizaremos mais sobre a lógica opressiva da modernidade colonial,
seu uso de dicotomias hierárquicas e a lógica categorial. Quero enfatizar a
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 47

lógica categorial, dicotômica e hierárquica como central para o pensamento


capitalista, colonial e moderno sobre raça, gênero e sexualidade. Isso me
permite procurar por organizações sociais daquelas pessoas que resistiram à
modernidade, ao capitalismo moderno e que estão em tensão com sua lógica
(LUGONES, 2010, p. 742, tradução nossa)2.

or
Além disso, a modernidade lançou mão de dicotomias numa lógica

od V
hierarquizadora da sociedade, classificando as pessoas em humanas e não

aut
humanas, sendo este um poderoso instrumento que normatizou a condição
de inferiorizado do colonizado. Para Lugones (2010), a imposição de um

R
sistema de gênero moderno se fez necessário para reafirmação do homem
branco e heterossexual como superior ao comportamento sexual considerado
“grotesco”, “bestial”, “pecaminoso” do colonizado, marcado pelo não-gênero.

o
Como afirma Guacira Louro (2008), a formação da sexualidade e do gênero
aC
se dá ao longo do tempo e da vivência, sofrendo interferências das normas, do
poder, que estão simbolicamente instituídos e pré-estabelecidos. Por isso que
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compreendemos que a diferença entre os sexos, ou melhor, entre gêneros não


visã
pode ser naturalizada, porque a diferença entre eles é construída social, política
e historicamente. A formação de gênero e da própria sexualidade está constante-
mente relacionada às referências históricas que foram criadas desde a primeira
modernidade com a centralização do ego cogito do homem branco e europeu.
itor

Assim, a situação moderno/colonial fortaleceu a negação das mulheres que já


a re

era algo presente nos dois últimos séculos da modernidade.


É neste sentido que as diferenças de gênero e de sexualidade não podem
ser consideradas como algo que existe absolutamente ou como algo natural,
biológico. A diferença é produzida e imposta nas relações sociais; e na história
par

do Ocidente essa diferença tem sido associada a hierarquias e assimetrias de


um gênero em relação a outro, de um corpo em relação a outro corpo, de uma
Ed

cultura em relação a outra, de uma raça em relação a outra e de um continente


em relação a outro.
E é por esse viés da diferença que começamos a situar nosso ponto de
ão

vista em relação à mulher do Sul. Se já está claro que as diferenças entre


homens e mulheres não é dada naturalmente, mas construída nas relações
s
ver

2 Modernity organizes the world ontologically in terms atomic, homogeneous, separable categories.
Contemporary women of color and third-world women’s critique of feminist universalism centers the claim
that intersection of race, class, sexuality, and gender exceeds the categories of modernity. If woman and
black are terms for homogeneous, atomic, separable categories, then their intersection shows us the absence
of black women rather than their presence. So, to see non-white women is to exceed ‘categorias’ logic. I
propose the modern, colonial, gender system as a lens through which to theorize further the oppressive
logic of colonial modernity, its use of hierarchical dichotomies and categorial logic. I want to emphasize
categorial, dichotomous, hierarchical logic as central to modern, colonial, capitalist thinking about race,
gender, and sexuality. This permits me to search for social organizations from which people have resisted
modern, capitalist modernity that are in tension with its logic (LUGONES, 2010, p. 742).
48

sociais, é preciso então compreender as repercussões da conquista colonial


sobre estas relações de gênero. Quando o homem europeu elege seu ego como
o centro da civilização e da modernidade, a mulher colonizada se constituiu
como explorada não apenas por sua condição de mulher, mas também por-
que integrava o grupo de gente considerada bárbara, a quem se questionava

or
inclusive se tinham alma, se pertenciam à espécie humana.

od V
As relações coloniais promoveram não somente as trocas comerciais,

aut
mas também o tráfico de pessoas e corpos. Os navios negreiros são exemplo
concreto e material dessa utilização do corpo como objeto ou mercadoria.

R
É nesta perspectiva que o racismo tem se apresentado como uma prática
dominadora profundamente associada à sexualidade e ao desejo, como afirma
Robert Young (2005, p. 221-222).

o
A história dos sentidos da palavra ‘comércio’ inclui tanto a troca de
aC
mercadorias quanto de corpos em relações sexuais. Portanto, foi inteiramente
adequado que a troca sexual (e seu produto miscigenado-misturado), que

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


capta as relações de poder violentas antagônicas da difusão sexual e cultural,
viesse a se tornar o paradigma dominante por meio do qual o apaixonado
visã
comércio econômico e político do colonialismo foi concebido. Talvez isso
comece a explicar por que nossas próprias formas de racismo permanecem
tão intimamente ligadas com a sexualidade e o desejo.
itor

Para Young (2005), é evidente que as formas de troca sexual produzidas


a re

pelo colonialismo eram reflexo e consequência dos modos de troca econô-


mica, que constituíram a base das relações coloniais. Afirma que a história
dos sentidos da palavra “comércio” inclui tanto a troca de mercadoria quanto
de corpos em relações sexuais. Portanto, a troca sexual, que capta as relações
par

de poder violentas, tornou-se o paradigma dominante por meio do qual o


apaixonado comércio econômico e político do colonialismo foi concebido.
Ed

Assim, não é possível falarmos somente da diferença entre mulheres e


homens, mas também da diferença entre mulheres e mulheres. Para ser mais
específica, entre mulheres brancas e mulheres não-brancas, a diferença entre
ão

mulheres não-colonizadas culturalmente e mulheres colonizadas e alienadas


erótica e culturalmente. É isto que nos leva a afirmar que existe uma dupla
negação das mulheres do Sul, pois tanto o gênero, quanto a raça/cultura ser-
s

viram como justificativas para o domínio e a exploração.


ver

O homem europeu, heterossexual, moderno e colonizador, tido como


o centro da governabilidade e da história, era considerado adequado para a
vida pública, para ser representante da civilidade ocidental e cristã. A mulher
europeia, branca e cristã era concebida como a complementação do homem
europeu, porque ela tinha a vocação da continuidade do homem branco e racio-
nal, por meio da sua “pureza” e passividade, ainda que isto não significasse
o reconhecimento pleno da sociedade europeia de que a mulher era gente. O
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 49

patriarcalismo da sociedade europeia não viabilizava até as primeiras décadas


do século XX a compreensão da mulher como sujeito. Tratar a mulher pelo
viés da proteção masculina não livrou a mulher branca do domínio absoluto
dos homens, muito pelo contrário. Mas, se a mulher branca era, como ainda
é submetida a condições inferiores ao homem, a mulher negra e indígena

or
destribalizada era, e ainda é, muito mais e é essa diferença que estabelece a

od V
hierarquização do gênero na sua intimidade.

aut
A questão de gênero não está fora da modernidade, nem tampouco do pro-
cesso colonizador. Por isso, falamos de mulheres colonizadas como diferentes
das mulheres colonizadoras, trata-se da colonização também sobre corpos,

R
culturas e subjetividades. Nessa direção, não cabe generalizar as condições
de negação das mulheres em um único sentido, porque temos condições his-

o
tóricas e epistemológicas de diferenciação entre as mulheres, inclusive entre
aC
as próprias mulheres do Sul, que tampouco podem ser vistas em “bloco” e é
por essa razão que precisamos falar dos feminismos pulsantes no Sul global.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Lugones (2010) afirma a importância de se estudar a interseção das cate-


gorias gênero/raça/classe/sexualidade, que a possibilitou construir o conceito
visã
de colonialidade do gênero. Dessa forma, pensar a colonialidade do gênero
é alargar a compreensão histórica da colonialidade, pois como as mulheres
colonizadas não são consideradas nessa perspectiva da modernidade/colonia-
itor

lidade como o gênero padrão, a proposta da autora é pensar a resistência das


a re

mulheres a partir de sua diferença colonial.


A resistência, para Lugones (2010), é a tensão entre subjetivação e o ser
ativo, permitindo às resistentes iniciar a luta e a possibilidade da realização de
objetivos políticos, o que rompe com a passividade do sujeito objetificado. A
par

resistência não é um fim de uma luta política, mas o seu início e sua possibilidade.
Para pensar a resistências das mulheres do Sul é importante, primeiro,
Ed

entender a complexidade dos processos em que são formadas, na medida em


que, conforme Lugones (2010), as mulheres estão completamente imersas num
amálgama de culturas e realidades. Para além do simplismo das categorias
ão

isoladas e homogêneas, é urgente a diferenciação das condições econômicas,


raciais, sociais, sexuais, de gênero e cultura que engendram a submissão e a
negação das mulheres do Sul.
s

A resistência dos feminismos que pulsam no Sul tem a preocupação com


ver

a condição de superação da colonialidade do gênero, porque não estamos


somente tratando de um sistema de homens, unilateral e simplista, mas que
existe uma colonização de gênero e que isso não pode ser ignorado nos estu-
dos, uma vez que, em determinados momentos, estudos feministas acabam
por universalizar a condição das mulheres.
Descolonizar gênero é necessariamente uma tarefa prática. É fazer uma
crítica à opressão de gênero racializada, colonial, capitalista e heterossexualista
50

como uma transformação vivida do social. Como tal, coloca o teórico no meio
das pessoas, em uma compreensão histórica, habitada, subjetiva/intersubjetivo
da relação opressora <---> relação de resistência na interseção do complexo
sistema de opressão. Em grande medida, isso tem de estar de acordo com as
subjetividades e intersubjetividades que parcialmente constroem e, em parte,

or
são construídas pela ‘situação’. Isso deve incluir pessoas em ‘aprendizagem’.

od V
Além disso, o feminismo não apenas fornece um relato da opressão das mulhe-

aut
res. Ele vai além da opressão, fornecendo materiais que permitem que as
mulheres entendam sua situação sem sucumbir a ela. Aqui eu começo a prover

R
uma maneira de entender a opressão das mulheres que foram subalternizados
através dos processos combinados de racialização, colonização, exploração
capitalista e heteronormatividade. Minha intenção é focar na elasticidade da

o
subjetividade/intersubjetividade da agência das mulheres colonizadas. Eu
aC
chamo a análise da opressão racializada, capitalista e de gênero de ‘coloniali-
dade do gênero’. Eu chamo a possibilidade de superação da colonialidade do

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gênero de ‘feminismo decolonial (LUGONES, 2010, p. 747, tradução nossa)3.,
visã
A descolonização do gênero pressupõe esclarecer a existência das dife-
rentes condições que estão ao redor das mulheres. As mulheres burguesas
brancas e heterossexuais são vistas como meras reprodutoras da raça branca
e da classe burguesa, mas são vistas como “sujeitos”, isso é, sua humanidade
itor

não lhe foi negada. Já as condições das mulheres não brancas apresentam-se
a re

como completamente outras, são vistas para satisfação do prazer sexual do


homem. Geralmente, são as mulheres erotizadas e vulgarizadas no imaginário
masculino branco. As mulheres não-brancas são vistas para saciar as fantasias
sexuais do macho branco colonizador e sua humanidade é subtraída.
par

Por isso concordamos com Betty Lerma (2010) quando diz que “lo femi-
nismo no puede ser uno porque las mujeres somos diversas.” Ao defender esta
Ed

ideia, não queremos desmerecer a luta do feminismo no mundo branco, mas é


preciso reconhecer que o feminismo branco (europeu e norte-americano) não
ão

3 Decolonizing gender is necessarily a praxical task. It is to enact a critique of racialized, colonial, and capitalist
heterosexualist gender oppression as a lived transformation of the social. As such it places the theorizer in
the midst of peoplein a historical, peopled, subjective/intersubjective understanding of the oppressing<-- -->
s

resiting relation at the intersection of complex systems of oppression. in a historical, peopled, subjective/
ver

intersubjective understanding of the oppressing <-- --> resiting relation at the intersection of complex systems
of oppression. To a significant extent it has to be in accord with the subjectivities and intersubjectivities that
partly construct and in part are constructed by “the situation”. It must include “learning” peoples. Furthermore,
feminism does not just provide an account of the oppression of women. It goes beyond oppression by
providing materials that enable women to understand their situation without succumbing to it. Here I begin
to provide a way of understanding the oppression of women who have been subalternized through the
combined processes of racialization, colonization, capitalist explotation, and heteroexualism. My intent is to
focus on the subjective-intersubjective spring of colonized women’s agency. I call the analysis of racialized,
capitalist, gender oppression “the coloniality of gender”. I call the possibility of overcoming the coloniality of
gender “decolonial feminism” (LUGONES, 2010, p. 747)
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 51

consegue alcançar, ou até mesmo traduzir o sofrimento e as condições a que


foram submetidas as mulheres indígenas, negras, mestiças, latino-americanas
e do hemisfério Sul do mundo.
E considerar a diferença das mulheres é reconhecer que a história não
é um acontecimento linear e que conceitos como gênero e patriarcado não

or
assumem um único sentido, mas sofrem variações, sobretudo quando ana-

od V
lisamos o processo colonizador da América Latina. Por isso, para Lerma

aut
(2010), a história do feminismo, quando contada como uma luta contínua pela
emancipação das mulheres, incorre no risco de desconsiderar as diferenças e

R
as descontinuidades da história.
el sistema de género moderno, colonial no puede existir sin la colonia-
lidad del poder, ya que la clasificación de la población en términos de raza es

o
una condición necesaria para su posibilidad. Concebir el alcance del sistema
aC
de género del capitalismo eurocentrado global, es entender hasta qué punto el
proceso de reducción del concepto de género al control del sexo, sus recursos,
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y productos es constitutiva de la dominación de género. Para entender esta


reducción y el entramado de la racialización y el engeneramiento, debemos
visã
considerar si la organización social del «sexo» precolonial inscribió la dife-
renciación sexual en todos los ámbitos de la existencia incluyendo el saber y
las prácticas rituales, la economía, la cosmología, las decisiones del gobierno
itor

interno y externo de la comunidad. Problematizar el dimorfismo biológico y


a re

considerar la relación entre el dimorfismo biológico y la construcción dico-


tómica de género es central para entender el alcance, la profundidad, y las
características del sistema de género colonial/moderno. La reducción del
género a lo privado, al control sobre el sexo y sus recursos y productos es una
par

cuestión ideológica presentada ideológicamente como biológica, parte de la


producción cognitiva de la modernidad (LUGONES, 2011, p. 93).
Ed

Há diversas intersecções que atravessam as mulheres do Sul que só


podem ser entendidas no interior de um amálgama de relações de poder, que
não se limitam à condição de gênero, envolvendo, também, posições sociais,
ão

identidades sexuais, raciais, étnicas e religiosas. Procuramos representar no


diagrama que a condição das mulheres é atravessada pela economia, política,
etnia, classe social e outras, e que o estudo em separado dessas dimensões
s

incorre na exclusão da mulher não-branca, da mestiça e colonizada.


ver

A dinâmica epistêmica e metodológica da decolonialidade permite ler o


gênero em diversas direções e entender o lugar que ele assume na formação
cultural e social. Essa leitura possibilita desvelar rupturas e entender a impo-
sição do gênero na relação entre pessoas, raças, economias, culturas e assim
por diante, ou seja, entender que a concepção de gênero proposta pelo sistema
moderno é hierárquica, dicotômica e racializada, dando sentido à coloniza-
ção do gênero e articulando a resistência a esse gênero impositivo. O gênero
52

como categoria histórica e representativa para a colonização do sexo constrói


relações simbólicas entre as determinações conceituais e as representações
culturais presentes no sistema de gênero colonial.
O sistema de gênero não é apenas hierárquico quanto à relação entre
homem e mulher. Como bem enfatiza Lugones (2011), ele é também racial,

or
no sentido de que nega a humanidade das mulheres não brancas, reforçando

od V
sua dominação. Isso permite afirmar que as questões de gênero foram traba-

aut
lhadas e sedimentadas nas sociedades periféricas de maneira colonizadora,
sendo o gênero uma categoria de imposição colonial. Essa imposição gera
consequências danosas para as formas de vida das mulheres do Sul, negando

R
direitos e causando prejuízos na formação da subjetividade dessas mulheres,
que são forçadas a internalizar a lógica e a mentalidade do colonizador. Além

o
da dicotomia excludente dos padrões de masculino e feminino, elas são com-
aC
pelidas (não sem resistência) a internalizar as representações de civilização e
de selvageria. No entanto, como já o afirmamos, consideramos que as tensões e

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as fissuras acontecem quando as mulheres resistem a essa dominação colonial.
Acreditamos que os feminismos pulsantes no Sul global têm como desa-
visã
fio visibilizar as diferenças existente e com elas construir uma unidade para
resistir as violentas consequências que o sistema colonial nos impõe. Neste
sentido, é de extrema importância aprendermos umas com as outras para
itor

a construção de um mundo de significados a partir do qual a resistência à


a re

colonialidade torne-se indispensável (LUGONES, 2010). Nossos feminis-


mos necessitam ser enfáticos para produzirmos fissuras nas epistemologias
universalistas e eurocêntricas.
Diante do tenso movimento entre poder e resistência, afirmamos que a
ação de resistir é múltipla e que não se dá no isolamento, na individualidade,
par

mas na coletividade que produz singularidade. A resistência produz comu-


nidades e não indivíduos, porque o fazer é na relação com o outro. Por isso,
Ed

entendemos o feminismo dentro dessa multiplicidade de ações e lógicas de


resistências, desconstruindo a hierarquia da diferença que produziu e impôs
a leitura dicotômica e a dominação de um gênero em relação a outro, de um
ão

corpo em relação a outro corpo, de uma cultura em relação a outra e de um


continente em relação a outro.
Desse modo, resistir à colonialidade do gênero não é uma tarefa que se
s

faça sozinho ou sozinha. Entender o mundo e compartilhar ações de resistência


ver

de maneira coletiva implica reconhecimento mútuo. Pensar a ação coletiva na


comunidade permite o fazer cotidiano com todos, sem o isolamento individua-
lista do sistema capitalista. Para Lugones (2011), é na produção do cotidiano
onde se pode partilhar significados íntimos como sentimentos, gestos, hábi-
tos, espiritualidade e outros que produzimos em comunidade. Desta forma,
a afirmação da vida coletiva fortalece valores comuns comunitários que se
sobrepõem ao lucro e ao individualismo do capitalismo moderno-colonial.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 53

A colisão da diferença para a resistência promove a ética entre o individual


e o coletivo, compreendendo a ética na perspectiva de Dussel (2008) como uma
libertação, que considera e inclui os alijados do processo colonizador. Dussel
(2008) analisa a ética a partir da violência e da “negação do outro”, e produz
um contradiscurso ao pensamento irracional e violento da modernidade.

or
É na perspectiva da diversidade que a história do feminismo definiu e

od V
divulgou um significado universal do que é ser mulher, estabeleceu as bandei-

aut
ras de luta do feminismo, sempre pensando na realidade vivida pelas mulheres
brancas, da classe média, dos países ricos do hemisfério Norte. No entanto,

R
faz-se necessário pensar as diferenças nos feminismos, pensar as mulheres de
forma ampla e reconhecer as diferenças dentro do próprio feminismo.

o
Algumas considerações
aC
Refletir a partir de outros parâmetros a produção do conhecimento,
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nesse caso, a partir do feminismo, é se permitir considerar diversas rea-


visã
lidades sentidas e vividas por mulheres, com suas identidades femininas
concebidas no plural, na complexidade e na intersecção. Este texto defende
o feminismo decolonial como um grande recuso teórico-metodológico, con-
siderando a colisão cultural, política , ancestral e histórica que forma as
itor

mulheres latinas, indígenas, chicana, afroindígenas e afrodescentes. Somos


a re

cercadas por conflitos emocionais e mentais, que resultam na indecisão, na


insegurança e na incerteza da realidade. A personalidade se duplica porque
provoca a inquietude do psicológico. Anzaldúa (1999) chama de Nepan-
tilismo4, que representa o estado múltiplo e, ao mesmo tempo, confuso da
par

mulher mestiça. É um conflito que se localiza entre o mundo espiritual e a


técnica característica do sistema moderno/colonial. A mulher colonizada,
Ed

latino-americana, mestiça, nasce de uma luta de carne, da luta de fronteira e


também da luta interna do choque cultural. Neste sentido, diante da fronteira,
esta nova mestiça estará sozinha, vulnerável e atenta para a diplomacia para
ão

enfrentar o porvir. Para essa mestiça é importante desenvolver a capacidade


de lidar com as contradições, as dicotomias e evitar ficar presa à sua própria
s

fronteira. Deste modo, desenvolverá habilidade para lidar com as contradi-


ções e com a sua própria ambivalência, de onde vem sua força, mesmo que
ver

isso provoque perplexidade nos outros.


Não se trata de mais uma epistemologia fechada nos parâmetros da
modernidade e da hierarquia desumana classificadora da importância dos
seres humanos. Ao contrário, as epistemologias feministas pulsantes do Sul
são ambivalentes, capazes de atravessar a dualidade, de dialogar com múltiplas

4 Palavra asteca que significa partido ao meio.


54

realidades, de tolerar a diferença de forma horizontal, de não hierarquizar


populações e identidades, de interseccionar luz-escuidão/ medo-esperança/
sabedoria-conhecimento e de transitar entre Norte-Sul.
Enfim, os feminismos pulsantes no sul nos possibilitam pensar outras
lutas feministas, fazer enfrentamentos outros pautados em nossa realidade,

or
que deem visibilidade às lutas das mulheres latinas; que trabalhemos para

od V
seu/nosso processo de cura e libertação; que aprendamos com as lutas do

aut
passado para nos capacitar para as lutas presentes e futuras; que tenhamos
habilidade, força, mobilização e inteligência para enfrentar as discriminações

R
e desigualdades; e que saibamos formular feminismos que contemplem nossas
necessidades e respeitem nossas diferenças.

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 55

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par
Ed
s ão
ver
CARTÃO POSTAL DOS OPOSTOS:
uma visão sobre limite entre o ver-o-peso
e a estação das docas, em Belém/PA

or
od V
Renata de Godoy

aut
Felipe Vasconcelos de Sá

R
Olhar e ver uma cerca que divide lugares

o
É impossível para qualquer turista passar por Belém, capital do Pará, e
aC
não visitar o mais antigo mercado à céu aberto da Amazônia, o Ver-o-Peso.
Trata-se de um complexo comercial e turístico tão antigo que praticamente
se confunde com história da própria cidade. É de praxe conhecer também seu
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

vizinho, o complexo turístico chamado de Estação das Docas. São espaços


visã
contíguos da cidade, localizados no bairro da Campina, região mais antiga e
mais notória da capital (Figuras 1 e 2). É bem possível, porém, que o visitante
não perceba o paradoxo desta relação espacial.
itor

Figuras 1 e 2 – localização da área de pesquisa em relação ao Brasil


a re

(esquerda); e em relação à área urbana de Belém/PA (círculo à direita)


par
Ed
s ão
ver

Adaptados do Google Maps, 2020.

Não é um limite imaginário, mas físico, através de uma cerca de metal


que demarca quem está de fora e quem está dentro do Complexo (figuras 3 e
4). Não é uma transição utópica, é perceptível, é palpável. E mesmo sem regras
pré-estabelecidas, fica claro quem pode estar de cada lado. Em 2019, quando
o mundo era “normal”, iniciamos nossa pesquisa buscando sistematizar e
58

registrar tais fronteiras, através da antropologia urbana, percebendo o espaço


como um sítio histórico que se dinamiza, que se transforma socialmente.
Apresentamos a seguir as percepções de uma dupla de estrangeiros1, que
vive em Belém e que percebeu como tal fronteira pode e deve ser observada.

or
Figuras 3 e 4 – limites da Estação das Docas em relação ao Ver-o-Peso,

od V
visto a partir da Estação das Docas, Renata de Godoy em 13/08/2017

aut
R
o
aC

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visã
Neste caso, o limite é uma cerca, que impede a circulação, mas que tam-
bém permite a visão. Permite o mínimo de fluidez entre dois ambientes com
itor

usos e usuários diferentes. Há três espaços entre a Estação das Docas e o mer-
a re

cado. Um que fica dentro do complexo da Estação, que abriga um pequeno


teatro de arena em meio às ruínas do Forte São Pedro Nolasco, adaptadas para
visitação. O estacionamento público, imediatamente adjacente à cerca. E a
Praça do Pescador (Figura 5).
par

Figura 5 – localização e delimitação aproximada


da área analisada marcada em preto
Ed
s ão
ver

Zona de ligação entre os dois complexos culturais/comerciais. Adaptado do Google Maps, 2020.

1 Os autores não são naturais de Belém/PA, por isso o uso do termo.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 59

A Estação das Docas foi inaugurada em maio de 2000 pelo então gover-
nador Simão Jatene (2003-2006) do Partido da Social-Democracia Brasileira
(PSDB) mas começou as obras no governo de Almir Gabriel (1995-2002) de
mesmo partido. Esse projeto fazia parte de um programa mais amplo chamado
Novo Pará que inaugurou outras intervenções urbanísticas em Belém com o

or
objetivo de capitalizar com a cidade colocando-a no circuito turístico entre

od V
cidades (BARBALHO; FREITAS, 2011).

aut
A responsabilidade do projeto foi da Secult (Secretaria de Cultura do
Estado do Pará) cujo objetivo era reforçar a suposta “cultura paraense” de
maneira mais mercadológica criando um lugar para o consumo de um público

R
específico para os novos padrões, como define Castro e Figueiredo (2008) “na
criação da cidade mercadoria”. No entanto o Mercado do Ver-o-Peso não passou

o
pela mesma “revitalização” deixando assim uma diferença grande entre os luga-
aC
res, principalmente no seu público visitante (BARBALHO; FREITAS, 2011).
Já sobre o Ver-o-Peso, Chaves e Moraes (2019) afirmam que sua trans-
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formação em cartão postal da cidade ocorreu especialmente a partir de seu


tombamento pelo IPHAN em 1977. Em 2002 o Ver-o-Peso é reinaugurado
visã
com novas instalações, dois anos após a Estação das Docas, demarcando ali
como um lugar consagrado enquanto atração turística.
Porém as diferenças entre Ver-o-Peso e Estação das Docas passam por
itor

uma barreira simbólica criada pelo consumo como também física pois há uma
cerca que separa a Estação das Docas selecionando a entrada de visitantes.
a re

Sendo esse lugar o único cercado em toda a extensão da Avenida Boulevard


Castilhos França. Ao final, o que se avalia é diferença de uso entre dois
ambientes bastante distintos: um é um espaço público, uma praça; e o outro
está dentro de um complexo de lazer privado, cercado. Ambos fazem parte
par

de uma paisagem muito corriqueira na cidade de Belém, sendo que o objetivo


maior desta investigação é acessar espaços, lugares, e paisagens que aparen-
Ed

temente estão invisibilizados na paisagem urbana.

A cidade na antropologia: espaços em análise


ão

As cidades são, de fato, verdadeiros depósitos de experiências huma-


nas com grande potencial para entrar em contato com diferentes grupos
s

sociais e para compreender memórias coletivas (TOCCHETTO; THIE-


ver

SEN 2007, p. 192).

Quando se pensa uma área urbana, é fundamental inventar categorias


de locais da cidade, distinguir unidades urbanas dentro deste ambiente, ou
subdivisões que possam ser físicas, arbitrárias ou artificiais. Sem dúvida, uma
categoria que merece especial atenção devido à complexidade de sua definição
e uso é o chamado espaço público urbano.
60

As definições de espaço público podem ser muito amplas, e também


diferem no tempo e no lugar. A maneira mais simples de entender um espaço
público é ao contrário do que é o espaço privado. Essa ideia não é apenas
excessivamente simplista e vaga, mas também questionável. Noções mais
amplas do espaço público relacionam-se em sua qualidade de abstração,

or
incluindo nesta categoria lugares não tradicionais como o ciberespaço e are-

od V
nas políticas e definindo-o como “a gama de locais sociais oferecidos pela

aut
rua, pelo parque, pela mídia, pela internet, pelo shopping, pelas Nações Uni-
das, pelos governos nacionais e pelos bairros locais” (LOW; SMITH, 2006,
p. 3). Outras abordagens assumem uma espécie de visão existencial do que

R
constitui o espaço público, como “espaços abertos nas cidades como lugares
para celebrar a diversidade cultural, para se envolver com processos naturais

o
e conservar memórias [...] onde se pode transcender a multidão e ser anônimo
aC
ou sozinho (THOMPSON, 2002, p. 70), que inclui pelo menos duas unidades
muito comuns em cidades em todo o mundo: parques e praças.

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A praça, encontrada em muitos ambientes urbanos diferentes ao redor
do mundo, é outro conceito controverso porque é comumente relacionada
visã
ao modelo trazido para as Américas por colonizadores europeus. Indepen-
dentemente de sua estrutura, morfologia ou tamanho, a praça geralmente é
o maior espaço público aberto de um ambiente urbano, é um espaço onde é
itor

possível existir interação social entre diferentes gêneros, idades, indivíduos


de status político e econômico. Em teoria, é um espaço de relações hetero-
a re

gêneas. Segundo Low (2000, p. 32) a praça oferece um espaço físico, social
e metafórico para o debate público, expressão cultural e interação artística.
Os parques são espaços abertos para todos os tipos de atividades, geral-
mente relacionadas ao lazer e contemplação. Mais do que apenas uma área de
par

lazer pré-delimitada, parques são espaços públicos, no caso de parques urbanos


de cidades são espaços compartilhados por usuários de todas as raças e classes
Ed

sociais (LOW et al, 2005). Alguns autores têm questionado o caráter público
desses espaços em cidades contemporâneas em todo o mundo. O caráter con-
trolado atual dos espaços públicos representa uma mudança de paradigma.
ão

Afinal, os espaços públicos, bem como a vida pública, devem incorporar todo
o espectro do cenário urbano, incluindo a paisagem, e representar valores
coletivos básicos que foram perdidos em função de estratificação econômica e
s

a segregação social (BRILL, 1989). Abordagens sobre a política dos espaços


ver

públicos atribuem essa questão aos princípios liberais e neoliberais devido


às influências negativas dos interesses privados na forma das cidades atuais,
além do excesso de controle do Estado, visando cada vez menos o bem cole-
tivo e prejudicando a real função do espaço público (LOW; SMITH, 2006).
Em uma abordagem menos pessimista, estudiosos e planejadores pude-
ram ver o chamado declínio do espaço público e da vida pública simplesmente
como uma nova forma de apropriação física, de acordo com as realidades,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 61

necessidades ou interesses atuais (CARR et al., 1992, p. 06). Para esses auto-
res há uma nova tipologia dos espaços públicos desde a segunda metade do
século XX, o que, na verdade, confirma o ressurgimento de um espaço público
que satisfaça “as necessidades de um público cada vez mais estratificado e
especializado”. Eles defendem que, em vez de entender o rápido e crescente

or
investimento em espaços comerciais como prejudicial e coletivamente exclu-

od V
dente, os urbanistas poderiam ver esse padrão para criar novas oportunidades

aut
de escolha para os coletivos locais, sem necessariamente respeitar um design
socialmente raso. Além disso, se os espaços públicos representativos dos
estilos de vida europeus governaram o design da cidade no Novo Mundo por

R
tanto tempo, está na hora de se adaptar não apenas aos efeitos crescentes da
privatização e da segregação social, mas também às reais necessidades dos

o
moradores da cidade, apesar de críticas ou julgamentos morais.
aC
Gilberto Velho (2003), renomado antropólogo brasileiro, usa a expressão
“desafio de proximidade” para etnógrafas/os que analisam o ambiente urbano.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A princípio, antropólogas/os estavam focando seus estudos em análises de rede,


em assentamentos de posseiros, mas Velho propôs investigar Copacabana, seu
visã
próprio bairro na cidade do Rio de Janeiro. É o antropólogo estudando seu
próprio ambiente, como um insider, que cria uma nova perspectiva de subjeti-
vidade muito complexa e realmente interessante. Já José Guilherme Magnani
itor

(2018), que também concorda com a perspectiva “de perto e de dentro”,


Magnani (2018) apresenta uma proposta etnográfica muito interessante,
a re

com categorias espaciais com uma escala compatível: macha, pedaço, trajeto,
circuito e lugares. Interessante como décadas antes, para fins de planejamento
e morfologia urbana, Lych também propõe perceber a cidade em categorias:
limites, marcos. Talvez podemos classificar nosso ambiente de pesquisa em
par

dois pedaços, que também são arte de uma macha. Pensando nas categorias
de Lynch (1985), a cerca certamente representa um limite.
Ed

Buscar inspiração nas pesquisas antropológicas urbanas foi uma jornada


importante na definição desta pesquisa. No entanto, foi a partir de uma meto-
dologia mais simples que encontramos como melhor alternativa para com-
ão

preender os usos dos espaços em questão. O método que escolhemos para a


coleta de dados foi a observação direta, que Bernard (2002) define como uma
técnica não intrusiva, quando o pesquisador não interage com o grupo por ele
s

observado. Estabelecemos um protocolo, e Felipe não registrou pessoas sem


ver

sua autorização. Ao realizar o levantamento solitário, Felipe baseou-se em


sua percepção geral do espaço, a partir de dois pontos de vista.
Outros autores também identificam que a observação direta é uma aborda-
gem capaz de captar o comportamento mais fidedigno do ser humano. Ao mesmo
tempo este método também agrega a percepção do autor, o que em si pode gerar
problemas de confiabilidade (JOHNSON; SACKET, 1998). No nosso caso con-
sideramos ideal, visto que estávamos fazendo um mapeamento do uso do espaço.
62

Ao contrário da metodologia empregada por Low (2000), que observa compor-


tamento em uma praça através da cultura material em relação com o espaço; na
observação direta o/a pesquisador/a já sabe que não há elementos materiais, ou
mesmo oportunidade de observar e registrar tais elementos. Este método é descrito
por Bernard (2002) como observação direta, ou quando se registra pessoas e seus

or
comportamentos imediatamente. E observação indireta quando o registro ocorre

od V
depois do evento no espaço (como na técnica usada por Low).

aut
Pesquisar a cidade pela arqueologia não é novidade, hoje se reconhece
que são pesquisas importantes, e já acontecem no Brasil. Belém, enquanto
metrópole colonial, também é objeto de análise privilegiado para pesquisas

R
em patrimônio cultural e que tem vários equipamentos urbanos adaptados pela
arqueologia (ver projetos do Dr. Fernando Marques, por exemplo).

o
E o que se pretende ao analisar um espaço da cidade de Belém? Como
aC
esta pesquisa, concebida como um trabalho de conclusão de curso, pode
contribuir nas ciências sociais? Observar a fronteira entre dois equipamentos

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de importância na construção de uma paisagem urbana, com narrativa de
antiguidade, de orgulho de suas tradições, é também identificar ressonâncias
visã
(GONÇALVES, 2005). Entendemos que Belém

[...] representa a realidade urbana do norte do país, e segue como ponto


itor

de partida para uma reflexão diferenciada que confronta a força da regu-


lação para bens que sejam verdadeiramente representantes de um passado
a re

carregado de significados e de escolhas (GODOY, 2018, p. 04).

Através de observação, pudemos observar o cotidiano de ambientes que


estão invisíveis perante a magnitude dos dois complexos. Como um lugar
par

demarcado enquanto sítio arqueológico, visitável, se comunica com o seu


entorno imediato? Quem são as pessoas que usufruem destes espaços?
Ed

Explorando as diferenças: o levantamento de dados sobre a fronteira


física e imaginária
ão

Em outubro de 2019 iniciamos o planejamento da coleta de dados em


s

campo, inteiramente realizada por Felipe de Sá. Neste dia, uma sexta-feira
ver

de manhã, notamos pouca movimentação do lado da Estação das Docas, e


algumas pessoas aparentemente em situação de rua situados imediatamente
após a cerca (Figuras 6 e 7). Nesta data não conseguimos nos aproximar deste
grupo de pessoas2, e por opção de pesquisa não abordamos nenhum interlo-
cutor ao longo do trabalho de campo.

2 Literalmente fomos impedidos de nos aproximar, por um grupo de policiais que não chegaram a nos abordar,
mas que se deslocavam de forma a se colocar entre nós e o grupo que ocupava a calçada na área do
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 63

Figuras 6 e 7 – Felipe realizando os primeiros registros fotográfico no


local predeterminado (esquerda), visão panorâmica do limite visto
pela Estação das Docas (direita), Renata de Godoy em 25/10/2019

or
od V
aut
R
o
aC
Enquanto pesquisadores, a opção de realizar este trabalho surgiu de um
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incômodo mútuo. Tanto eu quanto Felipe não somos belenenses, e ambos


concordamos que há constante presença de pessoas na área do estaciona-
visã
mento, imediatamente no limite entre os dois complexos. Há muita sombra
no lugar, e raramente observamos ausência de coletivos que sugerem situação
de vulnerabilidade.
itor

O uso dos croquis como estratégia de coleta de dados foi definido em


a re

comum acordo, e com o modelo definido e desenhado pela orientadora (Renata


de Godoy). Neste modelo o desenho indica elementos e equipamentos fixos
dos espaços em análise, sendo a cerca representada através da linha pontilhada.
A seguir selecionamos alguns destes croquis (Figura 8), exemplificando a
par

sistematização da coleta de dados.


Ed
s ão
ver

estacionamento. Estávamos acompanhados da arqueóloga Amanda Seabra, e todos nós concordamos que
houve uma estratégia deliberada para nos afastar do grupo. Sem nenhum juízo de valor, entendemos que a
polícia pretendia evitar algum conflito, e em função desta situação eu e Felipe optamos por não realizar nenhuma
abordagem durante a coleta de dados, utilizando para tal apenas observação e registros fotográfico e espacial.
64

Figura 8 – exemplo de croquis de campo, que orienta a coleta de


dados a observar sempre os mesmos parâmetros, e anotar elementos
que ele considerou significativos em cada espaço observado,
e quando possível também registrado em fotografia

or
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visã
É importante mencionar neste momento os sentimentos que afloram durante
o trabalho de campo, e que a pesquisa foi idealizada como o trabalho de conclusão
itor

de curso de Felipe Sá. Em 2020, a convite de Flávia Lemos, foi interessante deba-
a re

ter sobre métodos etnográficos no evento intitulado “Cartografias da formação


e pesquisa: História, Educação, Ciências Sociais e Psicologia”, que ocorreu em
ambiente virtual. O uso de métodos etnográficos é muito difundido inclusive em
outras disciplinas, e é preciso discutir sobre método. Na antropologia, enquanto
par

docente, percebo discentes ávidos pelo trabalho de campo, algo que efetivamente
complementa sua formação enquanto cientista social. Felipe Sá participou ati-
Ed

vamente do processo de desenho da pesquisa, enquanto definimos local, forma


e frequência de sua coleta; e realizou toda a coleta de dados solitário em campo,
com exceção do primeiro dia, em 25 de outubro de 2019.
ão

Quando oriento sobre o campo na cidade, também alerto para as difi-


culdades (Figura 9). É perigoso, é familiar, mas precisamos de construir um
“estranhamento” (VELHO, 2003), é preciso treinar seu olhar e seus sentidos
s

para um espaço, para um evento que precisa ser reconhecido para além disso.
ver

E tenho notado que em qualquer nível da formação de pesquisa é possível


desenvolver um espírito de curiosidade, de questionamento; é possível pro-
blematizar e pensar em soluções. Requisitos que são tão necessários para as
Ciências Humanas. O uso de um sistema, demarcando seu lugar de registro
fotográfico e a forma de anotação em caderno de campo através de marcações
nos croquis (como se percebe nos exemplos apresentados nas figuras 9 e 10),
indicando sempre as mesmas informações e consciente desta ação.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 65

Figura 9 – anotações de campo que indicam também


as sensações que Felipe teve em campo

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visã
Figura 10 – padrão nas anotações em campo, que também
incluiu a legenda das fotos, separadas pela data
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Para este trabalho utilizamos como modelo uma pesquisa que eu realizei
nos EUA, sobre os usuários de uma praça que também é um sítio histórico
nos Estados Unidos, na cidade de Gainesville, Flórida (GODOY, 2016). Nesta
ocasião eu perguntava aos usuários se eles sabiam sobre o caráter “histórico”
da praça, que assim foi reconhecida por ter sido o lugar de uma batalha da
guerra civil daquele país. Constatei que os usuários eram pessoas em situação
de rua, e que se dividiam em pelo menos dois grupos. E que, em geral, a eles
66

não importava se a praça era patrimônio ou não. Eles usam o espaço porque
nele encontram um mínimo de conforto, além de ser possível acessar outro
equipamento importante, a biblioteca pública. A partir desta experiência, par-
timos então para tentar mapear usos e usuários destas fronteiras entre público
e privado no âmago do centro histórico de Belém.

or
od V
Análise de uso dos espaços segundo Felipe Sá

aut
Ao todo foram oito visitas de campo começando no dia 25 de outubro

R
de 2019 e terminando em 12 de fevereiro de 2020. Em todas as visitas foram
feitos registros fotográficos (enfatizando um ponto específico) e croquis (dei-
xando uma vista mais ampla do lugar) assim a pesquisa abrange da maior

o
maneira possível de explicar a diferença entre Estação das Docas e Ver-o-Peso.
aC
O lugar específico da pesquisa é a cerca que separa Estação das Docas
e Ver-o-Peso e foi escolhido de maneira natural quando estava em um engar-

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rafamento na Boulevard Castilhos França, muito comum após as 10:00 horas
visã
da manhã, e olhei pela janela do ônibus me deparando com uma cerca no
qual de um lado (Ver-o-Peso) encontravam-se moradores de rua, enquanto o
outro lado estavam pessoas almoçando em um dos restaurantes de alto padrão
da Estação das Docas. Isso me provocou uma reflexão sobre o lugar pois a
itor

Estação das Docas é o único local em toda a extensão da Boulevard Castilhos


a re

França que possui cerca deixando-a a parte da dinâmica frenética e popular


que caracteriza essa área da cidade.
Demarcamos dois pontos fixos para o registro, sendo um deles um na
Praça do Pescador (Ver-o-Peso), em cima de um banco (ver Figura 6), e outro
par

na parte externa da Estação das Docas. Na Praça do Pescador (Figura 11), a


princípio foram feitas em cima de um banco; porém considerava esse lugar
Ed

muito perceptível podendo despertar revolta nos moradores de rua. Infeliz-


mente a sensação de deslocamento, de estranho, é comum em espaços públicos
e privados. Felipe fotografando aquele ambiente, por menos intrusivo que
ão

possa parecer, influenciou respostas. Uma delas se refere ao fato que aconteceu
no dia 2 de dezembro de 2019 na quarta visita de campo. Um dos moradores
perguntou se estava “tirando fotos deles” e eu disse que estava fotografando
s

o lugar, o pôr do sol entre outras coisas e fui surpreendido com a frase “lugar
ver

de turista é no outro lado” referindo-se claramente a Estação das Docas.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 67

Figura 11 (esquerda) – Praça do Pescador, Felipe Sá em 02/12/2019. Figura 12


(direita): ruínas do Forte e anfiteatro, Estação das Docas, Felipe Sá em 01/11/2019

or
od V
aut
R
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aC
Outra situação de constrangimento ocorrei um mês antes, no dia 1 de
novembro de 2019. Felipe foi impedido de fotografar dentro da Estação das
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Docas por um dos seguranças do local. As fotos nesse lugar deveriam ser
feitas de dentro da Estação em cima das Ruínas do Forte São Pedro Nolasco;
visã
porém o segurança impediu dizendo que não poderia pisar nas ruínas. Por
esse motivo as fotos da Estação das Docas saíram desfocadas porque fiz os
registros rápido pelo desconforto do segurança estar me olhando (Figura 12).
itor

O controle do espaço é perceptível e presente nos bens históricos em Belém,


e esta situação descrita na Estação das Docas não se difere de tantas outras.
a re

Depois desses acontecimentos os registros na Praça do Pescador (Ver-


-o-Peso) foram feitos mais discretamente e na Estação das Docas as fotos
eram feitas pela parte de fora em direção a cerca. Fiquei mais retraído depois
desses acontecimentos, mas não deixei de fazer as visitas. As vivências de
par

campo são experiências importantes e marcantes na formação acadêmica. Ao


estudar a praça nos EUA também houve momentos de tensão. Quem trabalha
Ed

em área urbana sempre tem uma estória para contar....

A cerca e a gentrificação: um pedaço de Belém em análise


ão

Belém tem hoje o título de Cidade Criativa da Gastronomia, da UNESCO.


Esse é um título que faz muita diferença para a cidade, por ser um reconheci-
s

mento internacional e por ter sido conquistado por um plano político estrutu-
ver

rado para colocar a cidade na rota do turismo gastronômico mundial visando a


orla de Belém como Estação das Docas, Casa das Onze Janelas e Ver-o-Peso
como polo gastronômico. Buscou-se também fortalecer Belém no cenário
internacional por meio da biodiversidade, culinária, saberes locais entre outros
foi importante para ganhar o título (CARDOSO 2016).
A partir desse momento passa a vigorar exigências como “Espaço Gas-
tronômico Cultural da Amazônia” (decreto municipal n. 84.986/2016) e sobre
68

operação de feiras e mercados em Belém (decreto municipal n. 84.927/2016)


(Cardoso, 2016) cujas medidas visavam melhorar o acondicionamento dos
congelados e medidas padronizadas para os boxes de comercialização na área
do Ver-o-Peso. Isso dificulta a operação dos boxes por famílias que trabalham
há anos nesse local como mostra Cardoso (2016, p. 827):

or
od V
Vale ressaltar que, além de dificultar a adequação dos antigos feirantes,

aut
as novas regulamentações rompem com o modus operandi já estabelecido
em feiras e mercados da cidade, de exploração dos boxes por famílias
há gerações.

R
Não há uma tentativa de ajuda aos permissionários mais antigos nas suas

o
adequações, e isso não passa pela parte financeira somente, mas também um
aC
maior tempo para execução das devidas exigências. Segundo Cardoso (2016)
com apropriação da diversidade de sabores, aromas, sons, desenvolvida e difun-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dida por séculos através da sociobiodiversidade local, que, ao fim e ao cabo,
finda na exclusão do habitante original por força da gentrificação, como foi o
visã
caso em tantos outros casos brasileiros (Recife, Salvador, Rio de Janeiro) pois
esse projeto não pauta a cidadania do trabalhador comum, feirante no Ver-o-Peso.
Em relação ao seu patrimônio cultural material, Belém foi contemplada com
itor

verbas na segunda etapa do Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC2-Ci-


a re

dades Históricas), com 15 propostas vencedoras para requalificar espaços públicos


e edificações localizados nas zonas mais antigas da cidade. São iniciativas que
visam alterar suas paisagens. Em experiência semelhante com moradores de uma
área degradada do centro histórico de Salvador/BA Márcia Bezerra constata que
tal processo de transformação, também chamado de gentrificação quando denota
par

expulsão dos coletivos que tradicionalmente habitam áreas, não apenas excluem
Ed

as vozes locais como ainda eliminam e desqualificam as “narrativas fundantes


destas paisagens.” (2009, p. 63). E em Belém, como tanta requalificação vai lidar
com o público que usa e habita as partes mais antigas da cidade?
ão

Por definição, a gentrificação passou, assim, a designar o movimento


de chegada de grupos de estatuto socioeconômico mais elevado, geralmente
jovens e de classe média, a áreas centrais desvalorizadas da cidade. O efeito
s

é que essas áreas se tornam social, econômica e ambientalmente valorizadas


ver

(MENDES, 2014). Esse fenômeno urbano acontece e pode ser percebido na


Estação das Docas cuja “revalorização” aumenta o padrão desse lugar dei-
xando – o simbolicamente demarcado pelos restaurantes e bares existentes
nesse ambiente. Em detrimento do Ver-o-Peso que mesmo sendo reformado
continua contando com seu caráter popular característica marcante de várias
feiras, porém pela extensão e variedade culinária e produtos tornam esse lugar
uma marca da cidade de Belém.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 69

Entretanto, também é importante lembrar que os processos de patrimonia-


lização em Belém são antigos, de 1960. E depois em nível municipal em 1994,
refletem o decaimento físico do Centro Histórico de Belém (PONTE; GODI-
NHO, 2019). Figueiredo (2019) também alerta para um estado de abandono do
centro histórico, mesmo que seja simbolicamente a origem da cidade. E parte

or
do processo de patrimonialização da cidade, também consiste em transformar

od V
os bens em atrações turísticas, “o patrimônio então produz “patrimônios”,

aut
recursos e atrações que estimulam a atividade turística, essa se alimenta de
atrações, que motivam as pessoas viajarem” (FIGUEIREDO, 2019, p. 143).

R
Popularmente conhecido como “estação das dondocas”, este complexo
recebeu e recebe muitas críticas enquanto um ambiente de consumo para alto
poder aquisitivo. Segundo Barbalho e Freitas (2011, p. 135)

o
aC
na amostragem realizada em domicílio, quase a metade dos entrevistados
(47,45%) respondeu que achava que o complexo cultural (Estação das
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Docas) era destinado apenas para os ricos e 40,95% opinaram que era um
equipamento aberto para toda a população. Vale salientar que ninguém
visã
respondeu que era “somente para os pobres”.

Não se pode negar, porém, que critérios historicamente elitistas emba-


itor

savam os tombamentos, e que estamos nos referindo ao mercado centenário


a re

e ao porto da metrópole amazônida. É preciso salientar que a própria inven-


ção da categoria “patrimônio” no ocidente nem sempre esteve associada à
ideia romântica de preservação, e que sendo uma construção social devemos
“considerá-lo no contexto das práticas sociais que o geram e lhe conferem
sentido” (ARANTES, 2006, p. 426). O maior desafio para uma categoria
par

fortemente arbitrária, instituída de cima para baixo, é respeitar e incluir os


sentidos atribuídos ao patrimônio para as populações vivas, e refletir se lidar
Ed

com os vestígios do passado como uma categoria ocidental e enraizada insti-


tucionalmente faz sentido para os próprios sujeitos investigados.
ão

O próprio conceito de patrimônio arqueológico tem sido debatido, sendo


uma leitura bastante interessante feita por Costa (2004) que afirma este como
uma construção do arqueólogo, característica em parte corroborada pela afir-
s

mação de Schaan (2013) para as narrativas sobre o passado indígena que não
ver

interessam aos povos nativos na atualidade. Os processos de mercantilizarão


e gentrificação da cultura, intensos na sociedade contemporânea, causam o
deslocamento simbólico que contamina o campo semântico do patrimônio
cultural e o transforma em fetiche, o que também ocorre nas práticas de
colecionismo segundo Mariza Veloso. Esta autora aponta que o patrimônio
apresenta um dos paradoxos mais marcantes da atualidade, pois ao mesmo
tempo em que é associado ao passado, ao tradicional e autêntico, também
70

“precisa sintonizar-se com a pós-modernidade e, mais do que isto, com a


agenda contemporânea” (VELOSO, 2006, p. 450).

E se a cerca fosse um muro?

or
Ao longo deste texto tentamos desvendar pelo viés da arqueologia e da

od V
antropologia um limite físico representado por uma cerca de metal. E se ao

aut
invés disso, existisse um muro delimitando os dois espaços? E como muitos
também nos perguntamos e se não tivesse a cerca? Outros vão se perguntar

R
qual a importância disso. Ou porque é uma pesquisa de arqueologia...
Aqui, no entanto, convidamos o leitor a refletir sobre as coisas materiais
que alteram a nossa percepção, sobre limites que disciplinam nosso comporta-

o
mento. Algo que nem sempre é notado, e que por ser imperceptível tem tam-
aC
bém o poder de ser ainda maior em segregar e condicionar comportamentos
e uso dos espaços, mesmo que públicos.

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Há mais de uma década, enquanto estudante de doutorado nos EUA,
visã
Renata realizou pesquisa semelhante ao observar os usuários de uma praça.
Lá o espaço público, urbano, é muito diferente. Mas a exclusão social tam-
bém não tem fronteiras, e o público que utilizava o lugar durante o dia era
composto por pessoas em vulnerabilidade social (homeless). Lá não há nada
itor

físico segregando os espaços, mas existem fronteiras muito precisas, que


a re

durante toda a coleta de dados direcionava a pesquisadora a utilizar apenas um


dos lados da praça. Lá também existe um sítio arqueológico identificado e o
púbico que utiliza a praça diariamente não sabiam disso, e quando souberam
não se importaram com tal característica.
par

Nas duas praças, dois espaços públicos, em algum momento nos sen-
timos como uma pessoa que não se encaixa naquele lugar. E percebemos
Ed

logo que o sentimento de incômodo não é sempre um problema no ato de


uma pesquisa, mas pode ser encarado como um desafio. Nos desafia a tentar
entender o porquê, nos impulsiona a questionar sobre a cidade e seus lugares.
ão

Trata-se de um sentimento vazio e infundado? É fruto do nosso próprio pre-


conceito? Até que ponto se pode conduzir uma coleta de dados em segurança,
se o sentimento da falta dela é legítimo? Precisamos falar mais francamente
s

sobre o trabalho de campo; e o trabalho na cidade, sobre a cidade, tem suas


ver

especificidades. Felipe persistiu, enquanto observava de longe algo que estava


prestes a se transformar. Até fevereiro de 2020 estávamos acompanhando de
longe nossa área de pesquisa. Durante o isolamento, em virtude da Pandemia
da Covid-19, interrompeu-se abruptamente nossa coleta de dados. As obras
de readequação, no entanto, não ficaram paradas. E hoje, ao final de 2020, a
Praça do Pescador não está mais acessível. Não é mais o que era há um ano,
tornando o levantamento de Felipe ainda mais relevante.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 71

Interessante o dilema do muro apresentado por Miranda (2009), quando


da concepção do projeto Feliz Lusitânia. Temos resistência à mudanças; em
especial quando são feitas para acomodar necessidades de outros, como nos
dois casos dos turistas. Como estava este mesmo espaço quando da implanta-
ção do complexo da Estação das Docas, ao final do século XX? São transfor-

or
mações muito recentes, e muito profundas. Como Figueiredo (2019) descreve,

od V
foram processos de ressignificação que culminaram na inauguração da estação

aut
das Docas, e do complexo Feliz Lusitânia. Lá o muro foi retirado, apesar de
protestos e controvérsias. Mas e se ao invés de uma cerca, na estação das
Docas tivesse também um muro? O limite seria mais perceptível? Os usuá-

R
rios teriam outros comportamentos? Qual a mediação possível a se fazer, em
termos de democratização de espaços que não são tão públicos, em contraste

o
com um privado que em geral tem acesso tão disponível?
aC
As diferenças entre Ver-o-Peso e Estação das Docas ocorrem desde a
concepção dos projetos no âmbito político e assim definem suas propostas
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de uso e público-alvo demarcando sua primeira diferença, a ideológica par-


tidária. Sendo assim, com os lugares em questão já em “funcionamento”
visã
aparece a diferença social demarcada por classes possuindo o Ver-o-Peso um
“caráter popular” e Estação das Docas mais “elitizada”, reforçando uma das
características da gentrificação, a demarcação das classes dentro da cidade.
itor

No entanto, a Praça do Pescador e mesmo as ruínas do forte de São Pedro


a re

Nolasco são zonas de transição entre os complexos, onde grupos se apropriam


dos espaços, aproveitam a sombra decorrente das mangueiras que ali existem,
e utilizam como zona de descanso, de repouso. No lado público são grupos em
vulnerabilidade social, que aparentemente encontravam ali um refúgio de per-
par

manência diária. Do lado privado, também se encontra pessoas em momento


de contemplação, de descanso, em menor quantidade, e dentro do padrão de
Ed

visitantes que se encontra no complexo, em especial no lado externo dele.


Ressalta-se também a diferença mais visível que possibilitou essa aná-
lise sendo está a “cerca” que separa Ver-o-Peso e Estação das Docas como
ão

uma marca objetiva da fronteira que demarca a diferença social nesse lugar.
Por isso o estudo considera essa área como uma das marcas mais fortes da
gentrificação em Belém porque está no centro da cidade em uma área que
s

recebe muitos turistas. Nas cidades latino-americanas, a fragmentação do


ver

tecido urbano entre áreas ricas e pobres, entre as infraestruturas concentradas


e as áreas abandonadas pelos serviços públicos e pelos interesses privados é
muito mais visível na paisagem (PAES, 2017). É simbólico, como pode ser
percebido na área do Ver-o-Peso e Estação das Docas separadas fisicamente
pela cerca que divide os lugares.
Além disso, a recuperação das antigas áreas centrais ou portuárias apoiou-
-se, na maior parte dos casos, na funcionalização turística, elitizando tais áreas
72

em detrimento dos seus moradores pobres e, mesmo, de políticas habitacionais


(PAES, 2017). Belém representa uma transformação que está presente em tan-
tas outras metrópoles, observar diferenças e semelhanças entre espaços públi-
cos e privados, em ambientes de lazer, é uma oportunidade muito importante
para se entender a valorização dos bens culturais de cidades. Belém, como

or
tantas outras, revitaliza seus lugares pensando em aproveitamento turístico. O

od V
patrimônio cultural recebe atenção pelo valor turístico, é uma função agregada

aut
à cultura, um evento que devemos aprender a debater.
Em 2020 percebemos também as vozes na cidade, debatendo sobre seu
futuro através de propostas políticas. Uma delas indicava a necessidade de

R
gourmetizar Belém, das ilhas aos mercados, buscando um consumidor que
não é daqui, para usufruir de suas tradições e de sua história, mesmo que para

o
tanto precisasse trocar as pessoas de lugar. Há praças e edifícios em transfor-
aC
mação, mesmo durante o isolamento. Nos resta agora treinar melhor o nosso
olhar, e tentar perceber limites que não são tão palpáveis assim. E perceber

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vozes que nem sempre estiveram disponíveis.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 73

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a re
visã R
od V
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or
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OFICINAS PEDAGÓGICAS
ANTIRRACISTAS:
a experiência do grupo ErêYá/UFPR

or
od V
Sara da Silva Pereira

aut
Lucimar Rosa Dias

R
Introdução

o
O presente artigo tem como proposição apresentar as práticas desenvol-
aC
vidas no contexto do Grupo de Estudos e Pesquisas ErêYá, aqui denominadas
de antirracistas, ou seja, consideramos que práticas antirracistas são ações
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que questionam a estrutura social na qual a raça é utilizada como forma de


subordinar um determinado grupo de pessoas. Entendemos por práticas antir-
visã
racistas aquelas que visam combater o racismo e que incluam a diversidade
étnico-racial de forma positiva, ultrapassando o eurocentrismo presente nos
currículos e contemplando outras formas de ser e estar no mundo. São pro-
itor

cedimentos que visam a promoção da igualdade racial.


a re

No caso, do grupo atuamos fortemente para descontruir as hierarquias


que produzem a subordinação da população negra. O Grupo foi criado em
2017, mas recebeu esse nome somente em 2018, justamente quando as ati-
vidades desenvolvidas começaram a ser ampliadas. De acordo com Lucimar
par

Rosa Dias (2019, p. 11):


Ed

O grupo foi denominado ErêYá em referência a palavra Erê – que sig-


nifica brincadeira e Yá – é a forma diminuída de Yalorixá que significa
“mãe” – ambas de origem ioruba. E Erê no Brasil nos remete a criança
ão

e a Yá a mãe. Tais palavras estão em sintonia, pois criam a ponte entre o


novo e o velho na perspectiva ancestral africana e ambos ocupam lugares
estratégicos na organização social de vários povos africanos.
s
ver

O nome está em consonância com as pesquisas e atividades desenvolvi-


das pelo grupo, demarcando uma perspectiva política de atuação no combate
ao racismo e estruturando seus estudos em torno da Educação para Relações
Étnico-Raciais (ERER) numa perspectiva interseccional.
Formado por cerca de 25 pessoas, em sua maioria negras, dentre elas estu-
dantes e professoras da pós-graduação, da graduação e da Iniciação Científica
da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professoras das redes municipais
78

de ensino, o grupo se reúne quinzenalmente1 para estudos, organização de


eventos e de oficinas pedagógicas. Costumamos dizer que é um quilombo,
pois é espaço de trocas acadêmicas em clima de afeto e compromisso uma
com a outra. É locus de produção solidária e não solitária.
O grupo realiza ações para além da universidade, estabelecendo conexões

or
com diferentes espaços, principalmente os de âmbito escolar. Constantemente,

od V
organiza atividades de extensão e formação de professores/as com foco na

aut
promoção da igualdade racial por meio de práticas antirracistas: palestras,
participação em bancas, realização de oficinas, participação em eventos cien-

R
tíficos, colaboração em publicações acadêmicas ou não.
São diversas atividades de ERER, por isso, nos deteremos nas oficinas

o
oferecidas à comunidade, professores e professoras, estudantes e todos e todas
que queiram colaborar com a luta antirracista. As oficinas integram o projeto
aC
de extensão denominado “ErêYá na Educação das Relações étnico-raciais
investigação e práticas - ETAPA IV” constituindo uma continuidade de projeto

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


anterior que foi desenvolvido entre 2009 e 2013, realizadas pelo Grupo de
visã
Estudos em Educação, Diversidade e Inclusão – GEPEDI da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (DIAS, 2014).
Em 2017 e 2018, o projeto foi apresentado a professores e professoras da
Rede Municipal de educação do município de Curitiba e ofertado em ambiente
itor

virtual de aprendizagem. Os participantes e as participantes realizaram os estu-


a re

dos e atividades na plataforma e participaram de alguns encontros presenciais


organizados no formato de oficinas pedagógicas (VENÂNCIO; ZAU, 2018).
Essa foi a largada para um trabalho que se ampliou consideravelmente
com o passar do tempo e a repercussão das oficinas. Assim, as atividades não
par

ficaram circunscritas a um único município e alcançaram pessoas da região


metropolitana de Curitiba com a participação de pessoas de diferentes lugares
Ed

e funções, além de professores e professoras de redes pública e privada, tam-


bém fizeram parte das oficinas pessoas de organizações não-governamentais,
grupos de 3ª idade; moradoras de ocupações, dentre outras.
ão

Nesse artigo, relataremos as oficinas mais realizadas pelo grupo para


trabalhar com a ERER, a nossa formação como oficineiros e oficineiras e os
s

caminhos escolhidos para tratar das temáticas a saber: jogos e brincadeiras


ver

afro-brasileiras e africanas, literatura infantil de temática da cultura africana


e afro-brasileira e a boneca negra e a representatividade na infância.
Para finalizar, apresentaremos algumas das devolutivas recebidas das
participantes de nossas oficinas, sistematizando uma avaliação a respeito das
mesmas e nos mobilizando a seguir em frente, ajustando, pesquisando novas

1 Em 2020 o grupo passou a se reunir de modo remoto quinzenalmente e em 2021 decidimos nos
reunir mensalmente.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 79

referências e práticas e produzindo conhecimento a partir das devolutivas


recebidas dos/as participantes de nossas oficinas.

Transformando conhecimentos: oficinas pedagógicas antirracistas

or
As oficinas construídas pelo ErêYá são uma parte dentre várias atividades

od V
que o grupo desenvolve. Para que as mesmas acontecessem, além dos estu-

aut
dos e pesquisas a respeito das temáticas, foi necessário formação. O intuito
era refletir a respeito do racismo e transformar as práticas pedagógicas, em

R
possibilidade de reeducação das relações étnico-raciais.
Um dos nossos pressupostos é que o tempo todo, as pessoas são educadas
racialmente, mas tendem a produzir e reproduzir hierarquias entre os grupos

o
sociais, uma vez que o racismo estrutura a nossa sociedade. Por isso, salien-
aC
tamos a importância dessa reeducação, quando podemos refletir a respeito
da racialidade vigente no Brasil que posiciona socialmente as pessoas a partir
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da raça e da cultura, valorizando pessoas com fenótipo branco e cultura euro


visã
estadunidense e desvalorizando os fenótipos e as culturas indígenas e negras.
Para que as oficinas não fossem práticas sem reflexão, cuidamos para
que a discussão teórica estivesse presente e pontuamos as premissas que
orientam nossas ações. Assim, em todas elas, além das temáticas específicas
itor

sobre brincadeiras, bonecas ou literatura, trazemos para a discussão pautas


a re

como: racismo, preconceito, discriminação, democracia racial e legislação,


para que as pessoas compreendam a necessidade tanto legal quanto ética de
nos colocarmos contrários/as ao racismo.
Então, começamos por explicitar que o significado de raça foi politizado
par

e ressignificado afirmativamente pelo Movimento Negro (MN), uma vez que


ela opera na construção da identidade das pessoas. Sabemos que apesar das
Ed

raças não existirem biologicamente, as categorias sociais que as sustentam


continuam existindo (MUNANGA, 2003), o que faz com que a população
negra seja tratada de modo inferiorizado. Por isso, é necessário compreender
ão

o racismo que existe e estrutura nossa sociedade. A pesquisadora Nilma Lino


Gomes (2017), apresenta o MN como educador e enfatiza que:
s

Ao politizar a raça, o Movimento Negro desvela a sua construção no


ver

contexto das relações de poder, rompendo com visões distorcidas, nega-


tivas e naturalizadas sobre os negros, sua história, cultura, práticas e
conhecimentos; retira a população negra do lugar da suposta inferio-
ridade racial pregada pelo racismo e interpreta afirmativamente a raça
como construção social; coloca em xeque o mito da democracia racial
(GOMES, 2017, p. 22).
80

A democracia racial é o conceito que tenta explicar a sociedade brasileira


igualitária, sem racismo, na qual todas as pessoas são tratadas igualmente.
Fato já bastante contestado por pesquisas. Não há como sustentar esta afir-
mação quando damos conta, por exemplo, do genocídio da juventude negra,
de mortes de crianças negras em bairros periféricos pelas balas perdidas da

or
violência. Enfim, “os dados do Mapa da Violência 2016 revelam que morrem

od V
2,6 vezes mais negros que brancos vitimados por arma de fogo” (BEZERRA;

aut
ALVES; PITOMBEIRA, 2018, p. 01). Mas, apesar dos dados da realidade
há pessoas que continuam sustentando a democracia racial (claro que como

R
mito) negando ações que buscam alterar a desigualdade social e racial.
Assim, o racismo tem sido estudado por pesquisadores/as e sua ruptura
passa pela instituição de políticas públicas. Por isso, nas oficinas trazemos

o
estas reflexões. Gomes (2005), nos informa que:
aC
O racismo é, por um lado, um comportamento, uma ação resultante da

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um per-
tencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor de pele,
visã
tipo de cabelo etc. Ele é por outro lado um conjunto de ideias e imagens
referente aos grupos humanos que acredita na existência de raças supe-
riores e inferiores (GOMES, 2005, p. 52).
itor
a re

O ponto de partida de nossas oficinas é este questionamento apresentando


estudos realizados por pesquisadores/ras e ações produzidas pelo MN. Tam-
bém diferenciamos racismo de injúria racial que, de acordo com o Parágrafo
3º Artigo 140 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, é passível
de reclusão e multa e consiste em ofender a dignidade ou a honra da pessoa
par

fazendo referências pejorativas em relação à raça, cor, etnia, religião, origem


ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Ed

Deste modo, aliamos esses conhecimentos às práticas nas oficinas, pois


para nós é fundamental que para as pessoas que delas participam, além do
deleite da experiência com a cultura afro-brasileira e africana seja pactuado
ão

o compromisso na luta por igualdade racial.


A primeira oficina: Jogos e brincadeiras afro-brasileiras e africanas come-
s

çou a ser ofertada depois que os membros do grupo fizeram formação com
ver

Maysa Ferreira da Silva2 e Wilker Solidade da Silva3 doutor/a formado/a


pela Linha de Diversidade, Diferença e Desigualdade Social em Educação,

2 Nas épocas eram doutorandos. Em 2020 defenderam suas teses: O romper do silêncio discriminatório:
o manuseio do livro didático de matemática na perspectiva da educação para as relações étnico-raciais
(2020 – PPGE UFPR).
3 Autor da tese: Indicadores de verificação e a educação das relações étnico-raciais: o monitoramento da
efetivação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no ensino público do estado do Paraná.
(2020 – PPGE UFPR).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 81

do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do


Paraná, a qual o grupo está ligado.
A atividade formativa foi um encontro aberto para a comunidade externa
e participaram os/as membros e membras do grupo, estudantes de graduação e
professores/ras das redes pública e privada. Os palestrantes iniciaram a oficina

or
contextualizando historicamente a temática. Assuntos como: descobrimento

od V
do Brasil e a situação dos indígenas na época; Brasil colônia e seu desenvolvi-

aut
mento; tráfico negreiro; fim do tráfico negreiro; imigração europeia; imigração
japonesa; diferença destas com a forma com que os negros foram trazidos para

R
cá; conceito de preconceito; elementos da cultura africana; as brincadeiras
como parte da cultura; origem, tradução e prática das brincadeiras africanas.
Sendo este último, com certeza, o momento mais aguardado da oficina.

o
O segundo encontro de formação, ministrado à época pela doutoranda e
aC
hoje doutora da mesma linha, Rita de Cássia Moser Alcaraz4, foi sobre Litera-
tura infantil de temática da cultura africana e afro-brasileira. Novamente, este
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

encontro foi aberto, reunindo professores e professoras da educação básica


visã
de vários municípios da Região Metropolitana de Curitiba e da rede estadual;
representantes do Movimento Negro do litoral; mestrandos/as; graduandos/
as e outras pessoas interessadas na temática.
Nesta formação discutimos sobre: o conceito de literatura afro-brasileira;
itor

conhecimento, reflexão e análise de livros de temática da cultura africana e


a re

afro-brasileira; representação dos personagens negros na literatura; a inclusão


de livros dessa temática nas práticas pedagógicas dos professores e professoras
e os direitos das crianças em relação à literatura.
O último encontro formativo teve como ministrante a doutora Andréa
par

Cordeiro, professora da UFPR e fundadora do grupo Bonequeiras sem Fron-


teiras que discutiu sobre: “O lúdico, o afetivo e o político: a boneca negra e a
Ed

representatividade na Infância”. Nesta formação tivemos a oportunidade de


refletir sobre: as crianças pequenas e o racismo; manifestações de racismo
em escolas de diferentes regiões do Brasil; representatividade através dos
ão

brinquedos; a mídia e a formação da identidade da criança negra; o trabalho


desenvolvido pelo Grupo Bonequeiras sem Fronteiras; a boneca como espe-
s

lho; os meninos e as bonecas; a garantia do brincar como direito da criança;


ver

o papel do adulto na brincadeira e o que são culturas infantis.


Após a participação nos encontros formativos nos sentimos preparadas
e preparados para desenvolver as oficinas que se multiplicaram ao longo do
tempo, de forma dialética construímos conhecimentos junto com os/os parti-
cipantes em um constante aprendizado. Nos próximos itens apresentaremos

4 Defendeu a tese Políticas de Leitura para a Infância no Município de Curitiba: o livro como direito à promoção
da Igualdade Racial (2018).
82

um pouco de cada uma das três oficinas: oficina 1 – Os jogos e brincadeiras


afro-brasileiras e africanas, oficina 2 – A literatura infantil de temática da cul-
tura africana e afro-brasileira e oficina 3 – Bonecas negras: um objeto de afeto

Oficina 1 – os jogos e brincadeiras afro-brasileiras e africanas

or
od V
Trabalhar a ERER por meio de brincadeiras e jogos é uma das manei-

aut
ras de efetivar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (alterada pelas Leis
10639/03 e 11.645/08) em seu artigo 26-A, que estabelece a obrigatoriedade

R
do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena na educação, em
atendimento às reivindicações sociais e históricas do MN. As pesquisadoras
Azoilda Loretto da Trindade e Ana Paula Brandão (2010), no Caderno 5 do

o
Kit do projeto “A cor da cultura5”, intitulado Modos de brincar, convida os/
aC
as leitores/as a brincarem enfatizando que devemos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


[...] encararmos o brincar como potência e possibilidade, como algo cons-
titutivo de nós, mamíferos, como algo que potencializa os corpos e suas
visã
expressões, que aciona nossa subjetividade, nossa memória, nossa corpo-
reidade e ludicidade... Como algo da nossa energia vital, que queremos
expandir para todas as idades (TRINDADE; BRANDÃO, 2010, p. 8).
itor
a re

A pesquisadora Heloísa Pires Lima (2010, p. 90), nos conta que; “[...] o
brincar é um aliado importante para o processo de conhecimento e de organi-
zação afetiva da criança. O brincar é uma oportunidade de apreender a vida”.
Portanto, se os professores e professoras se conscientizarem da riqueza e
importância dessa assertiva poderão dimensionar suas práticas de maneira
par

que tanto os jogos quanto as brincadeiras não favoreçam a manutenção de


Ed

preconceitos e estereótipos, uma vez que eles são carregados de significados.


Realmente, o brincar faz parte da história humana e conhecer a cultura
africana e afro-brasileira por meio de brincadeiras é uma forma prazerosa e
ão

lúdica de aprender. Estudiosos como Adriana Friedmann (2003) e Tizuko Mor-


chida Kishimoto (2001), atestam sobre o papel do lúdico no desenvolvimento
infantil. Contudo, pelo fato do currículo brasileiro valorizar conhecimentos
s

eurocêntrico e estadunidense, nem sempre as histórias de povos que não são


ver

oriundos destes lugares são abordadas de forma positiva na escola. Muitas

5 “A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, fruto de uma parceria
entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan – Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, o
MEC, a Fundação Palmares, a TV Globo e a Seppir – Secretaria de políticas de promoção da igualdade
racial. O projeto teve seu início em 2004 e, desde então, tem realizado produtos audiovisuais, ações culturais
e coletivas que visam práticas positivas, valorizando a história deste segmento sob um ponto de vista
afirmativo.” Fonte: http://www.acordacultura.org.br/ Acesso em: 11 mar. 2021.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 83

vezes, as referências a negros e indígenas, por exemplo, ficam restritas as


datas comemorativas e são apresentadas de forma estereotipada.
Por isso, incluir jogos e brincadeiras afro-brasileiras e africanas na pers-
pectiva da ERER nas propostas curriculares é, ao mesmo tempo, descolonizar
o currículo e valorizar os conhecimentos produzidos pela população negra e

or
pelos povos indígenas. No caso dos africanos e povos da diáspora é também

od V
mostrar saberes oriundos de lutas e resistências. Essa inclusão possibilita a

aut
superação da ideia de um currículo hegemônico, construído a partir de uma
concepção eurocêntrica e estadunidense que valida e legitima o conhecimento

R
a partir do lócus de enunciação dos colonizadores (MELO; RIBEIRO, 2019).
Os jogos e brincadeiras estão presentes em todas as culturas. Na cultura
africana não é diferente. Amadou Hampâté Bâ (2003) se refere aos meninos

o
fulas e como eles aprendem de forma lúdica nos serões realizados nos terreiros
aC
das casas africanas, entre a poesia e a música se assomavam às histórias e
ensinamentos: “Neste aparente caos aprendíamos e retínhamos muitas coisas,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sem dificuldade e com grande prazer, porque tudo era muito vivo e divertido.
visã
‘Instruir brincando’ sempre foi um grande princípio dos antigos mestres mali-
neses” (BÂ HAMPÂTÉ, 2003, p. 175).
Na educação, a brincadeira é uma das linguagens para trabalhar a ERER.
Brincadeiras de origem africana, em sua maioria, envolvem música, ritmo
itor

e movimento e são oportunidades para conhecermos histórias, geografias


a re

e culturas; alterando o imaginário a respeito do continente africano e reco-


nhecendo a herança africana na nossa própria cultura e ampliando saberes
a respeito da África.
Abrimos a oficina apresentando o país de origem da brincadeira, a ban-
par

deira, paisagens e imagens de cidades contemporâneas, falamos um pouco da


cultura para que as pessoas conheçam países africanos não apenas pela ideia
Ed

de África tradicional e imagens de pobreza.


A primeira brincadeira socializada na oficina foi “Zimbole6”. É uma
brincadeira da África do Sul, um dos 55 países do continente africano, o
ão

idioma é Zulu e que significa “paz”. A brincadeira cantada é a repetição da


palavra acompanhada por gestos.
s

Zimbole, Zimbole, Zimbole, Zimbole


ver

Zimbole, Zimbole
Zimbole, Zimbole
[...]
Hey!

6 Neste endereço tem a música e uma possibilidade de gestos. Visual Musical Minds. Zimbole by ~Visual
Musical Minds. https://www.youtube.com/watch?v=zmrQY3akU7Q Acesso em: 16 mar. 2021.
84

A prática consiste em cantar a música, acompanhando com palmas, no


ritmo. A canção é intercalada com movimentos corporais em três tempos:
bater o pé no chão; bater as mãos nas coxas; bater as mãos nos peitos; com
as mãos para o alto gritar: “hey”.
Uma outra brincadeira que compõe nosso acervo é a “Obwisana7”. Ela é

or
realizada em roda, com as pessoas sentadas no chão. Esta brincadeira é seme-

od V
lhante a Escravos de Jó8. Devemos nos atentar para não reforçar o racismo que

aut
queremos eliminar, por isso discutimos com o grupo sobre outra versão desta
brincadeira, tão comum entre nós brasileiros/as, e alertamos para a importância
de não reiterar os preconceitos com o argumento de que faz parte do folclore

R
ou algo parecido. Brincadeiras fazem parte da cultura, sendo importante cuidar
com a herança lúdica provinda do período de escravização, selecionando práti-

o
cas que permitam valorizar as diferenças e não reforçar estereótipos. Obwisana
aC
é uma canção originária de Gana, em idioma Akan e refere-se a uma criança
que diz para sua avó que uma pedra machucou seu dedo:

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Obwisana sa nana
visã
Obwisana sa
Obwisana sa nana
Obwisana sa
itor

Assim, utilizamos pedrinhas e/ou tampinhas de garrafa para brincar. Ao


a re

cantar a música realiza-se movimentos corporais em círculo, com a mão direita,


os/as participantes pegam a pedra/tampinha do chão no lado esquerdo e passam
para seu lado direito, batendo-a no chão no ritmo da música. Podem ser utili-
zadas duas ou mais pedras/tampinhas com a mesma dinâmica de bater no chão
par

no ritmo e depois passar para o/a colega ao lado. O divertido é até conseguir a
sincronia (quando se consegue!), muitos “erros” acontecem e para nós esta é parte
Ed

importante da brincadeira, ou seja, não concebemos a ludicidade ser substituída


pela opressão do “fazer tudo certo” e ao invés de viver um momento prazeroso
transformá-lo em tenso. O grupo se diverte muito quando brinca de Obswisana.
ão

Outra canção do repertório é “Si Mama Kaa9”, em Suaíle, um dos idiomas


falados na Tanzânia e pode ser traduzida por “Em pé, abaixado. Caminhe, corra”
s
ver

7 Pode-se acessar neste endereço uma possibilidade de execução desta brincadeira. Obwisana. Erhard Trojer.
https://www.youtube.com/watch?v=YmSmC24QpsQ Acesso em: 16 mar. 2021.
8 A brincadeira Escravos de Jó, tem sido ressignificada a exemplo da brincadeira “Atirei o pau no gato”. Para
não reforçamos o conceito de escravo (usamos escravizados) desde a infância como algo natural, nosso
grupo tem feito esta crítica e indicado que se cante assim... “Guerreiros de Jó, jogavam caxangá, Tira, bota,
deixa o Zambelê ficar... Guerreiros com guerreiros, fazem zigue zigue zá, Guerreiros com guerreiros, fazem
zigue zigue zá... É uma alteração dentre as diferentes versões que existem dela.
9 Pode-se acessar neste endereço uma possibilidade de execução desta brincadeira. SIMAMA KAA: dança
e brincadeira da TANZÂNIA. Canal Da Educação Física. https://www.youtube.com/watch?v=JfUT8JaMZNs.
Acesso em: 16 mar. 2021.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 85

Si Mama Kaa
Si Mama Kaa
Ruka, ruka, ruka
Si Mama Kaa
Tembea, kimbia, tembea, kimbia,

or
Ruka, ruka, ruka/ Si Mama Kaa
Tembea, kimbia, tembea, kimbia,

od V
Ruka, ruka, ruka/ Si Mama Kaa.

aut
Os/as participantes, ao cantarem a música, devem realizar movimentos

R
corporais. Em círculo ou espalhados, dançam obedecendo as instruções da
música, a saber: Si Mama: ficar parado em pé; Kaa: abaixar; Ruka: pular; Tem-

o
bea: andar; Kimbia: correr. São momentos de muita descontração entre o grupo.
aC
A brincadeira “Kakopi10” é outra que compõe nosso repertório. Ela é ori-
ginária de Uganda. Todas as pessoas são convidadas a tirar os sapatos e sentar
em círculo com suas pernas estendidas e os pés se tocando, sem sair da roda,
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com exceção de uma que será a líder. Coloca-se uma música e, enquanto isso a
visã
líder vai circulando pelo lado de fora da roda, tocando a cabeça de cada uma/um
das/dos participantes. No momento em que música é interrompida, aquela (e)
que a/o líder estiver com a mão na cabeça, deve dobrar uma das pernas, quando
itor

as duas pernas de um/a mesmo/a participante forem dobradas a pessoa deve


sair da brincadeira e quem ficar por último com uma perna estendida, ganha.
a re

Temos também a “Kokoleoko”, originária de Gana, em idioma Akan:


“Kokoleoko, mama, koleoko (2x). Aba, mama, aba, aba, mama, koleoko”.
Pode ser traduzida como: “O galo canta, mamãe, o galo canta. Temos que
levantar, mamãe, o galo canta”. Os participantes e as participantes dessa
par

brincadeira são convidados/as a cantar a música batendo palmas e depois a


criar alguns movimentos, como: fazer zigue-zague, duas a duas/dois a dois;
Ed

formar duplas e, no segundo e terceiro verso da música, combinar de uma


pessoa ficar parada enquanto a outra sai a andar pela roda em zigue-zague.
As brincadeiras transportam o grupo para a criança que vive em nós. São
ão

momentos muito ricos, de risos e felicidade e poderíamos dizer de encanta-


mento, a partir do qual as culturas afro-brasileira e africana estão sendo vividas.
s

Talvez, por isso, as oficinas de jogos e brincadeiras façam tanto sucesso no


ver

nosso projeto. Ela é muito solicitada e há vários relatos de pessoas que a mul-
tiplicaram, inclusive o nosso grupo sempre disponibiliza os slides para que as
pessoas interessadas usem-nos e nos relatem posteriormente como foi. Rece-
bemos sempre e-mails com estes relatos. De acordo com Dias (2018, p. 211)

10 Pode-se acessar neste endereço uma possibilidade de execução desta brincadeira. 10 de junho -
Brincadeira Africana - Kakopi Kakopi. THALITA BITENCOURT RAFAEL BRAZ. https://www.youtube.com/
watch?v=RYlhZS_DXYw Acesso em: 16 mar. 2021.
86

Conhecer brincadeiras africanas e ensinar as crianças sobre elas é uma


das formas de combater o racismo de um modo que dialoga com a lógica
infantil. A mudança para uma perspectiva não racista será construída com
e para as crianças por meio das linguagens da infância, sendo a brincadeira
uma das mais importantes. É sobretudo por meio do lúdico que apresen-

or
taremos a crianças negras, brancas, asiáticas, indígenas, etc que todas
as populações são dignas e devem ser valorizadas. É a partir de ações

od V
prazerosas e de contatos positivos com a cultura afro-brasileira e africana

aut
que as crianças aprenderão a educação antirracista e serão partícipes de
lógicas que se coloquem contrárias ao racismo.

R
Assim, ao priorizar o contato de nosso público com essas práticas, bem

o
como com as reflexões acerca do racismo, colaboramos com esse acesso,
uma vez que poderão levá-las para suas salas de aula, para suas vidas e prá-
aC
ticas cotidianas, divulgando brincadeiras de origem africana e ampliando o
seu repertório cultural. Por fim, contribuindo efetivamente para combater o

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


racismo. Este é princípio do ErêYá para a realização de todas as oficinas.
visã
A prática das oficinas tem relação com algumas pesquisadoras do grupo,
por exemplo, a literatura é outra área na qual já oferecemos várias oficinas
porque temos uma pesquisadora e um pesquisador sobre o tema. É sobre a
oficina de literatura de temática africana e afro-brasileira que trataremos no
itor

próximo tópico.
a re

Oficina 2 – a literatura infantil de temática da cultura africana


e afro-brasileira
par

A literatura infantil é outra forma de possibilitar que as práticas peda-


gógicas nas instituições de educação incluam a Educação das Relações Étni-
Ed

co-raciais de forma permanente, haja vista que ela tem espaço privilegiado
nesse âmbito. A inclusão de livros de temática da cultura africana e afro-
-brasileira possibilita o contato das crianças com a diversidade étnico-racial,
ão

contemplando e apreciando personagens negros/as e indígenas protagonistas,


valorizados de modo positivo.
s

De acordo com os estudos de Rita de Cássia Moser Alcaraz (2018),


ver

os discursos veiculados pelos livros oferecidos às crianças pequenas ainda


operam para evidenciar a branquitude como norma a ser seguida. Segundo
a pesquisadora

A percepção de hierarquias de raça/cor no ambiente escolar permite


concepções racistas e preconceituosas, tanto implícitas quanto explícitas
por via dos discursos veiculados pelos livros, quando privilegiam per-
sonagens brancas e hierarquizam as relações. Elas circulam socialmente
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 87

em possíveis leituras e influenciam as culturas, incluindo as infantis


(ALCARAZ, 2018, p. 21).

Por isso, é importante apresentarmos outras referências às crianças a fim


de que desenvolvam um letramento literário para a diversidade étnico-racial.

or
As crianças, ao se depararem com esses livros, poderão se identificar positiva-

od V
mente com os personagens (no caso das crianças negras) e aprender a valorizar

aut
as diferenças, reconhecendo a diversidade de forma não preconceituosa. É um
ganho para crianças não negras, que descobrirão que todas as pessoas podem
e devem contar suas histórias e serem representadas nos livros.

R
A literatura não tem função utilitarista e de acordo com Sara da Silva
Pereira (2019), ela pode ajudar na construção de uma educação antirracista, pois

o
consiste num espaço privilegiado para a elaboração de discursos plurais, apre-
aC
sentando a diferença de forma positiva e mostrando às crianças que nos livros
de temática da cultura africana e afro-brasileira várias infâncias podem existir.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

De acordo com a pesquisadora Luena Nascimento Nunes Pereira (2016)


a literatura infantil voltada para a temática afro-brasileira pode romper com
visã
o ideário de miscigenação e de nação homogeneizada que foi cristalizado no
imaginário brasileiro, à medida que apresenta outras referências.
itor

No caso da literatura infanto-juvenil, ela nos parece especial para a abor-


a re

dagem que pretendemos, pois não apresenta um discurso diretamente


pedagógico, mas sim artístico e lúdico, cuja linguagem ficcional, presente
tanto no texto como nas ilustrações, aponta para a formação – e transfor-
mação – mais profunda de valores (PEREIRA, 2016, p. 437).
par

Por isso, é tão importante difundirmos boas práticas utilizando livros


de literatura infantil de temática da cultura africana e afro-brasileira. A res-
Ed

peito dessa nomenclatura, nos apoiamos nos estudos da pesquisadora Eliane


Debus (2017), que nos conta que no âmbito da literatura infantil esse estudo
é novidadeiro. Ela agrupa os títulos que circulam no mercado livresco em
ão

três grandes categorias, a saber: “[...] 1) Literatura que tematiza a cultura afri-
cana e afro-brasileira; 2) Literatura afro-brasileira; e 3) Literaturas africanas”
s

(DEBUS, 2017, p. 33).


ver

A primeira categoria é a que abordamos nas oficinas por ter maior número
de livros em circulação, isto é, títulos em que aparecem personagens negros
e negras de forma valorizada. São obras que apresentam a temática da cul-
tura africana e afro-brasileira, sem que necessariamente os autores e autoras
sejam negros e negras. Porém, estamos sempre buscando enfatizar e aumentar
o repertório sobre a produção de livros que tenham autoria negra, tanto na
história quanto na ilustração.
88

Nesses encontros formativos, muitos livros foram disponibilizados para


que os/as participantes/as se familiarizassem com eles, identificando os conhe-
cidos, buscando conhecer outros e aprendendo sobre as características de obras
literárias avaliadas como positivas para se trabalhar com a ERER.
A oficina tem início com a contação de uma história, para depois reali-

or
zarmos as reflexões coletivamente. Geralmente, usamos o Livro: Anansi, o

od V
velho sábio, do Griô Kaleki, com ilustrações de Jean-Claude Götting. A leitura

aut
conquista a atenção do grupo.
Essa entrada permite falar sobre os contadores de história africanos. A

R
figura do contador de história remonta à antiguidade. Na sociedade africana,
que está fundamentalmente baseada no diálogo entre as pessoas, este persona-
gem é um agente ativo nesta conversação, espalhando as histórias e tradições

o
por todo o continente. As pesquisadoras Heloísa Pires Lima e Leila Leite
aC
Hernandez (2014) relatam que os contadores de história eram conhecidos
como diélis, sendo que em algumas localidades também eram chamados de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


gewalos, atualmente fora do continente africano são conhecidos como griot
ou griô, as autoras dizem que “[...] a palavra griô dada aos diélis foi coisa dos
visã
franceses” (LIMA; HERNANDEZ, 2014, p. 10).
De acordo com Hampâté Bâ (2010, p. 193) “a música, a poesia lírica e os
contos que animam as recreações populares, e normalmente também a história,
itor

são privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem


a re

o país ou estão ligados a uma família”. Contar histórias que são de herança
africana e as que fazem parte da cultura rica e vasta dos afro-brasileiros é um
compromisso político e ético que colabora para o fim do racismo.
Assim, proporcionar o acesso a livros e histórias com a temática da cul-
par

tura africana e afro-brasileira, além de cumprir com esta tarefa, é possibilidade


da criança negra se reconhecer em personagens, portanto, perceber-se como
Ed

parte da humanidade fortalecendo sua identidade (PEREIRA, 2019). Para


as demais crianças é a oportunidade de conhecer que existem muitas outras
histórias com perspectivas que não são eurocêntricas, aprendendo a valorizar
ão

a diversidade étnico-racial por meio das histórias ouvidas.

Oficina 3 – bonecas negras um objeto de afeto


s
ver

A escolha pela boneca como tema de uma das nossas oficinas tem rela-
ção direta com os relatos de mulheres negras adultas (cremos que mais
fortemente nos anos 90) ativistas do MN que passaram a criticar a indústria
de brinquedos que não produziam bonecas negras, com as quais suas filhas,
sobrinhas e netas pudessem se identificar. Esta reinvindicação passa a ser
feita também para as instituições de educação e há por parte das ativistas
um movimento de confecção de bonecas negras, em geral, de pano, para
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 89

preencher este vazio na infância que é atribuído ao racismo brasileiro. As


escritoras deste artigo são mulheres negras que em suas infâncias tiveram
experiências limitadas com bonecas negras.
Sandra Regina Alves Nascimento e Clarice Martins de Souza Batista
(2019) em levantamento que fizeram em um Centro de Educação Infantil na

or
cidade de Curitiba – PR constataram que menos de 10% das bonecas dispo-

od V
níveis eram negras. Segundo as autoras:

aut
Esse baixo índice de bonecas negras na educação infantil e o alto número
de bonecas brancas, pode representar a possibilidade de algumas crianças

R
reconhecerem como bonito apenas aquilo que está acostumada a obser-
var, manusear e se familiarizar [sic]. Pode significar a manutenção de

o
um padrão de beleza que seja desenvolvido e valorizado (2019, p. 270).
aC
Inspiradas em reflexões como estas a oficina de bonecas foi concebida
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

como uma possibilidade de incluir bonecas negras nas práticas pedagógicas


das instituições de ensino como forma de colaborar para que crianças negras
visã
se sintam representadas e ao se identificarem positivamente com os brinquedos
tenham ferramentas para construir uma identidade étnico-racial fortalecida.
De acordo com Felipe Araujo e José Carlos Miranda (2016), a representa-
itor

tividade “[...] é qualidade ou característica de um indivíduo ou entidade cujas


a re

relações com a população ou coletivo social expressa seus anseios, desejos,


reivindicações etc.” (ARAUJO; MIRANDA, 2016, s/p.). De acordo com os
autores, os movimentos sociais, em especial, negros, indígenas, LGBTT e de
Surdos, têm ampliado a ideia de representatividade, entendendo-a também,
como o fato de ter pessoas destes grupos em diferentes espaços políticos e
par

sociais que possam definir políticas. Para isso, é necessário começar desde
cedo a romper com a lógica, branca, heteronormativa, ouvintista11 e capaci-
Ed

tista12 que orienta todas as atividades na sociedade brasileira.


É este princípio que a oficina de bonecas negras procura, pois várias
ão

mulheres negras vêm, há tempos, denunciando que a norma para este artefato
da cultura tem sido a branca, ou seja, para encontrar bonecas que não sejam
brancas foi necessário (por um longo tempo) fazê-las. Pois, como dissemos
s

a orientação da produção mercadológica é o que chamamos de branquitude


ver

11 Segundo Skliar (1998) ouvintismo “trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual
o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte” (SKLIAR, 1998, p. 15).
12 “Segundo Fiona Kumari Campbell, professora sênior na Escola de Educação e Serviço Social da Universidade
de Dundee na Escócia, se traduz como capacitismo a palavra inglesa ableism, que significa a discriminação
por motivo da condição de deficiência. O conceito está associado com a produção de poder e se relaciona
com a temática do corpo por uma ideia de padrão corporal perfeita; também sugere um afastamento da
capacidade e da aptidão dos seres humanos, em virtude da sua condição de deficiência.” Fonte: https://
azmina.com.br/colunas/o-que-e-capacitismo/ Acesso em: 17 mar. 2021.
90

normativa13, não havendo lugar para outros grupos étnico-raciais. Logo, se


consideramos saudável para o desenvolvimento das crianças acesso a livros,
brinquedos, jogos, imagens e animações que possam contemplar personagens
negros em situação de protagonismo, também as bonecas, seriam importantes.
A boneca negra é um objeto de afeto, especialmente para as meninas,

or
na nossa sociedade orientada também pelo sexismo. Mas, nossa experiência

od V
indica que não apenas para elas, este artefato tem um papel importante como

aut
objeto de afeto. Ela possibilita que a criança estabeleça laços de afetividade
e por meio dela pode compreender a si mesma e ao outro, além de também

R
ser fonte de autoestima uma vez que a criança interage com o brinquedo
expressando emoções e vivências.
Se este artefato é orientado pela branquitude normativa, das crianças

o
negras retira-se o direito de reconhecerem-se nestes objetos, por isso, muitas
aC
mulheres negras contam das suas tristezas de não terem -em suas infâncias-
brincado com bonecas negras. Assim, há um movimento de produção de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


bonecas negras feitas de pano que cresce muito no Brasil e se configura como
visã
uma ação de resistência e ruptura ao racismo.
Por isso, na busca por colaborar para que as crianças negras e as demais
tivessem a oportunidade de conviver com as diferenças e aprendessem a
valorizá-las por meio de brinquedos surge a proposição da oficina de bonecas
itor

negras de pano. Um dos objetivos da oficina, além das reflexões acerca da


a re

representatividade e do afeto que a boneca pode proporcionar, é confeccionar


um bebê negro para que os/as participantes sintam a força deste objeto. Para
tanto, nos baseamos no trabalho do Grupo Bonequeiras sem Fronteiras, na pes-
soa da professora Andrea Cordeiro que ofertou a oficina de formação do grupo
par

e disponibilizou moldes e tutoriais para a confecção de bonecas e bonecos.


É muito gratificante ministrar essa oficina. Ao final, após as reflexões
Ed

e a confecção da boneca, as/os participantes ficam felizes com a boneca e


vivenciam o foi discutido sobre o afeto e a importância deste artefato. Tive-
mos casos de professoras que realizaram a oficina e, a partir delas, todos os
ão

anos confeccionam bonecas com suas turmas e muitas que participaram de


outras oficinas alguns anos depois e relataram ter suas bonecas guardadas
com muito carinho.
s
ver

13 De acordo com Silva (2012, p. 151) este conceito trata de explicitar as relações sociais que estabelecem o
“branco como norma de humanidade” assim apresentado por Rosemberg (1985) e a produção do conceito
“branquidade normativa” propriamente dito foi apresentado por Giroux (1999). Nós optamos por utilizar
“branquitude normativa”, em diálogo com as e os pesquisadores Lourenço Cardoso e Maria Aparecida da
Silva Bento que usam branquitude e não branquidade.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 91

Considerações finais
As oficinas ministradas pelos/as componentes do Grupo de Estudos e
Pesquisas ErêYá iniciaram em 2017, sendo ministradas para os professores
e professoras da rede pública de ensino de Curitiba. No entanto, após essa

or
primeira versão elas se multiplicaram, uma vez que recebemos convites de

od V
diversas secretarias de educação e tivemos oportunidade de transitar em dife-

aut
rentes espaços: escolas da rede pública e privada, universidades públicas e
privadas, organizações não-governamentais, brinquedotecas, dentre outros.
Ao final de cada oficina, entregamos uma avaliação as/os participantes

R
com questões sobre: palestrante, conteúdos, formação e avaliação. Cada item
é avaliado com: regular, bom e ótimo. Por último, há um espaço para comen-

o
tários, para que justificassem a avaliação, caso considerassem necessário.
aC
Em relação a/ao palestrante deveriam avaliar: o relacionamento com o
grupo, o aproveitamento da carga horária, a disposição para esclarecer dúvidas,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

o domínio do conteúdo e a didática na exposição.


Em relação ao conteúdo da formação, deveriam avaliar: a adequação aos
visã
objetivos propostos na formação, a atualidade das informações apresentadas,
a relevância para sua realidade e a aplicabilidade profissional.
Recebemos muitas avaliações positivas, a maioria assinalada com o con-
itor

ceito “ótimo”. Dentre as recebidas, destacamos, aqui, algumas das devoluti-


vas referentes às primeiras oficinas, realizadas em 2017, uma vez que seria
a re

inviável apresentar a todas:

Todo o conteúdo apresentado foi muito proveitoso, aplico e sempre vou


aplicar essa prática em minha sala (ELZENIR, 2017).
par

Amor e olhar sensível da palestrante ao falar sobre o tema (JOSIANE


BARRETO, 2017).
Ed

A palestrante sempre traz vários materiais para enriquecer as palestras,


o tempo passa voando, gostaria muito que tivesse mais momentos assim
(JESSIKA RENATA).
ão

Excelente ter uma palestrante negra. É motivador, pois além do estudo e


capacitação ela pode dissertar sobre o assunto com propriedade (TATIANI
MANOEL, 2017).
s

O encontro de hoje foi muito importante e esclareceu muito como tra-


ver

balhar a literatura infantil através de histórias que mostram o respeito à


diversidade, seja ela qual for (2017).
Fiquei muito feliz por ter permanecido a Sara, achei que se encaixa perfei-
tamente com o grupo. Mais do que satisfeita (ALANA TASSILA, 2017).
As oficinas estão sendo muito enriquecedoras (FERNANDA TEI-
XEIRA, 2017).
Agradeço por nos mostrar lindas literaturas e por nos permitir trazer nossas
histórias de vida (SUELY SILVESTRE, 2017).
92

Gostaria de ter a Sara em todos os cursos da Prefeitura, pois ela é caris-


mática e nos passa um grande domínio do conteúdo. Muito bom ouví-la
(DAYSE EURICH, 2017).
Vem com informações e orientações fundamentais para as práticas e desa-
fios que um profissional da educação encontra no seu cotidiano e nos

or
espaços escolares (MICHELLY DUARTE, 2017).

od V
Outra avaliação positiva que tivemos em relação aos resultados das ofi-

aut
cinas foi o relato da professora Suely Silvestre que, após a participação nas
formações oferecidas pelo grupo idealizou um projeto sobre a história da África

R
e sua importância cultural que culminou em uma exposição no Dia da Cons-
ciência Negra e ganhou destaque, sendo tema de uma reportagem do Programa

o
Balanço Geral. Ao final da reportagem, as crianças apareceram brincando de
aC
Zimbole e foi muito gratificante constatar esta continuidade de nossas oficinas.
Outro aspecto interessante que concluímos é que o grupo, à medida que

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


realizava as formações, também estava se formando, uma vez que a oferta nos
impelia a estudar cada vez mais para desenvolvermos com mais propriedade
visã
os temas e estabelecíamos uma relação de troca com nossos interlocutores,
numa constante aprendizagem.
Os resultados aqui apresentados são uma amostra da experiência que o
itor

grupo vem acumulando nesta tarefa de possibilitar uma educação antirracista


a re

e engajar pessoas a incluírem em suas práticas pedagógicas elementos da


cultura afro-brasileira e africana na perspectiva antirracista. Podemos concluir
que as oficinas pedagógicas antirracistas têm sido uma metodologia partici-
pativa e reflexiva que possibilita a professores/ras trabalharem a promoção
da igualdade racial.
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 93

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od V
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aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÕES DE PROFESSORES
E ENSINO DE HISTÓRIA EM
PERSPECTIVAS DECOLONIAIS

or
NAS AMAZÔNIAS

od V
aut
Raimundo Erundino Santos Diniz
Edilson Mateus Costa da Silva

Introdução

R
o
aC
Este artigo compreende o desafio de estabelecer diálogos entre a forma-
ção de professores, ensino de história e o pensamento decolonial no sentido
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de aludir a necessidade de repensar teorias e práticas de ensino na Amazônia


visã
ainda conformadas às estruturas curriculares e epistemológicas eurocentradas.
Este desafio se baliza nas reflexões do tempo presente, que reposicionaram
abordagens historiográficas de grupos sociais, sujeitos, cotidianos, imaginários,
simbologias, representações e costumes, antes menosprezados pela História.
itor

Doravante enseja-se também extrapolar os avanços e contribuições


a re

historiográficas da Nova História Cultural e exercitar a transposição de


campo epistemológico alinhada ao pensamento decolonial, um âmbito desa-
fiador ao campo disciplinar da História. Este campo desafiador e sedutor
aos historiadores/docentes, aguçado por discursos contra-hegemônicos das
par

ciências sociais, transversaliza e reposiciona as produções historiográficas


afroasiática e sulamericana, pouco badaladas nos currículos acadêmicos de
Ed

inspirações eurocêntricas.
Este movimento de reformulação teórica contra-hegemônica resvala e
acelera os debates atuais a respeito do ensino de história e a necessidade de
ão

modificar muitas das premissas e práticas presentes na sala de aula. Entre


outras coisas, defendemos uma proposta de abordagem histórica que leve
s

em consideração os grupos subalternos1 sul/global, os “de baixo”, ou mesmo


aqueles grupos outsiders do núcleo ocidental judaico-cristão. Há, portanto,
ver

uma necessidade iminente de “dar voz” a grupos silenciados, além de incor-


porá-los nos espaços educacionais.
1 Segundo Ballestrin (2013) o termo foi cunhado de Antônio Gramsci pelo dissidente do marxismo indiano
Ranajit Guha na década de 1970, a partir do Grupo de Estudos Subalternos, contra as interpretações
científicas e intelectuais construídas sobre a história, cultura e política dos povos sul asiáticos. Em linhas
gerais o sentido empregado à subalternidade aduz classe ou grupo desagregado e desprovido de formação
e unidade social, étnica-cultural pela obliteração das classes representantes do poder dominante.
98

Comunga-se dos debates atuais do ensino de história no Brasil a neces-


sidade de redirecionar/redimensionar a perspectiva identitária presente no
currículo e na formação dos professores e dos educandos. Entre outros aspec-
tos, neste texto iremos tratar da tradição eurocêntrica/etnocêntrica contida nos
espaços de formação dos profissionais da licenciatura, quanto na formação

or
escolar dos jovens brasileiros. Fomos (e somos) treinados a pensar e nos

od V
expressar em concepções, conceitos, metodologias e ideologias forjadas por

aut
intelectuais europeus, ocorrendo uma adaptação ao contexto brasileiro.
Ao longo do século XX ocorreram importantes avanços no campo das
políticas educacionais voltadas à aprovação de legislações disciplinares, estru-

R
tura curricular e formação de professores. No entanto, o processo educacional
sofreu poucas mudanças em relação ao paradigma do século XIX e início do

o
século XX ao qual a escola e a cultura escolar tradicional ainda tem centrali-
aC
dade institucional, perspectiva produtivista, educação bancária, meritocracia
e centralidade do saber no professor e no livro didático (BITTENCOURT,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


2011). O viés tradicional de abordagem eurocêntrica na organização escolar e
no ensino subscrevem a continuidade de práticas educativas anacrônicas, por
visã
vezes reproduzidas no ensino de história através de “repasse” de narrativas
que se fixam na memorização de períodos, fatos e personagens.
Neste artigo objetiva-se entender a história regional, seus sujeitos e terri-
itor

tórios, a partir de abordagens interdisciplinares de um conhecimento histórico


local, regional e ao mesmo tempo transcontinental, pautado em ancestralidades
a re

e processos diaspóricos sul/globais. Por conseguinte, cultivar sentimentos


transgressores de subversão e superação de preconceitos e estereótipos construí-
dos sobre estas histórias periféricas, pouco cogitadas nos mercados editoriais
e conferências do campo intelectual epistemológico do norte, muitas vezes
par

ainda reproduzidos em formações pedagógicas e currículos escolares do sul.


Mas essa premissa também ganha contornos particulares se lançarmos
Ed

uma reflexão que leve em conta uma localização amazônica ao debate. Ou


seja, a defesa de uma história brasileira em contraponto a uma eurocêntrica
guarda, uma imprecisão, pois um olhar regional traz em seu bojo as diversi-
ão

dades culturais e históricas que se encontram no Brasil. Em outras palavras,


na perspectiva amazônica há uma necessidade de traçar uma alteridade em
relação ao nacional, pois, a história da região amazônica e seu ensino estabe-
s

lece uma dialética muito própria de pertencimento e negação.


ver

A partir de nossas experiências como docentes da disciplina história,


na educação básica e na superior, podemos afirmar que é comum em escolas
públicas no Norte do Brasil a abordagem de diferentes escalas geográficas/“-
temáticas” que se desenham em “história global” x “história do Brasil”x
“história da Amazônia”/“Estudos Amazônicos”, demonstrando que há uma
necessidade intelectual e ideológica de estabelecer um vínculo que dê conta
dessa trajetória regional muito específica. Não descartando estas conexões
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 99

entre o local e o global já estabelecido, é preciso defender não somente a


presença do regional no currículo, mas uma perspectiva que parte desse ponto
referencial. Ou seja, precisamos ensinar uma história que se pense a partir do
seu lugar e imprima na abordagem dos seus conteúdos essa premissa.
Este artigo está estruturado em duas partes. No primeiro momento, um

or
olhar a favor do discurso contra-hegemônico, a partir de pensamentos pós-

od V
-coloniais, subalternos e decoloniais. No segundo momento, iremos tecer

aut
reflexões sobre o processo de formação de professores e ensino de história
em perspectivas decoloniais a partir da(s) história(s) da(s) amazônia(s) capi-
taneada(s) por singularidades locais.

R
Pós-colonialidade e a perspectiva decolonial

o
aC
Na apresentação e prefácio da obra História Geral da África (KI-ZERBO,
2010), destaca-se a imensa riqueza cultural, simbólica e tecnológica, subtraída do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

continente africano e transplantada para o continente americano, europeu, e outras


regiões do mundo. Neste prefácio, Mahtar M’Bow (2010) destaca as contribuições
visã
culturais herdadas em diversos continentes, especialmente Américas e o Caribe.
Da mesma forma, Valentim Mudimbe na sua obra A Invenção de África
(2013) tratou do processo de apropriação da filosofia e da epistemologia do con-
itor

tinente africano, sendo transfiguradas como saberes de origem europeia. Nesse


a re

sentido, o autor defende a emergência de saberes próprios oriundos do continente.2


Outros autores também defenderam a necessidade de uma perspectiva africana,
tal como Kwame Anthony Appiah (1992) e Cheikh Anta Diop (1974), que em
diferentes momentos foram baluartes de uma história africana fundamentada em
uma consciência específica das comunidades e nações que habitam o continente.
par

As observações dos autores convergem para a compreensão de que por


diversas maneiras ocorreram jogos de trocas mútuas entre a África e outros
Ed

continentes, compreendidas como sul/globais e estendidas a tríade África/


Ásia/América do Sul. As especificidades culturais enraizaram-se e ressignifi-
cam-se em uma consciência histórica constantemente renovada, vivida e redi-
ão

mensionada em diversas representações, simbologias e conotações culturais,


políticas e religiosas, pouco reveladas nos centros intelectuais demarcados
pela colonialidade do poder/saber.
s

Os contradiscursos construídos por Fanon (1979), Said (1995) e Hall


ver

(2009), em perspectiva pós-colonial, foram apropriadas no repertório crítico,


contra hegemônico, que sustentou lutas contra o pensamento colonizador e
permitiu a continuidade de outras perspectivas epistemológicas de resistências

2 Jack Goody também tratou dessa apropriação dos conhecimentos originários de inúmeros grupos e
continentes pelos europeus, tornando experiências dispersas em uma fusão cultural entendida como
“civilização ocidental”. A esse respeito ver GOODY, Jack. O roubo da história: como os europeus se
apropriaram das ideias e invenções do Oriente. São Paulo: Contexto, 2008.
100

como a decolonialidade, a partir da década de 1990. Estes autores projeta-


ram visões de mundo a partir de continentes localizados abaixo da linha do
equador, considerados regiões periféricas, colonizadas e subalternizadas no
processo de colonialidade europeia sobre o globo.
Ao longo de séculos a América, a Ásia e a África sofreram espoliação

or
de terras, identidades, riquezas, epistemologias, como também de memó-

od V
rias e lugares na história. O pensamento descolonial (sustentado por lutas,

aut
movimentos sociais e autores invisibilizados) saneou o terreno para que no
tempo presente se elaborasse outras epistemologias oriundas do sul, outras
representações, reposicionamentos de histórias, sujeitos e territórios físicos

R
e simbólicos (SANTOS; MENESES, 2009) .
Neste sentido a continuidade deste movimento contra-hegemônico assen-

o
ta-se na perspectiva decolonial da década de 1990, a partir da Venezuela e
aC
demais países da América Latina, representados no projeto “modernidade/
colonialidade” organizado por autores como Aníbal Quijano, Enrique Dussel,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Santiago Castro-Gomez, Catherine Walsh, Immanuel Wallerstein, Walter
Mignolo, entre outros (PEIXOTO; FIGUEIREDO, 2018). As propulsões deste
visã
movimento confluem teorias consoantes a Teologia da Libertação, a Pedagogia
do Oprimido e a Teoria da Dependência surgidas na América Latina em pressão
e impacto no pensamento mundial da colonialidade que figura a continuidade
itor

de estruturas de longa duração do processo colonizador. No quadro abaixo


uma síntese de autores importantes do “Grupo Colonialidade/Modernidade”:
a re

Quadro 1 – Perfil dos membros do Grupo Colonialidade/Modernidade


integrante área nacionalidade universidade onde leciona
Aníbal Quijano sociologia peruana Universidad Nacional de San Marcos, Peru
par

Enrique Dussel filosofia argentina Universidad Nacional Autónoma de México


Ed

Walter Mignolo semiótica argentina Duke University, EUA


Immanuel Wallerstein sociologia estadounidense Yale University, EUA
Santiago Castro-Gómez filosofia colombiana Pontificia Universidad Javeriana, Colômbia
ão

Nelson Maldonado-Torres filosofia porto-riquenha University of California, Berkley, EUA


Ramón Grosfóguel sociologia porto-riquenha University of California, Berkley, EUA
Edgardo Lander sociologia venezuelana Universidad Central de Venezuela
s

Arthuro Escobar antropologia colombiana University of North Carolina, EUA


ver

Fernando Coronil* antropologia venezuelana University of New York, EUA


Catherine Walsh linguística estadounidense Unversidad Andina Simón Bolívar, Equador
Boaventura Santos direito portuguesa Universidade de Coimbra, Portugal
Zulma Palermo semiótica argentina Universidad Nacional de Salta, Argentina

*Falecido em 2011
Fonte: Ballestrin (2013, p. 98).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 101

Observa-se no quadro acima a incipiência de historiadores no grupo de


intelectuais que movimentaram o pensamento transgressor contra-hegemô-
nico que passou a referir o a noção de decolonidade. Este debate infere ques-
tões históricas importantes que a historiografia por outros ângulos procurou
abordar, resguardando as fronteiras espaciais e temporais, temáticas e fontes

or
manejadas. Nesse sentido, torna-se imperioso reposicionar a importância da

od V
história e historiografia no debate sobre a decolonialidade, a partir de uma

aut
relação dialógica com outras ciências e em movimento de aprendizagem.
Para Quijano (2000) neste processo de dominação colonialista, foram

R
produzidos sentimentos de inferioridade para garantir o não lugar destes con-
tinentes, territórios e sujeitos na história da humanidade. O autor acompanha

o
a esteira do pensamento decolonial e pondera a importância de movimentos
que criticam e denunciam como as tecnologias de dominações e produções
aC
intelectuais historicamente sustentaram um ideal europeu de civilização. A
colonialidade elaborou a ocidentalização do imaginário e representações ilu-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sórias sobre o projeto colonizador, promovendo a distorções da realidade em


visã
que o colonizado se espelhava no colonizador.
Nesse sentido, Enrique Dussel (2005) afirma que foi elaborada uma
versão histórica em fins do século XVIII que trata de uma diacronia unilinear
itor

Grécia-Roma-Europa. Esse esquema de uma pretensa superioridade localizada


na tradição ocidental foi posta em foco somente no século XX com a crítica
a re

promovida pelos debates pós-coloniais e decoloniais. Ao contrário, o autor


defende a tese de que a ideia de superioridade histórica do Ocidente é uma
invenção do historicismo alemão, não sendo algo evidente ao longo da história.
Segundo ele, somente com as Cruzadas medievais ocorreram tentativas de
par

europeus para a imposição de sua cultura, mas mesmo assim ela continuou
sendo uma expressão cultural periférica. Mesmo durante o helenismo do
Ed

século XV não houve uma “universalidade” dos valores ocidentais, tal como
verdadeiramente ocorreu com o mundo muçulmano.
O autor defende que a pretensa ascensão ocidental que teria ocorrido
ão

com a expansão do Renascimento Italiano não passou de uma “falsa equação:


Ocidental = Helenístico + Romano + Cristão” (DUSSEL, 2006, p. 25), pois
s

esse fenômeno foi marcado não por essa diacronia, mas sim por uma profunda
ver

fusão de diferentes culturas: “Esta sequência é hoje a tradicional. Ninguém


pensa que se trata de uma ‘invenção’ ideológica [...] e que pretende que desde
as épocas grega e romana tais culturais foram o ‘centro’ da história mundial”
(DUSSEL, 2006, p. 26). Mas, essa invenção ideológica, na verdade, vai de
encontro às evidências históricas que apontam a Europa do século XV como
“sitiada pelo mundo muçulmano, periférica e secundária no extremo ocidental
do continente euro afro-asiático” (DUSSEL, 2006, p. 26).
102

A invenção da ideia de “Modernidade” criou também a ilusão do euro-


centrismo, assim como se converteu em uma poderosa arma ideológica na
geopolítica mundial. Pois, com o advento do Iluminismo foi aprofundada a
noção da superioridade de uma pretensa racionalidade, assim como a ideia
de hierarquização racial com os brancos europeus no topo (DUSSEL, 2006).

or
A crítica ao historicismo também já era desempenhada anteriormente à

od V
teoria decolonial latino-americana. Podemos afirmar que essas premissas estavam

aut
presentes nas reflexões pós-coloniais, em grande medida relacionadas com as
descolonizações afro-asiáticas apontadas anteriormente, mas também nos estudos
subalternos, representados em grande medida pela historiografia indiana. Entre

R
eles estão Ranahit Guha (2002), Dipesh Chakrabarty (2008), Gayatri Spivak
(2010), Homi Bhabha (1998), entre outros. O eixo da crítica destes autores está

o
relacionado com o historicismo e seu mecanismo de dominação/subalternização.
aC
Ranahit Guha (2002) concentra suas reflexões na centralidade da teoria
historicista, entre outras coisas, na utilização de aparato teórico e metodológico

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


oriundo da Europa, sendo incorporada na realidade intelectual do Oriente.
Segundo ele, é necessário tomar como referência as questões locais na utili-
visã
zação dos aparatos de pesquisa e análise dos objetos históricos. Entre outras
correntes historicistas que são problematizadas pelo autor está o marxismo,
pois ao tratar dos grupos subalternos ele aponta que ao estudarem, por exem-
itor

plo, a realidade indiana são incorporados conceitos da corrente sem a devida


a re

compreensão dessa realidade, assim como o lugar subalterno que a sociedade


ocupa em escala global.
Dipesh Chakrabarty (2008), seguindo a perspectiva de Ranahit Guha,
também alerta para a utilização de uma perspectiva eurocêntrica na aborda-
par

gem histórica, ou melhor, a universalização da história europeia. Segundo


ele, é necessário “provincializar” a Europa, pensá-la como uma das traje-
Ed

tórias históricas, como uma comunidade que viveu uma história particular,
não sendo possível generalizar a sua narrativa como algo que configura uma
diacronia universal.
ão

O debate dos Estudos Subalternos foi importante para a configuração da


perspectiva decolonial por trazer à tona a crítica da posição subalterna que
a narrativa para além da Europa ocupa. Nesse sentido, o que a perspectiva
s

decolonial realiza é o aprofundamento dos debates já estabelecidos. Em grande


ver

medida, o que a perspectiva decolonial amplia é a transposição do âmbito


específico do saber intelectual, explorando em um viés latino-americano a
valorização de outros conhecimentos produzidos por grupos não ocidentais,
mas que representam importantes arcabouços culturais. Nesse âmbito, o deco-
lonial valoriza os saberes tradicionais, a cultura popular, bem como questiona
os parâmetros teórico-metodológicos das matrizes científicas e o lugar de
fala impresso em grande medida pelos intelectuais (BALLESTRIN, 2017).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 103

A perspectiva decolonial também demonstra o papel relevante da domi-


nação deslocada do eixo único europeu, pois os autores latino-americanos
chamam atenção para o lugar hegemônico dos Estados Unidos no contexto
geopolítico (LANDER, 2005). Esse país deu continuidade ao fenômeno des-
crito por Aníbal Quijano (2005) como a modernidade/colonialidade, no sentido

or
de que o imperialismo norte-americano ainda manteve as premissas da situa-

od V
ção de dominação colonial. Em outras palavras, o processo de modernização

aut
da América Latina também foi baseado na exploração colonial, o fundamento
central do capitalismo. Esta tese foi defendida e aprofundada por Walter Mig-

R
nolo na sua obra La Idea de América Latina, pois segundo ele: “‘El descu-
brimiento de América y el genocídio e esclavos africanos e indios son parte

o
indispensable de los cimientos de la ‘modernidad’[...] son la cara oculta, la
más oscura de la modernidad: ‘la colonialidad’” (MIGNOLO, 2005, p. 18).
aC
Nesta obra, Walter Mignolo defende os pontos centrais do que o pro-
jeto decolonial tem definido como o conceito de modernidade/colonialidade:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

1) Não existe modernidade sem colonialidade, pois são um binômio indisso-


visã
ciável, toda modernidade precisa ser necessariamente formada na exploração
colonial; 2) O mundo moderno/colonial se origina nos “descobrimentos”
do século XV, bem como a ideia de Renascimento se configurou como um
itor

ideal universal; 3) O Iluminismo e a Revolução são contextos específicos do


aprofundamento dessa relação moderno/colonial; 4) A modernidade é um
a re

processo histórico da construção da hegemonia ocidental a partir da Europa;


5) O capitalismo é central na concepção de modernidade/colonialidade; 6) O
capitalismo, assim como o processo histórico da modernidade/colonialidade
tiveram um momento muito particular de sua história com as transformações
par

posteriores a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos alcançarem


a liderança global (MIGNOLO, 2005).
Ed

Outro ponto essencial do debate proposto pela decolonialidade tem a ver


com o conceito de desobediência epistêmica, presente no projeto latino-ame-
ricano. Segundo Walter Mignolo (2008):
ão

“A opção decolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamen-


s

tos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento.


ver

Por desvinculamento epistêmico não quero dizer abandono ou ignorância


do que já foi institucionalizado. Por todo o planeta [...]. Pretendo substi-
tuir a geo- e a política de Estado de conhecimento de seu fundamento na
história imperial do Ocidente dos últimos cinco séculos, pelo geo-política
e a política de Estado de pessoas, línguas, religiões, conceitos políticos
e econômicos, subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, sua
óbvia humanidade foi negada). Dessa maneira, por ‘Ocidente’ eu não
quero me referir à geografia por si só, mas à geopolítica do conhecimento.
104

Consequentemente, a opção descolonial significa, entre outras coisas,


aprender a desaprender [...], já que nossos [...] cérebros tinham sido pro-
gramados pela razão imperial/colonial [...]”.

Portanto, uma importante premissa levantada pelo autor é a perspectiva

or
de desconstruir, (“desaprender”) o modelo ocidental hegemônico de conceber

od V
a realidade em função de um olhar “a partir de” uma cultura específica e par-

aut
ticular. O autor propõe que o pensamento liminar, aquele que se desenvolve
fora dos nexos eurocentrados, deve dar conta do “ponto de vista nativo”.
A seguir iremos tratar da inserção desse pensamento em uma proposta

R
de formação que leve em conta a perspectiva amazônica dentro dessas pro-
blemáticas relacionadas ao conceito de modernidade/colonialidade.

o
aC
Formação docente, ensino e história decolonial

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Uma leitura nos documentos referentes aos cursos de história de univer-
sidades da região Norte demonstra que ainda há a predominância de currículos
visã
majoritariamente eurocentrados.3 No geral, nos componentes curriculares pre-
sentes nas matrizes deles há uma presença da diacronia eurocêntrica, existindo
um espaço muito restrito aos conteúdos e reflexões respectivas ao contexto
itor

amazônico. É perceptível nestes documentos que a história amazônica está


a re

presente como um apêndice desenvolvido a partir de uma narrativa universal


tendo a Europa como o centro. Esta constatação fundamenta nossa problemática
voltada para uma proposta de formação em história que esteja mais adequada a
premissa decolonial, não observada em grande parte das concepções curriculares
par

da Região Norte. A imposição política de um programa curricular concentra-


dos na história da Europa dão o tom da organização dos planos de ensino, que
Ed

secundariza a história local e regional, assim como invisibilizam os sujeitos.


De maneira geral, os ementários e Projetos Políticos Pedagógicos de
universidades do Norte tem utilizado de maneira quase exclusivamente autores
ão

externos ao universo amazônico. No âmbito teórico e metodológico, a forma-


ção de professores de história na região se concentra nas reflexões europeias,
com grande peso à historiografia britânica e francesa. Podemos dizer que aí
s

reside a grande parcela da nossa formação eurocentrada, tal como é criticado


ver

3 Currículo de história da UFAM, disponível em: https://historia.ufam.edu.br/curriculos/2006diurno.html; Grade


Curricular da UFRR, disponível em: http://ufrr.br/historia/index.php?option=com_content&view=article&id=8
&Itemid=104; Projeto Político Pedagógico do curso de história da UNIR, disponível: http://www.historia.unir.
br/pagina/exibir/756; Matriz Curricular do curso de história da UNIFAP, disponível em: https://www2.unifap.
br/historia/files/2018/04/Matriz-Curricular-2017.pdf; Ementário do curso de história da UFAC, disponível em:
https://www2.unifap.br/historia/files/2018/04/Matriz-Curricular-2017.pdf; PPC de História da UFT, disponível
em: https://docs.uft.edu.br/share/s/EfmS_1VfTaKraloNod_t5g; Matriz Curricular do curso de história da
UFPA, disponível em: https://portal.ufpa.br/index.php/contato/140-faculdade-de-historia
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 105

por autores citados neste artigo. Utilizamos um aparato epistemológico ela-


borado dentro de contextos e problemáticas alheios à nossa realidade. Isso
não significa dizer que, tal como defende Walter Mignolo (2008, p. 288),
devamos abandonar a leitura desses autores, mas precisamos não tomar seus
escritos como reflexões de validade universal e canônica:

or
od V
“Creio que ficará claro para leitores razoáveis que afirmar a co-existência

aut
do conceito descolonial não será tomado como ‘deslegitimizar as ideias
críticas europeias ou as ideias pós-coloniais fundamentadas em Lacan,
Foucault e Derrida’. Tenho a impressão de que os intelectuais da pós-mo-

R
dernidade e os com tendências marxistas tomam como ofensa quando o
autor mencionado acima, e outros semelhantes não são venerados como

o
os religiosos o fazem com os textos sagrados”.
aC
A reflexão vale também para os usos da historiografia brasileira (leia-se
elaborada no Centro-Sul) na formação dos professores de história no Norte.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Pois, além de autores paulistas e cariocas realizarem uma apropriação inte-


visã
lectual do que é o nacional, circunscrevendo a historiografia brasileira ao que
é produzido em seus centros universitários, também realiza um trânsito entre
regiões brasileiras impondo problemáticas, objetos, cronologias e referenciais
itor

teórico-metodológicos que devem ser incorporados aos novos contextos.


a re

É urgente, portanto, que haja uma outra formação dos professores que
atuam na educação básica e superior na região Amazônica. Há a necessidade
de incorporar um novo fazer pedagógico, que deve estar ancorado em pre-
missas educacionais de orientação humana e com um viés que não privilegia
um discurso unívoco, eurocêntrico e preconceituoso.
par

Estas práticas educativas reproduzem a colonialidade4 do saber e do


poder, distorcem realidades, deslocam sujeitos de territórios e memórias,
Ed

anulam identidades e os tornam subalternos. Nestes termos a educação des-


politiza o sujeito, aliena e o conduz a formação acrítica, que por sua vez não
ão

consegue se localizar no tempo e no espaço, muito menos se ver no processo


educativo, no livro didático e demais recursos utilizados em sala de aula, são
materiais e linguagens diacrônicos ao modo de vida dos sujeitos.
s

Bittencourt (2011) ressalta que a função social e educativa do ensino de


ver

história é fazer o discente refletir sobre o tempo presente a partir de experiên-


cias dadas no tempo pretérito. Para a autora através do ensino de história o
discente deve desenvolver arranjos cognitivos que permitam produzir sentidos

4 Compreende-se como colonialidade um conjunto de valores e práticas herdadas e construídas historicamente


no período colonial, relativos ao patrimonialismo, patriarcalismo, hierarquização social, marginalização de
grupos, tecnologias de poder e técnicas de dominações, ainda hoje reproduzidos por grupos políticos e
econômicos que ocupam as estruturas de poder e tentam justificar privilégios.
106

existenciais, localizações temporais e espaciais, consciências políticas, identitá-


rias, voltadas a refletirem sobre suas posições sociais enquanto sujeitos históricos
dignos de ações transformadoras de suas realidades. o processo de aprendizagem
deve ser dinâmico e transformador (SCHMIDT; BARCA MARTINS, 2010).
Neste ínterim, a reformulação do ensino, das abordagens históricas e

or
historiográficas fincadas e inclinadas às perspectivas decoloniais a partir de

od V
abordagens regionais conferem ações peremptórias para repensar a influên-

aut
cia e assimilação do mundo colonizador sobre a ciência, os intelectuais, a
educação e a cultura do mundo colonizado. Este processo de fetichização e

R
engendramento cultural impedem os sujeitos colonizados e subalternos de
conhecerem as suas “próprias raízes”.
No campo educacional existe a necessidade de recuperar estes lugares,

o
sujeitos, memórias e territórios perdidos e invisibilizados pelo paradigma
aC
europeu de educação e currículo eurocêntrico. Tal exercício de recuperação é
evocado, por exemplo, pela pedagogia Griô5, que retoma memórias ancestrais

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


guardadas e reproduzidas pela oralidade em terreiros de matrizes africanas e
afro-indígenas, produções artesanais, práticas extrativistas, de curas, de cultivos
visã
agroextrativistas, de linguagens simbólicas, enfim um repertório riquíssimo de
saberes e fazeres facilmente encontrados na Amazônia. Estes saberes tradicio-
nais guardados pelos griôs constituem recursos didático/pedagógicos pouco
itor

aproveitados no auxílio de atividades educacionais com vias para a recuperação


a re

de costumes, tradições e, principalmente, histórias de gerações pretéritas das


culturas locais e regionais amazônidas. São patrimônios históricos vivos, de
culturas vivas, informações que podem ser capturadas por técnicas etnográficas
e história com fontes orais (CASCUDO, 2003). Estes costumes, ideias, mentali-
par

dades e saberes conferem tradições orais das culturas africanas e afroindígenas


muitas vezes apagadas pela prática da educação formal, escrita e letrada.
Ed

No século XX a produção do conhecimento histórico passou a ser ressig-


nificada através do uso da memória como fonte histórica (LE GOFF, 2003).
Esta perspectiva ficou circunscrita ao universo espacial e temporal do mundo
ão

europeu, ascendente aos imaginários de sujeitos, instituições e cenários euro-


centrados. Estas abordagens eurocentradas não oferecem instrumentos lin-
guísticos e teórico-metodológicos sensíveis às histórias de sujeitos, natureza
s

e dinâmicas territoriais da Amazônia em seus modos de vidas, saberes, sim-


ver

bologias, crenças, mitos e ritos.


É preciso, pois, uma postura de reaprendizagem dos historiadores para
lidarem com estes universos amazônicos no sentido de que natureza, ciência,

5 São usos pedagógicos de um conjunto de práticas e saberes ancestrais (re)produzidos por sujeitos (Griôs),
guardiãs de memórias, através da oralidade, cantos, artesanatos, rituais, danças, performances corporais,
musicalidades e contações de histórias, por metodologias interdisciplinares e alternativas ajustadas às
dinâmicas locais, étnicas e culturais.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 107

sujeitos, territórios e cosmologias sejam compreendidos como partes comuns


de um movimento histórico secular, ancestral, hoje materializadas e reprodu-
zidas em modos de vidas tradicionais.
Estes modos de vida tradicionais (em espaços urbanos e rurais) são reve-
lados com maior perícia e perspicácia pela memória biocultural. Ela constitui

or
um conjunto de crenças, saberes, oralidades e linguagens em interações com

od V
a biodiversidade, território físico e/ou simbólico, que reúne práticas socio-

aut
culturais voltadas ao firmamento das identidades étnicas, raciais e culturais
(TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2009). Entender a história e memória

R
da Amazônia requer pensar aspectos das culturas e da diversidade biológica
configuradas ao longo de séculos, que não podem ser explicadas a partir dos
parâmetros históricos europeus, muito menos pelas espacialidades e tempo-

o
ralidades universais elaboradas pelos padrões científicos deste continente.
aC
Cuando hablamos de modernidad, de mundo moderno y de mundo
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tradicional necessitamos revisar mínimamente el tiempo, la dimensión


temporal; les recuerdo que la especie, el Homosapiens, el mono des-
visã
nudo, tiene una antigüedad de 200 mil años más o menos. Ésta es la
historia humana, porque cuando se habla de “historia de los historiado-
res”, creo que equivocadamente laidea se limita a esa parte más reciente
itor

de la humanidad donde se reconocen “civilizaciones”. Un historiador


a re

está obligado a hablarnos de los 200 mil años de la especie humana, y


ésa es una tarea de varios profesionales: arqueólogos, paleontólogos,
paleoecólogos, etnohistoriadores y, finalmente, el periodista, pues se
trata del historiador que reseña lo que pasó ayer. Con la noticia está ya
escribiendo la historia de lo sucedido la semana pasada o el mes anterior
par

(TOLEDO, 2013, p. 54).


Ed

A citação acima reforça incongruências do paradigma ocidental ao salien-


tar a importância da alfabetização por registros gráficos, a palavra escrita,
como principal, senão único viés de formação no processo educacional, que
ão

impossibilita narrativas históricas de povos que têm a memória biocultural


como referência do passado. As culturas afro-indígenas sempre consideraram
a oralidade como referência de registro histórico e ensinamentos. A tradição
s

oral ocupa posição estratégica na preservação e manutenção de suas tradições.


ver

O docente da disciplina história deve transgredir o sistema de ensino


vigente e fomentar metodologias alternativas que respeitem a diversidade
e as práticas sociais baseadas na oralidade e seus desdobramentos sociais,
culturais e cognitivos, específicas de cada grupo social, identidade coletiva,
bairro, comunidade e território étnico. O professor de perspectivas decoloniais
deve promover reflexões alinhadas ao movimento contra hegemônico, que
eleja outras referências subalternizadas no processo educativo.
108

As histórias locais e regionais das Amazônias6 não podem ser sintetiza-


das nas dinâmicas socioeconômicas do mundo europeu ou dos europeus no
mundo. As relações históricas da(s) Amazônia(s) estão muito mais próximas
das ancestralidades indígenas e africanas, e depois europeias.
Propomos neste texto uma formação humana e fundamenta na contex-

or
tualização histórica. E esta deve levar em consideração essa localização dos

od V
formandos/educandos, tanto temporalmente, quanto espacialmente. Estas duas

aut
balizas são essenciais para a consciência, que deve ser construída no diálogo
em sala de aula. Esse ponto pode dar ensejo a uma reflexão que busca descons-
truir o que Durval Muniz Albuquerque Júnior (2012) chamou de “preconceito

R
contra a origem e o lugar geográfico”. Ou seja, podemos tomar a região Norte
como um espaço que sofre com uma representação negativa da sua população.

o
As aulas de história comumente tratam da região amazônica como um
aC
lócus da pobreza, do atraso e do “primitivo”. Uma representação que carrega
em seu bojo muito da visão de “inferno verde cunhada por Alberto Rangel

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(2008) e continuada por outros intelectuais como Mário de Andrade (2015).
Ou seja, uma realidade na qual o homem é coadjuvante e submisso às condi-
visã
ções naturais e geográficas.
Há também a mitologia da terra de índio, na qual foi elaborada uma repre-
sentação que entende a inexistência e/ou pouca visibilidade de uma população
itor

negra em seus domínios. Essa premissa foi cunhada, entre outros autores, por
a re

José Veríssimo (1970).


Estas nuances foram reproduzidas ao longo dos séculos XIX e XX, sendo
apropriadas por intelectuais e pelo senso comum, construindo um arcabouço
simbólico que delineou um preconceito de origem localizado na sociedade
par

amazônica. Assim como um olhar folclórico indígena situa a população como


populações a-históricas, que se caracterizariam por seu pouco desenvolvi-
Ed

mento na “escala evolutiva” em relação ao resto do Brasil. Portanto, um


ensino de história decolonial na Amazônia precisa dar conta da diversidade
de sujeitos, assim como dos educandos.
ão

É necessário um ensino de história que desconstrua o eurocentrismo, mas


também esse evolucionismo que marca a comparação entre as regiões (Cen-
tro-Sul, Nordeste e Amazônia), verificando que um olhar desde a Amazônia
s

pressupõe observar esta particularidade.


ver

A desconstrução dessa lógica historicista/positivista passa por uma neces-


sária reconfiguração dos currículos e das práticas docentes objetivando “des-
vencilhar os professores da Amazônia de ‘prisões epistemológicas’” (TELES,
2017). É necessário reafirmar que estamos sujeitos à reprodução de conceitos
6 O uso do termo no plural aduz a complexidade e diversidade étnica-cultural, ecológica e territorial do
que geograficamente e administrativamente se convencionou chamar de Amazônia. A esse respeito ver
GONÇALVES, Walter. Amazônia, amazônias. São Paulo: Contexto, 2001.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 109

e conteúdos europeus provincialmente situados, assim como também “provin-


cializar” a chamada história do Brasil, que na verdade materializa hegemo-
nicamente uma versão particular do Centro-Sul Dentro dessa lógica, Tayson
Teles (2017, p. 12) chama atenção para a seguinte problemática: “Por que
continuamos a adotar uma versão dos fatos que não é nossa [Amazônica]?”

or
Embora saibamos que vários esforços historiográficos têm sido feitos para dar

od V
visibilidade aos grupos subalternizados, como as populações indígenas, ainda

aut
há uma tendência materializada nos conceitos e na formação de professores
e na formação dos jovens na Educação Básica.
Não podemos desconsiderar um lugar subalternizado que a Amazônia

R
ocupa no âmbito da história do Brasil. Dentro da escala nacional/regional foi
construído um discurso hegemônico no qual ela é pensada como o espaço

o
inferiorizado, tendo sua trajetória histórica sido pautada em papel coadju-
aC
vante. Foi construído um discurso de modernidade/colonialidade na relação
Centro-Sul-Norte que foi denunciada por importantes intelectuais ao longo do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

século XX, em especial no chamado contexto de “Integração da Amazônia”.


Autores, artistas políticos como Lúcio Flávio Pinto, Ruy Barata, Benedicto
visã
Monteiro, entre outros, já apontavam essa relação desigual nutrida entre as
regiões (SILVA, 2020).
Esse processo de colonização/integração dos anos 1960/70 criou uma
itor

série de posições críticas que clamavam pela emergência de uma consciên-


a re

cia eminentemente amazônica que defendesse a cultura e riquezas naturais


da região frente à cobiça nacional e internacional. Segundo Mário Médice
Barbosa (2010) esse fenômeno criou, entre outras coisas, o sentimento regio-
nalista do “paraensismo”, que buscava a valorização cultural e política do
par

Pará e sua especificidade.


Advogamos, portanto, que o ensino de história dê ensejo a um olhar
Ed

crítico que problematize, entre os formandos/educandos, a presença do capi-


talismo, da modernidade, do progresso e do nacional na região. Assim como
dê atenção especial aos seus intelectuais, suas tradições populares, epistemes
ão

e o direito a existir dos homens e mulheres amazônidas em sua diversidade.


Defendemos uma desobediência epistêmica desde a Amazônia. Na qual pos-
samos desconstruir a hierarquia de saber orientada a partir do Centro-Sul.
s
ver

Considerações finais

Neste texto estabelecemos uma reflexão necessária ao fazer docente


em um contexto amazônico. Ainda estamos fundamentalmente trilhando um
campo epistêmico que não nos pertence que foi forjado em outras circunstân-
cias e desde outros lugares. O que propomos ao longo de nossa abordagem foi
a urgente sugestão de estabelecer como princípio formativo dos professores de
110

história do Norte do Brasil a desobediência epistêmica, um olhar que parte das


problemáticas locais e também toma os saberes da sua região como centrais no
aprendizado. As memórias, as tradições, os costumes e concepções de mundo
forjados de forma situada devem ser primordiais no percurso formativo de
docentes e jovens educandos.

or
O que foi proposto está relacionado com uma problemática real do

od V
“estado da arte” constatado nos documentos oficiais dos cursos de história

aut
da região Norte. Eles demonstram que ainda é necessário um “giro decolonial”
no seu âmbito, pois ainda é hegemônica uma cronologia ocidental/eurocêntrica
que entende a história da Amazônia como apêndice, como um desenrolar de

R
um sentido histórico que parte da Europa e chega ao Centro-Sul brasileiro
e posteriormente ao Norte. Foi também salientada a constatada condição de

o
periferia historiográfica em âmbito nacional, na qual também incorporamos
aC
uma cronologia, assim metodologias, teorias e objetos construídos a partir do
contexto histórico do Centro-Sul. É necessário, portanto, desconfigurar essas

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imposições externas aos intelectuais amazônicos. Para que efetivamente possa-
mos falar de uma educação superior e escolar que dê conta de formar sujeitos
visã
críticos e conscientes de seu lugar social e histórico, capazes de valorizar seu
passado e aceitar a diversidade cultural humana.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 111

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s ão
ver
SOBRE BURBURINHOS E DESATINOS:
inscrições biográficas feministas nas
escritas e epistemologias de pesquisa

or
od V
Simone Maria Hüning

aut
Érika Cecília Soares Oliveira
Késia dos Anjos Rocha
Aline Kelly da Silva

R
O convite para a escrita deste capítulo chegou em um momento de exaus-

o
tão, desses com o que nos tornamos cada vez mais familiarizadas – e não
aC
devíamos – no nosso cotidiano acadêmico. A recusa seria o caminho mais
cômodo, mas seu título provocava a vontade de não perder essa oportunidade:
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“Formação em psicologia social e sociologias insurgentes: tramas históri-


visã
cas em educação libertária”. Pareceu-nos que a saída da exaustão passaria
necessariamente pela busca por práticas libertárias e saberes insurgentes. A
provocação estava posta, abrindo brechas para uma discussão que havíamos
começado em outros espaços de nossas trajetórias afetivas e acadêmicas: qual
itor

o lugar da autora e sua biografia na escrita acadêmica?


a re

Reunimos, então, quatro companheiras de percursos também tramados


por insubordinações e nos colocamos a tarefa de pensar essa questão a partir de
nossas experiências como autoras que dialogam e se constituem nas trocas com
outras mulheres escritoras. Nos valendo da proposta das insurgências, cons-
par

truímos o texto como um ensaio sobre vidas e epistemologias, onde a partir da


questão disparadora nos propusemos a partilhar nossas inscrições biográficas
Ed

em nossa trajetória acadêmica. Aqui falarão, portanto, quatro mulheres que


vivem, pesquisam e buscam performar práticas de uma educação feminista
(OLIVEIRA, 2020) e libertária.
ão

Nos referenciamos em epistemologias descoloniais e subalternas para


refletir sobre como nos inscrevemos em espaços onde a regra hegemônica é
o apagamento das subjetividades e corporeidades e uma suposta indiferença
s

sobre quem fala ou escreve. Nos insurgimos contra a regra de que o que importa
ver

é apenas o conteúdo da escrita e não quem escreve. Nos propomos a evocar


origens, percursos e aprendizagens que extrapolam a experiência da formação
do ensino superior e na pós-graduação e que compõe também a história de
como chegamos aos nossos encontros com a educação, a pesquisa e a escrita.
Para isso, optamos por compor o capítulo mantendo as marcas de autoria
de cada uma das quatro mulheres-autoras, que por sua vez vêm acompanha-
das de muitas outras. Nossa escrita é conjunta, mas preserva os percursos
114

singulares em torno do eixo que entrelaça nossas biografias com percursos


epistemológicos construídos especialmente pelos feminismos subalternos.
Permitir-se apresentar-se e inscrever-se em um texto acadêmico para além das
titulações, nos possibilita evocar origens e aprendizagens que, se não ditas,
conduzem a uma série de suposições que perpassam a ideia de quem são as

or
pessoas que assinam as produções acadêmicas, neutralizando importantes mar-

od V
cadores de poder. Aqui, nos constituímos como mulheres-pesquisadoras-escri-

aut
toras que possuem histórias das quais também derivam nossos conhecimentos.
Em uma aproximação sentipensante (FALS BORDA, 2009) alinhavamos

R
vidas e escritas com ecos, silêncios e burburinhos, esmagamentos e desatinos,
poesias, dores e alegrias, lacunas, interrupções e inconclusões, buscando uma
escrita que não apenas nos abre, mas se abre sobre o mundo. Assim, nos autori-

o
zamos a falar sobre nós, sem receio de inadequação, e ensaiamos outras formas
aC
de nos constituirmos a partir de políticas de amizade, de pesquisa e escrita,
deixando às leitoras linhas soltas para a constituição de outras e novas tramas.

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O que cabe nestas linhas?
visã
Há pouco tempo concluí a escrita de um texto em coautoria com colegas
e ao finalizar, precisávamos preencher as ‘informações sobre as autoras e
itor

autores’. Quando recebi o arquivo compartilhado no qual deveríamos cumprir


a re

tal tarefa, uma das parceiras de escrita, iniciava sua apresentação falando de
sua ancestralidade e concluía com as formalidades acadêmicas. Fiquei por
um momento paralisada diante daquele texto e daquela pequena ousadia.
Digo pequena não para diminuir, mas porque, apesar do início transgressor,
par

a apresentação acabava alinhando-se, ao final, ao que usualmente se espera,


mencionando titulações, respectivas instituições e outras referências acadê-
Ed

micas. E mesmo assim, havia me provocado uma afetação inusual. Entre o


encantamento de deslocar-me das repetidas citações do Currículo Lattes e o
receio da exposição da vida pessoal, me coloquei pensando sobre o que eu
ão

teria pra dizer sobre mim, como coautora daquela escrita específica e porque
isso seria relevante. E, inspirada no que havia feito a colega, resolvi ousar
um pouquinho também, só um pouquinho, contando algo de minha origem
s

antes de sinalizar minha formação e atuação acadêmica.


ver

Os textos de apresentação foram então enviados às organizadoras da


coletânea que acolheria aquela escrita. Alguns dias depois, recebemos a soli-
citação de reduzirmos nossas apresentações a apenas cinco linhas. Eu havia
escrito dezessete e destas apenas seis constavam no Currículo Lattes. Registrei
mentalmente a necessidade de abrir o arquivo e cortar a minha história daquele
texto. Porém, pouco antes de ligar o computador para fazê-lo, chegou uma
mensagem da amiga e colega Érika Oliveira. Ela também era autora de um
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 115

texto da coletânea e havia acessado o arquivo compartilhado das informações


sobre autoras e autores. Sua mensagem dizia que havia gostado muito do
modo como havíamos nos apresentado. Eu agradeci, falei da inspiração na
apresentação da colega e lamentei que no fim das contas, teria que cortar o
texto para caber nas cinco linhas. Ela prontamente respondeu: “corta as apre-

or
sentações acadêmicas e deixa as da vida [...] já é produzir rupturas [...] quem

od V
quiser saber da acadêmica vai pro Lattes, da vida, só você contando”. Incluir

aut
o link do Lattes era a orientação que acompanhava a regra das cinco linhas.
A solução aparentemente tão óbvia sugerida por Érika redimensionava
a ousadia e a transgressão do modelo ao qual estava conformada e me desa-

R
fiava a sustentar minha apresentação, em um trabalho acadêmico, optando
por alguns poucos aspectos da minha vida, e não pelos meus títulos. Aceitei

o
a provocação e, nas cinco linhas permitidas, pude dizer mais sobre mim do
aC
que já havia feito em qualquer outra apresentação formal, ainda que muito
menos do que eu gostaria e penso que importaria dizer sobre quem sou e
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porque escrevo e pesquiso sobre determinadas questões ou a partir de certos


referenciais. Mais do que dizer sobre uma intimidade, aquelas cinco linhas me
visã
conectavam com o que dizíamos no texto escrito, me dava vida e sentido como
autora daquela contribuição. Poucas horas depois, outra colega mandou-me
uma mensagem comentando de modo positivo e surpreso aquela apresentação.
itor

Mesmo com esses comentários inesperados e encorajadores, pulsava a dúvida


a re

sobre a adequação de colocar-me daquele modo no texto, trazendo algumas


poucas informações de uma biografia e não de um currículo acadêmico.
Naquele momento, ainda de bastidor, de organização de informações
sobre as autoras da coletânea, a ruptura potencial apontada por Érika, já
par

começava a acontecer. No dia seguinte, uma das organizadoras do livro entrou


em contato comigo preocupada, perguntando se eu havia me incomodado
Ed

com a solicitação de corte e por isso retirado minha formação acadêmica da


descrição. Ela leu o ato como revolta e descontentamento de minha parte, não
como insurgência e transgressão que busca outro modo de inscrever-se no
ão

campo de produção de conhecimento, aliado a epistemologias descoloniais.


Saber dessa impressão causada, ao mesmo tempo em que me fez rir, mais
uma vez dimensionou a importância do que estava acontecendo. Se eu tivesse
s

apagado as informações pessoais e não as acadêmicas, essa questão não teria


ver

sido formulada. E ela me fez pensar.


Esse efeito disruptivo provocado pela mudança no regramento discursivo
sinaliza que mesmo tão pequeno, esse movimento disparava algo relevante nos
modos como nos colocamos nos contextos de pesquisa e escritas acadêmicas:
a despessoalização de quem pesquisa, como herança colonial.
A despessoalização de quem pesquisa, como normativa hegemônica da
colonialidade, sustenta a falácia da igualdade de condições na produção do
116

conhecimento, do conhecimento politicamente desinteressado, da univer-


salidade de histórias e trajetórias acadêmicas, massificadas pelas titulações
ou itens de um Currículo Lattes. No fim das contas, entre tantos(as) e tantas
autores(as) daquela coletânea, víamos repetir-se: graduação em psicologia
ou outra área, mestrado em nisso ou naquilo, doutorado aqui ou acolá, e

or
assim por diante. Informações que, grosso modo, só variavam em função das

od V
instituições de origem e ano de titulação. Aquele formato tão familiar e natu-

aut
ralizado, de repente tornou-se vazio. Não dizia nada. Nada informava sobre
quem eram aquelas pessoas autoras, inclusive muitas companheiras de outros
percursos que sabia serem muito mais do que aqueles títulos acadêmicos.

R
De minha parte, não informava o que eu mais queria dizer: que para mim,
Simone, a trajetória acadêmica nunca foi algo dado ou óbvio na minha vida

o
e era exatamente esse outro lugar que me dava não apenas legitimidade, mas
aC
alguma propriedade, para escrever sobre o que escrevia. Queria dizer que a
pós-graduação e a carreira acadêmica, eram em si ruptura com percursos de

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vida familiar dados como os únicos possíveis na realidade de onde vim, e que
esta realidade, ao mesmo tempo tão distante do lugar profissional que ocupo
visã
hoje, é o que me conecta com uma política de pesquisa sentipensante (FALS
BORDA, 2009), com sabedorias de ordem prática, dos fazeres da casa, da
horta e do artesanato como forma de estar e fazer o mundo (RIVERA-CUSI-
itor

CANQUI, 2018). Mas por que dizer isso agora?


a re

Penso que a resposta está nos encontros com mulheres não brancas (ami-
gas, estudantes, intelectuais), que se inscrevem inclusive neste texto com estas
parceiras de escrita e também outras, muitas das quais compõem a lista final
de autoras referências que o encerra: Carolina Maria de Jesus, Conceição Eva-
par

risto, bell hooks, Chimamanda Ngozi Adichie, Maya Angelou, Toni Morrison,
Gloria Anzaldúa, Lélia Gonzalez, Françoise Ega, Scholastique Mukasonga,
Ed

Ana Maria Gonçalves… Foram essas mulheres que me ensinaram sobre como
o racismo, a branquitude e o sexismo, presentes também nos espaços acadê-
micos se beneficiam desse modo de apresentar-se constituído pela priorização
ão

da afirmação de uma titulação e uma referência institucional. Eles sustentam a


farsa de que a partir desses elementos, apenas, seria possível marcar um uni-
versal de igualdade ou diferenciação de poder – hierarquização e legitimação
s

– suficientes sobre quem escreve, ou, mais que isso, ignoram quem escreve.
ver

Duplo equívoco: o de que só pode falar quem possui a autoridade concedida


pelo título (hierarquização e diferenciação do poder) e de que ao possuir o
“belo diploma” (MUKASONGA, 2020) nos tornaríamos iguais (falsa ideia de
simetria). Se só se pode ter legitimidade para falar porque possuímos titulações
e se o que pode ser dito deve restringir-se àquilo que poderia ser tomado como
um universal neutro, operamos mais um recorte de autoridade e exclusão que
se soma a tantas outras conhecidas estratégias coloniais que induzem a um
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 117

apagamento das relações entre biografias e produção de conhecimento e, de


modo mais radical, entre a vida e a pesquisa acadêmica.
Como mulher branca, mesmo não estando no lugar profissional óbvio
por não vir de uma família na qual havia tradição de acesso ao ensino supe-
rior, não foi difícil encontrar acolhida e colocar em uso estratégias que me

or
permitiram um relativo conforto na academia. Mesmo sendo mulher, condição

od V
que em si coloca algumas barreiras nos empurrando para os caminhos de cas-

aut
calho (OLIVEIRA; ROCHA; MOREIRA; HÜNING, 2019), a branquitude
me amparou a escrever e estar no mundo como se fosse eu mesma um sujeito

R
universal, negligenciando em minha própria história muitos desses marcadores
sociais, ainda que, irônica ou ingenuamente, a crítica ao sujeito universal e a
atenção às relações de poder estivesse na base das minhas pesquisas consi-

o
deradas contra-hegemônicas.
aC
Sobre fofocas e burburinhos
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visã
Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, pra pensar que
poderia escrever?1. Ver de otro modo precisa de palabras flameantes de
porosidad festiva2. Aprender es un llanto interno3. Aprender é um choro que
acontece a partir de dentro. Perfurar o corpo para fazer surgir porosidades
itor

requer minúcia; esburacar a pele, Sim sangrar talvez. Um ato festivo, cho-
a re

roso. Mãos inchadas e calejadas, inadequadas para segurar a pena4. [...] e


todas nós travamos, juntas, uma guerra contra as tiranias do silêncio5. [...]
o peso desse silêncio nos sufocará. E há muitos silêncios a serem quebra-
dos6. Érika, cadê a sua voz? [...] e quanto mais você o ignora, mais ele se
irrita e enlouquece, e se você não desembucha, um dia ele se revolta e dá
par

um soco na sua cara, por dentro7. Isso, de receber socos, não é para nós,
mulheres, melhor seria falar de uma vez por todas. Levei mais tempo para
Ed

publicizar questões privadas na escrita, pois o medo da punição estava à


minha espreita [...]8. Esse ato de fala, de “erguer a voz, não é um mero gesto
de palavras vazias: é uma expressão de nossa transição de objeto para
ão

sujeito – a voz liberta9.Quantas vezes, na academia, sequer conseguimos


abrir espaço para diálogos, preocupados que estamos em afirmar um certo
status de intelectualidade? Em saber quem é que fala adequadamente a
s
ver

1 ANZALDÚA, Gloria (2000, p. 230).


2 FLORES, Val (2010, p. 59).
3 FLORES, Val (2010, p. 58).
4 ANZALDÚA, Gloria (2000, p. 230).
5 LORDE, Audre (2020, p. 52).
6 LORDE, Audre (2020, p. 55).
7 LORDE, Audre (2020, 53).
8 HOOKS, Bell (2020, p. 25).
9 HOOKS, Bell (2020, p. 39).
118

linguagem do cânone acadêmico10. Eu escolho as cartas, envelopes, laços


e caixas, pois com estes é como se as travas da escrita se soltassem, como
se o freio imaginário que me conduzia tivesse sido liberado11. Desistir de
falar e escrever como se deve. Desistir de pensar como se deve12. Eu não
tinha vergonha de não ser culta. De que serve passar o tempo dissecando

or
Voltaire e outros tantos para, no final, dizer tais disparates? Caramba, o
que um cretino desse naipe ensina a seus alunos?13

od V
aut
O burburinho que trago acima é fruto de escritas criadas nas vísceras de
mulheres que sabem que para ocuparmos certos lugares é preciso que ras-

R
guemos nossas carnes e apostemos tudo o que temos de mais valoroso, até
as últimas consequências. Significa também que é muito mais esperançoso

o
quando damos ouvidos às mulheres que produzem nas beiradas do mundo,
se equilibrando nas cordas bambas das hierarquias e das transações de poder.
aC
Mulheres que implodem ou desejam implodir os “mapas epistêmicos” (MES-
SEDER, 2020) nos quais fomos e ainda somos cegamente catequizadas Essas

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mulheres nos convocam a encarar nossos espaços de estudo e de trabalho, o
visã
que implica em verter sangue, em reiniciar um mundo porque este, sem corpo
e sem afeto, não nos serve mais. Nos convidam a nos jogar, lançar nossos
corpos no ar. Derreter visões coloniais que se cristalizaram sobre nossa pele,
fazendo uma segunda, terceira camada. Tão difícil descolar-se, impossível
itor

fazer isso sozinha. Não consigo mais. Colo-me ao provérbio trazido por Simas
a re

e Rufino (2020, s/p): “Os ventos ensinam, como diz um provérbio dos congos,
que os pássaros têm asas porque elas lhes foram passadas por outros pássaros”.
Quero lançar meu corpo no espaço, mas quero estar abraçada por muitas asas.
Dias desses, eu e minha companheira, Késia, conversávamos sobre como
par

nós, mulheres, fomos construídas como fofoqueiras. Somos as fofoqueiras por


excelência. Retratadas assim, nos leva a crer que falar é um domínio nosso.
Ed

Falamos nos lugares que desejamos, afinal, não somos as senhoras das pala-
vras? Mas mexericos, está no dicionário, não têm nenhuma vinculação com
fatos concretos, não passam de especulação, hipóteses baseadas geralmente
ão

na maledicência. Fofocamos nos espaços privados, reservados para nós. Nas


cozinhas, nos quartos. Nos salões de beleza. Fofocamos porque as palavras
que proferimos não servem para nada. Não têm nada a ver com o cânone,
s

com o mundo das disputas dos homens. Apenas nos servem para entreter,
ver

para preencher dias tediosos, nosso vazio. Isso foi o que eles construíram para
nós, uma porta aberta, bastava entrar e se acomodar, se acovardar. Ou virar
as costas. Foi o que fizemos.

10 BATTISTELLI, Bruna M.; RODRIGUES, Luciana (2021, p. 163).


11 BATTISTELLI, Bruna M.; RODRIGUES, Luciana (2021, p. 165).
12 FLORES, Val (2010, p. 24, tradução minha).
13 EGA, Françoise (2021, p. 85).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 119

Como docente de uma universidade pública federal, tenho ouvido incontá-


veis relatos de alunas e colegas geralmente mulheres negras e brancas como eu,
narrando as dificuldades que por vezes possuímos com as demandas do universo
acadêmico, seja no que diz respeito às convocações que nos fazem para falarmos
em público ou para escrevermos. Muitas de nós sentem-se como se pegas em

or
flagrante quando convidadas para falar ou escrever, nos interpelando por dentro:

od V
somos capazes disso, somos boas o suficiente? Como se uma grande falha em

aut
nós jamais pudesse ser superada. Como se essa lacuna, de fato, existisse.
Em uma atividade solicitada em sala de aula, pedi para que estudantes
refletissem sobre suas formações a partir do livro de Valter Hugo Mãe, As

R
coisas mais belas do mundo. Uma aluna trouxe seu texto e logo ao apresen-
tá-lo, foi dizendo: Não foi um exercício confortável, foi sofrido. E por que a

o
experiência da aluna ao escrever o texto solicitado pareceu ser uma experiência
aC
áspera? Porque ali ela contava como sua trajetória escolar fora marcada por
silenciamentos e desqualificações às quais ela, pouco a pouco, foi superando
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para construir uma voz própria (e uma confiança própria também). Ao relato
dela, se somaram os de outras alunas. A experiência de viver o espaço escolar
visã
em diversas ocasiões como intrusas, fez com que essas alunas apontassem
que ser pesquisadora teria a ver com acolhimento, exigindo um olhar sensível
e uma escuta apurada. Elas sentem que todas as pessoas devem ser enxer-
itor

gadas, mesmo aquelas que não se encontram dentro de uma ficção de êxito
a re

escolar ou acadêmico, como as mais silenciosas, as mais tímidas. Percebo


que, para elas, não é possível ser pesquisadora sem que haja, para tanto, um
exercício de humanizar-se e, por que não, de desaprender e reaprender o que
é ser estudante, seja das séries iniciais até a universidade. É uma grande res-
par

ponsabilidade, apontada para nós por Carvalho, Kidoiale, Carvalho e Costa


(2019) perceber que a universidade não tem como permitir que a esperança
Ed

em obter conhecimento, titulação, trabalho e status social se torne uma doença


que pode levar à morte. O conhecimento não deve matar e nem adoecer. O
conhecimento precisa dar sentido à vida, dizem essas(es) autoras(es).
ão

O curioso é que, em contato com nossas falas e escritas – ou com o texto


dessa e de outras estudantes - geralmente observo uma densidade teórica e
experiencial que não justifica os medos vivenciados por nós, o que me remete
s

ao fato de que se tratam de medos construídos; tijolos colocados uns sobre


ver

os outros, pacientemente. Sistemas de dominação que se solidificam na ten-


tativa de nos provar que estamos entrando em espaços que não são nossos,
espaços que servem para nos intimidar. Nas palavras de Gloria Anzaldúa
(2000, p. 229): “As escolas que frequentamos não nos ensinaram a escrever,
nem nos deram a certeza de que estávamos corretas em usar nossa linguagem
marcada pela classe e pela etnia”. Aqui, deparo-me com o fato de que nossos
corpos, marcados por nossa classe social, raça, gênero, entram no jogo, se
120

desviam, constroem itinerários possíveis dentro dessa caixa sexo-colonial


acadêmica. O projeto político utópico é que, pouco a pouco, vamos nos jun-
tando e desistimos – de falar, de escrever e de pensar – como se devêssemos
agir sempre como as colonizadas, inferiores intelectualmente. Desistimos
do dever de viver homogeneamente, eurocêntricamente, com os gestos de

or
erudição que não são nossos. Estamos fartas disso. E que trabalhosa é essa

od V
tarefa de se desfazer das hegemonias tão bem arranjadas em nossas cabeças!

aut
Como menciona Messeder (2020), essa política de conhecimento racializada,
classista e heterossexista nos invade com seus tentáculos. Isso sufoca, mas
ter conhecimento sobre este fato é um caminho sem volta.

R
Como docente pensando e vivendo na pele essas questões que trago aqui,
acredito que a matriz heteropatriarcal e colonial que se entranha em nosso

o
ser, em seu mais íntimo abismo, muitas vezes impede a harmonia entre viver,
aC
sentir e ensinar. Muitas vezes, nos sentimos desarranjadas, procurando nossos
rostos em meio às paredes das universidades; um espelho opaco. Isso porque

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há muita desmontagem a ser feita, uma longa e árdua labuta, um desfazer
interminável daquilo que nos impuseram como verdade. Mas seguindo a
visã
ideia de Val Flores (2010), apresentada no burburinho que abriu este texto,
penso em palavras flamejantes e em porosidades festivas para dar aos nossos
corações uma alegria no combate ou, em Simas e Rufino (2020), em pássaros
itor

que se destinam asas e as multiplicam ao nosso redor. Penso nisso tudo para
a re

dizer que para algumas de nós, mulheres na academia, com nossas múltiplas
corporeidades, locais de fala e experiências, este é um espaço a ser conquis-
tado, mais um medo a ser derrubado. E será.
par

Notas para uma escrita desatinada


Ed

Todos os mais diferentes lugares do mundo têm seus catadores de pensa-


mentos. Catadores de pensamentos são pessoas responsáveis por recolher
ão

tudo que pensamos. Pensamentos pequenos, grandes, atrevidos, silenciosos,


inteligentes, bobos, alegres, tristes. Nós não costumamos ver e identificar
essas pessoas. Elas são discretas. Acordam cedinho e caminham por toda
s

a cidade a recolher cada pensamentozinho. Estão sempre atentas para que


ver

não lhe escapem nenhum. O Sr. Rabuja é um catador de pensamentos, todas


as manhãs ele caminha pela cidade e recolhe cada fiozinho de pensamento.
Ele os leva para casa, os ordena em prateleiras, todos organizados por
ordem alfabética. Na prateleira do C, ele coloca os pensamentos curio-
sos, carentes, corajosos, cabeludos. Na prateleira do D, vai inserindo os
desatinados, desafiadores, dengosos, dramáticos, dolorosos. Todos juntos.
O Sr. Rabuja os organiza e, na sequência, se recolhe para um descanso e
um chá. O ritual segue depois de um tempo. Cada pensamento é recolhido
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 121

com cuidado e, em seguida, levado ao quintal onde são plantados, um ao


lado do outro minuciosamente. Pronto. Pouco tempo depois, já é possível
avistar no quintal as mais diferentes e coloridas flores. Algumas são espi-
nhosas, outras têm pétalas macias e sedosas. Há perfume no ar. Aquela
magia dura tempo suficiente para que o Sr. Rabuja aprecie e se orgulhe do

or
seu trabalho. Num piscar d’olhos as flores vão se dissolvendo e tomando
conta do céu como grandes nuvens coloridas, uma magia dançante. O

od V
vento as leva pela cidade. Enquanto todos/as dormem, aquelas pequeninas

aut
flores de pensamentos vão pairando pelo alto das casas, adentram pelas
frestas e pousam suavemente nos sonhos das pessoas. É isso. Assim nas-

R
cem e renascem os pensamentos. O Sr. Rabuja sorri satisfeito ao final de
cada ciclo, sabendo que, graças a ele, o que pensamos acaba por mudar

o
de cor, de cheiro, de textura, nunca se repetem em demasiado. Tranquilo,
ele saboreia o último gole do chá e, em seguida, adormece.
aC
Reduzir a distância entre pensar e sentir. Audre Lorde (2020) nos fala
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sobre isso quando aborda que a poesia não pode ser um luxo em nossas vidas.
Precisamos dela para sobreviver. A pequena história que abre esse momento
visã
de conversa é inspirada no livro infantojuvenil O catador de pensamentos
de Monika Feth (1996), quando me sentei para pensar sobre como deveria
ser essa escrita, o Sr. Rabuja parece que surgiu entre as teclas. Mas minha
itor

ideia era outra. Nem era falar de pensamento, nem de sentimento, era falar
a re

de memória, de escrita, sobre os percursos da minha escrita. Me recordei que


certo dia acordei com um pensamento antigo sobrevoando a mente, era como
se eu tivesse voltado no tempo, como uma flecha que retorna, me recordei
da primeira vez em que escrevi um texto na universidade, em meio a meus
par

anseios bem iniciais de ser pesquisadora ou qualquer coisa parecida. Escrevi


um pequeno texto sobre minhas intenções de pesquisa, o objetivo era apre-
Ed

sentá-lo para a professora que seria minha futura orientadora de iniciação


científica. Entreguei o texto numa daquelas tardes bonitas e quentes de verão
depois de pedalar por uns minutos, lembro de ficar em silêncio aguardando
ão

a leitura do meu texto. Engraçado que nessa época acho que eu nem estava
ansiosa, isso ainda não me pertencia. Não lembro na íntegra o conteúdo desse
encontro, mas recordo a frase que ficou: ‘esse texto é um desatino, Késia’, eu
s

havia escrito desatinos ali. Vários deles. Fiquei sem saber se eram de ordem
ver

semântica, gramaticais, historiográficos etc. Até hoje não sei, porque já não
tenho o texto, nem a ideia, nem a memória integral, ficou lá atrás.
A gente acha que ficou lá atrás. Mas a flecha do tempo mostra que não
é bem assim, às vezes ela bate e volta. Desatinos. As palavras têm ecos e os
ecos dessa palavra no seu plural foram se ramificando na minha experiência
de escrita acadêmica. Foram se ramificando como aquelas plantas trepadeiras
que forram muros nos bairros chiques. Bem assim. Só sei que escrever virou
122

uma história. Daí em diante eu me recordo que a minha relação com essa
orientadora era a três: eu, ela e o fantasma da escrita. Em tom de graça, ela às
vezes dizia para as pessoas próximas: ‘ela tem ideia, tem ideia, mas escrever
que é bom nada”. Silêncio. Lélia Gonzalez (2020, p. 293) diz que “A gente
quando chega na universidade, é um bando de perplexos. Porque é tanta coisa

or
em cima, ao mesmo tempo é um discurso que tenta te cortar. Cortar teu pé.

od V
Puxar o tapete”. É isso, puxam seu tapete, cortam teu pé, e você vai dando seu

aut
jeito. Só sei que segui a vida na universidade, participei de muitos projetos,
do movimento estudantil, de ONG, de festas, de protestos, ocupações. Mas

R
não escrevi (o projeto de pesquisa). Desatinos. Que receio que eu tinha de
mostrar aos olhos das pessoas meus desatinos.
Ecos. Acho que foram ecos das palavras, expressões, conceitos de várias

o
autoras feministas e, principalmente, negras, que fizeram emergir essa lembrança,
aC
esse pensamento sobre uma experiência já tão distante. Eu ainda não tinha falado
sobre ela. Eu ainda não tinha escrito sobre ela. Só havia produzido silêncio.

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Audre Lorde nos fala sobre isso; a poeta compartilha com várias pessoas, num
evento público, a descoberta de estar doente, de estar com câncer de mama (isso
visã
foi em 1978), ao fazer isso ela nos fala sobre a relação íntima entre o silêncio
e a transformação, como se daquele silêncio quebrado, rompido, nascesse uma
possibilidade de transformação, de ação. Silêncio virando verbo. Lorde diz que
itor

precisamos criar aquilo que não existe, dizer aquilo que não costuma ser dito,
a re

pensar o que não costuma ser pensado, que precisamos tentar realizar “o árduo
trabalho de escavar honestidade” (LORDE, 2020, p. 108). Nesse processo, o
que ocorre é uma espécie de entrelaçamento entre conhecimento e compreensão,
quando avançamos nesse movimento de compreender a nós mesmas, consegui-
mos converter isso em conhecimento, que se dá no momento em que partilhamos
par

algo, uma vivência, uma lembrança, uma memória; como diz Lorde (2020, p. 90)
Ed

“O que a compreensão começa a fazer é tornar o conhecimento disponível para


o uso, e essa é a urgência, esse é o impulso, esse é o estímulo”.
Desatinos. Os ecos da palavra se pulverizam para convertê-la em verbo.
ão

Fazer ganhar pernas. Desatinos: “1. que ou o que não tem tino, juízo; des-
vairado, doido, louco”. Desatinar: “1. fazer perder ou perder o tino, juízo,
a razão. 2. Dizer ou fazer desatinos, coisas insensatas. 3. Não atinar. 4. Não
s

acertar” (HOUAISS, 2009, p. 629). A ideia de não acertar, de escrever/pensar


ver

coisas doidas, desvairadas e sem razão foi cimentando aos poucos o chão da
minha escrita, foi dando forma a ele para que eu pudesse pisar. Esses tempos
me peguei pensando que é essa tríade voz-pensamento-escrita que nos projeta
no mundo, a gente vai se corporificando por meio dela. E quando, por algum
motivo, algo desanda, a gente balança na corda. Essa tríade nos expõe, nos
coloca abertas a certo tipo de vulnerabilidade. Audre Lorde diz que “Se expor é
como matar uma parte de você, no sentido de que você tem que matar, derrubar,
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 123

destruir algo familiar e confiável para que o novo possa surgir, em nós mesmas,
no nosso mundo” (LORDE, p. 88). O ponto chave dessa reflexão é que precisei
pensar para além da tríade voz-pensamento-escrita, precisei acionar sentimento,
visitar os arquivos afetivos, as catacumbas, foi necessário me encontrar com
meus desatinos, meus medos, minhas vulnerabilidades. E me expor.

or
Encontros. Desses encontros emergiu a compreensão de que nossa escrita

od V
é cheia de sentidos, é cambiante e não se faz só. Esse texto mesmo é um

aut
encontro, um exercício de expor como quem mata um pedaço de si para gerar
outros. Fazemos juntas. Lorde diz que “[...] nunca devemos fechar os olhos
para o terror, para o caos, que é negro e que é criativo e que é fêmea e que é

R
obscuro e que é rejeitado e que é bagunçado e que é...” (LORDE, p. 84). Num
texto de Lélia Gonzalez (2020) em que ela fala sobre sua inserção no ensino

o
formal, sobre o fato ter sido a primeira entre os irmãos a poder estudar, ela
aC
diz que o acesso à escola, ao mesmo tempo que a colocava num outro lugar
social, exigia dela um afastamento de si, um esquecimento de si enquanto
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mulher e negra. É isso, às vezes nos abandonamos e esquecemos de nós em


prol de um projeto que nos é apresentado como universal, verdadeiro. Quanto
visã
mais Lélia aprendia, mais esquecia de si. Esse é o projeto colonial em curso
há tanto tempo. Assistindo recentemente uma conversa entre Jota Mombaça e
Denise Ferreira da Silva14, elas trouxeram uma inquietação, elas falavam um
itor

pouco sobre o quanto esse projeto de mundo/sociedade não deu certo e suge-
a re

riam o abandono dele, diziam que recusar um determinado projeto é arriscar


seguir caminhando, é como se as falhas de um determinado projeto pudessem
também nos apontar rotas. Uma das questões feitas por elas é se podemos nos
comprometer com as falhas para criarmos outras expressões, pensamentos.
Radicalidades. Nesse diálogo entre Jota e Denise, elas falam sobre
par

radicalidade do pensamento. A conversa é fluída e não tem intenção de ser


Ed

conclusiva. Mas me fez pensar que há muita radicalidade nessa tomada de


consciência de que se pode escrever e autorizar-se a fazê-lo. E o mais impor-
tante, de que nós mulheres, nós mulheres negras, podemos e escrevemos mun-
ão

dos. Há radicalidade também quando recusamos o projeto, quando recusamos


os lugares para os quais somos designadas. Minha radicalidade, a radicalidade
da minha escrita que já foi nomeada de desatinada, militante e num tempo
s

mais recente de “bagunçada’ epistemologicamente, talvez venha, em pri-


ver

meiro lugar, a partir do ato de recusa e, em segundo, a partir do ato de expor.


Exponho, portanto, junto com minhas colegas aqui neste texto e com vocês
que o leem, meus desatinos, meus sentimentos, tento fazer como faz o senhor
Rabuja, recolher e replantar pensamentos para que eles possam se mover em
significado. Me assumo como uma pesquisadora-escritora-desatinada.

14 Live de lançamento do livro “Não vão nos matar agora”, de Jota Mombaça. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=tb826whBMb0
124

Como é que você veio parar aqui?

Sento-me à mesa do restaurante da universidade. Nesse horário está


bastante cheio e movimentado. Um tanto cansada pela viagem e apreensiva
para o concurso, a hora do almoço me permitiria relaxar um pouco. Não

or
há como passar ilesa, entretanto. Estou numa cidade do Sul do país, cujos

od V
estabelecimentos e monumentos pela cidade, bem como os nomes das ruas,

aut
ostentam uma história de colonização alemã e uma universidade majorita-
riamente branca. Quando escrevo majoritariamente, quero dizer, na verdade,

R
esmagadoramente branca. Como mulher negra, tentam me esmagar com olha-
res lançados pelo canto do olho. Fico pensando em como a história oficial da
colonização alemã marca o imaginário predominante no Sul do país, como

o
uma das muitas estratégias coloniais utilizadas para negar a presença de povos
aC
negros e indígenas por aqui. Sonhos de branqueamento e delírios europeizantes
ainda fazem muita gente defender com veemência sua origem alemã, suas

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receitas alemãs, seus hábitos alemães, sua suposta pureza e superioridade.
Olhares de estranhamento são direcionados a mim. Por alguns instantes,
visã
questiono-me mentalmente se haveria algo de errado com a minha roupa ou
meu cabelo estaria muito desarrumado. Quando abro a boca para fazer o
pedido, sinto um novo estranhamento. Dessa vez, sei que é do meu sotaque e
itor

forma de falar que se trata. Um constrangimento passa pelo meu corpo, junto
a re

com o ar gélido do dia. Essa sensação de inadequação me toma o corpo de


uma maneira difícil de colocar em palavras.
Em poucos dias viria a prova didática do concurso docente. Eu me lembro
de chegar bem cedo, apesar do frio congelante e de ter dormido pouco, pois
par

seria a primeira pela ordem de sorteio. Subo escadas arrastando a mala apres-
sadamente, a postos para a viagem de volta à cidade em que residia, e procuro
Ed

a sala em que a banca examinadora faria uma breve arguição após o tempo de
aula. Perguntas sobre minha experiência com disciplinas, se residiria na cidade
em que a instituição se localiza, caso fosse aprovada, dentre outras questões.
ão

Repentinamente, uma indagação me tira do que eu consideraria habitual numa


banca de concurso. A professora branca, de olhos claros, interpela-me: Dei
uma olhada no seu currículo e achei interessante. Então você é do Nordeste?
s

Como é que você veio parar aqui? Conta um pouco...


ver

Em fração de segundos, essa fala ecoou instaurando o absurdo da per-


gunta, para a qual talvez pudesse haver alguma resposta à altura. Você já
ouviu falar em passagem aérea? O que pensei em dizer, nesses poucos segun-
dos em que a questão grudou em mim inoportunamente, ficou represado.
Ficou sufocado entre os dentes, abafado na garganta. Estava diante de três
docentes numa banca de concurso, situação na qual expressar minha raiva
certamente repercutiria na avaliação que receberia enquanto candidata. Senti
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 125

mais raiva. A fala evasiva que articulei nos minutos que tive em seguida foi
apenas silenciamento. Será que a avaliadora faria tal indagação se não fosse
sua posição hierárquica? Seriam os títulos acadêmicos os únicos balizadores
das relações a estabelecermos com as pessoas e, dessa maneira, justificadores
de tal postura? Ou seria urgente construirmos formas de se relacionar em que

or
reduzíssemos hierarquias e privilégios conferidos pelas normas institucionais,

od V
a fim de construir uma ética menos colonizadora possível? Trata-se, nesse

aut
caso, de examinar minuciosamente nossas práticas na universidade, pois
muitas vezes estão alicerçadas em relações que mantêm as desigualdades
norte-sul, centro-periferia.

R
Esse acontecimento coloca em questão o que Grada Kilomba (2019)
chama de políticas espaciais, já que a pergunta ‘Como é que você veio parar

o
aqui?’ não aponta para uma mera curiosidade ou interesse, mas sim para o
aC
modo como o entrelaçamento entre raça e território possibilitam que eu seja
situada numa posição de incompatibilidade e não pertencimento. Essa situação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da banca do concurso reatualiza, para mim, as perguntas ‘De onde você vem?’
visã
e ‘Por que você está aqui?’, não pelas questões de nacionalidade discutidas
por Grada Kilomba, mas pelo modo como o racismo e as diferenças regionais
no Brasil suscitam fantasias separatistas que atrelam Norte e Nordeste a tudo
o que se puder rotular como exótico e inferior.
itor

Além disso, esse acontecimento reativou na minha memória outras situa-


a re

ções em que as desigualdades de raça, gênero e classe social acentuam-se em


espaços acadêmicos pelos quais círculo. Comumente, nessas situações, sinto-
-me numa espécie de dosagem da voz, polindo a maneira como vou apontar
opressões praticadas por homens e mulheres brancas. Os sistemas de domi-
par

nação reiteram que só serei ouvida se falar num tom ‘adequado’, baixo, que
não incomode, senão não serei escutada. Audre Lorde (2019) chama atenção
Ed

para o fato de que mulheres negras vivem num mundo que toma como certa
a nossa falta de humanidade e que odeia o simples fato de existirmos quando
não estamos a seu serviço. Apesar de silenciadas, tivemos que aprender a dire-
ão

cionar nossa raiva e fúria para usá-las como força e potencial de ação, em vez
de paralisarmos diante da postura defensiva e da culpa de mulheres brancas,
s

ambas infrutíferas na comunicação. Como diz a autora, “[a]s raivas entre as


ver

mulheres não vão nos matar se conseguirmos articulá-las com precisão, se


ouvirmos o conteúdo daquilo que é dito com, no mínimo, a mesma intensi-
dade com que nos defendemos da maneira como é dito” (p. 164). Articular
a raiva com precisão exige abdicar da culpa que gera somente impotência, a
fim de acionar nosso poder de analisar e redefinir condições em que vivemos
e trabalhamos, bem com reconstruir um futuro de diferenças fecundas e de
uma terra que sustente nossas escolhas (LORDE, 2019).
126

Especialmente quando se trata de dinâmicas raciais, confrontar temas


conectados à vida real faz com que o choro surja em espaços como a sala
de aula (HOOKS, 2020). E aí é preciso não ignorarmos expressões como
choro e/ou raiva, mas aprendermos a lidar com elas de maneira construtiva.
Em um relato de como isso emergiu em sua vida ainda durante sua jornada

or
de estudante, ela propõe pensar que o choro de pessoas brancas, quando

od V
confrontadas por mulheres negras, pode simplesmente torná-las o centro das

aut
atenções e desviar o foco do debate. Em todo caso, seja o choro por culpa
e vergonha, por parte de pessoas brancas, ou o choro de angústia e dor do
racismo vivido por pessoas negras, ambas as expressões emocionais podem

R
ser usadas como ferramentas de ensino e diálogo. Precisamos “aprender
para além dos limites da linguagem, das palavras, onde compartilhamos

o
entendimentos em comum. Somos provocados a aprender com nossos sen-
aC
tidos, com nossos estados sentimentais, e encontrar suas maneiras de saber”
(HOOKS, 2020, p. 134).

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Como teias que se emaranham e cruzam os fios do racismo, sexismo,
xenofobia e preconceitos regionais, ao escrever este texto revisito outras situa-
visã
ções que aqui não detalharei, mas que me fazem pensar que a universidade
definitivamente não é uma ilha. Ainda reproduz e sustenta discursos colo-
nialistas e preconceituosos das relações sociais mais amplas, como esse que
itor

toma o Sudeste, Sul e parte da região Centro-Oeste como grandes centros e


a re

únicos locais de produção científica, em oposição ao Norte e ao Nordeste,


vistos como regiões atrasadas em que pouco se produziria conhecimento de
qualidade, como se houvesse um déficit, em vez de refletirmos a respeito
dos investimentos historicamente desiguais entre essas regiões. Além disso,
par

quando se trata de mulheres negras, o assombro por circularmos nos espaços


acadêmicos como estudantes, pesquisadoras e/ou docentes, e não somente
Ed

ocupando funções relacionadas à limpeza e manutenção de espaços físicos,


coloca em questão o modo como nossos corpos são subalternizados, vistos
como mão-de-obra para servir a pessoas brancas.
ão

Eu, Aline, há tempos treino algum equilíbrio entre a calma e o deses-


pero, fazendo dessa junção de versos escritos por Conceição Evaristo (2017)
uma recordação para me reerguer não somente por mim, mas também pela
s

memória da força de mulheres que me ensinaram a não abaixar a cabeça:


ver

minha avó e minha mãe, cada uma à sua maneira. Muitas vezes “[e]u não grito
nem me exalto/ Nem tenho que falar alto” (ANGELOU, 2020, p. 143). Sigo
firme. Erguer a voz, como propõe bell hooks (2019), não quer dizer que eu
vá necessariamente fazer uma barulheira, e sim ousar ter firmeza e coragem.
Se eu gritar, deparo-me com a possibilidade de me chamarem de agressiva,
barraqueira e descontrolada, reduzida à “ignorância indizível/ das cavernas
escuras/ frias” (ANGELOU, 2020, p. 278).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 127

Composições discursivas de objetificação e, portanto, recusa à escuta


rondam-nos diariamente. Não deixo de me questionar sobre os custos dessa
‘dosagem da voz’ e silenciamento pesando os ombros. Outras mulheres
negras me apontam situações semelhantes, me dizem sobre a angústia do
enquadramento de suas vozes pela hegemonia de uma branquitude estru-

or
turada sob pilares que buscam dificultar confrontos honestos, aqueles nos

od V
quais a fala e a escuta se dão em direção à construção de estratégias de

aut
mudança. Daí a necessidade de tocar nas feridas coloniais. “Ainda que nos-
sas palavras soem afiadas como o fio da voz de uma mulher perdida, estamos
falando” (LORDE, 2019, p. 197). Apesar das máscaras de silenciamento,

R
continuamos falando.

o
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
128

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visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
A EDUCAÇÃO COMO POTÊNCIA
EM TEMPOS DE NEOLIBERALISMO
E FUNDAMENTALISMOS1

or
od V
Domenico Uhng Hur

aut
Na atualidade, especialmente durante a presidência de Jair Bolsonaro,

R
não há nada mais atacado do que a Educação, mais especificamente a Educa-
ção pública. Há um discurso de desvalorização da Universidade pública, dos

o
acadêmicos formados nela e de seus estudantes. Por que será que a educação
aC
recebe tantos ataques neste momento atual de intensificação do neoliberalismo,
e também dos fundamentalismos das mais distintas espécies?
Constata-se que o atual cenário configura-se como de extremismos e ataque
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a tudo que é público, como é o caso das políticas públicas de saúde, trabalho,
visã
educação etc. Contudo, nosso intuito não é o de hipotetizar quais são os gran-
des interesses das corporações internacionais, ou de hegemonia dos grupos
fundamentalistas religiosos, no ataque à educação pública. O objetivo deste
itor

capítulo é o de refletir sobre os modelos de educação vigentes em tensão, que são


a re

resultantes dos conflitos atuais, a partir da análise de seus diagramas de forças.


Nosso método de reflexão parte do repertório teórico da esquizoanálise,
criada pelo filósofo Gilles Deleuze e o analista institucional e ativista político
Félix Guattari. Buscamos fazer uma cartografia (ROLNIK, 1989; PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2010), um mapa das configurações de forças envoltas
par

na Instituição-Educação. Realizamos uma análise da micropolítica de suas


forças nos tempos atuais.
Ed

De toda ampla obra de Deleuze e Guattari, selecionamos apenas alguns


conceitos para discutir nosso problema de investigação, como os de axiomática
do capital, diagrama, microfascimos, afetos, dimensão háptica etc. Também
ão

citamos algumas reflexões de autores que se referenciam no pensamento deleu-


ziano. Como este ensaio teórico busca articular conceitos da esquizoanálise
s

para uma análise dos modelos vigentes da educação no país, optamos por
ver

não fazer uma revisão bibliográfica sobre artigos com outros referenciais
teóricos, que abordam, por exemplo, o neoliberalismo na educação. Como
1 Este capítulo é a versão traduzida ao português do artigo “Educación como potencia en tiempos de
neoliberalismo y fundamentalismos”, que foi publicado na língua espanhola em Saberes y Prácticas: Revista
de Filosofía y Educación, v. 5, n. 1, 2020 (ISSN 2525-2089), Argentina. http://revistas.uncu.edu.ar/ojs/index.
php/saberesypracticas/article/view/3171
Também foi apresentado como conferência de abertura do curso de pós-graduação “Educação e Cidadania”,
do Instituto Federal de Goiás (IFG), de Formosa/Goiás, em 28 fev. 2020.
132

pesquisadores da obra esquizoanalítica, preferimos estudar a obra de Deleuze


e Guattari para escolher as ferrmamentas teóricas que possam contribuir para
a análise dos diagramas da educação contemporânea.
Mas antes devemos desnaturalizar o que é a educação. A educação não é
algo totalizado e com uma versão unânime, é uma Instituição social-histórica

or
(CASTORIADIS, 1982), ou uma Instituição abstrata que se atualiza de diferen-

od V
tes formas (HUR, 2015). Como toda Instituição, a educação é uma invenção,

aut
uma criação sócio-geográfico-histórica. Tal como o conhecimento, não possui
uma origem solene, senão sua invenção decorreu de interesses mesquinhos,

R
inconfessáveis (FOUCAULT, 2002). A criação da Educação enquanto institui-
ção serviu como instrumento de poder para que um grupo social pudesse agen-
ciar regimes de forças diante às elites reinantes, sejam o Império, a nobreza, e

o
principalmente, a Igreja. Queiramos ou não, a Instituição-educação tornou-se
aC
um dispositivo que entrou e participa das disputas e jogos de poder.
Evidentemente, como toda Instituição, a educação não ficou estática

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no desenrolar dos séculos e nas distintas sociedades em que se consolidou.
visã
Apresentou um dinamismo, mutações decorrentes da primazia dos distintos
diagramas de forças. Para Deleuze (2014), um diagrama é uma configuração
móvel e plástica de vetores de forças, uma máquina abstrata que assume um
tipo de funcionamento, um determinado “perfil”, e do qual resultam distintas
itor

máquinas concretas (HUR, 2018a). Cada momento, cada época, cada agen-
a re

ciamento, diz respeito a um determinado diagrama de forças.


Na atualidade, estamos passando por um momento de enclave, de crise,
no qual vemos distintos diagramas de forças atuantes e em disputa. Se reali-
zamos uma análise institucional, investigamos a dimensão micropolítica, da
par

Instituição-Educação, vemos que há uma tensão de diagramas, que faz com


que ao menos se atualizem três modalidades de configurações de forças. Carto-
Ed

grafamos três tipos distintos de Educação, que denominamos como: Educação


neoliberal, Educação fundamentalista, e nossa Utopia ativa, a Educação como
potência. A seguir discutimos essas três modalidades a partir do referencial
ão

teórico da esquizoanálise. Vale ressaltar que esses três tipos de educação não
seguem um modelo evolutivo, genético, como se fossem diferentes estágios
temporais. Referem-se a três diagramas de forças singulares que coexistem,
s

em que em alguns casos podem até mesclar-se.


ver

Na Figura 1 se visibiliza um esquema do triângulo dos diagramas educa-


cionais. Há três polos distintos que se referem a cada diagrama de forças. As
máquinas concretas (escolas, universidades, institutos) podem atualizar um
desses polos, ou situar-se na linha de intersecção, dependendo de sua relação
com o contexto de forças em jogo.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 133

Figura 1 – Triângulo dos diagramas educacionais

Educação como Educação


potência fundamentalista

or
od V
aut
R
Educação
neoliberal

o
aC
Educação neoliberal
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Esta primeira modalidade educativa é a mais propagada na contempora-


visã
neidade. É o tipo de educação que privilegia a produtividade, o mais produzir
e a dimensão quantitativa. Por exemplo, no vestibular é aquela que solicita
que os vestibulandos decorem o maior número de informação possível. Esse
itor

fato resulta que o estudo acabe sendo apreendido como uma obrigação, um
a re

“trabalho aborrecedor”, ou mesmo um “tormento” ao estudante, e não como


possibilidade de crescimento, desenvolvimento, formação e potencialização.
Consideramos que esta modalidade educativa segue o funcionamento
que Deleuze e Guattari (2010) denominam como axiomática do capital. Os
pensadores franceses analisam o funcionamento do sistema capitalista através
par

desse conceito. Compreendem que o capitalismo é uma máquina semiótica


Ed

que vai muito além das meras relações econômicas e políticas, e que se atua-
liza nas mais distintas instâncias. Deleuze e Guattari utilizam este termo
para descrever o diagrama de forças desse momento, que não se pauta numa
ão

lógica de codificação e sobrecodificação, como nos outros momentos histó-


rico-sociais, mas sim na axiomatização. Nesse sentido, o que diferencia a
sociedade capitalista das anteriores, sejam a primitiva, imperial, feudal etc.,
s

é que não há a inscrição dos fluxos sociais em códigos e significantes, não


ver

há uma fixação e modelação dos processos em formatos fixos e constantes.


Emerge um novo diagrama de forças. Nessa nova máquina abstrata os códi-
gos passam a ser secundários, pois os processos não são mais moldados, mas
sim modulados. Há a transição de modelos de operação, do molde à modula-
ção (DELEUZE, 2007). A axiomática do capital opera um duplo movimento
concomitante a) descodifica os códigos sociais instituídos e b) axiomatiza
os fluxos descodificados nessa lógica de funcionamento. Dessa forma, não
134

propaga uma representação, uma imagem, ou significante, senão um modo de


funcionamento, um tipo de ressonância, que faz as moléculas vibrarem mais,
sempre no sentido da hiperprodução. A axiomática do capital funciona como
uma equação universal, na qual os elementos são móveis e cambiantes. Não
importa quais são, nem que aparências e códigos assumem, mas sim a riqueza

or
que devém abstrata (DELEUZE, 2017), ou seja, sua hipertrofia e aumento

od V
produtivo em quaisquer instâncias, não só no trabalho, como também na vida

aut
afetiva e conjugal, no lazer, nos esportes etc. (HUR, 2018b). É por isso que a
axiomática do capital é uma máquina semiótica que não se reduz à economia

R
e se atualiza em distintas materialidades. A máxima que se assume nesse
período histórico é o mais produzir a qualquer custo. Culmina-se assim numa
sociedade do máximo rendimento e o neoliberalismo é sua maior expressão. É

o
um diagrama de forças que evidentemente atualiza-se na Instituição-educação.
aC
Nesse sentido, a Educação neoliberal focaliza a consciência e a razão
para a intensificação da produção. O corpo e os afetos passam a ser subjuga-

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dos pela capacidade cognitiva denominada como inteligência. O importante
visã
é conhecer o maior número de fórmulas, acumular informações, dados, datas,
nomes, acontecimentos históricos, por mais que possam não ser de muita valia,
ou que não tenham aplicação direta em seu cotidiano, ou para a formação
humana do estudante e do profissional. Portanto, desenvolvimento e acúmulo
itor

de informações e saberes na esfera racional não implicam fundamentalmente


a re

em satisfação afetiva, felicidade e potencialização corporal.


Aqui abrimos um parêntese. Por mais que seja uma educação pautada na
hiperprodutividade, não necessariamente é um conhecimento útil, inclusive
para a melhor adaptação do indivíduo na sociedade neoliberal. Por exemplo,
par

na escola não se tem nem os rudimentos básicos sobre Economia, como a


análise do funcionamento do mercado, ações, juros, investimentos, bem como
Ed

praticamente não se discute Política, no que se refere aos jogos e disputas de


forças no cenário social, tanto no âmbito macropolítico, como no cotidiano
institucional, seja na própria escola, na empresa, na família etc. Portanto,
ão

constata-se que a Educação neoliberal não focaliza o maior conhecimento do


indivíduo nem para sua adaptação na esfera e no mundo capitalista, mas sim
uma educação para o trabalhar; isto é, uma formação para o trabalho e não
s

para a vida. Assim, não há o império da reflexão, mas sim da formação para a
ver

produção. Tal fato pode resultar em fenômenos bastante conhecidos, como a


alienação, uma antropomorfização à máquina, à técnica, tal como se os huma-
nos cada dia mais se conectassem às máquinas, ficando subservientes a elas.
A axiomática do capital também leva à descodificação da materialidade
das Instituições educacionais tradicionais. Isto se expressa, por exemplo, na
fratura e declínio das instituições disciplinares tal como as conhecíamos. Isso
é constatado na própria escola. Mantém-se a lógica da hiperprodutividade, mas
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 135

não necessariamente calcada em espaços fechados como a sala de aula. Há uma


transição das sociedades disciplinares às sociedades de controle2 (DELEUZE,
1992). A espacialidade e a temporalidade tornam-se mais fluidas como forma
de aumentar a aprendizagem, isto é, a produtividade, do estudante. A hierarquia
e as relações de poder intra-institucionais também se tornam menos verticais,

or
tendo como finalidade, o aumento desta produção. As pedagogias participativas,

od V
o uso de tecnologias de informação e comunicação, a formação continuada,

aut
entram na moda educacional, aspectos que poderiam parecer como progressis-
tas, mas desafortunadamente assumem os imperativos da hiperprodutividade
de axiomática do capital. Então equipamentos como a Educação à Distância,

R
aulas por youtube, plataformas de conhecimento, assumem esta tônica.
Resulta-se assim numa modalidade educativa que incita a hiperprodu-

o
ção, mas de uma maneira mais mordaz e capturante que outrora. Pois com a
aC
desterritorialização generalizada das antigas instituições panópticas, o foco do
poder e da dominação se imaterializa, invisibiliza-se. A axiomática do capital
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é um tipo de funcionamento difundido em todas as esferas sociais, sendo um


mandato social desde a infância e em toda a formação do indivíduo e cole-
visã
tivo, e que opera através da incitação contínua de desestabilizações e crises.
Assim o poder e a fonte do mal-estar se eterealizam. Já não há um professor,
ou orientador educacional, mandando o que o aluno deve fazer; este mesmo
itor

já sabe que tem que concluir o maior número de cursos, seja de graduação,
a re

pós-graduação, especialização, aprimoramento, extensão etc. Deleuze (1992)


afirma que nessa conjuntura se produzem estados meta-estáveis, de uma hiper-
produtividade sem fim. Nunca se atinge a meta, porque não há metas finais,
visto que elas também são variáveis, provisórias. O profissional nunca estará
realmente bem formado. Porque sempre que finaliza uma meta, uma etapa da
par

formação, surgem outras novas para cursar-resolver.


Ed

Essa hiperprodutividade incessante, sem fim, acaba por gerar uma intensa
insegurança e mal-estar, pois a competitividade fica difundida em todos os
espaços. E ela está calcada numa persecutoriedade competitiva, na qual se o
ão

indivíduo não está estudando, preparando-se, sempre há outro que está e que
“roubará” o seu posto de trabalho. Dessa forma o afeto mais presente nessa
modalidade educativa é a ansiedade proveniente de uma paranoia generalizada.
s

Ativa-se um mecanismo de vigilância e atividade em que o indivíduo não pode


ver

descansar. Soma-se a isso que, nesse processo de desterritorialização gene-


ralizada incitada pela hiperprodução capitalista, a promessa de realização e
felicidade não veio com sua realização. Portanto, o resultado dessa modalidade
educativa é o cansaço, o esgotamento (HAN, 2012), bem como um grande
sentimento de dívida (LAZZARATO, 2014), pois nunca tanto se produziu,
2 Aqui fazemos a aproximação entre os conceitos de axiomática do capital e diagrama de controle, algo que não se
apresenta de forma explícita na obra deleuziana, mas que consideramos que seguem o mesmo funcionamento.
136

trabalhou, estudou, mas esse quantum nunca é o suficiente. Depressão, sofri-


mento, burnout, são alguns dos sintomas emblemáticos desse momento. O
fracasso é vivido do ponto de vista individual, pois não se realiza uma análise
da lógica despotencializadora da Educação neoliberal. Há assim a crise da
subjetividade capitalista, bem como de todo o sistema neoliberal. Vive-se

or
numa grande situação de crise, que é um campo fértil para o surgimento dos

od V
extremismos e fundamentalismos (HUR; SABUCEDO, 2020).

aut
Educação fundamentalista

R
Em pleno período de intensificação da lógica neoliberal, ressurgiu um modelo
educacional que parecia ter findado no início da década de 1980, ou que se manti-

o
nha apenas em instituições militares e religiosas. Um modelo que parece assumir
aC
vetores de forças contrários ao neoliberalismo, com um perfil arcaico e retró-
grado e que se expressa com o retorno dos neoarcaísmos e neoconservadorismos

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(GUATTARI, 2015), o qual denominamos como Educação fundamentalista.
A irrupção da crise e o declínio das instituições, provenientes da hiper-
visã
trofia produtiva da axiomática do capital, produziram um grande mal-estar
social. Resultou-se numa situação confusional e de desamparo na qual as
pessoas buscam qualquer modalidade de certeza para se amparar, sejam
itor

ideológicas, religiosas, irracionais, a-científicas, como o terraplanismo, etc.


a re

Busca-se um novo discurso, uma nova oferta político-social, que se relacione


à mudança, qualquer que seja.
A Educação fundamentalista emergiu com esse mesmo movimento de
fixação a certezas pressupostas. A questão crucial é que houve uma fixação, ou
par

uma ancoragem de emergência, não em fatos amparados pelo desenvolvimento


científico e tecnológico, mas sim em dogmas morais, no discurso da doxa. Num
Ed

movimento contraditório e nostálgico passou-se a idealizar um passado em que


as coisas eram supostamente melhores do que a atualidade, por exemplo com
falácias como “na época da ditadura não havia corrupção”. Então, se o cenário
ão

social é de caos e incerteza, busca-se fixar intensamente à ordem e à certeza. Se


a escola é uma instituição em declínio, onde não há mais disciplina e respeito,
deve haver uma disciplinarização à força, a qualquer custo. Se o professor
s

não é mais respeitado e escutado em sala de aula, passa-se a implementar a


ver

lógica militarista nas instituições educativas, o que vemos, por exemplo, com
o aumento estrondoso do número de Colégios militares por todo o país.
A Educação fundamentalista não está axiomatizada pela lógica neoliberal,
mas sobrecodificada pela Moral. É como se atualizasse um movimento vetorial
em sentido inverso que a hipertrofia capitalista produzia. Aparece como um
retrocesso em relação ao modelo anterior, pois reinstaura a fixação no código,
mas não no código científico, e sim no código moral, valorativo e até mesmo
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 137

religioso. Há uma fixação da imagem de pensamento (DELEUZE, 2006) como


forma de estabilizar a vertigem do real. Estratifica-se sobre os fundamentos
enraizados de qualquer crença, seja esta conservadora ou religiosa. É recha-
çado qualquer movimento, diferença e desestabilização, em nome da ordem
e da regulação. Atua-se de modo semelhante à lógica fascista, que foi “a mais

or
fantástica tentativa de reterritorialização econômica e política” (DELEUZE;

od V
GUATTARI, 2010, p. 342), desde a invenção do capitalismo.

aut
Esta modalidade educativa atua segundo um modelo de colonização das
almas e das consciências, difundindo mais modos de condutas e crenças do
que saberes científicos. E como está codificado pela lógica da Moral, tudo

R
que foge a ela é visto como a-moral, i-moral, tendo assim que ser proibido,
censurado. Nesse sentido se a Moral religiosa e do bom cidadão consignam a

o
heterossexualidade, tudo que escapa a essa norma é visto como anormal, sendo
aC
patologizado, proibido e censurado. Se vivemos numa sociedade patriarcal e
falocrática, as mulheres e os discursos feministas são depreciados. Se o sexo
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nos assusta, qualquer menção à educação sexual deve ser proibida e censurada.
Mesmo não se sabendo de maneira clara o que é o denominado “marxismo
visã
cultural”, supõe-se saber o que é, considerando-o perigoso e, por conseguinte,
deve ser combatido. Deste modo configura-se como uma modalidade educa-
tiva que funciona numa lógica binária, dicotômica e da negatividade. Tudo
itor

o que não é contemplado pelo discurso normalizante e moralizante deve ser


a re

rechaçado. Tudo que foge ao estereótipo, deve ser negado, como se a diferença
fosse identificada como o conjunto da população inimiga (DELEUZE, 2017).
Por exemplo, chegamos ao limite de alguns governos estaduais proibirem
livros de muitos autores clássicos brasileiros, como até de Machado de Assis.
par

Então, a Educação fundamentalista não busca potencializar o pensamento


e produzir novos conhecimentos, senão a reprodução e transmissão de dog-
Ed

mas que remetem mais a uma redução do pensamento, mas que prometem a
mudança, a transcendência. Ao invés da produção de pensamento, privilegia
sua mera formatação, em um intenso sedentarismo. Em vez de ser uma educa-
ão

ção para a emancipação, vemos que é mais uma Educação para a obediência.
Não persegue as luzes, caras ao Iluminismo, ao Esclarecimento, busca mais
a perseguição ao que escapa de sua sintaxe moralizante. Nesse sentido, não
s

é uma educação propositiva, mas sobretudo coercitiva, padronizando o que


ver

deve ser e o que não deve ser transmitido aos alunos. E em muitos casos é
a-científica, pois importantes atores sociais desse tipo de Educação defendem
proposições totalmente anticientíficas. Exemplo emblemático é o presidente
da CAPES, Benedito Guimarães Aguiar Neto, que defende o criacionismo,
em detrimento do evolucionismo (SALDAÑA, 2020). Vale ressaltar que o
criacionismo, devido a sua vertente teológica, não é reconhecido como ciência.
138

Mas por que esse tipo de Educação está se alastrando e conseguindo


a cada dia mais adeptos? Consideramos que isso se deve por ela referir-se
ao saber dogmático, que ora se mescla com a fé, ora com o senso comum.
Dessa forma cria estratos que remetem mais a uma força de estabilização
(ROLNIK, 1997), de continência psíquica e afetiva, do que a aquisição de

or
conhecimentos. Gera segurança e não saberes, funciona como uma moda-

od V
lidade de contenção ao mal-estar da desterritorialização e do imperativo de

aut
hiperprodução capitalista. É uma modalidade de identificação de urgência que
cria uma zona de conforto, uma bolha de proteção. Entretanto, no seu fora,
em seu exterior, está povoada de múltiplos inimigos, os “infiéis”. A educação

R
fundamentalista atualiza a governamentalidade fascista, com uma lógica de
cisão binária e polarização social do nós contra eles (DELEUZE, 2014), que

o
promove muito mais a formação de uma sociedade cindida e em conflito, do
aC
que uma formação para a convivência e diálogo entre as diferenças. Contra-
ditoriamente, mesmo amparada pelo discurso moral e religioso do cidadão

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de bem, acaba atualizando uma lógica beligerante que remete à inquisição
da “Idade das trevas” e a um desejo pela abolição do outro (DELEUZE,
visã
2014). Para discutir essa aparente contradição recordamos a famosa citação
de Deleuze e Guattari: “É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver
o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos
itor

com moléculas pessoais e coletivas” (1995, p. 93).


a re

A Educação fundamentalista sustenta uma governamentalidade que


maneja os microfascismos dispersos da população de forma molecular, pois:
“O fascismo, assim como o desejo, está espalhado por toda parte, em peças des-
cartáveis, no conjunto do campo social; ele toma forma, num lugar ou noutro,
par

em função das relações de força” (GUATTARI, 1981, p. 89). Trabalha sobre


as forças reativas e de ressentimento (DELEUZE, 1976a) da população, atuali-
Ed

zando assim uma política do nihilismo. Por isso que o desejo é pelo rechaço, a
proibição, negação e censura da diferença. Portanto, nessa modalidade educa-
tiva a gestão dos afetos é ferramenta fundamental. Então não se baseia apenas
ão

na cognição, como a Educação neoliberal. Os afetos mais presentes são o medo


e insegurança em relação ao futuro, o ódio dirigido à diferença e ao a-normal
e a satisfação de estar reunido em uma comunidade de pares.
s
ver

Educação como potência

Em tempos de neoliberalismo, que produz o corpo esgotado, e de fun-


damentalismos, que propagam o ódio à diferença e a fixação num conserva-
dorismo, nada mais utópico do que acreditar numa Educação como potência.
Esta modalidade educativa é minoritária, está presente nas reflexões e fazeres
de muitos educadores anônimos, minoritários, ou de grande importância,
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 139

como os brasileiros Paulo Freire, com sua educação para a autonomia, ou


Luis Fuganti, com sua filosofia e educação para a potência.
A Educação como potência configura-se como nossa Utopia Ativa
(DELEUZE; GUATTARI, 1995), como um não lugar, ainda não existente, e
que se persegue como projeto ético-estético-político para a vida. Por isso, nas

or
linhas a seguir não estaremos descrevendo um diagrama de forças de algum

od V
projeto educacional em específico, tampouco explicando o que é, senão como

aut
funciona. A Educação como potência nos interessa na dinâmica de seu movi-
mento e não na estática de seus ideais. Assim, é uma modalidade educativa que
deve ser constantemente construída e reconstruída, tal como microrrevoluções

R
permanentes. Para essa discussão, as referências que Deleuze (1968, 1976b,
2002) faz do filósofo Baruch Espinosa são fundamentais.

o
A Educação como potência efetua um giro, no qual seu método transpassa
aC
a razão e a consciência, bem como ultrapassa o olhar e a escuta. Tal como
Espinosa, consideramos a consciência o lugar da ilusão (DELEUZE, 2002).
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Pois o próprio pensar no atual momento histórico-geográfico também está


codificado, moldado e modulado. No senso comum acredita-se que pensa-
visã
mos apenas por figuras, por imagens: a imagem do pensamento (DELEUZE,
2006). Contudo, o pensar é o contrário, é o fluxo, o desarranjo dessas figuras
instituídas. O pensar é o movimento em operação, mais próximo dos fluxos
itor

caóticos, ao invés das imagens e figuras sintéticas. O pensar extrapola as


normas codificadas e o funcionamento da axiomática do capital.
a re

Para produzi-la não basta hipertrofiar as atividades da inteligência, ou obe-


decer cegamente à Moral. Não é uma educação alimentada pela competição,
insegurança, paranoia, medo ou ódio. Não é uma prática que se sustenta apenas
na racionalidade e na ansiedade. Deve haver assim, primeiramente, uma mudança
par

de método. Não obedecer aos discursos pressupostos transmitidos e não focali-


zar apenas na razão. Isto é, assumir o direito à desobediência e perceber que a
Ed

formação envolve inúmeras outras dimensões do que a mera reflexão técnica.


Não é à toa que as armadilhas da consciência nos enganam, seja para
hiperproduzir mais, porém para ficarmos cada vez mais pobres e esgotados,
ão

ou obedecer à Moral, mas para ficarmos ainda mais inseguros e intolerantes


com a diferença. Dessa forma, essa modalidade educativa não se restringe
a um esquema de aceleração da produção, ou à fixação a códigos morais de
s

conduta. Não é apenas um acúmulo de conteúdos cognitivos, racionais, cons-


ver

cienciais. Não toma apenas a inteligência da razão como instrumento, ou se


restringe ao plano individual. Realiza uma ampliação, contemplando também
uma educação via afetos, intensidades, corpo e coletividade. É o que podemos
denominar como uma Educação háptica, que conjuga figura e fundo, movi-
mento e plano, razão e afeto, indivíduo e coletivo. O termo háptico3 foi criado

3 Deleuze (2007) toma essa palavra de Alois Riegl, um filósofo da estética, que trabalhou sobre a arte egípcia.
140

para tratar de um agenciamento entre visão e tato (DELEUZE, 2007), no qual


a dimensão táctil não está subjugada ao olhar. “A visão ótica seria a visão
distante, relativamente distante. De modo contrário, o exercício háptico, ou a
visão háptica, é a visão próxima que capta a forma e o fundo sobre um mesmo
plano, igualmente próximo” (DELEUZE, 2007, p. 205, tradução nossa). Dessa

or
forma, contempla uma sensibilidade do olhar não apenas para as figuras, mas

od V
para seus movimentos, para como afetam nossa própria corporeidade e seus

aut
afetos resultantes. É um olhar que desnaturaliza as tradicionais formas de ver,
considerando que todo conhecimento mobiliza tanto aspectos cognitivos, como
afetivos e coletivos, ou seja, institui um ethos corpo-consciencial.

R
Para alcançar esta dimensão háptica, deve haver uma auto-suspeição em
relação aos tradicionais modos de ver, sentir e agir. O olho traduz o pensa-

o
mento como técnica, e a culpa da moral transforma o pensamento em servidão.
aC
Já os afetos extrapolam o funcionalismo e a moral para uma conectividade
com os outros e as diferenças. Assim, deve haver uma desterritorialização, um

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processo de raspagem de si e de dobra do ser como método da Educação como
potência. Nessa raspagem educacional, que pode ser provocada por distintas
visã
formas, seja pela autoanálise, esquizodrama (BAREMBLITT, 1998), ou outras
práticas psicossociais desdisciplinarizadoras, há uma própria reinvenção exis-
tencial de si e do coletivo. Porque a própria raspagem do olhar, para alcançar
itor

a sensibilidade háptica, modula e transforma nossas próprias ferramentas de


a re

trabalho, que não são apenas nossa cognição, mas principalmente os afetos,
o corpo e a coletividade. Essa alteração no processamento dos dados da vida
e do real nos fazem perceber os processos de uma forma distinta. É como o
que Deleuze (1994) fala dos japoneses. Ao invés de verem o mundo a partir
do seu olhar, para estender para sua rua e depois à vizinhança e ao mundo,
par

eles percebem antes o contorno. Primeiro apreendem o horizonte, o mundo,


Ed

o continente, para depois chegarem no bairro e no Eu. É uma percepção da


ponta, do outro, a partir de um olhar de uma minoria social. A partir do que
está à minha esquerda e não do meu umbigo. É uma percepção que coloca a
ão

coletividade como princípio, e não se fecha ao egoísmo oportunista e compe-


titivo do Eu. Então, é a abertura à diferença, a intrusão de um devir, um devir-
-outro e não ficar sempre na lógica do ser, do narcísico, tal como a Educação
s

neoliberal, e mesmo a Educação fundamentalista, fomentam. Portanto, para


ver

essa desconstrução e reelaboração à dimensão háptica deve haver também


uma raspagem dos antigos modelos educacionais nos quais fomos formados.
Deixar de priorizar a hiperprodução desmedida, ou a moral da obediência,
para uma sensibilidade para a (auto)transformação.
Nesse sentido a Educação como potência calca-se numa lógica da com-
posição entre corpos. Nas composições formadas entre indivíduo e outros,
buscam-se os bons encontros, ou seja, conexões que fomentem boas afecções
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 141

aos elementos em jogo, conhecidas como paixões alegres (DELEUZE, 2002).


Esta relação de conexão entre os corpos e fomento de afetos alegres gera
regimes de potencialização. Uma potencialização, um aumento das forças
em jogo, para as ações e realizações, para a produção de um comum ao
coletivo, ou seja, uma comun-idade. Deste modo, evita-se os regimes de

or
decomposição, as forças reativas, os maus encontros, resultantes de relações

od V
de subtração de um corpo sobre o outro, do poder sobre o outro, que geram

aut
tristeza. Busca-se escapar dessas relações de opressão, de envenenamento,
de toxicidade. E pode-se afirmar que em muitos casos a Educação neoliberal
e a Educação fundamentalista geram essa despotencialização e tristeza alu-

R
didas. Ao invés de nos fortalecer, nos enfraquecem. Em vez de nos libertar,
nos aprisiona. Portanto, educador e educandos devem buscar constituir um

o
campo de potência (ROSA; SANDOVAL, 2019) e não de rivalidade, ou de
aC
cerceamento. Esse campo de potência funciona tal como uma zona proxi-
mal de desenvolvimento, uma zona autônoma temporária (BEY, 2001), um
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espaço-tempo que pode fomentar e potencializar os processos. Construir esse


campo significa que o educador figure como um intercessor, um co-pensor,
visã
dos alunos, acompanhando seu caminhar. Ele não irá apenas pensar e falar
para os alunos, mas irá multiplicar o pensar, escutar e falar dos educandos:
multiplicita os processos, faz o trânsito das individualidades às multiplicidades
itor

(BAREMBLITT; AMORIM; HUR, 2020). Constituirá com eles agenciamen-


a re

tos coletivos de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Fomentará


sujeitos e coletivos de enunciação, e não apenas do enunciado. Ou seja, de
nada adianta que o educador seja muitíssimo inteligente, tenha um repertório
enorme de conhecimentos, mas se não entra nesse regime de composição e
par

afetação com os alunos. Isso implica que a educação não é mera transmissão de
conhecimentos, exibicionismo de um saber erudito, muitas vezes impenetrável,
Ed

mas sim conexão e composição que gera afetos, intensidades, laços, insights,
transformações, múltiplos sentidos, enunciações e produção de subjetivação.
Deve assim ser um processo marcado pela transversalidade e não pela verti-
ão

calidade, pela conexão e coexistência das diferenças, e não pela padronização


de normas: é um pensamento nômade (DELEUZE, 1985). Portanto, refere-se
a uma formação direcionada às políticas das multiplicidades, do dissenso e
s

da heterogeneidade, como instâncias produtoras da vida e da coletividade.


ver

A Educação como potência rompe com as certezas pressupostas, colo-


cando o próprio educador em questão. Tarefa difícil, pois sempre é complexo
abandonar as estruturas constituídas, escutar e abrir-se aos saberes do coletivo.
Fomenta-se um movimento, a irrupção de devires, que produz processos de
subjetivação. Então a formação do educador como potência refere-se a um
outrar-se, em diferenciar-se, não se restringindo a um acúmulo de conhe-
cimento, mas sim a um movimento de conexão e autotransformação, tanto
142

cognitiva, afetiva, corporal e coletiva. Perseguir a potencialização frente a um


cenário de hiperprodução, ou de cerceamento. Desterritorializar e reaprender
a pensar como movimento e não como doutrina.
Esta raspagem e reeducação que devemos passar neste diagrama amplia
a perspectiva da educação do indivíduo ao coletivo. Então não importa apenas

or
o repertório aprendido, mas como que ele será conectado ao mundo social.

od V
Como que ele dialogará e intervirá nas distintas políticas públicas e no Estado,

aut
como poderá contribuir com as vidas, ações coletivas e lutas das distintas
minorias sociais, sejam étnico-raciais, de sexo-gênero, de classe social, das

R
populações rurais e ribeirinhas etc. Como poderá produzir outros mundos
possíveis, diante o mundo neoliberal, ou fundamentalista, em saberes que
construam uma nova relação com o ambiente, uma nova Ecosofia, ou seja,

o
como articular os três registros ecológicos: do meio ambiente, das relações
aC
sociais e da subjetividade humana (GUATTARI, 1990). Enfim, como fomentar
lutas emancipatórias no âmbito da micropolítica, isto é, linhas de fuga, de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


resistência, de luta, contra os diagramas de poder que oprimem e entristecem
visã
os coletivos e a vida em geral.
E como, dessa interrelação com essa diversidade, poderá propor e produ-
zir novos conhecimentos e mesmo, métodos de investigação. Uma educação
como potência que seja instituinte, inventiva, e não potencialize apenas os
itor

alunos, como também os próprios educadores que a praticam, numa busca


a re

incessante à transformação e autotransformação. Um processo educativo


que possibilite forças ativas para novas experimentações de vida e territórios
existenciais singulares, que potencialize nossos corpos e fazeres, preenchen-
do-nos de afetos alegres e fomentando bons encontros. Enfim, produzir a
par

autonomia e a comunidade como Utopia Ativa, a qual não é nenhuma receita


pressuposta, bíblia, nem um dogma, senão um desafio, uma experimentação,
Ed

uma cartografia para novos possíveis. Um mapa e trajetória que só se fazem


ao caminhar e ousar sonhar. Educação como potência que se expressa como
uma Pedagogia nômade, ou melhor, como uma Pedagogia das intensidades.
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 143

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od V
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cao/2020/01/novo-presidente-da-capes-defende-criacionismo-em-contrapon-

o
to-a-teoria-da-evolucao.shtml
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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A PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL:
análises de um campo múltiplo

or
Amanda Gabriella Borges Magalhães
Marina Oliveira

od V
Fernanda Teixeira de Barros Neta

aut
A Psicologia Social é um campo múltiplo e de difícil classificação. Já

R
desde a segunda metade do século XX, muitas pesquisas vêm sendo produzi-
das como tentativas de caracterizar esse campo quanto aos temas estudados,

o
teorias com as quais dialoga e metodologias de que se utiliza.
aC
Pode-se citar como exemplo deste tipo de esforço de análise o livro “As
Raízes da Psicologia Social Moderna”, do pesquisador norte-americano Robert
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Farr (2013), publicado originalmente no ano de 1996. Nesta obra, produto da


análise de uma série de manuais de Psicologia Social e outros documentos, o
visã
autor aponta a emergência da era moderna deste campo de saber entre os anos
40 e 50 do século passado, após a Segunda Guerra Mundial. Ele relaciona esse
surgimento com migração de estudiosos europeus, especialmente os alemães,
itor

para a América, o que proporcionou o encontro entre a fenomenologia e o


a re

positivismo, filosofias opostas entre si, que deram origem a uma forte psico-
logia social cognitiva em solo estadunidense. Em suas palavras,

A migração dos psicólogos da Gestalt da Áustria e da Alemanha para


a América foi a fonte principal de inspiração para a psicologia social
par

cognitiva, uma característica extremamente peculiar da psicologia social


Ed

da era moderna. Suas raízes devem ser buscadas na fenomenologia. Essa


era uma forma de filosofia claramente distinta do positivismo que se tinha
estabelecido na América na forma de behaviorismo durante o período entre
as duas guerras mundiais (FARR, 2013, p. 26).
ão

O autor considera que a Psicologia Social Cognitiva, apontada por ele


s

como vertente representativa da Psicologia Social Psicológica, consolidou-se


ver

como perspectiva hegemônica na América do Norte e se expandiu também


para outros continentes, como a Europa e a América Latina. Em nosso país,
Aroldo Rodrigues, um dos primeiros a oferecer cursos de Psicologia Social,
é apontado como um dos representantes mais conhecidos dessa vertente, que,
entre outros aspectos, privilegia o método experimental para realização de
pesquisas e tem seu enfoque no indivíduo como objeto de análise, conside-
rando as relações sociais em segundo plano.
148

Farr (2013), porém, defende que a Psicologia Social Moderna não se res-
tringe à sua forma Psicológica, uma vez que, ainda dentro de seu recorte tempo-
ral de análise (que se estende até o ano de 1954), pode-se perceber o surgimento
e fortalecimento de outra forma1 de psicologia social, à qual ele denominou
Psicologia Social Sociológica. Ela, com mais proximidade com a sociologia

or
que com a ciência cognitiva, compreenderia as práticas dos interacionistas sim-

od V
bólicos e dos teóricos das representações sociais, e daria prioridade a outros

aut
objetos de estudo, com enfoque nas relações sociais em detrimento do indivíduo.
Suas vertentes também tiveram grande dispersão, em especial nas déca-
das seguintes, onde o solo esteve fértil para questionamentos e reformulações

R
do campo da psicologia social em meio à crise de relevância que afetou tanto
esta área quando as ciências sociais como um todo. E foi por volta anos

o
1960 que esta crise tomou forma, caracterizada pela intensificação de críticas
aC
sobre a obscuridade do objeto da psicologia social, seu status de disciplina
(sempre móvel entre a psicologia e a sociologia), às metodologias utilizadas,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


acerca de sua autonomia enquanto subdisciplina, tensões entre escolas, mas,
sobretudo, definida por um questionamento radical dos fundamentos que
visã
embasavam suas práticas (GRACIA, 2003).
Este processo, porém, não pode ser enquadrado dentro de uma única
década. Já desde 1950 o debate sobre a validade e objetividade dos dados
itor

obtidos em experimentos neste campo de saber se fazia forte, e por vezes


a re

sua suposta invalidez foi comprovada por pesquisas, demonstrando, assim,


as resistências em incorporar à psicologia social práticas destoantes das uti-
lizadas nas ciências da natureza, que trazem certa margem de certeza sobre
os fenômenos que estuda.
par

Em relação à América Latina, também vemos diferenças temporais, uma


vez que, segundo Bernardes (2001 apud CORDEIRO, 2012, p. 71),
Ed

A despeito de ter abalado os princípios da Psicologia europeia na década de


1960, essa crise de referência começou a se fortalecer no Brasil e em outros
ão

países da América Latina com uma década de atraso, principalmente durante


os Congressos da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP), como nos
realizados em Miami-EUA (1976) e em Lima-Peru (1979). De acordo com
s

o autor, os principais motivos de insatisfação foram: a dependência teórico-


ver

-metodológica, principalmente dos Estados Unidos, a descontextualização


dos temas abordados, a superficialidade e a simplificação das análises desses
temas, a individualização do social e ausência de preocupação política.

1 Este conceito é utilizado por Farr para se referir às maneiras de se fazer psicologia social. Segundo ele,
“Essas variedades são como espécies, cada uma ocupando seu próprio nicho em uma ecologia global.
Na verdade, tenho usado a palavra ‘forma’ nesse sentido. Em sua origem, a palavra é aristotélica. Mead
a tomou emprestada de Aristóteles e adaptou-a a Darwin, de maneira que ‘forma’ pode ser considerada
equivalente à ‘espécie’” (FARR, 2010, p. 30).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 149

A resistência à Psicologia Social mainstream durante a crise se deu por


diversas vias. Podemos citar o desenvolvimento da vertente Socioconstrucio-
nista nos Estados Unidos, que tem como um de seus principais representantes
Kenneth Gergen, e cuja emergência pode ser demarcada pela publicação do
texto “Psicologia Social como História”, em 1973, por esse autor (GERGEN,

or
2008). Também podemos citar a Análise Institucional, encabeçada por Geor-

od V
ges Lapassade na França, que se fortalece na América Latina com Gregório

aut
Baremblitt e Oswaldo Saidón. A Teoria das Representações Sociais também
se espalhou pelo território latino-americano com a contribuição de Ângela
Arruda, Celso Sá, entre tantos outros.

R
Na América Latina, durante as décadas de 1970 e 1980, podemos situar
o surgimento de propostas de prática mais ligadas ao compromisso com a

o
transformação social, e direcionada às questões do próprio território. Como
aC
exemplos de vertentes com essas premissas, destacamos a Psicologia da Liber-
tação (MARTIN-BARÓ, 1986), a Psicologia Social Comunitária (MONTERO,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

2010), e a Escola Sócio-Histórica da PUC-SP, sob a coordenação de Silvia


Lane (BOCK et al., 2007). Segundo a denominação de Montero (2004), pode-
visã
mos também falar de uma Psicologia Social Crítica, advinda da Psicologia
Radical estadunidense, e que não se reduz a apenas uma vertente na América
Latina, uma vez que a noção de crítica, nesse período, foi incorporada por
itor

uma série de campos de estudo.


a re

Em relação ao Brasil, um dos marcos da consolidação dessas novas pers-


pectivas se deu com a fundação da Associação Brasileira de Psicologia Social
(ABRAPSO), em 1980, um ano após a participação de muitos pesquisadores
brasileiros no Encontro da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP),
par

ocorrido no Peru, onde debateu-se sobre a necessidade e urgência na criação de


associações que representassem a nova Psicologia Social (CORDEIRO, 2012).
Ed

A ABRAPSO instituiu-se oficialmente após a votação e aprovação de seu


estatuto na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),
em 1980, e seu movimento congregador de profissionais e estudantes interes-
ão

sados em Psicologia Social teve um papel fundamental para o fortalecimento


das vertentes alternativas ao modelo Psicológico, então hegemônico. Junto
com a Associação, iniciou-se promoção dos Encontros Nacionais e Regionais,
s

veiculação dos Boletins e a criou-se o periódico “Psicologia & Sociedade”, no


ver

ano de 1986, voltado para os pesquisadores e interessados nesse campo.


Esta associação incorporou uma série de vertentes, que apesar de dis-
cordantes entre si em alguns aspectos, compartilham da “construção de uma
psicologia social crítica, voltada para os problemas nacionais, acatando dife-
rentes correntes epistemológicas, desde que filiadas ao compromisso social
de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa” (LANE; BOCK,
2003, p. 149 apud CORDEIRO, 2012, p. 72).
150

A aceitação e forte proliferação das novas perspectivas em Psicologia


Social foi muito facilitada pelo momento histórico do Brasil àquele tempo,
onde a filosofia marxista era utilizada como fonte de resistência à organização
política estabelecida, e dava-se uma forte ênfase à pesquisa-ação enquanto
método de trabalho, juntamente com o desejo de transformar as condições

or
de vida – acontecimento reconhecido pelo próprio Aroldo Rodrigues, que

od V
assumiu, à época, se encontrar no lugar errado, na hora errada, em razão de

aut
os psicólogos brasileiros não estarem

R
interessados em teoria e metodologia, mas em aplicações da psicologia
que permitissem melhorar as condições de pessoas e resolver problemas
sociais. Em outras palavras, a crise da psicologia social estava manifestan-

o
do-se com toda força no Brasil. O ceticismo em relação a experimentos em
aC
psicologia social, muitas preocupações éticas, e o quase exclusivo interesse
em psicologia social aplicada eram as posições dominantes (RODRIGUES,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


2008, p. 112 apud CORDEIRO, 2012, p. 75).
visã
Como se pode perceber, o movimento de crítica à Psicologia Social mains-
tream promoveu a consolidação de diversas vertentes ligadas a este campo,
que por vezes são identificadas por nomenclaturas que não trazem a categori-
itor

zação “Social”, mas se afirmam a partir deste campo. Em outros casos, como
a Psicologia da Libertação e a Psicologia Comunitária, são também associados
a re

ao campo da Psicologia Política, que tem outra proveniência em relação à


Psicologia Social. Isso nos leva a pensar que as nomenclaturas não são totais,
mas devem ser observadas em seus usos e contextos históricos e geográficos.
Lane e Sawaia, por exemplo, associadas à Escola Sócio-Histórica de
par

Psicologia Social de São Paulo, são por vezes apontadas por Montero (2004,
2010) como contribuintes no desenvolvimento teórico da Psicologia Social
Ed

Comunitária, assim como Martin-Baró, principal nome relacionado à Psico-


logia da Libertação. O que permeia tais perspectivas e que as colocam sob o
escopo do que seria a Psicologia Social Latino-Americana parece ser a postura
ão

crítica e a implicação com os problemas do território (HUR; LACERDA JR.,


2016; SANDOVAL, 2010). Utilizar a qualificação pela demarcação geográ-
s

fica2, neste caso, é uma saída possível para agrupar perspectivas tão diferen-
ver

tes, mas que servem a um contexto semelhante e compartilha uma série de


pressupostos e finalidades.
2 Sobre a dificuldade de denominação do paradigma latino-americano em psicologia social compartilhamos
com Montero (2010) da apropriação da “denominação científico geográfica” como uma possibilidade
interessante. No referido texto, a autora comenta a respeito da Psicologia Social Comunitária, e de que o
paradigma denominado por ela como “construção e transformação crítica (MONTERO, 1996), ao qual as
perspectivas latino-americanas pertenceriam, e que comportaria tanto elementos da tradição crítica quanto
do socioconstrucionismo, já não lhe satisfaz mais.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 151

A multiplicidade de vertentes hoje evidentes no campo da Psicologia


Social no Brasil se apresenta, por exemplo, nos conteúdos cobrados nos con-
cursos para a obtenção de título de especialista neste campo, promovidos
anualmente pelo Conselho Federal de Psicologia, desde a criação desta espe-
cialidade, em 2003.

or
Cordeiro (2012), ao analisar os conteúdos exigidos nas provas para a

od V
obtenção deste título, aponta a presença de diversas áreas de conhecimento,

aut
como a Psicologia Social Comunitária, Análise Institucional, Sociopsicanálise,
Teoria das Representações Sociais, além de conteúdos caracterizados como a
psicologia social brasileira, associada à perspectiva Sócio-Histórica e ao socio-

R
construcionismo, e que se volta para o estudo de temas diversos, como grupos,
movimentos sociais, capitalismo, políticas econômicas, políticas públicas,

o
gênero, preconceito, socialização, entre tantos outros. Também é importante
aC
ressaltar a presença das interfaces produzidas com a Clínica, com a Psicologia
do Trabalho, da Saúde, Ambiental e Organizacional em meio a este conteúdo,
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o que demonstra a presença da psicologia social em espaços variados.


Diante deste campo múltiplo, que historicamente se produz a partir do
visã
diálogo com diversas teorias distintas, e por vezes opostas entre si, nosso
intento com este artigo é investigar o campo da Psicologia Social no Brasil
quanto à forma com ele é caracterizado. Interessa-nos saber as vertentes cita-
itor

das como constituintes da Psicologia Social no Brasil, as universidades às


a re

quais se vinculam, e os livros apontados como referências destas vertentes.


Considerando que as narrativas não são neutras, nem correspondem a uma
“verdade” definitiva sobre este campo, também se mostra fundamental para
nós observar quais narrativas hegemônicas se estabelecem e quais vertentes
par

são privilegiadas nessa empreitada.


Para alcançar nossos objetivos, optamos por analisar artigos que pro-
Ed

duzam um panorama da Psicologia Social no Brasil. Em razão disso, consi-


deramos também importante observar quais métodos vêm sendo utilizados
para analisar esse campo. A partir deste estudo pretendemos contribuir com a
ão

caracterização da Psicologia Social no Brasil e oferecer algumas pistas para


pesquisas futuras que a tomem como objeto de análise.
s

Metodologia
ver

Para auxiliar na condução desta revisão bibliográfica e na apresentação


dos resultados, fizemos uso de algumas recomendações do método Prisma,
que tem por finalidade o estabelecimento de critérios objetivos e transpa-
rentes para as etapas da revisão sistemática, sendo considerado como um
modelo de verificação e confiabilidade internacionalmente reconhecido
(LIBERATI et al., 2009).
152

A busca de artigos foi primeiramente realizada no Portal de Periódicos


da CAPES3 no mês de julho de 2018. Quanto às palavras-chave, inicialmente,
fizemos tentativas com a expressão “Psicologia Social” cruzada com “Perspec-
tivas” ou “Produção”, o que nos levou a resultados muito genéricos e pouco
relacionados com nosso objeto de pesquisa. As palavras-chave que mais nos

or
contemplaram foram “Psicologia Social” e “Brasil”. Ao não selecionar o

od V
campo para busca, os resultados foram muito numerosos e sem direcionamento

aut
para o que gostaríamos. Em razão disso, optamos por restringir a busca das
palavras-chave ao título, considerando que em geral os temas das produções
estão contidos em seus títulos para maior clareza sobre o que se tratam. A fim

R
de garantir maior qualidade dos conteúdos dos artigos, delimitamos a busca
aos periódicos analisados por pares, e por conta de número de achados ser

o
acessível para posterior filtragem, não adicionamos restrição temporal.
aC
A fim de expandir um pouco mais o número de nossos achados, reali-
zamos também a busca na Plataforma SCIELO4, no mês de agosto de 2018.

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Escolhemos expandir as buscas nesta plataforma em razão de ela conter a
maior parte dos artigos pertinentes a que chegamos na busca anterior. Para
visã
o levantamento, utilizamos as mesmas palavras-chave (“Psicologia Social”
e “Brasil”), generalizada para todos os índices. Os resultados, porém, não
se mostraram úteis para nossos objetivos. Em razão disso, restringimos as
itor

palavras-chave de busca aos resumos, sem recorte temporal.


a re

Importante ressaltar que, nas duas buscas, não fizemos nenhuma deli-
mitação quanto ao idioma dos artigos, mas utilizamos palavras-chave apenas
em português, por considerar que as produções sobre a Psicologia Social no
Brasil seriam em sua grande maioria publicadas em revistas brasileiras, o que
par

não nos dificultaria encontrá-los mesmo no caso de serem escritos em outros


idiomas, uma vez que as revistas brasileiras exigem a presença de resumo em
Ed

português também nesses casos.


A avaliação inicial de pertinência da busca foi realizada observando-se os
títulos dos artigos para identificar sobre o que eles tratavam. Nos casos em que
ão

se restringiam a uma problemática específica, como pobreza, violência, entre


outras comumente abordadas pela psicologia social, descartamos de imediato.
Também eliminamos os artigos que tratavam da interface da psicologia social
s

com outras áreas do saber, como, por exemplo, a psicologia da educação, etc.
ver

Depois da seleção inicial a partir da leitura de seus títulos, lemos os


resumos dos artigos filtrados para avaliar se eles se adequavam aos nossos
critérios de inclusão/exclusão. Foram excluídos os que se restringiam a uma

3 Portal de periódicos da CAPES reúne e disponibiliza o melhor da produção científica internacional de forma
virtual e atualmente conta com o acervo de 53 mil periódicos com texto completo e 129 bases referenciais.
4 A plataforma SCIELO é um banco de dados bibliográfico de acesso aberto que agrupa periódicos brasileiros
em formato digital.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 153

vertente específica da psicologia social, e os que falavam sobre as práti-


cas neste campo, sem tomá-lo como objeto de estudo. Seguiram para uma
segunda fase de filtragem apenas os que tomavam o campo da psicologia
social como objeto de análise.
Quanto à segunda fase da filtragem, que consistiu na análise dos artigos

or
na íntegra, elaboramos uma tabela (APÊNDICE A) para auxiliar nossa lei-

od V
tura e extração das informações relevantes aos nossos objetivos; nela, além

aut
das informações gerais do artigo (título, ano, revista, autoria e pertencimento
institucional dos autores), adicionamos campos para descrever a metodologia

R
e resultados da investigação, e também para destacar as vertentes da Psicolo-
gia Social citadas, assim como os autores e livros a elas relacionados. Como
informações complementares, reservamos um espaço para a demarcação das

o
vertentes que foram privilegiadas na narrativa sobre a psicologia social, e outras
aC
observações que pudessem ser pertinentes na leitura dos artigos. Este modelo
de tabela foi produzido em consonância com os objetivos do presente estudo.
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visã
Resultados e discussão

No Portal de Periódicos da CAPES encontramos o total de 36 artigos,


sendo que destes, após análise do título e do resumo a partir dos critérios de
itor

inclusão e exclusão, apenas 12 passaram para a etapa seguinte da pesquisa:


a re

leitura na íntegra do artigo. Na busca da Plataforma SCIELO, em razão de


termos considerado as palavras-chave no resumo, nosso resultado foi bem
mais numeroso: 194 artigos. Deste total, apenas 4 se mostraram pertinentes
para compor nossa análise, sendo que dois deles já haviam sido encontrados e
par

selecionados na busca anterior5. Retirando-se os repetidos, os dois resultados


desta busca foram acrescidos aos 12 da primeira, somando um total de 14
Ed

artigos que seguiram para a leitura na íntegra.


Após esta fase, 4 artigos foram descartados devido não apresentarem um
panorama do campo da psicologia social, se restringindo apenas a comentar
ão

sobre uma vertente específica ou sobre os resultados quantitativos das inves-


tigações por eles realizadas. Um resumo deste processo pode ser observado
no fluxograma abaixo.
s
ver

5 Esse resultado indicou que a busca pelas palavras-chave apenas no título rendeu resultados mais
direcionados ao nosso propósito.
154

Gráfico 1 – Fluxograma das etapas da revisão de literatura


Portal de Periódicos da CAPES SCIELO (n = 194)
(n = 36)
Identificação

or
Publicações duplicadas (n = 17)

od V
Artigos restantes (n = 213
Triagem

aut
Artigos selecionados para Artigos excluídos a partir
leitura na íntegra do título e resumo

R
(n = 14) (n = 199)
Elegibilidade

Artigos eleitos a partir de Artigos excluídos a partir

o
leitura completa (n = 10) da leitura completa (n = 4)
aC
incluídos

Artigos selecionados para

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


análise final (n = 10)
visã
Os artigos selecionados, por fim, para compor nossa análise, foram orga-
nizados e codificados de acordo com a data de publicação. As informações
itor

gerais sobre cada um podem ser observadas no quadro a seguir:


a re

Quadro 1 – Síntese das Informações sobre os artigos e


Codificação para análise e apresentação de dados
CODIF.* TÍTULO AUTOR (ES) ANO REVISTA IES**
par

O papel de Silvia Lane na


Psicologia &
ARTIGO 1 mudança da Psicologia CARONE, I. 2007 USP
Sociedade
Ed

Social no Brasil
Sobre a psicologia no
Psicologia &
ARTIGO 2 Brasil, entre memórias SÁ, C. P. de. 2007 UERJ
Sociedade
históricas e pessoais
ão

Para uma arqueologia Psicologia &


ARTIGO 3 PRADO FILHO, K. 2011 UFSC
da psicologia social Sociedade
Academic training in
LIMA, M. E. O.; Estudos de Psicologia
s

ARTIGO 4 social psychology in Brazil 2013 UFSE e UFBA


TECHIO, E. M. (Natal)
ver

and South America


An overview on social
psychology in Brazil:
SANTOS, M. F. S. Estudos de Psicologia
ARTIGO 5 Theoretical contributions 2013 UFPE
et al. (Natal)
from the production
of journals
On the routes of Social Estudos de Psicologia
ARTIGO 6 SÁ, C. P. de 2013 UERJ
Psychology in Brazil (Natal)
continua...
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 155

continuação
CODIF.* TÍTULO AUTOR (ES) ANO REVISTA IES**
TORRES, C.V;
Research topics in social Estudos de Psicologia
ARTIGO 7 NEVES, L. 2013 UNB
psychology in Brazil (Natal)
M. G. do S.
Psicologia social como

or
ciência e prática: o que Psicologia: teoria
ARTIGO 8 GOUVEIA,V. V. 2015 UFPB
pensam pesquisadores e pesquisa

od V
brasileiros?

aut
The history behind the Revista Wesleyan
ARTIGO 9 recent prosperity of SCHEIBE, K. E. 2015 Interamericana University
psychology in Brazil de Psicologia (EUA)

R
JACÓ-VILELA,
A formação da psicologia
A. M.; DEGANI- Psicologia &
ARTIGO 10 social como campo 2016 UERJ

o
CARNEIRO,F.; Sociedade
científico no Brasil
OLIVEIRA, D. M.
*Codificação.
aC
**Instituição de Ensino Superior às quais os autores da publicação estão vinculados.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Dentre os itens de análise da tabela, os que possuem maior relevância para


visã
a discussão deste artigo são: ano de publicação e pertencimento institucional
dos autores. No que tange ao ano de publicação, observamos que o mais antigo
dos artigos considerados data de 2007, enquanto o mais recente, de 2016. Entre
itor

esses anos, podemos perceber publicações do ano de 2011, 2013 e 2015.


a re

O ano de 2013 concentrou a maior quantidade dos trabalhos, sendo todos


publicados na Revista Estudos de Psicologia (Natal), em um número especial
que teve como proposta tratar a diversidade dos modelos avaliativos da psicolo-
gia social, bem como apontar os tópicos de interesse dos pesquisadores (TOR-
RES; NEVES, 2013). Esse lançamento pode ter a ver com a comemoração,
par

em 2013, dos 10 anos da instituição da Psicologia Social como Especialidade


em Psicologia no Brasil (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2003).
Ed

Quanto ao pertencimento institucional, a análise nos aponta em direção


a certo equilíbrio de publicações oriundas de autores do eixo Sul-Sudeste e
ão

da região Nordeste do país, tendo, respectivamente, o quantitativo de 5 e 4


publicações nessa revisão. Há ainda, a publicação de 1 artigo cujo autor está
vinculado a uma universidade norte-americana. Nenhum dos estudos, porém,
s

foi proveniente do Norte e do Centro-Oeste, o que nos remete a uma assimetria


ver

inter-regional de produção de pesquisas em psicologia, também apontada em


outros trabalhos (CALEGARE; TAMBORIL, 2007).
A Regional Centro-Oeste da ABRAPSO coaduna com essa afirmação ao
indicar que “A produção científica em Psicologia Social dos estados e cidades nos
quais estão sediados os núcleos [da regional] ainda possui pouca visibilidade nas
principais publicações da área, [e] o mesmo se observa com relação ao fomento
em nível nacional” (BLOG ABRAPSO REGIONAL CENTRO-OESTE, 2013).
156

Vale ressaltar que apesar de termos utilizado descritores em português,


4 dos artigos encontrados estavam escritos na língua inglesa – sendo 3 per-
tencentes ao número especial da Revista Estudos de Psicologia (Natal) acima
citada6, e 1 à Revista Interamericana de Psicologia.
Outro ponto que nos propusemos a analisar foi a metodologia utilizada nos

or
estudos a fim de observar como vem sendo feita a categorização do campo da

od V
psicologia social. Notamos a presença de métodos tanto quantitativos quanto

aut
qualitativos. Dois dos estudos realizaram análise bibliográfica de artigos para
produzir um panorama das publicações neste campo de saber, dois se utilizaram

R
de pesquisa de campo com questionários, e os seis restantes apresentaram um
panorama histórico, seja a partir de ensaios teóricos, narrativa de memórias ou
arqueologia. O quadro a seguir descreve com mais detalhes estas metodologias:

o
aC
Quadro 2 – Metodologia dos artigos analisados
ARTIGO METODOLOGIA DETALHAMENTO

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


1 Artigo teórico Não apresenta metodologia definida.
visã
Apresentam-se memórias pessoais da trajetória do autor em seus 40 anos como
Artigo teórico - Narrativa
2 estudante e posteriormente professor de psicologia social, e também algumas
de memórias
memórias históricas dos períodos retratados.
Traça uma história arqueológica da psicologia social no Brasil discutindo suas
Artigo teórico
itor

3 tendências históricas, enfrentamentos e rupturas entre abordagens, e conside-


- Arqueologia
rando a emergência dos objetos a que elas se referem.
a re

Foram analisadas as representações sociais acerca da psicologia social, assim


Pesquisa de
como teorias, autores e orientações metateóricas mais adotadas, através de
4 campo - Análise de
questionários enviados e respondidos por e-mail. Participaram 288 professores
Representações Sociais
(149 brasileiros e o restante de outros países da América Latina).
Foram analisados 550 artigos publicados nos periódicos da área da Psicologia
5 Análise bibliográfica
par

avaliados em 2012 pela CAPES com Qualis A1, A2 e B1 no período de 2007 a 2011.
6 Artigo teórico Não apresenta metodologia definida.
Ed

Foram pesquisados na plataforma Lattes pesquisadores em Psicologia Social.


7 Análise bibliográfica Dos 113 encontrados, foram considerados 80 para a busca e análise posterior
de suas produções desde 1980, a fim de observar os temas tratados por elas.
100 líderes da psicologia social abrapsiana7 participaram por meio de formulário
ão

on-line com cinco conjuntos de perguntas referentes a concepções da psicologia


8 Pesquisa de campo
social, representantes de área, periódicos de referência, atitudes frente à disci-
plina como ciência aplicada e básica, e informações demográficas.
s

9 Artigo teórico Não apresenta metodologia definida.


ver

Apresenta as condições e processos que possibilitaram a emergência da Psi-


10 Artigo teórico cologia Social como disciplina ou campo de estudo/intervenção delimitado no
Brasil a partir de uma reflexão historiográfica.

6 Nesta revista, dá-se a possibilidade de publicação dos artigos referentes à Psicologia Social em português,
inglês e espanhol. Considera-se a possibilidade da escolha pelo inglês como um fator que aumente a
recepção das produções em outros países, para além da América Latina. Dos 4 artigos analisados referentes
a esta revista, apenas 1 foi escrito em português.
7 Relativo à Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 157

Pode-se inferir que a quantidade maior de estudos teóricos em relação


aos outros modelos tenha se dado por conta de nossos critérios de inclusão,
ao privilegiar artigos que produzissem um panorama do campo da Psicologia
Social no Brasil. Dentre os quatro artigos desconsiderados após leitura na
íntegra, dois eram teóricos, e dois executavam amplas análises bibliográficas

or
sobre a produção neste campo no Brasil, mas não discutiam um panorama do

od V
mesmo. Quanto às vertentes da psicologia social citadas nos artigos, obser-

aut
vamos que o enfoque dessa discussão se dá nos anos 70 e 80 do século pas-
sado, considerado como significativo pelos movimentos relacionados à crise

R
de relevância que atingiu este campo e pela criação da ABRAPSO. Nota-se
a presença privilegiada, nesta narrativa, da Escola Sócio-Histórica de São
Paulo, ligada à Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e coordenada por

o
Sílvia Lane8, que em geral é retratada como movimento de contraposição ao
aC
modelo de Psicologia Social Psicológica executado por Aroldo Rodrigues.
Essa contraposição entre a Psicologia Social Psicológica, também deno-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

minada Psicologia Social Positivista Norte-Americana, mainstream ou domi-


visã
nante, muito relacionada ao Cognitivismo/Experimentalismo, e a Psicologia
Sócio-Histórica ou Sócio-Histórica Cultural brasileira, ligada ao pensamento
marxista, com influências de Vigotsky, Leontiév e da Teoria Crítica da Escola
de Frankfurt, compôs o núcleo de argumentação de quatro dos dez artigos
itor

que analisamos, na sua produção de panorama da Psicologia Social no Brasil


a re

(CARONE, 2007; SÁ, 2007; SANTOS et al., 2013; SCHEIBE, 2015).


Dois outros estudos citaram apenas a Psicologia Sócio-Histórica nominal-
mente: um, por realizar a pesquisa com líderes da ABRAPSO, historicamente
vinculada a esta vertente e, portanto, mais ligados a ela9 (GOUVEIA, 2015);
par

e outro, por focar nas questões que embasam os fazeres em psicologia social
para além dos nomes das abordagens, e que citou nominalmente apenas esta
Ed

por conta da institucionalização de tal vertente como um marco na fundação


do que seria uma Psicologia Social Brasileira (PRADO FILHO, 2011).
Foram citados como autores ligados à Psicologia Sócio-Histórica – além
ão

de Sílvia Lane –, Antônio da Costa Ciampa, Iray Carone, Bader Sawaia,


Odair Sass, Celso de Sá, Wanderley Codo, entre outros (CARONE, 2007).
“Psicologia Social: o homem em movimento”, escrito por Sílvia Lane e Wan-
s

derley Codo, e lançado em 1986, é apontado como livro-referência mais


ver

característico, em razão de demarcar uma nova forma de fazer psicologia


social emergente no Brasil nos anos 1980. A nível internacional, o texto “A

8 Esta perspectiva foi contemplada em todos os estudos aqui analisados.


9 Nesta pesquisa, Gouveia (2015) avalia um desconhecimento por parte dos representantes da área de
psicologia social de revistas internacionais que publiquem sobre o tema e questiona a formação acadêmica
dos professores em psicologia social uma vez que parecem não ter contato com as múltiplas epistemologias
de pesquisa neste campo.
158

personalidade autoritária”, de Theodor Adorno [1950], e “Psicologia Social


como História” de Kenneth Gergen (2008), publicado em 1973, são também
vislumbrados como participantes desse processo de questionamento à psico-
logia social mainstream (GOUVEIA, 2015; CARONE, 2007).
Alguns manuais de Psicologia Social são destacados como importantes

or
marcos deste campo de saber no Brasil, como é o caso do produzido por Arthur

od V
Ramos em 1936, e Aroldo Rodrigues em 1972. Além deles, vários outros,

aut
advindos dos Estados Unidos, eram utilizados como bibliografia nos cursos de
Psicologia Social – já estabelecidos como constituintes do currículo de forma-

R
ção em Psicologia desde a regulamentação da profissão (1962) e do currículo
mínimo do curso (1963) (JACÓ; DEGANI-CARNEIRO; OLIVEIRA, 2016).
Em relação à localização geográfica, Gouveia (2015) apresenta como

o
personagens principais da psicologia social no Rio de Janeiro, por volta de
aC
1940 a 1960, Aroldo Rodrigues e Eliezer Schneider. Sá (2007), no seu relato
de memórias históricas e pessoais, conta em primeira pessoa as experiências

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de ser um graduando em psicologia no Rio de Janeiro neste período, inclu-
sive tendo Schneider como seu professor. O autor comenta que, em razão da
visã
sua formação nos Estados Unidos, Schneider trazia consistência nos estudos
sobre os processos psicológicos básicos, mas fazia diálogos com textos de
outras áreas, que abordavam temáticas mais sociais, como “Totem e Tabu”,
itor

trabalhos sobre cultura e personalidade feitos por Mead, Benedict, Kardi-


a re

ner, entre outros, incorporando teorias da sociedade, como a psicanálise e o


interacionismo simbólico, às pesquisas sobre o comportamento (SÁ, 2007).
A partir de sua trajetória enquanto pesquisador, Sá (2007) narra o fortale-
cimento do Behaviorismo Social como forma de incorporar as problemáticas
par

sociais à psicologia, e conta que Carolina Bori, behaviorista, e Silvia Lane,


participaram de sua banca de doutorado, cuja tese foi produzida desde esta
Ed

perspectiva. Narra também sua mudança de enfoque para as Representações


Sociais, e como, ao invés de contraditórias, essas perspectivas pareciam, para
ele, consoantes e capazes de contribuir com questões sociais importantes.
ão

Neste contexto, destaca-se a entrada do pensamento de Moscovici e Jodelet


no Brasil, no fim dos anos 1970.
Jacó, Degani-Carneiro e Oliveira (2016), em relação a este contexto,
s

reiteram a forte presença da Teoria das Representações Sociais (Moscovici)


ver

no Brasil, e destacam também outras teorias, como: Identidade Social (Tajfel),


Minorias Ativas (Moscovici e Faucheux) e Construcionismo Social (Gergen)
na reconstrução de formas de fazer Psicologia Social. As autoras também
ressaltam a importância Teologia da Libertação, Educação Popular e do Mar-
xismo dentre os anos 1960 e 1980 na América Latina.
Acerca desse panorama, Prado Filho (2011) oferece um breve apanhado
desses movimentos a partir de seu estudo histórico-arqueológico sobre Psicologia
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 159

Social no Brasil. Ao invés de focar em nomenclaturas fechadas, volta-se para


as problemáticas trabalhadas por este campo de saber e algumas perspectivas
assumidas ao longo do século XX, iniciando por volta de 1940. Ele cita: Fun-
cionalismo (1940-1960); Análise Institucional (1960-1970); Problemática da
identidade e representações sociais (1970-1980); Representações sociais como

or
possibilidade de unificação paradigmática do campo (1980); Desencantamento

od V
com a identidade (1980-1990); Politização durante os anos 80 – quando entra

aut
em cena a Psicologia Comunitária e o Paradigma “Histórico-Crítico”, de matriz
“Materialista-Histórica”; e o pensamento da Diferença, Subjetividade e Proces-
sos de Subjetivação – advindos da Desconstrução Nietzscheana, e tendo como

R
principais referências Foucault, Deleuze e Derrida (a partir de 1990).
Três outros trabalhos também trazem outras perspectivas para além das

o
classicamente citadas como marcantes nas décadas de 1970 e 1980, apontando
aC
outras nomenclaturas que vêm se mostrando no campo da Psicologia Social,
como Psicologia Sócio-construcionista, Psicologia Pós-Moderna, Psicologia
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Institucional, etc. (LIMA; TECHIO, 2013; SÁ, 2013; JACÓ; DEGANI-CAR-


NEIRO; OLIVEIRA, 2016).
visã
Lima e Techio (2013), ao analisar as representações sociais de professores
brasileiros e de outros países da América Latina sobre o campo da Psicologia
Social, categorizaram-nas em quatro temas: a Psicologia Social Psicológica,
itor

cujo foco estaria na interação entre indivíduos; a Psicologia Social Socioló-


a re

gica, voltada para o estudo do contexto sócio-histórico; a Psicologia Social


da Subjetividade, cujo objeto seria a subjetividade; e a Psicologia Social dos
Processos de Subjetivação, que problematizaria a produção desse objeto. Tal
resultado indica a coexistência de diversas formas de pensar e fazer a Psico-
par

logia Social na América Latina.


Concordamos com Lima e Techio (2013) quando afirmam que os modelos
Ed

que dicotomizam a Psicologia Social entre Psicológica e Sociológica são insufi-


cientes. Gouveia (2015), por exemplo, faz a divisão da psicologia em: Psicoló-
gica, Sociológica e Histórico-crítica, coadunando com a indicação de Montero
ão

(1996), entre outros estudiosos deste campo na América Latina, que apontam
como característica comum às correntes de pensamento aqui estabelecidas a
postura Crítica; que até pode vir como qualificação de um campo da Psicologia
s

que a tome como elemento fundante, no caso, de uma Psicologia Social Crítica
ver

(LIMA; TECHIO, 2013). Santos et al. (2013) apontam, porém, que demonstra-
mos pouca clareza em relação à matriz teórica que utilizamos. Numa pesquisa
envolvendo 550 artigos, analisou-se que 45% dos artigos abordavam um tema
social sem recorrer ao arcabouço teórico-conceitual da Psicologia Social, e
apenas 4% dos artigos debruçavam-se sobre uma discussão metodológica.
Em razão disso, os autores afirmam que “a Psicologia Social termina
se caracterizando como um campo de descrição dos problemas sociais, dos
160

fenômenos de relevância ou emergência na sociedade, sem um avanço mais


consistente do ponto de vista teórico ou metodológico” (SANTOS et al.,
2013). Uma das limitações deste estudo, porém, foi a utilização das catego-
rizações clássicas dos manuais para definir o que pertenceria ao campo da
Psicologia ou não, o que impossibilita notar as novas tendências do campo

or
como também fazendo parte dele.

od V
Acerca do campo da Psicologia Social, Scheibe (2015) relata que ele

aut
tem prosperado bastante nos últimos anos, o que não se restringe somente ao
Brasil, mas acompanha o cenário nos EUA e na Europa. Para além disso, vem

R
expandindo suas fronteiras de diálogo, que entre outros tantos temas, versa
sobre preconceito, raça, classe, estigma social, ordem social e política, etc.
Em relação à atualidade brasileira, Torres e Neves (2013), que analisaram

o
os principais tópicos em Psicologia Social estudados no Brasil tendo como
aC
disparador a busca de pesquisadores nesta área10 a partir da Plataforma Lattes,
apontam que, apesar de não ter sido a vertente mais privilegiada nos artigos, a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


abordagem “Psicológica” mantém certa centralidade no que tange à pesquisa
visã
em psicologia social. Isso demonstra que, apesar das tensões iniciadas nos
anos 70 e 80 do século passado, não houve uma sobreposição de uma ver-
tente sobre a outra. O que existe é um estado constante de disputa de saberes
entre formas diferentes de fazer psicologia, tanto no espaço acadêmico, de
itor

publicações, quanto no cotidiano da profissão.


a re

Conclusões e considerações finais

Neste trabalho, analisamos artigos que apresentam panoramas sobre o


par

campo da Psicologia Social no Brasil a fim de apontar quais vertentes esses


diagnósticos relacionam a ele, os autores, universidades e livros relacionados
Ed

com tais vertentes, e quais delas são privilegiadas nas narrativas. Quanto às
características dos artigos, nos interessou observar como vêm sendo realizados
estes estudos, ou seja, quais métodos têm sido escolhidos para caracterizar
ão

o campo da Psicologia Social no Brasil, além de também levar em conta sua


distribuição geográfica, os anos e as revistas em que foram publicados.
A partir de nossa análise, percebemos a forte inter-relação estabelecida
s

entre a Psicologia Social no Brasil e a Escola Sócio-Histórica de São Paulo,


ver

privilegiada em todos os panoramas aqui considerados. Esta Escola também


foi apontada como oposta à forma de fazer psicologia social assumida por
Aroldo Rodrigues, denominada “Psicológica”.
10 O estudo considerou 80 pesquisadores em psicologia social, com a seguinte distribuição regional: Norte:
1 pesquisador; Nordeste: 12 pesquisadores; Centro-Oeste: 5 pesquisadores; Sudeste, 44 pesquisadores;
e Sul, 18. Evidenciou-se que as regiões Sul e Sudeste são as que mais concentram tanto pesquisas
quanto pesquisadores.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 161

Alguns artigos apresentam outras vertentes que quebram esta polarização


entre as duas acima citadas, trazendo outras influências que, em especial a partir
da década de 1990, vêm constituindo outras formas de fazer psicologia social, e
que se ligam à investigação da subjetividade e dos processos de singularização a
partir da historicização dessas formas, ao invés de focar no conceito de identidade e

or
representações sociais. Como embasamento desta forma de pensar, seriam utiliza-

od V
dos autores como Foucault, Deleuze, Guattari e Derrida (PRADO FILHO, 2011).

aut
Algumas pesquisas que se utilizam de análise de artigos para tratar do
campo da Psicologia Social no Brasil coadunam com esta afirmação de Prado
Filho (2011), observando a grande quantidade de publicações que têm hoje

R
seguindo outros caminhos para além da polaridade apontada como principal
característica deste campo nos anos 1970 e 1980. Também podemos perceber

o
essa pluralidade de pensamentos que coexistem na psicologia social brasileira
aC
a partir de nossa participação na ABRAPSO, que congrega várias formas de
produção de saber em seus Encontros e no periódico que veicula.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ressaltamos a potencialidade dessas pesquisas bibliográficas, documentais


e dos relatos de memórias na quebra com aparente homogeneidade que parece
visã
marcar os campos de saber, que, ao contrário, são sempre permeados por tensões
e disputas, e que não seguem a ordem linear do tempo com a substituição de
uma escola ou perspectiva pela outra. Isso nos leva a questionar o aparente tom
itor

de substituição da Psicologia Social Psicológica pela Psicologia Sócio-Histó-


a re

rica apresentado em alguns dos textos. Interpretamos este dado como a relação
intrínseca entre o nascimento da Psicologia Social no Brasil com o surgimento
da segunda vertente, ressaltando, porém, que esta não anulou a primeira, mas
iniciou um processo de criação do que seria uma psicologia social Brasileira,
par

diferentemente da Psicologia Social de Aroldo Rodrigues, fortemente ligada ao


modelo estadunidense. Outra diferença observada por nós que se daria no campo
Ed

da Psicologia Social no Brasil a partir da Perspectiva Sócio-Histórica seria a


expansão das premissas deste campo para outras subdivisões da Psicologia, a
partir da afirmação de que “Toda Psicologia é Social”.
ão

Observamos a ausência de produções da Região Norte e Centro-Oeste


tanto nos panoramas analisados quanto na própria produção dos estudos. Esse
dado pode ser explicado pelas fortes diferenças regionais no desenvolvimento
s

da pesquisa no Brasil, em especial no que tange às regiões Norte (CALEGARE;


ver

TAMBORIL, 2017) e Centro-Oeste. Por fim, reiteramos a necessidade de que


mais pesquisas sobre este tema sejam realizadas com objetivo de acompanhar
o desenvolvimento do que se produz enquanto Psicologia Social no Brasil e
a respeito de sua história, uma vez que tais acontecimentos são dinâmicos e
impactam diretamente sobre nossos fazeres. Deixamos em aberto o convite a
outras cartografias desse campo, com a expectativa de que este levantamento
inicial possa oferecer algumas pistas para delinear outros diagnósticos possíveis.
162

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par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 165

APÊNDICE A
Quadro de análise de artigos para a 2ª etapa da revisão

or
QUADRO DE ANÁLISE DOS ARTIGOS SELECIONADOS PARA A 2ª ETAPA DA REVISÃO

Informações do artigo (título, ano, revista e

od V
autores)

aut
R
Instituição às quais os autores estão vinculados

o
Áreas da psicologia social citadas
aC
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visã
Metodologia utilizada
itor
a re

Autores relacionados a essas áreas

Universidades vinculadas às vertentes


par
Ed

Livros referência
ão

Vertentes privilegiadas
s
ver

Contribuições do artigo para a análise do campo


da psicologia social
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
O TEATRO DO OPRIMIDO
DE AUGUSTO BOAL:
formação e transformação social

or
od V
Flávia de Bastos Ascenço Soares

aut
Anna Karollina Silva Alencar
Alexandre Silva Nunes
Aline Maira Herculano Oliveira da Silva

R
o
Creio que o teatro deve trazer felicidade, deve ajudar-nos a
conhecermos melhor a nós mesmos e ao nosso tempo. O nosso
aC
desejo é o de conhecer melhor o mundo que habitamos, para
que possamos transformá-lo da melhor maneira. O teatro
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

é uma forma de conhecimento e deve ser também um meio


de transformar a sociedade. Pode nos ajudar a construir
visã
o futuro, em vez de mansamente esperarmos por ele.
Augusto Boal
itor

A trajetória artística de Augusto Boal foi sempre marcada pela conexão


entre arte e vida, com viés notadamente político. Mas foi especificamente após
a re

sua experiência de exílio, durante o período do regime de ditadura civil-militar


brasileiro, da década de 60, que ele se aplicou ao estudo de uma metodologia
cênica focada na libertação dos sujeitos e grupos vítimas de opressão. Para
operacionalizar essa transformação, ele investiga possibilidades de promover
par

o cidadão comum de sua condição de mero consumidor de bens culturais para


a condição de sujeito ativo, gerador de arte e conhecimento. Foi com esse pro-
Ed

pósito que ele criou o conhecido Teatro do Oprimido, o qual se propõe trabalhar
com a representação cênica de experiências humanas reais, estimulando a troca
de saberes entre atores e espectadores, por meio da ação direta na atividade
ão

teatral. Seu princípio operacional básico reside na proposição de extinguir o


espectador tradicional, normalmente apenas fruidor estático da experiência
cênica, e instituir em seu lugar o que vem a denominar de “espectAtor”, ou
s

seja, um espectador que passa participar diretamente da experiência teatral,


ver

atuando na representação das vivências de opressão que traz para a discussão.


Isso significa que, para Boal, todo ser humano é um artista em poten-
cial, e não apenas alguns dotados de determinado talento nato. Com isso,
Boal promove uma espécie de horizontalização da experiência poética, com
a proposição de uma metodologia teatral na qual são quebradas as fronteiras
tradicionais entre o público e os artistas. É o reavivar do homem criador e
protagonista de sua condição inerente, através da arte da cena. Um fazer teatral
168

que se fundamenta na ideia de que “o ato de transformar é transformador”


(BOAL, 2009, p. 190). Neste aspecto, o Teatro do Oprimido é um método
que, através da interação e diálogo, devolve aos oprimidos o seu direito à
palavra, e, o mais importante, restabelece seu direito de ser e atuar no mundo
em que vive. Como consequência de seu inerente valor político, o Teatro do

or
Oprimido serviu e serve, até os dias atuais, como fonte de inspiração para

od V
inúmeros grupos ligados a movimentos sociais, assim como inspira educadores

aut
empenhados em ampliar suas formas de exercício da experiência de ensino-
-aprendizagem. A prática teatral, no contexto do Teatro do Oprimido, conecta
a poética cênica, de modo indissolúvel, a dois novos elementos: educação

R
para a cidadania e libertação das tiranias, incentivando seus participantes a
se tornarem protagonistas de sua própria história.

o
Neste breve texto, buscaremos apresentar uma pequena síntese do enorme
aC
legado do criador, diretor, autor e dramaturgo Augusto Boal, tomando o Teatro
do Oprimido como referência, para discutir os proveitos de sua metodologia

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ao campo da formação. Esta breve síntese fará uso de uma espécie de car-
tografia da bibliografia do autor publicada em português, para poder assim
visã
discutir esse fenômeno.
Trata-se de operar com um dispositivo teatro-problematizador que faz
pensar e viver a experimentação como uma educação libertária e emancipa-
itor

dora. Neste aspecto, o teatro é uma agência de produção da liberdade como


estética da existência na imanência da prática educativa no bojo da vivência
a re

política e ética da criação. Esta prática social possibilita a ruptura com precon-
ceitos, discriminações negativas, estereótipos e lógicas utilitaristas de captura
docilizadora do capitalismo mundial integrado. O trabalho libertário com o
Teatro do Oprimido é uma potência em ato do fazer-se e tornar-se protagonista
par

de novas histórias na medida em que abre outras narrativas e espaços-outros.


Ed

A proposta metodológica do Teatro do Oprimido

As técnicas que estruturam o Teatro do Oprimido são resultado de traba-


ão

lhos e descobertas coletivas, como consequência de experimentações. Cada


técnica desenvolvida por Boal é resultado frente as necessidades que surgiam
s

ao longo da sua carreira. Na década de 1970 a primeira atividade criada no


ver

Teatro do Oprimido foi o Teatro Jornal. Foi a prática utilizada para driblar
a ditadura, como resposta à censura imposta pelos militares no Brasil. Um
teatro que retratava as adversidades populares e denunciava a brutalidade e
as atrocidades que não eram publicadas nos informes jornalísticos. Era uma
releitura das notícias publicadas nos jornais, apresentando a opinião e a visão
dos participantes sobre aquele assunto. Representa-se o que ficou perdido
nas notícias, confessando silêncios através de cenas criadas. Neste aspecto, o
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 169

Teatro Jornal serve para desmistificar a pretensa imparcialidade dos meios


de comunicação. Se jornais, revistas, rádios e TVs vivem economicamente
dos seus anunciantes, não permitiram jamais que informações ou notícias
verdadeiras revelem a origem e a veracidade daquilo que se publicam, ou a
quais interesses servem – a mídia será sempre usada para agradar aqueles

or
que a sustentam: será sempre a voz do seu dono! (BOAL, 2013, p. 17).

od V
Após ser perseguido preso e exilado, Augusto Boal refugiou-se em países

aut
latino-americanos como Chile, Peru e Argentina, onde criou o Teatro Invi-
sível. Sua ânsia de fazer teatro era enorme, mas diante dos perigos vividos

R
pelas ditaduras locais foi necessário criar uma forma de atuação invisível.
É realizado de modo que a cena aconteça, no entanto sem que seja revelada

o
como parte de uma peça.
aC
O espetáculo invisível pode ser apresentado em qualquer lugar onde sua
trama poderia realmente ocorrer ou teria já ocorrido (na rua ou na praça,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

no supermercado ou na feira, na fila do ônibus ou do cinema...) Atores e


visã
espectadores se encontram no mesmo nível de diálogo e de poder, não existe
antagonismo entre a sala e a cena, existe superposição (BOAL, ibid., p. 18).

Buscando aprimorar os resultados do seu trabalho e visando abrir a pos-


itor

sibilidade de interferência popular direta em seus espetáculos, Boal criou o


a re

teatro Fórum, ainda quando exilado na América Latina. O Teatro Fórum per-
mite que a plateia interfira na cena realizada e altere as ações do personagem
principal, com o objetivo de romper com a opressão representada. Ou seja, o
limite criado entre o palco e a plateia é derrubado e o diálogo é estabelecido em
par

seu lugar. Cria-se uma representação inspirada na realidade dos participantes,


em que os personagens oprimidos e opressores travam um conflito, de forma
Ed

aberta e delineada, e cada um defende seus interesses e desejos.

O Teatro Fórum – talvez a forma de Teatro do Oprimido mais democrática


ão

e, certamente, a mais conhecida e praticada em todo o mundo, usa ou pode


usar todos os recursos de todas as formas teatrais conhecidas, a estas acres-
centando uma característica essencial: os espectadores – aos quais chamamos
s

spect-atores – são convidados a entrar em cena e, atuando teatralmente, e


ver

não apenas usando a palavra, revelar seus pensamentos, desejos e estratégias


que podem sugerir, ao grupo ao qual pertencem, um leque de alternativas
possíveis por eles próprios inventadas: o teatro deve ser um ensaio para a
ação na vida real, e não um fim em si mesmo (BOAL, ibid., p. 18).

Entretanto, em sua estada em países europeus, Boal percebeu opres-


sões diferentes daquelas com as quais estava habituado a lidar nos países
170

latino-americanos. Os policiais não eram reais, como os da ditadura, palpáveis,


mas eram vivos dentro do corpo de cada sujeito. Diante dessas novas percep-
ções, Augusto Boal elaborou juntamente com sua esposa Cecília Thumin as
técnicas do Método de Teatro e Terapia do Arco Íris do Desejo, que investiga
as opressões internalizadas, para, a partir do teatro, descobrir caminhos pos-

or
síveis para a desconstrução destas opressões.

od V
aut
As técnicas introspectivas do Arco Íris do Desejo que, usando palavras e,
sobretudo, imagens, permitem a teatralização de opressões introjetadas.
Nessas técnicas – que se voltam para dentro de cada um de nós, mas sem-

R
pre buscando ressonâncias no grupo [...] o objetivo é mostrar que essas
opressões internalizadas tiveram sua origem e guardam íntima relação

o
com a vida social (BOAL, ibid., p. 18).
aC
Boal volta ao Brasil em 1986 a convite de Darcy Ribeiro, na época

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Secretário de Educação do Rio de Janeiro, para dirigir a Fábrica de Teatro
Popular. O alvo era tornar a linguagem teatral acessível para todas as pes-
visã
soas, estimulando o diálogo e a transformação da realidade social. No ano de
1992 ele candidata-se a vereador e é eleito na cidade do Rio de Janeiro pelo
Partido dos Trabalhadores (PT), para praticar Teatro Fórum em instâncias da
itor

administração pública. A partir das sugestões dadas pelos espectadores cida-


a re

dãos, ele criou projetos de lei, muitos deles convertidos posteriormente em


leis efetivas. Nascia o Teatro Legislativo. Utilizando o Teatro como forma de
ação política direta, Boal encaminhou à Câmara dos Vereadores 33 projetos
de lei, dos quais 14 tornaram-se leis municipais. Ao colocar o espectador
na posição de ator, o Teatro do Oprimido de Augusto Boal transformou o
par

ator em legislador, criando leis para diminuir os problemas vivenciados nas


comunidades e bairros do Rio de Janeiro.
Ed

O Teatro Legislativo é um conjunto de procedimentos que misturam o


Teatro Fórum e os rituais convencionais de uma Câmara ou Assembleia,
ão

com o objetivo de se chegar à formulação de projetos de lei coerentes e


viáveis. A partir daí, temos que seguir o caminho normal da sua apresen-
tação às casas da lei e pressionar os legisladores para que os aprovem
s

(BOAL, ibid., p. 19).


ver

Nos seus últimos anos, Augusto Boal percebeu que o teatro, separada-
mente, não supria a necessidade que a população oprimida tinha de se expres-
sar. Foi necessário criar um método de intervenção artística que viabilizasse o
acesso das pessoas ao desenvolvimento artístico de forma independente e livre.
Assim, o teatrólogo chegou à Estética do Oprimido, uma formação estética
que acumula experiências com Som, Palavra, Imagem e Ética. Esta tem por
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 171

princípio a ideia de que somos melhores do que pensamos ser, e infinitamente


capazes de realizar aquilo que verdadeiramente realizamos: todo ser humano
é expansivo. Para o autor a

Estética do Oprimido, busca devolver, aos que a praticam, a sua capaci-

or
dade de perceber o mundo através de todas as artes e não apenas do teatro,

od V
centralizando esse processo na palavra (todos devem escrever poemas e

aut
narrativas); no som (invenção de novos instrumentos e de novos sons); na
imagem (pintura, escultura e fotografia) (BOAL, 2013, p. 15).

R
O Teatro do Oprimido é uma realidade mundial e a principal criação de
Augusto Boal, uma metodologia que possibilita a seus participantes uma trans-

o
formação de realidade através do exercício teatral. Neste aspecto, tem como
aC
fundamento a ideia de que o espectador possui a liberdade e a capacidade de
ultrapassar os espaços estabelecidos no teatro convencional, adentrando a cena
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

para transformá-la. Contudo, visa promover a reflexão sobre as relações de


poder, conhecendo as histórias e ligações entre oprimidos e opressores, em que
visã
o espectador é um ativo participante da peça. Os textos representados são desen-
volvidos coletivamente partindo dos relatos e histórias de vida, fundamentado
nas bagagens e adversidades da comunidade. Os principais objetivos são: a
itor

popularização do teatro e a democratização do método de representação política


a re

e artística. Na realidade, isso constitui uma fusão de técnicas teatrais, exercí-


cios e jogos que promovem uma ação de influência mútua entre o espectador
e o público, produzindo questionamentos, clareza sobre os problemas sociais,
visando a busca por caminhos alternativos e a ascensão da atividade popular.
Vale ressaltar que a metodologia do Teatro do Oprimido propicia uma
par

disposição do sujeito para aquilo que se faz na sua realidade e atuação social,
objetivando promover sua autonomia e libertação. O espectador é motivado
Ed

a parar a cena assistida, sempre que julgar necessário e propor uma nova
solução para o conflito apresentado. Um teatro que transita entre o real e a
ão

invenção, e o espectador entre sujeito e intérprete. Suas linhas sociais, polí-


tica, pedagógica e terapêutica se comprometem a mudar o espectador/plateia
em personagem/sujeito ativo, impulsionando-o a meditar sobre o passado,
s

modificar a sua realidade atual e recriar seu futuro.


ver

Teatro do Oprimido, Paulo Freire e educação

No início dos anos de 1960, Augusto Boal era diretor do Teatro de Arena
de São Paulo. Neste período, a educação brasileira foi impactada por grandes
mobilizações a favor da alfabetização de classes menos favorecidas, buscando
a universalização do conhecimento. Foi um período que conduziu a cultura
172

popular para o campo da educação, oferecendo a homens e mulheres uma colo-


cação de sujeito ativo diante da transformação social e do processo histórico.
Criar e partilhar simultaneamente a história com o teatro e a educação libertá-
ria opera um agenciamento coletivo do desejo por meio da acolhida das ten-
sões dos valores e dos processos de subjetivação em singularização coletiva.

or
Durante esse momento, a cultura popular se assumiu como movimento

od V
e ferramenta na luta política a favor das camadas sociais menos favorecidas,

aut
agrupando diversas áreas e organizações político-sociais e culturais no Brasil.
Estabeleceu-se diversos grupos, entre eles o Movimento de Educação de Base

R
(MEB) que, ligado à esquerda da Igreja Católica, desenvolvia suas atividades
no campo e o Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife, com Paulo
Freire dirigindo as ações e discussões, objetivando uma análise crítica da

o
realidade. Juntos, obtiveram dimensões nacionais à volta da compreensão,
aC
organização e mobilização da população, cercando diferentes entidades e
setores sociais, por intermédio da cultura e da educação popular, visando

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a modificação da estrutura de classes e da disparidade de poder peculiar da
visã
sociedade brasileira. Com isso,

Nos anos 1960, Freire consolida seu pensamento político pedagógico, dialó-
gico e libertador com ações e atitudes de autonomia e intercâmbio dos sabe-
itor

res entre o aprendiz e o educador. Ações praticadas através do Movimento


a re

de Cultura Popular (MCP) – primeiras experiências educacionais – foram


realizadas em 1963, no Programa Nacional da Alfabetização de Adultos,
alfabetizando trezentos trabalhadores rurais em 45 dias, em Angicos, no Rio
Grande do Norte. O método se mostrou eficaz por partir da realidade do
analfabetismo, através de fatos de sua vida cotidiana. Freire nega com seu
par

método a mera repetição de frases, palavras e sílabas, ao propor aos alfabeti-


zando “ler o mundo” e “ler a palavra”, a ler o mundo por meio das palavras.
Ed

Propõe uma nova forma de pedagogia, associando ao estudo a experiência


vivida, o trabalho, a pedagogia e a política (BOAL, 2013, p. 189).
ão

Foi um período de grandes conflitos políticos na história do Brasil. Jânio


Quadros se elegera presidente do país e um ano depois renunciava. Em seguida
veio a conturbada posse de João Goulart e, em março de 1964, um golpe mili-
s

tar que instalava no Brasil a ditadura. Com a instauração do regime de exceção


ver

da Ditadura Militar, iniciou-se um processo de perseguição e opressão a todos


os artistas e quaisquer pessoas com pensamentos sociais e políticos críticos ou
alinhados com a liberdade de expressão. Portanto, Boal dedicou-se ao Teatro
Arena entre os anos de 1956 e1970, quando o local foi interditado pelo regime
militar. Em 1971 foi preso: “Janelas tinham grades. Mesas, metralhadoras.
Homens, armas. Caras, carrancas. Palavra: ódio. Interrogatório: rotina. [...]
empobreceu-se meu vocabulário: não! Não fui eu, não conheço, não vi, não
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 173

sei [...]” (BOAL, 2000, p. 273). Foi torturado: “A tortura é um procedimento


odioso. Como o amor, faz-se em nudez. O pau-de-arara, simples e popular,
é ainda hoje utilizado para presos comuns, no Brasil inteiro: quem disser o
contrário sabe que mente!” (BOAL, 2000, p. 278). E expulso do país: “O exílio
desintegra – retira de cada um o seu papel primeiro, nega o indivíduo, sua fun-

or
ção, seu íntimo eu sou! Ninguém é: o pai, a mãe, o filho, o amigo – ninguém

od V
é o que era nem é o que será. Flutua!” (BOAL, 2000, p. 295). Seguiu para a

aut
Argentina, onde começou um comprido exílio, produzindo conhecimentos
teatrais em diferentes países da América Latina: Bolívia, Colômbia, Peru e
Venezuela, quando instituiu o embrião o Teatro do Oprimido.

R
Esse foi um período no qual as pessoas já almejavam um teatro capaz de
favorecer as classes oprimidas e capaz de ser exercido como um instrumento

o
social e político. Partindo das crises sociais, Boal criava suas técnicas e jogos com
aC
o objetivo de conduzir debates para que se pudesse analisar a situação presente
e promover uma mudança nesta realidade. Existia uma enorme agitação política
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que estimulava o desejo de transformar, de ultrapassar todas as desigualdades e


injustiças com as quais o povo estava submetido a conviver diariamente.
visã
Assumindo uma postura engajada frente ao pós-golpe militar, Boal teve
como principais influências filosóficas o existencialismo, a fenomenologia e o
marxismo. Entre os autores que influenciaram seu método estavam presentes Karl
itor

Marx, Friedrich Engels, Stanislavski, Brecht, John Gassner e Jacob Levy Moreno.
a re

O Teatro do Oprimido surgiu quando Augusto Boal estava exilado no


Peru, na década de 1970, atravessado pela experiência de teatro popular,
somado ao método de alfabetização inspirado na Pedagogia do Oprimido de
Paulo Freire, Augusto Boal tomou emprestada a expressão do termo Teatro do
par

Oprimido e criou sua pedagogia teatral, compartilhando da mesma inspiração


de Paulo Freire - a Pedagogia do Oprimido -, que trata a educação como
Ed

uma estratégia de cessar, claramente, a miséria e a pobreza, oferecendo ao


excluído e ao oprimido a oportunidade de autonomia. Tem sua base, segundo
Boal (2013, p. 197), na forma dialogal do teatro, adotando os princípios da
ão

metodologia de Freire, para quem o ensino é “transitividade, democracia, diá-


logo”. Boal denomina seu método de intervenção social e política, onde “todo
mundo pode ensinar e todo mundo pode aprender” (BOAL, 2013, p. 197).
s

Vale ressaltar que a metodologia do Teatro do Oprimido não pode ser


ver

identificada como aquela pertencente a um teatro de classes ou proletário,


pois no interior das classes oprimidas existem opressores. Nesta verve, Boal
defende um teatro que trabalhe com as classes oprimidas e para as classes
oprimidas, independente da camada social vigente. Ele diz:

O teatro do oprimido não é um teatro de classe. Não é, por exemplo, o


teatro proletário. Esse tem como temática os problemas de uma classe
174

em sua totalidade: os problemas proletários. Mas no interior mesmo da


classe proletária podem existir (e evidentemente existem) opressões. Pode
acontecer que essas opressões sejam o resultado da universalização dos
valores da classe dominante (“As ideias dominantes numa sociedade são
as ideias da classe dominante” – Marx). Seja como for, é evidente que

or
na classe operária pode existir (e existem) opressões de homens contra
mulheres, de adulto contra jovens, etc. O teatro do oprimido será o teatro

od V
também desses oprimidos em particular, e não apenas dos proletários

aut
em geral. Da mesma forma que o teatro do oprimido não é um teatro de
classes, igualmente não é um teatro de sexo (feminista, por exemplo), ou

R
nacional, ou de raça, etc. porque também nesses conjuntos existem opres-
sões. Portanto, a melhor definição para o teatro do oprimido seria a que

o
se trata do teatro das classes oprimidas e de todos os oprimidos, mesmo
no interior dessas classes (BOAL, 1980, p. 25).
aC
Trata-se, portanto, de um método para o qual o conceito de oprimido se

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


refere ao sujeito que, tendo discernimento da sua condição de injustiça, luta
por mudança. O componente que retrata essa desigualdade é a disparidade de
visã
poder. Um sujeito sempre possui mais poder que outro e faz uso disso para
benefício próprio; assim se instaura um cenário de opressão, - dentro dos
princípios do Teatro do Oprimido. À vista disso é essencial que, ao pensarmos
itor

sobre oprimidos e opressores, não esqueçamos que essa ligação é inseparável


a re

e diretamente conectada ao cenário social e histórico pertencente a cada grupo.


Boal fala sobre essa relação e diz que:

Oprimidos e opressores não podem ser candidamente confundidos com


par

anjos e demônios. Quase não existem em estado puro, nem uns nem outros.
Desde o início do meu trabalho com o Teatro do Oprimido fui levado,
Ed

em muitas ocasiões, a trabalhar com opressores no meio dos oprimidos,


e também com alguns oprimidos que oprimiam. [...] No Centro de Teatro
do Oprimido do Rio de Janeiro já trabalhamos com homens que batiam
em suas mulheres. A vergonha que alguns sentiam, ao ver-se em cena, já
ão

era o início do caminho da transformação possível. É pouco? Sim, muito


pouco, mas a direção da caminhada é mais importante do que o tamanho
s

do passo. Trabalhamos com professores que batiam em seus alunos e


pais em seus filhos: a visão teatral de suas opressões envergonhava esses
ver

opressores e, a muitos, transformava. O Espaço Estético é um Espelho


de Aumento que revela comportamentos dissimulados, inconscientes ou
ocultos. Não devemos ter medo de trabalhar com pessoas que exerçam
funções ou profissões que oferecem a oportunidade e o poder de oprimir –
temos que acreditar em nós e no teatro. Mas temos que ter muito cuidado...
e saber escolher nosso lado (BOAL, 2013, p. 21-27).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 175

Boal nos alerta quanto ao interjogo de papéis entre oprimidos e opres-


sores a ser trabalhado no campo da intervenção teatral, Freire, por sua vez,
ressalta o quanto tais opressões compõem a própria estrutura da sociedade.
De forma geral, o autor acredita que não há libertação solitária, desta forma,
nos libertamos em comunhão, uns aos outros (FREIRE, 2019). Neste con-

or
texto, há vários instrumentos de opressão na sociedade, sendo que os espaços

od V
coletivos, como a educação, os movimentos sociais, o teatro, se apresentam

aut
como importantes estratégias de quebra do status quo e alcance da autonomia.
No jogo teatral, o oprimido ensaia uma mudança dos seus comportamen-

R
tos e modifica sua condição atual e, assim, como consequência, transforma
sua vida, e isso reflete na sua ação e representação no mesmo universo. Desta
forma, a partir de uma compreensão freireana, Boal estabelece um diálogo

o
entre intervenção social e política através do teatro. Para o autor, “não basta
aC
produzir ideias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e con-
tinuados. [...] Arte e Estética são instrumentos de libertação” (BOAL, 2009,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

p. 19). Assim, a educação é idealizada enquanto atividade de ação e reflexão


visã
sobre o mundo em que vivemos. O autor reflete que

O Teatro do Oprimido jamais foi um teatro equidistante que se recuse a


tomar partido – é teatro de luta! É o teatro DOS oprimidos, PARA os opri-
itor

midos, SOBRE os oprimidos e PELOS oprimidos, sejam eles operários,


a re

camponeses, desempregados, mulheres, negros, jovens ou velhos, portadores


de deficiências físicas ou mentais, enfim, todos aqueles a quem se impõe o
silêncio e de quem se retira o direito a existência plena (BOAL, 2009, p. 26).

As técnicas do Teatro do Oprimido são aplicadas como um recurso na


par

educação popular auxiliando a percepção e o entendimento e, assim, reve-


lando as circunstâncias dos fatores sociais nos quais cada sujeito está inserido.
Ed

Neste aspecto, o Teatro do Oprimido é uma forma de manifestação de teatro


popular. Ele não é apenas o teatro para o oprimido: é o teatro dele mesmo,
abandonando o teatro em que o artista interpreta o papel de um personagem e
ão

aderindo ao teatro em que cada um é o seu próprio personagem, permanecendo


na sua própria pessoa, desempenhando o seu próprio papel, organizando e
s

reorganizando a sua vida. Neste aspecto, a


ver

[...] educação e o teatro são concebidos como uma forma de autonomia


do sujeito na sua relação com seu universo social, como forma de entender
(e reagir contra) a opressão, de percebê-la como um desejo contrariado
(BOAL, 2013, p. 201).
176

Para o autor, o escasso acesso dos cidadãos aos conteúdos e práticas


artístico-culturais é uma das formas de controlar e dominar a sociedade, pois
afasta o sujeito da sua condição natural de perceber o mundo em que vive e
frutificar dentro da cultura que está inserido. Considera que

or
O analfabetismo estético, que assola até alfabetizados em leitura e escri-

od V
tura, é perigoso instrumento de dominação que permite aos opressores a

aut
subliminal Invasão dos Cérebros! As ideias dominantes de uma sociedade
são as ideias das classes dominantes, certo, mas, por onde penetram essas
ideias? Pelos soberanos canais estéticos da Palavra, da Imagem e do Som,

R
latifúndio dos opressores! (BOAL, 2009, p. 15).

o
Acredita-se que a relação do Teatro do Oprimido com a educação pro-
aC
move a autonomia mediante as ações que incentivam o conhecimento e o
envolvimento social do sujeito, estimulando-o a delinear seu caminho em

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


constante interação com o meio social. Trata-se de uma estratégia de educação
popular que propicia o desenvolvimento, a criação artística e o acesso cultural
visã
para as comunidades. Para Boal (1979) a

Educação consiste numa relação dialética em que a sociedade educadora não


itor

só permite, mas necessita que o educando atue como sujeito, considerando


que esse não vai ser assimilado por uma sociedade já feita, não-modificável,
a re

mas que vai modificá-la conforme suas próprias necessidades e desejos. O


educador oferece seus valores e seus conhecimentos para que sejam não acei-
tos passivamente, mas dinamicamente incorporados pelo educando (p. 97).
par

A educação com natureza libertadora concede ao sujeito sua autonomia,


orientando-o do seu agir ético na estruturação de novos caminhos que possibili-
Ed

tam a convivência coletiva, concedendo a ele o ingresso em ideias e atividades


culturais e, ainda, revelando a manipulação e dominação a que estamos inseridos
mediante nossa estrutura social. Logo, a ética do encontro e da experimentação
ão

faz passar intensidades existenciais que demandam o acontecimentalizar histó-


rico como potência da vida como obra de arte. O caminhante vai se fazendo no
caminhar em meio às mediações culturais e a quebra dos lugares instituídos de
s

dominação e opressão social e política como resistência efetuada pelo Teatro


ver

do Oprimido em ato experiencial inventivo de si e do mundo.

Teatro do Oprimido como prática de formação

Os pressupostos trazidos a partir da compreensão de Freire e Boal, podem


ser pensados do ponto de vista formativo para além dos processos educativos,
– centrados no lócus da escola por exemplo –, mas no sentido de formação
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 177

humana, visando o enfrentamento das contradições e opressões no âmbito


de diversas vivências sociais. Nesse sentido, Freire (2019) aponta que “não
há revolução com verbalismo, nem tampouco com ateísmo, mas com práxis,
portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transforma-
das” (p. 168). Partindo do contexto que vivemos uma realidade com injustiças

or
severas, as mudanças só podem vir da ação nesta mesma realidade com aqueles

od V
que a compõe e sustentam, ou seja, as massas, os trabalhadores, todos os grupos

aut
que sofrem com as opressões objetivas e subjetivas das classes dominantes.
Para haver transformação não se pode prescindir do exercício de cons-

R
ciência, da reflexão e da ação na realidade. Na práxis revolucionária os opri-
midos, dominados, encontram o que foi negado pelo dominador o “direito de
dizer sua palavra, de pensar certo” (p. 170), já que um dos mitos da ideologia

o
opressora consiste na “absolutização da ignorância, que implica a existência
aC
de alguém que a decreta a alguém” (p. 180), as mudanças vêm com o rompi-
mento da ingenuidade e o exercício da criticidade, em que os atores sociais ao
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

se conscientizarem da sua condição, podem também transformá-la (FREIRE,


visã
1996). Sendo assim, Freire (2019), ao tratar da contradição entre opressores e
oprimidos, aponta que a grande tarefa humanista e história dos oprimidos é:

[...] libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violen-


itor

tam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação
a re

dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos


oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos (p. 41).

Em diálogo com tais concepções, a proposta formativa do Teatro do Opri-


mido aparece em primeiro lugar. Em seguida está o projeto político, com toda a
par

sua força transformadora. Para Boal o teatro pode ser uma arma de libertação, de
Ed

transformação social e educativa. O autor acredita em uma prática de formação


carregada de transitividade, diálogo e democracia. Sua metodologia cria esse
diálogo, buscando a transitividade, interrogando a todo momento o espectador
ão

e dele esperando uma resposta. Transformando o espectador, de um ser pas-


sivo e depositário, em protagonista da ação dramática, ao tece a experiência
da liberdade como educação emancipatória e transformativa de si e do mundo.
s

A possibilidade de atuar e operar com o Teatro do Oprimido envolve


ver

processamentos sensíveis e simbólicos do conhecimento, agregando emoções e


razão de forma inseparável, inspirando-se na crença de que todos podem ensi-
nar, aprender e fazer teatro. Assim, ele estende o processo de ação e percepção
do verdadeiro, objetivando produzir um mundo mais benevolente e digno para
se viver. Trata-se de uma prática teatral que estimula as pessoas a descobrirem
o que já são, revelando a si mesmas seus potenciais, metaforizando o mundo,
representando-o, recriando-o, como expectadoras de si mesmas.
178

No livro Arco Íris do Desejo, Augusto Boal nos esclarece que todos somos
teatro. Não somente por atividade, mas em natureza. O ser humano difere de
todos os animais por sua capacidade de auto-observação e reflexão. Ele tem a
capacidade de agir, observar sua ação, refletir sobre sua ação e transformá-la
em decisões. Essa capacidade de observar-se em ação Boal chamou de Teatro

or
Essencial1. O homem tem a habilidade de observar-se e, diante do que vê,

od V
modifica e reinventa suas possibilidades de futuro, com base em suas vivências

aut
anteriores. Ao mesmo tempo que é ator, o que age é também o espectador; o
que observa tem a capacidade de perceber o Outro – o que não sou Eu. “Cria

R
uma tríade: EU observador, EU em situação, e o Não-EU, isto é, o OUTRO”
(BOAL, 1996, p. 27). E, percebendo-se em atuação e identificando o outro fora
de si, o homem torna-se potencialmente criador, capaz de criar o que ainda

o
não foi criado e representar a natureza.
aC
Diante disso, a intenção do Teatro do Oprimido é reavivar o teatro essen-
cial que existe em cada um de nós. Augusto Boal ampliou a compreensão

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do ser humano no contexto artístico e ao conceito do Teatro Essencial foi
visã
acrescentado que o ser humano não é somente teatro, mas também um artista
nato, ou seja, todo ser humano nasce artista. Descreve isso assim: “Em algum
momento escrevi que ser humano é ser teatro. Devo ampliar o conceito: ser
humano é ser artista” (BOAL, 2009 p. 19).
itor

O Teatro do Oprimido pode funcionar na educação, no trabalho, em


a re

associações civis e movimentos sociais como uma ferramenta essencial, uma


vez agregado às batalhas da nossa educação pública e se colocando contra o
sistema. Ele avista um sonho de igualdade, cria um diálogo com as atividades
educativas, de modo a alcançar, introduzir e reconhecer a vida dos sujeitos
par

oprimidos, com todas as suas vivências de lutas e suas histórias.


Ed

O Teatro do Oprimido, em todas as suas formas, busca sempre a transfor-


mação da sociedade no sentido da libertação dos oprimidos. É ação em
si mesmo, e é a preparação para ações futuras. “Não basta interpretar a
ão

realidade: é necessário transformá-la! (BOAL, 2013, p. 18).

Através de suas técnicas teatrais, que facilitam o imaginário por meio de


s

representações do real, o que se busca com Teatro do Oprimido é o levanta-


ver

mento de problemas vividos por cada sujeito, gerando consciência sobre os


aspectos e toda sua abrangência nas relações de opressão e poder, tornando-o
potencialmente capaz de transformar sua realidade e suas relações. Augusto

1 Boal traz a esse termo uma ideia de que o teatro faz parte da essência humana, é inato a todo ser humano
e o elemento que o difere dos outros seres vivos. “O ser torna-se humano quando inventa o teatro” (Boal,
2002, p. 28). Esse teatro essencial que Boal cita não se refere, assim, aos elementos colocados em cena,
mas, sim, no elemento humano que cada um possui.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 179

Boal acredita que quando o sujeito se integra ao método educativo/criativo/


político que o Teatro do Oprimido oferece, torna-se plenamente consciente
das suas capacidades e reivindica seus direitos sociais. O teatro e o cenário
dos problemas sociais não são representados com soluções estabelecidas ou
definidas. Ao contrário, a ação carrega infinitos caminhos e opções viáveis de

or
reflexão e possíveis transformações no âmbito individual e social.

od V
aut
Considerações finais

R
Este texto buscou compreender o legado de Augusto Boal, – o Teatro
do Oprimido, para discutir o processo da articulação de sua metodologia ao
campo da formação. Foi ressaltado o diálogo com Paulo Freire, grande edu-

o
cador brasileiro que moveu Boal a partir de suas compreensões de sociedade
aC
e educação. Inspirado nas ideias de Freire, Boal ressalta a educação como
ação e reflexão no mundo e o ensino como atividade potente contra as diversas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

opressões vivenciadas socialmente.


visã
Com base nisso, podemos dizer que a prática teatral vinculada aos pro-
cessos formativos prevê a criação de um sistema de ligações simbólicas
no interior de um grupo. Ela impulsiona o universo escondido, propondo
o funcionamento do virtual por intermédio das palavras e do corpo. Neste
itor

tipo de exercício, o ator leva à cena aspectos de sua intimidade profunda,


a re

que podem ser expostos mais facilmente, graças ao disfarce inerente ao


fenômeno teatral, criando formas no tempo e no espaço, por meio da relação
e do envolvimento com o outro.
O espaço teatral precisa oferecer aspectos de linguagem que agrupem
par

corpo, som e ritmo. Nesse lugar acontece o reencontro do corpo como recurso
de expressão; encontra-se também a possibilidade de vivenciar inúmeros per-
Ed

sonagens em diversos lugares paralelos à realidade ordinária. Neste aspecto,


o teatro oferece uma compreensão sobre o que se vive e almeja a transfor-
mação dessa realidade.
ão

No decorrer da representação teatral, há um espaço de presença/ausên-


cia que é constantemente estabelecida. No momento das improvisações, os
espaços, os objetos e as pessoas que são vivenciados não estão presentes,
s

representados apenas pelos outros integrantes, que concordam em compor


ver

os personagens, e os objetos reais assumem novas funções, de acordo com


demandas oníricas. O exercício teatral cria uma ligação entre as pessoas que
participam e, em seguida, um elo com quem assiste, e que, de alguma forma,
visualiza um corpo social.
O Teatro do Oprimido tornou-se uma atividade popular em vários lugares
do mundo. Suas técnicas são utilizadas nas escolas, na área da saúde mental,
em prisões, em hospitais e em comunidades na África ou na América Central.
180

Os livros de Augusto Boal são utilizados em inúmeras escolas de arte dramá-


tica na Europa e nos Estados Unidos, ainda que em relação a eles haja certa
resistência no Brasil. Inclusive, configura-se aí uma tremenda contradição, pois
foi considerando o ensino de teatro praticado no Brasil que Boal elaborou sua
pedagogia inovadora. Todavia, felizmente, seu trabalho complexo e frutífero

or
transcende o pensamento que se tem do autor no nosso país.

od V
Boal considera que todas as mais variadas formas de se pensar teatro,

aut
de se fazer teatro, independentemente de onde foram originadas, podem ser
concebidas em qualquer parte do mundo, unicamente por essa arte ser uma
linguagem humana. Por tais razões, para ele qualquer pessoa pode fazer tea-

R
tro. Acredita-se que por meio da atividade teatral as pessoas fortalecem a
autoestima, desencarceram o corpo oprimido pelo dia a dia e pela sociedade.

o
Mediante às técnicas teatrais criam-se representações inspiradas na realidade
aC
e, assim, é gerado um debate onde se busca soluções para os problemas
vividos. Trata-se de um teatro cuja força está no combate e na emancipação

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de camadas sociais oprimidas. Boal viu essa arte como uma potente arma de
libertação, de transformação social e educativa.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 181

REFERÊNCIAS
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BOAL, Augusto. Arte, Pedagogia e Política. In: LIGIÉRO, Zeca; TURLE,

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BOAL, Augusto. Milagre no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1979.

o
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BOAL, Augusto. O Arco Íris do Desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2002.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

BOAL, Augusto. STOP: C’est Maguique. Rio de Janeiro: Civilização Bra-


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sileira, 1980.

BOAL, Augusto. Teatro Legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-


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a re

FREIRE, Paulo. Método Paulo Freire: processo de aceleração de alfabetiza-


ção de adultos. In: TECNOLOGIA, educação e democracia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1979.
par

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.


Ed

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2019.


s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
A CONSTRUÇÃO DE VERDADES NO
DISCURSO JORNALÍSTICO:
estudo comparativo das coberturas jornalísticas

or
da libertação do ex-presidente Lula pelos

od V
blogs O Antagonista e Brasil 247

aut
R
Michel Renan Rodrigues de Andrade
Monalisa Pontes Xavier

o
Luciana Lobo Miranda
aC
Introdução
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O presente capítulo tem por objetivo discutir as estratégias de construção


visã
de verdades em narrativas jornalísticas em curso na atual conjuntura brasi-
leira, em intensa disputa político-ideológica, a partir da cobertura da soltura
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que fora preso devido às inves-
itor

tigações da Lava Jato. Tal escolha se justifica por ser uma materialidade que
a re

traz a luz narrativas de disputa de saber-poder, mais especificamente a partir


de dois blogs jornalísticos – O Antagonista e Brasil 247 – que circulam na
esfera pública e se distribuem pela rede mundial de computadores.
Preso pelas investigações da Lava Jato em 5 de abril de 2018, o ex-pre-
sidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma das mais importantes personalidades
par

políticas do Brasil e do mundo, fez emergir uma disputa política no campo


do discurso para oficializar diferentes versões sobre este acontecimento,
Ed

onde o que parece estar em jogo é a divulgação da verdade. Apoiadores do


ex-presidente apontam que ele era um preso político1 e que a prisão fora uma
ão

manobra política para tirá-lo das eleições de 20182. Já os apoiadores da Lava


Jato reconheciam o ex-presidente como um criminoso comum que precisava
cumprir a pena pelo crime3. Essa disputa de verdades com base nas diferen-
s

tes narrativas se estendeu pelo mundo, pautou as discussões no campo do


ver

judiciário e atravessou as eleições de 2018 que resultaram na eleição de Jair

1 “Associação Americana de Juristas reconhece Lula como preso político” - https://www.brasil247.com/poder/


associacao-americana-de-juristas-reconhece-lula-como-preso-politico; retirado em 19 de março de 2020.
2 “TSE deve concluir intervenção política para tirar Lula da eleição” - https://www.brasil247.com/brasil/tse-
deve-concluir-intervencao-politica-para-tirar-lula-da-eleicao; retirado em 19 de março de 2020.
3 “Lula é político preso que se vende como preso político” - https://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-
constantino/lula-e-politico-preso-que-se-vende-como-preso-politico/; “Lula é um preso comum” - https://
www.oantagonista.com/brasil/lula-e-um-preso-comum/; retirado em 19 de março de 2020.
184

Bolsonaro, antagonista do ex-presidente, e, depois, ressurgiu no momento de


sua libertação em 8 de novembro de 2019.
De antemão, a relevância deste capítulo gravita em torno da problematiza-
ção de uma pressuposta disputa pela narrativa oficial de um momento histórico
em que ainda vive o Brasil. Desde as manifestações de junho de 2013, aconte-

or
cimentos atualizaram forças historicamente construídas, trazendo a luz novos

od V
olhares sobre as dinâmicas de disputas políticas, diagramas das relações de

aut
poder e estratégias que, como disse Foucault (2013), findam a produzir modos
de subjetivação contemporâneos. Com isso em mente, entendemos que essa
pesquisa se situa na interface entre Psicologia e Comunicação, na medida em

R
que articula mídia e modos de subjetivação, enfocando o discurso jornalístico
como lugar de produção de verdades e os modos de subjetivação engendra-

o
dos no campo de disputa de diferentes narrativas políticas, uma vez que estas
aC
constituem contextos que estimulam a percepção do leitor sobre o desenvol-
vimento dos fatos. Importante perceber, como aponta Castells (2015), que é a

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força da comunicação, em suas estruturas de redes, que vão ajudar a constituir
opiniões, visões, comportamentos, percepções, enfim, modos de ser importantes
visã
para as decisões e os rumos políticos das civilizações. Observando a relação
do discurso jornalístico e a verdade, acreditamos estar cooperando com um
debate da disputa pela constituição de modos de subjetivação na atualidade.
itor

A verdade é um dos mais importantes elementos objetivados pelo jor-


a re

nalismo, como afirma Pena (2017). Mas o que é uma verdade? E como o
jornalismo deve trabalhar essa questão? Para o autor, o jornalismo se faz
praticar através da narrativa dos fatos. Esses fatos precisam ser informados
sob uma ética que tem como fundamento a clareza e objetividade. São esses
par

os pilares da prática do jornalismo em aliança com a verdade. Investiga-se


um fato, explora-se suas contradições e narra-se o que foi “descoberto”. Essa
Ed

seria a lógica da “busca da verdade”. Mas não é o que pensa Foucault (2014).
Segundo o autor, a verdade aparece como uma construção de processo his-
tórico. Ela não está escondida nem perdida esperando para ser achada. A
ão

verdade se configura como discurso, devendo ser compreendida como uma


construção que precisa de condições de existência para ser aceita, redistribuída
e controlada. Para Foucault (2014), a verdade não está imune aos poderes
s

que a envolvem. Instituições contextualizam as possibilidades para que uma


ver

verdade possa emergir e controla os processos e procedimentos do discurso


que intentam em anunciar a verdade ou fazer-se verdadeiro.
Por isso, se queremos problematizar a construção de verdades nas coberturas
jornalísticas, tomando como referência a análise do discurso jornalístico na cober-
tura da soltura do ex-presidente Lula, em dois sites com linhas político-editorias
distintas, precisaremos discutir as diretrizes editoriais dos blogs O Antagonista e
Brasil 247. Quando buscamos no Google por esses dois dos mais acessados blogs
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 185

de jornalismo4 político brasileiro, encontramos o seguinte: “O Antagonista é um


sítio web jornalístico, investigativo e opinativo da direita política do Brasil”; e
“Bem-vindo ao Brasil 247. Seu jornal digital progressista, democrático, 24 horas
por dia 7 dias por semana”. Essas informações intentam em direcionar ambos
os sites a um público específico e apresentar-se como uma estrutura produtora

or
de discursos que vão informar as pessoas do ponto de vista de um determinado

od V
posicionamento no espectro político: um pela direita e outro pela esquerda.

aut
Quando acessamos a sessão “quem somos” do Brasil 247, encontramos
sua autodefinição como uma equipe em que suas “pautas têm compromisso

R
com a democracia e uma sociedade mais justa e menos desigual”. Ainda
complementando, diz que o portal tem em média mais de 70 milhões de visi-
tas na página por mês. Em sua editoria, o Brasil 247 faz coberturas sobre as

o
instituições políticas, econômicas e culturais do Brasil sob uma perspectiva
aC
progressista, tendo em seu enorme conglomerado de colunistas professores
e autoridades em pesquisas que possuam capacidade de comentar e opinar
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sobre os acontecimentos e rumos políticos do país. Sua posição durante as


visã
investigações realizadas pela Lava-Jato sobre personalidades do Partido dos
Trabalhadores (PT), principalmente sobre o ex-presidente Lula, um forte
agente e símbolo da esquerda política do Brasil, foi em defendê-lo e atacar
as investigações5. Em sintonia com o espectro da esquerda, o Brasil 247
itor

produz pautas positivas sobre movimentos sociais como o Movimento dos


a re

Sem-Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)6,

4 Nas redes sociais na internet, principal meio pelo qual as matérias e informações de ambos os sites são
difundidas, coletamos as seguintes informações que justificam pelo alcance à relevância de nossa escolha
par

por estes blogs: O Antagonista possui no Facebook 991.203 pessoas seguindo; no Twitter, por volta de
1.000.000 de seguidores; no Instagram, 440.000 seguidores; no Youtube, por volta de 640 mil inscritos
Ed

no canal. Já o Brasil 247 possui no Facebook 1.050.763 seguidores; no Twitter, em volta de 354,1 mil
seguidores; no Instagram, por volta de 149.000 seguidores; no Youtube, os inscritos em seu canal são
de 516 mil pessoas. Não temos os dados sobre os inscritos que apoiam financeiramente o site, mas se
sabe que há investimentos para que pessoas apoiem com recursos financeiros os blogs pelo número de
ão

propaganda e pedidos de apoio tanto por ambos os sites quanto em suas publicações em redes sociais e
nas transmissões dos canais de Youtube. Esses dados foram retirados em 19 de março de 2020.
5 “PCdoB condena Prisão Política de Lula” - https://www.brasil247.com/poder/pcdob-condena-prisao-politica-de-
s

lula; “Lula vai insistir na suspeição de Moro para deixar a prisão política de Curitiba” - https://www.brasil247.
ver

com/brasil/lula-vai-insistir-na-suspeicao-de-moro-para-deixar-a-prisao-politica-de-curitiba; “519 dias, 519


anos: um dia de prisão política de Lula para cada ano” - https://www.brasil247.com/blog/519-dias-519-anos-
um-dia-de-prisao-politica-de-lula-para-cada-ano-de-brasil. Matérias retiradas em 19 de março de 2020.
6 “100 milhões de árvores do MST” - https://www.brasil247.com/blog/100-milhoes-de-arvores-do-mst; “Lula
manda mensagem às mulheres do MST: ‘a luta de vocês no Brasil não tem limite’” - https://www.brasil247.
com/brasil/lula-manda-mensagem-as-mulheres-do-mst-a-luta-de-voces-no-brasil-nao-tem-limite; “Por que
defender o MST?” - https://www.brasil247.com/blog/por-que-defender-o-mst; “PML parabeniza MTST:
ocupação no triplex desmonta farsa contra Lula” - https://www.brasil247.com/brasil/pml-parabeniza-mtst-
ocupacao-no-triplex-desmonta-farsa-contra-lula; “Caetano marca show em apoio ao MTST” - https://www.
brasil247.com/cultura/caetano-marca-show-em-apoio-ao-mtst. Retirados em 19 de março de 2020.
186

assim como pautas que desconstroem políticas de austeridades econômicas


tomadas pelos governos Temer e Bolsonaro7.
Já no blog O Antagonista, não observamos na sessão “quem somos”
– que eles nomearam “origem” – a definição explicita como no Brasil 247.
Nesta eles estruturam uma espécie de diálogo entre duas pessoas em forma de

or
pergunta e resposta que busca definir os propósitos do site. Apesar de diver-

od V
tida, a estrutura não permite uma conclusão clara quanto à editoria do blog,

aut
mas mesmo assim, há lá um posicionamento. No diálogo, tem-se o seguinte:
“Tupamaro? Somos de direita. Somos? Tinha esquecido, não podemos frustrar
nossos leitores”8. Comandado por personalidades identificadas com a direita e

R
com o antipetismo como Diogo Mainardi, Mário Sabino e Felipe Moura Brasil,
a perspectiva editorial de O Antagonista avalia por vezes os rumos políticos

o
do Brasil através da razão neoliberal e conservadora. Fundado em 2015, sua
aC
história atravessa uma luta contra o lulopetismo9 e um apoio à Lava-Jato10,
principalmente nas investigações contra o Partido dos Trabalhadores.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


No que concerne a este trabalho, nos perguntamos: como se dão as estra-
tégias de construção da verdade pelo discurso jornalístico das coberturas da
visã
libertação do ex-presidente Lula em dois blogs de posições político-editoriais
diferentes? Assim, buscaremos problematizar as narrativas produzidas pelas
sequencias de matérias divulgadas pelos blogs com intuito de analisar as
itor

estratégias de construção da verdade objetivados pelas matérias jornalísticas


a re

dos blogs. Escolhemos a libertação do presidente Lula por ser um momento


em que há material de apoio sobre os questionamentos às investigações da
Lava Jato e como uma conclusão momentânea de um acontecimento que
mexeu com as estruturas políticas do país.
par
Ed
ão

7 “Austeridade fiscal para quem?” - https://www.brasil247.com/blog/austeridade-fiscal-para-quem; “5 anos de


austeridade: o que temos para mostrar?” - https://www.brasil247.com/blog/5-anos-de-austeridade-o-que-
temos-para-mostrar; “Verissimo: Brasil testa agora a austeridade que fracassou na Europa” - https://www.
s

brasil247.com/cultura/verissimo-brasil-testa-agora-a-austeridade-que-fracassou-na-europa; retirados em 19 de
ver

março de 2020.
8 Retirado em 19 de março de 2020.
9 “Fim do ciclo do lulopetismo foi determinante para acordo Mercosul-UE, diz Troyjo” - https://www.oantagonista.
com/brasil/fim-do-ciclo-do-lulopetismo-foi-determinante-para-acordo-mercosul-ue-diz-troyjo/; “O fracasso
do lulopetismo” - https://www.oantagonista.com/brasil/o-fracasso-do-lulopetismo/. Retirados em 19 de
março de 2020.
10 “STJ: LAVA JATO 5 X 0 LULA” - https://www.oantagonista.com/brasil/stj-lava-jato-5-x-0-lula/; “A Lava Jato
vai engolir Lula e Dilma” - https://www.oantagonista.com/brasil/a-lava-jato-vai-engolir-lula-e-dilma/; “Ou se
prende Lula ou se desmoraliza a Lava Jato” - https://www.oantagonista.com/brasil/ou-se-prende-lula-ou-se-
desmoraliza-a-lava-jato/. Retirados em 19 de março de 2020.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 187

Estratégias metodológicas

A ocasião da soltura do ex-presidente Lula se deu no dia 08 de novembro


de 2019, após, no dia anterior, 07 de novembro de 2019, o Superior Tribunal
Federal (STF) ter julgado por 6 votos a 5 que um condenado só pode ser preso

or
após o fim de todos os recursos (trânsito em julgado), o que alterou a juris-

od V
prudência dada em 2016. No blog O Antagonista observamos 59 postagens

aut
entre os dias 7 e 8 de novembro de 2019 cobrindo o julgamento no STF, que
foi a condição para a soltura de Lula, e a própria libertação do ex-presidente.

R
O número elevado se dá por causa da proposta de estrutura informativa que,
em vez de construir um texto que detalha e narra o fato ao modo tradicional
do jornalismo – com manchete, lide, texto de desenvolvimento e conclusão

o
–, O Antagonista opta pela estratégia de complementaridade das mídias, por
aC
informar com brevidade e repercutir as falas ou postagens nas redes sociais,
estratégia frequente do jornalismo digital.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Já o blog Brasil 247, por causa da cobertura do julgamento do STF sobre


visã
as prisões em condenações em segunda instância, fez algumas postagens em
estruturas e formatos semelhantes à do Antagonista, mas em números menores.
Ao total, entre os dias 7 e 8 de novembro de 2019, foram 43 postagens, sendo boa
parte delas em forma opinativa dando repercussões a falas que defendiam a liber-
itor

tação do ex-presidente Lula. Entre as matérias mais extensas de ambos os sites,


a re

encontramos matérias em formato clássico sob o conceito da pirâmide invertida


(Manchete, Lide, desenvolvimento do texto) que chamamos de matéria noticiosa,
ou simplesmente notícia, e textos opinativos escritos por jornalistas e especialistas.
Diante disso, acompanhamos apenas as matérias que falassem explicita-
par

mente sobre a libertação do ex-presidente, os discursos que buscam provocar


efeitos de identificação, as respostas dos agentes políticos aos fatos, as análises
Ed

de autoridades sobre o assunto (cientista sociais e políticos, juristas, jornalistas,


economistas) e os modos como eles se direcionam aos personagens envolvi-
dos. Dessa forma, nosso recorte reduz o número de matérias de O Antagonista
ão

para 31 e a do Brasil 247 para 36. Desses números, exporemos neste texto
uma amostragem de 13 artigos, sendo 7 de O Antagonista e 6 de Brasil 247,
uma vez que em muitas dessas matérias observamos que os enunciados se
s

repetem e não acrescentam muito do ponto de vista discursivo.


ver

Analisaremos os discursos a partir das ferramentas vistas em Foucault


(2008), Gregolin (2007), Andrade (2016). Buscaremos categorizar os enuncia-
dos entendendo-os como as unidades menores do discurso. Esses enunciados
devem ser compreendidos a partir de sua função de existência, dos campos
de saber e dos efeitos de sentido, o que torna o conteúdo concreto aos olhos
de quem lê. Portanto, o enunciado não se trata de uma frase com um único
sentido, sem nenhuma relação exterior com a formação da oração na qual
188

ele pertence. Por isso, devemos categorizá-los a partir dos seus sentidos, da
autoria de sua constituição, da objetivação a que se refere, do valor estrutural
pertencente ao campo em que ele é desenvolvido – no caso o jornalismo – e
da relação com a verdade que busca enunciar.
Para tal, no próximo tópico, discutiremos a noção de discurso jornalís-

or
tico e verdade, com base em Foucault (2011 e 2014), Gregolin (2007), Lene

od V
(2006) e Vogel (2009) no qual problematizamos o discurso do jornalismo a

aut
partir da noção de verdade e poder, segundo o pensamento foucaultiano. Em
seguida, deveremos refletir sobre as estratégias adotadas por cada um dos blogs

R
na construção de verdades e de credibilidade junto a seu público específico.
Desse modo, poderemos perceber as nuances de semelhanças e diferenças na
construção de verdades entre ambos os blogs.

o
aC
Discurso jornalístico e verdade

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Um dos primeiros pontos que é preciso refletir para a nossa análise é a
visã
complexa relação entre o jornalismo, ou melhor, a prática jornalística mate-
rializada nos discursos que são produzidos e a verdade. Entendemos, a partir
de Foucault (2011) que o discurso é um espaço que proporciona as condições
de existência das materialidades do poder-saber. Muitas vezes é através dos
itor

discursos que as relações de poder são capazes de estabelecer estratégias,


a re

tecnologias e dispositivos para os controles e as produções dos modos de


subjetivação. Foucault (2013) disse que seu interesse era compreender os
modos como os seres humanos se transformavam em sujeitos. E um dos
objetos essenciais para ele prosseguir com suas problematizações e essencial
par

para seu método que atravessou boa parte de sua pesquisa é o discurso.
Para compreender as condições de existência dos saberes, a formação
Ed

dos dispositivos, estratégias e tecnologias de poder e os meios para que os


seres humanos, eles próprios, se constituíssem como sujeitos, o discurso foi
uma de suas ferramentas metodológicas fundamental. Compreendido como
ão

uma prática discursiva, para Foucault (2011), o discurso é um objeto dispu-


tado pelas relações de poder. Ter o controle sob o discurso é uma ilusão, mas
é o que move as estratégias que disputam as relações de poder. Os efeitos
s

dessas relações são observados nos campos de saber, nas infraestruturas das
ver

instituições e nos modos de conduzir a si mesmo nas variadas sociedades,


principalmente no mundo ocidental. Em A Ordem do Discurso, Foucault
(2011) nos mostra os processos e procedimentos investidos nos discursos como
forma de operacionalizá-lo, reconhecê-lo, aceitá-lo e reproduzi-lo. São proce-
dimentos internos e externos aos discursos que buscam sobrepujar poderes e
apaziguar perigos que possibilitem riscos à sua ordem. Esses procedimentos
são operados por dispositivos e tecnologias que controlam os procedimentos
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 189

discursivos e se produzem a partir deles, sob o objetivo de estabelecer forças


de controle nas relações de poder.
Quando se põe uma lupa sob as práticas discursivas, Foucault (2011) nos
mostra estratégias de como os processos externos ao discurso operam seu controle.
É através da interdição, da segregação e da vontade de verdade que se opera a

or
condição de possibilidade de emergência de um discurso. O que pode ou não ser

od V
dito, o que é aceito como sã ou não e que forças de verdades que impulsionam

aut
ou endossam ou normalizam ou legitimam um discurso. Concomitante a essas
estratégias, temos os procedimentos internos: o comentário, o autor e a disciplina
demonstram os desníveis dos discursos – um originário e outro que se refere a ele

R
de forma corriqueira como os textos jurídicos, religiosos e literários apontados por
Foucault (2011) –, um princípio de agrupamento de discurso que possibilita o seu

o
acesso a quem vai escrever, falar, recitar de uma forma coerente, compreensiva e
aC
aceita, assim como o princípio que delimita o campo da verdade onde o discurso
vai agir, operar, fundamentar, problematizar ou existir. A partir desses procedi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mentos, nos perguntamos como compreender o jornalismo. Entendemos que sua


condição de existência está atrelada a esses procedimentos da ordem do discurso.
visã
O que queremos perceber é, a partir desses procedimentos, como o jornalismo
funciona para compreender sua relação com a verdade.
Dessa forma, vamos entender o jornalismo, antes como um componente
itor

do conjunto de mídias que estão distribuídos na sociedade. Gregolin (2007)


a re

aponta que a mídia é uma prática discursiva, uma vez que ela é um produto de
linguagem e processo histórico, que busca estabelecer efeitos de sentido em
suas construções sociopolíticas. É também uma formadora e problematizadora
de campos de saberes, articulando-se, também com outras práticas não-discur-
par

sivas. Entendemos que essa compreensão nos permite entender o jornalismo


também como uma prática discursiva. Para além de ser um meio – media – que
Ed

leva a informação a alguém, ele possui suas regras e formas de existir.


Pena (2017) nos fala que a natureza do jornalismo tradicional é a objeti-
vidade, a clareza e a verdade dos fatos. Para tal, ele possui regras e métodos de
ão

formatos de escrita e de falas para que o jornalista possa produzir da forma mais
imparcial, ética e responsável possível a informação11. Perante isso, no passar
de mais de mil anos de história – a trajetória de sua pré-história até o jornalismo
s

contemporâneo, como aponta Marcondes Filho (2002) –, o jornalismo desenvol-


ver

veu técnicas e estratégias possíveis para constituir uma forma de produzir seus
modelos de escrita e narrativa atentando para os problemas que fissuram sua

11 Esse modelo de jornalismo tradicional insiste em manter uma rigidez formal mesmo quando as práticas
sociais exigem que ele se reinvente para continuar atual, a exemplo da rendição dos telejornais aos vídeos
de telespectadores como elemento de composição de notícia. Neste recurso buscam a informação rápida
e fragmentada, a inserção nas redes sociais e a interação com sua audiência. Abdicar disso atualmente
seria comprometer a própria existência e função social do jornalismo.
190

superfície. Um deles é o problema da imparcialidade – compreendida e aceita


atualmente como um mito – onde a proposta de solução passa pela transparência,
como um dever para com a ética e a verdade. E essa transparência se relaciona
diretamente com os regimes de visibilidades, tão caros à verdade.
Nas pesquisas de Vogel (2009) e Lene (2006) percebemos que o jorna-

or
lismo é fruto da importância que os iluministas e revolucionários deram à opi-

od V
nião e à transparência, surgido assim de um regime de visibilidade que ganha

aut
força em certo momento histórico de transformação do poder nas sociedades
ocidentais. O jornalismo, com isso, ganha um status de um veículo, ou dispo-

R
sitivo, capaz de dar transparência à realidade, proporcionando informações e
leituras de acontecimentos que esclarecem a população. A opinião é valorizada

o
e o jornalismo emerge para exercer o papel de fiscalização, controle e comu-
nicação entre a sociedade e as instituições públicas. O jornalismo ganha um
aC
patamar importante no regime de verdade da modernidade nascente, uma vez
que busca explorar os acontecimentos no intuito de dar visibilidade, transpa-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


rência e organizar um sistema embasado na razão para a produção da opinião
visã
pública. E é este regime de verdade o diagrama que vai colocar em campo as
disputas de poder sob os discursos. O regime de verdade, explica Foucault
(2014), possui uma política geral de verdade, com tipos de discursos que acolhe
e faz funcionar como verdadeiros, mecanismos e instrumentos que capacitam
itor

distinguir o enunciado verdadeiro do enunciado falso, o estatuto daqueles


a re

que têm o encargo de enunciar a verdade e as técnicas e procedimentos para a


obtenção da verdade. Para Foucault (2014), “a verdade é desse mundo; ela é
produzida nele graças às múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamen-
tados de poder” (p. 52). São essas múltiplas coerções, regulações, interdições
par

que dão os princípios para estruturar a vontade de verdade de sua época.


Para explicar a vontade de verdade, preciosa a esta reflexão, é necessário
Ed

compreendê-la não como desejo, mas como uma pulsão de uma época que
se estabelece como condição de existência, ou forma controlada do poder de
aceitar ou não o discurso verdadeiro. Foucault (2011) nos diz que, do século
ão

XVI para o XVII, a verdade “se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo,
de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu
s

objeto, sua relação e sua referência” (p. 15). Um exemplo que ele nos mostra
ver

é o de Mendel, que segundo ele, seus experimentos mostraram um fato que a


sua época era inaceitável. Mendel estava, então, dizendo a verdade, mas não
estava no verdadeiro do discurso biológico de seu tempo. Melhor dizendo,
a vontade de verdade de sua época não estava estruturada para fazer emer-
gir a forma, o sentido e o objeto para aquela nova referência discursiva que
Mendel trazia, aquela verdade. O que desconfiamos aqui, se nos permitem
essa pressuposição, é que as disputas narrativas do jornalismo configuram
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 191

estratégias para construir – ou desconstruir – as vontades de verdade dos


atuais regimes de verdade, ou mesmo em fazer funcionar descontinuidades nos
regimes de verdade, transformando as próprias vontades de verdade. Por isso
a importância de conhecer as estratégias das narrativas do discurso jornalístico
empreendidos nas publicações que buscam estabelecer criteriosamente um

or
efeito de transparência, objetividade, autoridade e verdade.

od V
E para refletirmos sobre essas estratégias, Foucault (2014, p. 52) nos

aut
fornece algumas ferramentas para observarmos os regimes de verdade. Ele
diz para atentarmos à economia política da verdade. Ele engendra cinco carac-

R
terísticas historicamente importantes:
a) A verdade é centrada na forma do discurso científico e nas institui-

o
ções que a produzem;
b) A verdade está submetida a uma constante incitação econômica
aC
e política;
c) A verdade é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

imenso consumo, circulando em aparelhos de educação e de infor-


visã
mação, buscando ir o mais longe possível no imenso corpo social;
d) A verdade é produzida e transmitida sob controle, não exclusivo,
mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômi-
cos, como universidades, exército e meios de comunicação;
itor

e) E por fim, a verdade é objeto de debate político e de confronto social;


a re

Análise

Em nossa reflexão, compreendemos até aqui que o discurso inserido em


par

uma disputa de poder, tem uma intensa relação com a verdade, produzindo-se
no fluxo dos regimes de verdade e da vontade de verdade. Atentamos para o
Ed

que disse Foucault (2014), quando este aponta que as estratégias discursivas
para se valerem como verdade passam pela exploração do discurso jurídico
e científico, pela incitação econômica e política, pela circulação em meios de
ão

educação e informação – o que permite o seu controle por formas dominantes


de aparelhos político-econômicos.
Para além dessas observações, nossa análise põe lentes sob os enunciados
s

e enunciações da forma discursiva jornalística que selecionamos dos sites O


ver

Antagonista e Brasil 247. Encontramos alguns elementos nos enunciados


que nos permitem discutir algumas categorias fundamentais presentes nas
estratégias utilizadas pelos veículos.
No conjunto das matérias selecionadas, há seis tipos de enunciados usados
nos discursos produzidos. Esses seis tipos se relacionam entre si para cooperar
com as narrativas que configurar-se como verdades e gerar efeitos de identifi-
cação com seus leitores. A partir da compreensão de que o discurso jornalístico
192

busca informar através de notícias, identificamos dois formatos nas matérias


das publicações: um formato opinativo e um formato de relato. O formato opi-
nativo é encontrado quando observamos um claro direcionamento de posição
da matéria. Quando utilizam adjetivos para produzir uma qualidade em algum
agente, quando qualificam algum evento ou acontecimento, quando utilizam

or
falas de especialistas para reforçar uma hipótese que o jornalista desenvolve. Já

od V
o formato de relato aparece quando a matéria é predominantemente descritiva

aut
sobre algum acontecimento ou evento. Reforçamos que esses formatos não
devem ser vistos como uma unidade solida, mas sim, como uma predominância
de um sobre o outro. Como demonstraremos, uma matéria pode ter aspec-

R
tos descritivos, mas ela se transforma em uma matéria de formato opinativo
quando seu texto toma um rumo de qualificação sobre um agente ou evento

o
do relato. De uma outra forma, quando a qualificação fica em segundo plano
aC
e uma análise ou uma descrição de um evento se sobrepuja às qualificações
que possam aparecer, identificamos como um formato de relato. Dessa forma,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


não fechamos o formato em si mesmo, mas sim o entendemos como dinâmico
a partir de elementos enunciativos. Daí criamos nossas categorias.
visã
São as categorias do enunciado jurídico, enunciado econômico, enun-
ciado sociopolítico, enunciado alarmista, enunciado de enaltecimento e o
enunciado de deboche. Essas categorias, quando se relacionam, produzem
itor

efeitos de análise, de ataque, de defesa, de denúncia, de alerta que estimulam


a re

afetos dos leitores e, concomitante, constituem enunciados apostando em


dados e análises segundo algum importante agente do jogo político. Por vezes,
a estratégia visa enraizar o discurso no solo do campo da ciência através do
uso de dados e estatísticas, buscando, também, nas autorias e comentários
uma forma de fundamentar o discurso que produzem sob o efeito da realidade,
par

do factual. Seja o enunciado da economia, seja o jurídico ou o sociopolítico,


Ed

esses enunciados interagem em prol de táticas e estratégias que visam afetar


a percepção, juntamente com os enunciados alarmistas, de enaltecimento e
de deboche que buscam um efeito de identificação através dos afetos. Tanto
ão

O Antagonista quanto Brasil 247 apostam nessas estratégias enunciativas


para enaltecer suas visões, produzir credibilidade e estimular a crença na
posição em defesa da verdade. Assim, os discursos jornalísticos desses sites
s

se produzem e reproduzem no intuito de dominar a verdade do discurso e se


ver

posicionar ocupando grande espaço no diagrama das relações de poder que


tentam produzir e controlar modos de subjetivação.

Estratégias enunciativas e formação discursiva dos blogs

A formação discursiva jornalística estabelece comentários acerca dos dis-


cursos jurídicos, sociopolíticos e econômicos. Percebe-se que ambos os veículos
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 193

exploram este recurso construindo suas narrativas a partir de dados, estatísticas


e falas de especialistas, mas também se utilizam de recursos importante para a
disputa de narrativa que são os afetos buscando um efeito de identidade com seus
leitores, posicionando-se em seus respectivos lugares de disputa. O Antagonista,
na matéria Jogo de empurra para soltar Lula12, constitui um comentário sobre

or
uma fala do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, para

od V
enfatizar que Lula estava preso e que tinha o direito de progressão do regime de

aut
pena (prisão domiciliar), como pediu a força tarefa da Lava Jato, através de Del-
tan Dalagnol, coordenador da força tarefa, mas sua condenação não poderia ser

R
modificada. No entanto, ao fim da matéria, o autor enuncia sua posição contrária
a hipótese de revogação da prisão em segunda instância de forma agressiva, ao
apontar que Toffoli, caso votasse pela prisão após o trânsito julgado, juntamente

o
com os outros, seria o culpado pela libertação de Lula.
aC
Em um formato opinativo, observa-se o uso do enunciado jurídico – um
comentário sobre o julgamento em processo e o não-dito da (in)justiça que
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seria barrar o trabalho realizado pela força tarefa da Lava Jato – e o enunciado
visã
de alarmismo – onde aponta que Toffoli, assim como Gilmar Mendes podem
ser cumplices da liberação de um criminoso. Ao mesmo tempo, a dinâmica
dos enunciados pode passar uma ideia contraditória. Se por um lado eles
enunciam uma preocupação com a libertação de Lula, por outro eles enunciam
itor

que Lula já pode deixar a cadeia, de acordo com o pedido de progressão da


a re

pena da própria Lava Jato. Mas com um pouco mais de atenção, compreen-
de-se que essa contradição é ilusória. O que se pode constatar, neste meio é
uma defesa do trabalho da força tarefa da Lava Jato, uma vez que a própria
saída do ex-presidente da prisão é condicionada a partir do reconhecimento
par

do trabalho do Ministério Público e do acatamento ao regime de progressão


de pena. Se trata de uma disputa de poder no campo jurídico, onde o que está
Ed

em jogo é a potência da força tarefa da Lava Jato contra quem a ataca.


Já o discurso no Brasil 247 produz enunciados com estratégias seme-
lhantes, mas sobretudo apontam diferenças ao Antagonista. Encontramos na
ão

matéria STF define nesta quinta decisão sobre 2ª instância e destino de Lula13
uma estrutura em mais acordo com a forma clássica do jornalismo, com uma
lide objetivo e claro, diferentemente da matéria de O Antagonista. O formato
s

desta é de relato, a partir do comentário acerca do discurso jurídico e, inclusive,


ver

jornalístico. A matéria utiliza uma notícia de outro veículo – Folha de São Paulo

12 https://www.oantagonista.com/brasil/jogo-de-empurra-para-soltar-lula/ matéria publicada em 07 de


novembro de 2019.
13 https://www.brasil247.com/brasil/stf-toma-nesta-quinta-decisao-historica-sobre-2-instancia-lavajatistas-
tentam-minimizar-impactos matéria de 08 de novembro de 2019, dia em que Lula foi solto
194

– como axioma de sua publicação. Em sua lide, encontra-se um enunciado tam-


bém com o objetivo de marcar sua posição na disputa de narrativa. Segue a lide:

O Supremo Tribunal Federal decide nesta quinta-feira (7) sobre a prisão


depois de condenação em segunda instância. Se prevalecer a Constituição,

or
restabelece-se o princípio de que a prisão só pode ser executada depois do

od V
trânsito em julgado na corte suprema. Nesse caso, o ex-presidente Lula,
preso político em Curitiba, será beneficiado com a liberdade. O relator da

aut
Lava Jato no STF, Ministro Edson Fachin, nega que essa decisão vá gerar
“efeito catastrófico” (BRASIL 247, 7 de novembro de 2019).

R
O enunciado utiliza o comentário sob o discurso jurídico de que há uma

o
inconstitucionalidade a ser reparada pelo STF. Ou seja, diz-se que uma injustiça
está sendo cometida e que o entendimento da maioria dos ministros do STF é
aC
capaz de corrigi-la. O objeto dessa injustiça é o ex-presidente Lula e a consti-
tuição brasileira. Ainda, o discurso investe em uma tática de desarticulação dos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


discursos adversários, produzindo um comentário a partir da fala do Ministro
visã
Edson Fachin, que diz que a decisão não deverá gerar um efeito catastrófico. Já
no Antagomista há a predominância do enunciado alarmista em matérias tais
como: Vai Piorar 14e PSDB: soltura de Lula pode aumentar “clima de intole-
rância”15, articulado a enunciados sociopolítico, cujo o medo do acirramento
itor

político e social, junto com o sentimento de intolerância partidária possam


a re

se acirrar devido a soltura do ex-presidente, acaba por ser pautada através da


nota do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), veiculada no site.
Outra publicação de O Antagonista que segue a estratégia do enunciado
alarmista em busca da constituição da verdade do discurso é vista em Lula
par

derruba a bolsa e faz dólar subir. A publicação relaciona Lula com a queda da
bolsa de valores, buscando no campo da economia argumento de veracidade
Ed

contra a soltura do ex-presidente. Essa publicação tem apenas a manchete e


um parágrafo: “Às 15h, o dólar era negociado a R$ 4,15 para venda, com alta
de 1,5%. Enquanto o Ibovespa operava em queda de 1%, aos 108,5 mil pon-
ão

tos”. Se trata de um relato de enunciado econômico, sem obedecer a estrutura


clássica do jornalismo. Apenas o elemento do autor e da mídia sustentam a
possibilidade de compreendê-lo como uma formação discursiva jornalística.
s

Porém, seu efeito é alcançado por fazer parte dessa própria mídia.
ver

Atentando às diferentes visões dos dois veículos de publicação, perce-


be-se que há dois fatos: “prisão/libertação de Lula” e “prisão em segunda
instância”. Duas unidades enunciativas produzem duas formas distintas de

14 https://www.oantagonista.com/brasil/vai-piorar/ matéria de 08 de novembro de 2019, dia em que Lula foi solto


15 https://www.oantagonista.com/brasil/psdb-soltura-de-lula-pode-aumentar-clima-de-intolerancia/ matéria de
08 de novembro de 2019, dia em que Lula foi solto.
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 195

compreensão: uma de que a prisão em segunda instância é inconstitucional e


outra de que a prisão de Lula é justa. A compreensão da inconstitucionalidade
defendida pelo Brasil 247 é investida em grande volume por enunciados jurídi-
cos e sociopolíticos como em Toffoli sinaliza voto por prisão só após trânsito
em julgado e Lula pode ser libertado16 e Wadih Damous: “O STF ficou com

or
a Constituição e Lula vai percorrer o país”17. Os argumentos usados são os

od V
comentários a partir dos códigos da constituição e do direito penal, no qual

aut
destacam que qualquer réu deve ser preso, apenas, quando se esgotam todas
as instâncias de defesa, ou seja, em trânsito julgado.

R
Sobre o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), que diz que “nin-
guém poderá ser preso senão [...] em decorrência de sentença condena-

o
tória transitada em julgado”, Toffoli disse: “Eu não entendo que a norma
aC
necessite alguma interpretação conforme. A leitura dela cabe no texto da
constituição” (BRASIL 247, 8 de novembro de 2019).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Já em O Antagonista, os discursos sustentados no enunciado jurídico


visã
não questionam a constitucionalidade, mas a justiça em manter Lula preso
e reconhecer o trabalho da força tarefa da Lava Jato e do juiz Sergio Moro,
usando-se, até mesmo de enunciados de deboches para atingir o ex-presidente
itor

e seus apoiadores, reforçando sua condição de criminoso e adjetivando apoia-


dores como Fernando Haddad e recém eleito presidente da Argentina Alberto
a re

Fernandez de “Poste”, como na própria matéria Jogo de empurra para soltar


Lula e, também em O poste a caminho de Curitiba 18e Lula libre hoy19.
Na contramão, o Brasil 247 busca na forma discursiva jornalística,
com assinatura de jornalistas, estruturas que aproveitam os elementos do
par

jornalismo clássico e com o formato opinativo contra-atacar as investidas


antagônicas ao ex-presidente. Em Com Lula livre, o jogo muda20, assinado
Ed

pela colunista Tereza Cruvinel, percebemos o enunciado de enaltecimento da


decisão do STF, na passagem “Mas antes de falar disso, é imperioso reconhe-
cer: o STF tomou ontem uma decisão corajosa que fortalece a democracia
ão

brasileira e a restabelece o primado da Constituição”, e enaltecimento do


s
ver

16 https://www.brasil247.com/poder/toffoli-sinaliza-voto-por-prisao-so-apos-transito-em-julgado-e-lula-pode-
ser-libertado Matéria de 07 de novembro de 2019.
17 https://www.brasil247.com/brasil/wadih-damous-o-stf-ficou-com-a-constituicao-e-lula-vai-percorrer-o-pais
Matéria de 07 de novembro de 2019.
18 https://www.oantagonista.com/brasil/o-poste-a-caminho-de-curitiba/, matéria de 08 de novembro de 2019,
dia em que Lula foi solto.
19 https://www.oantagonista.com/brasil/lula-libre-hoy/ matéria de 08 de novembro de 2019, dia em que Lula
foi solto.
20 https://www.brasil247.com/blog/com-lula-livre-o-jogo-muda matéria de 08 de novembro de 2019, dia em que
Lula foi solto.
196

ex-presidente Lula, adjetivando-o de um sobrevivente, que “suportou digna


e estoicamente a prisão, não se quebrou física nem moralmente, como seus
adversários esperavam”.
Também percebemos o enunciado sociopolítico ao relatar a importância
política e social da posição de Lula como um adversário à altura do desafio

or
de encarar o presidente Jair Bolsonaro e tudo o que ele representa. Tereza

od V
Cruvinel diz: “Bolsonaro não estará mais sozinho no proscênio, deixará de ser

aut
o jogador sem contendor”, e argumenta usando-se de dados estatísticos como
um enunciado que atravessa o sociopolítico e o enaltecimento buscando no

R
elemento científico postular-se como factual e verdadeiro. Aqui observamos
que a matéria longa e assinada, seguida da qualificação da jornalista que assina
como forma de atribuição de credibilidade, construída como artigo de opinião

o
de especialista adentra o espaço do autor, que opera com as potencialidades
aC
do que se pode dizer através das matrizes de saber que o discurso aciona,
como a intenção em fundamentar-se na exposição de dados, a exemplo de

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percentuais estatísticos e trechos de falas.
visã
Em Lula: as portas do Brasil estarão abertas para que eu possa per-
correr este país21, percebe-se que a matéria dá ênfase ao discurso de Lula,
utilizando nos enunciados qualificativos que marcam posição a ideológica
do veículo, como “preso político”, “discurso histórico”, “decisões políticas
itor

e persecutórias”, entre outros.


a re

Em discurso histórico nesta sexta-feira 8, ao ganhar a liberdade depois de


580 dias mantido como preso político, o ex-presidente Lula diz que sai sem
ódio, mas que vai rodar o País para combater a injustiça contra ele e defen-
der a soberania nacional. Ele agradeceu ao apoio da vigília e criticou o que
par

chamou de “lado podre” da Justiça (BRASIL 247, 8 de novembro de 2019)


Ed

Enunciados sociopolíticos e de enaltecimento são vistos outra vez. Essa


matéria possui o formato de relato, enfatizando a posição, a injustiça e a farsa
ão

da operação Lava Jato, do mesmo modus operandis de ataques que O Anta-


gonista pratica. O enunciado de deboche aparece na reprodução da fala do
ex-presidente: “Se pegar o Moro e o Dallagnol e bater em um liquidificador
s

não dá 10% da honestidade que eu tenho” (BRASIL 247, 2019). Finaliza a


ver

matéria convidando para acompanhar as notícias ao vivo e um link para um


vídeo cuja imagem inicial é “Lula livre”. A argumentação e os enunciados
são articulados a trechos da fala do ex-presidente após soltura. Essa matéria
é importante para as estratégias do blog uma vez que busca materializar
a importância e grandeza do ex-presidente, que dispara acusações ao atual
21 https://www.brasil247.com/poder/lula-livre-lb7povi6 matéria de 08 de novembro de 2019, dia em que Lula
foi solto.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 197

presidente, Jair Bolsonaro, apontando o desemprego e a informalidade em


alta no país. Aqui há o predomínio do enunciado sociopolítico em consonân-
cia com os enunciados de enaltecimento. Essa estratégia busca dinamizar a
interação entre a forma discursiva, os enunciados e a realidade do trabalhador
brasileiro. Uma estratégia de materializar-se como verdade.

or
Outra estratégia adotada por ambas as publicações são matérias de reper-

od V
cussão de falas de personalidades e autoridades reconhecidas no meio político,

aut
jurídico e econômico como forma de enfatizar a veracidade do fato e enraizar
a narrativa de seu lado político ideológico. Em “O povo brasileiro recupera

R
alguém que muito precisa”, diz Mujica sobre liberdade de Lula22 observa-
mos a repercussão da fala do ex-presidente do Uruguai, José Mujica, sobre
a libertação do ex-presidente Lula. Com enunciados sociopolíticos, Mujica

o
comemora a volta de uma personalidade da esquerda brasileira que pode
aC
mudar os rumos das lutas sociais do país. No mesmo passo, em O Antagonista,
a publicação Maduro comemora libertação de Lula 23faz o movimento oposto,
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mas usando do procedimento de comentário para atacar e afetar a imagem de


visã
Lula atrelando-o à figura do presidente venezuelano. Em uma exposição curta,
em vez de usar o qualitativo “presidente”, O Antagonista prefere usar o termo
“ditador”: “O ditador venezuelano Nicolás Maduro também está celebrando
a libertação de Lula”. Em uma outra publicação, percebe-se o enunciado do
itor

deboche: Showzinho no sindicato fica para amanhã24. Apesar de ser curta e


a re

no formato de relato, a manchete dá o tom político ideológico que ataca o


ex-presidente. A notícia é construída a partir de falas de aliados políticos do
ex-presidente como estratégia de afirmação de veracidade.
par

Considerações finais
Ed

Percebe-se que a estratégia discursiva das duas publicações se formata


a partir da opinião e do relato, buscando usar das falas de personalidades
importantes no intuito de construir uma veracidade aos fatos reportados, sob
ão

uma narrativa de viés político ideológico que se encarna no tecido discursivo


na intenção de ganhar o status de verdade. É através das dinâmicas entre
os enunciados que é possível perceber os rumos que as publicações dão a
s

suas narrativas. No discurso jornalístico de um relato sobre o julgamento


ver

da prisão em 2ª instância, os blogs usam as falas dos ministros, estruturam

22 https://www.brasil247.com/mundo/o-povo-brasileiro-recupera-alguem-que-muito-precisa-diz-mujica-sobre-
liberdade-de-lula matéria de 08 de novembro de 2019, dia em que Lula foi solto.
23 https://www.oantagonista.com/mundo/maduro-comemora-libertacao-de-lula/ matéria de 08 de novembro de
2019, dia em que Lula foi solto.
24 https://www.oantagonista.com/brasil/showzinho-no-sindicato-fica-para-amanha/ matéria de 08 de novembro
de 2019, dia em que Lula foi solto.
198

suas publicações em formato de relato, como o consenso jornalístico pede,


mas inserem enunciados alarmistas, ou de enaltecimento ou de deboche para
atender suas posições político-ideológicas.
No que concerne a essa produção discursiva, os regimes de verdade fazem
circular as formações discursivas – desde formações do jornalismo clássico a

or
novas formas de rápida comunicação típica das redes sociais na internet – con-

od V
dicionando as disputas pela narrativa que se pretende oficial. Neste meandro,

aut
a vontade de verdade entra em jogo, mas articulada aos afetos das ideologias
políticas a que as editorias dos veículos seguem. Dessa forma, é importante

R
observar que os enunciados afetivos – o alarmista, o enaltecimento e o debo-
che – tem papel crucial para as relações de poder em atividade no momento
histórico do país. São essas forças que alimentam, estimulam, produzem per-

o
cepções e opiniões importantes para as lutas sociais e políticas do país, sendo
aC
vertentes e elementos condicionantes para os modos de subjetivação em vigor.
Essas estratégias fazem emergir discursos verdadeiros a partir de enun-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ciados que usam elementos jurídicos e elementos cientificistas como as leis, as
visã
estatísticas, os dados, as reflexões e análises, emulando um tipo de transparência
quanto as camadas que constituem o fato narrado. Obedecem a formatos, mas
flexionam quando necessário. São incitados e incitam política e economica-
mente, uma vez que seus enunciados constroem as bases do interesse de cada
itor

público leitor – seja ele de perfil mais economicista, mais jurídico, mais voltado
a re

para os problemas sociopolíticos, ativistas, partidários, etc. Esses discursos


produzem narrativas que buscam estimular o público leitor a partir da identifi-
cação ou não com a política ideológica da editoria. Ou seja, essas publicações
navegam no fluxo dos elementos da verdade expostos por Foucault (2014),
par

sendo difundida por aparelhos de informação, debatidas e problematizadas.


Há um “porém”: as estratégias de construção da verdade não foram inde-
Ed

pendentes dos afetos. Estes, pelo contrário, foram emulados e estimulados nos
enunciados dos discursos jornalísticos de ambos os blogs. Entendemos que
essa discussão possa se estender às análises e discussões sobre a Pós-Verdade,
ão

uma vez que, como afirma D’Ancona (2018), os afetos passam a ganhar mais
espaço nos discursos que se pretendem verdadeiros do que os próprios fatos.
Talvez seja o caso de problematizarmos esses regimes de verdade. Será que as
s

vontades de verdade de nossa época estão se condicionando aos afetos? Será


ver

que os fatos e a ciência estão sendo desmontadas para dar lugar a discursos
performáticos que trazem, em segundo plano, a informação factual? Que
efeitos seriam produzidos em nossa sociedade? O que se conclui, de fato é que
há uma forte luta envolta dos discursos, como já afirmava Foucault (2011).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 199

REFERÊNCIAS
ANDRADE, M. R. R. As manifestações de junho de 2013, no Brasil: modos
de subjetivação e as condições para uma resistência a partir de uma análise

or
do discurso. 2016. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade de

od V
Fortaleza, 2016.

aut
CASTELLS, M. O poder da comunicação. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2015.

R
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fake News. Barueri: Editora Faro, 2018.

o
aC
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

FOUCAULT, M. O sujeito e o Poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P.


visã
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da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
itor

FOUCAULT, M. Verdade e Poder. In: MACHADO, R. Microfísica do Poder.


a re

Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014.

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tidades. Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, v. 4, n. 11, p. 11-25,
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par

LENE, H. O jornalismo e a construção do verdadeiro no campo econômico:


Ed

uma análise à luz das reflexões bakhtiana e foucaultiana sobre discursos.


Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos. Rio Grande do Sul, v. 8, n. 3, p. 212-
222, set. 2006.
ão

MARCONDES FILHO, C. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker


s

Editore, 2002.
ver

PENA, F. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2017.

VOGEL, D. I. Sobre Foucault e o jornalismo. Verso e reverso – revista de


comunicação. Rio Grande do Sul, v. 23, n. 53, ago. 2009.
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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A PESQUISA NA RUA JUNTO
A SEUS HABITANTES:
ética e política em saúde mental a partir

or
de uma investigação etnográfica

od V
aut
Milena Silva Lisboa

R
Pesquisar o universo das ruas e das pessoas que aí vivem... Alguns diriam
que é preciso coragem e uma disposição para se arrebatar pelo inusitado e tam-

o
bém pelo sofrimento, que nos invade com a simples aproximação com condições
aC
extremas de vulnerabilidade e humilhação social. Contudo, de antemão é preciso
lembrar-se que jamais compreenderemos o que lá acontece – a pretensão de
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uma pesquisadora outsider conseguir tornar esse mundo estranho em familiar


visã
precisa estar sob suspeita, sob risco de ingenuidade. Nossa aproximação será
sempre posicionada e parcial – a todo tempo a lembrança da condição social e
de lugar de fala da pesquisadora marcam as permissões e limites.
Para não cair em armadilhas etiológicas, é preciso considerar a situação
itor

de viver nas ruas e, principalmente, os habitantes das ruas das nossas grandes
a re

cidades considerados “loucos de rua” a partir de uma perspectiva constru-


cionista (SPINK, 2000), que não busque verdades últimas e essências. Isso
implica em defender uma versão controversa sobre isto a que chamamos
loucura e sobre os fenômenos relacionados historicamente com a vida nas
par

ruas, nomeados como “mendicância” e “vagabundagem”, por exemplo.


Indo direto ao ponto, este capítulo ora apresentado pretende apresentar
Ed

as reflexões acerca da ética e da política epistemológica a partir do relato de


uma pesquisa que teve por foco o estudo dos relacionamentos entre pessoas em
situação de rua que apresentam experiências de sofrimento psíquico e as redes
ão

de atenção e cuidado estabelecidas pela Assistência Social e em especial pela


Saúde, voltando-se em particular para as estratégias de enfrentamento elaboradas
pelas políticas públicas brasileiras destinadas a esta população (LISBOA, 2013).
s

De antemão, é preciso salientar que quaisquer discussões aqui pretendidas não


ver

conseguem escapar às determinações de seu campo-tema, a saber: o universo


das ruas e seus habitantes, que também precisou ser habitado pela pesquisadora
em sua intenção de compreender o processo de produção cuidado em saúde
mental, em um território tão complexo e sobredeterminado.
Como sabemos, o tema do viver nas ruas tem sido trabalhado por meio
de análises históricas, sociológicas e antropológicas acerca das complexidades
envolvidas no surgimento e aumento paulatino das pessoas em situação de
202

rua, tratando-as a partir de diferentes abordagens teórico-metodológicas. A


Psicologia Social tangencia as discussões sobre tal fenômeno, geralmente por
meio de reflexões de caráter abstrato, distantes da realidade em que vivem
essas pessoas e relacionadas à temática da doença mental e muito raramente
em discussões sobre a pobreza ou as condições de desigualdade social. Sua

or
tradição crítica em relação às questões sociais associada ao ideal de trans-

od V
formação social pode oferecer contribuições que tenham como princípio éti-

aut
co-político a construção de conhecimento científico voltada para a defesa da
justiça social (SPINK, P., 2005).
A pesquisa aqui relatada foi desenvolvida durante o Doutorado na Pon-

R
tifícia Universidade Católica de São Paulo, quando foi possível agregar um
desejo de comprometer-me com esse problema social durante quatro anos

o
e assim poder contribuir nas reflexões de âmbito mais sociológico sobre a
aC
temática e, principalmente, no aprimoramento de nossas intervenções.1 E é
daqui, posicionando-se neste campo controverso, que precisamos partir rumo

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


à pesquisa junto à pessoas em situação de rua e seus sofrimentos, a saber: é
visã
preciso antes de tudo refletir sobre a política de governabilidade envolvida
no que consideramos ser este território, a rua, para então partirmos para uma
aproximação dos seus habitantes.
itor

O ethos da rua como campo da pesquisa etnográfica


a re

Como falar de pessoas em situação de rua sem também realizar uma


reflexão sobre a própria noção de rua, sobre o que ela significa em nossa
sociedade? Sabemos que a rua como um lugar não pode ser considerada
par

como uma realidade estanque e imutável, caracterizada pelo simples trânsito


desordenado de pessoas que a utilizam para chegar onde precisam. Não é
Ed

simplesmente lugar de passagem e configura-se como espaço vivido, lócus


de distintos relacionamentos sociais.
Historicamente a rua ganhou diversos significados, foi e é habitada de
ão

modos diversos, por populações distintas e ainda se constitui como palco


de disputas entre grupos que tentam controlar e governar seus espaços. Tal
configuração multiforme informa sobre sua importância na configuração de
s

nossa sociedade contemporânea. Para nos acercarmos desse mundo, reprodu-


ver

zimos aqui um trecho do diário de campo como forma de ilustrar diferentes

1 Como as reflexões realizadas na tese não são fruto de reflexão pessoal, mas sim são produto de uma série
de articulações e pensamentos coletivos (realizados em especial com minha orientadora, Mary Jane Spink,
mas também com colegas do Núcleo de Produção de Sentidos e com os profissionais de UBS e algumas
vezes com as pessoas em situação de rua), será utilizada a 3ª pessoa (nós) para enfatizar esse caráter
coletivo da produção de conhecimento. O uso da 1ª pessoa (eu) somente ocorrerá para relatar situações
do campo vividas pessoalmente.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 203

maneiras de habitar a rua em um dia em que pude participar de uma outra


forma de habitar e viver a rua.

[...] Depois de passar pouco tempo na Casa do Imigrante, resolvi voltar


à UBS. Lá, encontrei Luís2 e Larissa, os Agentes Comunitários de Saúde

or
(ACS’s,) de saída para fazerem VD [Visita Domiciliar]. Pedi para acompa-

od V
nhá-los. Subimos a rua da UBS, em direção a uma rua de muito comércio
informal da região. No caminho, em uma grande praça perto de uma saída

aut
do metrô, encontramos D. Sandra, no lugar onde sempre fica, embaixo
de um grande viaduto, acendendo o fogo de seu fogão improvisado. Com

R
ela, estava Cláudio, que nos recebeu também muito receptivamente. Fiquei
impressionada com aquela cena, tão corriqueira para eles e tão diferente

o
para mim. Estavam em um grupo de sete pessoas – Luís cumprimentou com
um aperto de mão a todos e os chamou pelo nome. Com Luís, pareciam que
aC
todas as “portas” estavam abertas e de repente me senti sentada em uma
sala, participando do café da manhã daquele grupo de pessoas. A primeira
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

coisa que fizeram foi oferecer o café para nós e perguntar se não queríamos
sentar. Luís e eu nos sentamos junto com eles no chão, Larissa ficou em pé
visã
conversando com Cláudio, que tinha chegado junto com a gente.
Embaixo do viaduto, Seu Elton cozinhava algo com um cheiro muito bom
em uma lata de tinta em cima de dois tijolos que improvisavam um fogão a
itor

lenha. Dois deles, José e Aníbal, estavam com suas garrafas de plástico na
a re

mão e já tinham começado a beber sua cachacinha (o “desjejum”, me dis-


seram, rindo). Uma moça jovem, Deise, cortava três pães franceses no meio;
havia em um canto quatro copos de café, que ela me disse ter conseguido
em uma padaria da região. Reparei que, além disso tudo, os “quartos” já
estavam relativamente arrumados – haviam algumas caixas que separa-
par

vam onde D. Sandra e Deise dormiam – os homens dormiam em papelões


e seus cobertores estavam postos em cima de cada “cama”. Somente Seu
Ed

Jorge ainda estava na cama (era um dos mais velhos do grupo e tinha um
colchãozinho), e estava coberto com seu cobertor (apesar do calor que fazia
às 10h da manhã em novembro). Tinha um copo de café na mão. D. Sandra
ão

me mostrou a faca que fica ao seu lado enquanto dorme e disse que é sempre
complicado dormir perto de homens – mesmo que sejam seus amigos. Além
de tudo isso, Cláudio tinha um carrinho de supermercado cheio de coisas.
s

Fiquei impressionada em pensar que ali havia uma casa e um grupo que
ver

se organizava para manter aquele estilo de vida. Eram, de algum modo,


uma família. Justo ao lado, passavam muitas pessoas que saíam do metrô,
mas que pareciam tão imersas na correria cotidiana, que literalmente não
olhavam para o lado e um pouquinho mais adiante para vê-los. Curioso
pensar que talvez essa distância os permita ficar invisíveis e criar toda
aquela organização, bem no meio de carros e pedestres, metrôs e ônibus.

2 Os nomes dos participantes são fictícios de modo a preservar o anonimato.


204

Durante o café, D. Sandra falou que voltou a beber novamente e que


Cecília (uma mulher que mora por lá) parou de beber, mas continua
fumando muito crack. Ela disse que parou de ir ao CAPS por um tempo,
mas que logo vai voltar a tomar as medicações todos os dias novamente.
Achei engraçada a lógica, já que ela vai dar um tempo das medicações

or
tomando cachaça (e segundo Larissa, também usando crack). Disse que
seu corpo precisava de um tempo daquelas medicações (antidepressivos

od V
associados a um antipsicótico forte) para se recuperar. Ela precisava todos

aut
os dias ir ao CAPS para tomar medicação e muitas vezes não recebia os
remédios porque mostrava sinais de embriaguez. Ficamos um pouco com

R
eles e seguimos por uma avenida de grande fluxo, em direção a uma rua
de comércio ali no centro. Pouco dias depois, Luís me disse que o rapa

o
passou e pegou tudo o que tinham, mas que no outro dia de manhã estavam
por lá novamente (Trecho de diário de campo, 03/11/2010).
aC
Neste dia, eu pude participar do espaço público de modo diverso do que

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estava acostumada, uma forma de habitar a rua como nunca antes havia expe-
rienciado. Claro que já havia visto este tipo de situação outras vezes – como
visã
os transeuntes que por ali passavam e que viam apenas de relance aquela
reunião –, mas participar dela e compor aquele momento com aquele grupo
nos fez repensar que lugar é esse a que chamamos rua.
itor

Esse esforço de refletir sobre a rua como um lugar habitado diferente-


a re

mente durante as épocas, marcado pelos relacionamentos de caráter público,


só faz sentido se pensarmos as suas transformações, as suas mutações em
consonâncias com processos sociais outros enfrentados pelas sociedades. É
nesse âmbito que destacamos um processo fundamental para compreender-
par

mos os modos como hoje a rua é habitada: uma transformação no cenário do


governo das ruas, a partir do desenvolvimento da vida privada e a sua paulatina
Ed

contraposição com o mundo público.

O governo das ruas: florescimento da vida privada e esvaziamento


ão

da esfera pública

No prefácio do primeiro volume da “História da Vida Privada”, Duby


s

(2009) ressalta o contraste entre os mundos da vida privada e da vida pública


ver

expresso nos vocabulários do senso comum desde muitos anos atrás. No cerne
deste contraste, o autor aponta uma oposição fundamental: de um lado encon-
tramos a intimidade e segurança da vida privada – considerada como uma zona
de imunidade devido ao recolhimento, à familiaridade e à vida doméstica – e
de outro, o mundo do público – onde é preciso defender fachadas e imagens
de prosperidade pessoal, além de proteger-se dos perigos externos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 205

Como raiz do processo que opôs estes dois âmbitos da vida moderna,
Duby (2009) aponta a hipervalorização da intimidade, testemunhada pela
Europa do século XVIII quando do desenvolvimento das cidades e dos centros
urbanos. O século XVIII constitui-se como a época em que o fortalecimento
do comércio e da nova classe social emergente – a burguesia – estimulou a

or
vida pública das cidades, que então estavam em pleno desenvolvimento.

od V
O processo de hipervalorização das relações íntimas aparece neste con-

aut
texto como central para a compreensão acerca do desenvolvimento de estra-
tégias de governo voltadas ao controle e disciplinamento do espaço público.
Segundo Duby (2009), desde a Idade Média assistimos o fortalecimento do

R
conflito entre essas duas esferas. A rua, nesse processo, foi palco de disputas
entre uma burguesia em ascensão e um Estado também fortalecido que tinha

o
no príncipe sua representação. Foram nas ruas das cidades que muitas das
aC
guerras, revoltas e levantes foram travados, e foi em direção a elas que se
desenvolveram modos de governo que tentavam acompanhar as transforma-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ções sociais e o crescimento das cidades e zonas urbanas. O próprio poder


soberano por muitos anos fez-se funcionar a partir de uma exposição constante
visã
de seu poder em via pública – era nas ruas que a força da lei soberana deveria
ser encarnada nos rituais públicos dos suplícios.
Nesse contexto, desde muito tempo, a rua serviu ao governo das cidades.
itor

Além de se constituir como palco para que o Estado soberano sustentar seus
a re

abusos de poder, ela mesma, pouco a pouco, passou a ser considerada lugar
perigoso, uma vez que era habitada somente por grupos a quem o Estado
não conseguia controlar – os desempregados, os andarilhos, os ladrões, os
vagabundos, as prostitutas, e também aqueles que se reuniam em revoltas e
par

manifestações populares. A rua era o lugar do povo, onde era possível algum
tipo de resistência coletiva, mesmo que pouco organizada ou momentânea.
Ed

Diante deste tipo de cenário comum de revolta e motim popular, certo


governo deste lugar tido como no man’s land social (“terra de ninguém”) pas-
sou a ser necessário através do controle das ruas e das estradas, exercido pelo
ão

recém-nascido Estado-Nação enquanto modelo de governo europeu. O espaço


público, pouco a pouco, passou a representar a possibilidade de fuga institucio-
nal e liberdade ocasional, além de se constituir como um lugar que permitiria a
s

reunião desses indivíduos, que em coletivos – mesmo que não organizados poli-
ver

ticamente – representariam um obstáculo para seu controle e disciplinamento.


Mas como disciplinar o espaço público? Como normalizar esse lugar
onde o caos, o impensado, o imprevisto podem acontecer entre pessoas que
não se conhecem? Em “Vigiar e Punir”, Foucault (1987) desenvolveu a sua
reflexão sobre o papel estratégico oferecido às instituições dentro do projeto
de disciplinamento da sociedade do século XVIII e XIX. Para o autor, as
instituições constituem-se como uma série de comportamentos, regras e leis
206

organizados, propostos com o objetivo de criar novas formas de relaciona-


mento social entre pessoas que ocupam posições de poder hierarquicamente
diferentes. Tais dispositivos disciplinares necessitam ser levados a cabo atra-
vés de materialidades específicas: edifícios especialmente desenvolvidos –
fábricas, escolas, prisões – que têm como função suplementar o exercício

or
de poder. Segundo Tirado e Domènech (2001), a disciplina, pensada por

od V
Foucault como um dispositivo de normalização, sempre esteve baseada em

aut
um exercício de poder que comporta uma dimensão institucional, e que esta
depende intrinsecamente das materialidades oferecidas pelos edifícios para
que seus mecanismos pudessem funcionar.

R
Mas como pensar em uma instituição para disciplinar o espaço público,
se a própria rua por definição é o espaço do fora? Afinal, onde há edifícios

o
materiais, não há rua. Assim, como institucionalizar a rua no sentido oferecido
aC
por Foucault – como exercício de poder suplementado por estas tecnologias
materiais, por edifícios especialmente desenhados para controlar, disciplinar e

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normalizar? Que outras estratégias de governo foram necessárias segundo essa
tentativa de minimamente controlar os acontecimentos das ruas, as articulações
visã
diversas e as reivindicações e resistências que poderiam aí ser sustentadas?
Ora, com o passar dos anos, foi necessário o desenvolvimento de outras
tecnologias para governar o público. Segundo Castel (2009), a polícia apareceu
itor

neste contexto como uma tecnologia que exerceu e ainda exerce esse papel
a re

regulador e mantenedor da ordem social – suas rondas constantes obedecem


ao imperativo de controle dos comportamentos de todos que ali estão e não
somente daqueles considerados perigosos ou desviantes.
Uma vez que disciplinar as ruas não poderia acontecer com o auxílio
par

de edifícios, outras instituições foram necessárias, que operavam muito mais


focadas nas pessoas que dela deveriam participar. Se as instituições não podem
Ed

ser criadas nas ruas, as pessoas que aí habitam podem ser institucionalizadas
em edifícios, e assim, afastarem-se das ruas. Albergues, casas de mendicância
e hospitais destinados a mendigos e vagabundos foram especialmente desen-
ão

volvidos com este intuito.


No contexto europeu onde foi desenvolvida a governamentalidade envol-
vida na Razão do Estado – que podemos localizar desde o final da Idade Média
s

até meados do século XVIII –, foi gerado um modo de intervenção direcio-


ver

nado a algumas “populações” que representavam risco social e que, pouco


a pouco, se tornaram alvo destas estratégias de controle. Historicamente, as
pessoas em situação de rua destacam-se neste projeto de disciplinamento do
espaço público; e uma verdadeira “perseguição” histórica foi e parece ainda
ser travada nos interstícios de nossas cidades.
Por oposição ao espaço privado da casa, a rua pouco a pouco foi identi-
ficada ao caos e a falta de ordem, um anti-lugar onde só poderiam proliferar a
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 207

doença e o vício. Assim, a rua passou a ser evitada pelas classes dominantes,
enquanto a casa passou a ser progressivamente investida – o que efetivamente
resultou em uma complexificação e individualização dos espaços internos,
como forma de salvaguardar a intimidade.
No entanto, esse movimento não pode ser generalizado: nas classes popu-

or
lares, a relação entre a casa e a rua se dava de outra forma – esse processo

od V
aconteceu muito mais lentamente e dependeu de reformas de caráter higienis-

aut
tas realizadas somente em princípios do século XX. Desse modo, a experiência
da rua como caos não é hegemônica e fala muito mais de um movimento
nos costumes que começou com as classes dominantes. Duas experiências

R
da rua e do espaço público, portanto. E uma só política de normalização que
partiu dos interesses e transformações relativos aos hábitos, comportamentos

o
e relacionamentos da classe dominante em direção à toda sociedade.
aC
Essa dupla “natureza” da rua ainda pode ser sentida atualmente em cidades
pequenas do interior e também nas nossas grandes cidades: ainda hoje essa
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

relação simbiótica com o espaço público pode ser sentida a partir da experiência
de viver em bairros populares, muito povoados e com ruas estreitas. O dormir e
visã
viver nas ruas também nos falam de uma outra experiência, muito mais integrada
com esse espaço considerado por muitos como anti-lugar. Vale ressaltar que por
trás dessa clivagem sentida atualmente pelos habitantes das grandes cidades há
itor

uma história antiga, intimamente relacionada com a valorização da intimidade


a re

em uma sociedade que se fortalecia politicamente em torno da figura do Estado


e economicamente, através de relações de caráter capitalista.
Mas nem sempre e em todo lugar encontramos essa imposição aos lou-
cos de rua de um tratamento em uma instituição, seja hospital psiquiátrico
ou mesmo clínica de caráter fechado. Por muito tempo e ainda atualmente
par

nas cidades do interior do país, a loucura de domínio público fazia parte da


paisagem – cada lugarejo tinha (e, no caso das cidades do interior, ainda têm)
Ed

seus loucos oficiais e as pequenas cidades e vilas acolhiam essas personagens


do “teatro do mundo”, socializando com elas e integrando-as na memória
coletiva de seus habitantes acerca daquele lugar. De acordo com Ferraz (2000),
ão

tais andarilhos acabavam por representar um papel para as cidades, aguçando


a curiosidade e a imaginação populares. A partir de suas vidas, e da loucura
s

encenada em praça pública, lendas eram construídas e contadas, integrando


ver

o imaginário social da cidade acerca dessas figuras populares.

Daí o aparecimento de uma série de histórias que versavam sobra a vida


dessas pessoas e que se foram tornando parte do repertório da narrativa
oral comunitária, sendo transmitidas de pessoa a pessoa oralmente e atra-
vessando as gerações que as conheceram. Essas histórias, algumas vezes,
ganhavam um colorido fantástico, como que impregnadas pela própria
“desrazão” inerente a seu protagonista (FERRAZ, 2000, p. 229).
208

O que aconteceu em nossas cidades grandes, que perdemos essa potência


de interação e até mesmo continência e cuidado com os nossos loucos de rua?
Por que passamos a tratar pessoas em situação de rua como loucas e doentes,
assumindo assim um distanciamento e imputando a elas um tratamento que
ainda se fundamenta na exclusão, segundo a lógica de sequestro, de reclusão

or
dos resíduos de nossa sociedade?

od V
De Leonardis (1998) ressalta como, ainda nos dias atuais, a função da

aut
psiquiatria segue sendo a administração dos resíduos da sociedade (resíduos
institucionais), mesmo após o processo de desinstitucionalização que vem
sendo implementado nas sociedades que aderiram às reflexões do movi-

R
mento antimanicomial. Nesta análise, a autora salienta o caráter classista
da instituição manicomial destinada à expulsão e repressão dos setores mais

o
pauperizados da população, das classes consideradas marginais e, portanto,
aC
perigosas. Não é surpresa ainda nos dias atuais encontrarmos no quadro de
pessoas internadas em hospitais psiquiátricos quase que inteiramente pessoas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


advindas da camada mais vulnerável da população.
Dois problemas contemporâneos foram herdados desta organização
visã
comunitária: o medo exacerbado de todos aqueles externos ao grupo social
que são considerados como ameaças à integridade desta identidade forjada, e o
risco de fratura social devido à pouca coesão e à fragilização dos vínculos das
itor

comunidades. Nessa confusão entre o público e o privado há uma recusa do


a re

indivíduo em participar das decisões públicas, retraindo-se à esfera do íntimo,


do privado. Para o autor, isso impede as pessoas de verem uma importante
função da cidade como local de encontro entre estranhos.
Afinal, por que o espaço da rua acabou sendo habitado e experienciado
par

desse modo somente por aqueles que não possuem um lar recolhido e privado?
Não seria surpresa perceber os efeitos desta invisibilidade também na pesquisa
Ed

sobre essas pessoas – um olhar normalizador não estaria atento às nuances da


vida nas ruas e encontraria apenas sintomas. Dispor-se a este tipo encontro é
permitir a emergência de uma verdade-acontecimento (Foucault, 2006), cujos
ão

efeitos políticos reverberam na produção de um saber necessariamente plural.


Em nossos dias, a diminuição do espaço público (ou seu controle e sele-
tividade de horários) implica em maior visibilidade das pessoas em situação
s

de rua, o que efetivamente tem um correlato: o aumento da repressão a essas


ver

pessoas, seja por vias oficiais (realizadas por meio de abordagens policiais ou
de agentes de proteção), seja por meios não oficiais (realizados por pessoas que
se sentem no direito de agredir e até mesmo matar pessoas em situação de rua
que dormem nas ruas). O cuidado à saúde não pode prescindir de uma análise
conjuntural deste campo de forças, sob o risco de tornar-se individualizante,
alienado e por vezes violento. Neste âmbito, os mais novos dispositivos de
atenção e da pesquisa oferecidos no processo de aproximação dos territórios
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 209

existenciais dos seus usuários precisam estar absolutamente atentos sob que
imperativos os atravessam: os ditames da normalização e disciplinamento ou
a afirmação de uma ética de respeito e convivência à alteridade?
Muitas vezes na raiz da violência institucional e do preconceito reside
a falta de conhecimento, tanto na esfera da vida pessoal quanto por parte

or
das políticas públicas. Na vida cotidiana, topar com pessoas em situação

od V
de rua aqui e ali não é raro, porém muitas vezes um contato real, ou mesmo

aut
um diálogo parece muito distante para muitos. Há muitos mitos sobre as
pessoas em situação de rua. Nesse sentido, tanto as pessoas individualmente,
como as instituições (com seus profissionais ancorados em políticas públicas)

R
reproduzem relacionamentos estereotipados com essas pessoas, sem conhecer
minimamente seu contexto, suas características e modos de vida.

o
Para dialogar com a expectativa de realizar uma pesquisa junto às pessoas
aC
em situação de rus oferecendo às suas vivências e experiências de mundo um
lugar central e as posicionando como possíveis coautoras da pesquisa, seria pre-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ciso construir vínculos de proximidade e confiança, que somente uma pesquisa


de inspiração etnográfica permitiria. Aqui, apostamos na potência da pesquisa
visã
etnográfica, diante da exigência de imersão no território das ruas que este desenho
metodológico envolve, permitindo justamente que a produção da saúde amplie
sua análise a partir do encontro com o mundo da vida, transversalizado pelas for-
itor

mas históricas de produção de políticas, como modos de governo da vida social.


a re

Para entender de forma mais aprofundada o que esse método pode ofe-
recer à Psicologia em sua compreensão sobre o território da rua, de seus
habitantes e dos cuidados à sua saúde mental, é fundamental que possamos
partir do desenho desta investigação.
par

O desenho da pesquisa – como se delineia o campo em um


Ed

território sem bordas

Partimos da hipótese de que o campo da Saúde, e em especial da Saúde


ão

Mental, não tem sistematicamente elaborado tecnologias de cuidado que coa-


dunem com as reflexões relativas à pobreza/pauperização (TELLES, 1994) e
aos processos de desfiliação (CASTEL, 2008). Entretanto, vale ressaltar que
s

experimentações quanto a novas intervenções estão surgindo isoladamente


ver

em todo o país, o que indica certa mudança nos processos de trabalho dos
serviços de Saúde e Saúde Mental que atendem essa população. Vale a pena
citar os Consultórios de/na Rua, por exemplo, que surgiram na esteira dessas
inovações, mas estão atualmente em franco desmonte após a Redução de
Danos ter sido excluída como paradigma do cuidado à usuários de substâncias
psicoativas nas diretrizes da Política Nacional sobre Drogas a partir da Nota
Técnica nº 11/2019 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019).
210

De todo modo, a Reforma Psiquiátrica não se voltou mais especifica-


mente para essa parcela da população, e não elaborou um projeto sistemático
e nacional que apontasse diretrizes de atuação, dispositivos práticos, equi-
pamentos e tecnologias singulares destinadas a uma população que requer
cuidados específicos a serem realizados por profissionais que reflitam sobre

or
suas práticas e suas concepções sobre as pessoas em situação de rua, suas

od V
necessidades, seus sofrimentos. E, desse modo, não os escutou de forma

aut
cuidadosa e não se aproximou das suas vidas, de seus territórios existenciais.
Nossa pesquisa buscou durante um ano acompanhar o relacionamento
entre uma equipe do Programa de Saúde da Família Sem Domicílio e algumas

R
pessoas em situação de rua, tentando compreender as estratégias exercidas em
cada ponto nodal para a construção de versões acerca das pessoas em situação

o
de rua em sofrimento mental, que vão além das versões voltadas à persona-
aC
gem louco de rua quase folclórica de nossa história urbana. Propomo-nos a
investigar como se configura a rede de atenção e cuidado destinada às pessoas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


em situação de rua em sofrimento mental pelas políticas públicas, atentando,
portanto, para os relacionamentos entre essas pessoas e os profissionais e ins-
visã
tituições de saúde. Além disso, pretendemos investigar como se articulam as
intervenções em Saúde para pessoas em situação de rua, em especial, ao expe-
rienciarem sofrimento considerado como sendo da ordem da doença mental.
itor

Acompanhar, a partir de situações-problema, como são acionadas redes


a re

de cuidado e sobrevivência frente às necessidades de saúde de pessoas em


situação de rua, incluindo os recursos familiares, sociais e institucionais acio-
nados, nos permitiu aproximarmos desse fenômeno tão complexo, convocando
reflexões acerca dos projetos de normalização e institucionalização que podem
par

perpassar nossas intervenções no campo da saúde, assim como compreender


a potência das relações de cuidado, que estão configuradas dentro da esfera
Ed

da ética, que têm por objetivo potencializar liberdades e empoderar sujeitos.


Por se constituir como um fenômeno complexo – que admite distintas
e por vezes contrastantes versões –, sempre mutável e extremamente rela-
ão

cionado com as nuances da sociedade em que está inserido, tomar o viver


nas ruas como foco de estudo oferece desafios ao pesquisador, resistências e
transformações que se impõem cotidianamente. Como estudar um campo de
s

transformações e resistências?
ver

Frente a esse desafio, consideramos adotar uma estratégia de pesquisa


também móvel, maleável, que permitisse certa adaptação paulatina entre a
pesquisadora e os sujeitos da pesquisa e o contexto da rua (que por si só
exige certa aproximação paulatina e certo respeito aos hábitos e pactos de
circulação e de informação). Nesse sentido, decidimos acompanhar durante
um ano uma equipe do Programa de Saúde da Família Sem Domicílio em
suas aproximações e relações de cuidado com pessoas em situação de rua,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 211

especialmente acompanhando casos de sofrimento psicossocial considerados


do âmbito da doença mental.
Assim, além da equipe de Saúde da Família, essa pesquisa contou com
a colaboração de pessoas em situação de rua que estavam configurando rela-
cionamentos com redes heterogêneas de cuidado e vínculo no âmbito das

or
políticas públicas voltadas para essa população e que estavam sendo atendi-

od V
das por serviços de saúde por conta de queixas (próprias ou de terceiros) a

aut
respeito de sua saúde mental.
Para compreender as redes de relacionamentos institucionais, sociais e
pessoais acionadas por pessoas em situação de rua foram realizadas aproxi-

R
mações de caráter etnográfico como forma de acompanhar o cotidiano dessas
pessoas e suas aproximações paulatinas dos serviços de Saúde/Saúde Mental.

o
O método ou desenho de tipo etnográfico foi privilegiado por permitir, segundo
aC
Caprara e Landin (2008), o diálogo entre as construções interpretativas do(a)
pesquisador(a) e das pessoas estudadas de modo coconstruído, o que coaduna
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com a orientação construcionista da pesquisa. Para Clifford e Marcus (1986),


a etnografia tem como premissa o modelo dialógico, o que permite abandonar
visã
qualquer ideal de “pura objetividade”, pressuposto pela autoridade etnográfica,
em direção ao desenvolvimento de um modelo polifônico, baseado no diálogo
entre o etnógrafo e os participantes de pesquisa, fundamentado em negociações
itor

constantes dos significados das experiências das pessoas em interação no campo.


Para Caprara e Landim (2008), é necessário atentar para os posiciona-
a re

mentos envolvidos na relação etnográfica entre pesquisador(a) e pesquisado(a),


o que aponta para as diferentes experiências de suas vidas, suas teorias e
modos de compreender o mundo, que passam a dialogar no encontro como
uma escrita polifônica. Essa atitude exigiu um reposicionamento dos atores
par

ao longo da pesquisa, à medida que o encontro de horizontes permitisse a


construção de verdades conjuntas e novas. Desse modo, as interpretações
Ed

realizadas foram muitas vezes apresentadas e negociadas com os participantes


da pesquisa, tanto com a equipe de Saúde da Família, quanto com as pessoas
em situação de rua, quando possível3. Na escrita do diário de campo, tais ver-
ão

sões foram postas em diálogo – o discurso que tenta narrar os acontecimentos


vividos está atravessado e atravessa essas versões.
A etnografia é um recurso que permite a aproximação com o ethos da rua,
s

com os relacionamentos, as socialidades e as materialidades que compõem esse


ver

personagem do mundo moderno (Latour, 1994). Foi preciso seguir, portanto,


os modos como os acontecimentos experienciados, em que materialidades e

3 A dinâmica da rua nem sempre permitiu que a pesquisadora e a equipe de saúde encontrassem cotidiana-
mente as pessoas em situação de rua nos locais onde costumam dormir. Por estarem sempre se movimen-
tando ou mesmo mudando de localidade, nossas compreensões sobre alguns casos não conseguiram ser
compartilhadas com as pessoas em situação de rua. De qualquer modo, todos os casos foram discutidos
com a equipe de Saúde da Família.
212

socialidades estão envolvidas, são articulados em conexões de sentido que


permitem a emergência cotidiana de pessoas em situação de rua como doentes
mentais. Estas situações foram registradas em diário de campo. Os diários de
campo constituíram-se, portanto, nesse amálgama composto por elementos de
distintas naturezas presentes no cotidiano de pesquisa e onde vozes diversas

or
puderam dialogar, em construção conjunta.

od V
aut
A ética dialógica como princípio metodológico

Essa aproximação paulatina com um mundo ao mesmo tempo estranho e

R
familiar fundamenta-se muito mais em uma postura de investigação (que conta
com a interpretação ativa que mescla diferentes perspectivas) do que em técnicas

o
específicas. Este “concreto vivido” pelo(a) pesquisador(a) etnógrafo(a) deve
aC
orientar-se, segundo Magnani (2002), por uma imersão na cidade (ou no “pedaço”
da cidade que lhe cabe) e sobre sua dinâmica, de modo a tentar compreender de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


perto e de dentro como seus habitantes se organizam e vivem cotidianamente:
visã
Esta estratégia supõe um investimento em ambos os pólos da relação:
de um lado, sobre os atores sociais, o grupo e a prática que estão sendo
estudados e, de outro, a paisagem em que essa prática se desenvolve,
itor

entendida não como mero cenário, mas parte constitutiva do recorte de


a re

análise (MAGNANI, 2002, p. 18).

Adentramos, portanto, nas práticas cotidianas, concebendo que também


no mundo da vida as pessoas utilizam de estratégias em rede para sustentar
práticas sociais. Seguir a trilha destas estratégias cotidianas, emaranhadas nos
par

territórios concretos e existenciais vividos pelos habitantes das ruas do centro


de São Paulo, nos permitiu acompanhar este fenômeno social (relacionado às
Ed

pessoas em situação de rua consideradas loucas de rua ou doentes mentais).


Seguir de perto e de dentro (Magnani, 2002) tais movimentos nos permitiu
acompanhar os efeitos concretos de políticas públicas, que cotidianamente
ão

são engendradas institucionalmente em relação às pessoas que se encontram


em situação de precariedade e desfiliação social, vivendo nas ruas.
Quanto ao nosso posicionamento frente às pessoas em situação de rua
s

e aos trabalhadores da equipe de saúde da família que acompanhamos, nos


ver

inspiramos na discussão realizada na investigação levada a cabo por Snow


e Anderson (1998), sobre a posição de “pesquisador-camarada”. De acordo
com os autores, uma aproximação com o universo das pessoas em situação de
rua exige certa adaptação e uso de linguagem que facilitem a comunicação e
identificação. Assim, no campo me posicionei como camarada, a partir de uma
ética dialógica, me diferenciando dos profissionais da equipe e oferecendo
uma escuta curiosa e atenta a quaisquer conversas que pudessem vir à tona,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 213

mesmo que estas à princípio não fossem de interesse direto da investigação


ou tivessem a ver com o quesito saúde. De certo modo, posso dizer que atrasei
um pouco o trabalho dos agentes comunitários, já que as visitas eram muito
mais demoradas quando eu estava presente.
Além disso, a aproximação de pessoas em sofrimento psíquico exige certa

or
abertura à compreensão de mundos e interpretações por vezes difíceis de serem

od V
compartilhadas. Somada à vida nas ruas, a experiência do sofrimento psíquico

aut
representa um verdadeiro desafio de compreensão e interpretação ao pesquisa-
dor(a). Também neste caso, a atitude etnográfica representa uma postura mais
dialógica: de acordo com Dalmolin e Vasconcelos (2008), a abordagem etnográ-

R
fica de pessoas em sofrimento psíquico permite a aproximação com a perspectiva
dos sujeitos que vivem esta experiência “a fim de ampliar a compreensão do

o
sofrimento psíquico e estabelecer as próprias relações interpessoais como guia
aC
de percurso. A abordagem etnográfica seria útil pela sua tradição em estudos
que privilegiam a compreensão dos padrões culturai.” (p. 50).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Acompanhamos, portanto, as íntimas relações entre uma equipe de saúde


e pessoas em situação de rua consideradas doentes mentais, vivendo uma
visã
parte de seu cotidiano junto com eles. Vale ressaltar que, antes de tudo, foi
necessária uma negociação de meu papel como pesquisadora com a equipe.
Em uma reunião de equipe, após apresentar o projeto de pesquisa e a proposta
itor

da investigação, fui recebida como pesquisadora e assim posicionada. Com


a equipe, pude ser introduzida aos seus relacionamentos com os usuários da
a re

UBS e também participar dos modos como eles se relacionavam com o mundo
das pessoas em situação de rua. Assim, também com elas, pude me posicionar
como pesquisadora – meus relacionamentos com elas foram marcados por
este posicionamento necessariamente diferente.
par

Como o universo da rua tem suas regras de convivência, seus pactos e


territorialidades, acompanhei no campo a equipe da Saúde da Família somente
Ed

onde acharam prudente a minha presença, cuidando para que todos se preser-
vassem. À noite, portanto, a pesquisa não foi realizada, mesmo sabendo que o
universo das ruas adquire novas características e pactos, exigindo estratégias de
ão

sobrevivência bem diferentes das diurnas. Conversas sobre os acontecimentos


das noites foram realizadas para que tais situações não fossem negligenciadas.
Esse percurso de pesquisa, experienciado em situações diversas, foi rea-
s

lizado através da discussão de cenas analisadoras e casos acompanhados mais


ver

proximamente. Nesse sentido, vale ressaltar que a análise do material discursiva-


mente narrado nos diários de campo através destas cenas e casos fundamenta-se
na interpretação – ou seja, em uma postura que assume que a própria escrita do
diário de campo encarna e atualiza os relacionamentos entre os acontecimentos
experienciados, a visão de mundo e as leituras político-ontológicas da pesqui-
sadora e dos outros atores sociais presentes. Desse modo, a interpretação não
está somente no momento de análise do diário de campo, mas antes mesmo – na
214

própria escrita do diário. Esta primeira escrita, já necessariamente interpretativa,


dialogava muito mais com os acontecimentos vividos e com as perspectivas dos
participantes. Este texto nada mais é do que uma segunda interpretação, uma
volta a essa primeira narrativa, realizada dessa vez em diálogo mais profundo
e mais explícito com o pensamento social, organizada em um argumento que

or
pretende defender dialogicamente, segundo as regras e convenções da academia,

od V
algumas reflexões sobre o desabrigo e o sofrimento mental – ou se quisermos

aut
ser provocativos, algumas verdades em que apostamos.
Durante um ano de imersão neste campo de saberes e práticas, de regras e
hábitos, pudemos acompanhar diversas cenas do relacionamento entre pessoas

R
em situação de rua e instituições voltadas para elas, cenas estas que falam
dos modos como estratégias de governo estão sendo conformadas em nossa

o
contemporaneidade. Além disso, acompanhamos de modo mais aprofundado
aC
dez pessoas em situação de rua que, por conta de dificuldades e sofrimentos
considerados como sendo expressões de doenças mentais, estabeleceram rela-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


cionamentos diversos com as redes de saúde e saúde mental. Tivemos acesso
também aos prontuários familiares desses dez casos, onde pudemos entrar
visã
em contato com diversas perspectivas profissionais e intervenções registradas
nesses documentos. Buscar esses elementos heterogêneos que compõem o
campo da pesquisa é fundamental para a uma compreensão mais alargada e
itor

posicionada no âmbito do desabrigo e do sofrimento mental.


a re

Os trechos do diário de campo ajudam a expor as nossas interpreta-


ções, necessariamente subjetivas, contextuais e relacionais, pensadas como
narrativas de um percurso, de uma trajetória, de uma aproximação com um
mundo cujas regras, hábitos e modos de relacionamento foram experiencia-
par

das a partir de estranhamentos e familiaridades singulares. Além disso, os


trechos de prontuários dos dez casos acompanhados podem ser convocados
Ed

para a conversa, pensados como um registro condensado de intervenções e


compreensões materializado pelos profissionais que cuidaram de cada caso.
Essas cenas e casos são então integrados, portanto, às análises de cunho
ão

contextual e teórico, em articulação com trechos de jornais e notícias relacionados


ao tema, poemas e fotos – outros discursos que podem ajudar a pensar os modos
como são consideradas as pessoas em situação de rua em nossa sociedade.
s
ver

A potência do cuidado e o risco da tutela e da normalização

Partimos do princípio de que não podemos desvincular a encenação de


sua loucura de seu palco fundamental: as ruas ou o espaço público por exce-
lência. Para essas pessoas, a relação da loucura com a rua é constituinte e não
pode ser considerada como arbitrária ou acidental. Aquele que vaga pelas ruas
exibindo sua loucura para os habitantes da cidade experiencia seu desvio na
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 215

tensão com o espaço – sua loucura reside e é constituída justamente nesse


embate com o público, nessa insistência em produzir um desvio e publici-
zá-lo nas ruas no embate com os habitantes da cidade. Sua existência exige
um modo de relacionamento com as ruas que escapa aos moldes da divisão
público-privado, nos desafiando a compreender seus arranjos bizarros na

or
cidade e no uso do espaço público.

od V
Assim, não importa saber se é a loucura o fator que desencadeou a vida

aut
nas ruas ou o contrário, algo que nem mesmo estudos que atendem essa agenda
psiquiátrica conseguiram provar (LOVISI; LIMA; MORGADO, 2001). A

R
importância dada às questões de saúde mental entre a população em situação de
rua superestima essa característica, ao mesmo tempo em que negligencia outras.
Basta afirmarmos que qualquer tentativa de aproximação com este universo

o
apresentado pela loucura em domínio público tem que levar em consideração
aC
que as condições de vida e de vulneração podem ampliar ou mesmo fomentar
sofrimentos mentais, trazendo para o centro da análise as implicações entre o
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sofrimento psíquico grave e as vulnerabilidades sociais, econômicas e relacionais


visã
(entre as quais destacamos a fraca inserção no mercado de trabalho, a baixa esco-
laridade, a fragilidade dos vínculos familiares e condições de moradias precárias).
Podemos afirmar que a loucura em domínio público vem historicamente
sendo alvo de diversos empreendimentos no campo da assistência social e
itor

da saúde (mental) e podemos mesmo dizer que, se não há um projeto de


a re

medicalização dos loucos de rua sendo implementado, há, na melhor das


hipóteses, efeitos claros de institucionalização a partir de novas práticas de
cuidado ainda em elaboração.
Cabe aqui nos perguntarmos quais são as estratégias biopolíticas que
par

podem estar sendo levadas a cabo para controlar e regular grupos populacio-
nais considerados anormais (e aqui, nos perguntamos sobre a população em
Ed

situação de rua) – quais são as novas ferramentas biopolíticas elaboradas em


direção ao governo de populações, que não mais têm como objetivo o dis-
ciplinamento de indivíduos e não precisam contar somente com instituições
ão

de contenção e exclusão? Como os saberes e práticas envolvidos no campo


da saúde mental estão articulados com este projeto de governamentalidade?
Quais são os seus efeitos na sociedade (psiquiatrização, medicalização)?
s

A administração e tutela da periculosidade continua como resíduo institu-


ver

cional de uma psiquiatria fundada nos manicômios, mesmo que ela atualmente
tenha se deslocado para outro lugar institucional, assumindo um papel de
prevenção e reabilitação, próprio da psiquiatria comunitária ou social. Apesar
de todas as novas funções comunitárias assumidas pela saúde mental, a inter-
nação permanece como fantasma a assombrar o cotidiano da prática em saúde
mental para as pessoas em situação de rua. Diante da crise psicótica, a velha
função de administração do resíduo perigoso pode ressurgir e a internação
216

ainda aparece como solução crônica de uma rede em saúde mental que não
consegue sustentar a diferença no território.
A crítica à Reforma Psiquiátrica que a acusa de desospitalização pura e
simples não compreende o papel da clínica em saúde mental na sociedade e
pode até mesmo ser considerada ingênua, dada as funções biopolíticas que

or
podem ser direcionadas à comunidade. Começamos então a perceber que a

od V
simples investida psi em direção a uma clínica no território não representa em

aut
si mesma a solução dos problemas – veremos que seria preciso uma crítica
muito mais fundamental aos modos como são tratadas as pessoas consideradas

R
doentes mentais e loucas, para efetivamente conseguirmos dar conta de um
verdadeiro processo de desinstitucionalização.
Para que a escuta aconteça de modo sensível às peculiaridades de cada

o
pessoa, respeitando seus desejos e limites vinculares, é preciso construir uma
aC
clínica que adentre os territórios existenciais dessas pessoas, tentando com-
preender a função mesma da rua para seu sofrimento e vulnerabilização, assim

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


como para sua sustentação psíquica e afetiva-relacional. Não há como seguir
visã
essa trilha sem assumir o caráter ético e político da pesquisa e das intervenções
em saúde mental. Quando diferentes instituições cooperam entre si, e implicam
a pessoa em sofrimento nas relações de cuidado, estabelece-se uma clínica
potente, que tem nos vínculos entre profissionais e usuários sua força maior.
itor

No caso das pessoas em situação de rua em sofrimento psíquico, o desafio


a re

mais instigante é colocar o sofrimento e suas relações com a cidade, com o


público, com as vulnerabilidades e estilos de vida, no centro das relações de
pesquisa e cuidado – e isso não é tarefa fácil. Uma escuta atenta e sensível a
essas configurações e cenários é o desafio – não é possível fomentar a saúde
par

mental sem as invenções exigidas por tal escuta. À armadilha da instituciona-


lização em espaços de segregação da doença mental e da pobreza, devemos
Ed

responder com as invenções do cuidado no território aberto da saúde mental,


no espaço entre instituições. O campo institucional da saúde mental deve
respeitar e aprender com o Programa de Saúde da Família Sem Domicílio (e o
ão

Consultório na Rua), e com ele criar relações de cooperação íntimas que esca-
pem às formas institucionais de cuidado estabelecidas no cenário protegido
dos edifícios dos serviços substitutivos. E para tecer as redes-tramas (Lisboa,
s

2013), produtoras de saúde mental, é preciso levar o projeto de desinstitucio-


ver

nalização de dentro para fora dos serviços substitutivos, adentrando o espaço


mesmo onde nos deparamos com a vida real dessas pessoas: as ruas.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 217

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par
Ed
s ão
ver
O TRABALHO COM A NOVA HISTÓRIA
CULTURAL E A ANÁLISE DAS
PRÁTICAS DE PATRIMONIALIZAÇÃO

or
COM A PSICOLOGIA

od V
aut
Fernanda Cristine dos Santos Bengio
Dolores Galindo

R
Flávia Cristina Silveira Lemos

o
Neste capítulo propõe-se a problematização acerca das práticas de patri-
aC
monialização, a partir do uso da história cultural na interface com a Psicologia
Social. Este texto divide-se em três partes. Na primeira etapa foram abordados
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

aspectos gerais da Nova História Cultural, principalmente as contribuições de


Michel Foucault; posteriormente buscou-se situar o debate sobre as práticas
visã
de patrimonialização por meio da ênfase à tensão entre o aspecto humanista
que atravessa o dispositivo da patrimonialização e a crítica de Foucault à
ideia de continuidade histórica; e por fim essa problematização é situada na
itor

interface com a Psicologia Social e Educação.


a re

A Nova História Cultural e o patrimônio cultural como campo


de pesquisa
par

Dentro do complexo e rico arcabouço teórico que constitui a História


Cultural, a qual vem sendo construída desde 1800 (BURKE, 2008), figura
Ed

a Nova História Cultural que emerge como campo de pesquisa e profícuos


debates durante a década de 1970. Esse novo campo conta com nomes como
Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Jurgen Habermas.
ão

Considerando a perspectiva foucaultiana, sua crítica à história tradicional


e ao documento-monumento destacam-se como elementos de interesse às prá-
ticas de patrimonialização moderna. No bojo destas críticas, Foucault (2010)
s

problematiza a noção de memória coletiva como ferramenta da consolidação


ver

de uma história rememorativa que conduz as práticas à continuidade, buscando


apagar as contradições e descontinuidades inerentes ao acontecimento histórico.
Ao se ocupar da noção de documento, a Nova História Cultural informa
que a materialidade documental é forjada em relações imateriais que são
heterogêneas. Expurga então, a ideia de que o documento encerra em si o fato
histórico. Ganha força o processo de ampliação conceitual do documento,
concomitantemente à crescente multiplicação dos novos objetos da história.
220

Diante disso a visibilização de relações micropolíticas fornece novo


fôlego às narrativas orais como fontes documentais.

A “história vista de baixo” estabeleceu um diálogo dos mais ricos com a


história oral. Isto porque, de uma forma geral, estes personagens anôni-

or
mos, subalternos, oprimidos que ela buscava não tinham registros oficiais.

od V
Muitas vezes a forma para se chegar a estes personagens era o recurso às
fontes orais: tradição oral, entrevistas e depoimentos (ARAÚJO; FER-

aut
NANDES, 2006, p. 17).

R
Neste escopo a oralidade enquanto fonte não escapa às críticas severas.
São levantadas possíveis falhas da memória do entrevistado, o qual poderia

o
relatar uma artificial trajetória de vida, ao se autocelebrar, fantasiar, omitir
aC
ou mesmo mentir, como apontam Araújo e Fernandes (2006). O que não sig-
nifica, segundo essas autoras, que os documentos escritos estejam a salvo

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


destes possíveis.
É importante assinalar que a história oral se configura como um trabalho
visã
de pesquisa que faz uso das fontes orais. Por outro lado, a história oral pode
ser compreendida também como um conjunto de saberes de um grupo e/ou
povo que corporifica a tradição oral destes sujeitos. A tradição oral, em toda
itor

sua complexidade, possui ressonância no território, nos processos de territo-


a re

rialização/reterritorialização e nas relações intersubjetivas e intrassubjetivas


que ocorrem no espaço. Nessa direção a memória, em especial a memória
coletiva, é fundamental na constituição da tradição oral e da própria história
oral como campo de pesquisa, contribuindo com o processo de luta e reco-
nhecimento dos grupos subalternizados ao longo da história.
par

No recorte do patrimônio histórico e cultural, em especial da política


patrimonial brasileira, passa a visibilizar com maior amplitude os saberes
Ed

tradicionais a partir do Decreto Nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Neste


dispositivo jurídico se institui o registro de bens de natureza imaterial, além
de criar o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial. As ressonâncias pro-
ão

duzidas pela Nova História Cultural compõem as disputas discursivas pela


afirmação dos sujeitos e grupos nas relações de poder e saber tecidas na
s

sociedade contemporânea.
ver

Patrimônio histórico e cultural e a analítica foucaultiana

O estudo do patrimônio cultural se situa na tradição humanista que pensa


o homem em uma suposta condição natural e evolutiva de produzir cultura.
Etimologicamente a palavra patrimônio remonta à transmissão de bens mate-
riais e ao direito paterno de dispensar sua herança da forma que lhe couber.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 221

Pelegrini e Funari (2008) ressaltam que a noção moderna de patrimônio


emerge na França de 1789, período de grande agitação social e política que
ficou conhecido como Revolução Francesa.
Galves (2008) também assevera que nossa legislação sobre conservação
do patrimônio cultural é uma herança europeia, remetendo-se ao uso da palavra

or
patrimônio na sua dimensão econômica, jurídica e de estrutura familiar (bens

od V
familiares, heranças, propriedade). A partir da modernidade essa concepção de

aut
patrimônio enquanto herança passa a compor as práticas sociais eurocentradas
de acumulação de capital cultural.

R
Pelegrini e Funari (2008) explicam que a noção de patrimônio cultural
que emerge durante o século XVIII e XIX assinala o sentimento de naciona-
lidade e a necessidade da criação dos símbolos pátrios, além da criação dos

o
museus de antiguidade.
aC
Vale observar que o interesse pela “vida” durante o desenvolvimento da
modernidade se ocupará da figura do “homem” a partir da consolidação de um
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Estado Moderno capitalista, em consonância com as ciências sobre o homem,


em um movimento quase de autoprodução de uma demanda alinhada aos
visã
novos paradigmas sociais e históricos que emergem durante o século XVIII.
A modernidade, tomada como campo no qual se denota a finitude do
saber e do homem como fundamento filosófico, torna-se importante elemento
itor

do pensamento ocidental. A autocrítica e a autodestruição constantes, como


a re

marcas da modernidade, salientam essa esteira de pensamento dos séculos


XVIII e XIX. Esse sistema produz uma nova ruptura no campo do saber, apon-
tada por Foucault em As palavras e as coisas. Dessa maneira, vê-se inserida,
no centro do debate filosófico da época, a questão das condições transcenden-
par

tais de conhecimento que se apoiavam na metafísica (SILVA PINTO, 2010).


Essa importante ruptura descola a produção do conhecimento de um centro
Ed

transcendental e de seu caráter de revelação e dogmatismo, introduzindo a


figura do humano como central no discurso científico (objeto de estudo), que
começa a firmar suas bases materiais e epistêmicas.
ão

Essa transformação é fundamental para se compreender como a noção


moderna de patrimônio se fez possível, sobretudo arregimentando a história
no seu caráter de continuidade como fator de legitimação.
s

Nessa direção, uma analítica dos discursos descontínuos permite ver


ver

que as relações de forças que produzem a forma-homem não existem desde


sempre e que sua invenção recente não lhe garantiu a eternidade, porém, a
importância do homem nesse momento específico foi consolidada não apenas
por técnicas de controle e previsão do comportamento, mas também pela
importância da valorização da história e da memória, por meio do que se
convencionou chamar “artefatos históricos e culturais”.
222

Há uma tendência da cultura atual em enxergar o homem em todas as


épocas, mesmo onde ele não existia. Essa seria uma ilusão humanista ensinada
arduamente desde o século XIX (RIBEIRO; SILVA PINTO, 2010). O huma-
nismo é assinalado por Foucault (2011) como aquilo que se crê ser a grande
constante da cultura ocidental. Encontrar traços desse humanismo em outros

or
lugares, em outras culturas, seria, portanto, deparar-se com a universalidade

od V
do gênero humano. Ele segue dissertando sobre essa impressão que é, pare

aut
ele, de fato um engano, pois o humanismo não existia nas outras culturas e,
muito provavelmente, é uma miragem da nossa.
No cenário em que se desdobra, o humanismo ocupa o lugar de agente

R
do desenvolvimento histórico e da gratificação desse desenvolvimento:

o
No ensino secundário, aprende-se que o século XVI foi a era do huma-
aC
nismo, que o classicismo desenvolveu os grandes temas da natureza
humana, que o século XVIII criou as ciências positivas e que, por fim,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


chegamos a conhecer o homem de maneira positiva, científica e racional
com a biologia, a psicologia e a sociologia (FOUCAULT, 2011, p. 153).
visã
Este panorama denota algumas disputas epistêmicas que possuem efeito
direto sobre o tema do patrimônio cultural. Como se nota no estudo de Choay
itor

(2006), a emergência desse campo remete à importância consagrada à história


a re

e memória dos sujeitos. Trata-se de um ponto interessante, pois, seguindo as


reflexões de Foucault em As palavras e as coisas, entende-se que a morte do
homem deixa espaço para indagações sobre o que provém disso, colocado
com exatidão nas palavras de Deleuze:
par

A questão sempre retomada é, então, esta: se as forças no homem só com-


põem uma forma entrando em relação com as forças do lado de fora, com
Ed

quais novas forças elas correm o risco de entrar em relação agora, e que
nova forma poderia advir que não seja mais nem Deus nem o Homem?
Esta é a colocação correta do problema que Nietzsche chamava “o super-
ão

-homem” (DELEUZE, 2013, p. 140).

O tema do patrimônio histórico e cultural repousa na contradição epis-


s

temológica que o afeta, já que corresponde a uma questão fundada na impor-


ver

tância da figura do humano. Com base no referencial analítico deste estudo,


entende-se que o patrimônio cultural tão em voga nos últimos anos deste
século tem atualizado as tendências humanistas, o que, em certa medida,
cria um campo de tensão dentro de uma perspectiva de análise foucaultiana.
Com efeito, cabe problematizar a invenção da necessidade de preserva-
ção e conservação de objetos e práticas variadas, em função da concepção
de uma cultura voltada à história e memória. Uma das justificativas reside na
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 223

memória da história da humanidade, assim como dos grupos, em termos de


regionalização e localização mais restrita. Nessa linha, práticas discursivas e
não discursivas representariam determinada época e localizariam o homem
em determinados momentos históricos. Seria necessário desprender-se das
tradições e metafísica, para alcançar a verdade, a qual, por fim, guiará o

or
homem ao lugar do progresso, seguindo um caminho retilíneo e encontrando

od V
no passado etapas anteriores do conhecimento, uma espécie de antepasso

aut
do porvir. Entretanto, ao se considerar a arqueologia e a genealogia como
ferramentas analíticas, é interessante interrogar as práticas de preservação

R
patrimonial como desdobramentos singulares de novas forças, no que concerne
às lutas do direito à história e memória de distintos grupos.
Venson e Maria Pedro (2012) concebem a memória como uma prática

o
discursiva, a qual produz efeitos de verdade. Para Halbwachs (1968), o que
aC
se lembra ou se julga lembrar não implica necessariamente ter vivido o fato
mnêmico, uma vez que a memória individual se conduz pela coletividade.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Assim, a partir do referencial foucaultiano, compreende-se que a patrimonia-


visã
lização compõe múltiplas e complexas relações de saber e poder, produzindo
modos de subjetivação.

Os possíveis da Psicologia na patrimonialização enquanto


itor

dispositivo de subjetivação
a re

A intersecção entre estudos de psicologia e cultura é amplamente conhe-


cida, com forte destaque à Psicanálise freudiana e a perspectiva sócio-histórica
no campo da Psicologia Social. De maneira mais ampla tem sido empreen-
par

dido um esforço no campo mais progressivo da psicologia, em visibilizar as


cosmovisões tradicionais de grupos historicamente marginalizados por meio
Ed

de um debate não-reducionista e não psicologizante. Ou seja, abordar esses


outros saberes – saberes menores como diria Deleuze e Guattari (2014) –,
pela borda ou fronteiras da psicologia.
ão

Guedes (2016) problematiza a produção da vulnerabilização da população


indigna da Amazônia paraense decorrente de processos socioeconômicos que
s

alteraram as práticas culturais dessas populações.


ver

Percebe-se, assim, que grande parte das vulnerabilidades psicossociais que


atingem os povos indígenas é consequência das formas de marginalização
e conflito que envolvem a luta pela terra, a invisibilização dos povos, o
preconceito e o questionamento da identidade indígena no mundo con-
temporâneo e a perda de tradições (GUEDES, 2016, p. 36).
224

É possível inferir a crítica ao olhar atomizado sobre os fenômenos psi-


cossociais, uma crítica pertinente que pode e deve ser estendida às práticas
culturais em geral, pois estas não são apêndices dos modos de ser, mas parte
integrante das forças que compõem os sujeitos. Portanto, compete a psicologia
atentar para a concretude dos sujeitos, contextualizando a realidade social,

or
política, econômica e cultural desses.

od V
De outras formas, a intersecção entre psicologia e cultura vem sendo

aut
explorada timidamente por meio de estudos sobre patrimônio cultural e psico-
logia, produção restrita de que fazem parte trabalhos como os de Marli Lopes
da Costa intitulado Entre tempos antigamente e de hoje em dia: memórias da

R
patrimonialização da viola de cocho. Entendendo-se que o patrimônio cultural
se constitui como um multifacetado campo de pesquisa, o olhar da psicologia

o
sobre ele pode adensar algumas discussões, principalmente no que se refere
aC
aos modos contemporâneos de subjetivação
O debate acerca do patrimônio histórico e cultural estende-se pela questão

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


identitária, saberes hegemônicos e saberes locais, direito à cidade e à verdade.
Trata-se de um campo marcado por múltiplas disputas e tensões. As práticas
visã
de patrimonialização são relações de poder e saber que têm produzido efeitos
diversos ao nível das relações sociais, imprimindo marcas nas subjetividades
dos sujeitos, agenciando modos de usos dos espaços e etc.
itor

As relações de poder e saber, ao serem ponderadas sob a ótica das con-


a re

tribuições teóricas e metodológicas de Michel Foucault (1999), informam


sobre os possíveis que racham as certezas, as quais tentam fixar os sujeitos em
determinados lugares, de modo que se pode pensar como as lutas pela história,
memória e até mesmo do direito à cidade no recorte da patrimonialização,
permite tensionar as relações de saber e poder que compõe este dispositivo
par

contemporâneo de produção de subjetividades.


Ed

A patrimonialização moderna se constitui como um dispositivo do bio-


poder, no âmbito da governamentalidade. Parafraseando Foucault (2007b),
existe uma incitação política, econômica e técnica da patrimonialização das
ão

práticas culturais, materializadas no campo das lutas dos grupos ditos culturais
por direitos de cidadania. Logo, fica evidente que o patrimônio não pode ser
pensado como uma categoria isolada. Ele remete a processos capitalísticos
s

e de produção de memórias, histórias, modos de ser e sentir. No Brasil a


ver

constituição de um patrimônio cultural está associada à violência imposta aos


povos originários e aos processos de reterritorialização1 que estes e outros
povos conseguiram criar, neste país, a exemplo da destribalização indígena
e tráfico de pessoas negras.

1 Processo em que as formas desfeitas são conjugadas, alternadas umas sobre as outras ou são estabilizadas
(DELEUZ; GUATTARI, 1996).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 225

Problematizar as práticas culturais e os processos que as constituem como


ferramentas de governo dos corpos é de grande valor para a psicologia. Ambos
os campos são marcados pela dispersão e intersecções dos saberes e fazeres que
os constituem. Estes cruzamentos podem ser observados do recorte da memória,
a qual compõe um importante elemento das relações humanas, por permitir

or
a transmissão de conhecimento produzido pela humanidade ou, como afirma

od V
Rego (1995), ao “patrimônio da cultura humana” (p. 68) que se encontra regis-

aut
trado sob a forma textual, e também pela multiplicidade da cultura material.
Sob a perspectiva da psicologia sócio-histórica seria possível circunscre-
ver a compreensão dos bens patrimoniais como mediadores que auxiliariam

R
a construção da memória dos grupos, em especial, a memória cultural, extra-
polando os dois estágios primários da memória descrita por Vygotsky (1991),

o
proposição que denota a complexidade dos processos psicológicos mnemôni-
aC
cos. Lembrar e pensar constituem a memória, enquanto atividade tipicamente
humana, alternando-se em ordem de ocorrência, conforme a qualidade do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

processo. Vygotsky (1991) explica que nos estágios primários da memória o


pensar implica lembrar, e o avanço qualitativo do processo se destaca quando
visã
o lembrar passa a constituir o pensar, ou seja “[n]a forma elementar alguma
coisa é lembrada; na forma superior os seres humanos lembram alguma coisa.”
(p. 37). A evocação das lembranças, por meio dos bens patrimoniais, ultrapassa
itor

a escrita, enquanto signo organizador das relações. Remete a algo que recons-
a re

trói as relações do objeto lembrado com o mundo vivenciado externamente.

Poder-se-ia dizer que a característica básica do comportamento humano em


geral é que os próprios homens influenciam sua relação com o ambiente
e, através desse ambiente, pessoalmente modificam seu comportamento,
par

colocando-o sob seu controle. Tem sido dito que a verdadeira essência da
civilização consiste na construção propositada de monumentos de forma
Ed

a não esquecer fatos históricos (VYGOTSKY, 1991, p. 38).

Contudo, a práxis orientadora do que se deve ou não lembrar, das memó-


ão

rias a serem conservadas ou dos tipos de relações que devem ser afirmadas
entre objetos lembrados e lembranças evocadas constituem um complexo jogo
s

de interesses e disputas políticas que devem ser amplamente consideradas.


ver

Outro nome importante para a psicologia no estudo da memória, é o de


Ecléa Bosi. Para a autora, narrativas coletadas não substituem os aspectos con-
ceituais e, quanto a pesquisas que tomam por objeto a memória, propõe a catego-
ria memória-trabalho, a qual alude à sistematização de dados a serem analisados
à luz de referencial teórico especificado pelo pesquisador (BOSI, 1993).
A pluralidade da memória coletiva se constitui pelos diferentes espaços
pelos quais os sujeitos circulam, ou seja, pelos espaços de socialização que
226

mudam, ao longo do tempo. Ao tratar da memória e socialização, Bosi (1994)


dá como exemplo a criança, que está em contato com diferentes grupos/
gerações/classes, os quais transmitem os acontecimentos cotidianos, políti-
cos, sociais, sem qualquer ajustamento ao mundo da criança, perspectiva que
leva em conta haver níveis de entendimento diferenciados (BOSI, 1994). A

or
socialização pensada em duas vias – histórica e política – produz feitos de

od V
identificação e/ou projeção com elementos do passado tão intensamente que

aut
podem ser vivenciados como herdados (POLLAK, 1992).

R
É graças a esta “outra socialização”, à qual a psicologia tem dado pouca
atenção, que não estranhamos as regiões sociais do passado: ruas, casas,
móveis, roupas antigas, histórias, maneira de falar e de se comportar de outros

o
tempos. Não só não nos causam estranheza, como, devido ao íntimo contacto
aC
com nossos avós, nos parecem singularmente familiares (BOSI, 1994, p. 74).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


A autora refere-se, no trecho acima destacado, à condição da velhice nas
sociedades industriais, mas cabe bem à contemporaneidade, assim como é
visã
admissível em uma reflexão acerca da condição de tudo o que não se considera
novidade, nas cidades.
itor

Quantas relações humanas são pobres e banais porque deixamos que o


outro se expresse de modo repetitivo e porque nos desviamos das áreas
a re

de atrito, dos pontos vitais, de tudo o que em nosso confronto pudesse


causar o crescimento e a dor! Se a tolerância com o velho é entendida
assim, como uma abdicação do diálogo, melhor seria dar-lhe o nome de
banimento ou discriminação (BOSI, 1994, p. 78).
par

A memória coletiva impõe insistentemente afetos, os quais não são for-


Ed

mas, porém, forças que atravessam as “formas-sujeitos” e as submetem aos


sentimentos, criando encontros, movimentando campos de força (ALBU-
QUERQUE, 2015). É assim que eles se tornam elementos característicos da
ão

construção da memória coletiva. O espaço como o meio relacional do sujeito


é um ambiente dotado de forças que se movimentam em variadas direções,
irrompendo em diferentes configurações de relações entre os sujeitos e o
s

espaço. Nessa direção cabe à psicologia lançar mão de um olhar transdisci-


ver

plinar sobre os sujeitos e os grupos.

Algumas considerações

As insurgências produzidas pela Nova História Cultural coadunam-se


com o tema do patrimônio histórico e cultural no âmbito da revalorização
dos saberes locais. A análise do tema da patrimonialização sob a perspectiva
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 227

foucaultiana guarda seus próprios desafios, vistos que Michel Foucault se


propõe a um fazer marcado pela descontinuidade e profunda crítica ao caráter
apaziguador da história tradicional, sobretudo ao se destacar a memória coletiva
como elemento de grande valor no campo do patrimônio histórico e cultural.
A construção de um campo de pesquisa em psicologia sob a ótica fou-

or
caultiana é marcada por nuances e tensões ímpares, ganhando novos contornos

od V
com a adição do recorte do patrimônio histórico e cultural. Nesta direção a

aut
memória coletiva se configura como ponto de intersecção entre o tema do
patrimônio, a psicologia e a analítica foucaultiana. A partir desse enlace, o

R
dispositivo memória-afeto se situa como elemento de grande valor para proble-
matizar encontros da Psicologia Social com a Educação libertária, sobretudo,
de Paulo Freire por meio dos usos das memórias sociais como dispositivos de

o
partilha e circulação cultural em prol da ruptura com opressões, dominações,
aC
violências e relações de saber-poder-subjetivação.
A memória-afeto associa o patrimônio histórico e cultural às relações
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

interpessoais dos sujeitos e grupos, memória que é costurada coletivamente e


visã
através do tempo, território e acontecimentos. Distante da conotação de alguns
modos de operar a Psicologia por meio das tradições oficiais de filiação e
apropriações extrativistas culturais que se tornaram liberais e etnocêntricas.
Logo, busca-se problematizar a agonística dos valores em tensão ima-
itor

nente aos afetos para materializar modos outros de existências e práticas


a re

culturais híbridas, às quais ganham concretude na transversalidade dos sabe-


res nas análises da patrimonialização em conversa com a Psicologia Social
e da Educação. Colocar em xeque o oficial é profanar o sagrado e realizar
um perspectivismo da produção da diferença por um devir minoritário para
par

acontecimentalizar as práticas da História Cultural.


Esse encontro traduz-se “[...] num enlaçamento entre duas sensações
Ed

sem semelhança ou, ao contrário, no distanciamento de uma luz que capta


as duas num mesmo reflexo (DELEUZE; GUATTARI 2010, p. 205)”. Nesse
contexto, é imprescindível observar a produção de discursos oficiais sobre
ão

o território e os sujeitos, pois a memória e o espaço são criados por afetos,


os quais imprimem potência de vida naqueles que são atravessados por eles.
A partir do ser afetado ou não a relação dos sujeitos com o espaço vai
s

sendo tecida e são também produzidas memórias que possuem caráter coletivo.
ver

No enlace dos corpos, abre-se um espaço, o “entre”. Em tal processualidade


reside a “variação contínua da força de existir de alguém (LEPPINI, 2016,
p. 165)”, conferindo multiplicidade aos modos de existir em dispositivos
formados por práticas singulares e raras no âmbito das análises culturais do
direito à memória.
228

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a re
par
Ed
s ão
ver
ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
EM CONECTIVIDADE COM A

or
PESQUISA HISTORIOGRÁFICA:

od V
a experiência do projeto cartografia

aut
R
Antônia Maria Rodrigues Brioso

o
Introdução
aC
A experiência de ensino com a educação para as relações étnico-raciais
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

desenvolvida pelo Projeto Cartografia da Cultura Afro-brasileira e Indígena da


Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (EA-UFPA), ao longo de
visã
uma década, possibilitou as reflexões teóricas que o presente artigo analisa. O
projeto Cartografia é uma práxis pedagógica antirracista que proporciona aos
estudantes da EA-UFPA uma educação étnico-racial a partir da disciplina História,
itor

a fim de incentivar e reafirmar a identidade negra dos estudantes afrodescendentes,


a re

bem como afirmar, positivamente, a cultura afro-brasileira dos alunos/as brancos/


as no seu jeito de ser, viver e se relacionar na sociedade, marcadamente, diversa.
O Cartografia nasceu em 2011 como um experimento metodológico na
disciplina de História e, em 2012, a experiência de ensino foi partilhada com
par

quase todo o elenco de disciplinas no Ensino Médio. Ademais, o projeto está


em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), colocando
Ed

em prática as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.


O projeto Cartografia nasceu no chão da escola e criou uma cultura his-
tórica1 própria, com a intenção de rever o currículo a respeito da escravidão
ão

e da negritude, de promover debates e pesquisas na Escola de Aplicação,


não apenas com os alunos do Ensino Médio, mas, principalmente, com os
colegas de trabalho, das diversas disciplinas, convidados a enfrentar o desafio
s

de mediar um ensino com conhecimentos e ludicidades, inclusão e empode-


ver

ramento, centrados na didática do enfrentamento. O tema da negritude foi o


carro-chefe da iniciativa, mas não apenas ele. Em 2015, o projeto foi ampliado
e a questão indígena também passou a compor as pesquisas do grupo.

1 Entende-se “cultura histórica” como uma forma específica de experimentar e interpretar historicamente o
mundo, que descreve e analisa a orientação da vida prática, a autocompreensão e a subjetividade dos seres
humanos (CARDOSO, 2008). A cultura histórica não se resume ao que é ensinado/aprendido no ambiente
acadêmico e/ou escolar, mas considera tudo que contribui para construção da consciência histórica.
232

O presente artigo é mais uma das reflexões teóricas que a trajetória de


coordenadora do projeto tem possibilitado e objetiva olhar para a História
enquanto campo de conhecimento e como disciplinar escolar, observando
as possíveis convergências teóricas e pedagógicas que esse conhecimento
pode ter com a educação para as relações étnicas e raciais no Brasil. Nesse

or
sentido, os questionamentos iniciais que nortearam o presente artigo são: 1) o

od V
giro teórico na historiografia brasileira sobre a escravidão e o pós-abolição na

aut
perspectiva da História Cultural, promoveu contribuições para a luta antirra-
cista no Brasil?; 2) Os estudos sobre a escravidão negra no Brasil, têm tido
o mesmo impacto historiográfico sobre os historiadores brasileiros do que os

R
estudos sobre a emancipação e pós-emancipação dos escravizados?; 3) Quais
a contribuições que a operação histórica no ensino da relações étnico-raciais

o
nas escolas brasileiras pode trazer para a superação do racismo nas escolas e
aC
na sociedade brasileira como um todo?
O artigo é um estudo bibliográfico que, segundo Gil (2008), é desenvol-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vido a partir de uma produção teórica já existente. As obras historiográficas
foram analisadas e interpretadas com acuidade e rigor a fim de obter os dados
visã
que o artigo analisa, buscando informações contidas nos textos, mensagens e
enunciados (SEVERINO, 2007), relacionando-os com as questões-problemas.
O artigo está dividido em três partes. A primeira apresenta um debate
itor

sobre a historiografia da escravidão e do pós-abolição e a relação que essas


a re

duas vertentes historiográficas estabeleceram com a educação para as rela-


ções étnico-raciais no Brasil. A segunda parte apresenta o ensino de história
desenvolvido no Cartografia e como esse ensino pode enfrentar a problemática
do racismo na sociedade brasileira. Por fim, busca-se fazer as considerações
finais sobre o tema abordado.
par
Ed

A historiografia da escravidão e do pós-abolição e a questão


étnico-racial
ão

A conexão entre o ensino de História e o trato com a questão étnico-ra-


cial pode, inicialmente, ser compreendida a partir da afirmação da pedagoga
e ativista do movimento negro, Nilma Gomes, na obra O Movimento Negro
s

Educador (2017), quando diz que, na luta contra o racismo e todas as outras
ver

formas de opressão, o Movimento Negro (MN), no Brasil, alicerçou-se na His-


tória. As suas práticas, seus discursos e epistemologias foram construídas na
esteira da História. No entender de Gomes (2017, p. 48), o movimento negro
é fruto de uma “negatividade histórica”. Sim, pela necessidade de negar a
história oficial opressora que legitimava a subalternidade, bem como de buscar
novas narrativas que reinterpretassem a trajetória dos negros no país. Percebe-
-se, assim, o poder das pesquisas históricas para desestabilizar determinados
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 233

dimensionamentos da memória coletiva sobre a sociedade escravista e do


pós-emancipação no Brasil. Para a autora, essa é uma profunda diferença
entre o MN e os outros movimentos sociais, pois o primeiro está ancorado
na história (GOMES, 2017).
O historiador Luiz Felipe Alencastro (2013, p. 407), por sua vez, também

or
faz afirmação semelhante: “[...] o movimento negro e a defesa dos direitos dos

od V
ex-escravos e afrodescendentes têm, como vimos, raízes profundas na história

aut
nacional”. Esse historiador tem propriedades para tal afirmação, porque foi
ele quem apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, como
representante da Fundação Palmares, um parecer refutando a Arguição de

R
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADFP-186), que pretendia impug-
nar a implantação do sistema de cotas na UNB. A partir dos seus argumentos

o
históricos, em decisão unânime, o STF reconheceu que existe, no Brasil,
aC
uma discriminação étnica estrutural, embora não escrita nas leis, e que as
universidades públicas têm o direito constitucional de combater. A história da
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

escravidão, nas dimensões da pesquisa acadêmica da história pública, entrou


em campo em nome do “dever de memória” em relação à tragédia que foi o
visã
tráfico e a escravidão e seu legado no tempo presente.
Certamente que os novos caminhos trilhados no campo historiográfico
foram redesenhados pelos conhecimentos que os estudos sobre a escravidão
itor

negra no Brasil traçaram desde o final dos anos 80, o que amplia a compreen-
a re

são do escravizado e seu protagonismo como sujeito histórico. Um caminhar


entre a história social da escravidão para a história social da cultura escrava
e afro-brasileira, promovendo o alargamento dos temas e a maior ousadia
na diversidade e experimentação das fontes (CHALHOUB, 2016). Nesse
par

alargamento dos estudos da escravidão, houve um giro, uma mudança no


entendimento do escravo enquanto “objeto de investigação”; houve uma virada
Ed

do “escravo coisa”2 para o “escravo sujeito”3. O significado dessa guinada


pode ser percebido na nova marcha do historiador da cultura, seguindo novas
orientações para olhar outros tempos e espaços. Uma dessas reorientações
ão

importantes que possibilitaram afinar o olhar do historiador foi o conceito de


sensibilidade (PESAVENTO, 2005).
A preocupação com as sensibilidades na história cultural trouxe, para o
s

universo da pesquisa histórica, a questão do indivíduo, das subjetividades,


ver

das histórias de vida, entre outras heterotopias. Quer dizer, não é mais uma
preocupação com os “grandes vultos do passado”, escrita para glorificação
dos governantes e das elites, pois a perspectiva agora é de valorização das

2 Categoria muito utilizada na Sociologia e na História pela influência da escola Paulista, nos anos 1950 e
1960, através das pesquisas de Florestan Fernandes e de Fernando Henrique Cardoso.
3 A partir dos anos 1980, destacam-se, como clássicos, os trabalhos de João Reis e Eduardo Silva, Sidney
Chalhoub e Robert Slenes.
234

biografias de pessoas simples, sem “importância”, dos subalternos, da “his-


tória vista de baixo” no Brasil. Com esse olhar mais sensibilizado na História
Cultural, a historiografia sobre a escravidão foi alargando seus estudos sobre
os escravos negros no Brasil. Um grupo de historiadores percebeu, então,
que na “senzala tinha uma flor”. Essa expressão nos remete à obra de Robert

or
Slenes4, autor que, ao estudar as famílias escravas, recuperou os sentimentos,

od V
os afetos entre os escravos no Sudeste do Brasil.

aut
A partir desses trabalhos, tornou-se impossível pensar a ação de escra-
vos e libertos sem considerar suas relações religiosas, festas, irmandades,

R
batuques, família escrava, concepções sobre liberdade e direitos. Escravos e
descendentes produziam culturas, visões de mundo e tradições, em estreito
diálogo com as heranças africanas trazidas. Eles alimentavam-se de esperanças

o
políticas possíveis e moviam-se no interior de conflitos sociais travados. Era,
aC
portanto, responsabilidade do historiador captar esses relampejos do passado.
Nessa nova perspectiva, aquela compreensão de “escravo-coisa” dos anos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


50 e 60 foi superada e substituída pela compreensão de “escravo-sujeito”,
visã
pessoas escravizadas. O que significa essa mudança de categoria? Escravi-
zado era gente que amava, tinha esperanças, fé, memórias da terra de outrora;
formaram famílias por amor e/ou por interesses na liberdade ou negociaram
melhor tratamento pelo seu senhor.
itor

Daí, o olhar do historiador para o escravo não pode ser mais como um
a re

objeto de alguém, sem vontade, sem direito ao seu querer, sem protago-
nismo sobre si, mas uma agência. O escravo virou escravizado, pois o termo
“escravo” naturalizava a situação, sendo uma situação definitiva de alguém
e não transitória. O termo tirava e tira a responsabilidade dos agentes do pro-
par

cesso histórico de desumanização e espoliação identitária que foi a escravidão


moderna. Assim, não foi só uma mudança de termos, mas de carga semântica.
Ed

Mais recentemente, a historiografia sobre o pós-abolição, um campo


relativamente recente, tem produzido grandes contribuições para a cultura
afro-brasileira. Esse período se conecta à escravidão, mas não se caracteriza
ão

como mero resquício desta ou um simples capítulo derradeiro das abordagens


sobre a escravidão, mas uma chave importante para se entender o Brasil que
se inicia com o conservadorismo do abolicionismo e se estende até sua supe-
s

ração – quem sabe quando (GOMES, 2014).


ver

Para o historiador Flávio Gomes (2014), paradoxalmente, os estudos


sobre a escravidão, a despeito do impacto historiográfico, dos eventos aca-
dêmicos, das teses e dissertações e do mercado editorial, não trouxeram com
eles o mesmo alargamento sobre as questões que envolvem a emancipação.

4 SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil,
século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 235

Segundo esse historiador, pouco se sabe ainda sobre as dezenas de milhares


de homens e mulheres escravizados que, com suas famílias, conheceram a
liberdade ainda no século XIX; e muito pouco das histórias plurais e calei-
doscópicas, recheadas de ações coletivas, demandas no campo dos direitos
civis, políticos e sociais, além dos embates na esfera pública da população

or
de cor no adentrar da República adiante (GOMES, 2014).

od V
A historiografia do Pós-emancipação veio se colocando nas pesquisas,

aut
porém, ficando como coisa menor para os historiadores, se comparado com
os estudos sobre a escravidão. Assim quase silenciada, essa historiografia e

R
seus temas foram alocados para a esfera de estudo das relações raciais, campo
de antropólogos e sociólogos (GOMES, 2014). Não obstante, ela expandiu-
-se nos anos 90 e vem aperfeiçoando seus caminhos epistemológicos, entre

o
novos problemas, cronologias, objetos, perspectivas teórico-metodológicas
aC
e pesquisas empíricas. Essa historiografia tem trazido grandes contribuições
na construção do conhecimento histórico e para a luta dos ativistas na busca
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da subjetividade e protagonismo para os negros no Brasil, como diz Gomes


visã
(2013), uma historiografia “da nitidez e invisibilidade”.
Todas essas historiografias – a Escravidão e o Pós-emancipação – vêm
sendo um contributo à luta antirracista no Brasil. Assim, têm aparecido inter-
pretações sobre o passado brasileiro a propósito da questão racial, desmisti-
itor

ficando a imagem de paraíso racial e de um país ordeiro e pacífico, no qual


a re

não existe racismo.

A cultura histórica do projeto cartografia


par

Como um passado ainda presente, o escravismo no Brasil gerou muitas


deformidades sobre a cidadania de mais da metade da sociedade brasileira, que é
Ed

composta por negros, segundo o IBGE (2010). A desigualdade racial pesa sobre
essa população e o racismo a violenta cotidianamente, ameaçando a democracia
brasileira (ALENCASTRO, 2014). O peso sobre a população negra, conforme
ão

apontou Alencastro (2014), é comprovado pelas estatísticas sobre a violência


no Brasil, que evidenciam que os brancos vivem muito mais seguros que os
negros. É como se vivessem em países distintos. O Atlas da Violência de 2018
s

indica que “a desigualdade racial no Brasil é cristalina no que se refere à violên-


ver

cia letal e às políticas de segurança”. Um exemplo: enquanto o total de negros


assassinados aumentou 23%, o de brancos caiu quase 7% no ano passado.5
Dados alarmantes, como elencados acima, não podem passar desperce-
bidos pela escola no Brasil. Um ensino que não considera a violência física

5 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/13/politica/1555172481_557182.html. Acesso em:


05 nov. 2019.
236

e psíquica sobre mais da metade de seus estudantes não está em consonância


com o que se espera da escola hoje. Soma-se a isso o fato de que a escola
brasileira não tem sido acolhedora para indígenas e negros. O índice alto de
evasão desse público estudantil pode ser também explicado parcialmente por
um sistema educativo que não contempla a cultura e a identidade dos estu-

or
dantes negros e indígenas, que não se sentem incluídos na cultura escolar. Ao

od V
analisar dados sobre a discrepância entre anos de estudos entre a população

aut
branca e a negra, o Ministério da Educação (MEC) analisa: “na realidade, a
maioria das escolas ainda não reconhece e acolhe a cultura, a história e os
valores da população negra em sua dinâmica cotidiana – currículo, princípios e

R
práticas pedagógicas” (BRASIL, 2006, p. 85). Nega-se o direito à escola a um
significativo segmento da população brasileira, aumentando, assim, a periferia

o
existencial no país. Nesse sentido, quais as contribuições que a História pode
aC
trazer para construir um ensino mais inclusivo e acolhedor aos seguimentos
evadidos da escola e desenvolver uma educação histórica antirracista?

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Um enunciado que é importante e que enfeixa interações entre o ensino
de História e um ensino antirracista na escola, e que identifico como inerente
visã
à construção do conhecimento histórico – por onde o Projeto Cartografia
partiu e continua dando destaque dentro da sua didática da História –, é o
reconhecimento da diversidade e multiplicidade, uma das marcas da Escola
itor

dos Annales. O historiador francês Marc Bloch (2001, p. 54) afirma que a
a re

História estuda os homens, mais que o singular, no plural mesmo, o que con-
vém à “ciência da diversidade”.
Os homens, étnica e culturalmente, apresentam distinções, e nas relações
sociais, de poder e econômicas, vivem e produzem assimetrias (PESAVENTO,
par

2003). Ademais, o trabalho do historiador, na busca de construir uma forma


de conhecimento sobre o passado, necessita ler esse passado, decifrando-o e
Ed

dotando-o de uma inteligibilidade (ibidem, p. 60). Revisitar o passado, com


o intuito de recuperar os seus registros e ir ao encontro de mundos estranhos
ao seu, é um exercício de alteridade.
ão

Segundo Reinhart Koselleck (2006), a História, desde sempre, foi conce-


bida como conhecimento de experiências alheias. Aliado a isso, compreende-
-se que a própria História, quer a sua escrita, quer o seu ensino, constitui uma
s

viagem para fora do tempo, um recuo para o passado, e de lá, um olhar para
ver

o presente. Esse exercício ensina desnaturalizar, a ter um olhar perspectivo


e atentar para as diferenças, relativizando valores e pontos de vista. Ensinar
sobre a diversidade, sobre um “outro” é, para Jörn Rüsen (1992), um princípio
da Didática da História.
Não obstante, essa propriedade da História, ainda pouco explorada por
professores da área, foi um tema marcante na década de 90 em diversas par-
tes do mundo e no Brasil. Nesse sentido, as reivindicações por políticas de
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 237

reparação, as políticas de ações afirmativas feitas por grupos detentores de


memórias de sofrimento ou derrotados, ganham as ruas, em algum período
de sua história, em condições contrárias às convenções universais de direitos
humanos. Essas reivindicações envolveram não só direitos a reparações his-
tóricas, como também o que se convencionou chamar de “dever de memória”.

or
Na verdade, o debate vigoroso dos anos 90 continua um debate atual diante

od V
das denúncias de injustiça social, violência institucional e privações de grande

aut
parte da população brasileira, denunciados hoje nas redes sociais e nas ruas
por militantes dos movimentos sociais. Como bem disse Flávio Gomes (2013,

R
p. 306), “legado das profundas assimetrias socio-raciais que ainda teimam em
marcar nossa paisagem social brasileira”. O “dever de memória”, reivindicado
por essas populações com histórias de tragédias, sofrimento e vergonha, levou

o
à conquista de direitos e reparações, adentraram a cultura histórica tanto no
aC
âmbito da academia como nas instituições escolares a partir de 2000. Nessa
década, o que não era visto por muitos historiadores/as como da sua seara foi
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tornado lei no Brasil. Sobre essas evidências, em nossos dias, das demandas
visã
sociais e políticas pelo passado, diz a historiadora Martha Abreu (2010, p. 22):

Em meio à produção de muitas e diferentes visões e usos do passado, como


ficamos nós, historiadores? E a nossa própria disciplina? Qual o papel da
itor

história, enquanto conhecimento controlado, produzido a partir de deter-


a re

minadas regras compartilhadas, sobre questões específicas propostas ao


passado, em relação à explosão da memória, entendida como presença do
passado no presente, como força política? O que fazer com os passados
que se recusam a passar? Qual o papel e contribuição do especialista da
história, em contextos de conflito, a respeito dos usos do passado e das
par

reivindicações que tomam como base a noção de dever de memória?


Ed

As questões da historiadora são o reflexo do que o professorado de His-


tória questionou quando viu à sua frente o sancionamento da Lei 10.639/03,
e a aprovação pelo Conselho Nacional de Educação da Resolução n o 1 de
ão

17 de março de 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação


das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
s

-Brasileira e Africana.6
ver

Outra perspectiva da cultura histórica presente no Projeto Cartografia


tem sido ocupar-se com os conhecimentos dos sujeitos subalternizados e
inferiorizados ao longo do processo histórico, compreendido como, “acima
de tudo, explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres, cuja
existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada

6 Em 2008, a Lei 10.639/03 foi alterada para 11.645 e passou a incluir a história e a cultura dos povos indígenas
brasileiros.
238

apenas de passagem na principal corrente da história” (SHARPE, 1992, p. 41).


O Cartografia tem ensejado um ensino na perspectiva da “história vista de
baixo”. Essa modalidade de ensino tem contribuído para superar a história que
criou a noção de progresso, pois, com a ideia de progresso, estabeleceu-se uma
linha temporal em que a Europa aparecia como superior. O modus operandi

or
do colonialismo levou a que nações/povos colonizados tivessem muito de suas

od V
formas peculiares de saber suprimidas. Indígenas, negros africanos e afro-bra-

aut
sileiros foram importantes sujeitos no processo de formação social e cultural
do Brasil, estando presente em nosso viver diário, todavia, à semelhança dos

R
demais países colonizados, seus saberes e culturas foram negados e inferio-
rizados pelo colonizador. Para Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 19), o
colonialismo não foi só político e econômico, “foi também uma dominação

o
epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder”.
aC
Seguindo essa compreensão, pensar um currículo a partir dos saberes e
conhecimentos oriundos das camadas subalternizadas é inverter não só o conhe-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


cimento, mas o ser do estudante em formação, é descolonizar o pensamento dos
visã
sujeitos aprendentes e ensinantes. Esse processo se aproxima da consciência
histórico-crítica rüseniana na sua dimensão cognitiva (RÜSEN, 2009), que,
no pensamento decolonial, seria então a descolonização do pensamento. Com
isso, apostou-se numa formação nova para os estudantes do projeto Cartografia,
itor

tanto epistemológica quanto ontológica, a partir da subalternidade, mas não


a re

reforçando esse lugar social marginal, pelo contrário, questionando o lugar


de submissão tornando-os agentes no processo, encontrando outros caminhos
de reconstrução de identidades e de seus próprios valores nos mais variados
espaços de vida, a exemplo dos povos indígenas e dos negros no Brasil.
par

Os conhecimentos ensinados no projeto são vastos e interligados, por


isso, o projeto tem uma natureza interdisciplinar. Na História, o lugar de
Ed

onde se está falando e de onde partiu o Projeto em tela, a interdisciplinari-


dade, surgiu como uma contraposição à história positivista do século XIX. Na
história dos Annales, que se contrapõe à epistemologia de cunho positivista
ão

e disciplinar, Marc Bloch (2001, p. 49) entende que “não sentimos mais a
obrigação de buscar impor a todos os objetos do conhecimento um modelo
intelectual uniforme, inspirado nas ciências da natureza física”. Nessa obra,
s

Apologia da história ou O ofício do historiador (2001), Bloch reflete bem o


ver

espírito da primeira fase da escola dos Annales.


O historiador afirma, semelhantemente a Febvre, que é o homem o objeto
de estudo da História (BLOCH, 2001). Assim, ele propõe uma abordagem
da História não mais limitada por fatos e documentos, datas e todo tipo de
erudição documental positivista do século XIX, mas busca, primordialmente,
a problematização e a construção do fato histórico, em detrimento do estudo
do passado apenas pelo passado. Ele expõe a necessidade de uma História
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 239

mais humanizada, de maneira a ser proposta a interdisciplinaridade com as


outras ciências humanas, algo que vai ser marcante na primeira geração da
Escola dos Annales e que seguirá como uma tendência do movimento. Ou seja:
Bloch busca a significação social dos acontecimentos. A História é construída
a partir do social, nunca do individual. Portanto, o historiador caminha através

or
da interdisciplinaridade a fim de capturar o homem em toda sua diversidade.

od V
Concluindo o raciocínio histórico sobre o projeto enquanto práxis peda-

aut
gógica, destaca-se ainda que este visa discutir a função formativa da História
a partir do tempo presente, e pensa as relações entre as demais temporalidades

R
para a formação humana dos indivíduos, partindo das reflexões históricas
de Jörn Rüsen (1992, 2006). Na didática da História rüseniana, renovar os
conteúdos, considerar as vivências dos estudantes e o mundo no qual estão

o
inseridos, numa articulação entre história vivida e a história percebida, é um
aC
desafio aos professores da área para ensinar de um jeito diferente, apropriando-
-se da História como ferramenta de transformação, numa assunção ontológica
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e epistemológica a si mesmo e aos seus sujeitos que ensinam.


visã
A consciência histórica, como um modo específico de orientação nas
situações reais da vida presente (RÜSEN, 2011), tem a função específica de
possibilitar aos estudantes e professores a compreensão da realidade passada
para entender a realidade presente. Essa relação entre passado e presente é,
itor

para o historiador alemão, um dos cinco fatores determinantes para o sentido


a re

da História. Para ele, a razão dela é dar sentido às carências de orientação da


vida humana prática (ibidem, p. 30). Ainda de acordo com o autor:

Espera-se que o aparato conceitual da história habilite os jovens a desen-


par

volverem de forma objetiva, fundamentada porque assente na análise


crítica da evidência, as suas interpretações do mundo humano e social, per-
Ed

mitindo-lhes, assim, melhor se situarem no tempo (RÜSEN, 2011, p. 32).

Entende-se, assim, ser possível que a consciência histórica crítico-gené-


ão

tica7 possa ser desenvolvida pela escola, podendo orientar pensamentos e ações
a partir de novos enfoques epistêmicos, desnaturalizando valores que ratifi-
quem as desigualdades e toda e qualquer forma de exploração e inferiorização
s

do outro. Portanto, a decisão de refletir sobre essa realidade na escola não se


ver

constituiu uma ação estritamente “pedagógica”, mas de decisões que conjugas-


sem um feixe de interdependências históricas, políticas, culturais. Isso porque

7 Segundo o aparato teórico rüseniano, são 4 os tipos de consciência histórica. A consciência crítico-genético
é a quarta. Segundo Rüsen, se adquire esse nível de consciência histórica quando professores/as e alunos/
as recriam as informações históricas, na perspectiva das diferenças, das mudanças e das permanências. Ela
orienta pensamentos, ações a partir de novos enfoques epistêmicos, desnaturalizando valores que possam
justificar desigualdades e toda e qualquer forma de exploração e inferiorização do outro (BRIOSO, 2018).
240

a desigualdade é sempre circunstancial, pois está localizada historicamente


dentro de um processo e, por isso, sujeita a um incessante devir histórico.
Dessa forma, as desigualdades devem constituir um espaço de reflexão, que
tem contribuído para os estudantes e professores “pensarem historicamente”
sobre a situação do racismo no Brasil em torno do passado escravista.

or
od V
Considerações finais

aut
Sobre a educação étnico-racial, conclui-se que são múltiplos os caminhos

R
metodológicos no ensino de História que podem levar a colocar em prática
as Leis 10.639/2003 e 11.645/2011, que estabelecem a obrigatoriedade do
ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educação Básica,

o
entendida como LDB.
aC
Por fim, ressalta-se a importância político-social que o trato das questões
étnico-raciais no Brasil tem diante do quadro alarmante de ausência de cidada-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nia plena dos segmentos sociais brasileiros, como negros, indígenas, mulheres,
visã
LGBTQIA+ e outros, que “ameaçam” cotidianamente a sociedade e a democracia
brasileira. A História pode contribuir com as mudanças necessárias no currículo
e na elaboração e condução de práticas pedagógicas, dando atenção à questão
da cidadania participativa, no seu sentido pleno, focado nos direitos às diferen-
itor

ças. Nada obstante, a História tem alargado sua esfera de investigação desde os
a re

anos 60, incorporando novos problemas, objetos e novas abordagens, contudo


um elemento principal que é a revisão da matriz eurocêntrica tem se mantido
incólume, gerando um anacronismo entre o que se ensina e o que a sociedade
cível reivindica, conforme expressa o historiador Mauro Coelho (2020, p. 16):
par

No entanto, a revisão de nossa matriz eurocêntrica só se tornou pauta de


Ed

nossas reflexões quando a sociedade civil, após cerca de quarenta anos


de luta, conseguiu incluir um aparato legislativo ( Lei 10.639/2003) que
obrigasse a consideração das trajetórias de grupos segregados na narrativa
ão

edificada sobre nossa formação ou, simplesmente, excluídos dela. [...] O


bonde da história não para. A sociedade civil o conduz. Se a Universidade
e, em particular, os historiadores quiserem acompanhá-lo, terão que ouvir
s

a sociedade e fazer de suas demandas a base de suas preocupações. A


ver

Escola – indígena ou não – está apitando! (Grifo nosso)

O Cartografia ouviu esse chamado e captou o potencial cognitivo e


transformador do ensino histórico escolar – alicerçado nos procedimentos
próprios da História – para a transformação da educação e seu agenciamento
na sociedade brasileira.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 241

REFERÊNCIAS
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ver

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Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
Ed
s ão
ver
FENÔMENOS PSICOSSOCIAIS
CONTEMPORÂNEOS:
cartografando experiências formativas

or
em Psicologia Social

od V
aut
João Paulo Pereira Barros
Larissa Ferreira Nunes

R
Carla Jéssica de Araújo Gomes
Isadora dos Santos Alves

o
Lúcia Maria Bertini
Camila dos Santos Leonardo
aC
Dagualberto Barboza da Silva
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Formação em Psicologia Social: transvalorando periferia e centro


visã
Este capítulo tematiza a formação em Psicologia Social na graduação
em Psicologia, cartografando caminhos e experiências formativas agenciadas
itor

pelos/as autores/as no curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará


a re

(UFC) nos últimos 5 anos. Assim, tecemos o presente texto a partir do seguinte
questionamento: Como dispositivos formativos em Psicologia Social na gra-
duação em Psicologia podem contribuir para que territorialidades periferizadas
ocupem o centro dos debates críticos em Psicologia Social, decolonizando-os?
Para dar conta dessa questão, apresentamos neste texto o mapeamento
par

de caminhos formativos que temos construído, realçando as linhas principais


a partir das quais buscamos experiências como docente, estagiárias/os em
Ed

docência e monitores/as de disciplinas relativas à área de Psicologia Social.


Nossa discussão toma essas experiências formativas como “analisadores”
ão

(LOURAU, 1993) para refletirmos sobre possíveis caminhos no âmbito da


formação em Psicologia, especialmente no campo da Psicologia Social.
Desse modo, nossa cartografia traz algumas problemáticas, temas e estra-
s

tégias que permearam nosso percurso no setor de estudos de psicologia social


ver

desde 2016. Ao final, explicitamos também algumas reinvenções dessas estraté-


gias e temáticas ocorridas durante 2020, por conta da pandemia de COVID-19
e da consequente adoção de ensino emergencial remoto, em meio às medidas
de distanciamento físico e suspensão temporária das aulas presenciais.
Essa experiência formativa junto a discentes de graduação, no setor de
estudos de Psicologia Social da UFC, está atravessada por nossa atuação no
VIESES-UFC: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão
244

Social e Subjetivação, laboratório que existe desde 2015 e que está ligado ao
Departamento de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da mesma universidade. O VIESES-UFC, desde então, tem se dedicado aos
estudos sobre violência urbana, juventudes e os elevados índices de letalidade
de adolescentes em Fortaleza, capital do Ceará, numa dinâmica mortífera

or
que pertmeia territórios marginalizados, em que políticas militarizadas estão

od V
mais presentes do que as políticas garantidoras de direitos sociais (BARROS

aut
et al., 2019a).
Tais experiências investigativas e inter(in)ventivas do VIESES-UFC,
em intercessão com a formação em Psicologia Social no âmbito da gradua-

R
ção, têm gerado deslocamentos teóricos e metodológicos significativos. A
partir desses deslocamentos, intentamos movimentar para o centro do debate

o
e ensino em Psicologia Social questões que, por muito tempo, ora estavam
aC
ausentes, ora se encontravam marginais no âmbito do discurso psicológico,
como violência urbana, racismo, branquitude, colonialidade, desigualdades

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de gênero, interseccionalidade, processos de precarização das populações
periferizadas, direito à cidade, movimentos sociais, resistências, artes e pro-
visã
dução de subjetividades. Assim, experimentamos exercícios de transvalorar
as próprias noções de centro e periferia, desnaturalizando tais posições, o
que implica também contraposições inventivas ao próprio elitismo histórico
itor

da Psicologia, responsável por silenciar uma série de existências que não se


a re

enquadram no padrão burguês-branco-cis-hetero-patriarcal.


Por fim, apostamos que essa cartografia de nossas reinvenções formativas
pode contribuir com a problematização das condições, dos efeitos, dos desafios
e das possibilidades de conectar Psicologia, territorialidades e políticas. Essa
par

trilha consiste em fomentar uma formação em Psicologia Social que possa


tensionar as colonialidades cotidianas e potencializar a pluralidade de modos
Ed

de viver (LIMA; MALCHER, 2019).

Cartografando caminhos formativos em Psicologia Social


ão

Em nossas experiências formativas em Psicologia Social, optamos por


um percurso ético-estético-político que problematiza a dimensão do episte-
s

micídio produzido pela branquitude acadêmica (CARONE; BENTO, 2017;


ver

KAWAHLA, 2010; MÜLLER; CARDOSO, 2017; VEIGA, 2019). Dessa


forma, salientamos a importância de apostar conceitualmente na multiplicidade
e na polifonia, não nos restringindo às referências tradicionais da Psicologia
ou áreas afins, mas dialogando com saberes subalternizados e silenciados pela
colonialidade. Para percorrermos esse caminho da desuniversalização teórica,
é necessário que as disciplinas ampliem seus referenciais, busquem escutar
saberes não acadêmicos no processo de produção de conhecimento e que
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 245

questionem o imperativo do pacto narcísico da branquitude na perpetuação


dos saberes acadêmicos, que se coloca como estratégia de manutenção de
privilégios e hegemonia científica no Brasil (BENTO, 2002).
Esse é um processo em construção, que temos tentado incrementar em
nossas disciplinas, incluindo discussões sobre os aspectos psicossociais da

or
violência, considerando que estamos no contexto da América Latina, ou “Amé-

od V
frica Ladina”, como nos diz Lélia Gonzalez (2018), em que diversas violências

aut
se consolidam, assumem uma dimensão estrutural e amplificam as desigualda-
des (MARTINS; LACERDA, 2014; BARROS; BENÍCIO; BICALHO, 2019).

R
A violência, por sua vez, tem as desigualdades como sua condição máxima
de produção e, ao mesmo tempo, tem como um de seus efeitos a sustentação
destas. Então, tanto nas disciplinas da graduação como nas da pós-graduação,

o
em que se discutem teorias em Psicologia Social, dialogamos com Martín
aC
Baró (2017) sobre o contexto de guerra nos países latino-americanos, uma
discussão da Psicologia Social da violência.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ainda nessa perspectiva, destaca-se a relevância do estudo sobre desi-


gualdades e seu entrelaçamento com a violência, já que as desigualdades
visã
operam como matriz classificatória de vidas e ideias (MAYORGA; RASERA;
PEREIRA, 2009). É importante e necessário pensar os territórios perife-
rizados como palco de precarização sistemática de uma matriz desigual,
itor

visto que as desigualdades atuam na atualização de violências tipicamente


a re

coloniais, fazendo com que a elite branca brasileira perpetue uma linha tênue
entre criminalidade, criminalização da pobreza, genocídio negro brasileiro
e políticas criminais raciais e sexistas como manutenção da hierarquização
racial e de gênero (COIMBRA, 2001; NASCIMENTO, 2016; BISINOTO
par

et al., 2015; BORGES, 2018, 2020).


Diante disso, apostamos no diálogo de Martin Baró com Fanon (2008,
Ed

2010, 2020) e Paulo Freire (1987, 2013, 2019a, 2019b), em uma espécie de
agenciamento polifônico, para discutir a dimensão estrutural da violência,
da produção do Outro e da guerra como lógica de dominação-subordinação.
ão

Consideramos importante, além da tematização da violência no Brasil, discu-


tirmos o recrudescimento dos discursos de ódio e de reacionarismo extremista
(HUR; SABUCEDO, 2020) e seus efeitos psicossociais, que se maximizam
s

nas redes sociais, mas também fora delas (CAVALCANTI; CARVALHO;


ver

BICALHO, 2018; COSTA, 2019). Problematizamos, também, a relação dos


modos de subjetivação com o consumo, para compreendermos as produções
de subjetividades na contemporaneidade, a mercantilização do Eu na vida
contemporânea e seu entrelaçamento com a cultura da violência, machismo
e sexismo (BARROS et al., 2019b). São temas interligados que também nos
instigam a pensar uma formação em Psicologia Social que problematiza a
própria subjetivação neoliberal (LEMOS; GALINDO; FRANCO, 2019), de
246

modo a pôr em análise a ideia de “indivíduo” que, muitas vezes, baliza os


saberes e os fazeres em Psicologia, além de centralizar o discurso meritocrá-
tico que, na lógica neoliberal, reforça políticas de desigualdade e exclusão.
Além disso, os efeitos de subjetivação da governamentalização neolibe-
ral, a qual opera também na produção do desejo no campo social e na produção

or
das subjetividades, submetendo-as à lógica do mercado, são problemáticas

od V
que devem levar em consideração a produção do sujeito empreendedor de si,

aut
o capital humano e a reinvenção dos tentáculos capitalistas (COSTA, 2009).
Afinal, quais as ressonâncias subjetivas dessa lógica dos empreendedores de
si e do capital humano? E qual é a relação dessa subjetivação neoliberal com

R
a colonialidade e a própria branquitude? Qual a relação dos discursos de ódio,
que se proliferam nesses tempos sombrios, com a branquitude, a atualização

o
da subalternização de certas vidas no contexto do neoliberalismo, nas quais
aC
o racismo segue como grande motor de produção de vidas supérfluas perante
uma necroeconomia (MBEMBE, 2017)? Estes são questionamentos que nos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


atravessam ao pensarmos no componente curricular de disciplinas ligadas à
Psicologia Social - são apostas ético-estético-políticas para pautar a maximi-
visã
zação da precarização de certas vidas (BUTLER, 2016) e o compromisso da
Psicologia Social com a produção de vidas vivíveis (BARROS et al., 2019b).
Em 2020, também agregamos às temáticas debatidas durantes as aulas
itor

os impactos ocasionados pela pandemia de COVID-19 no Brasil, já que tal


a re

cenário se apresentou muito mais que um problema de saúde pública, escan-


carando ainda mais as iniquidades raciais, territoriais, de gênero, de classe
e geracionais atuantes no contexto brasileiro (GONZAGA; CUNHA, 2020;
SANTOS, 2020), além de intensificar, principalmente junto aos mais afetados
par

pelas desigualdades sociais, o fenômeno da naturalização e despersonalização


da morte (KIND; CORDEIRO, 2020). Ao mesmo tempo, incrementamos o
Ed

debate com as relações entre tecnologias, visibilidade, vigilância e a dimen-


são coletiva e pública do luto. Neste tempo no qual somos interpelados/as
pela pandemia de COVID-19, torna-se necessária a discussão do luto em
ão

sua dimensão coletiva e pública, para além de um fenômeno intrapsíquico


ou individual. Nesse sentido, se o propósito da Psicologia Social é debater
fenômenos psicossociais contemporâneos e a própria produção de subje-
s

tividades contemporânea, é necessário que paute essa extensão pública e


ver

coletiva do luto (BENÍCIO et al., 2018; BARROS et al., 2019b; BARROS


et al., 2020; RENTE; MERHY, 2020). Assim como a dimensão do racismo
(MBEMBE, 2014; 2017; ALMEIDA, 2018; KILOMBA, 2019), a coloniali-
dade de gênero (SEGATO, 2012; LUGONES, 2014), a relação entre modos
de habitar a cidade e a produção de margens urbanas (ALVES; EVANSON,
2013; LACAZ; LIMA; HECKERT, 2015; PASSOS; CARVALHO, 2015;
HUNING; CABRAL; RIBEIRO, 2018), as ruralidades (MOURA JR. et al.,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 247

2019) e as políticas de aprisionamento (DAVIS, 2018; UZIEL et al., 2018,


BORGES, 2020) são alguns temas que emergem na atualidade, nesse primeiro
caminho formativo, para a reinvenção de uma Psicologia Social que não seja
restrita a referências tradicionais e que “escute” esses saberes assujeitados e,
seguindo uma prescrição colonial, silenciados (LIMA; MALCHER, 2019).

or
Um segundo caminho aponta uma formação em Psicologia Social que

od V
não pense dicotomicamente teoria e prática e tampouco pense as áreas da

aut
Psicologia como autoevidentes: a Psicologia Social em um lado, a área Clínica
de outro e, em outros polos opostos, as áreas Organizacional e Escolar. Essa

R
ideia de institucionalização da Psicologia a um suposto campo de atuação e
saber acaba por produzir um olhar segmentado, ora individualizado, ora cole-
tivizado; observamos nisso uma falsa dicotomia hierárquica de base colonial,

o
tal qual mente e corpo, bem e mal. Nas ênfases curriculares é possível per-
aC
ceber isso de forma mais evidente. Geralmente, há uma ênfase mais voltada
ao dito “campo da saúde”, que abarca as áreas Clínica e Saúde Coletiva, e
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

outra social. Em contraposição, apostamos em estratégias que rompam com


lógicas hegemônicas que fragmentam a produção de saberes e a formação
visã
em Psicologia e desvalorizam a produção de olhares críticos e plurais. Nesse
sentido, buscamos criar espaços que discutam interfaces inter, intra e trans-
disciplinares da Psicologia, de modo a ampliar nosso horizonte de reflexões.
itor

Um exemplo disso é o diálogo entre a Psicologia Social e áreas como Saúde


a re

Coletiva e Psicologia Clínica (pautando os efeitos dos modos de subjetivação


neoliberais na produção de sofrimentos psicossociais) e Psicologia Social do
Trabalho (problematizando, por exemplo, como a precarização das condições
do trabalho no Brasil afeta, inclusive, as condições de trabalho de psicólogas/
par

os em Políticas Públicas).
Ainda, é fundamental evitar o reducionismo da Psicologia a um saber
Ed

neutro e universalizante, mas como produto de certas lógicas de saber-poder


implicadas e localizadas em tempo-histórico. Nesse sentido, Foucault e Deleuze
(1979) nos ajudam a pensar a relação teoria e prática, não como relação de
ão

aplicação, em que a teoria é aplicada na prática ou uma prática embasa a teoria,


mas na construção do saber em que prática e teoria se coproduzem por relações
de revezamento. Assim, vemos como necessária uma formação curricular em
s

Psicologia Social que invista na mobilização e na pluralidade de saberes e


ver

não na rigidez de categorias e áreas de atuação. Ao invés de pensar no distan-


ciamento entre social e clínica, por exemplo, interessa-nos os agenciamentos,
as intersecções, as fronteiras e os entrecruzamentos entre campos de saber e
cenários de prática. Esses apontamentos nos trazem reflexões sobre o campo
das Políticas Públicas, sobretudo os perigos e as possibilidades imanentes a
esse contexto. Citamos como perigoso o investimento demasiado em uma
lógica pragmática, tecnicista, conteudista e universalizante; assim como o
248

contrário a isso, que é abdicar do rigor científico, do adensamento conceitual


e da problematização crítica de nossos fazeres e modos de pensar. Produzir
problemas e fazer novas perguntas que desmontam lógicas de dominação nos
levam, por seu turno, a compor lutas coletivas também, principalmente com
movimentos e coletivos atuantes em contextos periferizados.

or
Um terceiro caminho que seguimos e propomos parte da compreensão

od V
das Políticas Públicas não apenas como um campo de atuação e de contrata-

aut
ção de profissionais da Psicologia, mas como um território de problematiza-
ção para a Psicologia Social. Entender os diversos desafios territoriais e de
atuação da Psicologia em Políticas Públicas passa pelo reconhecimento da

R
heterogeneidade e da pluralidade que buscam uma multiplicidade de pers-
pectivas teórico-práticas epistemológicas. Sendo assim, a Psicologia Social

o
é um dos possíveis campos a dialogar com Políticas Públicas dentro das psi-
aC
cologias, mas não devemos tomá-lo como o melhor, pois incorreríamos na
mesma lógica dicotômica-hierárquica. A inserção da Psicologia nas Políticas

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Públicas, então, assume diferentes trajetos que podem, por sua vez, dialogar
com práticas diversas. É a partir de tal pensamento que refutamos lógicas e
visã
discursos salvacionistas e especialistas.
Em suma, entendemos as Políticas Públicas como um campo de proble-
matização e não apenas de atuação. Isso implica também não romantizar a
itor

atuação da Psicologia nesses contextos, como se atuar em Políticas Públicas


a re

representasse automaticamente um compromisso ético-político da Psico-


logia com a transformação. Mesmo que a nossa aposta seja que isso possa
acontecer, se pararmos de problematizar e esquecermos de atuar em busca
dessa transformação social, é provável que esta não ocorra. Então, se tomar-
par

mos isso como referência, por um lado podemos pensar as Políticas Públicas
como um campo de atuação cada vez maior; por outro, é necessário que não
Ed

esqueçamos de denunciar, a partir dos formatos e dos dispositivos formativos


que criamos, o desmonte que esse campo vem sofrendo nos últimos anos pela
racionalidade neoliberal (BROWN, 2019). Os desmontes do Sistema Único
ão

de Saúde (SUS), o recrudescimento de lógicas manicomiais e de políticas de


aprisionamento são campos de indagação e de atuação política na formação
em Psicologia Social. Ao atuarmos nas Políticas Públicas, cabe-nos cartografar
s

as forças em jogo, as singularidades dos acontecimentos, os estados mistos,


ver

os agenciamentos de dispositivos, as dimensões macro e micropolíticas que


envolvem esse campo e nossa atuação nele.
Tal caminho formativo se distancia tanto da romantização quanto da
demonização da nossa atuação em Políticas Públicas, ao passo que considera
possíveis atuações críticas nesse campo. Nessa agonística, podemos considerar
que a inserção da Psicologia nas Políticas Públicas pode possibilitar à primeira
uma invenção de práticas a partir da reinterpretação dos seus compromissos
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 249

ético-políticos. Entretanto, há a possibilidade também de sermos capturados por


essa lógica maquínica do capital e contribuirmos para estratégias hegemônicas
de normalização de conduta e de manutenção de matrizes de poder. Logo, é
importante que pensemos sempre em que medida não contribuímos para o
“engessamento” de práticas psicológicas? Aos processos de normalização e

or
de ajustamento? Historicizar a Psicologia e sua gênese é também fundamental

od V
para não repetirmos a história, visto que a constituição histórica das práticas

aut
psicológicas e a relação destas com as instituições de sequestro, numa lógica
foucaultiana, podem adquirir novas roupagens e as Políticas Públicas podem
ser um cenário para isso. Propomos o oposto, mas entendemos a necessidade

R
de problematizar e visibilizar essa possibilidade para que não a façamos.
Portanto, queremos frisar que a psicologia, as Políticas Públicas e seus

o
agenciamentos não podem ser tratados na formação como fenômenos autoevi-
aC
dentes. Cabe-nos, na formação em Psicologia, sobretudo na Psicologia Social,
instigar a formulação de novas perguntas. Ao invés de privilegiar saberes
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

eurocêntricos e suas implicações locais, pensamos em nossa realidade, no


profissional que queremos formar e na sociedade que queremos construir e
visã
compor. Que profissional essa sociedade necessita e de que forma ela neces-
sita? São perguntas que precisam ser feitas para provocar mudanças.
A respeito do debate sobre Psicologia Social e territorialidade, sobretudo
itor

em territórios periféricos, consideramos que, embora não seja algo novo, pre-
a re

cisa ser sempre recolocado. Há tempos profissionais e acadêmicos de Psico-


logia vão a bairros periféricos realizar pesquisas e práticas profissionais, será
que têm uma atuação comprometida com micropolíticas de transformação ou
operam o espraiamento da lógica individualista da subjetivação neoliberal,
par

ligada ao empreendedorismo de si, à culpabilização, segregação e manutenção


de aparatos de silenciamento dessas populações subalternizadas? Cabe pergun-
Ed

tar, para quê nos deslocamos aos territórios periféricos? É um deslocamento


que nos desloca? Se sim, ele desloca o quê em nossos modos de pensar-fazer?
No VIESES-UFC, espaço que interpela nossos deslocamentos formativos
ão

e a partir do que levamos tais problematizações às disciplinas, trabalhamos


em contextos periferizados para interpelar os próprios processos coloniais
de periferização, ou seja, trabalhamos em periferias para questionar o centro,
s

assim como questionamos o centro em suas operações de periferização. Esta


ver

inversão de lógica é trazida por bell hooks (2019) e outras feministas negras,
que propõem partir da margem ao centro. Contudo, nossa prática subversiva
veio do próprio campo, com o que aprendemos nas e a partir das territoriali-
dades. Ademais, é importante ressaltarmos que quase toda a composição do
VIESES-UFC vem da margem, são a margem, afinal somos sujeitos feitos
em encruzilhadas e nossas trajetórias de vida e acadêmica permeiam e refor-
mulam nossas práticas.
250

Desse modo, nosso trabalho não é tomar a periferia como um território


fixo, exótico, pois isso é o que a colonialidade faz. O que é a colonialidade
senão uma produção de coisificação, objetificação e homogeneização desu-
manizante (QUIJANO, 2014)? Os trabalhos de Psicologia Social precisam
entender o jogo de mão dupla que é estar/atuar em territorialidades e como

or
movimentamos o território da Psicologia em diálogo com essas territoriali-

od V
dades e vice-versa. Isso nos leva ao debate sobre necropolítica, políticas de

aut
inimizade e suas implicações nos modos de subjetivação, modos de habitar
a cidade, segregação socioespacial, etc. (MBEMBE, 2017, 2018; BENÍCIO
et al., 2018; BARROS et al., 2020).

R
Um quarto caminho em que temos traçado é a construção de uma forma-
ção em Psicologia Social que tensione suas próprias políticas de pesquisa. No

o
VIESES-UFC, trabalhamos com a perspectiva da pesquisa-intervenção, com
aC
a escuta de trajetórias de vida, mas não uma escuta que silencie e coloque o
Outro como exótico, mas que se permita a realmente ouvir, deixar-se afetar e

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


compor COM o Outro. Uma produção compartilhada de saber, poder e subje-
tivação. Nas experimentações que tecemos ao longo desses cinco anos, temos
visã
discutido temas como Direitos Humanos, seus desencontros ou seus encon-
tros com a Psicologia e Políticas Públicas; socioeducação, no trabalho com
adolescentes a quem se atribui cometimento de ato infracional; políticas de
itor

segurança pública, justiça criminal, política sobre drogas e a lógica de guerra


a re

às drogas; perpetuação de lógicas coloniais, a partir da eleição de inimigos


públicos que são majoritariamente negros, jovens e periféricos; práticas de
encarceramento e a fabricação da delinquência; as apostas ético-políticas da
Psicologia em tempo de políticas punitivistas; o campo da saúde mental, suas
par

relações com a Psicologia Social e as perpetuações de lógicas manicomiais;


as Políticas Públicas e suas relações com as questões de gênero e sexuali-
Ed

dade; o direito à cidade que historicamente tem suas raízes no direito à terra;
as juventudes e infâncias, sendo a própria discussão geracional também um
campo que pode receber contribuições da Psicologia Social.
ão

Nossas pesquisas se desenham dentro de um paradigma ético-estético-


-político produzidos COM (MORAES, 2014) segmentos subalternizados e
territorialidades, buscando fortalecer os movimentos sociais que historica-
s

mente têm resistido às necropolíticas (MBEMBE, 2017; 2018). Compreen-


ver

demos essa reflexão como uma pista para uma Psicologia decolonial, aliada
à luta antirracista, contra o desmantelamento de políticas e os dispositivos de
criminalização, denunciando suas racionalidades e seus efeitos no cotidiano
de jovens inseridos nas margens urbanas, bem como padrões de mulheri-
dade e feminilidade que colocam as mulheres negras como o outro do outro
(KILOMBA, 2019) e as alteridades que historicamente têm suas vidas produ-
zidas como vidas não passíveis de luto (BUTLER, 2016), despersonalizadas
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 251

e bestializadas (FANON, 2008; MBEMBE, 2014; 2018). Ainda, os territórios


urbanos nos quais trabalhamos tem nos provocado sobre a separação entre
infâncias e juventudes, o que muitas vezes opera de um modo diferente nas
geografias corpóreas e isso também nos ajuda a repensar a lógica desenvol-
vimentista na Psicologia. Além disso, o território nos interpela a respeito de

or
discussões sobre mídia e produção de subjetividade (BRUNO; PEDRO, 2004;

od V
DIÓGENES, 2020), sobre violações de direitos humanos na mídia, sobre as

aut
interseccionalidades, masculinidades e violência, violência colonial e sobre
a resistência a esses debates nas políticas de assistência social.
Um quinto caminho que temos traçado nesse trajeto formativo é a articula-

R
ção entre a formação em Psicologia Social e o tripé universitário composto por
ensino, pesquisa e extensão. Em nossas práticas, idas e vindas aos territórios,

o
temos apostado em dispositivos grupais com diferentes segmentos sociais
aC
(BARROS; SILVA; GOMES, 2020). Essa estratégia de inserção e coprodu-
ção tem contribuído para quebrar a dicotomia anteriormente citada, entre clí-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nica e social. Citamos algumas inserções em que estagiários/as em docência,


monitoras/as, pesquisadores/as e também extensionistas do VIESES atuaram:
visã
acompanhamento de estágios em Psicologia Social junto à extensão, participa-
ção em grupos de mães que tiveram seus filhos assassinados, participação em
comitês de monitoramento de políticas prisionais e da socioeducação, produção
itor

de oficinas sobre direitos humanos e juventudes com adolescentes a quem se


a re

atribui o cometimento de ato infracional, escuta participativa de professores


de escolas públicas e lideranças comunitárias. Neles, a fronteira entre social
e clínica é borrada, se esvai. Tomamos essas atividades como propostas de
decolonização da Psicologia Social, assim como o investimento no debate
par

racial, este não sobre “o outro racializado”, mas sobre “o negro”, a discussão
sobre branquitude, racismo, genocídio, pensamento colonial, epistemicídio,
Ed

genderização; uma Psicologia Social efetivamente antirracista precisa questio-


nar os padrões cis-hetero-patriarcais que essa matriz de poder também atualiza.
Em suma, uma Psicologia Social que aposta no princípio da transversalidade.
ão

Um sexto caminho formativo que temos experimentado é a sustentação


da conexão da formação em Psicologia Social com o debate sobre Políticas
Públicas e territorialidades. Por um lado, diversas Políticas Públicas, como
s

as Políticas de Saúde e de Assistência Social, tomam diretamente o terri-


ver

tório como campo de tematização e de atuação, sendo, nos últimos anos,


cenários de prática profissional e de pesquisa em Psicologia Social. Por sua
vez, partindo de um prisma amplo acerca da discussão sobre territorialidade,
sob inspiração da esquizoanálise, neste texto tomamos a Psicologia e seus
processos formativos também como territórios, campos heterogêneos, de
disputas e de produção de modos de existencialização (DELEUZE; GUAT-
TARI, 1996). Deste modo, abordamos não apenas a atuação da Psicologia
252

Social na formação em Psicologia para dialogar com as Políticas Públicas,


mas, também, enfatizamos como a formação no campo da Psicologia Social
é interpelada pelas diversas territorialidades, em territórios urbanos que são
alvo de processos de periferização, e como os próprios dispositivos formati-
vos em Psicologia Social podem potencializar intercessões entre territórios

or
acadêmico-curriculares e territórios da cidade historicamente subalternizados

od V
por práticas de silenciamento, apagamento e epistemicídio.

aut
Até a suspensão temporária das aulas presenciais por conta da pandemia,
vínhamos realizando experiências práticas em Psicologia Social que faziam

R
com que estudantes de graduação “colassem” – gíria local que se refere a uma
aproximação dialógica e implicada de agentes externos à comunidade – em
movimentos e coletivos em diversas territorialidades. Dividíamos o grupo de

o
discentes em subgrupos, de modo que cada subgrupo pudesse acompanhar
aC
movimentos e coletivos atuantes nas seguintes pautas: luta antimanicomial,
luta antirracista, visibilidade LGBTQIA+, moradia digna e modos de habitar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a cidade, lutas feministas, arte, cultura e resistência. A partir desse dispositivo
visã
formativo, estudantes participavam das ações de movimentos sociais nômades
e coletivos periféricos e, ao mesmo tempo, tais coletivos e movimentos ocu-
param as aulas de Psicologia Social na universidade, fazendo-se ver e ouvir.
itor

Considerações finais: estratégias formativas em Psicologia Social


a re

no contexto de pandemia de covid-19

Em tempos de distanciamento social, que dispositivos criamos para efetivar


uma Psicologia Social decolonial, a qual pensa COM (MORAES, 2014), sem
par

afetar os afetos co-produzidos na presença? Trata-se de um desafio; entretanto,


temos feito uso de dispositivos que não são os mais tradicionais, tentando nos
Ed

reinventar, utilizando mais das redes sociais ou plataformas de mídias, tais como
Instagram e YouTube, e também na produção de podcasts. Sobre esse último,
criamos, em 2020, um chamado “Presentemente’’, inspirado na música “Sujeito
ão

de Sorte”, do cantor cearense Belchior, e o outro nomeado “Traçando Vários


Planos”, tomando por inspiração a canção “Sulamericano”, do grupo musical
BaianaSystem. Ambos discutem fenômenos psicossociais contemporâneos,
s

sendo este último especialmente sob o enfoque da Psicologia Social.


ver

Nesse sentido e empreitada, retomamos o questionamento: o que quere-


mos ao ir à periferia? Romper binômios, silêncios, apagamentos e propor um
outro lócus de enunciação horizontal, produzindo, portanto, outros modos de
contar e estar na história (ALVES; DELMONDEZ, 2015). Para isso, entende-
mos o território não como sinônimo de periferia – a própria Psicologia é um
território, assim como a universidade e a pesquisa. Território que, contudo,
alimenta, muitas vezes, elitismos, epistemicídios, silenciamentos, ou mesmo
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 253

o próprio território da branquitude (CARONE; BENTO, 2017; MENEZES;


LINS; SAMPAIO, 2019; KILOMBA, 2019). São apontamentos importantes e
elucidativos para graduandos/as, pois, de modo geral, é comum a existência de
uma expectativa de estudar “A periferia”; mas não existe “A periferia”, assim
como não existe “A universidade” ou “A Psicologia Social”. Um dos primeiros

or
pontos que desconstruimos no início do curso é que não existe uma Psicolo-

od V
gia, mas “As psicologias”; assim, é necessário também desconstruirmos que

aut
não existe “A periferia”, mas “As periferias”. Cabe-nos, portanto, compor
esses territórios existenciais, apostar em inventividades e outras narrativas
(HÜNING; CABRAL; RIBEIRO, 2018), e não falar sobre, pois esta última

R
parte da lógica do extrativismo e da objetificação (LIMA; MALCHER, 2019).
Os jovens que estão em coletivos falam “colar com os movimentos”,

o
muito mais do que pesquisar ou mapear os movimentos. Eis a maior pista,
aC
“chegar junto”, “colar”. É tal essa perspectiva que queremos: “colar” com os
Fóruns de Luta Antimanicomial, com o Fórum Popular de Segurança Pública,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

com Fóruns de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes, com Rede


Territorial de Prevenção de Homicídios, com Comitês de Monitoramento da
visã
Situação Carcerária, com Bibliotecas Comunitárias Independentes e Livres
no contexto da periferia de Fortaleza. Portanto, é a partir dessas experiências
que traçamos estes seis caminhos-apostas formativas para reinvenção de uma
itor

Psicologia Social decolonial, a saber, a desuniversalização do saber por meio


a re

de uma aposta ético-estética-política que problematiza o epistemicídio; o


rompimento da dicotomia hierárquica entre teoria e prática; a compreensão
das Políticas Públicas como um território de problematização da Psicologia
Social; a formação da Psicologia Social e o tensionamento às práticas de
par

pesquisas em Psicologia; e, por fim, a articulação da formação em Psicologia


Social com ensino, pesquisa e extensão (LIMA; MALCHER, 2019; HÜNING;
Ed

CABRAL; RIBEIRO, 2018). Ao expormos esses trajetos não queremos que


os tomem de forma enrijecida, mas que, a partir das próprias interpelações
territoriais, os usem, reinventem e apontem novos caminhos.
s ão
ver
254

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CRIAÇÕES DE SI PELAS TRILHAS
DA AUTOETNOGRAFIA

or
Anna Amélia de Faria
Carlos Alberto Ferreira Danon

od V
Juliana Maia

aut
Mônica Ramos Daltro
Suzane Bandeira de Magalhães

R
O homem é um animal suspenso em teias de

o
significado que ele mesmo teceu
Geertz
aC
Trabalhamos e estudamos em uma instituição de ensino superior, com
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

foco especial na formação em saúde, no curso de Psicologia, na graduação


visã
e pós-graduação. Uma primeira ocorrência recai sobre a ideia de saúde, que
muitas vezes funciona, quase exclusivamente, atrelada ao modelo biomédico.
Entendemos essa importância, como também relevamos a necessidade da saúde
estar em uma condição expandida, pois ela deve incorporar a filosofia, a história
itor

e os componentes curriculares que se ocupam da criticável noção de homem


a re

universal, posto haver, nessa compreensão, formas de existências fora do arco


universalizante. Então, neste artigo, buscaremos empreender uma reflexão,
no campo do ensino superior, em que a saúde esteja baseada, igualmente, na
interseccionalidade, na medida em que ela possa apontar para elementos identi-
par

ficatórios mais amplos e mais aptos para delinear mais sujeitos, incrementando
e expandindo a noção do “quem se é”. Estabelecer condições metodológicas,
Ed

para perfazer uma espécie de interação “com” os estudantes, mostra-se como


possiblidade benfazeja e capaz de criar mais modos de conhecimento.
A territorialidade acadêmica nos intersecciona em trabalho e em relativa
ão

dimensão crítica, para compreensão do conhecimento como esfera da comuni-


cação que segrega, hierarquiza e exclui pessoas. O lugar de exercício laboral
funde um ponto entre nós para afirmar um traço-território que também será
s

compreendido em uma dimensão autoetnográfica, se considerarmos a possi-


ver

blidade de mapear sensível/intelectualmente os percursos. Sim, falamos desse


lugar, que nos faz, nessa narrativa, e, ao mesmo tempo, nos (des)alinhamos
na emergência de nossas diferenças, elementos negociados e transbordantes,
incluindo disputas e conflitos. Narra-se aqui, portanto, um texto singular e
plural que, na crítica à cientificidade das distâncias pessoais, aprende com as
interações das pessoalidades e dos afetos, sejam eles correlatos ou não. Tal-
vez o objetivo seja promover “voz” por uma ciência que se cria na dimensão
262

prática, na compreensão de que a vida tem uma espécie de retrovisor, coti-


diano e desejante. A vida, de cada um, é construída nas vidas/memória, na
vida com o outro, na vida/território, na vida/história de si. Oferecemos a
compreensão que emerge, em cada um, uma sala de diferentes reflexos: nós
em uma escrita, fazendo nós cinco: autoras e autor dessa narrativa. Nós em

or
um, plural atravessado de singularidades, reafirmando a pessoalidade como

od V
construto que associa o político e o social.

aut
Considerar o ensino superior como um campo onde subjetividades se
produzem demandaria igualmente, de forma crítica, a importância do repe-
tido modus operandi dos ideais orquestrados nas habilidades e competên-

R
cias. Entretanto, algo vinculado aos saberes muitas vezes se arranja em um
completo fora do circuito normativo e disciplinador. Mas alguns esboços de

o
validação ignoram, frequentemente, as histórias e os percursos de quem não
aC
transita no espaço concentrado e circunscrito pelo vocabulário de um tipo de
ensino e aprendizagem. As habilidades e as competências podem considerar a

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pessoa/estudante como uma página em branco, concebendo a pessoa/estudante
em uma movimentação exclusiva e voltada àquele/s que imaginam realidades
visã
dependentes da própria história idealizada e estatutária, circuitada pelos que,
hierarquicamente, organizam tais circuitos.
As formas pedagógicas, bem como suas transmissões, configuram-se
itor

invariavelmente em um quadro político, na medida dos interesses, das metas,


a re

das performances e dos assuntos a ser incorporados. O empirista britânico


John Locke, no final do século XVII, ao construir o Ensaio acerca do enten-
dimento humano (LOCKE, 2000 p. 09), combateu as ideias inatas, e o lugar
de nascença monárquico, pois considerou as forças empíricas como mais
par

capacitadoras para estabelecer o processo de formação das ideias. O filósofo,


politicamente, agia em prol da compreensão que buscava estabelecer uma
Ed

maior tolerância religiosa e filosófica, bem como objetivava distanciar-se da


razão absolutista, orquestrada pela monarquia.
Nesse cenário, Locke, embora valorizando o intelecto e a formação clás-
ão

sica, propunha também uma mudança nos modos escolásticos de fazer edu-
cação, e um modelo em que se concilia a saúde física com a saúde mental,
como estratégia para alcançar uma vida feliz no mundo. Embora sem formular
s

uma teoria sobre esse modelo educacional, estabeleceu um conjunto de ideias


ver

oriundas das sensações e das reflexões. Para ele, a felicidade ou a miséria dos
homens é resultante de sua experiência e de seus méritos, por isso valoriza, em
suas proposições, além da educação erudita, a formação pautada pelo critério da
utilidade. Pressupõe um processo educacional que focalize a busca pela pessoa
humana plena e perfeita, e um ser livre liberal, ancorado na lógica meritocrática.
Interessa-nos agora refletir sobre o poder da experiência, para se con-
solidar e se transformar, através de ações colocadas enquanto motores de
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 263

validação de diferentes tipos e maneiras de existir. Também podemos dizer


assim: não havendo ideias que nos chegam desde sempre, iremos aprender
com nossas experiências e ações em contato com o mundo.
Uma tensão advém quando se ignora o nascimento do animal humano,
frágil e prematuro. A perigosa boa intenção de uma in-certa pedagogia que

or
metaforiza, na pessoa/estudante, uma espécie de nascimento, se mostra limi-

od V
tada e perniciosa ao ignorar suas anterioriedades: história e suas vivências,

aut
seus laços e trajetos (inclusive físicos). Nessa maquinal exclusão, opera-se
um desajuste, para calibrar em um suposto grau zero a variedade tornada

R
homogeneizada, posta em uma razão totalizante que nadifica suas diferenças.
Em nome de quê?

o
As razões transformam-se ao longo das geografias e épocas
aC
Mesmo que o campo epistemológico – com suas regulamentações e
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métodos mais tradicionais – produza a circunscrição dos objetos nessas lentes,


visã
há, sempre, agentes exteriores que imprimem dissensos sobre essas confor-
mações, ensejando transformações na tessitura do conhecimento; ainda que
haja mentalidades e territorialidades deterministas mantenedoras da tradição
que legitimem exclusões através de dispositivos. Um exemplo cabal dessa
itor

tensão, está na imanência das imagens e de corpos que exigem a justa par-
a re

tilha dos espaços de vida. Eles transformam e pressionam os ordenamentos


do biopoder. Esta significativa noção foucaultiana erige-se como dispositivo
de controle e disciplina de corpos, pois demonstra o ordenamento do grupo
dominante que impõe amarras e estratificações aos vivos:
par

“...vai permitir ao poder tratar uma população como mistura de raças


Ed

ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se


incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira
função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo
ão

biológico a que se dirige o biopoder” (FOUCAULT, 2002, p. 305).

A partir disso, é relevante o fato de que não há meritocracia possível, tal


s

noção combina, na naturalização do benefício de alguns, a insensibilidade em


ver

relação a outros que estarão com as próprias histórias invisibilizadas, criando,


assim, um falacioso imaginário de que todos são iguais, mas se as histórias
tão diferentes não são contadas, a igualdade é uma circunscrição de um modo
de viver e de receber oportunidades, tornado natural e axial.
No atual espelho de mundo neoliberalista, ressaem-se forças positi-
vas que primam pelo individualismo e acúmulo de riquezas. O contexto é
imposto de forma homogênea, desconsiderando-se origens, narrativas pessoais
264

e subjetividades. O mesmo exame padrão, característica da meritocracia,


é, então, colocado a sujeitos com distintas constituições ancestrais, morais,
éticas, religiosas, raciais, emocionais e materiais. Mas, na sanha do viver, e
imbuídos pelo sonho neoliberal de ser positivamente “feliz”, esses sujeitos são
forjados a desejar realidades semelhantes, passando por injustas e diferentes

or
trilhas, colocadas sob o manto da meritocracia.

od V
Habilidades e competências são estimuladas dentro da academia e da

aut
escola, para que esses sujeitos reproduzam continuamente o modelo eco-
nômico vigente. Fazendo uma referência a Libâneo (1990), Thiengo traz a

R
seguinte reflexão:

A pedagogia liberal traz em seu bojo a ideia de que a escola tem por

o
finalidade precípua educar os indivíduos para o desempenho de papéis
aC
sociais, de acordo com as aptidões individuais. Isso nos faz acreditar que
o indivíduo precisa adequar-se às normas e valores vigentes na sociedade

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de classe, através do desenvolvimento da cultura individual. Quando se dá
ênfase ao aspecto cultural, as diferenças entre as classes sociais deixam de
visã
ser consideradas, pois, embora a escola passe a difundir a ideia de igual-
dade de oportunidades, não leva em conta a desigualdade de condições
(THIENGO, 2018, p. 61).
itor

A classificação das gentes e dos espaços ocorrerá, muitas vezes, quando se


a re

quer negar as subjetividades das pessoas em suas singularidades, composições


e diferenças, para estabelecer, simplesmente, repetições. Porém, no âmbito
transformador, ligado a uma mais potente construção de saberes e de aprendi-
zagens, essas dimensões, mais apaziguadoras e sintéticas, terão de deixar de
par

existir, para consolidar a construção em efetivas realizações. Para estabelecer


um conhecimento ágil e construído de modo parceiro, a humanidade de reba-
Ed

nho deve ser rebaixada; pois a tônica de um ensino tornado, exclusivamente


instrumental e técnico, é incapaz de conjugar aos que dele se aproximam. A
noção de humanidade de rebanho resgata a infundada e malfazeja imunidade
ão

de rebanho, já devidamente demonstrada como ineficiente e letal.


Quem cursa o ensino superior, breve histórico e alguns tensionamentos.
No Brasil, o ensino superior era um “bem” inacessível a uma maioria.
s

Devido ao aumento de ofertas de vagas, permitiu-se que, durante os dois


ver

governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), utilizando pressupostos


neoliberais, saltassem as ofertas de vagas das Instituições de Ensino Superior
(IES) a uma porcentagem de 110% (TRAINA-CHACON; CALDERON, 2015.
p. 80). Nessa pista, o governo petista, iniciado por Luíz Inácio Lula da Silva,
investiu na ampliação das universidades públicas, mas também na expan-
são das vagas no ensino superior privado, por sua vez, ligado ao PROUNI,
que “potencializou o financiamento do setor privado com recursos públicos”
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 265

(p.96). Uma política pública que, por um lado, afirmou a educação como um
direito e contribuiu sobremaneira para a redução das desigualdades sociais, por
outro, enlaçou, de modo quase definitivo, a educação à categoria de produto.
De qualquer modo, essas possibilidades alargam e pluralizam possibilidades
às pessoas que irão, ou iriam estudar, no ensino superior. Fazemos essa obser-

or
vação no verbo, iriam porque sabemos das inúmeras perdas que o Brasil vem

od V
sofrendo, em todos os âmbitos da vida pública.

aut
É urgente repensar alguns dispositivos usuais que desconsideram as
passagens pelas quais trafegam as singularidades, no âmbito do ensino e
conhecimento em psicologia. Mais ainda, é necessário e urgente agregar tais

R
passagens, para pensar na situação do Brasil em um momento de pandemia
que demora a findar, pois, desde o golpe de 2016, a situação do ensino superior

o
se precariza, e quem nele permanece se encontra em situação de recamadas
aC
dificuldades, incluindo a do luto coletivo. Apostamos em outras formas de
criar, mais aliadas às vidas, desde já colocadas na perspectiva da enorme
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importância de serem reconhecidas, não somente em seriações domesticadoras,


apaziguadas, mas em suas diferentes intensidades.
visã
Esse vivido, essa experiência, inflige ao ensino superior o desafio de
problematizar seus, já incorporados, modos neoliberais de existir. Incorporar
o mal-estar, antes aplainado na discursividade do positivo, do fácil, do rápido,
itor

do consumo: fora disso, um resto, um resto coletivo. Nessa ótica, o invisível


a re

- ou o invisibilizado – deverá emergir e, apesar da desestruturante conjuntura


que estipula e menoriza as subjetividades, faz-se necessário convocar, para
o espaço da formação e do conhecimento, arranjos mais frutíferos e conec-
tivos. Mais que encobertas, as trajetórias das pessoas, das histórias de vidas,
das narrativas de si, deverão estar situadas em suas dimensões de afeto, não
par

priorizando as buscas através dos descritores científicos das pesquisas, ou


Ed

permanecendo à deriva, esperando pela compreensão e significação de ordem


científica pragmática, construídas nas malhas do perito.
ão

Vivendo em vários mundos

Em uma época anterior a 2016, quem chegava no ensino superior refletia


s

alguns impactos, perpetrados pelas políticas educacionais, situados na gri-


ver

tante e continuada evasão escolar, cujo pico, em 2018, foi de 97%1 no final
do fundamental II, de acordo com os dados do Observatório da Educação do
Instituto Unibanco. O número de estudantes que ingressaram no ensino supe-
rior continua impactante e, principalmente, nas instituições privadas: “A cada

1 Instituto Unibanco. https://observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br/em-debate/abandono-evasao-


escolar?utm_source=google&utm_medium=search&utm_campaign=jornalistas_evasao. Acesso em: 08/05/21.
266

quatro estudantes de graduação no Brasil, três frequentam estabelecimentos


privados” (EDUCAÇÃO, GOVERNO DO BRASIL. 2020).
A conjuntura educacional aponta que ampliação de escolarização requer
a continuidade de políticas afirmativas que deem suporte para a continuidade
e a permanência dos grupos identitários nos territórios educativos de for-

or
mação. A exclusão ou a seletividade ao ingresso das pessoas, no campo da

od V
educação, limita o próprio conhecimento, quando considerado apenas como

aut
fonte de saber exclusivo de quem participa de hegemonias. Com isso, enten-
demos existir uma efetiva necessidade de manejos e demanda que articulem
a inclusão desses estudantes nos processos relacionados a sua formação, e

R
isso nos chega como uma relevante possibilidade de enriquecer o âmbito do
conhecimento, com suas diferentes histórias vividas.

o
Com isso, o afeto, hibridado nas bagagens, incluído como dispositivo
aC
formador, entra em uma espécie de transação que o transforma em resto
obsceno. Contrastante com a metafísica do conhecimento, algo fica de fora

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não totalmente reconhecível, portanto, desconhecido. O resto entra em uma
equação do que não é computável porque está escanteado, é colocado para
visã
fora do caminho dos conhecimentos. Por outro lado, o conhecimento, na
condição metafísica, torna-se um elemento inatingível. Buscamos, com isso,
integrar uma fração desse afeto/resto, para defender outros corpos e formas de
itor

viver, com suas bagagens e também seus desconhecimentos e restos. Perder


a re

o caráter, muitas vezes moralista e narcisista, que se folheia apenas nas ima-
gens e semelhanças e estar com nossas dessemelhanças e pontos incompletos,
permite uma combinação e aproximação menos tóxica e sobredeterminista,
modos de ampli/Ar, em épocas de tantos sufocamentos e exclusões.
par

Fora desse circuito, assistimos, nos processos formadores ordinários,


um reiterado universal objetivo e operante. Na lente objetiva, ele é expresso
Ed

por uma neutralidade de amplitude macrossocial, que se fundamenta nos


princípios de uma suposta igualdade. Entretanto, no gesto de tornar igual,
a ferramenta torno torce as diferenças e seus dimensionamentos afetivos.
ão

Contraditoriamente, o plano ordinário, expresso pelas políticas sociais, de


circulação de vidas apresentadas em um contexto contemporâneo, cada dia
mais, expande-se, estratificado em desigualdades e, portanto, de inclusão de
s

uns em razão da exclusão de muitos outros.


ver

Para Martins (2019), a procura por novos horizontes civilizatórios supera


os limites cognitivos do que se conhece como utopias e se refere a sonhos
possíveis, e essas podem propor uma ruptura com esse modo moderno e
capitalista de viver o mundo, que vem sendo reproduzido pela universidade
e seus modos de viver o conhecimento, e na busca da verdade.
Premebida e Neves (2009), ao argumentarem a dinâmica da verdade, na
História no mundo ocidental, destacam:
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 267

Esta concepção foi herdada pelos sistemas filosóficos e científicos posterio-


res, e o que ficou mais patente foi o golfo estabelecido entre os “elementos
intelectuais” e “elementos sociais” na produção da verdade científica. O
conhecimento foi considerado propriedade filosófica e sagrado, no empi-
rismo inglês dos dezessete e no romantismo alemão dos dezenove, isolado

or
do domínio da polis, da política e da vida prática.

od V
Termo “posteriores”, na citação, refere-se a temporalidades e a territoriali-

aut
dades paralelas, ou melhor, não lineares: a construção e o trilhar da modernidade.
O curso histórico da modernidade produz e promove epistemologia para uma

R
concepção de ciência que avança nos dias atuais, com mais ou menos cenário
de repercussão empírica. Esse movimento (re)afirma uma cientificidade que

o
consagra “uma verdade” sobre as pessoas, mas se distancia de corpos e de peles.
aC
Não se propõe apenas uma distância orgânica para a validação do ato científico
de conhecer, mas a produção de um texto/contexto estéril. Contraditoriamente,
a esterilidade rechea-se com mecanismos políticos negados pelas oficialidades,
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para sustentar ou reinventar ordens de continuidade às hegemonias.


visã
Santos (2018) considera que as produções científicas acadêmicas negli-
genciaram ou rejeitaram o conhecimento comunitário, estabelecendo critérios
classificatórios para dicotomizá-los. Não raro, os manuais de metodologia
consagravam laudas e capítulos para estabelecer naturezas de conhecimentos,
itor

conceituando com intuito de precisão as fronteiras entre os saberes populares


a re

e as epistemologias da ciência.
A dualidade oposta e intransponível efetiva, na produção moderna, uma
cisão entre teoria e prática; entre pessoa e pessoas; entre aprendizagem e afeto;
entre biografia e conjuntura. Ao contrário de uma extensão complexa rela-
par

cional, o conhecimento científico, pelas vias das hegemonias, busca higiene


de análise para evitar riscos, mobilizações e vícios que, em última instância,
Ed

corrompem a verdade. Nesse âmbito, o sentimento e a expressão de pessoa-


lidade induzem a um interesse de autoria própria que reduz o conhecimento a
uma dimensão mínima: o indivíduo individual. Essa última categoria, embora
ão

sugira redundância, é necessária para caracterizar a contundência de redução


que a individualidade sugere aos paradigmas modernos.
Em perspectiva, paralela e conflitiva, portanto, não linear e política,
s

Santos (2018) considera resistência às hegemonias de conhecimento, as epis-


ver

temologias alternativas que constroem conhecimento, interseccionando os


saberes. Na contramão das hierarquias e classificações de saberes, o autor
propõe simbioses de conhecimentos que estão em contextos de corpos de vida
e de experiência. As resistências atam-se ao permanecer; para alguns, existir é
resistir, e isso deve ser considerado nos processos de criação do conhecimento.
Essas interseccionalidades da produção do conhecimento tangenciam a
dualidade colonial, de um desdobrado patriarcado que institui e padroniza:
268

Deus e Razão. Os corpos de viver firmam legado de saber ancestral que acessa-
dos pelas memórias individuais e coletivas. Propõe-se estabelecer uma tecno-
logia de conhecimento afirmativa que pressupõe uma busca compreensiva de
si e de alteridade em um tempo presente que reflete passado e projeta futuro,
por um calendário que vai e que volta continuadamente. Nessa abordagem, o

or
conhecimento de memória está na história que remete a uma ancestralidade, e

od V
a composição de uma singularidade que está na composição de cada pessoa.

aut
Assim, o conhecimento é um risco que se faz pelo desejo de mobilização do
eu e do outro. Destarte, os conhecimentos não são realizados apenas pela via
régia do canônico, passam pelo viver, permanecer e resistir. Mais que tudo,

R
o conhecimento incorporado é um traço, pois o corpo traceja em gestos e nas
formas de inventar, justapondo tempos, o antes e o agora, para abrir caminhos

o
para a possiblidade de haver um depois, para si e para outras pessoas.
aC
Sobre a autoetnografia

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A autoetnografia, como propõe Chang (2008), é uma proposta epistemo-
visã
-metodológica que propõe saberes afirmativos às narrativas de conhecimento.
Contraria a ordem hegemônica ao propor uma trajetória circular que combina
três orientações, alicerçadas na orientação metodológica etnográfica, na orien-
itor

tação metodológica interpretativa e na orientação do conteúdo autobiográfico.


a re

Essa tríade epistêmica propõe um equilíbrio que desequilibra as ordens de


rigor onde a descrição, a interpretação e a pessoa são expressões que compro-
metem o fazer do conhecimento acadêmico. A descrição por sua natureza de
relato, onde a paisagem do social se constrói pela memória; a interpretação
par

pelo viés de subjetividade, que está na ordem do discurso de quem profere;


e a pessoalidade que está na redução das histórias biográficas. Se a ciência,
Ed

vinculada ao biopoder, distancia-se da descrição, da subjetividade e da pessoa,


a autoetnografia propõe o enlace dessas dimensões para narrar.
A intersecção que pressupõe uma base metodológica etnográfica; uma
ão

interpretação territorial do contexto de cultura; e a memória de fonte autobio-


gráfica, fazem emergir a história de vida como texto significativo ao conheci-
mento. O pessoal torna-se uma dimensão política, alinhado a uma experiência
s

reflexa de uma vida. O conhecimento, portanto, está na pessoa autoetnogra-


ver

fada, e carrega, também, territorialidade cultural e, memória que remetendo


a uma temporalidade ancestral que combinas ontens e hojes, paralelamente
em ressignificações históricas.
Um conhecimento mobiliza a memória de si para mobilizar alteridades,
por referências e novas significações que promovem alternativas às hege-
monias, quando feitas por leituras horizontais. A horizontalidade, mais que
ilusão de campo, torna-se uma dimensão de prática, na medida em que a
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 269

autoetnografia registra as memórias das pessoas atuando entre o pertencimento


coletivo, espelhado, na proximidade territorial/epistemológica, e nas identi-
dades políticas, e nas construções e descobertas de distâncias e aproximações
com outra/e/os de outras origens.
A autoetnografia emerge como um olhar-memória de si, refere-se a uma

or
pessoalidade que toma a memória como um retrospecto e prospecto de vida. A

od V
dimensão do viver, nessa lógica, embora reflita uma singularidade, cursa nas

aut
conjunturas sociais das distribuições de poder, e nas produções dos sentidos cul-
turais. Assim, pessoalidade e contexto interpenetram-se em teia que liga e (des)

R
liga laços, modelando as expressões das diferenças e das subjetividades, com os
contornos dos pertencimentos e das rupturas coletivas. A proposta de memoriar
o “eu mesmo”, a “eu mesma”, ou o eu “mesmx”, desenha uma conjunção asso-

o
ciativa, que engloba indivíduo e sociedade. Essa ligação com o conectivo traz
aC
uma semântica associativa, necessária para ultrapassar as tradições científicas
clássicas. Enquanto a modernidade consagra-se pela oposição de parâmetros,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

para comunicar análises por definição de fronteiras rígidas entre as pessoas e


visã
suas ocupações sociais; o propósito etnográfico compreende a ênfase analítica,
nas intersecções dos lugares sociais e das circularidades pessoais.
Na memória-conhecimento, a dimensão da vida-experiência reflete mane-
jos por tecnologias de conhecimentos que implicam um viver próprio, marcado
itor

por um tudo de vida: negociação, conflito, desejo, frustação, realização...O


a re

fazer história da própria vida constrói conhecimentos que são significativos às


vivências que fizeram e fazem um corpo coreografar um trajeto de viver, por
fazer e por se refazer em pessoalidade. Portanto, viver e memorar a própria
vida estabelecem diálogos epistemológicos para afirmação das referências de
par

si, como um campo político e referencial de saberes para o eu-próprio e para


as alteridades. Como procede a memória, não apenas como registro inerte,
Ed

ela é traço e sulco em que o presente retoma e inventa os passos do passado,


redobrando-se, e, igualmente, lança sementes a um futuro. No jogo de tempo,
as singularidades, suas histórias, corpos e rostos se conjugam:
ão

Ir ao espaço, percorrer um território é traçar criticamente uma nova memó-


ria. Devolver ao outro não só o olhar, mas o próprio rosto, enquanto espaço
s

a ser percorrido por ícones de diferentes épocas, estandartizados..... é


ver

parir memórias passadas e, principalmente, futuras (FARIA, 2009, p. 80).

Nessa constelação autoetnográfica em que a andança constrói camadas de


lugares e modos de estar, incluindo o estar junto, a noção de si não cumpre a
retomada de um, mítico cogito, em que a racionalidade se olha para decretar
uma suposta razão, suficiências, mas, ao invés disso, o palmilhar desierarquiza
e propicia, nas imagens de distintas temporalidades, os encontros, reencontros
270

e laços. Repetimos, não enquanto igualdade, mas nas novas dicções em que
a língua reinventa o contar.
E assim, é preciso contar, como novidade, como tradição, como desvio.
Sim, um contar desviado que, ao quebrar a lógica verticalizada, chama por
formas de vida não subjugadas à sanha tecnicista; longe disso, em um jeito

or
de corpo não replicável, apenas a afirmação das vivências e dos corpos. Se o

od V
rito cria o critério da validação do sentido, o desvio afirma vivências de histó-

aut
rias mais erotizáveis porque, ao trazerem as bagagens das muitas andanças e
des-caminhos, perfazem a lógica do conhecimento no âmbito das amplitudes.

R
Se reconversamos com a epígrafe, podemos dizer das rachaduras e das
frontes, dos ciscos e dos troços que, destemidamente chamados de teias, e
reprisadas dizemos: aranha, um tornar-se alteridade não humana. Aí a técnica

o
implode porque, arranhado o edifício de uma ciência de distâncias, chamamos
aC
para descer e dançar, no citado desvio, o não sintético que gera redundân-
cias, mas o encontrar a redundância no transbordo. Dito de outra forma, a

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autoetnografia, ao mapear as bagagens carregadas de histórias, ao singularizar
visã
percursos, afirma o comum dos viajantes, isto é, todas pessoas são precursoras
em similaridade de diferentes graus de movimentação. Trazer e reconhecer
a dimensão autoetnográfica como método propõe essas valências. Um modo
reconvexo de destaque, em que o infinito e o fora da conformação ordinária
itor

aparece no um. Convidamos com esse método a contagem de outras histórias.


a re

Enfim: diante da queda, trilhas

A Pesquisa qualitativa propõe que o pesquisador diga de si, dos seus inte-
par

resses, do seu lugar de fala. A autoetnografia, mais fortemente ainda, autoriza


que caminhemos pelas distâncias e pelas aproximações, pelos desviantes e
Ed

seus supostos desvios, pelo diferente, pelo igual, pela singularidade de cada
um, de cada povo, de cada cultura. Autoetnografia não dialoga com uma ciên-
cia que se associa exclusivamente ao biopoder, que aniquila subjetividades.
ão

O neoliberalismo e a globalização promovem, claramente, um benefício


aos geradores de riqueza e ao biopoder. Com o estado limitado, minguam-se
os programas sociais e as políticas públicas, e a competititvidade meritocrática
s

se fortalece. Não há meritocracia possível. A desigualdade de condições, além


ver

de adoecedora, tende a projetar ou limitar as trilhas pessoais. O neoliberalismo


amplifica as desigualdades e desconsidera as subjetividades, ancora-se em uma
hegemonia narrativa que faz circular e acreditar em uma igualdade que se
legitima em documentos legais. Esse texto propõe que reflitamos e resistamos
a esse modus operandi, tanto no território da educação como nas formas de
pesquisar e fazer ciência. As pistas para construção de trilhas alternativas estão
nas pessoas, nas modelagens que envolvem memória, biografia e alteridade.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 271

Fortes e atentos

Bagagens reflexivas, convidamos para partilhar com as existências, em


uma constatação de haver mais e mais superfícies e territórios, em ações menos
ocupadas com as fantasmagorias escatológicas. Nos atamos aos movimentos de

or
vida, de circuitar a vida diferentemente nas e das singularidades, imbricando-as

od V
a outros acervos de produção de conhecimento, menos repetidos, estatutários e

aut
ordinários, assim, ensejando outras éticas vitalizadoras e afirmativas:

R
Já caímos em diferentes escalas e em diferentes lugares do mundo. Mas
temos muito medo do que vai acontecer quando a gente cair. Sentimos
insegurança, uma paranoia da queda porque as outras possiblidades que

o
se abrem exigem implodir essa casa que herdamos, que confortavelmente
aC
carregamos em grande estilo, mas passamos o tempo inteiro morrendo de
medo (KRENAK, 2019, p. 62-63).
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Talvez a queda seja também um mergulho em que possamos nos ver mais
visã
distantes de nós, e ao mesmo tempo, mais de acordo com potências de varia-
dos cromatismos e formas. Quem sabe, as perdas da queda criem condições
outras de associação, pulverizadas das expectativas conhecidas que agem na
itor

repetição e especularidade. Quem sabe a queda pode afirmar novos contatos


a re

inclusivos com as histórias e com o chão.


par
Ed
s ão
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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FORMAÇÃO E SEMIFORMAÇÃO:
em nome da civilização?

or
Maurício Rocha Cruz
Aline Lima da Silveira Lage

od V
aut
Como constituímos o espírito na atualidade? Como esta constituição se
consolida mediante tanto atrito com o desenvolvimento da sociedade? Como

R
separar aquilo que constitui a formação daquilo que forja seu caráter e obje-
tivo? A complexidade dessas questões não permite esgotar nestas páginas as

o
possíveis respostas. Todavia, como Theodor Adorno (1903-1969), concentra-
aC
mo-nos sobre os processos formativos que dialogam com o campo educacional.
De maneira geral, a formação do homem grego estruturou os pilares
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do desenvolvimento civilizatório. É no berço da paideia, após a primazia


da kalokagathia, que a formação do homem como cidadão torna-se um pro-
visã
jeto educativo capaz de influenciar definitivamente os novos tempos. Jeager
(1995) observa que o termo paideia se referia a “todas as formas e criações
espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos
itor

por Bildung ou pela palavra latina, cultura” (p. 01). 


a re

Para pensar, portanto, a tradução do termo não se deve,

[...] evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição,


literatura, ou educação; nenhuma delas coincidindo, porém, com o que
os Gregos entendiam por paideia. Cada um daqueles termos se limita a
par

exprimir um aspecto daquele conceito global. Para abranger o campo total


do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez (JAE-
Ed

GER, 1995, p. 01).

Ao compasso de Jaeger, “empregando” “cada um daqueles termos” “de


ão

uma só vez”, podemos dimensionar o impacto civilizatório que a paideia teria.


Esse impacto, traduzido na cultura, na educação, na filosofia, na política, nas
artes, no direito, etc., projetou a formação de um homem que, mesmo longe
s

de ser contemporâneo, mantém afinidades com os tempos atuais.


ver

Guardadas as ressalvas e a amplitude do tema, nossa intenção não poderia


ser outra que não dirigida aos processos formativos que dialogam com o campo
educacional. Assim, antes de qualquer coisa, cabe informar que a relação ter-
minológica da paidéia com a escolarização das crianças não ofusca seu verda-
deiro alcance, portanto, não se limitando àquela formação. Marrou (1966), por
exemplo, não desvincula a compreensão do termo do objetivo a que se propõe:
276

[...] cultura entendida no sentido perfectivo que a palavra tem hoje entre
nós: o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo desabro-
chado todas as suas virtualidades, o do homem tornado verdadeiramente
homem (MARROU, 1966, p. 158).

or
Em direção um pouco diversa dos sofistas, mas também diversa de Sócra-
tes e Platão, Isócrates é um representante da paideia que se destaca como um

od V
dos maiores educadores de seu tempo com uma proposta dirigida à formação,

aut
digamos assim, do homem eloquente. 
Conhecido como o pai da oratória, Isócrates foi muito bem-sucedido por

R
conciliar na formação do homem eloquente o conhecimento das artes e da
filosofia, em conseguir dirigir sua proposta de formação para que o homem

o
de seu tempo conseguisse dizer tudo aquilo que quisesse. Isócrates conse-
guiu formar um número grande de alunos. Esses exerceram grande influência
aC
cultural e os resquícios desse modelo atravessaram séculos e, com exceção
do período da escolástica e um pouco do que se segue, está presente de certa

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


forma no Humanismo e no Renascimento.
visã
A educação, para nossos antigos filósofos, foi acima de tudo um exercício
para o bem viver em comunidade, uma convivência calcada, sobretudo,
na responsabilidade para com os outros e no respeito mútuo, que instaura
itor

a harmonia e preserva a dignidade entre os seres. A razão humana, no que


a re

tinha de mais sublime, era enfocada no ato de educar. [...] A questão que
fica para nós é como estamos lidando com essa herança grega, num mundo
em que se convencionou dissociar o sucesso do desenvolvimento do caráter.
[...] O ato de educar foi barbarizado, barbarizado pela apatia, pelo politica-
mente correto e pelas falácias produzidas pela mídia. Nesse sentido é que o
par

ato de educar torna-se um tema vivo, por necessitar de constante reflexão.


A reflexão sobre que seres e que sociedade desejamos para nossa geração e
Ed

para as gerações futuras. Essa era a questão da paideia grega, uma vez que,
na Grécia Antiga, educava-se para a vida em comunidade, em todas as suas
nuançes. É preciso indagar se nossas práticas educativas têm ajudado para
ão

nos tornarmos seres melhores, posto que o ato de educar pode ser o motor
da construção de sujeitos éticos dotados de responsabilidade, solidariedade
e de caráter para dar novos rumos à história humana (DINIZ, 2014, p. 35).
s

O sistema mais formal de educação, tal qual conhecemos hoje, é o resul-


ver

tado de um modelo educativo voltado a formar o homem para a participação


na sociedade como cidadão, mas também como consumidor, como força de
trabalho a serviço de interesses bem diferentes do ideal platônico e ninguém
vai mais à escola para contemplar a verdade. 
É evidente que também as escolas de hoje não se propõem a formar o
homem capaz de dizer tudo aquilo que queira dizer, tal qual o ideal isocrático.
A corrente pedagógica isocrática atravessou séculos influenciando os sistemas
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 277

educacionais e as práticas escolares em busca de formar esse homem capaz


de discutir diversos temas com propriedade, capaz de convencer o outro, de
se ater ao interesse público e de buscar o bem social. 
Ainda assim, aquela formação cultural dos tempos da paideia vai per-
dendo sua substância principal e, com o advento da burguesia numa sociedade

or
baseada no consumo e na propriedade privada, as coisas mudam bastante. A

od V
busca da verdade, a contemplação e a reflexão do belo já estão longe de ser

aut
os fundamentos da educação de nossos tempos. 
Por outro lado, permanecem operantes na educação o desenvolvimento
de capacidades fundamentais ligadas à transmissão e à aquisição de conhe-

R
cimentos, sua expressão através da capacidade de dizer e de convencer. Os
profissionais de ciências humanas e de ciências sociais sabem bem o quanto

o
seu cotidiano exige estas capacidades. Sim, capacidades talvez seja mesmo o
aC
termo mais adequado ao tipo de formação promovida pela organização social
e cultural que a todos se dirige com imensa força. E nisso a universidade
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pública (mas não só ela) tem um papel importante como polo de resistência,
de questionamento, de crítica ao empobrecimento da formação ou de seu
visã
desvio de finalidade. A universidade deve estar atenta para não cair no jogo
das demandas capitais, muito comumente observadas na formação ofertada
por várias instituições privadas. É preciso manter sob crítica tudo aquilo que
itor

tenta se impor como formação sob o pretexto de coincidir seus propósitos


a re

com as demandas de uma realidade que se impõe sem freios.


O frankfurteano Theodor Adorno (1903-1969) é um excelente observador
do declínio do projeto de formação cultural do homem moderno e daquilo que
dele resultou após as condições sociais permitirem a “vida reproduzir-se segundo
as relações de produção imperantes” (ADORNO, 1993, p. 201). Suas contribui-
par

ções são muito pertinentes e nos ajudam a compreender a significativa capacidade


Ed

dos aparelhos educacionais desse tempo para com a escolarização da população,


tanto quanto sua pífia contribuição para com a emancipação dos sujeitos em
relação às engrenagens sociais que este mesmo aparelho educacional alimenta.
ão

Adorno, em 1959, publica Theorie der Halbbildung, traduzido no Brasil


em 1996, por Newton Ramos-de-Oliveira com o título de “Teoria da semi-
cultura” (ADORNO, 1996). À época, Ramos-de-Oliveira informou em nota
s

de rodapé que “tem sido prática comum a autores e tradutores brasileiros


ver

optarem pela tradução de cultura, semicultura, semiculto” (p. 388) para a


palavra bildung e halbbildung e citou a tradução de Wolfgang Leo Maar
para a “Pedagogia Dialética” (SCHMIED-KOWARZIK, 1983) e os termos
utilizados por Bárbara Freitag em “A teoria crítica, ontem e hoje” (1986). 
Tempos depois, Ramos-de-Oliveira publica uma nova tradução para Theo-
rie der Halbbildung com o título de “Teoria da semiformação” (ADORNO,
2010) no livro “Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de
278

pesquisa” (PUCCI; ZUIN; LASTÓRIA, 2010). Esta mudança na tradução é


abordada por Zuin e Zuin:

É interessante destacar a opção de mudança de tradução do conceito de


Halbbildung de semicultura para semiformação. Embora não seja de todo

or
equivocada a tradução de Halbbildung por semicultura, a escolha do termo

od V
semiformação parece ser mais adequada, sobretudo pela ênfase observada
nos prejuízos na dimensão subjetiva, decorrentes da sociedade na qual a

aut
indústria cultural se torna hegemônica” (2017, p. 421).

R
O destaque de Zuin e Zuin (2017) coincide com a advertência de Maar
(2003) quanto ao fato de que a “semiformação (Halbbildung) é a determinação

o
social da formação na sociedade contemporânea capitalista” (p. 459) e que “está
aC
em estreita relação seja com a razão instrumental (HORKHEIMER, 1976) seja
com a função social da tecnologia (MARCUSE, 1998, p. 71)” (idem, p. 461). A
conhecida passagem de “Dialética do Esclarecimento”, a “cultura, tomada pelo

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lado de sua apreensão subjetiva, é a formação” (ADORNO; HORKHEIMER,
visã
1985, p. 94), está fundamentalmente presente nas entrelinhas. 
Nesse sentido, parece objetivo lembrar que, no mesmo livro, Adorno e
Horkheimer, ao tratar de “Elementos do anti-semitismo”, sublinham que para
o homem semiformado,
itor
a re

[...] todas as palavras se convertem num sistema alucinatório, na tentativa de


tomar posse pelo espírito de tudo aquilo que sua experiência não alcança, de
dar arbitrariamente um sentido ao mundo que torna o homem sem sentido, mas
ao mesmo tempo se transformam também na tentativa de difamar o espírito e
a experiência de que está excluído, e de imputar-lhes a culpa, que, na verdade,
par

é da sociedade que o exclui do espírito e da experiência (1985, p. 182).


Ed

Cientes de que a indústria cultural opera falsas promessas, Zuin e Zuin


reforçam a premissa de que “o acesso massificado aos ‘produtos culturais’
não significaria necessariamente que os indivíduos se tornariam livres e radi-
ão

cados em suas próprias consciências” (2017, p. 424). E retomam os alertas


dos frankfurteanos de que “o consumo desenfreado de tais produtos tenderia
s

a fomentar a disseminação dos pensamentos padronizados, das práticas pre-


ver

conceituosas delirantes e de uma consciência fragmentada” (2017, p. 424). 


É nesse mesmo tom que Maar irá se manifestar dizendo que “no mundo
reconstruído o sujeito semiformado toma-se como sujeito do mundo que mera-
mente reproduz” (2003, p. 463) ao acompanhar o seguinte raciocínio de Adorno:

É quando o processo que se inicia com a transformação da força de traba-


lho em mercadoria permeia todos os homens – transformando em objetos
e tornando a priori comensuráveis cada um de seus impulsos, como uma
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 279

variante da relação de troca – que se torna possível à vida reproduzir-se


segundo as relações de produção imperantes (1993, p. 201).

Em “Educação e emancipação” (1995), a partir de um debate radiofônico


denominado como “Educação – para quê?”, Adorno toca em um ponto que

or
para este texto é essencial, “a organização do mundo converteu-se a si mesma

od V
imediatamente em sua própria ideologia. Ela exerce uma pressão tão intensa

aut
sobre as pessoas que supera toda educação” (p. 143). É essencial porque jus-
tamente exige uma reflexão sobre aquilo que atribuímos à educação no corpo
das relações sociais. Adorno está absolutamente ciente do que diz e não dirige

R
suas palavras para criar fronteiras entre as práticas educativas escolarizadas
e aquelas interiorizadas nas relações sociais, que se destacam nas famílias,

o
igrejas, corporações, veiculadas pela indústria cultural, entre outros. 
aC
Mas é em “Minima moralia” (1993) que Adorno vai mais adiante:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Os discursos habituais sobre a “mecanização” do homem são enganosos,


por que o concebem como algo estático, que por “influências” de fora,
visã
através de uma adaptação a condições de produção a ele exteriores, sofre
certas deformações. Mas não existe substrato algum dessas “deformações”,
nenhuma interioridade ôntica sobre a qual mecanismos atuariam de fora
itor

apenas (p. 201).


a re

Temos aqui algo que nos exige ir além, que procura colidir no plano da
consciência (como autorreflexão) aquilo que nos move com aquilo que justi-
ficaria esse movimento. Nesta colisão o mais comum tem sido a identificação
dos esforços dos processos educativos para com o regime social de vida pre-
par

dominante no capitalismo tanto quanto os efeitos deste regime sobre a vida.


Maar (2003) nos lembra que Adorno teria afirmado num texto chamado
Ed

“O esquema da cultura de massas” (que não consta na versão de “Dialética do


Esclarecimento” publicada por aqui e que Maar não cita o ano e a paginação)
que “na adequação às forças produtivas técnicas, que o sistema lhes impõe
ão

como progresso, os homens se convertem em objetos que se deixam manipu-


lar sem resistir” (1984, 331 apud MAAR 2003, p. 331) e que imediatamente
s

Adorno se apressou em advertir o leitor de que:


ver

[...] enquanto sujeitos, permanecem sendo eles próprios os limites da reifi-


cação, a cultura de massas precisa continuamente, em uma má infinitude,
apossar-se de novo dos mesmos: o desesperançado esforço de sua repe-
tição constitui o único vestígio da esperança de que a repetição é inútil,
de que os homens [no sentido em que produzem sua própria conversão
em objetos] afinal não podem ser apropriados (ADORNO, 1984, p. 331
apud MAAR, 2003, p. 466).
280

É por isso que retomamos a Maar para com ele reforçar, à guisa das
contribuições adornianas, que “cultura e formação precisam ser examinadas
fora do âmbito estritamente cultural ou pedagógico definidos na sociedade”
e devem ser “investigadas no plano da própria produção social da sociedade
em sua forma determinada” (2003, p. 471).

or
O retorno, portanto, à Halbbildung é inevitável, porém cheio de ressalvas.

od V
Maar (2003) e Zuin e Zuin, por exemplo, concordam e anunciam em seus

aut
textos que, “com efeito, investigar as características do processo semiforma-
tivo não resulta na aplicação direta dos conceitos engendrados por Adorno

R
no final da década de 1950” (ZUIN; ZUIN, 2017, p. 420). 
Por outro lado, Adorno, em sua época, destacava a importância de outros
olhares mais interdisciplinares pois permaneciam,

o
aC
[...] insuficientes as reflexões e investigações isoladas sobre os fatores
sociais que interferem positiva ou negativamente na formação cultural, as

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considerações sobre sua atualidade e sobre os inúmeros aspectos de suas
relações com a sociedade, pois para elas a própria categoria formação já
visã
está definida a priori (2010, p. 09).

Se, para Adorno, “a única possibilidade de sobrevivência que resta à cul-


itor

tura é a autorreflexão crítica sobre a semiformação, em que necessariamente


a re

se converteu” (p. 39), não há dúvida de que o que é inerente a cada um, em
sua própria formação, refere-se àquilo que escapa.

O entendido e experimentado medianamente — semi-entendido e semi-


-experimentado — não constitui o grau elementar da formação, e sim seu
par

inimigo mortal. Elementos que penetram na consciência sem fundir-se em


sua continuidade, se transformam em substâncias tóxicas e, tendencial-
Ed

mente, em superstições [...] (p. 29).

É neste sentido que Adorno menciona que “a crise da formação cultural


ão

não é um simples objeto da pedagogia” e que mesmo indispensáveis revisões


do projeto de formação escolar não são, em geral, capazes de resolver a questão,
s

[...] os sintomas de colapso da formação cultural que se fazem observar


ver

por toda parte, mesmo no estrato das pessoas cultas, não se esgotam com
as insuficiências do sistema e dos métodos da educação, sob a crítica de
sucessivas gerações (p. 08).

O autor avança e identifica que “a ideia de formação cultural” está falsamente


direcionada a uma organização social sem exploração, “sua realização haveria
de corresponder a uma sociedade burguesa de seres livres e iguais” (p. 13) e que,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 281

O sonho da formação — a libertação da imposição dos meios e da estú-


pida e mesquinha utilidade — é falsificado em apologia de um mundo
organizado justamente por aquela imposição. No ideal de formação, que a
cultura defende de maneira absoluta, se destila a sua problemática (p. 14).

or
Assim, tensionada pelas forças operantes no interior de uma organização
da vida afetada diretamente pelos meios de produção, pela indústria cultural,

od V
pela cultura de massas, a “formação cultural agora se converte em uma semi-

aut
formação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua
gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede” (p. 09).

R
É por isso que Zuin e Zuin (2017), ao tratarem das relações de consumo
proporcionadas pela indústria cultural, sob a promessa camuflada de liberdade

o
e de acesso antes negados, afirmam que,
aC
[...] o acesso massificado aos “produtos culturais” não significaria neces-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sariamente que os indivíduos se tornariam livres e radicados em suas pró-


prias consciências. Ao contrário, o consumo desenfreado de tais produtos
visã
tenderia a fomentar a disseminação dos pensamentos padronizados, das
práticas preconceituosas delirantes e de uma consciência fragmentada pra-
ticamente incapaz de relacionar historicamente o passado com o presente,
para que se pudesse pensar um futuro diferente (p. 424).
itor
a re

E, da mesma forma, o acesso massificado à educação escolar e à educa-


ção profissional, tão desejados pelas camadas mais pobres quanto pelas mais
ricas, por si só, não cumpre as antigas e populares promessas veiculadas pelas
famílias e pelo estado: “Estude para ser alguém!”
par

O avanço das últimas duas décadas no âmbito da formação de técnicos, de


professores, de pesquisadores e de cientistas no Brasil, que beneficiou um con-
Ed

siderável número de populares, quando observado quantitativamente se destaca,


quando confrontados pela demanda social se justifica. É preciso um considerável
progresso social, um conjunto de técnicos e de cientistas, de professores, pesqui-
ão

sadores, de profissionais liberais, entre outros, para que cada vez mais padrões
que predominam nos grandes centros urbanos alcancem outros territórios, con-
vençam muitos e os preparem para consumirem novos produtos e serviços, para
s

frequentarem exposições de artes, peças de teatro, visitarem outros países, etc. 


ver

É como se sob o estímulo da indústria cultural, tanto quanto sob seu


atento olhar, uma espécie de cardápio de iguarias com preços e nomes cada
vez mais populares seduzissem os consumidores. A experiência como tal é
tapeada, maquiada pelas ligeiras e sucessivas promessas que se destacam mais
pelas diferenças do que pelas proximidades daquilo que oferece.
282

Para Adorno, “a semiformação não se confina meramente ao espírito,


adultera também a vida sensorial” (2010, p. 25). Já em outra ocasião, em
“Dialética do Esclarecimento”, Adorno e Horkheimer avisam,

O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é

or
substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir

od V
e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um

aut
conhecedor. O consumidor torna-se a ideologia da indústria da diversão,
de cujas instituições não conseguem escapar (1985, p. 131).

R
A falta da experiência, mais que um sintoma, é também um problema
para a formação. 

o
aC
No entanto, é ainda a formação cultural tradicional, mesmo que questioná-
vel, o único conceito que serve de antítese à semiformação socializada, o
que expressa a gravidade de uma situação que não conta com outro critério,

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pois descuidou-se de suas possibilidades. Não se quer a volta do passado e
visã
nem se abranda a crítica a ele. Nada sucede hoje ao espírito objetivo que não
estivesse já inscrito nele desde os tempos mais liberais ou que, pelo menos,
não exija o cumprimento de velhas promessas (ADORNO, 1996, p. 395).
itor

Quando Adorno faz menção de que não se deseja a volta ao passado quer
a re

também com isso lembrar que a “mera ingenuidade e simples ignorância, permi-
tia uma relação imediata com os objetos e, em virtude do potencial de ceticismo,
engenho e ironia [...] podia elevá-los à consciência crítica” (1996, p. 397). Muito
mais que isso, ele não deixaria passar a oportunidade de dizer que,
par

A experiência – a continuidade da consciência em que perdura o ainda


Ed

não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tra-


dição no indivíduo – fica substituída por um estado informativo pontual,
desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado
ão

no próximo instante por outras informações. Em lugar do temps durée,


conexão de um viver em si relativamente uníssono que desemboca no
julgamento, coloca-se um “É assim” sem julgamento, algo parecido à
s

fala dos viajantes que, do trem, dão nomes a todos os lugares pelos quais
ver

passam como um raio, a fábrica de rodas ou de cimento, o novo quartel;


sempre prontos para dar respostas inconsequentes a qualquer pergunta
(ADORNO, 2010, p. 33).

O desencantamento do mundo como efeito da perda da tradição é, para


Adorno, “uma devastação do espírito que se apressa em ser apenas um meio, o
que é, de antemão, incompatível com a formação” (p. 21). Entre outras coisas, 
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 283

A energia desapareceu das idéias que a formação compreendia e que lhe


insuflavam vida. Nem atraem os homens como conhecimento, pois se
considera que ficaram muito atrás da ciência, nem lhes servem como
normas (p. 24).

or
E a história não poderia representar tão bem esse estado de coisas com
a qual compartilha a atual conjuntura brasileira, ainda que fosse planejado

od V
em um roteiro de novela. Por aqui tem quem diga que o peixe é inteligente e

aut
que desvia do óleo, que a floresta não pega fogo porque é úmida, que a terra
é plana, que as universidades federais cultivam drogas e que os professores

R
ensinam o comunismo. Como não são apenas ironias, o desatento leitor precisa
ser lembrado que por parecidos argumentos e por outras filiações ideológicas

o
recursos financeiros e bolsas de estudo são cortadas nas universidades e institu-
aC
tos federais, cursos e atividades acadêmicas diversas são discriminadas quando
não impossibilitadas. A universidade está sendo sucateada e atacada, a arte
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censurada e ameaçada claramente por gestões autoproclamadas conservadoras.


O meio ambiente devastado por políticas que parecem se inclinar à defesa de
visã
quem desmata, de quem explora irresponsavelmente a terra, os rios e outros
recursos naturais. A vida está em perigo e é diariamente ameaçada por quem
deveria protegê-la. 
itor

Não faz tanto tempo que um governador desceu de um helicóptero come-


a re

morando a execução de um jovem que nunca teve passagem pela polícia, que
não roubou ninguém e que, ao que parece, sequestrou um ônibus quando
estava, minimamente, fora do seu estado psicológico normal (segundo decla-
rações de autoridades policiais e de familiares aos meios de imprensa ali pre-
sentes). Ele foi executado fora do ônibus, após não conseguir incendiar uma
par

cortina, não conseguir jogar um sinalizador na estrada, fazer uma gambiarra


que não parecia eficiente e descer do ônibus algumas vezes desprotegido da
Ed

polícia autorizada a matá-lo.


Os pormenores dessas cenas misturam o alívio de desesperados passagei-
ros e familiares que nada podiam fazer, o desfecho comemorado pelo executor,
ão

pelo mandante da execução, pelos jornalistas que transmitiam ao vivo e o


pedido de desculpa da família sob a justificativa de que (envergonhada com
s

todo o cenário) não teria cumprido bem seu papel para com a “formação” do
ver

jovem. Comemorações de populares e a narrativa dos jornalistas pareciam


concordar com a eficiência letal da polícia contra “bandidos”. 
As câmeras, as luzes, os dados, as entrevistas, as imagens, o posicio-
namento dos personagens e, por fim, o desfecho comemorado. Ao que tudo
indica, o horror que sequer deveria ser transmitido ao vivo coincidiu com
aquilo que há décadas é oferecido nas salas de cinemas, em programas de TV
e mais recentemente presentes nos discursos de algumas autoridades. Com
284

tanta procedência, com tantas informações que sugeriam a expectativa pelo


disparo letal, ainda sim, não parecia ser a morte (o fim real da vida) o que os
presentes esperavam e que depois comemoraram. O espírito semiformado
estava presente nas comemorações. E, não seria por demais ousado supor
que esse espírito semiformado sentiu-se dentro de um cenário, que cansou-se

or
da duração (maior do que as cenas produzidas pela indústria cultural), que

od V
lembrou-se das atividades que estavam interrompidas devido à paralisação

aut
do trânsito, ao fim, preferiu concordar com o defecho, a despeito de se retirar
uma vida. Ou seja, ao invés “do temps durée, conexão de um viver em si rela-

R
tivamente uníssono que desemboca no julgamento, coloca-se um ‘É assim’”
(ADORNO, 2010, p. 33). 
De igual maneira, não deveria ser a preservação de vidas (as dos reféns)

o
que comemoravam. Não há sequer no cenário brasileiro muitas referências trá-
aC
gicas de episódios semelhantes cujos reféns foram mortos (ainda mais tantos)
a ponto de sustentar que este realmente poderia ser o desfecho que temiam a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ponto de aprovarem a execução. O excesso de estímulos provoca no semifor-
visã
mado um recuo, uma proteção contra aquilo para o qual não está preparado.

A semiformação é uma fraqueza em relação ao tempo, à memória, única


mediação capaz de fazer na consciência aquela síntese da experiência que
itor

caracterizou a formação cultural em outros tempos (ADORNO, 2010, p. 33).


a re

Esta “fraqueza em relação ao tempo” e as dificuldades do sistema senso-


rial atacado pelo espírito doutrinado sabotam o que pela experiência deveria
se renovar. Adorno não viveu para ver o rebaixamento de um ministério
da cultura brasileira a uma secretaria dentro do ministério do turismo. Mas
par

certamente concordaria que este é um exemplo emblemático dos efeitos da


semiformação, tão almejada pela indústria cultural quanto pelas alas conser-
Ed

vadoras dos dias atuais. 


Por outro lado, Adorno identificou no livro chamado “Great Symphonies”,
ão

de Sigmund Speath, aquilo que também exemplifica como efeitos danosos da


semiformação e os instrumentos imediatistas da indústria cultural. No caso em
questão, Speath, sob a premissa da época de que “para mostrar sinais da pessoa
s

culta, se deve reconhecer de pronto as obras sinfônicas típicas e obrigatórias


ver

na crítica musical”, recorreu a um método que “consiste em colocar letra nos


principais temas sinfônicos - frequentemente com assuntos estranhos a eles
- para que possam ser cantados e forcem a memorização de frases musicais”
(ADORNO, 2010, p. 28). Speath propõe incorporar versos aos acordes da
“Symphonie Pathétique”, de Tchaikovski, denominando-os como “de análise
crítica e memorização” que reproduzimos abaixo em seu idioma original.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 285

his music has a less pathetic strain,


It sounds more sane and not so full of pain,
Sorrow is ended, grief may be mended,
It seems Chaikovski will be calm again!
“Esta música tem um acento menos patético

or
Seu som é mais suave e não tão cheio de dor
Não mais perturbado, eis que domina a situação

od V
Agora, Tchaikovski voltará à calma!”

aut
(SPEATH apud ADORNO, 2010, p. 28).

R
Para Adorno, trata-se de “uma explosão de barbárie” que não favorece a
consciência musical e dá pistas sobre a semiformação. Empobrece, infantiliza e

o
idiotiza o conteúdo da obra, “a agarram e chupam de seu êxito como sangues-
sugas, testemunhas concludentes do fetichismo da semicultura em suas relações
aC
com os objetos” (p. 29) e continua, “muito dificilmente alguém que tenha memo-
rizado esses temas com tais letras horripilantes conseguirá depois libertar-se de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

semelhantes palavras e escutar a música como ela é, um todo harmonioso” (p. 29).
visã
Vem tornando-se cada vez mais comum que os efeitos da semiformação
atinjam em escalas antes pouco vividas as diretrizes políticas de um país e
de áreas como a dos direitos humanos, da cultura e da ciência e da educação
de maneira mais geral. 
itor

Atingem com força tamanha que mesmo sob a frágil premissa de combate
a re

à ideologização ouvimos de dentro do ministério da educação que esta pasta


deve tratar do ensino e que a educação é tarefa familiar. O nível da argumen-
tação em nada supera muitos posts que circulam nas redes sociais tratando
a escola, a família, os professores como responsáveis, cada qual, por partes
par

isoladas de um todo, a que também inocentemente acredita ser suficiente para


a formação das novas gerações. Após as influências escolanovistas no Brasil
Ed

os sentidos de termos como educação e ensino foram separados um do outro,


e não por acaso, o século XX foi marcado pelas discussões metodológicas no
campo educacional. Ainda que os dotes intelectuais de nossos representantes
ão

não estejam à altura das cadeiras que ocupam, a ponto de confundir o nome
de um escritor (Kafka) com o de uma iguaria árabe (kafta), ainda assim, o
que se vislumbra sob os efeitos da semiformação é ainda mais tenebroso, uma
s

vez que “o entendido e experimentado medianamente — semi-entendido e


ver

semi-experimentado — não constitui o grau elementar da formação, e sim


seu inimigo mortal” (ADORNO, 2010, p. 29).
E se a constituição do espírito, se a construção do caráter que essa
sociedade deverá promover tiver como alvo pessoas que pressionam os mais
comuns aspectos físico-corporais e/ou intelectivos, de sensorialidade, entre
tantas outras heterogeneidades humanas?
286

Ainda que não reivindiquemos, tais pessoas costumam ser agregadas


na grande categoria pessoas com deficiência – entre outras nomenclaturas
que hoje ora soam jocosas (deficiênte mental) ora soam eufêmicas ou cínicas
(excepcionais). Se, a semiformação é uma determinação social para a formação
da contemporânea sociedade capitalista, para esse grupo inespecífico diverso

or
e plural, que tipo de formação tem sido implementada? Relatos de vida dessas

od V
pessoas evidenciam experiências de não-pertencimento à comunidade, nem

aut
convivência que remonte à herança grega. Na sociedade capitalista atual,
muitas vezes não têm sido devidamente tratados como cidadãos. Temos sido
mais familiarizados com a exposição de pessoas que têm a surdez como um

R
de seus traços subjetivos (LUZ, 2013).
A literatura distópica de George Orwell (1949) cunhou o termo despes-

o
soas. Na obra “1984”, o autor nos mostra um mundo no qual a vontade do
aC
fascismo não desapareceu, um país onde guerra é paz, liberdade é escravidão
e ignorância é força, e onde há uma deliberada intervenção nas expressões

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


idiomáticas de maneira que se pudesse inviabilizar formas de pensamento
contrárias às necessidades ideológicas. Despessoas são aqueles cujas exis-
visã
tências são apagadas de forma deliberada.
A esse grupo também é reservada uma cota de consumo cultural. Há
promessas de acesso pela inclusão nos sistemas (de)formativos. Todavia, com
itor

Adorno repetimos que à cultura cabe a autorreflexão crítica sobre os processos


a re

formativos direcionados para esse grupo. Repetimos, a superação do quadro


não se restringe às intervenções pedagógicas ou burocráticas. Acerca da sur-
dez, não é suficiente matricular alunos em escolas que não se especializam
para atender ao público que nos oferece esse traço humano (KELMAN, 2012).
par

E uma vez que a formação não se limita à escolarização, à cultura questio-


namos se os processos voltados aos surdos promovem sua humanização. Ou
Ed

seja, tudo o que foi argumentado quanto ao público médio – que apesar de ser
também singular não apresenta características que possam ser usadas como
mecanismos de estereotipia – pode ser majorado quando referido a quem nem
ão

é notado como pessoa.


Retomamos as indagações iniciais: Como constituímos o espírito na
atualidade? Como esta constituição se consolida mediante tanto atrito com o
s

desenvolvimento da sociedade? Como separar aquilo que constitui a formação


ver

daquilo que forja seu caráter e objetivo? 


Embora já tivéssemos apontado a contingência deste intento permanecem
algumas constatações: avaliação crítica da realidade e das nossas ações como
educadores, em outras palavras, a necessidade de indagações constantes;
a recusa das demandas como nos chegam; a afirmação da experiência e o
fomento à compreensão de todos os entes envolvidos nos processos formativos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 287

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
CARTOGRAFIA TEMÁTICA E
CARTOGRAFIA PARTICIPATIVA:
contribuições para uma abordagem materialista

or
do tripé ensino-pesquisa-extensão

od V
aut
Daniel Sombra
Otávio do Canto

R
Carlos Jorge Nogueira de Castro
Madson José Nascimento Quaresma

o
aC
Introdução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O presente artigo apresenta algumas contribuições da cartografia, um


conjunto de conhecimentos historicamente ligado à geografia, mas de natureza
visã
interdisciplinar, na medida em que dialoga diretamente com outras discipli-
nas cientificas, para uma abordagem materialista de aplicação de práticas de
ensino, pesquisa e extensão.
itor

Compreende-se que a cartografia, como um processo de codificação do


a re

mundo, em suas dimensões diversas (o que a filosofia e a geografia, entre


outras nomearam como as dimensões absoluta, relativa e relacional do espaço),
contribui efetivamente para os processos gnosiológico, epistemológico e onto-
lógico. São processos de totalização, de compreensão das relações sociais,
par

mediadas pelo mundo, e de suas propriedades. O primeiro diz respeito ao ato


de conhecer, de saber, de aprender. Há diversas formas de aprendizagem e
Ed

de inteligências, e, portanto, de ensino, anteriores, aquém e além da ciência


(GARDNER, 2003). O campo do ensino é, portanto, diverso.
O segundo diz respeito ao ato investigativo, logo, à capacidade das pes-
ão

soas, em sociedade, de inquirir, de analisar, de sistematizar o que é apren-


dido. Esse é o campo da pesquisa, tão caro à ciência. Há diversas formas de
conhecimentos, as quais costumam ser, grosso modo, classificadas como
s

“conhecimento empírico” (ou senso comum), “conhecimento teológico”,


ver

“conhecimento filosófico” e “conhecimento científico” (JAPIASSU, 1991).


Essa é uma categorização apriorística, que, de uma perspectiva muito própria
ao conhecimento científico ocidental, englobou uma diversidade de conhe-
cimentos de tempos e espaços distintos como “conhecimentos empíricos”.
Perspectiva hoje questionada por diversos autores, que anunciam a emergência
de “epistemologias do Sul”, ou seja, para além do mundo europeu e anglo-
-saxão (SANTOS, 2019).
290

O processo ontológico é, talvez, o mais importante. Simplificando, tem-


-se, aqui, o que as universidades chamam de extensão. A Extensão Universitá-
ria, sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão, é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e
político que promove a interação transformadora entre Universidade e outros

or
setores da sociedade (FORPROEX, 2012). Nesse campo, se encontram ensino

od V
e pesquisa na direção do empoderamento social, com o conhecimento cien-

aut
tífico utilizado para gerar produtos e serviços úteis às questões e demandas
urgentes dos tempos contemporâneos.

R
A cartografia em geral, e em particular, a cartografia temática, e sua apli-
cação na construção da cartografia participativa possuem especial relevo nas
práticas de compreensão da organização do mundo, não apenas da perspectiva

o
disciplinar da geografia, mas, sobretudo, no que tange ao empoderamento das
aC
sociedades, dos sujeitos sociais locais, das comunidades em geral frente aos
processos de totalização do mundo. Na perspectiva de construir conhecimento

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de forma conjunta com as pessoas, a cartografia é um processo de alfabetiza-
visã
ção, codificação e desvelamento do mundo, de suas relações constituídas, e
esses são fundamentos do processo de construção do futuro.

O materialismo dialético e o tripé ensino-pesquisa-extensão


itor
a re

O materialismo é conhecido nas abordagens científicas e filosóficas há


séculos. O materialismo histórico dialético, propugnado a partir das obras de
Karl Marx e Friedrich Engels se constitui em uma proposição avançada de
materialismo que propugna a práxis como objetivo máximo dos estudos. Ou
par

seja, a vinculação entre a ciência e a aplicação prática na sociedade, em prol


das necessidades das pessoas.
Ed

A geografia, em particular, possui a sua gênese, no que tange à sua


institucionalização enquanto uma ciência no modelo positivo, enraizada em
um materialismo. Trata-se, contudo, de um materialismo vulgar, um determi-
ão

nismo, que enxergava as ações sociais como frutos induzidos pelas condições
naturais. Tal não é a proposição do materialismo histórico dialético. Aqui se
reconhece o motor ativo da história: a luta de classes. Reconhece-se a capa-
s

cidade de as pessoas em sociedade construírem a sua própria história, ainda


ver

que contingenciadas pelas condições concretas (não apenas as da natureza,


mas também atinente aos fenômenos sociais) que cada sociedade enfrenta em
determinado espaço, e em determinado tempo (MARX, 1984).
Para Marx e Engels (2007), o conhecimento é resultante das condições
materiais, dessas contingências estruturais que as sociedades enfrentam em
seu tempo e espaço. E, dentre essas, cabe destaque ao trabalho acumulado,
ou seja, o trabalho social das gerações anteriores e presentes, cristalizados
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 291

em objetos na paisagem, em formas de organização do meio em que se vive


(SANTOS, 2009). E nisso influem também as relações sociais, os fenômenos
culturais, enfim, aquilo que Durkheim (2004) nomeou de fatos sociais, como
um conjunto de fenômenos exteriores e coercitivos, herdados das gerações
anteriores, que cada sujeito particular enfrenta ao se relacionar socialmente,

or
mediado pelo mundo.

od V
Não há conhecimento teórico que sirva apenas à contemplação. O

aut
conhecimento é produzido socialmente, e qualquer que seja a sua natureza
ontológica e epistemológica, ele serve, fundamentalmente, à reprodução da

R
sociedade, e, portanto, à reprodução de suas relações de poder, de produção
etc. O conhecimento também serve, assim, aos avanços sociais, que são supe-
rações de relações sociais, de valores, de fundamentos, que já não satisfazem

o
às necessidades sociais de uma determinada geração, em seus projetos, e sua
aC
mediação com o mundo. A questão motriz, portanto, é identificar a qual fim
está se dando a produção e a aplicação dos conhecimentos.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Em se tratando de processos de alfabetização, e, entendendo-o como o


visã
amplo espectro de habilidades de codificação das relações sociais mediadas
pelo mundo, o interesse pela escolha dos “temas geradores” está na constru-
ção de habilidades1 que auxiliem no projeto civilizatório de emancipação das
pessoas. Isto significa, em última instância, a libertação das pessoas de suas
itor

limitações, de todas as formas de opressão existentes. Cabe a cada campo


a re

uma contribuição particular para esse projeto utópico, que aponta na direção
de um devir universal da civilização. A contribuição da ciência e de suas
especialidades (as chamadas ciências parcelares ou particulares) está em iden-
tificar as variáveis e relações estruturantes de determinado fenômeno. Mas
par

se a ciência se pretende útil ao projeto de emancipação das pessoas, faz-se


necessário que na medida em que a interpretação de dado tema avance no que
Ed

tange à compreensão de seus elementos constitutivos, ou seja, na medida em


que avance o campo da pesquisa propriamente dita, haja um esforço paralelo
e sincrônico nos campos do ensino e da extensão.
ão

Isso significa, antes de tudo, um avanço – um esforço coletivo, sinér-


gico e comprometido – com a conscientização das pessoas (uma alfabetização
acerca das relações sociedade-mundo), e o oferecimento de serviços, produtos,
s

habilidades etc. que auxiliem no processo de emancipação das pessoas. Cabe


ver

afirmar, que sejam úteis à sociedade e suas demandas concretas, nos tempos
curto, médio e distante. Se é interessante que o campo da pesquisa avance na

1 “O importante [...] não é a transmissão de conteúdos específicos, mas despertar uma nova forma de relação
com a experiência vivida. A educação libertadora questiona concretamente a realidade humana, as relações
sociais e as relações entre sociedade e natureza. A metodologia privilegiada é o ‘grupo de discussão’ e a
avaliação não é uma imposição ou memorização, mas um nível crítico do conhecimento, ao qual se chega
pelo processo de compreensão, reflexão e crítica” (SOMBRA; QUARESMA; CASTRO, 2015, p. 151).
292

direção da modelagem de cenários futuros e diversos, e tenha ampla capacidade


de projeção no tempo distante, também o é igualmente importante que a ciên-
cia ofereça soluções para os problemas cotidianos que as pessoas enfrentam.
Qualquer que seja o horizonte de projeto de futuro, não é possível, nem
cabível, que se espere que uma mudança cataclísmica tenha que ocorrer para

or
que as pessoas possam resolver os problemas da ordem do dia. É necessário

od V
que o conhecimento, a técnica e a tecnologia acumuladas estejam ao dispor

aut
da sociedade, ao dispor do público para que juntos, as pessoas, cientistas ou
não, possam colaborar na construção de um projeto de futuro sempre melhor
do que o presente que se vive.

R
Não se trata de asseverar a necessidade de qualquer dirigismo de parte dos
intelectuais sobre as massas populares. Este tipo de auxílio constitui, na reali-

o
dade, uma “caridade” que não contribui, efetivamente, para o empoderamento
aC
social. A real contribuição dos professores, pesquisadores e cientistas em
geral para o processo de emancipação social é fornecer os instrumentos con-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


solidados pela ciência para que as pessoas possam refletir e atuar de maneira
autônoma sobre a realidade, para cuja reprodução contribuem cotidianamente
visã
com seu trabalho concreto em casa, nas escolas, nas ruas, nos campos, nas
fábricas, nos escritórios, nos meios de transporte etc.
As necessidades das pessoas geram os “temas geradores” a serem abor-
itor

dados nos processos de ensino, e, sobretudo, de extensão. Quanto mais livre é


a re

a proposta, e, em geral, o é em processos de educação fora dos ambientes de


educação sistemática, mais peso têm os temas geradores. Aos pesquisadores
cabe sempre colaborar com os “temas dobradiças”, que nada mais são dos
que os conceitos, categorias, abordagens e métodos científicos essenciais que
par

funcionam como elos de ligação entre os temas pertinentes aos sujeitos sociais
e a compreensão analítica dos sistemas ou elementos particulares destes temas,
Ed

os quais a ciência pode detalhar e sistematizar (FREIRE, 2015).


Assim, há uma inter-relação ontológica entre ensino, pesquisa e exten-
são, na medida em que sem os conhecimentos locais, ou, na realidade, sem
ão

os sujeitos sociais dos lugares, e suas relações de reprodução de si mesmos,


mediados pelo mundo, não há possibilidade de pesquisa efetiva, ao menos
no campo das ciências humanas e sociais. O próprio ensino possui sentido
s

enquanto uma educação emancipadora, de fato útil aos problemas e questões


ver

contemporâneas, útil à libertação, enquanto projeto finalístico, e ancorado no


diálogo de saberes.
O ensino, destarte, deve apresentar a ciência, com o seu rigor, seus métodos
e técnicas, bem como seu conhecimento acumulado, caudatário da filosofia. Não
deve se furtar à missão de problematizar a história da própria ciência. A ciência
é fruto de um projeto de mundo da burguesia europeia, e serviu à construção de
uma geografia do espaço mundial baseada na exploração sistemática dos povos
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 293

e ambientes dos outros continentes do globo. Ao ensino cabe ilustrar, porém,


como a ciência pode ser utilizada não apenas para a dominação, mas também
para a emancipação. Ao campo do ensino cabe a apresentação de outras formas
de conhecimento, uma vez que, no mundo, e nos lugares, uma diversidade de
formas de saber, de conhecer, de compreender as relações entre as pessoas, e

or
mediação do meio ambiente, e os elementos constitutivos e propriedades físicas,

od V
químicas, biológicas da natureza exterior ao humano (FREIRE, 2015).

aut
E, neste sentido, a extensão ganha uma conotação determinante no pro-
cesso de construção da práxis. É através da extensão que os campos do ensino
e da pesquisa, campos construídos com a sinergia do trabalho coletivo, conver-

R
tem-se, ao fim e ao cabo, em serviços e produtos, em ações diretas de benefício
à sociedade. Por isso, a extensão esteve sempre entre as principais pautas das

o
organizações estudantis na América Latina, desde o início do Século XX, com a
aC
realização de congressos estudantis latino-americanos (MARIÁTEGUI, 2010).
A extensão é o momento social que dá significância real ao que se pesquisa,
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e ao que se ensina. A própria construção do conhecimento, no momento da


aprendizagem, exige uma mediação social, e uma mediação com o mundo.
visã
Durante o processo de aprendizagem, os sucessivos ajustes que a pessoa que
aprende, seja uma criança, seja um adulto, processa em relação ao meio social
e geográfico em que vive, se manifestam em seu desenvolvimento cognitivo.
itor

Do ponto de vista construtivista, no ensino formal, chegou-se, na psi-


a re

cologia da aprendizagem, à noção de estágios de desenvolvimento, noção


que possui como características: a) caráter integrado de cada estádio, pois as
estruturas construídas e específicas de determinada idade da criança tornam-se
parte integrante da estrutura da idade seguinte; b) estrutura de conjunto, uma
par

vez que os elementos constituintes de determinado estádio estão intimamente


ligados entre si e contribuem conjuntamente para caracterizar determinada
Ed

conduta; c) o estágio alcançado como um nível de preparação para a etapa pos-


terior, não surge definido e acabado, mas evolui no sentido da sua superação;
e, d) os estágio sendo momentos de desenvolvimento social, não estando, do
ão

todo, limitados à questão cronológica da idade dos indivíduos em processo


de aprendizagem (PIAGET; INHELDER, 1989).
O presente artigo, após este introito, apresenta como através da cartogra-
s

fia pode-se construir uma metodologia interdisciplinar. A cartografia é uma


ver

habilidade de representação (codificação) do meio em que se vive (do espaço


geográfico) em globos, plantas e mapas. Entendida como uma forma de alfa-
betização e comunicação, a cartografia esteve presente em todas as grandes
civilizações conhecidas, até se tornar um campo interdisciplinar, sobretudo
com os avanços das chamadas “geoteconologias” (SOARES et al., 2018).
Em geral, como em outros campos, o avanço da globalização, com a
construção de um sistema de ações e um sistema de objetos indissociáveis
294

em escala mundial, materializando um espaço geográfico mundial (SANTOS,


2009), se partiu de cartografias particulares, muito próprias a cada povo, com
seu espaço e tempo, para um sistema de significações mundiais, inteligível
a vários povos (SOARES et al., 2018). A geografia, em particular, tem sido
uma ciência historicamente ligada ao uso da cartografia, embora não a única.

or
Para se tornar um código inteligível, a cartografia, tal como os idiomas,

od V
faz uso de um alfabeto. O alfabeto cartográfico é composto de pontos, linhas

aut
e polígonos, e possui variações de ordem, intensidade e proporcionalidade
(CASTRO; SOARES; QUARESMA, 2015). A cartografia auxilia o diálogo

R
de conhecimentos, fornecendo uma plataforma – um objeto intermediário
(PIRAUX; SOARES; SIMÕES, 2017) – onde o conhecimento científico e os
conhecimentos locais se inter-relacionam, proporcionando uma compreensão

o
do meio social, nas dimensões do que a geografia nomeia de espaço absoluto,
aC
espaço relativo e espaço relacional.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Relações entre ser social e mundo: espaço absoluto, relativo
visã
e relacional

Antes de seguir com as contribuições da cartografia para a alfabetiza-


ção para a compreensão das relações sociedade-mundo, em uma abordagem
itor

materialista, comprometida com a integralidade do tripé ensino-pesquisa-ex-


a re

tensão, faz-se necessário apresentar o que significam espaço absoluto, relativo


e relacional. São, assim, “temas dobradiças” que auxiliam no processo de
alfabetização cartográfica, que, antes de tudo, é um processo de compreensão
e codificação das relações sociedade-mundo.
par

Para a geografia, a produção do espaço é característica fundamental de


cada civilização, enquanto fabrico dos objetos necessários à reprodução dos
Ed

seres humanos em sociedade, modificando o sítio natural, recriando-o como


um sistema de posições (MOREIRA, 2012). Trata-se de um processo coletivo,
no qual é utilizada a energia sincronizada de muitos seres humanos. A produ-
ão

ção do espaço se relaciona com a produção econômica em sentido estrito, na


medida em que toda produção é uma produção espacial a partir do material
s

disponível, a que se pode chamar de primeira natureza.


ver

A segunda natureza não é paisagem com seu trabalho já cristalizado –


essa é sinônimo de configuração territorial como disse Santos (1994) – mas
sim o processo de reprodução, portanto a partir da primeira natureza, da
paisagem, do trabalho já cristalizado. A paisagem é, portanto, o sítio natural
somado às próteses sociais. O espaço é a síntese do trabalho em ação, em ato,
em elaboração, sobre esta paisagem. Uma tríade conceitual interessante para
essa reflexão acerca da categoria espaço é fornecida por Lefebvre (2000).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 295

Para Souza (2009), a ideia de espaço abstrato, tal como o manejado por
economistas neoclássicos, não consegue destituir as contradições da realidade
prática e sensível imediata, além de abrigar novos conflitos concernentes
à própria lógica econômica e política. Assim, para Souza (2009), surge o
espaço das diferenças, fragmentado pela resposta da sociedade local à implo-

or
são (comandada de longe) de uma ordem. Para este autor, a ordem próxima

od V
refere-se aos espaços de representações (diferenciais) imediatas, que espelham

aut
as especificidades que não conseguem ser coagidas pela abstração do espaço.
Isso significa, conforme já havia indicado Santos (2008) que as repre-
sentações e ideologias não podem ser consideradas apenas virtualidades que

R
vão além da realidade para alimentar uma racionalidade abstrata e ideológica.
Para Lefebvre (2000), essa definição não é aplicável quando tais representa-

o
ções incorporam experiência imediata e sensível, uma vez que elas podem
aC
suprimir a abstração, eliminando a estagnação e a homogeneidade artificial
do conceito de espaço.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Assim, a análise da dialética do espaço significa refletir sobre as contradi-


ções presentes no espaço comercial, uma abstração que é concebida como um
visã
mundo a partir do consumo do espaço. No entanto, a sociedade constitui um
ser social que usa o espaço para viver de acordo com condições naturais e his-
tóricas específicas. Tal realidade requer definições mais precisas dos níveis de
itor

análise, que não podem ser separados ou confusos, mas devem ser indicados por
a re

reflexão, considerando as múltiplas dimensões do espaço. Do contrário, pensa


o filósofo, a análise dialética se torna mecânica, evolucionista ou historicista.
Para Lefebvre (2008), o espaço permite uma análise escalar em duas
direções. A primeira, do geral ao específico, e a segunda, do singular ao geral,
par

a partir dos elementos e significados observáveis nas singularidades. Esta


segunda opção constitui um tipo de semiologia espacial, capaz de fornecer
Ed

uma síntese entre abstrato e concreto. Contudo, neste momento mais interessa
dissecar as três dimensões, ou três momentos do espaço, de acordo com
Lefebvre (2000): o espaço concebido, o espaço percebido e o espaço vivido.
ão

O espaço concebido diz respeito à representação abstrata traduzida no


capitalismo pelo pensamento hierárquico, imóvel, distante do real. Emergindo
de um conhecimento técnico e ideológico, as representações do espaço privi-
s

legiam a ideia de produto devido à supremacia do valor da mudança na racio-


ver

nalidade geral e inunda a ideologia do planejamento e do desenvolvimento


urbano e regional. O espaço percebido aparece como uma intermediação da
ordem distante e da ordem próxima. Este é concernente às práticas espaciais,
as quais são criadas e recriadas a partir de atos, valores e relações específicos
de cada formação social. E, com isso, as representações mentais do espaço
materializam distintas funcionalidades e usos, respondendo às estremaduras
do processo de reprodução social (reprodução das relações de produção).
296

O espaço vivido, por seu turno, é a dimensão ou momento que denota as


diferenças em relação ao modo de vida. Como a experiência cotidiana (ordem
estreita) está ligada ao espaço das representações através da insurreição dos
usos contextuais, tornando-se um resíduo clandestino do trabalho e do irra-
cional, o espaço social termina por ser a expressão mais concreta do espaço

or
vivido. É aqui, de acordo com Lefebvre (2000), que em sua dimensão plena

od V
se compreende a soberania dos seres humanos sobre os objetos, mediante sua

aut
apropriação pela corporalidade das ações humanas.
Harvey (2015), a partir de Lefebvre (2000), em uma abordagem mais geo-

R
gráfica, ilustra a complexidade de lidar com o espaço como categoria central de
um estudo social. Isso implica não perder de vista o significado da paisagem,
pois ela sempre aqui está, mas as dimensões do espaço são superiores. Harvey

o
(2015) mostra como as dimensões clássicas newtonianas do espaço absoluto
aC
e espaço relativo, acrescidos do espaço relacional (aqui já algo enraizado
a partir de Einstein) cruzam com as dimensões que Lefebvre (2000) havia

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nomeado de espaço percebido, espaço concebido e espaço vivido, aos quais
visã
Harvey (2015) renomeia respectivamente de espaço material, representações
do espaço e espaços de representação. O quadro 1 abaixo reproduz a matriz
de pensamento de Harvey (2015) sobre as dimensões do espaço.
itor

Quadro 1 – Matriz de dimensões do conceito de espaço


a re

Espaço material (espaço Representações do espaço Espaços de representação


experimentado) (conceitualizado) (espaço vivido)
Sentimentos de satisfação
Muros, pontes, solo, em torno do círculo familiar;
Mapas cadastrais e administrativos;
portas, teto, ruas, edifícios, sentimento de segurança
par

geometria euclidiana; descrição


cidades, montanhas, ou encerramento devido ao
da paisagem; metáforas do
Espaço continentes, extensões confinamento; sentimento
confinamento, espaço aberto,
Ed

absoluto de água, marcadores de poder conferido pela


localização, arranjo e posição
territoriais, fronteiras propriedade, comando
(comando e controle relativamente
e barreiras físicas, e dominação sobre o
fáceis) – Newton e Descartes.
condomínios fechados. espaço; medo de outros
ão

que ‘não são dali’.


Cartas temáticas e topológicas (ex.:
o metrô de Londres); geometrias e Ansiedade por não chegar
Circulação e fluxo
s

topologias não euclidianas; desenhos na aula no horário; atração


de energia, água, ar,
de perspectiva; metáforas de pela experiência do
ver

Espaço mercadorias, povos,


saberes localizados, de movimento, desconhecido; frustração num
(tempo) informação, dinheiro,
mobilidade, deslocamento, aceleração, engarrafamento; tensões ou
relativo capital; acelerações
distanciamento e compressão do divertimentos resultantes da
e diminuições da
espaço-tempo (comando e controle compressão espaço-tempo,
fricção da distância.
difíceis requerendo técnicas da velocidade, do movimento.
sofisticadas) – Einstein e Riemann.
continua...
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 297

continuação
Espaço material (espaço Representações do espaço Espaços de representação
experimentado) (conceitualizado) (espaço vivido)
Fluxos e campos de
Surrealismo; existencialismo;
energia eletromagnética;
psicogeografias; ciberespaço;
relações sociais; Visões, fantasmas, desejos,
metáforas de incorporação de

or
Espaço superfícies econômicas frustrações, lembranças,
forças e poderes (comando e
(tempo) e de renda potenciais; sonhos, estados psíquicos
controle muito difíceis – teoria do

od V
relacional concentração de poluição; (ex.: agorafobia, vertigem,
caos, dialética, relações internas,
potenciais de energia; claustrofobia).

aut
matemáticas quânticas_ - Leibniz,
sons, odores e sensações
Whitehead, Deluze, Benjamin.
trazidas pelo vento.

R
Fonte: Harvey (2015). Elaborado por Soares (2021).

À esquerda, Harvey (2015) privilegia as dimensões possíveis a partir do

o
espaço absoluto, que apresenta referenciais físicos de larga duração, enquanto
aC
que o espaço relativo privilegia movimentos, e a dimensão da circulação. Ao
espaço relacional, por seu turno, cabem as relações sociais e a potencialidade
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de uso dos recursos produtivos (espaço absoluto) e dos controles dos fluxos
e das entradas e saídas (espaço relativo). Apresentadas as dimensões da cate-
visã
goria chave, o espaço, é possível destrinchar a categoria do território. Se se
usar os termos de Haesbaert (2006), pode-se partir de uma abordagem onde
o que este autor denomina “território zona” se expressa materialmente na
itor

dimensão do espaço absoluto, enquanto o que ele denomina “território rede”


a re

se expressa no espaço relativo. Contudo, a decisão sobre ambos, a dimensão


espacial da qual partem as definições e projeções sobre o que, como, onde e
quando fazer do espaço absoluto e relativo (e, portanto, do território zona e
do território rede), é a dimensão do espaço relacional. A determinação central,
par

assim, em termos de território, corresponde aos termos mais clássicos, tais


quais aqueles analisados e sistematizados por Costa (1992).
Ed

É importante ressalvar que privilegiar a metanarrativa e os fenômenos


estruturais do mundo em totalização não implica em negar o cotidiano, a sub-
jetividade ou mesmo a percepção. Harvey (2015) assevera que nas sociedades
ão

históricas, o ser social coletivo, as pessoas, as massas e os sujeitos, os indiví-


duos, todos percebem, de acordo com suas capacidades, limites e suas próprias
trajetórias geográficas de um modo o espaço absoluto, o espaço relativo e o
s

espaço relacional. É distinto isso do modo como se concebe, se conceitualiza,


ver

ou, ainda melhor, como se representa o espaço geográfico. Essa contradição e


diversidade se expressa na própria cartografia, onde o geoprocessamento lida
muito bem com as combinações lógicas de fluxos e movimentos do espaço
relativo casados às posições de larga duração do espaço absoluto, mas não
conseguem captar com maestria as iconografias que impõem atrito às forças
hegemônicas, para utilizar os termos de Gottmann (1979), outro autor que se
debruça sobre o significado do território.
298

Há ainda as dimensões do espaço vivido, em cruzamento com espaço


absoluto, relativo e relacional, cada uma delas revelando uma clivagem com-
plexa, que fazem parte da geograficidade do real, embora sejam de particular
dificuldade para as pesquisas abordarem, sobretudo quando o objetivo em
questão ainda é oferecer uma metanarrativa explicativa, um quadro amplo

or
de posições e localizações, para engendrar a própria possibilidade de defesa

od V
frente aos avanços de projetos hegemônicos que circulam numa escala que não

aut
costumeiramente uma daquelas as quais as pessoas acessam em seu cotidiano.
Contudo, é mister reconhecer, ao fim e ao cabo, que a apropriação dos recur-
sos produzidos se confunde com a estruturação política da sociedade, justificada

R
pela normalização dos comportamentos e da divisão do trabalho como cultura
e ideologia. Para Moreira (2011), o território adentra ao processo de produção

o
como o espaço dinamizado a partir de relações de poder – relações de controle
aC
dos recursos ou dos movimentos no espaço. Cada sociedade, assim, possui uma
forma de territorialização, variando de acordo com a estrutura social da produção.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Na era da Geografia do Espaço Mundial, as sociedades hegemonizadas pelo modo
de produção capitalista reproduzem as relações de produção nas quais ocorre
visã
apropriação por alguns, os proprietários dos recursos do território (dos meios
de produção), em detrimento de outros, a maioria, que ficou com sua própria
energia (força de trabalho) como único recurso, alienada dos meios de produção
itor

(MOREIRA, 2011), portanto, desterritorializada (HAESBAERT, 2006).


a re

Assim, em termos sintéticos, e mais apropriados para o seu uso enquanto


“termas dobradiças”, o espaço absoluto diz respeito, grosso modo, às dimen-
sões objetivas do espaço, sejam os fenômenos da natureza, sejam os objetos
frutos do trabalho social coletivo. Identificar as dimensões do espaço absoluto
significa apontar para os referenciais de base de estruturação da organização
par

espacial: estradas, rios, montanhas, praias, planícies, ferrovias, cidades, fazen-


Ed

das, florestas etc. O espaço relativo acrescenta a dimensão do tempo, e, com


isso também a velocidade. Apresenta os acessos e bloqueios. Os caminhos.
Enquanto que o último conjunto, mais complexo, apresenta também as rela-
ão

ções sociais desenvolvidas a partir da mediação com o mundo, ou melhor,


mediadas através das dimensões do espaço absoluto e relativo. O espaço
relacional diz respeito aos usos, aos conflitos, aos significados, às dimensões
s

política, econômica, cultural, simbólica, espiritual etc. que se projetam sobre


ver

o espaço, ao mesmo tempo que são projetadas a partir do espaço geográfico.

Uma cartografia para o espaço absoluto e relativo: sistemas de


ações e sistemas de objetos

Para Joly (2008), a cartografia é uma linguagem que expressa pensa-


mentos, ideias e concepções através de signos e representações. O mapa é
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 299

uma representação geométrica plana, simplificada e convencional, do todo


ou parte da superfície terrestre, que é uma superfície curva, numa relação de
semelhança conveniente denominada de escala, podendo ser representada em
folha de papel ou através do monitor de vídeo. E esta representação da super-
fície curva no plano gera alguns desafios. As definições da forma exata das

or
dimensões da terra nunca representam de forma fiel a realidade. A cartografia

od V
apresenta representações que são construções seletivas, para as quais há uma

aut
busca pelo uso de símbolos e sinais mais apropriados a um determinado tema.
Para Martinelli (2013), o mapa ou produto cartográfico é uma descrição
das características qualitativas e/ou quantitativas referenciadas por pares de

R
coordenadas. Os mapas transmitem mensagens de localização, avaliação das
distancias e orientação no espaço. O mapa apresenta um conjunto de símbolos

o
(pontos, linhas e polígonos), que possuem variações de cor, densidade, forma
aC
etc., e, através destes, constitui-se em meio de comunicação com informações
sobre objetos, formas, fatores e relações encontradas no espaço geográfico. O
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mapa é um produto intelectual, e, embora possa ser elaborado por um indiví-


duo, ele sempre parte do conhecimento coletivo acumulado. Não se trata de
visã
um produto neutro em sua mensagem.
Com o advento do geoprocessamento, a cartografia se tornou muito mais
interativa e intuitiva. O geoprocessamento diz respeito às técnicas computa-
itor

cionais na aquisição, tratamento e análise de informações espaciais. Nesse


a re

contexto, ganham relevância ferramentas denominadas de “Sistema de Infor-


mações Geográficas” (SIG’s), permitindo a realização de análises comple-
xas, integrando dados de inúmeras fontes e permitindo criar banco de dados
georreferenciados, bem como permite elaborar documentos cartográficos
par

(LONGLEY et al., 2013).


Os SIG’s e o geoprocessamento apresentam uma mediação em relação à
Ed

cartografia, que é capaz de integrar dados espaciais de diversas fontes, oriun-


dos ou não de meios computacionais. O uso da cartografia temática possibilita
diferenciar os elementos espaciais, pois a cartográfica temática trabalha com
ão

símbolos de significação universal, em virtude do sistema semiológico monossê-


mico como instrumento que torna diferente os objetos e facilita a sua apreensão
frente as representações cartográficas e seus diversos temas (CONCAR, 2017).
s

A cartografia possui um alfabeto para codificar a realidade tridimensional


ver

em uma representação bidimensional, que serve à identificação, caracterização


e sistematização das dimensões que foi nomeado como espaço absoluto na ses-
são anterior. Para que isso, faz-se necessária a compreensão das três relações
fundamentais que tornam a transcrição de um mapa temático possível, quais
sejam as relações de: a) diversidade; b) ordem; e, c) proporcionalidade;
pois as mesmas excluem qualquer possibilidade de duplo sentido e podem se
manifestar nas variáveis visuais e espaciais. A seguir, se apresentam produtos
300

do trabalho científico do Grupo de Observações Cartográficas da Amazônia


(GEOCAM) para exemplificar essas relações.
Nas relações de diversidade, o aspecto qualitativo (≠) responde à ques-
tão “o quê?”, caracterizando relações de diversidades entre os conteúdos dos
lugares ou conjuntos espaciais (MARTINELLI, 2013). Veja-se o cartograma

or
da figura 1 a seguir.

od V
aut
Figura 1 – Cartograma das Unidades de Federação do Brasil

R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed

Fonte: GEOCAM (2021). Elaborado por Castro (2021).

A representação cartográfica exemplifica a escrita gráfica sob a perspec-


ão

tiva da diversidade existente entra as unidades federativas, utilizando tonali-


dades diferenciadas, de modo a não permitir ambiguidade na leitura sobre a
escrita gráfica empregada.
s

No cartograma apresentado, exemplificado as unidades federativas, são


ver

observados que os estados da macrorregião norte diferem entre si as tonali-


dades de verde; as UF’s do Nordeste na Amarela; Centro-oeste em Laranja;
Sudeste em tons de Azulados; Sul em tons de Lilás. Deste modo, a escrita em
diversidade não permite a reutilização de mesma escrita, em cor e tonalidade
para uma segunda Unidade da Federação.
Ao associar as relações fundamentais com as variáveis visuais, faz-se
com que o mapa temático responda ao que o seu tema está propondo. Nesse
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 301

momento, surgem as relações de ordem. Para Martinelli (2013), a abordagem


ordenada (O) responde à questão “em que ordem?”, caracterizando relações
de ordem entre os conteúdos dos lugares, caminhos ou áreas, etc. Veja-se o
cartograma da figura 2 a seguir.

or
Figura 2 – Cartograma das Unidades de Federação

od V
do Brasil, por população em 2010

aut
R
o
aC
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visã
itor
a re
par

Fonte: GEOCAM (2021). Elaborado por Castro (2021).


Ed

Ao associar as relações fundamentais com as variáveis visuais, faz-se


com que o mapa temático responda ao que o seu tema está propondo, como no
ão

caso da relação de ordem que responde a indagação de como os elementos se


ordenam dentro das representações. As representações quantitativas em mapas
são empregadas para evidenciar a relação da ordem entre os objetos, fatos ou
s

fenômenos (B é quatro vezes maior que A) Martinelli, (2013, p. 63). Esse tipo
ver

de representação facilita o entendimento por parte do educando, justamente


por esta ser transcrita preferencialmente na variável visual de ordenação, como
argumenta Martinelli, (2013, p. 63), mas que pode ser representada pela inten-
sidade com variação visual que transcreve fielmente essa noção de tonalidade.
Por fim, a forma de representar as informações contidas em um mapa
é de suma importância para o entendimento de determinados fenômenos,
por auxiliarem na percepção da realidade e nas interações entre sociedade
302

e natureza. Por isso se faz necessário compreender as diferentes formas de


representação, estas contendo manifestações e relações distintas apresentadas
em um mapa temático. Dentre essas relações destacamos aqui a proporcio-
nalidade, onde “o aspecto quantitativo (Q) responde à questão “quando?”,
caracterizando relações de proporcionalidade entre os conteúdos dos lugares,

or
caminhos ou áreas” (MARTINELLI, 2013, p. 46, grifo nosso). Veja-se o

od V
cartograma da figura 3 a seguir.

aut
Figura 3 – Cartograma das Unidades de Federação do
Brasil, por precipitação em julho de 2020

R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed

Fonte: GEOCAM (2021). Elaborado por Castro (2021).


ão

A representação cartográfica exemplifica a escrita gráfica sob a perspec-


tiva da proporcionalidade dos valores mensurados nos dados de precipitação
de chuva por milímetros. No cartograma apresentado, exemplificado na aná-
s

lise Brasil: precipitação Mês de Julho de 2020, são observados os seguintes


ver

intervalos numéricos em proporcionais, disciplinando a escrita gráfica com


intensidade sobre o tema de precipitação mensal. Essas dimensões apresentam
amplas possibilidades de identificação de ordens de estruturação espacial e
territorial. Podendo ser utilizadas para ampliar o olhar vertical, e poder situar
as experiências vividas dentro do amplo espectro escalar de organização
espacial da sociedade.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 303

Uma cartografia para o espaço relacional: distinções entre


cartografia social e cartografia participativa
O geoprocessamento e a disseminação da cartografia por uma diversidade
de aplicativos, inclusos os presentes nos aparelhos celulares (que, aliás, se

or
tornaram microcomputadores) também auxilia também em cartografia vol-

od V
tada mais propriamente para a codificação de usos, conflitos, das relações de

aut
poder, de trabalho e culturais produzidas a partir e no espaço geográfico. Dois
conjuntos de metodologias de representação têm se destacado no que tange
a essas dimensões: a chamada “cartografia social” e a chamada “cartografia

R
participativa”. Pode-se dizer que ambas possuem uma gênese conjunta, no
“mapeamento participativo” dos anos 1980. Para Araújo, Anjos e Rocha Filho

o
(2020), o mapeamento participativo começou no final da década de 80, com
aC
desenvolvimento de projetos na área rural utilizando croquis geográficos,
dando preferência para o incentivo do conhecimento local, desenvolvendo e
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

facilitando a comunicação entre os habitantes. Para os autores, a partir dos


anos 1990, com a maior difusão das geotecnologias, passou-se à utilização de
visã
sistemas de informações geográficas (SIG), sistemas de posicionamento global
(GPS) e uso de imagens de satélites para auxiliar as técnicas de mapeamento.
Para Araújo, Anjos e Rocha Filho (2020), o mapeamento participativo
itor

constitui abordagem interativa baseada nos conhecimentos das populações


a re

locais permitindo aos participantes desse processo criar seus mapas repre-
sentando os elementos mais significativos para essa população. Para Silva e
Verbicaro (2016), a cartografia participativa apoiada na tecnologia compu-
tacional constitui uma importante ferramenta para analisar as diversas terri-
torialidades do espaço geográfico baseadas no cotidiano dos sujeitos locais.
par

Para os autores, a cartografia participativa é uma metodologia de análise do


território. Para Tomaz (2020), também é indicada para a análise ambiental.
Ed

Para o IFAD (2009), há critérios para o reconhecimento de mapas comuni-


tários e definição do mapeamento participativo. Assim, o mapeamento participa-
tivo ser definido pelo: a) processo de produção, no qual os mapas participativos
ão

são planejados com um objetivo comum e a participação da comunidade em um


processo aberto e inclusivo é uma estratégia facilitadora do processo, pois com
a participação de todos os membros da comunidade de estudo o resultado final
s

torna-se mais benéfico por representar a experiência coletiva do grupo; b) pelo


ver

produto que representa a comunidade, sendo realizada uma seleção que mostra
quais elementos serão relevantes para as necessidades e utilização da comuni-
dade a ser representada; e, por fim, c) pelo conteúdo dos mapas que retrata locais
de conhecimento e informação, sendo, que, nesse caso, os mapas devem conter
os nomes, símbolos, escalas e características baseadas no conhecimento local.
Para o IFAD (2009), o mapeamento participativo não pode ser definido
pelo nível de cumprimento das convenções cartográficas formais: Os mapas
304

participativos não necessariamente podem ser incorporados a sofisticados siste-


mas de informações geográficas. Devem ser vistos como uma ferramenta eficaz
de comunicação considerando que os mapas regulares buscam uma conformidade
e diversidade na apresentação dos conteúdos. Outro termo que se tornou corrente
para falar de mapeamento participativo é simplesmente cartografia social. Almeida

or
(1993) destacou, a partir do caso de Carajás que havia uma guerra dos mapas para

od V
a instituição e legitimação de territorialidades e formas de propriedade hegemôni-

aut
cas sobre outras territorialidades dos agentes sociais locais. O desenvolvimento do
projeto “Nova Cartografia Social da Amazônia” ampliou o termo. Para Gorayeb,
Meireles e Silva (2015), a cartografia social é um instrumento que privilegia a

R
construção do conhecimento popular, simbólico e cultural elaborado sob os pre-
ceitos da coletividade onde os diferentes grupos sociais expressam seus anseios

o
e desejos. Lima e Costa (2012), por sua vez, asseveram que a cartografia social,
aC
como meio técnico, busca registrar relatos e as representações socioespaciais no
processo de auto mapeamento, além de identificar situações de conflitos na forma

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de uso do território pelas comunidades tradicionais.
Castro (2019) aponta que a Cartografia Social apresenta representações
visã
espaciais sem uso efetivo das referências próprias estabelecidas pela Cartografia
Temática, e sem o processo de formalização social do reconhecimento desta
ciência interdisciplinar (que extrapola a geografia). Para Castro (2019), a meto-
itor

dologia de “mapeamento participativo” de Hoffmann (2010) é mais atinente


à sistematização cartográfica em nível mundial, ampliada diante do contexto
a re

atual da cartografia elaborada a partir dos SIG’s. A partir deste ponto, e de forma
apriorística, como contribuição ao debate, deve-se discutir uma distinção nas
duas metodologias. A nosso ver, em termos científicos, a cartografia social diz
respeito às formas de representação oriundas eminentemente dos saberes locais,
par

não se enquadrando a qualquer dimensão geométrica, espacial, cartográfica que


tenha a ver com as técnicas consolidadas da cartografia. E que, portanto, remota
Ed

à valorização das formas de cartografia anteriores à sua classificação científica,


o que seria nomeado, pela geografia e cartografia cientificas como “croqui”.
Não se trata de classificar, pelo ponto de vista da ciência, conhecimentos
ão

de outras matrizes. Portanto, a cartografia social diz respeito às formas de com-


preensão do mundo a partir de outras matrizes de conhecimento. A cartografia
participativa, por sua vez, é muito mais pertinente à cartografia preocupada com
s

o diálogo entre saberes, incluso, o saber cientifico, e, portanto, as dimensões da


ver

cartografia (e da geografia cientifica). A cartografia participativa utiliza as imagens


de satélite, e demais técnicas de geoprocessamento, como meios, como “objetos
intermediários”, e se preocupa com a construção de um produto que sirva aos
atores locais, e que tenha sua participação no processo de construção. A cartogra-
fia participativa utiliza as dimensões de diversidade, proporcionalidade e ordem
(CASTRO; SOARES; QUARESMA, 2015), e se assenta na produção do olhar
vertical sobre os espaços, em detrimento do olhar horizontal sobre as paisagens
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 305

(SOARES et al., 2018). Mas esses são utilizados para, em um primeiro momento,
fornecer os “temas dobradiças” que constituem a identificação do espaço absoluto
e relativo, para que, uma fez alfabetizados com esta codificação, e de forma cada
vez mais participativa e autônoma, os sujeitos locais se apropriem dessas ferra-
mentas, e a utilizem como forma de representações de suas territorialidades, de

or
seu espaço relacional. E tal empoderamento é útil à governança, à participação da

od V
sociedade civil e dos movimentos sociais também na gestão dos territórios, como

aut
é o caso particular das unidades de conservação (CANTO et al., 2017, 2018).
A cartografia participativa, portanto, pode ser uma ferramenta voltada tanto
para o ensino (sobretudo, o ensino fora da educação sistemática), como pesquisa,

R
mas seu uso é eminentemente voltado para a materialização da extensão. A mate-
rialização de produtos e serviços voltados à significação social, com o uso efetivo

o
da ciência. A seguir se apresentam alguns trabalhos de cartografia participativa
aC
voltados à gestão territorial e de recursos naturais em Unidades de Conservação.
Essas contribuições são frutos das pesquisas do Grupo de Pesquisa Socieda-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

des e Ambientes das Amazônias (GPSA Amazônias). Além do trabalho do Silva


(2017), monografia apresentada ao PROFIMA no curso de especialização em
visã
Gestão Ambiental. A Cartografia Participativa, por ser uma metodologia de com-
preensão social, espacial e territorial que necessariamente envolve a participação
das comunidades, possibilita subsídios à gestão das unidades de conservação de
itor

forma participativa, envolvendo comunidades, Conselho Gestor e técnicos dos


órgãos institucionais de cada unidade de conservação. O produto, o mapa parti-
a re

cipativo, permite a identificação de usos, territorialidades, conflitos e problemas


socioambientais a serem dirimidos. Assim, tem-se uma contribuição concreta à
percepção dos comunitários acerca do seu território. Em cada um dos casos, o
mapa participativo foi a partir das iconografias construídas sobre um mapa de
par

localização de base pelos comunitários e usuários da unidade de conservação.


Esse mapa de localização de base é um mapa que possui apenas os referen-
Ed

ciais de espaço absoluto essenciais para a localização (sobretudo hidrografia e


malha viária), complementado pelo uso de uma imagem de satélite. No decorrer
da elaboração de oficinas para a construção desse produto, uma vez que os comu-
ão

nitários se reconhecem, com o domínio do olhar vertical em diálogo com o olhar


horizontal (CASTRO; SOARES; QUARESMA, 2015), eles podem registrar
informações sobre os aspectos estruturais, culturais e sociais de cada população,
s

advindas de suas histórias narradas oralmente em grupo, saindo da dimensão


ver

espacial e adentrando de fato na dimensão territorial. Uma vez registradas as


territorialidades, os usos feitos sobre e a partir do território, a segunda etapa se
constitui na transformação dessa informação cartografada em informação vetorial,
disponibilizada em um banco de dados digitais, para a elaboração do layout final.
Nos trabalhos apresentados nesta sessão, esta etapa foi elaborada junto à equipe
do Laboratório de Análise Ambiental e Representação Cartográfica do Núcleo
de Meio Ambiente (LARC/NUMA). As primeiras versões são reenviadas para
306

as comunidades em uma nova rodada de oficinas para corrigir, acrescentar ou


modificar as informações e escolhas para o layout do mapa, até o seu processo de
finalização. O primeiro produto, apresentado na figura 4 a seguir, é o Mapa da Car-
tografia Participativa da APA Algodoal-Maiandeua (município de Maracanã-PA).

or
Figura 4 – Mapa da Cartografia Participativa da APA
Algodoal-Maiandeua, Maracanã (PA)

od V
aut
R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Fonte: Trabalho de Campo com Cartografia Participativa, 2017-2018; INPE, 2017;


IBGE, 2016; IDEFLOR-bio, 2017. Elaboração: CANTO, O; BASTOS, R.; SOMBRA, D.;
TUPIASSU, L.; MONTEIRO, M.; NUNES, M.; BARRETA, A. I.; SARGES, M., 2019.

Este produto resultou da elaboração de duas oficinas as quais foram realiza-


das pelo Grupo de Pesquisa Sociedade e Ambientes das Amazônias (GPSA-Ama-
zônias) em parceria com o Laboratório de Análises Ambientais e Representações
Cartográficas (LARC/NUMA) e Programa de Pós-Graduação em Gestão de
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 307

Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM/NUMA/


UFPA). O mapa participativo da APA Algodoal-Maiandeua registra os principais
usos do território, dos recursos naturais e também os principais conflitos socioam-
bientais existentes na ilha. Para a execução do trabalho, incluindo as oficinas de
Cartografia Participativa, a estilização final do produto, além dos pesquisadores

or
envolvidos. Um trabalho similar foi também realizado pelo GPSA-Amazônias

od V
na Ilha Cajutuba, em Marapanim, em área que faz parte da Reserva Extrativista

aut
Marinha Mestre Lucindo. Nesse caso, não se fez a atividade para toda a unidade
de conservação, mas apenas para a Ilha Cajutuba, como um trabalho piloto que
depois poderá ser expandido para as demais áreas da RESEX. A figura 5 a seguir

R
apresenta o Mapa da Cartografia Participativa da Ilha Cajutuba.

o
Figura 5 – Mapa da Cartografia Participativa da Ilha
aC
Cajutuba, RESEX Mestre Lucindo, Marapanim (PA)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Fonte: Trabalho de Campo com Cartografia Participativa, 2017-2018; INPE, 2017;


ICMBio, 2017. Elaboração: CANTO, O.; BASTOS, R.; PLAS, P.; SOMBRA, D.;
SANTOS, M.; GUTEMBERG, L.; SARGES, M.; MONTEIRO, R. E., 2019.
308

O mapa participativo da Ilha Cajutuba, na RESEX Marinha Mestre Lucindo,


ilustra os usos do território, as territorialidades, os problemas e conflitos socioam-
bientais identificados na ilha pelos seus moradores. O mapa, elaborado pela equipe
do Laboratório de Análise Ambiental e Representação Cartográfica do Núcleo
de Meio Ambiente (LARC/NUMA), foi construído com base nas informações

or
fornecidas pelas comunidades da Ilha de Cajutuba em oficinas de Cartografia

od V
Participativa. O trabalho contou com o apoio da Associação dos Usuários da

aut
RESEX Marinha Mestre Lucindo (AUREMLUC), com os técnicos do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), e ao final contribui
como um mecanismo de apoio à elaboração do plano de gestão da RESEX,

R
principalmente ao destacar os desafios e conflitos socioambientais devidamente
situados na ilha. Em 2021, o trabalho elaborado com a cartografia participativa

o
da Ilha Cajutuba foi fundamental para demarcar as territorialidades e os usos
aC
prejudicados pela atividade de praticagem de lanchas (DIÁRIO DO PARÁ, 2021).
Por fim, apresenta-se o trabalho de Silva (2017), cujo objetivo era identificar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e mapear os conflitos socioambientais, a partir de informações fornecidas pelos
membros da comunidade quilombola Deus Ajude do município de Salvaterra,
visã
na Região de Integração do Marajó. Para tanto, foi utilizado como método de
análise a Cartografia Participativa e o principal resultado foi à elaboração de um
mapa temático identificando os locais onde ocorreram embates entre os membros
itor

da comunidade e fazendeiros, o qual está representado na figura a seguir.


a re

Figura 6 – Mapa de uso, conflitos e reinvindicação da


comunidade quilombola Deus me Ajude, Salvaterra (PA)
par
Ed
s ão
ver

Fonte: Trabalho de Campo com Cartografia Participativa, 2016, 2017; IBGE, 2016; ITERPA,
2014; SEMAS-PA, 2014. Elaboração: SILVA, H.; CANTO, O.; SOMBRA, D., 2017.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 309

A partir das informações prestadas pela comunidade através das ofi-


cinas realizadas na comunidade, foram identificados e mapeados conflitos
relacionados à sobreposição do território Quilombola Deus Ajude pela área
de propriedade privada de terceiros; conflitos entre os membros da comuni-
dade e seguranças das fazendas do entorno, por causa de pescarias em “rios

or
privados”; extrativismos em áreas de uso comum; caçar e proibição do uso

od V
de cemitério para fins e práticas religiosos (enterro de entes) conforme apre-

aut
sentado no mapa de Conflitos (SILVA, 2017).
Estas informações foram compiladas a traves de SIG e organizadas em

R
um documento cartográfico, levando em consideração os parâmetros carto-
gráficos vigentes, contudo respeitando as características e as informações

o
fornecidas pelos participantes da comunidade durante o desenvolvimento
da atividade, para manter a identidade e o sentimento de participação na
aC
construção deste.
Para a confecção das demais bases cartográficas referentes à vegetação,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

rios, lagos e outros, foi realizado segmentação e classificação de “imagens”


visã
(mosaico de Imagens) disponibilizados de forma gratuita no software Goo-
gle Earth da Google e agrupados em ambiente SIG. A partir do trabalho de
Silva (2017), Leão (2019) concluiu que a Cartografia Participativa pode ser
itor

um efetivo exercício na gestão participativa dos recursos naturais em terri-


tórios quilombolas.
a re

Estes trabalhos geram produtos que não são apenas frutos de ensino ou de
pesquisa, mas constituem, antes de tudo, produtos deixados às comunidades
locais, que representam seus usos, expressam seus conflitos, materializam suas
territorialidades, reconhecendo a existência de outras projeções. Trata-se do
par

uso da ciência, da geografia e da cartografia para reconhecer a legitimidade


de demandas das comunidades e dos sujeitos sociais locais. E nesses, estão
Ed

apresentadas as dimensões do espaço relacional.


Faz-se necessário apontar que nos três casos supracitados, os produtos,
os mapas participativos foram impressos em banners de tamanho A0 (1189
ão

x 841mm). Esses mapas impressos foram disponibilizados em ambientes


públicos de ensino (escolas), de gestão (sedes dos órgãos ICMbio e IDE-
s

FLOR-bio) e de governança (as associações quilombola da comunidade Deus


ver

Ajude, de moradores da APA Algodoal-Maiandeua e de usuários da RESEX


Mestre Lucindo). As figuras ilustradas nesse trabalho apenas reproduzem,
em tamanho menor, os produtos finais, de modo que as legendas (com 40
itens no mapa da APA Algodoal-Maiandeua, 28 itens no mapa da Ilha Caju-
tuba, e 32 itens no mapa da comunidade quilombola Deus Ajude) não estão
plenamente decifráveis nas cópias presentes neste texto, dada a redução das
dimensões originais.
310

Considerações finais

A Cartografia Participativa não se furta ao uso das técnicas e normas


da cartografia, incluindo as geotecnologias, para situar e inter-relacionar os
espaços absoluto, relativo e relacional, ou seja, os territórios e territorialidades

or
indicados, frente aos processos hegemônicos de totalização das informações.

od V
Ainda assim, como parte do processo de diálogo de saberes, e ainda que

aut
não seja como na cartografia social, uma expressão completamente baseada
nos saberes locais, também na cartografia participativa, os saberes locais

R
contrabalançam os quadros técnicos cartográficos expressos em caráter nor-
mativo (CONCAR, 2017; IBGE, 2013). Veja-se, por exemplo, a questão do
sistema semiológico monossêmico desenvolvido para que a escrita carto-

o
gráfica pudesse atravessar a barreira das línguas locais. Se por um lado isso
aC
representou enorme avanço do ponto de vista da comunicação, por outro
lado, por natureza, representa uma redução das expressões diversas tão caras

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


à forma de cartografia própria a cada povo, em cada tempo e em cada espaço
visã
(LONGLEY et al., 2013; SOARES et al., 2018). Porém, em sua natureza
de diálogo com os conhecimentos locais, ainda que se use os vetores locais
estilizados, a diversidades de representações, sobretudos nos pontos, ressalta a
diversidade de conhecimentos locais, e de formas de interpretação do mundo.
itor

Do ponto de vista mais técnico, mesmo as formas vetoriais disponibili-


a re

zadas pelos SIGs para representar os pontos são catálogos universais que ten-
dem ao caráter monossêmico da linguagem, aspirante à linguagem universal,
mas que ainda assim refletem determinado tempo, e, sobretudo, determinado
espaço. Bastar notar nos diversos softwares as formas animais e vegetais,
par

além dos aparelhos urbanos, que refletem muito mais uma realidade espacial,
ambiental e territorial europeia e anglo-saxã, que propriamente, a diversidade
Ed

das espacialidades amazônicas, por exemplo.


Dado o caráter comunitário, social e solidária que as geotecnologias
permitem hoje, isso é plenamente possível de resolver, com a criação e esti-
ão

lização de novas pranchas, novos signos etc. Há, assim, um nuance do caráter
monossêmico, transformando o produto, contraditoriamente e de forma com-
plexa, em uma linguagem novamente polissêmica, recuperando a dimensão
s

artística da cartografia2.
ver

2 “A Cartografia possui uma particularidade, ela é, ao mesmo tempo, Arte – Ciência – Técnica. A história
da cartografia está vinculada a bases culturais, científicas e apresenta seus avanços impulsionados por
questões econômicas e militares. Seu grande objetivo encontra-se no prover a comunicação (por meio e
através de símbolos e signos) que expressam o movimento contido em uma análise espacial [...]. Assim, todos
os mapas (a partir de então iremos considerar o termo Representação Cartográfica) possuem distorções,
contudo geralmente elas (as distorções) são controladas, conhecidas e aceitáveis (mas isso desde que o
usuário as compreenda)” (CASTRO, 2019, p. 5).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 311

A cartografia temática, assim, é capaz de expressar diversidades. A carto-


grafia participativa é uma metodologia de empoderamento. O que está em jogo
é a compreensão das espacialidades (das dimensões espaciais) e das territoriali-
dades. A necessidade de situar a vida que se vive nos lugares, com os ambientes,
e as múltiplas escalas de organização e de projeção de saber. Sem deslegitimar

or
as demais formas de conhecimento, mas fazendo uso efetivo da ciência, para

od V
o empoderamento, no ensino, na pesquisa, e, sobretudo, na extensão.

aut
“Se no uso da ciência e da tecnologia para ‘reificar’, o sine qua desta ação
é fazer dos oprimidos sua pura incidência, já não é o mesmo o que se impõe

R
no uso da ciência e da tecnologia para a humanização. Aqui, os oprimidos ou
se tornam sujeitos do processo também, ou continuam ‘reificados’” (FREIRE,
2015, p. 180, grifos do autor). Assim, em uma perspectiva de contribuição

o
materialista da cartografia para o tripé ensino-pesquisa-extensão não se pre-
aC
tende criar uma dicotomia entre teoria e prática. A teorização é importante
para interpretar o mundo, as pessoas, e as perguntas básicas. Para construir as
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

soluções dos problemas da humanidade em tempos curto, médio e distante.


visã
Por outro lado, o que não se pode, é esperar que tudo se resolva ao longo
prazo. Se há espaço para a teorização, faz-se necessário que a aplicação tenha
o seu espaço respeitado. E que ambos, teoria e prática, sejam feitos da ciência
em diálogo com as necessidades das pessoas. Para as pessoas. Para resolver
itor

os problemas e demandas das pessoas, nos lugares, ou seja, nas cidades, nos
a re

campos, nos rios, nas várzeas, nas comunidades dos diversos espaços do
mundo. A cartografia, com sua dimensão que transcende as fronteiras internas
das disciplinas científicas é também capaz de fornecer a plataforma para o
diálogo de saberes. Mas ainda assim, trata-se de meios. O mais importante é
par

ter clareza do fim: a ciência em diálogo com os saberes locais, seja no ensino,
na pesquisa ou na extensão, deve estar preocupada com o mundo real, o mundo
Ed

que existe, com as pessoas reais, e seus problemas e questões.


s ão
ver
312

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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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ENTRE CORPOS NA SALA
E CORPOS NO PÁTIO:
envolvimento e multiversidade

or
od V
Caio Monteiro Silva

aut
Igor Monteiro Silva

R
O título do presente texto tenta traduzir nosso esforço em deslocar certa
compreensão corrente do que, em alguma medida, se entende por lugar, funcio-

o
namento e expectativa do dito “ensino superior”. Não é difícil encontrar narrati-
vas e discursos que relacionem Universidade e Desenvolvimento, tampouco não
aC
são raros os argumentos que se dispõe a debater conteúdos e práticas – inscritos
em tal relação – que nos conduzem a privilegiar, talvez equivocadamente,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

um processo de espacialização bastante específico. Explicamo-nos melhor: a


visã
relação entre Universidade e Desenvolvimento se configura por uma forma de
habitar, usual e cotidianamente, espaços de educação, geralmente, reduzidos
ao modo concreto de ocupação apenas de salas de aulas, consideradas como
os principais territórios de realização de percursos formativos.
itor

Contrastando com tal entendimento - ou seja, interpelando uma posição já


a re

estruturada de conceber e compreender a possibilidade de espacialização de ações


pedagógicas nas Universidades –, é que tentaremos articular as noções de envol-
vimento e multiversidade no intuito de expandir horizontes no que se refere às
reflexões sobre dinâmicas educativas no “ensino superior”. São essas noções que
par

nos permitirão desbloquear o imaginário, rumo a um lugar formativo elaborado


para além da presença de corpos nas salas de aula. Há aqui, portanto, um esforço
Ed

por sinalizar e reconhecer as potências de formação que também residem em


outros espaços (como os pátios), igualmente significativos, que conformam os
mundos universitários: espacialidades, muitas vezes, consideradas de trânsito, de
ão

margem ou de fronteira, que – justamente, por seu caráter movente – não podem
deixar de ser objeto de atenção, sobretudo, pelas questões que endereçam, por
exemplo, às práticas pedagógicas, currículos e até modos de avaliação.
s

Propõe-se, então, o tensionamento dos habituais lugares hegemônicos


ver

que, diante da orientação prévia do nosso mundo, nos fazem repor de forma
espontânea e quase autoevidente modos de presença que – em sua regula-
ção – também articulam temporalizações em que se bloqueiam experiências
distintas e divergentes do imaginário, fazendo crer que a única possibilidade
de existência seja a repetição do já posto. Esse, grosso modo, é um exercício
reflexivo que toma as relações entre corpos, agências e espaços (elementos/
forças constituintes das Universidades) como principal matéria de atenção.
318

Assim, partimos da maneira como a realidade do ensino superior aparece,


da forma como se apresenta, mas não simplesmente para inserir esses modos de
presença em um tipo de coincidência habitualmente tomada como óbvia entre
o que aparece e o que é. Trata-se aqui não de uma descrição meramente banal,
supostamente objetiva, sobre o acontecimento hodierno do ensino superior.

or
O que propomos é indagar essa forma de aparecimento atravessada de seus

od V
significados, tentamos questionar sobre o sentido desse modo de aparecimento.

aut
De todas as formas possíveis foi essa que se efetivou, sendo ela mesma um
efeito e produzindo também, por sua vez, uma vasta série de efeitos.
Indagar-se, portanto, sobre o modo de aparecimento da universidade, e

R
a maneira como se configura em nosso circuito histórico e social, é proble-
matizar a experiência de obviedade sustentada e ancorada na identificação

o
do presente, ou do que aparece no presente, como única possibilidade. Desta
aC
forma, sair do espontâneo movimento que intuitivamente nos impele ao con-
tinuísmo é pensar os efeitos dessa repetição de elementos que parecem pedras

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angulares da experiência formativa no ensino superior e apontar não somente
os seus limites, mas as forças que se coesionam impedindo outras expressões
visã
possíveis para a chamada educação de nível superior.
No bojo deste questionamento do habitual, no que tange aos processos
formativos das universidades, é preciso questionar-se sobre o que se posicio-
itor

nou como fundamental naquilo que a universidade faz. Isto que se colocou
a re

como fundamental é o propósito da própria existência da universidade que


a faz emergir e aparecer da forma como se apresenta. Consideraremos três
pilares principais de sua sustentação: o currículo (conteúdo), a estrutura buro-
crática (divisão disciplinar, departamental, regras e etapas para a produção do
par

conhecimento) e as práticas (ações, posições e atuações diante do currículo


e da organização burocrática).
Ed

A um tipo de currículo, à uma estrutura burocrática e a um conjunto de


práticas, associamos a imagem – muitas vezes concreta no que concerne ao
ensino superior – de alunos povoando salas de aulas. Uma relação quase direta,
ão

de uma espécie de sinonímia, que só é alvo de ranhuras na medida em que os


próprios currículos, aspectos burocráticos e experiências práticas são destinos
de um olhar crítico, o que resulta, no limite, na admissão de dramáticos deslo-
s

camentos – físicos e concretos – rumo a outros espaços também significativos,


ver

como exposto, para ações educativas, tais como os pátios das universidades.

Nossa herança: medievo, modernidade e colonialidade

Reafirmamos para possíveis interlocutores que nosso interesse é abordar


e discutir questões pertinentes à formação no ensino superior, mas não todo
e qualquer ensino superior. Nos atentaremos aquele tipo de formação de
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 319

ensino superior gerida pelas universidades, mas também não nos interessam
todas e quaisquer universidade, nos interessam, sobretudo, as instituições de
ensino superior brasileiras.
Entretanto, pedimos aqui alguma paciência para que possamos fazer
uma pequena digressão histórica, apenas, por considerar importante - antes

or
mesmo de discutirmos as questões que nos parecem próprias - retomar uma

od V
parte de nossa herança que ajudará a compreender, pelo menos, algumas

aut
expressões do legado que assumidos enquanto partícipes desse processo his-
tórico, buscando de alguma maneira também por ele nos responsabilizarmos

R
diante deste exercício reflexivo.
Por tal razão, trazemos ao diálogo Charles Homer Haskins, destacado
historiador norte-americano que escreveu uma obra intitulada “A ascensão das

o
universidades”, fruto de um conjunto de palestras proferidas em 1923. Haskins
aC
aponta que as universidades passaram a existir como instituições nos séculos
XII e XIII. Podendo, já nessa ocasião, serem identificadas características de
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uma educação marcada pela organização, sistematicidade e mecanismos de


instrução específicos, representados por faculdades, colégios, formaturas e
visã
graus acadêmicos, por exemplo. Entretanto, é preciso destacar que essas uni-
versidades se deram antes como sociedades de estudantes com a ausência da
estrutura moderna de bibliotecas e laboratórios (HASKINS, 2015).
itor

Todavia, como já anunciamos, não é das universidades medievais na


a re

França (Paris) ou na Itália (Bolonha) que gostaríamos de falar e sim das


nossas, se é que são nossas. Quando dizemos nossas nos referimos às uni-
versidades que serão o espaço privilegiado da chamada formação de ensino
superior brasileiro. O que em Haskins (2015), portanto, nos interessa é como
par

conduz sua obra de maneira a fazer aparecer a conexão entre esta universidade
medieval e a universidade moderna.
Ed

Diferentemente de Haskins (2015), não consideraremos a universidade


moderna tributária direta da medieval, mas destacaríamos o elo burocrático,
bem com seus efeitos sociais, que serão ponto de conexão entre ambas as
ão

experiências universitárias: medievais e modernas. Nos referimos aqui à noção


de espacialização que o conhecimento assumirá a partir de dois eixos. No eixo
horizontal, sua divisão em faculdades, colégios, cursos; no eixo vertical, os
s

processos de hierarquização feitos pelos exames (admissão, provas e bancas)


ver

e as instalações de formaturas e concessões de graus acadêmicos. A formação


desse tipo de corporação ordenou um espaço social de grande poder, pois
diante da certificação autoriza-se a possibilidade do ensino, mas também a
obtenção de prestígios e cargos na ordem social que, naquele momento, tinha
bastante proximidade com a organização eclesiástica.
Evidenciamos aqui aspectos que conectam a universidade com os proces-
sos de produção e reprodução social instituídos por esse modo de espacialização
320

do conhecimento, muito embora seja preciso considerar uma distinção bastante


significativa em seus propósitos quando falamos da sociedade medieval e
da sociedade moderna. Apesar da continuidade de certa ordem burocrática é
preciso considerar que a gestão de um projeto iluminista modifica, de forma
radical, os usos do conhecimento e sua relação com o mundo social.

or
O modo de gestação de um pensamento, de uma organização filosófica se

od V
dá como uma totalidade prático-produtiva, como nos disse Dussel (1995), que

aut
determinará os horizontes sócio-históricos de um mundo. Sendo necessário
considerar, como destaca Silva (2021), que ainda que o rigor do pensamento
filosófico não se torne acessível em sua complexidade, sistematicidade e sofis-

R
ticação à população em geral, este mesmo pensamento tem sua materialidade
no mundo social a partir de suas apropriações em termos do desenvolvimento

o
de uma consciência prática. Essa consciência pode se revelar sem explicitar
aC
os elementos lógicos e teóricos dessa racionalidade, mas ancora-se de forma
intuitiva pelas ações de práticas prescritas na ordem social vigente.

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A marca fundamental da influência do iluminismo sobre a ordem social
universitária, poderia se dizer, esteve decisivamente influenciada pela rede-
visã
finição da maneira de conhecer. O antigo desenho da equação sujeito-ob-
jeto ganha outros contornos. No século XVIII veremos ser consolidada uma
mudança de postura que alcançará o plano da ação e do conhecimento. Para
itor

Figueiredo (2008), a postura contemplativa – seja ela empírica ou racio-


a re

nalista – na busca da verdade, desloca-se para uma razão/ação de caráter


instrumental sobre o mundo.
A mudança dessa postura na relação sujeito-objeto pode ser melhor carac-
terizada através da noção de experimento. Não se trata mais de uma postura
par

do conhecer através da observação dos fenômenos da maneira como eles


ocorrem e onde ocorrem. Aqui é preciso assumir o processo de criação de
Ed

situações e modelos, os quais fazem parte de um desejo por conhecer a partir


de uma finalidade utilitária que, em si, já justifica e legitima a própria atitude
de conhecer (FIGUEIREDO, 2008).
ão

Apontamos aqui, então, a mudança substancial entre o medievo e a


modernidade. No primeiro, é válido frisar, a relação entre ordem social e
conhecimento engendra uma atitude passiva, marcada inicialmente pela reve-
s

lação e tendo por fim certo enciclopedismo e eruditismo. No medievo há,


ver

na compreensão de conhecimento, uma coincidência entre saber aquilo que


se deu a saber, ou seja, aquilo que se apresentou para si como uma parte do
próprio destino existencial dos indivíduos. Na segunda, a modernidade, o
conhecimento ou saber não se inicia pelo apassivamento que aguarda os atra-
vessamentos da revelação. Ao contrário, veremos uma ação de fabricação, de
produção e de controle daquilo que ativamente se deseja conhecer. Inicia-se,
portanto, com a criação de um modelo que possa, através de instrumentos
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 321

específicos, fazer aparecer aquilo mesmo que se quer conhecer, tendo por fim
a mobilização de uma relação utilitária para este sentido. Tal concepção de
conhecimento é, assim, tributário e produtor de um desejo de ação, de uma
precipitação rumo à realização de algo.
A mudança em questão é bem traduzida por Lévinas (2009, p.23) quando

or
afirma que na contemporaneidade “compreender o instrumento não consiste em

od V
vê-lo, mas em saber manejá-lo; compreender nossa situação no Real não é defi-

aut
ni-la, mas encontrar-se numa disposição afetiva; compreender o ser é existir”.
Compreender é um ato, um ato que se faz desde o início por uma disposição

R
afetiva e que em sua ação já dispõe uma realização para a vida, para a existência.
Nosso intuito, com a retomada dos elementos acima, é o de evidenciar
como os processos formativos das instituições de ensino superior na Amé-

o
rica Latina assumem ainda hoje certo legado colonial. Tal legado colonial,
aC
hodiernamente reproduzido como colonialidade, é marcado pela reposição
espontânea dos processos formativos por princípios burocrática da Europa
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medieval e por valores da Europa moderna, o que tem – no limite – como


visã
efeitos o reforço e a manutenção das lógicas hegemônicas que sustentam
nosso Sistema-Mundo atual.
Necessário é assumir, como destacado por Edgardo Lander (2000), o
caráter eurocêntrico estruturante de nossa experiência de conhecimento,
itor

inclusive, não somente enquanto herança, mas também em seu papel atual.
a re

Embora estejamos acostumados a celebrar os êxitos da modernidade, dentre


eles o conhecimento e seus processos de inserção nas universidades, é urgente
também considerar que a experiência colonial (MIGNOLO, 2017; DUSSEL,
1993) nos impõe a impossibilidade de existência dos sucessos modernos sem
par

os sacrifícios, subalternizações e violências próprias do colonial.


Do século XV até o presente momento, vimos acontecimentos sucessivos
Ed

e decisivos que conectaram o mundo, anteriormente marcado por um caráter


mais policêntrico. Essa conexão se deu pela expansão colonial que consolidou,
principalmente, um modelo econômico e um modelo epistemológico, além de
ão

um controle da autoridade, do gênero e da sexualidade (MIGNOLO, 2017).


São esses também os conteúdos e as estruturas – mais ou menos implí-
citos, desfocados pela naturalização – que residem em nossos modelos for-
s

mativos como heranças do processo de colonização reposto ainda hoje, como


ver

assinalado, pela colonialidade. O controle do saber e da epistemologia é um


dos aspectos da chamada “Matriz Colonial de Poder” (MIGNOLO, 2017) que,
por seu turno, se sustenta em racismos e sexismos epistêmicos onde se pro-
duzem injustiças cognitivas pelas inferiorizações legitimadas pelo monopólio
do conhecimento gerado por essas estruturas e instituições (GROSFOGUEL,
2016), dentre as quais situamos a universidade.
322

O que leva os corpos para sala?

Castro-Gomez (2007) traz uma importante contribuição para o debate


sintetizado no título dessa seção a partir da maneira como conduz a análise da
obra “A condição pós-moderna”, de François Lyotard. Para ele, a produção e

or
a organização do conhecimento na modernidade relacionam-se a dois meta-

od V
-relatos. A primeira posição que a universidade ocuparia, assim, seria a de

aut
prover o conhecimento técnico-científico para a nação, educando a população
para os benefícios da ciência e tecnologia, os quais implicam diretamente

R
o “progresso” das condições de vida material. A segunda posição, também
assumida pelas universidades, relaciona-se com um meta-relato em que seria
tal instituição a responsável pelo progresso moral da humanidade inteira. A

o
função da universidade, logo, seria a de educar moralmente, fazer a sociedade
aC
tornar ato, concretizar, as noções morais da formação humanística.
Para Castro-Gomez (2007), esses seriam projetos de universidade dis-

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tintos e em competição, embora conservando pontos de interseção. Em nosso
entendimento, ao contrário, os dois meta-relatos que organizaram a conso-
visã
lidação da universidade moderna são não só complementares, assim como
se retroalimentam. Ao considerarmos boa parte dos entusiastas, ou mesmo
ícones representantes do pensamento moderno europeu, não é difícil observar
itor

o quanto eram comum defesas da forma de vida europeia, as quais se com-


a re

preendiam como modelo por ser a Europa mesma o fim último da história ou
do conhecimento.
Seria, portanto, a Europa o último estágio evolucionário e, nesse sentido,
existiria uma relação entre moralidade e técnica bastante estreita em que –
par

por caminhos ligeiramente diversos – apontavam um destino manifesto. Este


destino manifesto se daria em respeito de que a superioridade técnica europeia
Ed

era não unicamente a evidência, bem como a autorização da reprodução de


seu próprio modelo sócio-cultural e moral. As análises de Dussel (1993) e
Latouche (1996) são importantes referências, capazes de demonstrar o esta-
ão

belecimento desta íntima relação, em seus variados efeitos, protagonizada


pela técnica e moralidade.
Assim, considerando a condição social e as narrativas que estruturaram
s

e consolidaram o lugar da universidade na modernidade, é que podemos


ver

apresentar como é atribuído à universidade uma posição privilegiada na pro-


dução do conhecimento. Para Castro-Gomez (2007), isso faz com que esta
instituição ocupe uma dupla inscrição fundamental: 1) ela é onde se produz o
conhecimento mais alto; 2) ela é o lugar onde a legitimidade de todo o conhe-
cimento se dá. Tudo isto, na análise de Castro-Gomez (2007), é atravessado
por um desenho arbóreo que, como já demonstramos, parece se situar desde
o medievo europeu.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 323

Esta inscrição epistêmica, que se posiciona apenas analiticamente a


partir de um arbitrário ponto zero, de um mirante fora do próprio mundo
e que se autoriza a ser um ponto de vista sobre todos os outros pontos de
vista desconsiderando que ele próprio é um ponto de vista, será chamada por
Castro-Gomez (2007) de “Hybriz do Ponto Zero”. A universidade comete,

or
como sugere o radical “Hybris”, o pecado de não pensar suas raízes, de não se

od V
pensar organicamente com o mundo, tornando-se parte fulcral de um modelo

aut
epistêmico moderno-colonial.
A sua episteme consiste em considerar uma estrutura para conhecer que não
reconhece sua disposição especializada na ordenação do conhecimento, que se

R
institui enquanto movimento apenas diante de suas próprias pretensões e valores
historicamente construídos. Tal tipo de episteme, ainda dialogando com Castro-

o
-Gomez (2007), tende a organizar “pais fundadores” e encenar certos nascimentos
aC
mitológicos que na formação curricular estarão representados, por exemplo, por
cânones (fixação dos autores clássicos e das referências mais importantes). Ela
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opera, igualmente, por limites disciplinares tornados bastante evidentes, os quais


definem o que tem valor de ser estudado, como deve ser estudado e até onde
visã
deve ser estudado – considerando a cientificidade e a especificidade de cada área.
Este modelo, destarte, é que produz a constituição de uma universidade
que se divide em universidades, centros, departamentos, programas, cursos,
itor

disciplinas e salas. Docentes e discentes, nessa ambiência, têm posições espe-


a re

cíficas – sobretudo, radicalmente assimétricas – a ocuparem. A própria lingua-


gem já denota o tipo de hierarquia presente na instituição; alunos submetem-se
a toda essa ordem, pois são aqueles que não tem luz ou, pelo menos, aqueles
que não sabem iluminar, diferentemente dos professores: os quais suposta-
par

mente oferecem luz com aquilo que professam. Essas amarras horizontais
na divisão das fronteiras das especializações, tanto quanto as verticais – que
Ed

dizem respeito ao nível e à validade do conhecimento – produzem imobilis-


mos na própria estrutura da formação no ensino superior, celebram conserva-
ções, propiciam cristalizações. São esses imobilismos, por conseguinte, que
ão

constroem a figura imagética de uma formação como aquela que acessamos


quase que imediatamente de alunos em sala de aula, enquadrados por aquela
espacialidade investida de uma aura quase sagrada, distinguindo-se de outros
s

tantos espaços, os de passagem ou de margem, considerados “desimportantes”,


ver

quando não “de risco”, para as “legítimas” experiências formativas.

O que se vê em sala? Formação e colonialidade no ensino superior

No tópico anterior empreendemos certo esforço para trazer algumas con-


tribuições a respeito do legado que assumimos em relação a posição social da
universidade e do ensino superior, bem como algumas de suas características
324

de organização e estrutura. No entanto, gostaríamos de considerar, nesse


momento, que isto mesmo que se leva a um tipo de ordenamento e esqua-
drinhamento das possibilidades de se conhecer não se dá de forma evolutiva
ou mesmo natural. Pensar que isto que chega a se organizar em sala (mas
também o que se vê na própria sala) como um feito, e não uma atitude do

or
fluxo natural da existência, reforça e coaduna novamente nossas pretensões de

od V
demarcarmos nossa posição diante da interpelação da experiência formativa

aut
no ensino superior como um lugar colonizado, reprodutor da colonialidade.
Uma colonialidade que se apresenta na universidade, e nos objetivos das
formações ali localizadas, por interesses da sociedade que a posiciona assim:

R
em um processo onde estão interpenetrados o progresso material e a educação
moral. Relações, do registro da intimidade, entre o modo de produção do saber

o
e o modo de produção econômico.
aC
Restrepo (2018), em alguns de seus argumentos, nos permite pensar o
lugar da universidade e da formação do ensino superior como o resultado de

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uma história que nada tem a ver com um desenvolvimento progressivo ou
teleológico. Ao contrário, o que se vê é como várias ordens de conhecimento
visã
disputam a subordinação de umas às outras e suas decorrentes ações. Assim, o
que podemos observar, diante da inspiração foucaultiana presente em seu tra-
balho, é como a universidade que propõe esta formação de ensino constituiu-se
itor

pela submissão de uma gama de outros conhecimentos e saberes. Quando


a re

muito, o que poderíamos com alguma segurança afirmar é que alguns destes
conhecimentos considerados marginalizados ocupam os lugares universitários
e da formação jamais para se aprender com eles e sim para se aprender sobre
eles a partir de sua dissecação por uma disciplina ou especialista.
par

Se as contribuições de Restrepo desvelam a lógica de uma disputa de


saberes onde um modelo de conhecer se efetiva, também é importante con-
Ed

siderarmos nesse processo que existiram relações históricas robustas e sig-


nificativas de embates sociais que, no limite, nos conduziram à consolidação
da formação de uma sociedade de mercado. No bojo desta sociedade é que
ão

está situada a nossa universidade, sendo – portanto – o estabelecimento de


determinada ordem econômica um fato de aparecimento e constituição da
mesma, interpelada, ainda, com parte de uma engrenagem que contribui com
s

a manutenção da ordem social vigente.


ver

O que se vê em sala de aula, dessa forma, poderíamos dizer que se deriva


e, ao mesmo tempo, compõe a experiencia de colonialidade. Nas palavras de
Restrepo (2018) a universidade é um dispositivo epistêmico geral, por meio do
qual se operam a Colonialidade do Saber e uma Geopolítica do Conhecimento.
Para Walsh (2005), a Colonialidade do Saber é um tipo de produção do conhe-
cimento que eleva a perspectiva eurocêntrica e nega o legado intelectual de
outros povos que não os brancos europeus. Inegavelmente, poderemos observar
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 325

que a Colonialidade do Saber estará ligada a uma Geopolítica do Conheci-


mento na medida em que os aspectos de validade, confirmação e legitimidade
das práticas que gozam do prestígio necessário da ação direta sobre o mundo,
serão por sua própria dimensão instrumental e utilitária posicionadas como
aquelas que dizem algo relevante, significativo e importante sobre o mundo.

or
Boaventura de Sousa Santos (2009) apontou, ainda nesse sentido, que

od V
uma Geopolítica do Conhecimento não se dá simplesmente sobre um ques-

aut
tionamento dos critérios relacionados às qualidades do conhecimento, seus
limites e possibilidades. Destaca-se aqui seu alcance em termos de distri-
buição, produção, circulação e incorporação, o que nos faz refletir frente à

R
força de sua expansão no que tange às condições de desejabilidade que, por
seu turno, se operam em dimensões mais psicológicas: como as presentes na

o
escolha do que se vai ler, do que se vai publicar e do que se vai compartilhar.
aC
Além, evidentemente, de ser inevitável considerar que a amplitude do
alcance dessa Geopolítica do Conhecimento, por conta de sua massiva dis-
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tribuição, oportuniza sua potência a partir de pertinências não só descritivas


da realidade como propriamente prescritivas. O meu acesso ao que seria o
visã
mundo, independente de qualquer discussão sobre o mérito de critérios que
correspondam a realidade, então, passa a ser mediado quase que exclusiva-
mente por um tipo de entendimento sobre a realidade bastante específico.
itor

Considerando os objetivos deste texto não poderemos, na ocasião, exami-


a re

nar em profundidade as vicissitudes deste processo constituído entre o desen-


volvimento epistemológico e científico e o cartografar das batalhas que nos
trouxeram até aqui. Entretanto, sustentaremos que seu ponto de culminância se
encontra, inevitavelmente, na agudização da espacialização do conhecimento
par

que hierarquizará o conhecimento econômico sobre qualquer outro modo de


conhecer ou forma de saber. Todos os demais conhecimentos, assim, devem
Ed

de alguma maneira subordinar-se a este conhecimento de reflexo econômico.


Lander (2000) afirmará que é o saber econômico o lugar no qual se
organiza toda a lógica das relações sociais, qualquer existência tolerada em
ão

nosso mundo precisa, necessariamente, subordinar-se à lógica da sociedade de


mercado. O que nos faz diretamente destacar que qualquer meio educacional
para subsistir sustenta-se em alguma medida nesta mesma razão econômica.
s

Aqui nos referimos a métodos, exames, disciplinas e toda estrutura burocrática


ver

universitária. Se nossos estudantes permanecem ainda em sala, e isto é tole-


rável à lógica da sociedade de mercado, é provável que tenha se encontrado
na sala de aula a própria forma de fazer o processo formativo, em si, uma
mercadoria ou que dele se derivem mercadorias.
A incorporação da lógica econômica encaminhará, portanto, uma série
de exigências as instituições de ensino superior. Evidentemente, há que se
tomar cuidado para também não universalizar as condições do ensino superior
326

no Brasil, sobretudo quando as universidades públicas gozam de estatutos


bastante diferenciados em comparação às instituições de educação de ensino
superior privadas. Todavia, há que se considerar que mesmo o modelo uni-
versitário público tem cada vez mais assumido uma lógica empresarial da
qual se acompanha, como diria Restrepo (2018), uma imaginação e um pro-

or
tagonismo burocrático.

od V
A função desse protagonismo e a imaginação burocrática são, justa-

aut
mente, agentes de condução destas estreitas possibilidades formativas para
que, diante de supostos valores universalizados do conhecimento, se pro-
duzam os capitais e ganhos acadêmicos e formativos esperados. Segundo

R
Restrepo (2018), o modelo universitário das últimas décadas se caracterizou
pelo discurso da produtividade, da qualidade, e da internacionalização, ainda

o
que para ele tais elementos não sejam discutidos em seus sentidos mais pro-
aC
fundos. Ver-se-á, portanto, uma hipervalorização de publicações em revistas
indexadas (com destaque ainda maior caso sejam em língua inglesa), a busca

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por rentabilidade nos processos de produção do conhecimento e o reposicio-
namento da figura subjetiva do estudante que coincide, agora, também em
visã
alguns aspectos com a do consumidor.
Dessa maneira, podemos observar o desenvolvimento de processos buro-
cráticos que exigirão do docente mais disposição de tempo, pois a solicitação
itor

de recursos, carga horária, necessidades educativas e específicas ao processo


a re

formativo estão sempre atravessadas por uma série de requerimentos e soli-


citações fixadas pela burocracia universitária. As pesquisas devem ser for-
muladas, seus processos metodológicos, mais para dar uma resposta visível
aos parâmetros de qualidade, validação e pela possibilidade da produtividade,
par

que propriamente para responder aos problemas de investigação. Instrumentos


como entrevistas, grupos focais, oficinas e questionários, ganham seu valor
Ed

mais pela sua possibilidade de alimentar uma engrenagem de produtividade,


acumulando algum contorno empírico que sustente o volume de artigos e
livros que endossam a carreira docente (RESTREPO, 2018). 
Destacamos,
ão

ainda, a falta de discussão sobre o formato em que se viabilizam a própria


distribuição do conhecimento (tamanho das discussões, valor atribuído aos
trabalhos), a padronização de provas e exames (número de questões, proporção
s

relacional qualitativa entre as questões, tempo para resposta), a colonização


ver

do tempo de aula em um tipo de modulação de controle de performance con-


tínuo (metodologias a serem privilegiadas, composição de atividades pré-aula
com tempo estabelecido, avaliações contínuas, atividades posteriores a aula
de averiguação etc.).
E embora se possa considerar que uma parte do volume das produções se
concentre em fazer certa crítica ao que descrevemos até então, é importante
que assumamos uma espécie de contentamento apenas com adornos e artifícios
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 327

retóricos sobre o tema. Para Restrepo (2018), muitos dos compromissos assu-
midos nas produções científicas com a comunidade tem se distanciado dela,
justamente, pelo modo de organização burocrática atual deste modelo da
“universidade empresa”, além de trazerem poucas contribuições decisivas no
enfrentamento da “universidade corporação” e da colonização da formação.

or
Trata-se aqui, portanto, de tentar colocar forças em marcha para pensar

od V
outro processo formativo possível através da ação prática de considerar o lugar

aut
dos estudantes no pátio, aqui entendido em uma acepção ampliada e complexa.
Ou seja, importa – rumo a outro horizonte formativo – reconhecer as histórias,

R
memórias, vivências, referências e possibilidades discentes, marginalizadas
por um processo de produção do saber extremamente assimétrico, colonial,
sintetizado na centralidade da sala de aula. O pátio, nesse sentido, é o espaço

o
de fronteira onde brotam potências criativas outras, inventividades que – do
aC
mundo próprio dos estudantes, enquanto sujeitos, e não somente como alunos
–, no limite, endereçam questionamentos aos currículos, às práticas pedagó-
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gicas, aos modelos de avaliação, à certa utopia formativa alinhavada com o


visã
mercado ou com uma expressão de humanismo que é sempre localizada, mas
consumida como universal.
Se nossas críticas se reduzirem ao conteúdo, acionando uma disposição
à mudança que se registra tão somente no que se refere aquilo que lemos e
itor

apenas isso, corremos sérios riscos de operarmos nada mais que uma transição
a re

de autoridades. Desta forma, não existiriam distinções significativas se não


a desocupação de imperialismos globais para a ocupação de imperialismos
localizados, ou autoimperialismos, mas ainda assim imperialismos que pro-
duzem o mesmo jogo social da colonialidade.
par

Corpos no Pátio
Ed

Em primeiro lugar gostaríamos de considerar, longe de qualquer atitude


que retome os ideais iluministas, ou supostamente esclarecidos, que autori-
ão

zariam certas ordens por seu próprio esclarecimento, que não somos nós que
levamos os estudantes aos pátios. São eles que fazem dos pátios um lugar de
ocupação, de dotação de sentido, de espacialização de suas subjetividades,
s

por si mesmos. São, os pátios, portanto, lugares de abrigo construído por vasta
ver

série de gestualidades solidárias, lúdicas, performativas ou transgressivas, pela


ação dos próprios agentes ocupantes, os estudantes que são mais que isso, são
sujeitos com histórias, rotas e raízes.
Nos parece que é justamente nesse “entre”, o pátio – que não é feito
por nossa condução, mas possibilitado pela ampliação de nossa visão ao
efetivamente significativo – é que se abrem frestas para se pensar práticas
para uma reformulação da formação no ensino superior que apontem nossas
328

colonialidades, destaquem nossos elementos eurocêntricos e que se proponham


a interculturalizar ou transculturalizar a monocultura universitária, dando
espaço a uma morada multiversitária. Uma multiversidade, é válido destacar,
como um modelo que não seja de desenvolvimento. Desenvolver-se é desco-
nectar-se produzindo uma espécie de conhecimento ou teoria genérica, como

or
a das economias das sociedades de mercado em que Lander (2000) afirma que

od V
deixam de fora sua história e seus efeitos. Ao contrário, que aprendamos como

aut
uma multiversidade, enquanto utopia passível de realização, que se ordene
pelo envolvimento considerando seus próprios processos, efeitos e limites na
consideração das cosmovisões e das pessoas situadas nelas.

R
O que sujeitos consumidores dos pátios, ali expressando suas práticas e
sociabilidades, dotando de sentido um lugar ortodoxamente classificado como

o
de “passagem”, de “intervalo”, de “margem”, tem a nos ensinar enquanto man-
aC
tenedores de uma experiência formativa comprometida com a colonialidade?
Não seria um olhar delicado e profundo para os pátios – e outros tantos espaços

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para além das salas de aula, onde os sujeitos cantam, batucam, declamam,
brincam e disputam (baseados em suas próprias trajetórias, em suas inscrições
visã
comunitárias, em suas referências culturais, em suas memórias singulares, em
suas lutas sociais), uma vereda aberta para a mudança? Um deslocamento, ao
observar os corpos em sua concretude de experiências, muito mais dramático
itor

e necessário no que tange ao enfrentamento das colonialidades? Não estariam


a re

ali, naquele espaço das “desimportâncias”, vias de questionamentos curricu-


lares, das naturezas das avaliações e de práticas e ações pedagógicas? O que,
por fim, poderia o pátio – ou os corpos no/do pátio – enquanto manifestação
de uma potência descolonial?
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 329

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aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
OS ESTUDOS DAS MASCULINIDADES
NA PSICOLOGIA BRASILEIRA: uma
revisão sistemática da literatura nacional

or
od V
Daniel de Castro Barral

aut
Valeska Zanello
Iara Flor Richwin

R
o
Introdução
aC
Tendências epidemiológicas referentes à morbimortalidade têm se apre-
sentado de forma diferenciada entre homens e mulheres, com evidências
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

contundentes em todo o mundo (OPAS/OMS, 2019). No Brasil, os homens


visã
lideram essas taxas, sobretudo por causas externas, salientando a importância
de uma atenção específica e gendrada à sua saúde. Dentre os principais fatores
relacionados à causalidade dessa elevada morbimortalidade masculina, des-
tacam-se: maior envolvimento em situações de violência; maior incidência
itor

de uso de álcool e outras drogas; maior envolvimento em comportamentos


a re

sexuais de risco à infecção de IST/Aids; maior exposição a acidentes de trân-


sito e de trabalho; elevada frequência de hábitos prejudiciais à saúde; baixa
adesão às rotinas de cuidado e aos serviços e tratamentos de saúde (ALVES
et al., 2011; BORGES; SEIDL, 2013; BRASIL, 2018; LAURENTI; JORGE;
par

GOTLIEB, 2005; VALENÇA et al., 2010; ZANELLO, 2018).


Os elementos causais apresentados acima evidenciam uma intrincada
Ed

relação entre, de um lado, a multiplicidade dos determinantes de saúde e,


de outro lado, as performances, representações, valores e ideais construídos
culturalmente como prescrições dominantes do “ser homem”. Nesse sentido,
ão

destaca-se a importância de que os processos de saúde dos homens sejam


analisados a partir de sua articulação com os processos de constituição das
masculinidades nos diferentes contextos socioculturais (OPAS/OMS, 2019;
s

ZANELLO, 2018).
ver

A partir de 1960/1970, de forma referenciada e impulsionada pelos estu-


dos de gênero e pelo movimento feminista, começou a se constituir um campo
de investigação dedicado a compreender os homens e as masculinidades, a
partir de diferentes disciplinas e perspectivas teóricas (BADINTER, 1993;
CECCHETTO, 2004; HOENISCH; CIRINO, 2010; MEDRADO; LYRA;
AZEVEDO, 2011; WELZER-LANG, 2004; ZANELLO, 2018). Desde então,
332

os estudos das masculinidades se desenvolveram em duas vertentes princi-


pais: uma fortemente comprometida com a libertação do sistema sexo-gê-
nero e com a superação da hierarquização entre homens e mulheres; e outra
vertente epistemologicamente acrítica, que trata a masculinidade como um
dado natural ou essencial e suprime o aspecto histórico, relacional e político

or
da categoria gênero (BADINTER, 1993; SCOTT,1995; WELZER-LANG,

od V
2004; ZANELLO, 2018).

aut
A primeira vertente citada acima busca uma ruptura com paradigmas
essencialistas e aborda as masculinidades como construções históricas e socio-

R
culturais, que se dão a partir do entrecruzamento de diferentes elementos orga-
nizadores das relações sociais, como raça e etnia, classe, idade e orientação

o
sexual. Portanto, nessa perspectiva, as masculinidades não têm um sentido
estável, atemporal e universal, mas consistem em configurações de práticas,
aC
valores e representações, que são dinâmicas e estão em contínua transformação
(CECCHETTO, 2004; CONNEL; MESSERSCHIMIDT, 2013).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Destaca-se, assim, a pluralidade dos modelos e configurações de mascu-
visã
linidades que, nas diferentes estruturas sociais, serão imbuídos de maior ou
menor reconhecimento, valorização e poder. Essas diferentes masculinidades
mantêm entre si relações de hierarquização e tensionamento. Em cada contexto
itor

sociocultural específico, há uma masculinidade hegemônica que prescreve


a re

os padrões e ideias do ser homem, contra os quais serão mensuradas e (des)


valorizadas as masculinidades subordinadas (CECCHETTO, 2004; KIM-
MEL, 1998; ZANELLO, 2018). Nesse sentido, em nossa cultura ocidental,
a experiência masculina se constrói no âmbito dessa cadeia hierárquica de
subordinação e obediência, que se estende das masculinidades hegemônicas
par

e privilegiadas às masculinidades subalternizadas (WELZER-LANG, 2001).


Ed

No Brasil, segundo Zanello (2018), a pressão para se conformar a esse


jogo de subordinação é materializada em conjuntos heterogêneos de práticas,
discursos, instituições e crenças que se organizam como um dispositivo de
ão

subjetivação: o “dispositivo da eficácia”. A autora destaca que esse disposi-


tivo conforma os caminhos privilegiados de subjetivação para os homens, a
partir da prescrição de ideais, estereótipos normativos, valores e performan-
s

ces. Assim, o “dispositivo da eficácia” estabeleceria, no Brasil, o modelo da


ver

masculinidade hegemônica, a partir de dois pilares fundamentais: a virilidade


laborativa e a virilidade sexual. Ou seja, um “verdadeiro” homem deve ser um
trabalhador/provedor (tendo como chancela de sucesso o acúmulo financeiro,
o êxito profissional e o acesso a bens de consumo), e deve apresentar alta
performance e excelência em seu desempenho sexual (marcado pela ereção e
pela quantidade de relações “ativas” e não “passivas”). Outro aspecto central
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 333

da masculinidade hegemônica em nosso contexto é que ela se organiza em


torno da misoginia e do repúdio a qualquer traço ou performance que apro-
xime os homens de características culturalmente atribuídas às mulheres. Nesse
sentido, ser homem é construído no negativo – “não ser uma mulherzinha”
– e no imperativo – “seja homem!” – (BADINTER; 1993; ZANELLO, 2018;

or
WELZER-LANG, 2001).

od V
É importante ressaltar que esse dispositivo constrói não apenas o padrão

aut
a partir do qual os homens são lidos e avaliados socialmente, mas também
os ideais de julgamento e valoração de si mesmos. Assim, ele tem um caráter

R
identitário e afetivo, configurador de processos subjetivos, de práticas e com-
portamentos, de crenças e emocionalidades, e das próprias vulnerabilidades

o
psíquicas (ZANELLO; BUKOWITZ, 2011; ZENELLO, 2018). Destaca-se,
aC
portanto, que as formas de subjetividade engendradas pelo dispositivo da
eficácia e pela masculinidade hegemônica influem diretamente em variados
posicionamentos e comportamentos relacionados aos processos de saúde e
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

cuidado dos homens. Nesse sentido, alguns estudos têm evidenciado que os
visã
estereótipos e padrões normativos da masculinidade – como a sustentação de
uma imagem de invulnerabilidade, a afirmação da virilidade e o cuidado de
si interpretado como característica feminina – expõem os homens a maiores
itor

prejuízos à sua saúde integral e os afastam dos dispositivos de cuidado em


a re

saúde (BURILLE et al., 2018; GOMES; NASCIMENTO; ARAÚJO, 2007;


SALDANHA et al., 2018).
Ressalta-se, assim, a relevância dos estudos das masculinidades para a
compreensão, intervenção e formulação de políticas públicas no âmbito da
saúde dos homens e, também, para a formação dos profissionais que irão aten-
par

dê-los. Em 2009, o Brasil demonstrou alguma permeabilidade a esse campo


Ed

científico com a criação da Política Nacional de Saúde Integrada do Homem


(PNAISH). Entretanto, vários autores e autoras questionam a fidedignidade
da incorporação do aporte feminista na PNAISH e apontam o maior emprego
ão

da vertente acrítica dos estudos das masculinidades no Brasil (CARRARA;


RUSSO; FARO, 2009; MARTINS; MALAMUT, 2013; TONELI; MÜL-
LER, 2015).
s

Especificamente no campo da psicologia, e diante da elevada morbimor-


ver

talidade masculina, cabe destacar que essa área do saber tem significativo
potencial e dever de contribuir para o entendimento dos processos subjetivos
engendrados pelas masculinidades e sua relação com a produção de saúde
e cuidado entre os homens. Tendo esse dever e potencial como horizonte,
coloca-se a seguinte questão: os estudos das masculinidades impactaram e
têm impactado as pesquisas em psicologia no Brasil quando se trata de estudar
334

os homens e os fenômenos sociais e de saúde a eles relacionados? O presente


artigo teve por objetivo responder a essa pergunta, realizando, para isso, uma
revisão sistemática da literatura científica brasileira em psicologia.

Método

or
od V
Foi realizada uma revisão sistemática da literatura, dentro da temática

aut
“psicologia”, nas principais bases de dados que compõem a plataforma da
Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), referência no país. As bases de dados sele-

R
cionadas foram o SciELO, LILACS, PePSIC, IndexPsi Divulgação Científica
e IndexPsi Periódicos Técnico-Científicos. Em cada uma dessas bases foram
pesquisados os seguintes descritores: (psi$ OR psy$ OR “saude mental” OR

o
“mental health” OR “salud mental” OR “sante mentale”) AND (masculinidade
aC
OR masculinidad OR masculinity OR masculinite OR genero OR gender OR
genre). A estratégia de coleta dos dados foi criada a partir dos Descritores

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


em Ciências da Saúde (DeCS), utilizados para indexação em todas as bases
visã
que compõem a BVS.
A busca foi realizada para os índices de “título” e “assunto” e os resul-
tados foram combinados em um único banco de dados com eliminação das
duplicatas através do administrador de referências Mendeley. As buscas ocor-
itor

reram entre julho e dezembro de 2018. Inicialmente, foram encontrados 1.102


a re

artigos, dos quais 264 eram duplicados e foram eliminados, resultando em


um banco de 838 artigos. Dos 1.102 artigos encontrados, 69 foram resgata-
dos no IndexPsi Periódicos Técnico-Científicos, 20 no IndexPsi Divulgação
Científica; 166 no PePSIC, 300 no SciELO e 547 no LILACS. Foi realizada
par

a leitura de todos os títulos e resumos, utilizando os seguintes critérios de


inclusão: a) publicados em periódicos avaliados pela CAPES como psico-
Ed

logia; b) publicados por pelo menos um autor ou autora com algum nível de
formação em psicologia; c) quando empírico, amostra contendo homens bra-
sileiros adultos; d) ao menos um autor ou autora brasileiro/a; e) uso de teorias
ão

de gênero, estudos das masculinidades ou teorias feministas; f) escritos em


inglês, espanhol, francês ou português. Foram excluídos: a) documentos que
não fossem artigos; b) artigos cuja amostra fosse composta exclusivamente
s

por mulheres ou se referissem exclusivamente a elas. Aponta-se ainda que o


ver

critério de inclusão “e” teve como base a revisão das referências bibliográfi-
cas dos artigos levantados, sendo necessária a presença de pelo menos uma
autora ou autor referendado no campo dos estudos de gênero. Para tal, foi
desenvolvida uma lista de autores/as com base em uma revisão narrativa da
literatura feita previamente.
Após a análise minuciosa dos resumos, 712 artigos foram descartados,
restando 126, que foram lidos integralmente. Desses, foram excluídos 95, por
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 335

não atenderem a um dos critérios de inclusão, por contemplarem algum item


de exclusão ou, ainda, por não tratarem efetivamente do tema investigado
(por exemplo, apenas citam superficialmente algo sobre as masculinidades).
Ao final, permaneceram 31 artigos, que passaram por uma análise siste-
mática de seus temas, realizada conjuntamente por dois pesquisadores. Além

or
disso, foram levantados os seguintes aspectos: local de realização do estudo,

od V
origem institucional dos autores/região do Brasil; métodos; sexo dos autores;

aut
e as referências do campo de estudos das masculinidades, para verificar quais
são os principais textos referenciados e quais autores possuem maior impacto
nos estudos sobre homens no Brasil. As autocitações foram desconsideradas

R
para as análises de bibliografia.

o
Resultados e discussão
aC
A presente amostra é predominantemente composta por artigos produ-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

zidos no Distrito Federal (7 artigos) e em Minas Gerais (7 artigos). As prin-


visã
cipais instituições encontradas foram a Universidade de Brasília (7 artigos),
a Universidade Federal de Minas Gerais (4 artigos) e o Instituto Fiocruz,
também de Minas Gerais (3 artigos). Universidade de São Paulo, Universidade
Federal do Espírito Santo, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
itor

Universidade Católica de Brasília, Universidade Federal de Pernambuco e a


a re

Universidade Federal do Rio Grande do Sul figuraram com 2 artigos cada.


Por fim, outras 29 instituições figuraram com um artigo cada.
Foram contados 84 autores/as sendo 61 mulheres e 23 homens. Os traba-
lhos caracterizam-se metodologicamente por serem estudos de tipo qualitativo
par

(14 artigos) que utilizaram entrevistas (12 artigos) e análise de conteúdo (12
artigos) como método de coleta e análise dos dados.
Ed

A análise das referências bibliográficas revelou um uso significativo do


texto de Joan Scott “Gênero, uma categoria útil para o estudo da história”
(1995), que foi citado por 13 artigos. Os textos que ficaram em segundo
ão

lugar como mais referenciados aparecem em 6 artigos e são: “Sexualidade


masculina: Gênero e Saúde”, de Gomes (2008); “Concepções de gênero,
masculinidade e cuidados em saúde: um estudo com profissionais de saúde da
s

atenção primária”, de Machin, Couto, Silva, Schraiber, Gomes, Figueiredo,


ver

Valença e Pinheiro (2011). Em terceiro lugar, com frequência de 5 referên-


cias cada: “Por que os homens buscam menos os serviços de saúde do que
as mulheres? As explicações de homens com baixa escolaridade e homens
com ensino superior”, de Gomes, Nascimento e Araújo (2007); “Assistência
à saúde dos homens: um desafio para os serviços de atenção primária.”, de
Figueiredo (2005); “A construção da subjetividade masculina e seu impacto
sobre a saúde do homem: reflexão sobre justiça distributiva”, de Braz (2005);
336

“Homens e saúde na pauta da saúde coletiva.”, de Schraiber, Figueiredo,


Gomes e Couto (2005). E em quarto lugar, com 4 aparições cada, os textos:
“Necessidades de saúde e masculinidades: atenção primária no cuidado aos
homens.”, de Schraiber, Figueiredo, Gomes, Couto, Pinheiro, Machin, Silva
e Valença (2012) e “Os homens não vêm! Interpretação dos profissionais de

or
saúde sobre ausência e ou invisibilidade masculina nos serviços de atenção

od V
primária do Rio de Janeiro.”, de Gomes, Moreira, Nascimento, Rebello, Couto

aut
e Schraiber (2011).
A disparidade entre a frequência da referência ao texto de Scott (1995) e
os demais fornece evidências, já apontadas por Azerêdo (2010), de que a uti-

R
lização massiva da definição de gênero que Scott estabelece nesse artigo pode
ser efeito da despolitização dos estudos de gênero na psicologia brasileira.

o
Em seu artigo, Scott propõe a seguinte definição de gênero: “o gênero é um
aC
elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas
entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


poder” (1995, p. 21). Azerêdo questiona a repetição dessa definição, sendo
que a própria Scott apresenta, em trabalhos posteriores, definições mais críti-
visã
cas quanto ao papel do poder e da hierarquia no gênero (AZERÊDO, 2010).
A análise temática dos artigos resultou em 4 categorias, que serão apre-
sentadas a seguir: (1) “Saúde”, a mais relevante (14 artigos); (2) “Repre-
itor

sentações” (8 artigos); (3) “Violência contra as mulheres” (7 artigos); (4)


a re

“Formação em psicologia” (2 artigos).

1) Saúde
par

A categoria “saúde” reuniu os artigos que tinham por objeto de estudo a


saúde física e mental. Os temas elencados foram “saúde mental” (5 artigos),
Ed

“autocuidado” (4 artigos), “percepções de psicólogos” (3 artigos) e “saúde


no trabalho” (2 artigos).
Com 5 artigos, “saúde mental” foi o tema de maior frequência. 4 artigos
ão

pesquisaram usuários de serviços de saúde mental (ANDRADE; MALUF,


2017; CAMPOS; RAMALHO; ZANELLO, 2017; ZANELLO; SILVA, 2012;
ZANELLO; FIUZA; COSTA, 2015) e um artigo investigou a saúde mental
s

e o discurso de idosos em uma instituição geriátrica (ZANELLO; SILVA;


ver

HENDERSON, 2015). As autoras utilizaram o método de entrevistas com


os usuários dos serviços (ANDRADE; MALUF, 2017; ZANELLO; FIUZA
et al., 2015; ZANELLO, SILVA et al., 2015) e análises sociodemográficas de
prontuários (CAMPOS et al., 2017; ZANELLO, SILVA, 2012). Os estudos
encontraram diferenças de gênero nas formas de adoecimento psíquico. Foi
identificado que estar solteiro e desempregado é um fator de risco para a saúde
mental masculina (CAMPOS et al., 2017; ZANELLO, SILVA, 2012) e que
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 337

o sofrimento por não poder trabalhar e as comorbidades que afetam a virili-


dade sexual ocupam lugar central nos relatos masculinos, tanto de pacientes
jovens (ZANELLO; FIUZA et al., 2015) quanto de homens na terceira idade
(ZANELLO; SILVA et al., 2015). Os achados nesse tema concordam entre si,
ressaltando o lugar do trabalho e da virilidade sexual na subjetividade mascu-

or
lina, e baseiam-se nos estudos das masculinidades, especialmente em trabalhos

od V
como os de Badinter (1992) e Welzer-Lang (2004). Apenas os trabalhos de

aut
Zanello e Silva (2012) e Andrade e Maluf (2017) não utilizaram os estudos das
masculinidades, mas interpretaram seus achados à luz dos estudos de gênero.
No tema do “Autocuidado”, foram reunidos 4 artigos que investiga-

R
ram a adesão a cuidados de saúde entre homens brasileiros. Dentre eles, 2
investigaram as relações entre velhice e cuidados com a saúde na população

o
masculina, um através de entrevistas com homens idosos (BORGES; SEIDL,
aC
2012) e o outro pela avaliação dos efeitos de uma intervenção psicoeducativa
com idosos acerca de autocuidado e saúde (BORGES; SEIDL, 2013). Quanto
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

aos outros 2 artigos, um pesquisou sentidos atribuídos ao adoecimento e


tratamento oncológico entre homens com câncer (MODENA et al., 2014), e
visã
o outro investigou o autocuidado com a saúde em homens inscritos em um
programa de saúde da família (ALVES et al., 2011).
No primeiro artigo, de Borges e Seidl (2012), a análise temática das entre-
itor

vistas com idosos revelou que eles percebem muitas “barreiras” institucionais
a re

do sistema de saúde, econômicas e socioculturais que se interpõem contra o


autocuidado. Os entrevistados identificaram negligências com o autocuidado
e excessos (como álcool e tabagismo) como padrões masculinos negativos de
saúde. Já no segundo artigo, de Borges e Seidl (2013), foi verificado que as
par

intervenções psicoeducativas mostraram-se úteis, com efeitos de aumento na


prontidão dos participantes para a realização de consultas e exames médicos.
Ed

As autoras utilizaram estudos das masculinidades através de pesquisas que têm


como foco a saúde masculina e a adesão de homens a tratamentos de saúde,
a exemplo: Braz (2005), Gomes, Nascimento e Araújo (2007) e Schraiber,
ão

Gomes e Couto (2005).


O estudo de Modena et al. (2014) revelou a influência da socialização
masculina na percepção do adoecimento e tratamento do câncer nos homens
s

adultos. As limitações do adoecimento entram em choque com os valores de


ver

potência da masculinidade hegemônica. Afastamento do trabalho e problemas


do tratamento no desempenho sexual foram trazidos pelos entrevistados com
sentimento de perda da masculinidade. Finalmente, no artigo de Alves et al.
(2011), os entrevistados relataram que os homens encontram mais entraves e
dificuldades psicossociais para cuidar da própria saúde, tais como dificuldade
de abandonar o trabalho e menor acessibilidade ao sistema de saúde. Apesar de
diferenças nas referências utilizadas entre os artigos, é notável aqui a repetição
338

dos textos de Braz (2005), Gomes, Nascimento e Araújo (2007) e Schrai-


ber, Gomes e Couto (2005) para falar sobre autocuidado e saúde masculina.
As pesquisas levantadas concluem que os homens percebem fortes entraves
quanto à adesão a serviços médicos e a comportamentos de autocuidado. Além
disso, os trabalhos apontam a possibilidade de que esse efeito seja resultante

or
da socialização masculina (ALVES et al., 2011; MODENA et al., 2014).

od V
O terceiro tema desta categoria, “percepções de psicólogos”, reuniu 3

aut
artigos que fizeram análises de entrevistas com psicólogos acerca de seu traba-
lho com homens. Dois entrevistaram psicólogos nos serviços de Oncologia de

R
Belo Horizonte (MARTINS et al., 2012; MARTINS; ALMEIDA; MODENA,
2013) e o terceiro entrevistou esses profissionais através de questionário entre-
gue em congressos de Oncologia e de cuidados paliativos (MARTINS, et al.,

o
2014). Os três artigos revelaram que a visão dos psicólogos entrevistados
aC
aponta para a dificuldade em mobilizar homens para o comprometimento no
seu próprio tratamento. Segundo esses psicólogos, existe uma dificuldade de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


adesão ao tratamento oncológico que tem uma ligação direta com a sociali-
visã
zação masculina (MARTINS et al., 2012, 2013, 2014). Dois dos três artigos
destacaram também que o atendimento prioriza mulheres e crianças, levando
as práticas de saúde a uma dificuldade em reconhecer o público masculino
como demandante de cuidados (MARTINS et al., 2013, 2014). O tema “per-
itor

cepções de psicólogos” foi o que apresentou a maior média de referências aos


a re

estudos das masculinidades. O artigo de Martins et al. (2012) citou um total


de 20 trabalhos desse campo. Contudo, destaca-se que há poucas referências
aos estudos de gênero para além do trabalho de Scott “Gênero: uma categoria
útil de análise histórica” (1995), citado por todos os artigos neste tema.
par

O quarto e último tema da categoria “saúde”, foi “Saúde no trabalho”.


Nele foram reunidos 2 artigos que tinham por objetivo investigar a saúde de
Ed

homens e mulheres no trabalho. O artigo de Santos (1997) consistiu em um


estudo de caso explorando a realidade dos profissionais auxiliares de enfer-
magem. Foram encontradas distinções entre trabalho prescrito e trabalho real
ão

nessa população, com homens assumindo trabalho braçal, por exemplo, por
serem homens. A autora não se utilizou dos estudos das masculinidades. Já
s

no trabalho de Souza, Franco, Meireles, Ferreira e Santos (2007), as autoras


ver

investigaram o sofrimento psíquico entre policiais civis no Rio de Janeiro,


procurando por diferenças de gênero. Foi utilizado o Self-Report-Question-
naire (SRQ-20) junto a dados de uma investigação prévia. Os resultados não
demonstraram diferenças significativas de sofrimento psíquico entre os gêne-
ros, mas foi constatado que os homens realizam menos atividades de lazer. As
autoras fundamentaram suas análises em trabalhos dos estudos das masculi-
nidades tais como o de Cecarelli (1998), Cecchetto (2004), e Connel (1995).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 339

Na categoria “Saúde”, os achados convergem no sentido de apontar


que, segundo a concepção dos entrevistados: homens são menos cuidadosos
consigo (ALVES et al., 2011; BORGES; SEIDL, 2012); figuram em menor
número e com estado mais crítico nos serviços de saúde (ZANELLO; SILVA,
2012; ZANELLO et al., 2015; ZANELLO; SILVA et al., 2015); o processo de

or
socialização masculino influencia no distanciamento dos homens do sistema

od V
de saúde (ALVES et al., 2011; BORGES; SEIDL, 2012; MARTINS et al.,

aut
2012; MARTINS et al., 2013; MODENA et al., 2014); e o Sistema Único de
Saúde não está equipado para atender o público masculino, tanto por falta de

R
capacitação dos profissionais de saúde como pela ausência de programas no
Brasil voltados para esse público (ALVES et al., 2011; BORGES; SEIDL,
2012; MARTINS et al., 2012; MARTINS et al., 2013; MODENA et al., 2014).

o
aC
2) Representações
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A categoria “Representações” foi a segunda mais prevalente, contando


visã
com 8 artigos que investigaram as representações das masculinidades. Foram
identificados 3 temas, a saber: “teorias/epistemologia” (4 artigos), “veículos
de divulgação” (2 artigos) e “no público” (2 artigos).
O tema “teorias/epistemologia” abrangeu 4 artigos. Dois dos trabalhos
itor

buscaram conciliar críticas dos estudos de gênero com a psicanálise (SAM-


a re

PAIO; GARCIA, 2010; STENGEL, 2001). O terceiro artigo analisou tes-


tes psicológicos de gênero (COSTA; NARDI; KOLLER, 2017). O quarto
fez uma análise da sexologia como área médica/terapêutica (ROHDEN;
RUSSO, 2011).
par

Na revisão narrativa da literatura de Stengel (2001), a autora se utiliza


dos estudos de gênero (em especial a teoria Queer de Judith Butler) para
Ed

defender um entendimento mais fluido da sexuação social na psicanálise.


Também aborda as masculinidades a partir do trabalho de Nolasco (1995). Em
seu artigo, Sampaio e Garcia (2010) propõem aproximações entre os estudos
ão

de gênero e a psicanálise pensando na dupla identificação sexual elaborada


por Michael Diamond e apoiam-se em textos dos estudos das masculinida-
s

des, como o trabalho de Badinter (1992) e Bourdieu (1998). Já no texto de


ver

Costa et al. (2017), as autoras perfazem a história dos testes psicológicos que
aferem gênero no Brasil, demonstrando como a psicologia distanciou-se dos
feminismos para abordar gênero de forma naturalizante (COSTA et al., 2017),
mas não fazem referências aos estudos das masculinidades. Na investigação
conduzida por Rohden e Russo (2011), as análises etnográficas e as observa-
ções realizadas em congressos revelaram que a sexualidade masculina tem
sido “centrada na fisiologia da ereção e prescrição de drogas” (ROHDEN;
340

RUSSO, 2011, resumo). Segundo as autoras, a sexologia tem colocado ênfase


nas diferenças de gênero, erigindo para o masculino um conjunto de discursos
e técnicas baseadas em uma compreensão mecanicista da sexualidade.
No tema “veículos de divulgação”, um artigo abordou as representa-
ções de masculinidades em livros de autoajuda (ALMEIDA; JABLONSKI,

or
2011) e outro, na revista “Veja” (HOENISCH; CIRINO, 2010). O artigo

od V
de Almeida e Jablonski (2011) aponta que os livros de autoajuda reforçam

aut
uma imagem de masculinidade tradicional, trazendo pouco embasamento
científico e ressaltando diferenças essencialistas entre homens e mulheres

R
(ALMEIDA; JABLONSKI, 2011). O artigo apoia suas análises em 16 refe-
rências dos estudos das masculinidades com trabalhos como o de Nolasco
(1996, 1997) e Da Mata (1997). Já no artigo de Hoenisch e Cirino (2010), é

o
destacado que as masculinidades apresentadas na revista “Veja” cobrem apenas
aC
a experiência do homem branco, heterossexual, de classe média, reforçando a
concepção hegemônica de masculinidade. Os autores utilizaram 3 trabalhos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dos estudos das masculinidades: Badinter (1993), Carvalho Filho (2008) e
visã
Cecchetto (2004), e nenhuma referência dos estudos de gênero. Os 2 artigos
concordam que as masculinidades nos veículos de comunicação estudados
são representadas como tradicionais, sexistas, com características pensadas
a partir de uma perspectiva biologicista de gênero.
itor

O tema “no público” foi composto pelos artigos de Almeida et al. (2005)
a re

e o de Guerra et al. (2015). No primeiro artigo, as autoras pesquisaram as


representações sociais de motoristas por gênero. A análise de categorias con-
cluiu que o gênero interfere na maneira como os sujeitos representam a si e às
demais pessoas no trânsito, ressaltando a influência de estereótipos de gênero.
par

Os dados são interpretados à luz dos estudos das masculinidades através de


pesquisas como as de Nolasco (1995, 1997) e Connel (1995) (ALMEIDA
Ed

et al., 2005). Já o segundo artigo fez um levantamento das representações


de masculinidade através da aplicação da Escala de Concepções da Mascu-
linidade, da Escala de Preocupação com a Honra HS-16, do Questionário de
ão

Valores Básicos e questionário sociodemográfico (GUERRA et al., 2015).


Foram identificadas 17 referências dos estudos das masculinidades nesse tra-
s

balho. Essa pesquisa evidenciou que as populações estudadas ainda mantêm


ver

uma concepção tradicional de masculinidade. As autoras constatam a presença


de concepções de gênero estereotipadas e tradicionais e um papel central da
honra nas masculinidades.
Na categoria “representações”, as pesquisas convergem em afirmar a
persistência de representações sexistas das masculinidades, seja em veículos
de divulgação, seja no público estudado. Nas teorias “psi”, destaca-se a per-
sistência de representações tradicionais no campo da psicometria e a tentativa
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 341

de estabelecimento de diálogos entre a psicanálise e as teorias de gênero.


Ressalta-se que a psicanálise e o psicodrama foram as únicas linhas teóricas
encontradas nessa revisão em similar esforço de diálogo.

3) Violência contra as mulheres

or
od V
Na categoria “Violência contra as mulheres”, encontraram-se 7 artigos

aut
que tinham como ponto comum abordar o fenômeno da violência cometida por
homens contra mulheres. Foram identificados 3 temas dentro desta categoria:

R
“concepções de profissionais psicólogos” (3 artigos), “homens agressores” (3
artigos) e “serviços oferecidos aos agressores” (1 artigo).
O tema “Concepções de profissionais psicólogos” contou com 3 artigos,

o
dois dos quais tratam das concepções de psicólogos que acompanham casos
aC
de violência contra a mulher (MEDRADO; LEMOS; BRASILINO, 2011;
OLIVEIRA; SOUZA, 2006). O terceiro é uma revisão narrativa acerca da
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

importância do psicólogo hospitalar na equipe médica em casos de violência


visã
reprodutiva e conjugal (QUAYLE, 2006).
No artigo de Medrado et al. (2011), foi realizada análise de categorias a
partir de entrevistas com psicólogos que trabalham com atendimentos rela-
cionados à violência contra a mulher. O estudo concluiu que os discursos
itor

coletados se organizam em torno dos eixos da “punição” (medidas punitivas


a re

para os agressores), “prevenção” (modelos de prevenção da violência contra


a mulher) e “medidas assistenciais” (assistência às vítimas e reabilitação dos
agressores). Foram utilizadas 3 referências nos estudos das masculinidades:
Acosta e Baker (2003), Arilha (2005) e Grossi (2004).
par

Oliveira e Souza (2006), a partir da análise de entrevistas, apontam que


uma parcela dos psicólogos que atuam no atendimento de casos de violência
Ed

contra a mulher reproduz um discurso em que homens seriam sempre agres-


sores e mulheres sempre vítimas. Os autores associam essa concepção dualista
ao discurso feminista. Foram utilizados três trabalhos dos estudos das mas-
ão

culinidades: Braz (2005), Garcia (1998) e Schraiber, Gomes e Couto (2005).


Por fim, Quayle (2006) fez uso de relatos de caso, música e literatura
na área de psicologia para destacar a importância do psicólogo hospitalar.
s

Especialmente quando analisa relatos de casos, a autora aponta o papel do


ver

poder social masculino na configuração da situação violenta. A autora fez uso


de 8 referências dos estudos das masculinidades.
Os artigos que tratam das concepções de psicólogos concordam que as
ações direcionadas para os homens são de número incipiente e que os psicó-
logos se referem ao público masculino de forma dualista, na qual homens são
entendidos como agressores e as mulheres como vítimas (MEDRADO et al.,
2011; OLIVEIRA; SOUZA, 2006).
342

O tema “homens agressores” reuniu 2 artigos que tinham por objeto de


investigação homens que cometeram violências contra mulheres (MUSZKAT,
2008; PIMENTEL, 2010), e um terceiro artigo que pesquisou a incidência e
as percepções do trote em uma faculdade de medicina (MARIN; ARAÚJO;
ESPIN, 2008). O artigo de Suzana Muszkat (2008) parte de seu trabalho com

or
grupos de homens violentos. Segundo a autora, o uso da violência expressa

od V
um desamparo identitário face à precariedade da rede de significados de que

aut
os homens dispõem como definidores do que é masculino e feminino São
utilizados três trabalhos dos estudos das masculinidades, incluindo Bour-
dieu (1998). Já a pesquisa de Pimentel (2010) foi feita a partir de revisão

R
bibliográfica, leitura de documentos, observação participante e questionários
entregues a homens agressores. A autora conclui que a violência física é a

o
mais prevalente entre os detidos, seguida pela psicológica, e que o pênis tem
aC
função central e definidora da masculinidade. Foram utilizadas 6 referências
dos estudos das masculinidades, incluindo Braz (2005) e Grossi (2004). Por

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


fim, Marin et al. (2008), concluem que homens aplicam mais trotes e recebem
os piores trotes de outros homens. Utilizou-se 6 referências dos estudos das
visã
masculinidades incluindo Welzer-Lang (2004) e Bourdieu (1998). Os dois
artigos que analisaram homens acusados de violência ressaltam a importância
de grupos psicoeducativos para homens em geral, já que a socialização mas-
itor

culina pode levar à agressividade devido à aprendizagem de masculinidades


a re

baseadas no exercício de dominação sobre as mulheres (MUSZKAT, 2008;


PIMENTEL, 2010). O último artigo do tema “homens agressores” discute o
processo de naturalização da violência pelos homens (MARIN et al., 2008).
O último tema, “serviços oferecidos aos agressores”, foi identificado no
par

artigo de Medrado e Méllo (2008), que faz uma revisão narrativa dos estudos
sobre a posição do homem nas políticas de atenção à saúde. É ressaltada a
Ed

necessidade de mobilização dos profissionais que atuam nessas áreas para


que incluam o cuidado e a atenção ao homem, alegando invisibilização das
questões masculinas. A referência nos estudos das masculinidades utilizada
ão

é Acosta e Baker (2003).


Os achados na categoria “violência contra a mulher” concordam acerca
da necessidade de reeducação e ressocialização masculina. Os autores apontam
s

questões estruturais na socialização masculina e a quase ausência de progra-


ver

mas destinados a homens agressores. Além disso, destaca-se que a questão da


violência de homens contra homens não foi identificada na presente amostra.

4) Formação em psicologia

A categoria “Formação em psicologia” englobou dois artigos que tra-


balharam com a percepção de alunos de psicologia acerca de questões de
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 343

gênero e masculinidades. O primeiro (GANDOLFO; AUAD, 2010) discutiu


a experiência de uma vivência sociodramática com estudantes de psicologia.
O segundo artigo (MARTINS; ABADE; AFONSO, 2016) analisou relatos
colhidos em um grupo focal de graduandos em psicologia.
A primeira atividade disparadora na experiência sociodramática relatada

or
por Gandolfo e Auad (2010) foi a solicitação aos alunos homens de psicolo-

od V
gia para discutirem o que é ser homem e às mulheres o que é ser mulher. As

aut
autoras concluíram que, apesar do desejo dos alunos/as de superar o sexismo,
houve muita frustração envolvida quando se tentou colocar em prática esse
discurso, gerando frustração (GANDOLFO; AUAD, 2010). Foram utilizadas

R
duas referências dos estudos das masculinidades: Aidar (2007) e Giffin (2005).
O segundo artigo (MARTINS et al., 2016) identificou que os alunos desconhe-

o
ciam o PNAISH e afirmaram não terem sido capacitados para trabalhar com
aC
homens em situação de violência. Segundo os autores, esse desconhecimento
é resultado de uma genderificação dos serviços de saúde que invisibiliza os
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

homens (MARTINS et al., 2016). Foram utilizadas 7 referências dos estudos


das masculinidades com foco na construção de políticas de saúde, como, por
visã
exemplo, o trabalho de Gomes (2008).
Nesta categoria, destaca-se que, apesar de a psicologia ser um importante
campo de saber para promover a desconstrução de masculinidades nocivas,
itor

o reduzido número de artigos que tratam da formação de psicólogos é bas-


a re

tante problemático.

Considerações finais
par

O presente estudo conclui que faltam pesquisas em psicologia que se


sustentem nos estudos das masculinidades. Apenas 31 artigos foram achados
Ed

em 5 diferentes bases de dados e esse é um número muito reduzido para os


40 - 50 anos de existência desse campo de estudo. Vimos um aumento no
interesse por esse assunto por volta do ano de 2010, devido à PNAISH, porém,
ão

muito ainda se debate sobre a correta adequação desse campo teórico à prática.
Na categoria “Saúde”, os artigos revelam que os homens adoecem de
maneira própria a seu gênero e que, frequentemente, evitam a busca de tra-
s

tamentos. Os estudos também evidenciaram que eles costumam praticar o


ver

autocuidado de modo insuficiente e investir pouco no próprio tratamento,


apesar de se envolverem em mais comportamentos de risco e em mais aci-
dentes em geral.
Os trabalhos reunidos na categoria “Representações” apontam a pre-
valência de representações sexistas e tradicionais de masculinidade entre os
homens e mulheres brasileiros. Destaca-se que, embora a amostra de artigos
344

seja reduzida, ela salienta a importância de seguirmos debatendo e pesquisando


essa realidade para melhor entendê-la.
Na categoria “Violência contra as mulheres”, os autores/as concordam
sobre a necessidade de investimento em pesquisas e em grupos psicoeduca-
tivos que trabalhem a socialização masculina, evitando que as intervenções

or
sejam restritas a medidas meramente punitivas.

od V
As duas pesquisas da categoria “Formação em psicologia” apresentam

aut
uma realidade em que os alunos parecem despreparados para lidar com a
subjetividade masculina em seus pontos críticos. Também apontam que há
pouca discussão sobre a importância dos estudos de gênero e das masculini-

R
dades nessa formação.
As referências dos estudos das masculinidades estão mal distribuídas

o
entre os 31 artigos aqui reunidos. Dentre os 113 trabalhos identificados como
aC
pertencentes ao campo dos estudos das masculinidades, apenas 10 são citados
3 vezes ou mais e nenhum é citado 7 vezes ou mais. Isso pode ser indicativo

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de uma abordagem ainda reduzida por parte da psicologia nacional em se
apropriar desse campo. Nesse sentido, em um cenário de elevados índices de
visã
morbimortalidade masculina, é necessário refletirmos sobre o impacto dessa
tímida aproximação aos estudos das masculinidades na formação e no exercí-
cio profissional dos psicólogos, que têm um importante papel nos processos de
itor

produção de saúde e que poderiam atuar de forma significativa na elaboração


a re

e desconstrução de formas de masculinidades hegemônicas que são nocivas


tanto para os próprios homens quanto para as mulheres.
Por fim, destacamos que a presente amostra não exaure os trabalhos
nacionais. As plataformas escolhidas, a estratégia de busca e os critérios de
par

seleção criam vieses inevitáveis em qualquer trabalho deste tipo. Futuras


pesquisas devem continuar levantando a literatura nacional para delinearmos
Ed

um quadro cada vez mais preciso da produção acadêmica brasileira.


s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 345

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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
OS BANIWAS E A FORMAÇÃO E PRÁTICA
DAS PSICOLOGIAS COM O POVO INDÍGENA
Geana Baniwa

or
Marcelo Calegare

od V
aut
Nós do povo Baniwa estamos há tempos resistindo para continuar nossa
história e nosso modo de existir, que já foram parcialmente elucidados por

R
estudos importantes feitos por pesquisadores que buscaram compreender a
origem e historicidade que perpassa a gênese da nossa etnia até a atualidade.
É necessário partir da compreensão da história e especificidades que envolve

o
o nosso povo, para que aqueles que forem lidar com os Baniwas possam
aC
nortear suas ações de modo adequado. Dessa feita, neste capítulo traremos
inicialmente um pouco de nossa história, nosso modo de ser, viver e nossa
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

forma de conhecer, para então tecer algumas críticas necessárias às Psicologias


para trabalhar com nosso povo e, enfim, trazer alguns aspectos importantes
visã
à formação e prática das psicólogas com os Baniwas.

Nossa origem e existência


itor
a re

Entre os anos de 1730 e 1800, no tempo da escravidão, os Baniwa-Cur-


ripaco viram-se obrigados a fugir dos portugueses, habitando as cabeceiras
dos igarapés, distribuindo-se em clãs e mantendo contato com indígenas de
outro dialeto. Como lembrou Ramirez (2001, p. 37), “os Walipe-te Dákeenai
do rio Cuiari refugiaram-se nas cabeceiras dos afluentes do médio Içana,
par

aproximando-se dos Huhúdeeni, modificando a sua língua com os contatos”.


Foram mais de duzentos anos em que os Baniwas guerrearam com os não
Ed

indígenas e, durante esse processo, houve perdas que são marcadas em nossa
história, como a diminuição da população, que também acarreou em perda de
conhecimentos culturais e tradicionais passados pelos anciões. Além disso,
ão

Santos (2012) argumentou que a interferência exógena é “fato historicamente


comprovado pelas mudanças do cotidiano tribal causadas pela catequese e
escolarização trazida pelos salesianos e o evangelismo de protestantes para a
s

região do alto rio Negro” (p. 55).


ver

Em tempos mais recentes, os invasores começaram a adentrar em nossas


terras: os mineradores e garimpeiros – muitos deles protegidos pela Polícia
Federal – que contribuíram para a devastação de nossos territórios e aumento
da violência. Diante das invasões, os Baniwas inicialmente reafirmaram sua
postura histórica de autonomia com relação aos não indígenas. Os capitães
das comunidades reivindicaram o controle sobre seus recursos minerais e se
colocaram contra a presença de mineradores em suas terras.
352

Encontramos os Baniwas na bacia do rio Içana e seus afluentes, entretanto


encontramos também estes habitando em outras regiões como em Manaus,
Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira (PETIZA
et al., 2013).O rio Içana e o rio Aiari – no noroeste do estado do Amazonas,
divisa com a Colômbia, numa região nomeada pelos militares como “cabeça do

or
cachorro” pelo formato das fronteiras – são afluentes importantes na história do
nosso povo Baniwa, pois deles se originaram as aldeias e de seus rios obtivemos

od V
a subsistência através do consumo de peixe (SANTOS, 2012). Vale salientar

aut
que nós indígenas da etnia não nos autodenominamos através do termo Baniwa.
Ela é utilizada em termos gerais para denominar todos os povos pertencentes a

R
língua da família Aruak, usado na interação com outras etnias e com o mundo
ocidental. As comunidades indígenas frequentemente usam como autodenomi-

o
nação os nomes das fratrias: Hohodene, Walipere-dakenai ou Dzauinai.
Os Baniwa e Kuripako estão distribuídos em 93 comunidades e sítios,
aC
somando aproximadamente 7000 na Colômbia (2000), 3501 na Venezuela (2011)
e 7145 no Brasil (2014) (WRIGHT; ANDRELLO, 2021). Ramirez (2001), em sua

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


terminologia, distribuiu o dialeto em três: 1) o dialeto setentrional, denominado
visã
kuripako, que compreende a afluente do rio Guainia e cabeceira do Cuiari; 2) o
dialeto central, chamado Baniwa, ocorre no Rio Içana acima da missão salesiana
de Assunção; 3) o dialeto meridional, originalmente encontrado abaixo da missão
de Assunção, foi substituído pelo nheengatú. Em solo brasileiro, os povoados
itor

estão localizados no baixo e médio Içana e nos rios Cubate, Cuiari e Aiari.
a re

Apesar dos Baré, os Warekena e os Baniwa terem adotado uma mesma língua e
estabelecerem relações constantes, o território de cada grupo é bem demarcado:
Baré no rio Negro, Baniwa no rio Içana e Warekena no rio Xié.
O nosso povo pertence ao grupo Aruak, distribuídos entre os rios Içana
e o Aiari, rios estes que desaguam no rio Negro. Os Baniwas falam a mesma
par

língua, entretanto encontramos alguns falantes de outras línguas como o


nheengatú (GARNELO, 2007). A nossa família foi uma das que adotaram a
Ed

lingua nheengatú, e não a língua de nossa etnia Baniwa.


O povo Baniwa é subdividido em três ou quatro clãs, que são grupos de
famílias associadas a uma espécie animal. Os indígenas do mesmo clã não
ão

podem casar-se um com os outros, pois se consideram irmãos (RAMIREZ,


2001). Os clãs são herdados patriarcalmente, semelhantes aos da etnia. Pode-
s

mos citar um exemplo: se o pai é da etnia Baniwa e tem o clã ciucí, os filhos
também herdam a mesma etnia e clã. Nós autores deste trabalho pertencemos
ver

ao grupo Walipere, do clã ciucí. O patriarcalismo é bastante presente entre o


povo e a mulher indígena quando casa passa a morar com a família do marido
no local onde ele vive (GARNELO, 2007).
Castro (1996) em seus estudos pôde, através dos indígenas, compreender
que os homens e os animais possuíam os mesmos propósitos e vontades. Os
humanos teriam aspectos e/ou formas dos animais e vice-versa. Entretanto,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 353

possuiriam uma só unidade de espírito, como o autor argumenta, o que implica


na conexão em que os povos indígenas têm com a natureza.
No passado, nossos ancestrais Baniwas sofreram grande influência de
missionários, militares e comerciantes brancos, que adentraram em nossos
territórios e os nossos parentes foram progressivamente se transferindo de suas

or
antigas malocas, no interior da mata, para as margens do Içana. Na comuni-

od V
dade Assunção do Içana, território de origem de nossa família, encontramos

aut
as casas submersas nas grandes árvores que ficam à frente da comunidade.
Poucas casas aparecem à vista quando chegamos na comunidade ou quando

R
passamos por ela. Na Figura 01 podemos ver algumas que ficam à margem,
dentre elas a escola e a igreja católica (Figura 02).
A Escola Estadual Indígena Nossa Senhora da Assunção, abarca desde

o
a alfabetização até o último ano do ensino médio. A Educação alinha-se às
aC
nossas tradições culturais. Ensina-se a ler e escrever na língua portuguesa,
mas também é enfatizado os conhecimentos acerca das plantas medicinais,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

das danças tradicionais (Figura 03) e das músicas na língua nheengatú, den-
visã
tre outras atividades que valorizam nossa cultura. Apesar da influência dos
missionários em nossa comunidade e na escolarização, eles não interferiram
em nosso modo de ser, viver e em nossas tradições. Continuamos a praticar
nossas atividades, nossos rituais e nossas festividades, muitas vezes com a
itor

ajuda da igreja. Infelizmente, não foi o que aconteceu em outras comunidades


a re

que deixaram de lado suas tradições e conhecimentos ancestrais e culturais.


A existência do nosso povo acompanha as mudanças que vêm aconte-
cendo no processo histórico do mundo ocidental, pois possuímos contato com
a sociedade envolvente há um tempo e isso acabou interferindo em nosso
par

modo de vida e em nossa sobrevivência. Dentre estas mudanças podemos


destacar a chegada da energia elétrica, da internet e recentemente a chegada de
Ed

bombas de água para a comunidade. A internet é ofertada na escola e todos da


comunidade pode ter acesso. A energia elétrica é movida a gerador e seu uso é
limitado a um determinado horário e nem todos têm acesso, sendo disponível
ão

apenas a certos membros da comunidade. Quando ocorrem as festividades,


o gerador é usado durante toda a noite. O combustível pode ser doado, mas
geralmente este é direcionado para a comunidade pelas instituições, mas tam-
s

bém destinada ao funcionamento da escola.


ver

Os Baniwas são os que menos migram de suas comunidades para o meio


urbano. Entretanto, existe um pequeno número de indígenas que vieram para
as cidades em busca de condições de vida diferente, formação escolar, entrada
em universidades, emprego ou outros motivos. No entanto, uma parcela ainda
se encontra em seus territórios, que atualmente vem crescendo em razão de
casamentos e consequentemente nascimentos de crianças indígenas. E muitos
dos que permanecem em suas aldeias continuam a manter vivas suas tradições
354

e repassando às crianças – por exemplo, pela dança do karriçú (Figura 04) –


como o dabukurí e o kariamã.
Os Baniwas que vivem nas cidades, aqui enfatizamos a nossa cidade
de origem São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas, possuem
um modo de vida um pouco diferente do que aqueles que permanecem nas

or
comunidades indígenas– o que em hipótese alguma descaracteriza o indígena

od V
(ROSA, 2018). Na comunidade, muitos ainda têm como principal meio de

aut
subsistência o trabalho na roça, cultivo de frutas e atividades mais voltadas
à agricultura. Já na cidade, os mais jovens frequentam as escolas públicas,
municipais e federais, e recentemente – antes da pandemia do Covid-19 – já

R
havia um novo modelo de educação na cidade com tempo integral.
É importante ressaltar que alguns Baniwas possuem suas casas na cidade

o
e em suas comunidades – o que configura um movimento de circulação entre
aC
as aldeias e assentamentos urbanos característico também em outras etnias
no Amazonas (MAGNANI; ANDRADE, 2013). Os mais jovens têm acesso
a celulares e às redes sociais virtuais, enquanto os mais velhos optam por

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não ter acesso a estes meios, pois muitos têm baixa escolaridade e preferem
visã
continuar com suas atividades laborais.
Na cidade de São Gabriel da Cachoeira, os Baniwa vivem basicamente da
venda de produtos artesanais, da produção de farinha e derivados da mandioca
(para os comerciantes locais), pimentas jiquitaia (de várias cores e níveis de
itor

ardência) e da agricultura de corte-queima, onde conseguem legumes e frutas


a re

da época (para venda na feira municipal) (PETIZA et al., 2013). Queremos


enfatizar o trabalho das artesãs indígenas tanto na cidade quanto nas comu-
nidades, que são um dos trabalhos mais desenvolvidos recentemente pelas
mulheres e homens1, oferecendo autonomia, protagonismo e fortalecimento
par

identitário (FERREIRA; CALEGARE, 2019).


Ed

Modo de ser e viver Baniwa


Muito se tem falado sobre as transformações que ocorreram com os indí-
ão

genas após o contato com a sociedade envolvente, mas este contato ocorreu
de maneira não intencional, já que nossos territórios foram invadidos e nossos
bisavós, tataravós foram obrigados a trabalhar. Ou os que conseguiram fugir,
s

mais tarde tiveram contato com os não indígenas através das missões religiosas.
ver

Cada povo indígena possui características próprias do modo de ser e


viver, e algumas são semelhantes entre si. Entre os Baniwas do Noroeste ama-
zônico, ao longo dos anos, inclusive pelo contato com a sociedade envolvente,
tem havido modificação de seus modos de ser e viver. Assim como todas as
sociedades passam por modificações, não seria diferente com os Baniwas.

1 Parte do artesanato Baniwa pode ser encontrado no site https://artebaniwa.org.br/tipos1a.html


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 355

Do mesmo modo que estão na luta na preservação de suas vidas, os


Baniwas estão simultaneamente se readaptando e construindo seus modos
de ser entre os seus e dentro de seus territórios, através do conhecer que
os ajudam a se ajustar perante todos as transformações históricas (PETIZA
et al., 2013). Algumas comunidades deixaram de praticar seus rituais, suas

or
festas tradicionais, acabaram por abandonar tudo aquilo que ao longo dos
anos foram ensinados pelos seus avós e pais. Nós, enquanto pertencentes a

od V
este povo, criticamos toda forma de influência brancocêntrica e colonizadora

aut
que tente apagar tudo aquilo que nos constitui enquanto seres culturalmente
diversos e tradicionais.

R
Dentre as características herdadas culturalmente de nossos antepassados,
temos a língua indígena do nosso povo, que é a própria língua Baniwa. No

o
entanto, as comunidades abaixo de Assunção usam o nheengatú como língua
de comunicação diária, adotando também o idioma português, tornando-nos
aC
bilíngues. Os adultos têm o nheengatú como primeira língua. Algumas famí-
lias transmitem o nheengatú para as crianças, enquanto outras privilegiam
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o português. As comunidades do Içana, falantes de nheengatú, tendem a ter


visã
relações frequentes com os Barés do rio Negro (RAMIREZ, 2001).
Muitos falantes da língua nheengatú, ou mesmo da língua baniwa, pouco
falam a língua portuguesa, e estes encontram dificuldades quando precisam
se deslocar para as cidades. Quando se deslocam, sofrem discriminação por
itor

não saberem falar bem a língua portuguesa. E não poderíamos deixar de citar
a re

o quanto não só a língua se torna um motivo de discriminação sofrida pelos


indígenas, mas também pela sua identidade étnica, sua cor, seus traços, seus
cabelos e dentre outras características fisionômicas, intelectuais, sociais que
parece significar que o indígena é inferior que os demais. O preconceito e
discriminação contra o indígena parece ser mais marcado quando estes estão
par

na cidade, como se esta fosse um território apenas dos brancos (FERREIRA;


CALEGARE, 2019; RANGEL et al., 2013; ROSA, 2018).
Ed

Atualmente ainda se tem uma visão romântica de como alguns indígenas


em suas comunidades são e vivem, como se nós andássemos nus, fossemos
guerreiros canibais, vivêssemos de coleta e extrativismo típicos de povos
ão

nômades e tivéssemos preguiça de trabalhar. Entretanto estamos aqui para


mostrar que nem tudo é o que as pessoas imaginam, pré-concebem ou com-
preendem alienadamente. Há anos são reproduzidos estereótipos negativos
s

sobre os indígenas brasileiros ou amazonenses, como se estes fossem carac-


ver

terizados pela “sujeira, falta de banho, incapacidade, alcoolismo, selvageria


e canibalismo” (ROSA, 2018, p. 146), ou “figura atrasada, inconfiável, de
hábitos estranhos, feios e desagradáveis” (RANGEL et al., 2013, p. 114).
O nosso povo Baniwa em nossas comunidades usa roupas, sapatos e celu-
lares. Tem suas casas de madeira, caranã (folha de palmeira nativa da Amazô-
nia), barro e zinco típicas de qualquer comunidade amazônica do interior – e
até mesmo nas cidades, incluindo a capital Manaus. Continuam a comer seus
356

peixes e suas caças, mas também se alimentam de produtos industrializados,


como leite, café, açúcar, sal, pão etc. Festejamos algumas datas comemoradas
pela sociedade brasileira, como o dia das mães, por exemplo (Figura 05). Os
Baniwas mantêm suas relações através de festividades e relações de afeto e
aproximação. Nas festividades que comemoramos, é comum nos alimentarmos

or
com os alimentos tradicionais dos Baniwa (Figura 06).
Ressaltamos que independente de tais características e de termos nos

od V
apropriado do que não é de nossa cultura, não deixamos de ser indígenas, pois

aut
o que nos caracteriza enquanto tal é nosso modo de ser ligado ao território
e à natureza, às nossas histórias, tradições e cultura, que estão em constante

R
transformação – como também lembrado por Rosa (2018) e Castro (2006).
Igualmente, há muito tempo os colonizadores também se apropriaram do que

o
é nosso e, assim como a sociedade envolvente passa por transformações, nossa
aC
sociedade indígena não seria diferente.
Outra característica importante que compõe o nosso modo de ser é a

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figura do pajé, considerado em dois tipos: os pajés e os rezadores. Eles repre-
sentam a conexão do espaço mundano com o divino e, dentre seus poderes,
visã
podem também exercer um papel político e ou de liderança, como descrito
por Wright (2005 citado por SANTOS, 2017). Os pajés se utilizam do pariká2,
tabaco e caapi3, pois neles se concentra a fonte de seus poderes, que também
itor

são utilizados pelos donos-dos-cantos como coisas sagradas. Os pajés e reza-


dores possuem imenso conhecimento das plantas medicinais utilizadas no
a re

tratamento de doenças.
Os saberes sobre a mitologia e cosmologia de nossos parentes e do nosso
povo enriquecem nosso modo de vida, além de toda compreensão minuciosa
das doenças e os modos de tratamento. É comum nas comunidades Bani-
par

was, quando algum membro adoece, se recorrer primeiramente aos pajés ou


rezadores. Ambos são respeitados por possuir conhecimentos de cura. O que
Ed

encontramos também são os saberes que os mais velhos possuem de remé-


dios tradicionais, oriundos de ervas, plantas, de árvores. Logo, em cada casa
encontramos sábios que possuem vasto conhecimento sobre as esferas das
ão

doenças e quando um membro da família adoece estão apostos para ajudar.


Santos (2017) salientou que na tradição do povo Baniwa, quando um indí-
gena é acometido por uma doença, é visto como um sinal de que os seres supe-
s

riores ou os deuses estão o castigando por ter feito algo, ou que foi acometido
ver

por feitiçaria. Isto na cosmovisão indígena decorre com o intuito de controlar


os atos comportamentais do doente. O papel dos pajés e dos rezadores nesta
situação é primordial, entretanto pode ocorrer deles não conseguirem reverter

2 Pariká é um tipo de rapé. É um pó que se inala (por si próprio ou com ajuda de outra pessoa), produzido a partir
de raspas e/ou cinzas de cascas de árvores, folhas e sementes. Usado para estabelecer conexões espirituais.
3 Caapi é o nome de um cipó, mas também o nome dado à bebida (chá) produzido a partir dele. Também
usado para estabelecer conexões espirituais.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 357

o cenário e então é quando ocorre a morte gradativa do indígena – ou quando


também é feita a transferência do doente para o município ou para a capital.
As duas atividades básicas de subsistência dos Baniwas são a agricultura
e a pesca, que são de importância econômica e cultural para o povo. A intimi-
dade dos Baniwas com as matas é grande, o cuidado, o respeito e os rituais

or
que são feitos pelos indígenas demarcam as características culturais que os

od V
mantém diante da terra, das arvores e das águas, simbolizando a importância

aut
e o valor atribuído a eles.
Os Baniwas são conhecedores profundos sobre tudo o que envolve seus
territórios e, através desses conhecimentos, sabem dizer onde se encontram

R
as melhores terras para a colocação de roças, onde procurar frutas e onde
buscar a caça e as localizações precisas onde encontrarão os peixes. O pes-

o
car, o processo de cozimento e a ingestão dos alimentos são modos que os
aC
Baniwas possuem para interagir com o meio em que vivem e podem fazer
rituais próprios para o consumo de certos alimentos. Entretanto, os recursos
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alimentares nestes territórios por vezes são desiguais. Algumas famílias pos-
suem terras férteis que são boas para trabalhar enquanto outros se apossam
visã
de lagos e igapós. A subdivisão irregular destes territórios entre os membros
das comunidades por vezes gera conflitos.
Na cultura dos Baniwas é essencial que sejam aceitas as ofertas de
itor

comida, alimentos, inclusive a partilha entre os membros. Quando não é aceito,


é malvisto por eles e podem ser considerados ‘donos de veneno’, passando a
a re

serem condenados pelos indígenas na comunidade. Como expressou Garnelo


(2007, p. 206), “em suma, a recusa à comensalidade é um ato antissocial por
excelência, um comportamento perigoso, capaz de provocar rupturas no tecido
social”. A autora lembrou ainda que o partilhar de alimentos entre os Baniwas
par

é comum e está intrinsecamente presente nos valores morais que compõe o


povo, sendo perpetuado como ato de união e generosidade. Isso contribui para
Ed

que não haja atos como o envenenamento, pois é na comida que podemos
encontrar entre os Baniwas o ato maléfico que pode causar morte.
A presença dos membros nos momentos de partilha é essencial para a
ão

comunidade, para o fortalecimento dos laços afetivos e é bem-visto por ele.


Pode haver exceções quanto ao indígena não se fazer presente, como em caso
de doenças, saída para a pesca ou estar fora da aldeia por outros motivos. Mas
s

se nenhum destes motivos estiver alinhado com a falta de um de seus, gera


ver

motivo de inimizades: “é uma estratégia de reforço à ‘familiarização’ dos


presentes e de controle da potencial eclosão de relações predatórias entre os
membros do grupo local” (FAUSTO, 2002, p. 23).
O conhecimento sobre os peixes, as composições e como lidar com elas,
além da utilização do fumo e do tabaco, e tudo que engloba tais instrumentos,
são partes primordiais para o aspecto da religiosidade dos nativos do noroeste
amazônico (SANTOS, 2017). A questão religiosa dos Baniwas fundamenta-se
358

em épocas da mitologia e dos rituais passados, que se configuram a partir da


simbologia das flautas sagradas, do xamanismo e eventos tradicionais onde os
indígenas oferecem alimentos e objetos afiliados a períodos sazonais e ao ama-
durecimento de frutas. Os rituais contam com os pajés ou donos-de-canto, e é
composta por diversas danças tradicionais, dentre elas temos o chamado pudali.

or
Atualmente, mantemos vivos os rituais que anteriormente foram citados

od V
neste texto, como o Dabukurí e o Kariamã. O Dabukurí é uma dança típica e

aut
regional dos indígenas rio negrinos, é o momento em que os indígenas põem as
vestimentas como o cocar, colares e/ou brincos de pena, as mulheres usam a saia
de tucum e os homens com a utilização de instrumentos fazem soar os cânticos

R
das flautas e japurutus. Este é realizado com mais frequência para comemorar
datas festivas, eventos regionais, chegada de pessoas de fora da comunidade e

o
dentre outros (Figura 07). Já o Kariamã é um ritual realizado para fazer a tran-
aC
sição de meninos e meninas para a vida adulta, requerendo todo um cuidado no
manuseio dos alimentos e instrumentos que serão utilizados no ritual.

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Segundo Santos (2017), o divino para o povo Baniwa é composto por
vários conjuntos mitológicos advindas de tempos passados. A gênese de seu
visã
mundo propõe aos não indígenas o diálogo para a compreensão de tal fenômeno.
Nas mitologias, os deuses interferem não só na questão orgânica do corpo, mas
também nos padrões de moralidade que compõe a vida dos indígenas.
itor

A crescente resistência à dominação branca entre os indígenas do alto


rio Negro culminou numa série de movimentos messiânicos entre os Baniwa,
a re

Tukano e Warekena, desencadeados a partir de 1857 (WRIGHT; ANDRELLO,


2021). Nos anos 1940 em diante, com a chegada das missões evangélicas e
católicas, houve muitos indígenas se convertendo cristãos, o que gerou con-
frontos ideológicos e políticos entre os grupos (RAMIREZ, 2001). Nesse
par

ano, Sophie Müller, uma missionária fundamentalista norte-americana da


Missão Novas Tribos, adentrou no território Baniwa pregando o protestan-
Ed

tismo evangélico. Muitos indígenas viram a missionária como um messias e,


por essa forte influência da missionária, se converteram à religião. Dentre os
problemas que ela encontrou entre os indígenas estava o da bruxaria e, como
ão

solução, reivindicou que deixassem de lado seus rituais, a pajelança e todos


os seus conhecimentos tradicionais herdados de seus antepassados para que
construíssem uma nova vida, baseada na religião evangélica.
s

Com a conversão ao evangelismo, todos os pudali foram proibidos pelos


ver

missionários e seus seguidores. Portanto, há toda uma geração hoje que nunca
viu nem ouviu a música dos pudali. O grande transtorno provocado pela perda
desses rituais é evidenciado pelos inúmeros conflitos entre os ‘crentes’ e os ‘tra-
dicionais’ sobre a maneira em que os instrumentos foram queimados ou jogados
no rio. O tabaco e caxiri4, também proibidos, são duas coisas que, segundo os

4 Caxiri é uma bebida alcoólica produzida a partir da fermentação de alguns produtos florestais.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 359

Baniwa, traziam alegria para a alma. Até hoje, a população Baniwa mantém a
divisão entre crentes e católicos, que corresponde aproximadamente às comu-
nidades Walipere-dakenai e seus cunhados dos rios Içana, Cuiary e Aiary (os
crentes) e os Hohodene e Dzauinai nos rios Aiary e baixo Içana (os católicos).
O povo que habita no Noroeste amazônico, acabou sofrendo interferên-

or
cias profundas das missões religiosas que contribuiu para que uma parte dos

od V
indígenas em suas comunidades ou aldeias passassem a desconsiderar ou

aut
esquecer de sua cultura ancestral, como os rituais, festas e mitos que eram
próprias da cultura indígena. Santos (2012) descreveu que os indígenas Bani-
was, diante do conflito com a sociedade não indígena, buscaram meios de

R
resistir à opressão. A organização na aldeia foi sendo realizada considerando
os conhecimentos deixados por seus ancestrais e só foi incorporada e adotada

o
da sociedade envolvente aquilo que era favorável à realidade do povo.
aC
Por fim, ressaltamos que, ao longo dos anos, algumas organizações foram
criadas com o intuito de dar visibilidade aos indígenas Baniwas, na luta e
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proteção de seus territórios e de seus conhecimentos, na esfera da Saúde e da


Educação. Dentre essas organizações, temos: Federação das Organizações
visã
Indígenas do rio Negro (FOIRN), fundada em 1987; Organização Indígena
da Bacia do Içana (OIBI); Organização das Comunidades Indígenas do Rio
Aiary (ACIRA); entre outras que representam verdadeiramente as demandas
itor

das comunidades. Reconhecemos o trabalho que é realizado por estas organi-


zações em favor dos direitos humanos e das lideranças indígenas, que resistem
a re

em prol de seu povo, diante de perseguições, entraves e desvalorização de


seus trabalhos, mas que continuam a persistir em defesa dos povos indígenas,
não só Baniwa, mas de outras etnias.
par

Críticas às psicologias ao trabalho com os Baniwa


Ed

E onde as Psicologias se inserem nesse contexto? Cabe às psicólogas


adentrar nossos territórios, estudar sobre nosso povo e depois levar o conhe-
cimento mundo a fora, sem que haja significativa devolução? Onde se encaixa
ão

o fator cultural nas teorias sobre o ser humano? As Psicologias consideram


outras epistemologias? Será que as Psicologias continuam exercendo papeis
de colonizadores, sem levar em consideração o que os indígenas querem?
s

Nós psicólogas indígenas, formadas em Psicologia, temos vivenciado


ver

a irrelevância das Psicologias acadêmico-científicas ocidentais, que foram


implantadas colonialmente e, em tese, são universais e prestam para aten-
der às necessidades dos grupos e povos locais/colonizados. As Psicologias
ocidentais serviram e ainda servem, como um aparelho das Ciências Sociais
neocoloniais, para promover o cativeiro mental, a dependência acadêmica ou
a imitação cega (NOGUEIRA; GUZZO, 2016).
360

As Psicologias científicas modernas, desde suas origens, não têm conside-


rado os saberes indígenas como válidos ou relevantes. Muito ainda tem de ser
feito para que isso venha a ser mudado na ciência. Obtivemos ao longo dos anos
uma crescente valorização a este aspecto, porém, a Psicologia ocidental ainda
permanece submersa na questão colonial, como podemos citar na utilização

or
dos testes psicológicos, como o HTP, os testes de QI, os aconselhamentos, que

od V
insistem em classificar os nativos biologicamente, comportamentalmente e men-

aut
talmente inferiores (NAIDOO, 1996 citado por NOGUEIRA; GUZZO, 2016).
Atualmente, algumas das Psicologias têm buscado transformar ou formu-
lar novos arcabouços teórico-metodológicos para lidar com os povos indígenas

R
(FERNANDES et al., 2020, 2021; GUIMARÃES et al., 2019; GUIMARÃES,
2021). Entretanto, nós autores deste capítulo avaliamos que muito ainda tem

o
de ser feito, pois é preciso reconhecer a luta constante de considerar as epis-
aC
temologias indígenas como valiosas, especialmente no âmbito científico, que
há tempos privilegia apenas os conhecimentos eurocêntrico, brancocêntrico,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ocidental e colonizadores com todo o seu poder social, político, econômico
e religioso (NOGUEIRA; GUZZO, 2016; SANTOS, 2012).
visã
Assim, é uma tarefa árdua abrir-se para o que falam os indígenas e deixar de
resistir ao que vem do outro, enquanto estranho, estrangeiro ou bárbaro. É neces-
sário permitir o diálogo com outras perspectivas, de maneira crítica à hegemonia
itor

eurocentrista, racista e brancocêntrica da/na ciência ocidental colonial/moderna


que vem se perpetuando (CUNHA, 2013 citado por NOGUEIRA; GUZZO,
a re

2016). Nesse sentido, a primeira tarefa que nos cabe enquanto psicólogas é nos
voltar e respeitar a maneira de ser, ver e viver no mundo dos diferentes grupos
e povos, para que haja um reconhecimento da diferença do outro, que talvez
viva de modo diferente a aquele imposto pela dominação capitalista.
par

Os conhecimentos indígenas são milenares, não menos importante que


aqueles da ciência ocidental. Cabe aqui descrever que nos alinhamos àqueles
Ed

que defendem e valorizam as Epistemologias do Sul. Assim, nossa segunda


tarefa é adotar a pluralidade epistemológica, pela qual se reconhece e valoriza
os saberes Baniwas ou de quaisquer outros povos indígenas, dialogando-
ão

-os com outros conhecimentos científicos – que costumam ser excludentes,


marginalizante, desvalorizante e hierarquizante de outras ciências. Precisa-
mos valorizar a cosmovisão dos que estavam aqui antes dos colonizadores.
s

Diante disso, Gomes (2012) propõe que a partir da diversidade do mundo,


ver

o pluralismo epistemológico, se reconheça a existência de múltiplas visões


que contribuam para o alargamento dos horizontes da experiência humana
no mundo, de experiências e práticas sociais alternativas.
Ao mesmo tempo em que a sociedade envolvente se aproximou das
sociedades culturalmente diversas, os próprios indígenas têm lutado para o
reconhecimento de seus conhecimentos, considerando suas adversidades e
contrapondo ao que é predominantemente universal (FERNANDES et al.,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 361

2020). Vemos que alguns conhecedores das epistemologias indígenas têm


dado a conhecer seus saberes à sociedade envolvente, como uma forma de
resistência, o que merece de nós reconhecimento e valorização.
Os povos nativo-americanos possuem características particulares de lidar
com suas emoções, entender seu ser e suas experiências. Agem de maneira

or
diferente no enfrentamento das adversidades em suas vidas e nos seus terri-

od V
tórios. Possuem leituras de mundo diferente. A sua busca de resolução dos

aut
problemas relacionais e as suas formas de enfrentamento são marcadamente
simbólicas e são diferentes para cada povo.
Na região do rio Uaupés, no Noroeste Amazônico, líderes proféticos,

R
discípulos do Kamiko5 – como Alexandre, que atuava no rio, pregavam a
inversão da ordem socioeconômica existente, após a qual os brancos serviriam

o
aos índios em compensação para o tempo em que os índios ficavam domi-
aC
nados pelos brancos. Todas as narrativas orais relativas a esse tempo deixam
claro que os messias colocavam seu poder e conhecimento contra a repressão
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

dos brancos e que a chave para a sua sobrevivência estava na autonomia em


relação à influência devastadora do contato.
visã
Aspectos necessários à formação e prática das psicólogas com
os Baniwas
itor
a re

A prática das Psicologias em grupos culturalmente diversos não é uma


tarefa fácil, pois requer estudos, compreensão das características que englo-
bam estas populações e uma abertura para lidar com a alteridade. Com o povo
indígena Baniwa não é diferente, embora reconheçam que em certos momentos
precisem de profissionais ocidentais para lidarem com suas problemáticas em
par

seus territórios para tentar resolver suas adversidades.


Um primeiro aspecto necessário à formação e prática das psicólogas é
Ed

a consideração da cultura como aspecto fundamental da constituição do ser.


Muitas das Psicologias não levam isso em consideração em profundidade,
apesar de Guimarães et al. (2019) ter demonstrado que o estudo da cultura
ão

esteve presente nas Psicologias desde quando essa área do conhecimento emer-
giu como ciência moderna nas universidades europeias e norte-americanas.
Precisamos de teorias que coloquem a cultura como elemento fundamental no
s

entendimento do ser humano. Nessa linha, percebemos que tem havido algum
ver

5 Um Baniwa, o mais famoso profeta do século XIX. Realizava grandes cerimônias entre as comunidades
do Içana. Sofria de catalepsia e, durante os ataques da doença, dizia que ele morria, viajava ao céu, onde
comunicava com Deus, que lhe deu ordens de perdoar as dívidas dos índios aos comerciantes brancos.
Profetizava a destruição do mundo por um grande incêndio do qual seriam salvos somente os Baniwa do
Içana. Kamiko pregava a observância rigorosa do jejum, rezas cerimoniais e a total evitação de relações
sociais e econômicas com os brancos (militares), como meios de se obter a salvação no paraíso prometido
(ver mais em https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Baniwa#Vida_religiosa).
362

avanço por algumas das Psicologias, como a Social, a Cultural e a Indígena,


em todas suas variações e fragmentações.
Como em muitos textos das Psicologias e outras áreas Sociais, Huma-
nas e da Saúde, muito se enfatiza sobre os modos de ação juntos aos povos
nativo-americanos, que deve ser ações criadas em conjuntos com estes, que

or
atendam suas demandas emergentes e que seja uma constante troca, mesmo

od V
que a profissional ou pesquisadora faça inúmeros estudos a respeito. Sempre

aut
que adentrarem nos territórios indígenas e manterem o contato com eles,
deve-se ter todo um cuidado e um aporte teórico e prático considerando que

R
cada povo tem suas demandas especificas e cada povo possui seus modos de
ser, entender e lidar com o mundo particular.
Os horizontes que permeiam a prática das psicólogas no contexto indí-

o
gena requerem cuidado, abertura e constantes reflexões acerca do que o outro
aC
trás, do que o outro mostra e até do que o outro não mostra. Na academia
não é ensinado de como deve se proceder quando há contato com outro que

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


é diferente de sua cultura, até porque cada um vivencia de modo particular
o que o outro apresenta. Desse modo, necessitamos aprofundamento a res-
visã
peito do contato e para lidar com outro ser humano, especialmente se este é
de outra cultura como é o caso dos indígenas. Nessa linha, Guimarães et al.
(2019) defenderam que é importante saber lidar com o choque cultural e
itor

experiências inquietantes propiciados pelo encontro com o outro. É saber


a re

lidar com a angústia de se deparar com o desconhecido, considerando que


o novo é um motivo para aprendizagem e crescimento, mais do que medo e
aversão. Consideramos, portanto, que as psicólogas precisam ser treinadas
para o contato e estabelecimento de relações interculturais.
Os indígenas mais velhos podem não saber o que uma psicóloga faz, e aí
par

que entra a sensibilidade de explicar que tipo de trabalho que ela desempenha,
Ed

caso as profissionais direcionem os trabalhos aos Baniwas. Já os indígenas mais


novos por conta da disseminação das informações, pela chegada da internet,
conhecem um pouco mais sobre o papel da psicóloga. Logo, é necessário que haja
ão

respeito e sensibilidade, pois apesar de perpassarem por modificações ao longo


dos anos, uma grande parcela das pessoas ainda mantém a identidade Baniwa e
o conhecimento ancestral presente em suas vidas, desconhecendo coisas que o
s

mundo ocidental apresenta. Dessa feita, temos que ter clareza sobre o papel da
ver

psicóloga junto aos povos indígenas, dada por uma formação que contemple a
questão cultural e as inter-relações entre pessoas de diferentes culturas.
Abertura, compreensão, respeito e sensibilidade são as palavras chaves
para se desenvolver um trabalho significativo com as populações indígenas,
ou precisamente com o povo Baniwa. O detentor do conhecimento ocidental é
a profissional ou pesquisadora, porém os indígenas também são conhecedores
de vários elementos que compõe sua natureza. Os Baniwas respeitam cada
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 363

pessoa que vai desenvolver algum trabalho em suas comunidades. Entretanto,


este deve estar alinhado com o que os Baniwas querem, e só aceitarão se a
profissional ou pesquisadora atender às suas demandas ou sentirem abertura
para assentir ao trabalho a ser desenvolvido.
No território Baniwa também encontramos violência, alcoolismo, confli-

or
tos internos. Estes problemas assolam há muitos anos os indígenas e, para que

od V
haja um trabalho eficaz junto a esta população, é necessário que se construam

aut
ações em conjunto com estes indígenas. Afinal, são eles que estão inseridos
nas problemáticas e juntos a eles pode-se definir estratégias de enfrentamento,

R
sempre pautado no diálogo, construções e reconstruções de ações junto dos
membros da comunidade. Nesse sentido, vale ressaltar que todo trabalho a ser
desenvolvido com os Baniwas deve considerá-los como coautores, pois o que

o
se privilegia nestes trabalhos são seus pontos de vistas, suas concepções, seus
aC
conhecimentos. Eles não são meros participantes ou fontes de informações.
Não podemos deixar de fazer uma consideração da importância do tra-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

balho inter e transdisciplinar, pois entendemos que o mundo ou a sociedade


visã
indígena é ampla, rica, conceitual e requer um trabalho completo que abar-
quem as características mesmo que não sejam profundas, mas que mostrem
relevância em seu âmbito. Com isto, é necessário reconhecer os modos de
existir, ser, viver, conhecer dos povos nativo-americanos. A vida e epistemo-
itor

logia Baniwa aqui citadas possuem um vasto arcabouço de conhecimento


a re

que vai além do que é conhecido e visto na sociedade envolvente. É preciso


valorizar tais saberes, cultura e cosmovisão milenares que este povo possui,
para que haja uma prática não só das Psicologias, mas de outras áreas, pautada
no reconhecimento e respeito às diversidades culturais existentes.
par

Figura 01 – Vista de frente da Comunidade Assunção do Içana


Ed
s ão
ver

Fonte: Estevão Baniwa, 2015.


364

Figura 02 – Igreja católica da comunidade

or
od V
aut
R
o
aC Fonte: Cleide Luciane, 2021.

Figura 03 – Dança tradicional dos Baniwas

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visã
itor
a re
par

Fonte: Cleide Luciane, 2021.


Ed

Figura 04 – Crianças dançando o karriçú


ão
s
ver

Fonte: Cleide Luciane, 2021.


Figura 05 – Os homens da comunidade em preparação
da homenagem ao dia das mães

or
od V
aut
R
o
aC
Fonte: Estevão Baniwa, 2021.

Figura 06 – Os alimentos tradicionais dos Baniwas


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visã
itor
a re
par

Fonte: Cleide Luciane, 2021.


Ed

Figura 07 – Dança tradicional na comunidade


ão
s
ver

Fonte: Cleide Luciane, 2021.


366

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s
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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FORMAÇÃO DE PROFESSORAS
INDÍGENAS NA AMAZÔNIA:
da maloca à sala de aula

or
od V
Cleude Alcantara Alves Storch

aut
Maria Ivonete Barbosa Tamboril

R
Introdução

o
A docência indígena no Brasil é uma conquista na luta pelos direitos
aC
educacionais dos povos indígenas. Tais direitos estão assegurados na Consti-
tuição Federal de 1988, que reconheceu processos próprios de aprendizagem
e garantiu o uso de suas línguas maternas, na Lei de Diretrizes e Bases da
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Educação Nacional nº 9394 de 1996 (LDBEN 9394/96), na qual está deter-


visã
minado que essa educação deve ser específica e diferenciada, na perspectiva
do bilinguismo e da interculturalidade.
Nas décadas de 1980 e 1990, deu-se o reconhecimento oficial das espe-
itor

cificidades da educação escolar indígena, que passou a ser entendida como


uma modalidade de ensino. Porém, foi somente em 2002 que o Ministério da
a re

Educação elaborou os Referenciais para Formação de Professores Indígenas,


visando orientar os programas de formação docente indígena. Em 2015, foram
instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professo-
res Indígenas em cursos de educação superior e de ensino médio, conforme
par

regulamenta a Resolução CNE/CP nº 1 de 7 de janeiro de 2015.


Considerando esses documentos legais, podemos dizer que, na socie-
Ed

dade contemporânea, a docência indígena se caracteriza como uma profissão


emergente, tornando os (as) docentes indígenas novos (as) sujeitos (as) em
tal contexto social. Ao mesmo tempo, observamos a crescente participação
ão

feminina nesse processo, ou seja, as mulheres indígenas estão se inserindo e


garantindo seus espaços como estudantes, professoras e gestoras.
s

Consideramos também que, em razão da recente inserção da mulher indí-


ver

gena na docência, as publicações científicas a esse respeito ainda são escassas1.

1 Os materiais (tese, dissertações e artigos) discutidos doravante foram levantados em 2018, por meio de consulta
ao Portal Periódico Capes, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e base de dados da
SciELO. Para verificar se houve alteração significativa nesse quadro, como uma amostragem, em 03/10/2019
consultamos o Portal Periódico Capes, sem delimitação de períodos, idiomas, e buscamos pelos termos
exatos “professora indígena”. Foram localizados apenas quatro textos, dos quais somente um (Narrativas de
Professoras Indígenas – histórias de preconceito e identidade, de Sandra Teixeira Gomes Ribeiro, de 2011)
referia-se, unicamente às professoras – os demais incluíam também os professores indígenas.
370

Weber (2007), em pesquisa com professoras indígenas da etnia Xokleng/


Laklãnõ de Santa Catarina, observou que elas estão buscando, cada vez mais,
a formação universitária, pois entendem que essa formação, além de qualificá-
-las para o exercício da docência, oportuniza sua atuação em outros espaços,
dentro e fora de suas comunidades. Afirma em seu texto que essa formação

or
propicia reflexões sobre o que é ser mulher, índia, mãe, universitária, profes-

od V
sora e sobre tantos outros papéis por elas desempenhados.

aut
Pesquisas mais recentes, como as de Grubits (2014), Brito (2016) e
Fonseca (2016), revelam o protagonismo das mulheres indígenas e sua

R
organização política, destacando que, de forma crescente, elas estão ingres-
sando nas universidades, na política e em diversos outros espaços sociais.
Contudo, embora relevantes, tais estudos não abordam especificamente sua

o
inserção no magistério.
aC
Alves (2018), com um propósito mais convergente com o nosso, realizou
uma pesquisa com mulheres indígenas da etnia Arara de Rondônia e eviden-

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ciou a presença significativa das mulheres indígenas na docência. Segundo a
visã
autora, os fatores que corroboram esse protagonismo são de ordem cultural,
pois, nessa etnia, as mulheres têm como dever fundamental cuidar e educar os
filhos. Atualmente, tendo ingressado cada vez mais na docência, elas compõem
a maioria do quadro de docentes (que é composto por homens e mulheres
itor

indígenas e não indígenas) na escola de sua comunidade.


a re

Entretanto, como evidenciam as pesquisas de Curvo (2015) e Santana


e Paim (2018) com mulheres indígenas universitárias dos estados do Mato
Grosso e Pará, os caminhos percorridos por essas mulheres são permeados
de dificuldades e resistência.
par

Diante dos resultados das referidas pesquisas, nas quais foram investiga-
das uma ou duas etnias, procuramos encontrar mais elementos para compreen-
Ed

der o protagonismo das mulheres indígenas e as dificuldades que enfrentaram


em sua formação docente e universitária. Com a hipótese de que uma amplia-
ção nos levaria a esse entendimento, dispusemo-nos a ouvir narrativas de
ão

professoras indígenas de cinco etnias distintas do estado de Rondônia. Sem


a intenção de um estudo comparativo, pensamos em verificar, por exemplo,
se os desafios/limites vivenciados estariam relacionados às especificidades
s

culturais dessas etnias.


ver

Neste texto, temos como objetivo analisar as trajetórias de formação


docente de professoras indígenas e como elas repercutiram em suas iden-
tidades. Iniciamos com algumas reflexões sobre o conceito de identidade,
depois, explicitamos os percursos metodológicos da pesquisa, relatamos as
trajetórias docentes das participantes do estudo e, finalmente, procedemos à
análise dessas trajetórias com base no conceito de identidade.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 371

Identidade: algumas reflexões

Para compreender o conceito de identidade, baseamo-nos em várias defi-


nições teóricas, dentre as quais julgamos fundamental a de que a ele se soma
a percepção que uma pessoa tem de si mesma, ou seja, a percepção de como

or
se distingue das demais pessoas.

od V
Na década de 1960, da perspectiva da Sociologia, Berger e Luckmann

aut
(1966/2008) afirmam que a identidade é constituída socialmente, ou seja,
realiza-se nas práticas sociais, na relação com o outro. Essa compreensão do

R
papel da sociedade na constituição da identidade é aceita por muitos autores
da Psicologia, de diferentes perspectivas.
Na década de 1980, por exemplo, Antonio da Costa Ciampa destaca-se

o
no campo da Psicologia Social por tratar identidade como uma categoria para
aC
se compreender a constituição do sujeito. Esse autor, com uma concepção
crítica da Psicologia a respeito do contexto que a pró-democracia deman-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

dava, teorizou sobre a constituição do sujeito como ser histórico e social, em


permanente transformação, capaz de influenciar e ser influenciado pelo meio
visã
em que vive, e afirmou: “O indivíduo isolado é uma abstração. A identidade
se concretiza na atividade social” (1987/2005, p. 90).
Ciampa (1984/1994, p. 72) afirma que “não é possível dissociar o estudo
itor

da identidade do indivíduo do da sociedade. As possibilidades de diferentes


a re

configurações de identidades estão relacionadas com as diferentes configu-


rações da ordem social”.
Posteriormente, com base em seus estudos, Maheirie (2002, p. 41)
defendeu que “A utilização do conceito de identidade nos permite desvelar
par

os indivíduos, grupos ou coletividades, localizá-los no tempo e no espaço,


‘identificando-os’ como estes e não outros, mesmo em metamorfose”.
Ed

A identidade como metamorfose é amplamente defendida e conceituada


por Ciampa (1984/1994, p. 61) como um permanente processo de transforma-
ção. “múltipla e mutável, no entanto una [...] sou uma unidade de contrários,
ão

sou uno na multiplicidade e na mudança”.


Além de Ciampa, autores que estudam a identidade têm recorrido ao
sociólogo Stuart Hall (1992/2011), que, explicando o sujeito cultural na pós
s

modernidade, afirma que a identidade está sendo fragmentada em consequên-


ver

cia das mudanças rápidas e constantes da sociedade, sendo, por isso, algo
móvel e flexível. Para esse autor, “as transformações estruturais das socieda-
des pós-modernas contribuem para que os sujeitos vão assumindo diferentes
identidades em momentos distintos da realidade social” (p. 13).
Ulteriormente, Hall (1996/2014, p. 130) postula que a “teorização da
identidade é um tema de considerável importância política”. Convergindo para
o pensamento de Ciampa (1987/2005, p. 253), destaca a questão política que
372

envolve a identidade e afirma que “Identidade, além de uma questão cientí-


fica, é vista como uma questão política”. Nesse sentido, Ciampa (1987/2005,
p. 171) esclarece:

Talvez milhões de pessoas são impedidas de se transformar, são forçadas

or
a se reproduzir como réplicas de si, involuntariamente, a fim de preservar

od V
interesses estabelecidos, situações convenientes, interesses e conveniências

aut
que são, se radicalmente analisados, interesses e conveniências do capital
(e não do ser humano, que assim permanece um ator preso à mesmice
imposta) [grifo do autor].

R
Analisando este viés político e considerando Ciampa, Sawaia (1999)

o
revela que a identidade pode ser utilizada como defesa por grupos e comu-
aC
nidades diante de determinado contexto político. Em pesquisa realizada com
indígenas da etnia Xavante, a autora observa que a conservação e a preser-
vação da identidade desse povo não deixa de ser uma estratégia de defesa

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contra a dominação política.
visã
Sawaia (2001, p. 126) afirma que “Usar a referência identitária para ana-
lisar os problemas sociais significa buscar orientações para recriar [...] novos
espaços de representação democrática das necessidades humanas, recuperando
itor

o homem rico de necessidades, com potencialidade de ação e emoção”.


a re

Compartilhamos as concepções dos autores supracitados e consideramos


que não é possível estudar a identidade dos sujeitos sem vinculá-los à socie-
dade da qual são partícipes e sem levar em conta o fato de que tudo está em
constante transformação (os sujeitos, a sociedade e suas identidades).
par

Metodologia
Ed

A pesquisa, caracterizada pela abordagem qualitativa, foi realizada por


meio de entrevistas semiestruturadas e individuais com seis professoras indí-
ão

genas do estado de Rondônia, de etnias distintas: Arara, Makurap, Sabanê,


Caoorowaoje e Cabixi.
De acordo com Minayo (2014), essa abordagem valoriza as representa-
s

ções humanas que se estabelecem por meio de histórias, crenças e relações


ver

que os sujeitos constroem. Para a realização das entrevistas, utilizamos um


breve roteiro, pois, de acordo com a autora, a forma de entrevista dá mais
liberdade ao participante para discorrer sobre o tema, ao mesmo tempo em
que possibilita que o pesquisador se guie por um roteiro pré-estabelecido.
Os procedimentos adotados em nossa pesquisa obedeceram aos Cri-
térios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos e estão em conformidade
com as resoluções nº 304/2000, nº 466/2012 e 510/2016, do Conselho
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 373

Nacional de Saúde (CNS), com aprovação da Comissão Nacional de Ética


em Pesquisa (CONEP).
O critério para a escolha das participantes foi o da atuação em sala de
aula como professoras. Todas atuam como tal em suas comunidades e estão
em processo de formação superior: Licenciatura em Educação Básica Inter-

or
cultural ou Especialização em Educação Escolar Indígena.

od V
O contato ocorreu no campus de Ji-Paraná, da Universidade Federal de

aut
Rondônia, onde o curso é ofertado, em horário em que as professoras estavam
presentes. Inicialmente, informamos os objetivos da pesquisa e as convidamos
a participar. Após o aceite, lemos com elas o termo de Consentimento Livre e

R
Esclarecido para que o assinassem. Deixamos uma cópia com os contatos da pes-
quisadora e da orientadora da pesquisa para que pudessem esclarecer suas dúvidas.

o
As entrevistas ocorreram na Universidade, no campi citado. Foram gra-
aC
vadas em áudio, com duração média de 50 minutos, e depois transcritas.
Importante salientar que, para chegar às entrevistas, construímos uma relação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de confiança com as professoras, visto que participamos como voluntárias


no citado curso, auxiliando na elaboração de textos em língua portuguesa.
visã
Importante considerar que, além dos desafios do processo de constituição de
uma segunda língua, elas enfrentaram também o de aprender o manejo de
computadores e das normas textuais.
itor

Na análise dos dados, utilizamos os procedimentos de conteúdo sugeridos


por Bardin (2011, p. 147), os quais foram organizados em três etapas: pré-a-
a re

nálise, exploração do material e tratamento dos resultados para inferência e


interpretação. Recorremos à técnica da análise categorial, no seguinte sentido:
“A categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos
de um conjunto por diferenciação e, em seguida, por reagrupamentos segundo
par

o gênero (analogia), com os critérios previamente definidos”.


As temáticas que emergiram ao longo da análise foram: ingresso na
Ed

docência e formação; formação e suas contribuições; diversos papéis das


mulheres indígenas.
Para nos referir às professoras participantes deste estudo, utilizamos
ão

siglas, compostas pela letra P mais um número, seguidas do nome da etnia


a que elas pertencem: P.1 Arara, P.2 Arara, P.3 Caoorowaoje, P.4 Cabixi, P.5
Sabanê, P.6 Makurap.
s
ver

Resultados e discussões

Para analisar o processo de transformação e de constituição das mulhe-


res indígenas em estudantes e professoras, assumimos um posicionamento
analítico sob o prisma de identidades descentradas, cambiantes e em meta-
morfose, com base em Hall (1992/2011) e Ciampa (1984/1994, 1987/2005).
Assim, analisamos o movimento vivido por essas mulheres durante seus
374

processos de formação docente, considerando como hipótese que elas vivem


um duplo descentramento de suas identidades, já que precisam conviver entre
dois mundos, ou seja, não passam por uma mobilidade identitária em uma
dada sociedade, mas, sim, entre duas culturas distintas.

or
Da maloca à sala de aula: ingresso na docência e formação

od V
aut
Em nossa compreensão, a história (trajetória) pode revelar muito da cons-
tituição de uma pessoa. Isso porque a identidade, que geralmente é entendida

R
como a representação social de um indivíduo, precisa ser vista como processo,
por meio do qual ele vai se transformando, se identificando e se constituindo.
De acordo com Ciampa (1987/2005, p. 166), “nosso ponto de partida pode

o
ser a própria representação, mas considerando-a também como processo de
aC
produção, de tal forma que a identidade passe a ser entendida como o próprio
processo de identificação”.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Em nosso caso, as trajetórias de formação das professoras indígenas
visã
auxiliaram-nos a compreender suas identidades. Consideremos suas narrativas:

Sou professora da etnia Arara, eu sou daquelas professoras que morava


dentro do mato [...] as vezes eu me pergunto, de onde eu vim, e onde eu
itor

estou [...] eu fui a primeira professora indígena da minha etnia [...] quando
a re

fui fazer o primeiro curso na cidade [...] eu tive que enfrentar muita coisa
[...] eu não tinha estudo [...] eu fiz o Açaí2 [...] em todo momento não foi
fácil [...] porque você vir para casa do outro não é fácil, porque eu falo casa
do outro? Porque a cidade não é minha casa [...] eu terminei o Açaí, termi-
nei o Intercultural3 [...] agora estou fazendo a especialização4 (P.1 Arara).
par

Essa professora mostra-nos que sua identidade pode ser representada


Ed

inicialmente como indígena, pois ela é integrante de uma etnia indígena.


Sua reflexão a respeito de onde eu vim, e onde eu estou remete-nos ao
movimento realizado por ela em seu percurso formativo e em seu processo
ão

de transformação. Ciampa (1987/2005, p. 207) afirma que o homem, “como


ser histórico, [...] é um horizonte de possibilidades [...] tem desdobramentos
s

e significados imprevisíveis bem como transformações infindáveis. De um


ver

lado, é ser-posto; de outro, é vir-a-ser”.

2 Projeto Açaí – Magistério Indígena é um curso de formação de professores (as) indígenas em nível médio,
instituído pelo Decreto estadual de Rondônia nº 8516, de 15 de outubro de 1998.
3 Curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural é um curso para formação de professores (as)
indígenas em nível superior, ofertado pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR) desde 2009.
4 Curso de Especialização em Educação Escolar Indígena é um curso de pós-graduação lato sensu, voltado
para a formação continuada de professores (as) indígenas, ofertado pela Universidade Federal de Rondônia
(UNIR) na modalidade presencial desde 2017.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 375

Nesse sentido, compreendemos que o indivíduo como ser histórico não


está desvinculado de suas raízes, pois é na temporalidade (passado, presente
e futuro) e em acordo também com a classe social a que pertence e com a
posição social que assume, que as possibilidades se apresentam e se concre-
tizam ou não.

or
od V
Sou professora da etnia Arara, comecei a estudar com 12 anos [...] quando

aut
nós tivemos a primeira escola na aldeia era o professor não indígena [...] eu
fiquei estudando na aldeia até o 6º ano, após o 6º ano eu fui para o Projeto
Açaí, [...] encontrei muita dificuldade [...] praticamente eu era uma anal-

R
fabeta [...] não sabia por onde começar [...] foi a primeira superação que
conquistei [...] fui aprendendo, em 2013 eu comecei a trabalhar dentro da

o
escola, comecei a atuar na docência eu estava no magistério indígena [...]
aC
em 2015 eu fiz o vestibular e passei [...] entrei na Universidade (P.2 Arara).

Nesta narrativa, percebemos o processo de desenvolvimento dessa pro-


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

fessora e sua relação com a formação. Podemos observar em suas palavras


visã
– eu era uma analfabeta, foi a primeira superação – que ela percebe sua
evolução e que atualmente se identifica com a docência.
Para Ciampa (1987/2005), “o desenvolvimento da identidade de alguém
itor

é determinado pelas condições históricas, sociais, materiais dadas, aí incluídas


as condições do próprio indivíduo”. Ou seja, os indivíduos vão se identificando
a re

durante seus percursos sociais, formativos e profissionais, em um contínuo


desenvolvimento e transformação.

Sou professora da etnia Caoorowaoje. Desde muitos tempos, dentro da


par

nossa aldeia, tinha as freiras que atendiam nossa comunidade [...] estas
freiras que trabalhavam lá me incentivaram a participar das aulas delas
Ed

[...] a gente foi ajudando estas freiras a tomar a lição dos alunos [...] no
ano de 1990 ocorreu um concurso do município [...] nesta época, eu tinha
o 2º ano que era a 1ª série, aí, as freiras foram dando aulas para a gente
ão

[...] passei no concurso e em 1991, então, a partir daí comecei a trabalhar


[...] aí continuei a estudar [...] fui adquirindo experiência [...] não foi fácil
não, mas a gente venceu [...] muitas vezes, deixei meu marido, meus filhos,
s

para poder buscar o bem para meu povo [...] hoje estou na universidade
ver

[...] estou aqui fazendo a especialização. (P.3 Caoorowaoje)

Essa narrativa mostra-nos situações de superação: a professora afirma


que, por meio do estudo e da prática docente, adquiriu experiência e venceu
suas dificuldades. Tal fato nos remete ao conceito de identidade metamorfose,
como defendido por Ciampa (1987/2005), ou seja, a transformação da identi-
dade. Para esse autor, a transformação da identidade reflete as transformações
376

da consciência e também da atividade humana. Podemos então afirmar que


as transformações das identidades estão intrinsecamente relacionadas às dife-
rentes situações que os indivíduos vivenciam.

Sou professora das etnias Oro Win e Cabixi. A minha história de professora

or
é muito sofrida, porque nós, professoras indígenas, muitas vezes, somos

od V
casadas, temos filhos e para a gente enfrentar isso, temos que enfrentar

aut
muitas barreiras [...] meu marido não queria que eu estudasse [...] tive que
me separa para seguir minha carreira [...] eu estudava com meu filho no
colo e não tinha outra opção [...] fiz o magistério indígena que é o Projeto

R
Açaí [...] Em 2009, fiz a prova do vestibular da UNIR para o curso de
Licenciatura Intercultural e passei [...] terminei e hoje estou na especia-

o
lização (P.4 Cabixi).
aC
Quando narra que precisou se separar para seguir sua carreira docente,
essa professora mostra-nos quão determinada estava em seu projeto profis-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sional, em seu projeto de vida. Ciampa (1987/2005) afirma que a busca pela
visã
sobrevivência e pela liberdade é o que nos motiva, nos move em nosso projeto,
nos leva a enfrentar certas situações: “recusando viver o que não merece ser
vivido; procurando viver o que merece ser vivido” (p. 223).
Freire (2016, p. 140), ao pensar o ser humano como um ser histórico, já
itor

defendia que “porque somos condicionados e não determinados que somos


a re

seres da decisão e da ruptura”. O autor nos ajuda a entender que a decisão


racional dessa professora inicialmente se dá no campo subjetivo e se concretiza
objetivamente em suas atitudes, quando vai para a escola, faz o magistério e
se torna profissional docente.
par

Sou professora da etnia Sabanê. Eu sempre estudei na minha aldeia [...]


Ed

comecei a sair para estudar, foi quando fui fazer o Projeto Açaí [...] o
Intercultural [...] eu não conhecia ninguém, foi difícil demais, quase eu
desisti [...] fiquei estudando dois anos sem ser contratada [...] meu sonho
ão

não era ser professora, eu queria ser técnica de enfermagem, só que agora
já acostumei e me sinto feliz onde estou [...] fui contratada [...] eu precisava
desse trabalho [...] fiquei estudando e trabalhando até terminar o curso
s

[...] saiu o concurso [...] consegui passar [...] sou concursada [...] estou
ver

fazendo a especialização (P.5 Sabanê).

Esta narrativa nos mostra como a inserção profissional está relacionada


às oportunidades que as pessoas têm. Ao dizer que se acostumou e que se
sente feliz, ela nos leva a refletir sobre a afirmação de Hall (1992/2011, p. 13)
a respeito da ilusão de uma identidade permanente, estável e fixa: “à medida
em que os sistemas de significações e representação cultural se multiplicam,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 377

somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de


identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar –
ao menos temporariamente”.
Desse modo, compreendemos que as possíveis identificações dos indiví-
duos não são permanentes e estão indissociavelmente relacionadas ao contexto

or
e às atividades que estão desenvolvendo em determinado momento.

od V
aut
Sou professora da etnia Makurap. Trabalho em três escolas que são de
aldeias diferentes [...] são 12 etnias dentro de uma sala de aula [...] depois
que terminei o Intercultural, eu tinha desistido de estudar [...] porque é

R
muito difícil para a gente, nós, professoras indígenas, temos uma carga
horária muito puxada, além de você dar aula, tem que cuidar de filhos,

o
marido, trabalhar na roça e é muito corrido [...] mas vejo a necessidade
aC
do meu povo, por isto que estou aqui na especialização (P.6 Makurap).

As trajetórias citadas mostram-nos que, apesar das experiências diferen-


Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tes, são semelhantes. Todas as professoras vivenciaram a formação docente


visã
ou grande parte dela em concomitância com o exercício da docência e ainda
se encontram em formação. Assim, com base nas narrativas, podemos refletir
sobre a história e sobre como as identidades vão se constituindo. Considerando
a afirmativa de Ciampa (1987/2005, p. 163) de que “Identidade é história”,
itor

de um lado, entendemos que a história pode ser o ponto de partida para com-
a re

preendermos a identidade dos indivíduos e, por outro, que é necessário levar


em conta o movimento realizado por eles ao longo de suas trajetórias.
Reiteramos, portanto, que essas mulheres, ao ingressar na docência e
nos cursos de formação docente, passaram por uma constante transformação
par

identitária, seja em razão do atual contexto social em que vivem seja em


razão das relações que constroem ao conviver com os não indígenas e com
Ed

os conhecimentos interculturais.

A formação e suas contribuições: a cultura e a língua


ão

Considerando a relação da consciência com a constituição da identi-


dade, percebemos que os processos formativos vivenciados pelas professo-
s

ras influenciaram o desenvolvimento de seu pensamento crítico. De acordo


ver

com Maheirie (2002, p. 33), a consciência é representada pela subjetividade


humana. Assim, “por meio da consciência, que é o para-si, a subjetividade
invade a objetividade, fazendo com que o mundo [grifo da autora] se consti-
tua em uma ‘organização’ que traz a marca da humanidade”. Ainda, “Refletir
criticamente é uma outra possibilidade da consciência. Caracterizada pelo dis-
tanciamento do objeto, da situação na qual está envolvida, é uma consciência
que se volta sobre si própria” (p. 35).
378

Meus pais foram massacrados, foram seringueiros [...] o patrão dos meus
pais não deixava meus pais se comunicar com nós na língua indígena [...]
eu fui conhecer a história da língua indígena, a falar, a escrever através
do Projeto Açaí. Eu venho de duas etnias, minha mãe é Oro Win e meu
pai Cabixi, mas meu pai não tem mais a língua [...] eu falo a língua Oro

or
Win que é da minha mãe [...] nós professores indígenas temos uma visão
ampla, nós voltamos para cultura indígena, nós mesmos somos pesquisa-

od V
dores de nós (P.4 Cabixi).

aut
Essa professora evidencia como os indígenas foram oprimidos e explo-

R
rados e como isso repercutiu em sua vida. Podemos perceber que, por meio
do conhecimento adquirido em sua formação docente, ela desenvolveu uma

o
consciência crítica a respeito de seus valores culturais. Assim, teve condições de
aC
refletir sobre o quadro opressor vivenciado por ela e por muitos outros indíge-
nas e buscou, por meio de estudos, de pesquisas e da prática docente contribuir
para a valorização da cultura e da língua indígena. Ciampa (1987/2005, p. 132)

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


afirma que, no modelo de sociedade em que vivemos (sociedade capitalista),
visã
“somos todos explorados e violentados – alguns mais, outros menos”.
Dessa maneira, fica claro para nós que as populações menos favoreci-
das, marginalizadas e discriminadas da sociedade, como é o caso dos povos
itor

indígenas, sofrem até os dias atuais com a exploração, vendo-se muitas vezes
à mercê dos interesses do capital.
a re

Esses cursos de formação específica para os povos indígenas ensinam


você a trabalhar sua realidade e isso é uma coisa muito especial [...] a
nossa língua materna está ficando em extinção, quase acabando [...] a
par

única professora que trabalha a língua materna sou eu e meu interesse


maior é fazer material didático voltado para a língua, para deixar para os
Ed

professores que estão chegando poderem trabalhar, este é um objetivo


meu de estar aqui na especialização (P.6 Makurap).
ão

Essa professora nos mostra a relevância da formação específica para


as (os) docentes indígenas e para a preservação dos valores culturais, prin-
cipalmente da língua desses povos. Maher (2006) reflete sobre os desafios
s

vivenciados na atualidade pelos professores (as) indígenas, dentre eles, o da


ver

utilização da língua materna na prática docente, o que, até a promulgação da


Constituição Brasileira de 1988, era proibido. Conforme sua crítica, “O que
acontece é que uma língua vale o que o seu falante vale socialmente” (p. 30).
Concordamos com tal crítica e avaliamos que a resistência e a luta desses
povos diante dessas e de outras situações semelhantes estão transformando
suas realidades. Foi a partir desse processo que a escolarização formal pode se
tornar uma ferramenta útil na luta contra a exploração, a discriminação cultural
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 379

e social e que eles e elas foram se tornando protagonistas como professores,


professoras, gestores e gestoras da Educação Escolar Indígena.

Eu não tinha essa preocupação que tenho hoje, esse olhar sobre a cultura,
não ligava mesmo, então, quando eu entrei no Intercultural mudei a visão,

or
então, olhei para minha comunidade com outro olhar, sabendo daquilo

od V
que estava se perdendo e que a gente precisa, nós professores precisava
trazer isso de volta [...] a minha visão foi ensinar aos meus alunos sobre

aut
a cultura (P.2 Arara).

R
Esta narrativa nos revela como essa professora se transformou e se tor-
nou consciente do que estava ocorrendo com sua cultura, o que, para ela, foi

o
resultado de sua formação. Ciampa (1987/2005) afirma que, ao aprender, os
aC
indivíduos se transformam, tornando-se seres subjetivos que se manifestam
na realidade objetiva. Em suas palavras, “O subjetivo torna-se objetivo; e a
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

recíproca também” (p. 150). Assim, compreendemos a necessidade de obser-


var as ações dos indivíduos como um processo dialético entre a consciência
visã
e a atividade.

Quando eu fiz o Açaí eu comecei a gostar de estudar e foi só fortalecendo


itor

cada vez mais meu conhecimento e também a respeito do meu povo né [...]
cada curso que eu fazia, era mais conhecimento que eu adquiria para mim
a re

poder repassar para minha comunidade, para minhas crianças, estamos


trabalhando hoje em nossa escola, junto com nosso sabedor5, trazendo
tudo que era nosso de volta (P.1 Arara).
par

Estou fazendo a especialização do meu estudo [...] tudo que mais quero é
fazer o dicionário da minha língua materna, para que não perca a língua,
Ed

porque na minha aldeia falam o português, só meu pai e minha mãe que
falam a língua materna (P.5 Sabanê).
ão

Notamos, na fala da P. 5, o valor dado ao dicionário! Tal reflexão pode


não ser tão valorizada entre as pessoas que empregam cotidianamente a língua
portuguesa e não se veem às voltas com o drama de não deixar sucumbir sua
s

cultura, sua língua.


ver

Eu sempre valorizei a cultura não indígena e através do Projeto Açaí desco-


bri muita coisa, raízes do meu povo, história do meu povo, raízes da minha
língua e fui levar essas informações para dentro da minha comunidade [...]
nós somos falantes da língua, a gente só não sabia escrever, hoje nossos

5 Professor Nível Especial, criado pela Lei Complementar nº 578/2010 do estado de Rondônia, é um profissional
conhecedor da história e cultura de seu povo e não é exigido dele formação e titulação acadêmica.
380

alunos escrevem [...] então a gente está descobrindo os valores da nossa


língua, da nossa cultura (P.3 Caoorowaoje).

Nessas narrativas, pudemos perceber questões relacionadas diretamente à


formação e às suas contribuições. Dentre elas, destacamos: o desenvolvimento

or
do pensamento crítico, com relação à valorização cultural; o conhecimento de
uma outra cultura, a não indígena; o fortalecimento da resistência diante das

od V
ações discriminatórias e exploratórias causadas pelo capitalismo.

aut
Para Sawaia (2001, p. 123), “Identidade esconde negociações de sen-
tidos, choques de interesse, processo de diferenciação e hierarquização das

R
diferenças, configurando-se como estratégia sutil de regulação das relações
de poder, quer como resistência à dominação, quer como seu reforço”.

o
Diante do exposto, podemos afirmar que as identidades dessas professo-
aC
ras podem ser compreendidas por meio de suas histórias de lutas e resistências.
Podemos afirmar também que é impossível pensar essas identidades sem
considerar o contexto social, cultural, histórico e político por elas vividos,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


assim como suas atividades no âmbito da docência.
visã
A constituição da identidade se mistura – ser mulher, indígena
e professora
itor
a re

Quando refletimos sobre os diferentes papéis que as professoras indíge-


nas vivenciam nos dias atuais, percebemos que eles implicam adentrar outra
cultura, interagir com ela. Nos termos de Hall (1992/2011), isso pode ser con-
siderado “a descentralização ou fragmentação das identidades”. No entanto,
tais identidades buscam novamente uma centralização, uma estabilização, o
par

que fica mais evidente nas narrativas a seguir.


Ed

Sou professora [...] tenho orgulho de ser indígena, de ser uma professora,
hoje estou na universidade [...] quando assumi a escola, muitas vezes, com
meninos nos braços, não foi fácil, mas a gente venceu, ser mulher não é
ão

fácil, mas não pode se rebaixar, tem que erguer a cabeça para conseguir
nossos objetivos (P.3 Caoorowaoje).
s

Nesta fala, observamos o destaque para o “orgulho de ser indígena”, o


ver

que expressa a negociação de sentidos, como apontado por Sawaia (2001).


Ao se afirmar como professora, indígena, mulher e mãe, esta professora nos
mostra quantos papéis ela desempenha e como todos a constituem. Para Hall
(1992/2011, p. 71), “a identidade está profundamente envolvida no processo
de representação. Assim, a modelagem e a remodelagem de relações espaço-
-tempo no interior de diferentes sistemas de representação tem efeitos pro-
fundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas”.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 381

Neste sentido, pensamos a identidade como algo flexível que é influen-


ciado tanto pelo momento histórico e social quanto pelas relações sociais nas
quais os indivíduos estão integrados.

Eu fui a primeira professora, a primeira indígena a sair do contexto, que

or
na nossa cultura tem aquela coisa também da não indígena, que mulher

od V
não pode e só homem pode [...] eu tive que enfrentar muita coisa [...]

aut
eu comecei a estudar e em todo momento não foi fácil, é difícil, por ser
mulher [...] eu adquiri muito respeito em minha comunidade [...] eu sou
essa professora que luto pelo bem das minhas crianças, pelo bem de toda

R
a minha comunidade [...] eu sou essa professora guerreira (P.1 Arara).

o
Podemos perceber o orgulho e o protagonismo desta professora ao se
aC
identificar como “professora guerreira”. As rupturas de valores, as mudanças
na rotina, no cotidiano, o empoderamento feminino são alguns dos fatores
de transformação das identidades dessas mulheres. No entanto, elas sempre
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

se mantêm afirmando e se reconhecendo como mulheres indígenas. Ciampa


visã
(1984/1994, p. 63) afirma que “Sucessivamente, vamos nos diferenciando
e nos igualando conforme os vários grupos sociais de que fazemos parte”.
itor

O meu estudo contribuiu para eu ser esta mulher que sou hoje [...] você
tem que ter o pensamento assim, vou fazer o que eu quero e vou conse-
a re

guir [...] hoje nós não estamos vivendo em um mundo como antigamente;
então, hoje nós temos possibilidade de estudar, de trabalhar (P.5 Sabanê).

Essa professora evidencia as mudanças que ocorreram na estrutura social


par

e cultural em que vive, assim como as novas possibilidades de atuação social


e profissional. Ela se considera capaz de viver novos projetos. Para Meheirie
Ed

(2002, p. 35-36), “O homem se define baseado em seu passado [...], mas é em


função de um futuro que tal definição acontece, já que é ele que dá sentido
às posições do sujeito”.
ão

A percepção que esta professora tem das condições de vida das mulhe-
res indígenas no passado e nos dias atuais possibilita que ela assuma um
posicionamento de autonomia e independência. Assim, consideramos que
s

as mudanças que foram ocorrendo na cultura dessas mulheres implicaram


ver

outras transformações, deram origem a novas necessidades, a novos meios


de sobrevivência. É possível que isso tenha causado diversos impactos em
suas vidas, levando-as a assumir novos papéis em sua cultura e na cultura não
indígena, e também influenciado a percepção que têm de si.

Eu viajo muito, já participei de vários seminários, já sei debater, eu entendo o


que é mulher, o que é uma mulher ser independente, ter uma vida livre e nós
382

antes não tínhamos isso, era muito diferente, os homens agora, eles reconhe-
cem estas mudanças [...] hoje eu tenho uma ampla visão e sou um exemplo
para as outras mulheres, eu gosto e muito ser professora (P.4 Cabixi)

O estudo me ajudou a ser a mulher que sou hoje, porque é raro uma mulher

or
indígena ser independente né [...] eu me sinto orgulhosa, eu sempre incen-
tivo as meninas que elas têm que estudar [...] eu espero que as futuras

od V
gerações sejam governadas pelas mulheres (P.6 Makurap).

aut
Enfim, tais narrativas nos mostram que as experiências e as atividades

R
desenvolvidas por essas mulheres contribuíram para torná-las independentes
e autônomas, como elas próprias expressam. Os diversos papéis assumidos

o
por elas constituem suas identidades.
aC
Recorrendo à concepção de “Personagem” proposta por Ciampa
(1987/2005, p. 161), para quem “todas as personagens (que somos) mon-
tam, constituindo-se reciprocamente”, reiteramos que não é possível pensar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a constituição da identidade dessas professoras sem considerar os múltiplos
visã
papéis que desempenham dentro e fora de suas culturas.

Considerações finais
itor

Ao fim deste estudo, compreendemos que a formação de docentes indí-


a re

genas resulta da luta e dos movimentos destes povos para a concretização


dos direitos educacionais conquistados e garantidos legalmente. No cenário
educacional atual, a educação básica e a formação superior têm sido impor-
tantes pautas de luta desses povos.
par

A presença das mulheres indígenas na educação básica e superior precisa


ser analisada em seu âmbito social e político, pois as condições encontradas ou
Ed

vivenciadas implicam extremas dificuldades e desafios. A formação superior e


os cursos de formação docente são geralmente oferecidos em espaços distantes
das aldeias, o que significa que, para se manter nesses cursos, as indígenas
ão

enfrentam muitos percalços, tais como: falta de bolsas estudantis e de alojamen-


tos apropriados, distância de seus familiares, filhos, esposos e de sua cultura.
Tais situações comprometem sua permanência até a conclusão dos estudos.
s

O ingresso dessas mulheres na docência está relacionado ao novo cenário


ver

educacional que os povos indígenas estão vivenciando e à relevância dada


por eles à educação formal. Na atualidade, esses povos têm buscado o conhe-
cimento por meio da formação escolar e universitária e, com isso, melhores
condições para defender sua cultura e lutar contra a exploração sofrida por
séculos. Assim, consideramos que conhecer a história de luta e resistência
desses povos é imprescindível para compreender suas novas formas de orga-
nização e representação social.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 383

Com base em tudo o que expusemos, podemos afirmar que as identi-


dades das professoras foram e vão sendo constituídas pelos diversos papéis
que desempenham, seja em suas comunidades, em sua cultura, seja na socie-
dade e na cultura não indígena. Podemos afirmar também que essas mulheres
viveram e vivem um processo de ebulição para ampliar suas possibilidades

or
identitárias, que são múltiplas, plurais e móveis porque a vida é dinâmica e

od V
se transforma a todo momento.

aut
Ao mesmo tempo, os resultados da pesquisa nos permitem apontar as
possibilidades de futuras pesquisas do tipo etnográfico. Consideramos neces-

R
sário acompanhar o cotidiano dessas mulheres e analisar como esses papéis
se entrecruzam na escola e no dia a dia, o que resultaria em uma contribuição
significativa para uma melhor compreensão dos papéis que assumem.

o
Consideramos também a pertinência de uma observação quanto à for-
aC
mação das professoras participantes deste estudo. Destacamos que os cursos
de formação específicos para indígenas, tanto os que elas cursaram quanto os
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que estão cursando, são conduzidos por profissionais não indígenas, em uma
visã
sociedade não indígena, porém, primam pelo respeito e pela valorização da
cultura e da língua indígena.
Desse modo, concluímos que estas formações contribuíram e contribuem
para o protagonismo e o empoderamento dessas mulheres. Elas tomaram para
itor

si a responsabilidade pelo estudo, pelo exercício do magistério e pelo processo


a re

de compreensão de todo o entorno até a assunção de uma nova identidade.


Assim, mesclaram sua identidade anterior com essas outras que se criaram
ou se criam na relação com o mundo novo que se lhes tem sido apresentado.
par
Ed
s ão
ver
384

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
DESAFIOS PARA UM TRABALHO
PARTICIPATIVO NO CURSO DE
PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE

or
FEDERAL DO AMAZONAS:

od V
formação, história e compromisso

aut
social (1995-2021)

R Iolete Ribeiro da Silva

o
Marck de Souza Torres
aC Ana Cristina Fernandes Martins
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Introdução
visã
O acesso ao ensino superior enfrenta diversos desafios na Amazônia que
para serem melhor compreendidos exigem um olhar panorâmico sobre a região.
O estado do Amazonas está localizado na região norte do país, com população
itor

estimada no último censo IBGE de 3.483.985 pessoas, ocupando o 15º lugar


a re

em relação aos outros estados. Na capital Manaus a população estimada é de


2.219.580 correspondendo a um pouco mais da metade da população de todo
o estado (IBGE, 2021). De acordo com o Índice de Desenvolvimento Familiar
(IDF), o estado apresenta indicadores negativos, pois tem nove dos dez muni-
par

cípios mais pobres do Brasil e apresenta isolamento geográfico e econômico


em relação ao resto do país (DA SILVA; DA SILVA ALENCAR, 2019).
Ed

Devido às características geográficas em que o deslocamento se dá quase


que exclusivamente por via fluvial ou aérea, há dificuldades em difundir a
educação superior no Amazonas (SOARES; AGUIAR; NEVES; BROCK,
ão

2020) uma vez que os investimentos têm se concentrado na capital. O acesso


ao ensino superior na última década esteve atrelado ao aumento de instituições
privadas (SALATA, 2018). No Amazonas não foi diferente, pois na cidade de
s

Manaus que tem a maior concentração de IES do Estado, o Censo da Educação


ver

Superior de 2019, apontou a presença de dezenove IES (sendo duas Federais,


1 estadual e dezesseis privadas). Em relação a oferta do curso de Psicologia,
oito ofertam o curso, sendo sete em instituições privadas e 1 ofertado em
universidade pública, a Universidade Federal do Amazonas (INEP, 2021).
Nesse contexto situa-se o curso de psicologia da Universidade Federal do
Amazonas – UFAM. A UFAM é uma universidade centenária tendo iniciado
suas atividades em 1909, denominada inicialmente como Escola Universitária
388

Livre de Manáos, depois Universidade de Manaus, Universidade do Amazonas


e posteriormente UFAM (UFAM, 2012). A história da UFAM é amplamente
documentada e estudada por Rosa de Mendonça Brito (UFAM) e Eduardo
Tuffani (UFF) e pode ser melhor conhecida em suas produções.
A criação do curso de Psicologia da UFAM se caracterizou como uma

or
resposta institucional para a população amazonense, que buscava qualificação

od V
profissional em relação aos cuidados em saúde mental, e concomitante ao

aut
momento histórico da expansão do compromisso social da psicologia, que
almejava extrapolar o ensino da psicologia para além das regiões sudeste e sul.
Assim, destaca-se a importância de que na região Norte, particularmente no

R
Amazonas, se materializasse o compromisso de uma instituição pública com a
oferta da formação em psicologia. Conforme consta no sistema E-Mec, o curso

o
de psicologia da Universidade Federal do Amazonas teve sua data de fun-
aC
cionamento homologada no dia 23 de novembro de 1995, com periodicidade
semestral (12 períodos), carga horária de 4020h, com nota Enade 4 desde o

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


início da sua aplicação em 2006, tendo sido avaliado cinco vezes. O seu último
ato regulatório de reconhecimento foi decretado no dia 25 junho de 2020.
visã
A formação em psicologia da UFAM sempre esteve em consonância
com a regulamentação da profissão de Psicóloga(o) no Brasil, mas já nasceu
com um currículo fortemente identificado com a psicologia social. Ademais
itor

o curso de psicologia da UFAM tem um currículo com direcionamento ético


a re

político em conexão com a realidade amazônica, pois não é possível pensar um


currículo formativo sem a assunção de posição política que sustente o fazer do
profissional da psicologia (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).
Pensar uma formação que se conecta com os valores psicossociais, para
par

além do compromisso com as elites, e com crítica às práticas formativas alie-


nadas, que aprofundam abismos entre a teoria e prática, ao invés de promover
Ed

o diálogo para superar as carências da formação e as exigências da realidade


do trabalho profissional (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).
Essa mudança diz respeito, à concepção dos objetos de estudo da prática
ão

da psicologia, que abandonou uma concepção essencialista, cristalizada e


determinada por um fator, por uma perspectiva multideterminada e dinâmica
(FERNANDES; SEIXAS; YAMAMOTO, 2018).
s

Não é por acaso que no Censo da Educação Superior 2019, os cursos de


ver

psicologia no ano de 2009 apareciam em 9º lugar em relação ao número abso-


luto de matrículas no país com 121.184, dez anos depois (2019) esse número
era 270.239, representando aumento de 47,9% na busca pela formação em
psicologia. As IES privadas foram as responsáveis por esse aumento, sendo o
4º curso mais procurado no ensino superior presencial no Brasil (INEP, 2019).
Corroborando o estudo de Macedo et al (2018) que indica que nos últimos
anos a psicologia figura entre os 10 cursos mais procurados no ensino superior
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 389

no Brasil, com forte investimento do setor privado, inclusive conglomerados


transnacionais que muitas vezes estão comprometidos com concepções e
estruturas de ensino com viesses duvidosos ao processo formativo superior.
Além disso, o neoliberalismo tem articulado um mercado do uso instrumental
da psicologia para capitalização da saúde mental, e pouca produção de crítica

or
aos modelos hegemônicos e elitistas.

od V
Por fim, não se pode negar que a psicologia como ciência e profissão

aut
tem um compromisso ético político, por isso é preciso definir qual(is) a(s)
direção(ões) esse projeto dará à formação profissional. Sabe-se que são várias
as psicologias, contudo muitas vezes o profissional de psicologia não com-

R
preende qual seu perfil profissional na atuação psicossocial, e na busca por
alternativas às teorias europeias e americanizadas, que não dialogam com a

o
realidade brasileira. A formação em psicologia deve priorizar a atuação em
aC
instituições públicas (por exemplo, saúde pública, assistência social, educação
pública), com diretrizes curriculares fundamentadas na crítica ao tradicio-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nalismo biomédico, individual, e europeu que colonizou o pensamento em


psicologia, e na busca por uma identidade da/o psicóloga/o brasileiro (CON-
visã
SELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).
Inspirados na construção de uma formação crítica e alicerçada no com-
promisso social com as políticas públicas no contexto amazônico, o curso de
itor

Psicologia da UFAM se mantém ao longo desses 25 anos como um dos princi-


a re

pais cursos no estado do Amazonas, além de ter o único programa de pós-gra-


duação stricto sensu em psicologia no estado com dez anos de existência, e com
objetivo de formar mestres em psicologia para atuação no ensino e pesquisa
de outras IES formativas e com destaque à inserção nas políticas públicas.
Este trabalho objetiva discutir a formação em psicologia no estado do Ama-
par

zonas a partir da experiência do curso de Psicologia da Universidade Federal


Ed

do Amazonas destacando o trabalho participativo e o compromisso social com


os povos amazônicos. O capítulo será constituído de uma síntese da história do
curso de psicologia, da sua dinâmica de funcionamento e por fim serão apresen-
ão

tadas reflexões sobre o compromisso social do curso com o estado do Amazonas.

Contextualização histórica do Curso de Graduação em Psicologia


s

da origem à criação e perspectivas atuais em seus 25 anos


ver

O histórico do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Fede-


ral do Amazonas expressa a relação entre a necessidade de responder a uma
crescente demanda pela formação de profissionais nessa área no âmbito da
capital e demais municípios do estado do Amazonas e, os desafios postos
para a oferta do Curso em uma universidade pública e gratuita considerando
a complexidade da região amazônica.
390

Para melhor compreensão desse cenário faz-se necessário percorrer a


história que retrata sua origem e criação, datada em abril de 1994, quando
na Faculdade de Educação, alguns docentes do Departamento de Teoria e
Fundamentos iniciaram uma discussão, com reuniões diárias, que culminou
com a estruturação do projeto inicial do Curso de Graduação de Psicologia.

or
Esse processo foi coordenado pelo Professor Waldir dos Santos Costa

od V
através de uma comissão criada por intermédio da Portaria 036/1995 – FACED,

aut
constituída pelos docentes: Cláudia Regina Brandão Sampaio, Lídia Rochedo
Ferraz, Luís Alberto Passos Presa, Nazaré Maria de Albuquerque Hayasida,
Raquel Almeida de Castro, Rosângela Dutra de Moraes e pelo Professor Wal-

R
dir dos Santos Costa (In Memoriam). Conforme o relato incluso no PPC de
Psicologia Versão 2001-Formação do Psicólogo, posteriormente, em reuniões

o
semanais a Comissão deu continuidade ao aperfeiçoamento do projeto, em
aC
conformidade com as orientações da PROEG, da legislação vigente naquele
período e, em paralelo, buscou a viabilização da implantação do curso junto

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


às instâncias acadêmicas e administrativas da UFAM.
A época, para sua implantação, o Curso contou com o apoio da admi-
visã
nistração superior através do então Reitor, Prof. Dr. Nelson Abrahim Fraiji
(1993-1997) que, ao receber a comissão em tela, analisou a viabilidade do
projeto e destinou dez vagas para concurso de carreira docente, para constituir
itor

o quadro efetivo para o Curso de Psicologia, cuja prioridade seria para oferta
a re

das atividades de ensino em horário noturno.


Diante do exposto, por intermédio da Resolução 040/95, de 14 de novem-
bro de 1995, do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa – CONSEPE/UFAM
foi criado o Curso de Psicologia, vinculado ao Departamento de Teoria e
par

Fundamentos da Faculdade de Educação, graças ao esforço coletivo da Comis-


são supracitada e do apoio da direção da unidade acadêmica e chefias de
Ed

departamento. Em seu primeiro exame vestibular, ocorrido ainda em 1995,


1.200 candidatos se inscreveram para concorrer a 40 vagas. A aula inaugu-
ral ocorreu em 28 de agosto de 1996, durante as comemorações da Semana
ão

da/o Psicóloga/o.
Assim, a criação do Curso de Psicologia na UFAM se constituiu em um
marco histórico na única universidade federal no Estado do Amazonas que,
s

por meio dessa iniciativa, reafirmou seu compromisso social face aos desafios
ver

amazônicos e, evidenciou a importância da formação de psicólogas/os como


essencial para o avanço da região, considerando a escassez de profissionais
nessa área. Cumpre ressaltar que entre 1999 e 2002, a cidade de Manaus con-
tava apenas com 420 profissionais de Psicologia inscritos no Conselho Regio-
nal de Psicologia – Seção Amazonas, ainda vinculado ao CRP-01, levando
em conta uma população que, naquele contexto, era superior a um milhão e
trezentos mil habitantes.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 391

Nessa trajetória singular da criação do Curso de Psicologia com vistas


à sua consolidação, durante a gestão do Reitor Walmir de Albuquerque Bar-
bosa (1997-2001), foi criado o Departamento de Psicologia na Faculdade de
Educação/FACED, em 08 de setembro de 1998, pela Resolução Nº 020/98
do CONSEPE/UFAM. Em sequência, em 02 de fevereiro de 1999, por inter-

or
médio da Portaria Nº 0199/99, foram lotados no respectivo Departamento 13

od V
professores: Cícero Guella Fernandes, Claudia Regina Brandão Sampaio Fer-

aut
nandes da Costa, Cristine Fares Maia, Ermelinda Nascimento Salém Muniz,
José Humberto da Silva Filho, Lidia Rochedo Ferraz, Luís Alberto Passos

R
Prêsa, Maria Lucicleide Falcão Melo Rodrigues, Nazaré Maria Albuquerque
Hayasida, Raquel Almeida Castro, Rosângela Dutra de Moraes, Rosimeire

o
de Carvalho Martins e Sandra Leal de Melo Dahia.
Quanto à concepção, organização e estrutura curricular, o primeiro PPC
aC
do Curso de Psicologia estabelecia enquanto princípio a necessidade de um
processo contínuo de avaliação do mesmo, que culminou com a realização
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de um Seminário de Avaliação a cada dois anos – até que a primeira turma se


visã
formasse – com a finalidade de analisar o percurso desenvolvido com vistas
a formular novas propostas para a melhoria do Curso.
Naquele momento foi perceptível a necessidade em avançar na propo-
itor

situra de uma estrutura curricular que transpusesse a fragmentação, desar-


ticulação e reducionismo presentes na dimensão política da formação dos
a re

profissionais de Psicologia em nível nacional. A perspectiva de mudança foi,


ainda, impulsionada pelas discussões acerca das Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para os Cursos de Graduação em Psicologia.
Diante dessa premissa, em julho de 1999, foi promovido pelo Departa-
par

mento e Curso de Psicologia respectivamente, o Seminário de Avaliação do


Curso de Psicologia, com a participação de alunos e docentes do curso para
Ed

a realização de levantamento de indicadores visando à melhoria da estrutura


curricular do Curso cujas propostas subsidiaram alterações no PPC do Curso
de Psicologia.
ão

Neste contexto, em agosto de 1999, ocorreu a visita de avaliação para fins


de autorização e funcionamento do curso, pela Comissão de Especialistas de
s

Ensino de Psicologia, advinda da Secretaria de Educação Superior do Minis-


ver

tério da Educação (SESu/MEC), que após análise da documentação, visita


às instalações físicas e dependências de apoio e reuniões consecutivas com
docentes e discentes, estabeleceu os seguintes condicionantes e exigências
para autorização e o pleno funcionamento do Curso, quais sejam: aprimora-
mento do PPC do Curso, revisão da contratação de docentes para a carreira,
ampliação do acervo de títulos para a biblioteca e, detalhamento do projeto
de criação dos laboratórios de Psicologia.
392

Na perspectiva de atender às exigências mencionadas, foi criada a Comis-


são de Reestruturação do Curso composta por professores do Departamento
de Psicologia com a assessoria da Professora Maria do Céu Câmara Chaves,
especialista em Currículos. A referida Comissão foi instituída pela Portaria
027/99-FACED. Durante os trabalhos da Comissão foram envidados esforços

or
rumo às reflexões sobre a identidade do Curso, sua função social e compromisso

od V
no contexto amazônico. Em sequência, foi elaborado o projeto consubstanciado

aut
nas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação de Psicologia.
Esse esforço coletivo teve seu ápice através do “Seminário de Reestru-

R
turação do Curso de Psicologia”, realizado em 21 de outubro de 1999, onde
se buscou empreender discussões e reflexões que subsidiam a redefinição das
diretrizes teórico-metodológicas para o Curso de Graduação em Psicologia da

o
Universidade Federal do Amazonas. Houve, assim, a participação de profis-
aC
sionais de áreas afins para discussão do projeto de formação em seu processo
de redimensionamento mediado pela realidade social amazônica.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Ao término das atividades da referida Comissão para o atendimento às
condições estabelecidas anteriormente, foi encaminhada ao MEC a documen-
visã
tação para respectiva análise, cujo Parecer Técnico foi recebido pela UFAM
em janeiro de 2001 sob o Nº 001/01/MEC/SESu/DEPERS/COESP. O referido
Parecer contextualizou a visita anterior e declarou o atendimento satisfatório
itor

de parte dos itens exigidos e, expressou a necessidade em aprimorar o plano


a re

de ampliação do acervo de livros, aquisição de periódicos, o detalhamento


de implementação dos laboratórios de Psicologia e do Serviço de Psicologia,
visando o bom funcionamento do Curso, a importância do mesmo para a
região e, anunciando nova visita técnica ao Curso para “acompanhamento e
par

verificação do acompanhamento e verificação do cumprimento da diligência”,


em conformidade com o Parecer Técnico elaborado pelo SESu/MEC.
Ed

Dessa maneira, nova visita da Comissão de especialistas ocorreu em julho


de 2001 com vistas à autorização do Curso. Contudo, o relatório resultante
dessa nova avaliação não foi enviado à UFAM. No ano em curso, a primeira
ão

turma de graduandos de Psicologia – Formação do Psicólogo – da Universidade


Federal do Amazonas, foi submetida ao Exame Nacional de Cursos, obtendo o
conceito B e, em dezembro do mesmo ano, o pleno do Conselho Nacional de
s

Educação/CNE, emitiu o parecer que autorizou o funcionamento do Curso e


ver

validou todas as atividades desenvolvidas. E, a partir de abril de 2002, o Curso


de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas, anualmente, tem gra-
duado profissionais de psicologia para atuação junto à sociedade amazonense.
Ainda em 2002, nova Comissão Docente foi constituída com a finalidade
de organizar o Projeto Pedagógico do Curso e respectiva estrutura curricular
sob a consultoria do Prof. Dr. Antônio Virgílio Bitencourt Bastos (UFBA),
buscando o atendimento das condições para obtenção do Reconhecimento do
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 393

Curso junto ao MEC, sobretudo pela necessidade de emissão do diploma aos


egressos do Curso, exigindo assim, que as pendências ainda não solucionadas
fossem remetidas à Administração Superior para envidar esforços junto ao
Governo Federal, para que tais condições diretamente atreladas à política de
ensino superior nacional fossem atendidas.

or
Os trabalhos resultaram na estrutura curricular vigente, a qual vem sendo

od V
ofertada aos ingressantes no Curso de Psicologia da Universidade Federal

aut
do Amazonas. Esse momento do Curso passou a exigir novas configurações
de trabalho e espaços que atendessem às demandas crescentes no âmbito do

R
ensino, da pesquisa e da extensão, assim como a instalação do Centro de
Serviço de Psicologia Aplicada e ampliação do quadro docente e técnico.
Diante dos desafios postos, os docentes do Curso de Psicologia expres-

o
saram junto à administração superior, por intermédio do Reitor Hidembergue
aC
Ordozgoith da Frota (2001-2009) a necessidade da construção de um prédio
para o Curso de Psicologia que suprisse satisfatoriamente o trabalho dos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

docentes, para ampliação da qualidade na formação dos discentes, instalação


visã
dos laboratórios de Psicologia e o devido espaço ao Centro de Serviço de Psi-
cologia Aplicada/CSPA, visando o atendimento psicológico da comunidade
interna e externa à UFAM através dos componentes curriculares que contem-
plavam os Estágios Supervisionados em Psicologia pelos discentes finalistas
itor

do Curso. Assim, a gestão da administração superior se comprometeu, no ano


a re

de 2004, em construir novas instalações para o Curso de Psicologia.


Em 2007, foi instituído o Decreto Nº 6.096 que criou o Programa de Apoio
a Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais/REUNI,
que acenou a possibilidade de ampliação de vagas para carreira docente na
par

perspectiva de ampliar o Curso de Graduação em Psicologia em turno diurno.


Contudo, não havia possibilidade de implantação da ampliação mencionada
Ed

sem o espaço físico adequado para tal, uma vez que nesse ano o Curso conti-
nuava nas instalações da Faculdade de Educação, cujo espaço das salas de aula
para a graduação de Psicologia somente era disponibilizado no turno noturno.
ão

Da criação da Faculdade de Psicologia às demandas e exigências


para a formação de profissionais de Psicologia para o século XXI
s
ver

no Amazonas: desafios e possibilidades

Diante das demandas e fatos expostos, em 25 de março de 2009 a Facul-


dade de Psicologia foi criada e, passou a contar com um quadro fixo de 19
professores de carreira em seu quadro funcional e seguiu em reuniões semanais
para planejar, avaliar e executar ações pertinentes ao andamento do curso de
graduação, bem como do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Stricto
394

Sensu, criado através da Portaria nº 590/2009-MEC. Em 2011, o Curso de Gra-


duação, seus laboratórios e estrutura administrativa da graduação e pós-gradua-
ção passaram a desenvolver suas atividades no Bloco X e salas de aula do Bloco
01, da Faculdade de Ciências Agrárias, no Setor Sul do Campus Universitário.
Nesse contexto, a Faculdade de Psicologia tem reafirmado seu compro-

or
misso em avaliar continuamente a estrutura curricular do Curso de Psicologia

od V
em consonância com a missão da Universidade Federal do Amazonas e com

aut
a concepção que orienta o seu projeto pedagógico vigente (FE-06 Formação
do Psicólogo – Versão 2001) para verificar exigências de atualização con-

R
tínuas, necessárias a uma realidade dinâmica que implica transformações
significativas na consolidação de um curso cuja qualidade proporcione a
formação de profissionais éticos e tecnicamente competentes no exercício

o
dialógico de uma sociedade que demanda a construção de um conjunto
aC
social digno e transformador.
Tendo em vista essa premissa, em 2011 foi realizado levantamento junto

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


aos discentes do Curso que retratam a necessidade de nova reformulação cur-
ricular, constatado em relatório de atividades do Núcleo Docente Estruturante
visã
de 20 de abril de 2012, constituído à época pelos docentes Cláudia Regina
Brandão Sampaio Fernandes da Costa, Ewerton Helder Bentes de Castro,
Gustavo de Paiva Carvalho, Iolete Ribeiro da Silva, Lidia Rochedo Ferraz, Luis
itor

Alberto Passos Presa e Raquel de Almeida Castro, que criaram um instrumento


a re

composto por 46 afirmativas, as quais foram organizadas em 17 categorias.


Ao término do relatório foram apontadas necessidades em relação à
retirada de disciplinas, diminuição do tempo de duração do curso de seis
para cinco anos, criação de novas disciplinas optativas, reestruturação dos
par

pré-requisitos de alguns componentes curriculares, maior oferta de áreas de


estágios, melhoria da biblioteca e respectivo acervo do Curso, melhoria nas
Ed

salas de aula e ampliação de servidores para melhor atendimento à organização


administrativa do Curso.
No ano de 2013, através de nova constituição do NDE em conjunto com
ão

o Centro Acadêmico de Psicologia, foi organizado e realizado o Seminário


“Construindo o Novo Currículo de Psicologia”, de 24 a 26 de junho, com a
intenção de propiciar a continuidade dos trabalhos relacionados à reformu-
s

lação do currículo de Psicologia – Formação do Psicólogo, ao recuperar a


ver

memória das discussões, levantamentos de dados e sistematização dos mesmos


realizados até maio de 2012 foram apontadas: criação de novas disciplinas,
redimensionamento e/ou extinção de disciplinas, observando novas exigências
quanto aos créditos, carga horária, ementas.
O seminário em destaque proporcionou a realização de oficinas/ grupos
de trabalho para dar continuidade ao processo de construção coletiva, cuja
metodologia adotada para a realização das oficinas/grupos de trabalho cumpriu
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 395

seus objetivos, através da participação de todos os docentes que compõem o


quadro da FAPSI, representantes discentes e técnico-administrativos.
Foram constituídos três grupos a partir das ênfases definidas em 2012
pelo coletivo do curso. As respectivas ênfases se constituirão em fundamen-
tos da nova proposta curricular (consubstanciadas a partir das Resoluções

or
062/2004 e 05/2011 do CNE que instituem as Diretrizes Curriculares Nacio-

od V
nais para os Cursos de Graduação em Psicologia), quais sejam: 1) Processos de

aut
Saúde; 2) Produção e Trabalho; 3) Processos Psicossociais e Interculturalidade.
No período de 15 a 17 de julho de 2013 foi realizado um encontro entre
o Núcleo Docente Estruturante do Curso de Psicologia, corpo docente e a

R
Professora Drª Ângela Fátima Soligo, da UNICAMP e Presidente da Asso-
ciação Brasileira de Ensino de Psicologia, cuja disponibilidade em assesso-

o
rar esse momento de avaliação acerca dos resultados obtidos no Seminário
aC
“Construindo o Novo Currículo de Psicologia”, trouxe novas reflexões para
as discussões do processo de reformulação curricular.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Entre 2013 a 2020, o Núcleo Docente Estruturante fomentou novos


momentos de discussão sobre o PPC do Curso e sua reorganização curricular,
visã
o que culminou com a redefinição de três para duas ênfases no curso, perma-
necendo: Processos de Saúde e Processos Psicossociais e Interculturalidade.
Diante do contexto exposto, o atual corpo docente da Faculdade de Psi-
itor

cologia composto por 21 professores de carreira, sendo 20 em dedicação


a re

exclusiva, tem empreendido esforços no desenvolvimento de atividades em


Ensino, Pesquisa e Extensão no Curso de Psicologia. Tais atividades têm pos-
sibilitado a identificação de linhas de pesquisa que integram os Laboratórios
existentes na Unidade Acadêmica e que, por conseguinte, constituem estru-
par

turas articuladoras das diversas atividades previstas no Projeto Pedagógico


do Curso, essenciais à formação do profissional em Psicologia.
Ed

Os Laboratórios propiciam o envolvimento de alunos e professores no


desenvolvimento de ciência e práticas de intervenção em Psicologia, na pers-
pectiva de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o que tem
ão

valorizado e favorecido o intercâmbio com os diversos espaços de atividades


acadêmicas existentes na Universidade Federal do Amazonas e com outras
instituições nacionais e internacionais, constituindo espaços oportunos para
s

a formação profissional dos discentes.


ver

Os Laboratórios existentes atualmente na Faculdade de Psicologia se


configuram como espaços de produção de conhecimento, contribuem na
dinâmica de funcionamento do Curso e abrangem as seguintes configura-
ções: Laboratório de Avaliação Psicológica/LAP, Laboratório de Pesquisa em
Desenvolvimento Humano e Educação/LADHU, Laboratório de Intervenção
Social e Desenvolvimento Comunitário/LABINS, Laboratório de Investigação
em Ciências Cognitivas/LABICC, Laboratório de Psicologia Experimental
396

e Neurociências do Comportamento/LAPENEC, Laboratório de Psicologia


Fenomenológica/LAPFEN, Laboratório de Psicologia, Saúde e Sociedade na
Amazônia/LAPSAM, Laboratório de Psicopatologia, Sujeito e Singularidade/
LAPSUS e Laboratório de Psicologia, Trabalho e Saúde/LAPSIC.
Em 2021, ano em que o Curso de Graduação em Psicologia completa

or
25 anos de existência, finalmente terá suas instalações próprias entregues

od V
pela Administração Superior, via gestão do Reitor Sylvio Mário Puga Fer-

aut
reira (2017-2025), após 17 anos de espera. Este é em síntese o histórico do
curso de psicologia da UFAM que ganha novos ares com a entrega das novas

R
instalações, concebidas para a Faculdade de Psicologia, prevista para ocor-
rer em dezembro de 2021 tem gerado grandes expectativas na comunidade
acadêmica em relação à mais espaço físico, equipamentos e um ambiente

o
adequado e acolhedor.
aC
Considerações finais

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
A inserção profissional dos egressos em diversos órgãos que integram as
políticas públicas estaduais e municipais, exercendo cargos de liderança é um
dos indicativos da importância do curso de psicologia da UFAM para a região.
Esse indicador tem sido monitorado constantemente e sinaliza a contribuição
itor

do curso para a sociedade local o que tem animado os processos de contínuo


a re

aperfeiçoamento da proposta curricular.


Outra característica constante ao longo da história deste curso é o plane-
jamento participativo que conta com o engajamento de todos os segmentos
– docente, discente e técnico/a administrativo/a. Os processos de tomada de
par

decisão têm grande protagonismo do centro acadêmico e das/os discentes,


o que possibilita a identificação de demandas mais representativas de toda a
Ed

comunidade e a adoção de processos mais criativos a partir das reflexões em


conjunto com jovens estudantes amazônidas. Esses processos permitem tomar
contato, reconhecer as demandas desses jovens que permitem a comunidades
ão

amazônicas diversas.
No contexto atual foi superado o desafio da falta de professoras/es mes-
tres e doutoras/es enfrentado no momento da criação do curso e na primeira
s

década de existência do curso. A ampliação do acesso à pós-graduação em


ver

psicologia no país, o apoio institucional para a formação docente no âmbito


da universidade pública e a abertura de novas vagas para concurso público
permitiram essa mudança no cenário e todas/os as/os docentes que atuam no
curso hoje são doutoras/es.
A ampliação da oferta de graduação em psicologia reverberou no cres-
cimento do número de psicólogas/os no Amazonas que atualmente conta
com mais de cinco mil e quinhentos profissionais registrados no Conselho
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 397

Regional de Psicologia. Com a criação do Programa de Pós-Graduação em


Psicologia foram formadas/os 161 mestres em psicologia até o momento, e
nossos egressos do PPGPSI atuam nas outras instituições de ensino superior
públicas e privadas do Estado.
Nesse momento de maturidade do curso de psicologia da UFAM e de

or
fortalecimento da identidade do nosso curso, os desafios colocados para o

od V
crescimento e consolidação referem-se ao enfrentamento das necropolíticas do

aut
governo bolsonaro que tem reduzidos drasticamente os recursos das políticas
públicas de educação, retirado bolsas acadêmicas e impedido o financimento
de pesquisa. No âmbito local esperamos que as ciências humanas recebam

R
mais fomento dos recursos destinados à pós-graduação e pesquisa apoiando
a produção de conhecimento sobre e para o contexto amazônico.

o
Esperamos que nos próximos anos consigamos ampliar a quantidade
aC
de docentes com vistas a cobrir uma diversidade de abordagens e áreas de
atuação na psicologia e manter o compromisso com a amazônia que luta
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

contra o extermínio das comunidades indígenas, a destruição da floresta e a


favor da vida.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
398

REFERÊNCIAS
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Contribuições do Conselho
Federal de Psicologia à Discussão sobre a Formação da(o) Psicóloga(o). CFP,

or
2013, Brasília.

od V
DA SILVA, Renilson Rodrigues; DA SILVA ALENCAR, Raianna Suel-

aut
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tos de acessibilidade e educação. Anais, p. 1-20, 2019. Disponível em

R
http://www.abep.org.br/~abeporgb/publicacoes/index.php/anais/article/
viewFile/3271/3131

o
aC
DE SOUZA SOARES, Carlos Gabriel et al. A Interiorização de Ensino Supe-
rior no Amazonas. Revista Direitos Humanos e Sociedade, v. 3, n. 1, p. 171-
187, 2020. Disponível em: http://periodicos.unesc.net/dirhumanos/article/

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


view/5891
visã
FERNANDES, Sarah Ruth Ferreira; DE SOUSA SEIXAS, Pablo; YAMA-
MOTO, Oswaldo Hajime. Psicologia e concepções de formação generalista.
Psicologia da Educação. Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:
itor

Psicologia da Educação. ISSN 2175-3520, n. 47, 2018. Disponível em: https://


a re

revistas.pucsp.br/psicoeduca/article/view/42161

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. 2018. Dis-


ponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/am/manaus.html
par

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIO-


Ed

NAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Resumo técnico do Censo da Educação Supe-


rior 2019 [recurso eletrônico]. – Brasília: Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2021. Disponível em: https://www.
ão

gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/
censo-da-educacao-superior/resultados
s

SALATA, André. Ensino Superior no Brasil das últimas décadas: redução nas
ver

desigualdades de acesso?. Tempo soc., São Paulo , v. 30, n. 2, p. 219-253, aug.


2018 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0103-20702018000200219&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 25 apr. 2021.
https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.125482.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. História da UFAM, 2012.


Disponível em: https://antigo.ufam.edu.br/historia-da-ugm
POVOS DA FLORESTA
DA AMAZÔNIA SUL OCIDENTAL:
um olhar histórico-social da

or
pesquisa social e política

od V
aut
Enock da Silva Pessoa

R
Introdução

o
aC
O objetivo deste trabalho é fazer algumas reflexões sobre a Amazônia Sul
Ocidental a partir do olhar de pesquisadores cientistas e literatos que passaram
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

pela região e escreveram sobre ela e suas populações, desde o século XIX e ao
visã
longo de sua história, destacando as publicações que reputo mais relevantes.
Entende-se aqui, por povos da floresta, a totalidade de pessoas vivendo
nas matas e às margens dos rios da região: indígenas e colonos. Discute-se o
período de dominação exclusiva dos povos indígenas e, desde a invasão dos
itor

colonos de diferentes regiões do Brasil e de outros países, a relação destes com


a re

os povos originários. Como estes povos têm sobrevivido durante estes mais
de 150 anos de colonização e como têm sido tratados pelos estados nacionais?
A orientação teórica-metodológica deste texto se baseia em ideias de Ribeiro,
Rokeach, Adorno, Moscovici e Morin: Discute-se o perigo do autoritarismo e
par

a consciência de que vivemos em um mundo mais e mais interligado e numa


sociedade cada vez mais complexa, onde as possíveis soluções não podem
Ed

mais ser simplistas e unilaterais.

Ética e moral no desenvolvimento social dos povos


ão

Os valores morais de um povo se manifestam em forma de cognições,


s

sentimentos, atitudes e comportamentos passados entre gerações. Eles são


ver

internalizados pelo indivíduo, se transformam diante dos conflitos entre ele


e a sociedade, na medida em que são ancorados e objetivados pelas repre-
sentações sociais (MOSCOVICI,1978; 1990). O dogmatismo, uma forma de
autoritarismo, se apresenta como um modo fechado de pensar, sentir e agir e
está associado a uma ideologia referente a conteúdo cognitivo. Suas principais
características são: a) visão autoritária e unilateral do mundo; b) intolerância
com aqueles que têm crenças e valores diferentes dos seus, tanto em assuntos
400

particulares como em assuntos ligados às redes de informações (PESSOA,


2003; 2014; 2016, 2020 b; ROKEACH, 1960, 1979; ADORNO, 1950).
A possibilidade de mudança de atitudes e de comportamentos dog-
máticos para um estilo de vida dialógico passa pela tomada de consciência
de quão autoritário e intolerante uma pessoa admita ser seguido da decisão

or
de rever sua posição e mudar sua cognição e atitude. A incorporação cons-

od V
ciente de novos valores, construídos com base na democracia, no altruísmo

aut
e no respeito mútuo, ajudará a afugentar os preconceitos culturais, étnicos,
políticos e religiosos.

R
O conceito de autonomia dependente (MORIN, 2001, 1999) implica em
uma concepção libertadora do indivíduo e concomitantemente numa tomada
de consciência em relação a outras pessoas, à sociedade e à natureza. A busca

o
de liberdade é o ideal buscado por cada ser humano, com a consciência de ser
aC
um processo dialógico entre sujeitos e grupos com possibilidade do debate
de ideias em conflito. Quando as vontades individuais se chocam com as

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


determinações grupais, criam-se atritos e conflitos diversos: 1) A liberdade
visã
é fundamental para que os indivíduos numa comunidade rompam as amar-
ras interiores e socioculturais que o oprimem se desenvolvam em busca de
novas oportunidades. Ela propicia a busca do saber e da autodeterminação.
Na discussão das ideias e práticas culturais contraditórias, próprias do sistema
itor

democrático, as pessoas têm oportunidades de desenvolver suas potenciali-


a re

dades e criar novas possibilidades de vivência social; 2) A busca do diálogo


facilita a liberdade intragrupal, porque ele incentiva o aumento de vínculos
sociais; 3) A ética da solidariedade humana é um dos sustentáculos da liber-
dade de um povo, porque ela nivela a todos como doadores e concomitante-
par

mente receptores dos direitos humanos mais elementares como a autonomia,


a beneficência, a justiça e o respeito mútuo.
Ed

Na ocupação da Amazônia brasileira os diálogos eram extremamente


raros entre os atores sociais envolvidos. Houve uma espécie de acordo subli-
minar entre empresários e o estado para o aniquilamento da cultura indígena,
ão

causando prejuízos nas suas línguas maternas, em seus costumes, na sua culi-
nária e em suas formas religiosas. As imposições culturais dos dominadores
sobre os silvícolas funcionaram em forma de preconceitos e estereótipos
s

sobre nativos e seringueiros. O coronelismo era aceito social e cultural-


ver

mente e era legal porque os coronéis compravam seus títulos do Governo


Federal. Com o inconsciente coletivo autoritário funcionando tanto do lado
dos dominadores quanto dos dominados, esses seres humanos se tornaram
servis e submissos aos patrões. A explicação para essa subserviência pode
estar nos processos de dominação legal tradicional e carismática, abordados
por Weber (PESSOA, 2007).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 401

A constituição política e social dos povos da Amazônia: uma abordagem


teórico-histórica sobre os indígenas

Não se sabe quando os indígenas ocuparam a Amazônia, nem, com exa-


tidão, de onde vieram. Há duas grandes correntes teóricas sobre suas origens.

or
A mais tradicional afirma que os indígenas vieram da Ásia, cruzando o estreito

od V
de Bering, cerca de 13 mil anos atrás, desceram a América do Norte, atraves-

aut
saram a América Central, fixaram-se na Cordilheira dos Andes e finalmente
chegaram à Amazônia. A outra corrente questiona a primeira, afirmando que

R
os primeiros humanos chegaram à América do Sul, no mínimo há 30 mil,
até cerca de 100 mil anos atrás, talvez pelo Atlântico Sul, da África para o
Brasil. As pinturas rupestres com desenhos de animais, cenas de sexo, dança

o
e caça, encontrados na Serra da Capivara no estado do Piauí, favorecem essa
aC
segunda hipótese (GUIDON, 2008).
Para Meggers (1998) a composição dos povos originários que vivem na
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Amazônia corresponde a três famílias linguísticas dominantes, nas chamadas


visã
“terras baixas do Brasil”: a Tupi-guarani, a Arahuak e a Karib se estabeleceram
na região, mais de 500 anos antes da era cristã. Os karib escolheram habitar na
calha Norte do rio Amazonas (em terras do Brasil, da Colômbia, da Venezuela
e das três Guianas). As outras duas se fixaram na Amazônia Sul Ocidental e
itor

nas proximidades da Cordilheira dos Andes (Brasil, Bolívia e Peru).


a re

Até a primeira metade dos anos 1800 esses povos eram os habitantes
exclusivos da Amazônia Sul Ocidental. Não havia habitantes permanentes
brasileiros, bolivianos ou peruanos ali antes dessa época. As noções de estado
nacional foram introduzidas recentemente na cultura indígena da fronteira.
par

Nos limites fronteiriços do Acre (Brasil), com Bolívia e Peru predominam


os indígenas das famílias Pano e Arawak, nas bacias dos rios Juruá, Purus
Ed

e Madre de Dios.
Segundo Pessoa (2007, 2014, 2016, 2020 a, 2020 b), apesar da imposição
cultural massacrante dos colonos sobre os ameríndios na Amazônia Sul Oci-
ão

dental, alguns deles conseguiram conservar características identitárias comuns


relevantes de seu passado pré-colombiano. Algumas dessas marcas são: A
língua materna e seus costumes tribais relacionados a: alimentação, pinturas,
s

ritos religiosos e familiares, que determinam sua própria organização política


ver

e social. Os povos mais numerosos, os Hunikuin (kaxinawá) predominam nos


rios Purus, Tarauacá e Jordão; os Katukina, no rio Campinas; os Yawanawá,
no rio Gregório; os Marubo, no rio Boa Fé; os Yaminawá, no Alto rio Acre,
além de outros grupos do tronco linguístico Pano conseguiram conservar sua
língua e outros costumes ancestrais. Outras etnias, a exemplo dos Puyanawa,
dos Nawa e dos Nukini, perderam essa condição e atualmente se acham em
processo de reaprendizagem da língua materna. No tronco linguístico Arawak,
402

destacam-se os Ashaninka, no rio Amônia; os Apurinã, próximos de Boca do


Acre, e os Manchineri, no lado brasileiro das cabeceiras do rio Acre, próximo
aos Yine (Terra Indígena do antigo Seringal Bélgica), no lado peruano do rio
Acre. Os Manchineri, os Ashaninka e os Apurinã também conservam suas
línguas originárias. Grande parte desses povos mantém contato pleno com a

or
civilização ocidental sem perder o núcleo de sua cultura tradicional: trans-

od V
mitida principalmente de mãe para filhos e filhas. O efeito mais recente da

aut
miscigenação de crenças e rituais entre brancos, negros e indígenas é a criação
de uma síntese, onde elementos dessas culturas são assimilados em forma
de sincretismo. Como exemplo da capacidade de criação das comunidades

R
quando detentoras de liberdade, as crenças indígenas, espiritistas e católicas
populares se transformam em novos saberes religiosos ligados à ayahuasca:

o
Santo Daime, União do Vegetal e nos chamados “Santos e Santas da Floresta”,
aC
a exemplo da “Santa Raimunda ou Alma do Bom Sucesso” (PESSOA, 2016).
As crenças culturais e religiosas primitivas de seus antepassados con-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


tinuam parcialmente presentes e preservadas em muitos povos indígenas,
principalmente entre os isolados. Estes continuam vivendo na fronteira entre
visã
Peru e Brasil (nas cabeceiras dos rios: Purus, Envira, Jordão e Tarauacá),
uma região, agora ainda com florestas totalmente virgens. Mas, essa região
tornou-se também uma rota de traficantes de drogas e outros ilícitos.
itor
a re

O processo de amansamento e sujeição de indígenas

Darcy Ribeiro, um intelectual que muito contribuiu, teórica e empirica-


mente, para a compreensão da cultura indígena brasileira, descreve a trajetória
par

dos colonos portugueses rumo ao sertão e seu contato com os indígenas. Para
Ribeiro (2000), houve tentativas de escravização de indígenas no Brasil já a
Ed

partir do descobrimento, mas a escravidão negra teve mais sucesso. As duas


grandes etnias (indígenas e negros) continuaram sendo escravizadas em todo
o período colonial e imperial brasileiro. Os colonizadores portugueses nunca
ão

menosprezaram a mão-de-obra indígena, embora o negro fosse preferido para


a produção de bens de exportação, principalmente a cana de açúcar. O serviço
principal dado aos indígenas era o transporte de cargas ou pessoas, o cultivo
s

de produtos agrários, a caça e a pesca. Os silvícolas eram caçados no mato e


ver

ensinados a realizarem as rotinas do sistema de serviço colonial.

A partir da carta regia de 1570, em que D. Sebastião autorizava o apresa-


mento de índios em guerras justas, a uma lei de alforria se seguia outra,
autorizando o cativeiro através de procedimentos paralegais como os
leilões oficiais para a venda de índios, as taxas cobradas por índio vendido
como escravo, as ordens reais para preia e venda de lotes de índios para
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 403

custear obras públicas e até para construir igrejas, como ocorreu com a
catedral de São Luís do Maranhão (RIBEIRO, 2000, p. 99).

O único requisito indispensável para que o nativo se tornasse escravo


era que ainda estivesse livre. Todos os indígenas corriam o risco de se tor-

or
narem escravos, até mesmo os já incorporados à vida colonial das missões.

od V
Na medida em que os colonos brancos avançavam para o interior do Brasil e

aut
encontravam novas tribos, capturavam seus integrantes (homens e mulheres)
e os transformavam em serviçais das suas posses agrícolas e dos trabalhos
domésticos. As mulheres, além de serem obrigadas a realizarem os mesmos

R
trabalhos que os homens faziam durante o dia, também eram obrigadas a
serem escravas sexuais durante a noite (RIBEIRO, 2000).

o
O aprisionamento de indígenas era considerado pela sociedade colonial
aC
como uma prática louvável, porque era visto como oportunidade de sua ascen-
são social (civilização), além de estratégia de conversão ao catolicismo. Para
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

os líderes católicos os indígenas eram almas racionais, porém transviadas e


carentes de tutela e vigilância. A Coroa Portuguesa dava toda sustentação
visã
legal e administrativa para a ação dos Jesuítas na regulamentação do cativeiro
indígena. Os motivos alegados eram religiosos e morais, mas os resultados
evidenciavam interesses econômicos. Os nativos mansos estiveram sempre
itor

disponíveis gratuitamente, porém não de modo espontâneo. À força, eram


a re

levados para as guerras contra invasores estrangeiros, outros nativos hostis e


também contra negros rebeldes. Além da escravidão obrigatória, havia tam-
bém a voluntária, ou seja, os maiores de 21 anos, que em caso de extrema
necessidade, quisessem se vender a si mesmos a quem fizesse a caridade de
par

comprá-los, podiam fazê-lo. Também era permitido aos pais venderem seus
filhos. E era considerado legal e digno de mérito as pessoas comprarem meni-
Ed

nos/meninas indígenas trazidos por regatões dos altos dos rios amazônicos
para as cidades (RIBEIRO, 2000).
Os religiosos católicos jesuítas e carmelitas foram, em grande medida,
ão

responsáveis pela ocupação de grandes espaços geográficos na Amazônia


brasileira e peruana, desbravando as áreas ao longo dos rios, determinando
que os indígenas construíssem as instalações das missões católicas, onde dis-
s

putavam domínios sob o comando espanhol ou português: “Tinham os jesuítas


ver

de Quito quatro missões abaixo de Cambebas, no Solimões Superior. Para


expulsão delles foi ordenada uma expedição portugueza que partiu do Pará,
1708-1710” (BERREDO, citado por MENDONÇA, [1907]1989, p. 188).

Neste último anno tiveram os jesuítas do Pará ordem de fundar uma missão
no Javary. O anno de 1710 marca o momento decisivo em que os portugue-
zes ganharam o conhecimento geral geográphico do curso do Amazonas,
404

na sua colônia, segundo Von Martius. As chronicas attribuem ao Juruá,


desde 1709 até nossos dias, 49 tribus indígenas, sendo 98 denomina-
ções, a maior parte das quaes espalhadas em outros rios (MENDONÇA,
[1907]1989, p. 188).

or
Segundo o General Belarmino Mendonça, coordenador da Comissão
Mista de Limites Brasil/Peru (1905 e 1927), profundo conhecedor dos povos

od V
do Juruá, as descrições dos viajantes brancos a respeito dos indígenas da região

aut
eram, às vezes, fantasiosas. Em 1768, José Monteiro de Noronha, vigário geral
da Província do Pará, conta em seu “Roteiro da viagem da cidade do Pará até

R
as últimas colônias do sertão da província”, da existência dos “índios Cauana
e Ugina”, habitantes do Juruá, acima da cachoeira do rio. Segundo o relato do

o
religioso descrito por Mendonça, esses indígenas tinham cerca de um metro e
aC
dez centímetros de altura, além de possuírem caudas, por serem nascidos de
índias fecundadas por macacos coatás (MENDONÇA, [1907]1989).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Quanto à geopolítica amazônica, consideremos que até o final do século
XVIII a América do Sul era ainda dominada por Portugal e Espanha. Por isso
visã
religiosos católicos portugueses e espanhóis disputaram, por longo tempo, a
posse da Amazônia indígena. Baseados no Tratado de Santo Ildefonso (1777),
os espanhóis ocuparam o Solimões e estabeleceram um quartel em Tefé,
itor

até serem expulsos pelas autoridades portuguesas. Eles usavam o trabalho


a re

indígena para extraírem as chamadas drogas do sertão (o cravo, a canela, a


castanha, a salsaparrilha, o cacau e a quina [com a qual se curavam os doen-
tes de malária]), além da madeira e produtos do reino animal (peixes, carne
de caça, tartarugas, entre outros). Esses produtos comercializados, geravam
saldos apreciáveis para o caixa das ordens religiosas (REIS, 1998).
par

Frei Nicolás Armentia (S.D.), missionário católico espanhol, que traba-


Ed

lhou na região do rio Madre de Dios, na Amazônia peruana e boliviana desde


1881, descreve duas causas de mortes que reduziram os indígenas na região:
1) As guerras entre os próprios povos indígenas; 2) As doenças trazidas pelos
ão

colonos brancos. Ele fundou a “Misión Nuestra Señora del Carmen de Tah-
uamanu”, nas margens do rio Manuripi, em 1885, onde hoje está a Província
de Tahuamanu, na Regional de Madre de Dios (Peru), na fronteira brasileira
s

de Assis Brasil (Acre). Profundo conhecedor da região, esteve antes na parte


ver

baixa dos rios: Madre de Dios, Beni, Madeira e Abunã em território fronteiriço
entre Brasil e Bolívia.
Armentia (S.D.) cita alguns povos indígenas contatados por ele: os
Araona e Cavina, os Pacaguara, os Toromona, os Caramaru, os Capa y Cama,
os Apurinã e os Guaraios (indígenas ferozes). Esses povos, segundo Armen-
tia, viviam em constante guerra uns contra os outros. Como exemplo, ele se
refere a três tribos Pacaguara, com poucas pessoas em cada aldeia, porque a
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 405

maioria deles foi exterminada pelos Araona, em março de 1885. Ele descreve
a contaminação dos indígenas por uma doença bacteriana chamada escarla-
tina, em torno da missão religiosa dirigida por ele. Ele afirma que essa doença
reduziu a população das povoações das aldeias de modo avassalador. Ele cita
que algumas tribos sofreram efeitos devastadores dessas pragas trazidas pelos

or
civilizados: Os Hamapu, que eram 22 famílias foram reduzidos a poucas

od V
pessoas. Armentia (s.d.) nos ajuda a entender que os “brancos” chegados

aut
à Amazônia, ocuparam o território não apenas com carabinas e rifles, mas
traziam, inconscientemente, em seus corpos os vírus e bactérias que conta-
minaram os indígenas, sem nenhuma proteção de anticorpos. Assim, a prin-

R
cipal razão das mortes dos silvícolas da América do Sul foram as epidemias
trazidas pelos colonizadores. A ocupação dos colonos na quase totalidade

o
de seus rios e florestas, com o sonho de construir riquezas, trouxeram sem
aC
perceberem, uma arma mortal para os silvícolas: As doenças infectocontagio-
sas. Elas se tornaram um fator de insegurança da vida das pessoas que vivem
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na Amazônia. Esta região passou a ser bastante vulnerável às epidemias e


endemias, como a hanseníase, a malária e mais recentemente, a dengue e,
visã
por último, agora, o Corona vírus (covid-19). As doenças endêmicas em
geral são: malária, febre amarela, leishmaniose, hepatites virais, doença de
Chagas, esquistossomose, hanseníase, tuberculose, entre outras (PESSOA,
itor

2020 a, 2020 b, 2016, 2014 a, 2014 b, 2006, 2005, 2003).


a re

A partir de 1755, no entanto, o governo português fez uma mudança


drástica. O Marquês de Pombal, em nome da Coroa, tira o poder político dos
padres nas missões indígenas no Brasil, deixando-os apenas com as ações
espirituais. Com essa decisão, a política indigenista brasileira passou para o
par

controle laico. Em 1759, Pombal completa seu plano, expulsando os Jesuítas


de todos os domínios portugueses, deixando apenas os carmelitas em atividade
Ed

nas aldeias indígenas, por serem tidos como dóceis no trato com os nativos.
Na teoria, a escravidão indígena estaria abolida por Pombal, e os nativos
declarados iguais aos brancos. Na prática, os diretores de índios, funcionários
ão

do governo, substituíram os jesuítas nas ações político-administrativas, mas,


em muitos locais, continuou-se a exploração do trabalho indígena. Após a
publicação do decreto pombalino a escravidão indígena tornou-se legalmente
s

abolida. Daí em diante os indígenas poderiam ser assalariados. Em resumo,


ver

na Amazônia as mudanças ficaram no discurso, pois o processo de ‘aman-


samento’ e o uso dos indígenas para trabalhos servis continuou (PRADO
JUNIOR, 1998; PESSOA, 2007).
O processo de “amansamento” foi absolutamente desumano por parte de
alguns proprietários de seringais, pelo fato de quase igualar os nativos a ani-
mais da floresta, que eram passíveis de serem domesticados. Assim os colonos
desclassificavam os nativos para uma categoria não humana, mas como seres
406

irracionais. Tais fatos deveriam levar o estado e a sociedade nacional a refletir


sobre os erros cometidos. Felizmente, vozes críticas dessa visão mercantilista
têm se levantado por todos os lados, mostrando que quando se vive em função
da exploração do homem pelo homem, a vida se torna para todos muito mais
vulnerável e frágil do que já é. Um exemplo dessa afirmação de coisificação

or
de indígenas: Os antigos contam que nos primeiros anos do século XX no Alto

od V
Juruá, por não haver moças filhas de colonos disponíveis para os homens se

aut
casarem, alguns se aventuravam a roubar adolescentes indígenas de aldeias
não muito distantes para tê-las como mulher (PESSOA, 2007).
No relacionamento entre colonos e indígenas, no entanto, tem sido

R
amplamente praticada uma forma culturalmente respeitável e não violenta
de interação, que resultou no tipo mais comum dos povos amazônicos: o

o
caboclo (mestiçagem entre branco e indígena). Essa forma se deu via casa-
aC
mentos entre colonos brancos e indígenas. Nesse caso, o colono era aceito
na aldeia como um parente. A formação do povo brasileiro e em especial dos

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povos amazônicos é, em grande medida, resultado dessa interação. Segundo
visã
Ribeiro (2000, p. 81):

A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o


cunhadismo, velho uso indígena de incorporar estranhos à sua comuni-
itor

dade. Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a
a re

assumisse, se estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam


com todos os membros do grupo.

Nota-se aqui um fato social distinto da conhecida dominação do branco


sobre o indígena, com a aceitação e adaptação do colono aos ditames da cultura
par

vigente nas aldeias indígenas. Ao aceitar se casar com uma moça indígena o
colono entrava na rede de parentesco dos indígenas (cunhadismo).
Ed

O consenso entre estudiosos da época (PRADO JUNIOR, 1998;


RIBEIRO, 2000) é que o modus operandi da catequese indígena feita pelos
Jesuítas na Amazônia, não se traduziu como um processo de ensino com base
ão

na ética, uma vez que a catequese era feita de forma impositiva sobre os indí-
genas, obrigados a se submeter aos religiosos. O processo de ‘conversão’ era
s

instrumentado pelo medo e pela criação de culpa no discípulo. Assim criou-se


ver

a pedagogia do medo e da chantagem que escondia um sistema totalitário para


controlar consciências em nome da religião. O cristianismo oficial católico,
ao se confrontar com as culturas exóticas, as perseguia, ao invés de procurar
compreendê-las e conviver respeitando suas diferenças (DELUMEAU, 1978).
Não se sabe se essas atitudes dos religiosos eram orientadas pela Igreja, pelo
estado português ou por ambos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 407

A Ocupação da Amazônia Sul Ocidental: Estudiosos, religiosos,


empresários, seringueiros e ribeirinhos mudam a tríplice fronteira
Brasil/Peru/Bolívia

or
Ao longo de sua história de ocupação, desde o final do século XIX e os
primeiros anos do século XX, a Amazônia Sul Ocidental foi ocupada por reli-

od V
giosos, cientistas, colonos e aventureiros de modo mais significativo a partir

aut
dos anos 1840. Segundo Beltrán (s.d.), pessoas de diversas nacionalidades e
profissões fizeram incursões nos rios dessa fronteira boliviana/brasileira: José

R
Agustin Palácios (boliviano), entre 1844 e 1845; José e Francisco Keller (enge-
nheiros brasileiros), de 1868 a 1869; Jesualdo Maccbeti (missionário católico

o
italiano), em 1869; James Orton (médico norte-americano) de 1880 a 1881; Frei
Nicolás Armentia (missionário católico espanhol) desde 1881; António Vaca Diez
aC
(empresário boliviano) de 1881 a 1882; Antônio Labre (militar brasileiro) e Victor
Mercier (empresário boliviano), em 1887; Luigi Balzan (cientista italiano), entre
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1890-1892; José Manuel Pando, (estadista e militar boliviano), de 1893 a1894.


visã
Alguns outros estudiosos brasileiros deixaram registrados resultados de
suas observações científicas e literárias sobre os povos da região: Belarmino
Mendonça (1989 [1907]) e Antônio José Araújo (2003[1907]), descrevem as
povoações ao longo do Juruá; Euclides da Cunha (S.D.;1922), descreve suas
itor

expedições ao Juruá e Purus; Castelo Branco Sobrinho (2005 [1922]), Rego


a re

Barros (1993[1914]) e Craveiro Costa (2005[1920]) descrevem os grupos


humanos no Alto Juruá. Genesco Castro (2002 [1930]) aborda a Revolução
Acreana, liderada por seu irmão, Plácido de Castro.
Segundo Tocantins (1979), alguns viajantes passaram pelo rio Amazonas
par

e seus afluentes desde o tempo do Brasil colônia. Entre eles: Pedro Teixeira
(de 1637 a 1639); João Rodrigues Cametá explorou o Purus em 1852; Manoel
Ed

Urbano da Encarnação (cujo Município “Manoel Urbano”, leva seu nome)


viajou pelo Purus em 1861; O engenheiro João Martins da Silva Coutinho
também subiu o Purus em1862; Romão José de Oliveira subiu o Rio Juruá
ão

em 1852; O Padre Tavestin, viajou pelo Juruá, desde 1850; João da Cunha
Correia apaziguou índios vivendo às margens do Juruá, a partir de 1854.
William Chandless da Royal Geographical Society of London, entre1864
s

e 1866 explorou o Purus e o Juruá. Em sua passagem pelo Alto Juruá numa
ver

expedição científica, em 1867, descreve quão bravos eram os indígenas Nawa,


a ponto de rechaçarem sua expedição e obrigarem-no a retroceder na viagem.
Os engenheiros Lopo Neto e Augusto Hilliges chegaram até ao rio Breu em
expedições também científicas, além da comissão bipartite, encarregada de tra-
tar dos limites entre Brasil e Peru, que chegou até às suas nascentes entre 1904
e 1905 (MENDONÇA, [1907]1989). Em 1927, Mendonça retornou ao Alto
Juruá em missão semelhante, segundo o jornal O Rebate de 31 de julho de 1927.
408

Castelo Branco Sobrinho ([1922]2005) atualiza as migrações ocorridas


para os seringais do Alto Juruá no final do século XIX, citando os italianos:
Henrique Gani, António Brozzo e Domingos Stulzer (vindos da Argentina).
Eles se encontraram em Manaus em 1884, com outros italianos: António
Marcilio e Luiz Paschoal. Eles subiram para o Alto Juruá com os serta-

or
nistas Ismael Galdino da Paixão e Domingos Pereira de Sousa, fixando-se

od V
desde o Estirão dos Nawa até a embocadura do rio Juruá-mirim (CASTELO

aut
BRANCO SOBRINHO, 2005).
Do ponto de vista político, a invasão da Amazônia indígena por portugue-
ses e castelhanos correspondeu à execução de um projeto comum entre estado

R
e sociedade civil, desrespeitando e violentando os nativos. Comerciantes e
religiosos, com a anuência do estado, saíram à procura de ervas (especiarias

o
ou drogas do sertão) para serem vendidas no velho mundo. Gaspar de Carva-
aC
jal, um frei espanhol que atuava no Peru, viajou com Francisco Orellana, em
1540, por ordem de Gonzalo Pizarro, pelo Rio Amazonas (chamado Marañon

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no Perú), e observou a existência de diversos povos indígenas, em constante
guerra entre si e hostis aos viajantes, ao longo do rio (PESSOA, 2007). Essas
visã
invasões e viagens exploratórias tinham motivos mercantilistas, religiosas e
de caráter científico. Euclydes da Cunha comenta:
itor

A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização dis-


a re

tante. Desde os primeiros tempos da Colônia as mais imponentes expedições e


solenes vizitas pastoraes rumavam de preferência às suas plagas desconhecidas.
Para lá os mais veneráveis bispos, os mais garbozos capitães generaes, os mais
lúcidos cientistas. E do amanho do solo que se tentou afeiçoar a exóticas espe-
ciarias, à cultura do aborígene que se procurou erguer aos mais altos destinos,
par

a metrópole longínqua demaciara-se em devaneios à terra que sobre todas


lhe compensaria o perdimento da Índia portentoza (CUNHA, 1922, 17, 18).
Ed

A ocupação das terras acreanas por brasileiros do Nordeste, resultou no


movimento de reivindicação social de trabalhadores da borracha de seringueira
ão

(CASTRO, 2002 [1930]; MARTINELLO, 1988), chamado de Revolução


Acreana, influenciado por alguns fatores geopolíticos, tecnológicos e sociais:
1) O desenvolvimento de tecnologias com o uso da goma elástica da
s

seringueira na fabricação de pneumáticos e outros usos industriais feita pelos


ver

europeus com essa matéria prima que já era usada pelos indígenas. Uma
amostra desse produto levado para o Jardim Botânico de Paris, no final século
XVIII, resultou na descoberta de sua utilidade na fabricação de pneus, aperfei-
çoado pelo inglês Goodyear. O produto despertou a corrida de exploração da
Amazônia, iniciada no estado do Pará. Após os anos 1870, a exploração da bor-
racha (hevea brasiliensis) se espalhou por toda a Amazônia (PESSOA, 2007).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 409

2) Havia uma barreira geográfica natural a dificultar que a Bolívia ocu-


passe a região do Acre: O Exército boliviano se concentrava na Cordilheira
dos Andes, em suas principais cidades: La Paz, Sucre, Cochabamba, Oruro
e fora da Cordilheira, Santa Cruz de la Sierra. Sua ligação com a Amazônia
boliviana era de difícil acesso. As dificuldades da Bolívia se traduziam em

or
facilidades para os brasileiros, pelo acesso das navegações para os mais lon-

od V
gínquos afluentes dos rios da região. É verdade que haviam outras dificuldades

aut
para todos que se aventurassem em adentrar a floresta e colonizá-la. Eram
fatores relacionados à saúde (pragas, doenças, perigos da própria floresta, etc.).

R
Os resultados mostram que os brasileiros foram mais persistentes e objeti-
vos. Em 1882 o empresário cearense Neutel Maia fundou o seringal Volta da

o
Empresa, às margens do rio Acre, que se tornaria a referência de fundação para
a cidade de Rio Branco. Outros seringalistas se estabeleceram nas adjacências
aC
em seguida, tornando a região do Vale do Acre crescentemente povoada por
seringalistas e seringueiros vindos do Nordeste do Brasil.
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J. Valerie Fifer, no texto: “Investigaciones y Testimónios Contemporáneos,


visã
el sector Norte: rutas al Atlántico via Amazonas – relaciones de Bolívia con
Brasil y Peru”, citando Herrera, afirma que por volta de 1827 já havia aventu-
reiros, empresários bolivianos, peruanos e brasileiros navegando nos rios Beni,
itor

Mamoré e Madeira, e conclui que os brasileiros foram mais promissores em


seus intentos. Penso que um dos motivos para essa vantagem brasileira esteja
a re

na hidrografia, já que os rios no lado brasileiro são mais largos e profundos,


enquanto que na Bolívia e Peru, mais rasos e estreitos, onde estão suas cabe-
ceiras. Fifer (s.d., p. 270-272) discute essa questão nos seguintes termos:
par

En notable contraste con la infiltración de los emprendedores brasileños a


ocidente, las exploraciones de los bolivianos y peruanos en las regiones de
Ed

la savana y de la selva lluvosa de oriente fueron mui poco importantes: Se


organizaron unas cuantas expediciones a las regiones de Beni y del Mamoré,
y en general terminaron en absoluto fracaso. Circulaban siniestros rumores
ão

sobre los peligros que acechaban en la frontera norte. “A lo largo del curso
de estos rios (el bajo Mamoré, el Beni y el Madera) se cree que residen
muchos salvajes de los que la ciencia cierta poco se sabe” (HERRERA
s

[1827], apud FIFER, s.d.)


ver

3) A descoberta de imensas florestas de seringueiras de qualidade superior


nas terras altas na Amazônia Sul ocidental atraiu a atenção de trabalhadores
de diversas regiões da América do Sul para a Amazônia brasileira, boliviana e
peruana. Os brasileiros nordestinos ocuparam as bacias dos rios Juruá e Purus,
até então uma terra desconhecida dos governos: do Brasil, do Peru e da Bolívia.
Havia pouca gente para muita terra. Escritores das ex-colônias espanholas e
410

brasileiros descreveram a região, abordando tanto os nativos quanto os colonos.


Referindo-se à consciência que os dirigentes peruanos tinham de seus domínios
nos rios Purus e Juruá, além da imensa dificuldade de exploração da região,
Euclydes da Cunha, descrevendo as terras do Brasil, assim se expressa:

or
A terra, indivisa e sem fins, não se abria ao exercício das atividades,

od V
firmando-se a correlação entre as suas energias desencadeadas pelas

aut
culturas e as forças sociais consecutivas. Era uma inexpressiva e vasta
propriedade. Não era ainda um domínio de Espanha, ou prolongamento
ultramarino, onde ela se refugiasse naquele ameaçador entardecer da

R
Idade Média, carregando o seu velho fanatismo católico, a sua lealdade
feroz e a sua ferocidade cavalheiresca, abalados aos primeiros fulgores

o
da Reforma. Era um feudo. Um donativo papal a um rei. O maior dos
aC
latifúndios sancionado por uma bula. Uma sesmaria que se explorava
de longe, desastradamente, de dentro do Escorial, e mandada por um
magnífico feitor, que era a sombra passiva do soberano longínquo, o

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Vice-Rei (CUNHA, S. D. p. 41).
visã
Cunha (1922, 1923, S.D.), classifica a Amazônia como o deserto civi-
lizado. De fato, até os anos 1840 a região tinha apenas indígenas de dois
distintos troncos linguísticos. Nenhum “branco” residia na área. Mas, após
itor

1887, a população do Acre já era de quarenta a sessenta mil colonos, todos


a re

vivendo do extrativismo vegetal. Após os anos 1970, o Acre vem passando


por uma transformação: De economia com base no extrativismo vegetal da
borracha, tornou-se produtor e exportador de gado.
par

Considerações finais
Ed

Como podemos avaliar a situação dos povos da floresta (indígenas


e colonos) no século XXI? Os Estado Nacionais continuam a dar pouca
importância a esses povos. Os moradores da floresta hoje, ou são aldeados
ão

ou pequenos/médios produtores rurais. Em algumas localidades há escolas


indígenas e rurais, além de postos de saúde. Há algumas ações positivas. A
s

Universidade Federal do Acre e Governo do Estado promoveram cursos supe-


ver

riores para os professores indígenas e rurais. Mas, a maioria desses povos,


cerca de 70%, cansados de esperar em vão por políticas públicas de fixação
permanente no campo, migraram para as periferias das cidades, onde vivem
sem condições mínimas básicas. Rio Branco/Ac viu sua população saltar de
84.845 em 1970 para 336.038 em 2010. Os indígenas no Acre aumentaram
de 8.009 no ano 2000, para 15.921 em 2010. Os autodeclarados indígenas
residentes em Rio Branco eram 443 em 2000 e se tornaram 711 em 2010
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 411

(Cidades.ibge.gov.br; IBGE, 2012). Novas migrações indígenas continuam


em pleno século XXI. A capital do Acre, desde 2019, convive com migrantes
indígenas Warao da Venezuela. Eles moram em cortiços alugados e para se
manterem, pedem esmolas nos semáforos da cidade.
Há paz entre os povos da floresta. Com exceção dos indígenas total-

or
mente isolados, estes povos (indígenas, brancos, negros e mestiços), nas

od V
cidades ou no campo, estão hoje mais próximos uns dos outros porque, com

aut
frequência se tornam parentes através de casamentos interétnicos, trabalham
em atividades comuns e usam as mesmas tecnologias de comunicação. Eles

R
querem fazer parte do mundo globalizado com internet disponível para
todos. Eles querem cidadania com escolas, assistência social e saúde de

o
qualidade para seus filhos. Enfim, os povos da Amazônia Sul Ocidental são
multiculturais e multiétnicos.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
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Ed
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ver
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par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
O ENSINO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA:
uma proposta decolonial para a educação básica

or
Alerrandson Afonso Melo Pinon
Luiz Augusto Pinheiro Leal

od V
aut
Introdução

R
O filósofo congolês Valentin Yves Mudimbe argumentou que desde o
início do colonialismo na África, por volta do final do século XIX e início do

o
XX, se desenvolveram narrativas históricas que se caracterizavam por ter um
aC
propósito de inferiorizar o passado africano (MUDIMBE, 1988). Segundo seu
argumento, o eurocentrismo trata-se de um modelo que domina o nosso pen-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

samento e que, dada a sua projeção à escala mundial, por via da expansão do
capitalismo e do fenômeno colonial, “marca a cultura contemporânea, impon-
visã
do-se como um modelo fortemente condicionado para alguns e de aculturação
forçada para outros” (Idem, p. 8). Dessa forma, vemos que o filósofo identificou
no colonialismo europeu o lugar epistemológico da invenção de uma África
itor

submissa. O caminho para desfazer as ideias inferiorizadoras e marginalizantes,


a re

que foram impostas à África, seria a descolonização do conhecimento. Assim,


desfazer as ideias inferiorizadoras e marginalizantes que foram impostas ao
continente seria um primeiro passo para a aprendizagem crítica.
Um segundo passo de aprendizagem seria o rompimento da ideia de que
a África é um espaço homogêneo. Quanto a isso, o filósofo ganês Kwame
par

Anthony Appiah tem muito a nos dizer. Ele é um importante crítico das nar-
rativas pan-africanistas articuladas em torno do conceito de raça. Para o autor,
Ed

a África homogênea é uma invenção da colonização, sendo a identidade afri-


cana, de um modo amplo, algo de difícil definição visto que para ele “não
importa o que os africanos compartilhem, não temos uma cultura tradicional
ão

comum, línguas comuns ou um vocabulário religioso e conceitual comum”


(APPIAH, 1997, p. 50). Dessa forma, as reflexões de Appiah nos conduzem
s

a reconhecer e valorizar a diversidade cultural da África, onde os africanos,


ver

muito além de ser um grupo social com características baseadas em aspectos


físicos e biológicos estruturados na ideia de raça, passam a ser entendidos
como grupos sociais que aprendem uns com os outros e com a humanidade,
em um diálogo intercultural sem etnocentrismos. Segundo o referido autor:

Admitir que a África possa ser uma identidade utilizável é não esquecer
que todos pertencemos a comunidades diversificadas, com seus costumes
locais; é não sonhar com o estado africano único e esquecer as trajetórias
418

completamente diferentes das inúmeras línguas e culturas do continente.


“Africano” certamente pode ser uma insígnia vital e capacitadora; mas,
num mundo de sexos, etnicidades, classes e línguas, de idades e famílias,
profissões, religiões e nações, mal chega a surpreender que haja ocasiões
em que ela não é o rótulo que precisamos (APPIAH, 1997, p. 251).

or
O intelectual camaronês Achille Mbembe, também lançou críticas aos

od V
discursos nativistas que caracterizam a África como um espaço homogêneo

aut
e também ao conceito de raça. Na obra “Crítica da Razão Negra” Mbembe
argumentou que foi a modernidade eurocêntrica que produziu a autoficção

R
que criou a sinonímia negro e raça (MBEMBE, 2018). Para o autor, tanto o
conceito de raça como o conceito de ser negro, não passam de invenções do

o
colonialismo que acabaram sendo impostas aos colonizados em uma estratégia
de subjugação onde tanto o negro como a África são inferiorizados a partir
aC
de adjetivos como primitivos, selvagens, e incapazes de produzir história por
representarem ainda um estado de natureza:

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
A África de um modo geral, e o negro, em particular, eram apresentados
como os símbolos acabados dessa vida vegetal e limitada. Figura excedente
em relação á qualquer figura, e, portanto, fundamentalmente infigurado, o
negro em particular era o exemplo consumado desse ser-outro, vigorosa-
itor

mente forjado pelo vazio e cujo negativo havia penetrado todos os momen-
a re

tos da existência – a morte do dia, a destruição e o perigo, a inominável


noite do mundo. Hegel dizia a propósito de tais figuras que eram estátuas
sem linguagem nem consciência de si (MBEMBE, 2018, p. 29-30).

Dessa forma, a partir das reflexões de Mbembe, foi possível perceber que
par

as visões negativas sobre a África ainda são permanências das narrativas histó-
ricas que foram produzidas pela ciência eurocêntrica. Tais narrativas geraram
Ed

a impressão de que o continente africano e sua população experimentaram


uma história sem variação e sem diversidade. Isso nos leva a refletir sobre “os
perigos de uma História única”, tema que foi abordado pela escritora feminista
ão

nigeriana Chimamanda Adichie, em 2009. Em uma conferência, proferida no


Reino Unido, a escritora relatou sua experiência enquanto mulher africana
que cursou faculdade nos Estados Unidos. Evidenciou como sentiu na pele os
s

estereótipos e preconceitos inerentes à literatura ocidental tradicional. Estas


ver

geraram representações homogeneizadoras, sobre o continente africano, e for-


mavam mentalidades e generalizações acerca da África. O relato da escritora
nigeriana exemplifica bem a questão:

Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela perguntou


onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa quando
eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o inglês como sua língua oficial.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 419

Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou de minha “música tribal”
e, consequentemente, ficou muito desapontada quando eu toquei minha
fita da Mariah Carey. (Risos da plateia) O que me impressionou foi que:
ela sentiu pena de mim antes mesmo de ter me visto. Sua posição padrão
para comigo, como uma africana, era um tipo de arrogância bem-inten-

or
cionada, piedade. Minha colega de quarto tinha uma única história sobre a
África. [...] Se eu não tivesse crescido na Nigéria e se tudo que eu conhe-

od V
cesse sobre a África viesse das imagens populares, eu também pensaria

aut
que a África fosse um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas
incompreensíveis, lutando guerras sem sentido, morrendo de pobreza e
AIDS, incapazes de falar por elas mesmas e esperando serem salvos por

R
um estrangeiro branco e gentil (ADICHIE, 2009, p. 16-17).

o
Com visível ironia, a autora consegue evidenciar com a perspectiva de uma
aC
visão única acerca da história pode limitar a compreensão dos sujeitos no que diz
respeito mesmo a sua própria história. Portanto, o terceiro passo metodológico
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de aprendizagem definido para nossa ação no ensino básico foi romper com
a perspectiva da História única como instrumento comum de conhecimento.
visã
Ela é que caracterizaria o continente africano como um lugar comum para a
pobreza, guerras, doenças, animais selvagens, florestas e desertos, “esperando
serem salvos por um estrangeiro branco e gentil”, como ironiza a autora.
itor

A importância do ensino de História da África


a re

O autor Guilherme Oliveira Lemos chamou a atenção para o fato de que


é preciso romper com algumas ideias preconcebidas no momento de abordar
a História da África e dos africanos. Não podemos deixar prevalecer pensa-
par

mentos racialistas enraizados no contexto iluminista do século XVIII que “[...]


coloca as populações negras em seu espaço natural, o continente africano,
Ed

gerando uma ideia que associa naturalmente negro e África” (LEMOS, 2015,
p. 157). Nesta perspectiva, a África seria um lugar incapaz de produzir Histó-
ria, um continente não histórico. Segundo essas formulações historiográficas,
ão

“[...] a História não poderia se ocupar de um continente sem um passado docu-


mentado e povoado por pessoas que não produziam mudanças significativas
no tempo” (Idem, p. 158). Daí que o passado da África somente poderia ser
s

vislumbrado a partir da presença europeia, cabendo a Antropologia o estudo


ver

dos “selvagens” ou “primitivos”.


Diante desse quadro, alguns avanços têm ocorrido no Brasil em rela-
ção à legislação referente ao ensino de História da África e dos africanos.
A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 1998, os
estudos sobre a África, os africanos e seus descendentes foram figuras de
destaque no eixo pluralidade cultural.
420

Em 2003, foi publicada a Lei nº 10.639/2003, que estabeleceu a obriga-


toriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e africana nas esco-
las do país, e depois, em 2004, foram divulgadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na perspectiva de regulamen-

or
tar a instrumentalização da Lei 10.639/2003. Já em 2008, veio à tona a Lei

od V
nº 11.645/2008 que reafirmou a obrigatoriedade do ensino de História e cultura

aut
afro-brasileira, fazendo o acréscimo do elemento étnico indígena.
Como nos explica Abreu e Matos (2008, p. 9), as legislações posteriores
à Lei 10.639/2003 realizaram uma mudança de foco na medida em que “[...]

R
não se referem apenas à pluralidade cultural, mas se propõem a desenvolver
diretamente políticas de reparação e de ação afirmativa em relação às popula-

o
ções afrodescendentes”. Precisamos nos atentar também para o que orientam
aC
as determinações das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações
Étnico-Raciais, onde se chama a atenção para o fato de que:

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Precisa o Brasil, país multiétnico e pluricultural, de organizações escolares
visã
em que todos se vejam incluídos, em que lhes seja garantido o direito de
aprender e de ampliar conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si mes-
mos, ao grupo étnico-racial a que pertencem e a adotar costumes, ideias e
itor

comportamentos que lhes são adversos (BRASIL, 2004).


a re

O reconhecimento da diversidade na composição étnica e cultural do


Brasil garantiu o direito de uma formação escolar pautada nas diferentes
especificidades étnico-culturais da população brasileira. Tratava-se de uma
proposta ainda inédita, pois predominava um discurso positivo da mestiçagem
par

como constituidora da nacionalidade brasileira, sempre negando a diversi-


dade. Ainda segundo o texto das Diretrizes Curriculares para a Educação das
Ed

Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e cultura afro-brasileira:

As escolas e seus professores têm que desfazer a mentalidade racista e


ão

discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando


relações étnico-raciais e sociais e desalienando processos pedagógicos.
Temos, pois pedagogias de combate ao racismo e discriminações por criar
s

(BRASIL, 2004, p. 15).


ver

É justamente a construção de “pedagogias de combate ao racismo e a


discriminação” que pretendemos desenvolver nesta proposta. Não de modo
único, mas experimental. Acreditamos que o espaço escolar é de fundamental
importância para formar o pensamento histórico crítico de nossos discentes. É
através do conhecimento construído no espaço escolar que poderemos realizar
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 421

um trabalho de intervenção pedagógica voltado para educar para as relações


étnico-raciais, gerando narrativas históricas desalinhadas ao eurocentrismo.
Novamente citando as diretrizes:

A escola enquanto instituição social responsável por assegurar o direito à

or
educação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar politicamente

od V
contra toda e qualquer forma de discriminação. A luta pela superação do

aut
racismo e da discriminação racial é, pois tarefa de todo e qualquer edu-
cador, independente do seu pertencimento étnico-racial, crença religiosa
ou posição política (BRASIL, 2004, p. 16).

R
A responsabilidade pela superação do racismo e da discriminação é afir-

o
mada como tarefa “de todo e qualquer educador, independente do seu per-
aC
tencimento étnico-racial, crença religiosa ou posição política”. Por isso, não
é recomendável que se espere medidas vindas apenas por parte do Estado,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mas toda a sociedade passa a ter essa responsabilidade. Aliás, considerando


que o Estado é uma extensão do patriarcado, cabe construirmos alternativas
visã
de mobilização popular que deem autonomia de ação aos diversos grupos
populares e educacionais. Em particular, nós, os educadores, temos essa res-
ponsabilidade. Assim, propostas inovadoras que visem combater a discrimi-
itor

nação e o racismo devem ser criadas por professores para serem aplicadas
a re

no espaço de ensino. Entendemos que tal ação seja perfeitamente possível


de ser desenvolvida no espaço escolar a partir de um plano de intervenção
pedagógica descolonizador. A oferta de conteúdo, nas aulas de História, pode
dar prioridade ao ensino da História da África e da cultura afro-brasileira. Tal
intervenção contribuiria para uma educação pautada em temáticas de relações
par

étnico-raciais e consideraria a diversidade nacional.


Ed

A ação decolonial necessária para a educação básica


ão

Um conceito fundamental para refletir sobre estratégias de descoloni-


zação na esfera da produção e difusão de narrativas históricas é o de deco-
lonialidade. Na concepção do grupo de pensadores latino-americanos que
s

criaram o conceito de decolonialidade, a linha de pensamento decolonial


ver

pretende questionar radicalmente as formas de opressão e injustiças expres-


sas nas relações de poder entre a classe dominante e os grupos que foram
historicamente inferiorizados e subalternizados pela ação colonialista euro-
cêntrica. Segundo explicou o educador João Colares da Mota Neto, apostar
no conceito de decolonialidade em relação a projetos educacionais, focados
nas classes populares, é algo muito promissor. O conceito surgiu como uma
necessidade de resposta a questões concretas:
422

Deveu-se ao seu potencial crítico de denúncia dos distintos padrões de


poder nascidos com a modernidade/colonialidade, como o capitalismo,
o racismo, o patriarcado, a intolerância contra religiões minoritárias e
sexualidades reprimidas, o preconceito contra sujeitos, saberes e culturas
que se desviam da forma hegemônica de ser, pensar, sentir e agir (MOTA

or
NETO, 2016, p. 18).

od V
A perspectiva decolonial é pensada como uma forma de ação contra

aut
hegemônica a um sistema imposto historicamente. A forma hegemônica de ser,
pensar e agir teve suas diretrizes determinadas pelo colonialismo eurocêntrico

R
que resultou naquilo que vamos definir como colonialidade do poder. Vale
reiterar, que a colonialidade se trata de um padrão de poder que permaneceu

o
mesmo após o fim da situação colonial e que entre suas consequências estão
aC
o racismo, a desigualdade, a fome, o machismo, e várias outras formas de
opressão que se configuram como uma permanência do colonialismo. Já o
pensamento decolonial consiste em:

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
Um conjunto de práticas epistêmicas de reconhecimento da opressão, mas,
sobretudo, como um paradigma outro de compreensão do mundo, inte-
ressado em revelar e não esconder, as contradições geradas pela moder-
nidade/colonialidade, em diálogo crítico com as teorias europeias, mas,
itor

elaborado, fundamentalmente, a partir de uma perspectiva não eurocên-


a re

trica de mundo, atenta às realidades vividas pelas populações periféricas


e aos seus conhecimentos, às suas culturas, e às suas estratégias de luta
(MOTA NETO, 2016, p. 19).

Portanto, propor uma metodologia de ensino descolonizadora, significa


par

justamente colocar na ordem do dia àquelas narrativas históricas que sempre


foram silenciadas ou estiveram em subalternidade nos currículos escolares,
Ed

como é o caso da História da África. Contudo, o alcance dos objetivos de


aprendizagem pretendidos precede de uma ação contestadora do currículo
tradicional. Acreditamos que seja possível alcançar os objetivos de aprendi-
ão

zagem multiétnica a partir de uma ação insurgente de cunho decolonial. Mas,


do que se trata essa ação insurgente? Na prática, a expressão significa uma
s

inversão de prioridades nas escolhas de conteúdos curriculares. Ao invés de


ver

priorizar os conteúdos tradicionais eurocêntricos para as aulas de História,


pode ser dada a atenção à História da África. Por exemplo, sempre costuma-
mos iniciar as aulas do sétimo ano do ensino fundamental a partir do estudo
da Idade Média com foco na Europa Ocidental e no Feudalismo. Na prática
insurgente a prioridade seria o estudo dos Reinos e impérios africanos que
possuíam um desenvolvimento próprio em relação ao período medieval. Da
mesma forma, ao invés de focar a relação África-Brasil apenas no estudo da
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 423

escravidão negra, a prioridade seria dada ao estudo da História da África e


da diáspora negra. Com isso, haveria a possibilidade de alcançar os objetivos
de aprendizagem pretendidos. Contudo, um diagnóstico sobre a escola e seus
acervos de ensino deveria ser incluído na metodologia de ensino, visando
levantar as condições concretas de formação na escola.

or
od V
A aplicação da proposta na educação básica

aut
Uma experimentação desta ação insurgente decolonial foi aplicada em

R
uma turma noturna de quarta etapa da Educação de Jovens e Adultos – EJA,
vinculada à escola estadual Américo Souza de Oliveira da Secretaria Esta-
dual de Educação do Estado do Pará – SEDUC, no ano letivo de 2019. A

o
referida escola se localiza no bairro do Tapanã, em Belém do Pará, sendo
aC
que no ano letivo em questão a instituição não dispunha de biblioteca e nem
de livros didáticos.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O instrumento de pesquisa utilizado para entender como os alunos


visã
pensam historicamente a África e suas relações com o Brasil foi intitulado:
“Questionário de pesquisa diagnóstica: os saberes históricos sobre a África
e os africanos”. Essa pesquisa realizou-se a partir de uma atividade que foi
realizada no início do ano letivo de 2019, na qual a partir de um questionário
itor

com três perguntas, que foi aplicado em sala de aula, os alunos responderam
a re

perguntas relacionadas à História da África, ao continente africano e suas


relações com o Brasil. As perguntas do questionário foram de cunho pessoal,
ou seja, abertas, exigindo respostas das próprias palavras dos participantes, em
que eles deveriam recorrer apenas aos seus conhecimentos prévios. Segundo
par

Vieira (2009, p. 65), as questões abertas pressupõem respostas espontâneas,


“[...] isto é, dadas das próprias palavras do respondente” enquanto que as
Ed

questões fechadas são “[...] objetivas oferecendo alternativas de resposta”.


Dessa forma, segundo a classificação de Gil (2008, p. 08), o questionário
formulado na referida pesquisa se enquadra no tipo aberto. O questionário
ão

teve a finalidade de ser objetivo e claro, com perguntas diretas que foram
respondidas em sala de aula. Em média, os alunos levaram de quinze a trinta
minutos para responder as perguntas: “O que você sabe ou já ouviu falar
s

sobre a África?”; “Você acha que a África tem alguma relação com o Brasil?”;
ver

“O que você estudou (leu ou assistiu aula) sobre a História da África e dos
africanos na sua escola?”.
A principal constatação foi o predomínio de representações negativas
sobre o continente africano. Na maioria das narrativas colhidas, os alunos
caracterizavam a África como um lugar pobre, com muita fome, miséria,
cercado de florestas (ou desertos) e animais exóticos. Além disso, surgia o
costumeiro reducionismo da História da África à História da escravidão.
424

Foi a partir destas constatações que elaboramos e disponibilizamos um


texto didático intitulado “Conhecendo o continente africano: as riquezas e a
diversidade cultural”.1 O objetivo deste recurso didático foi quebrar estereó-
tipos e representações pautadas em ideias preconcebidas sobre a África e os
africanos, mostrando aos discentes outras “histórias” sobre o continente e sua

or
população. A elaboração do texto didático foi pautada na seleção de livros

od V
paradidáticos que abordavam a diversidade humana e cultural do continente

aut
africano. Os livros pesquisados foram: “A África está em nós: História e cul-
tura afro-brasileira”, do autor Roberto Benjamin; “África e Brasil africano”,
da autora Marina de Melo e Souza; e “Sociedade em construção: História e

R
cultura afro-brasileira”, organizado por J. A. Tiradentes. Também serviram de
base para a organização do texto didático os livros: “Origens africanas do Bra-

o
sil contemporâneo: Histórias, línguas, culturas e civilizações”, de Kabengele
aC
Munanga; e os dois volumes da “Síntese da coleção História Geral da África”,
editadas por Valter Roberto Silvério. Estes livros estão, em sua maioria, dis-

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poníveis na internet e podem ser acessados pelos discentes. A estratégia de
escolha considerava a possibilidade de consultas futuras.
visã
A aplicação da metodologia em sala de aula foi feita pelo professor
Alerrandson Pinon e orientadas pelo professor Augusto Leal. Conforme as
anotações de Pinon, podemos observar os principais procedimentos realizados
itor

a partir da utilização do texto didático “Conhecendo o continente africano: as


a re

riquezas e a diversidade cultural”:

Na segunda-feira, dia dezenove, trabalhei com a turma 3º etapa 02; na


terça-feira, foi a vez da 3ª etapa 01; e na quarta finalizei com a 4ª etapa 02.
De uma maneira geral, as questões suscitadas pelo texto didático levaram
par

os alunos a uma profunda reflexão sobre aquilo que eles entendiam sobre
África e o continente africano. Por muitos momentos, durante as aulas,
Ed

os alunos interrompiam minhas explanações para manifestar suas atitudes


de surpresa e espanto pelas informações que estavam recebendo sobre a
África. Nenhum aluno, como de praxe, conseguiu associar a fotografia 01
ão

referente à cidade de Luanda, capital de Angola, com o continente africano.


A maioria das respostas sempre associava a foto de Luanda a uma cidade
europeia ou do centro sul e nordeste brasileiro.
s
ver

1 Em relação aos conteúdos abordados, buscamos ressaltar alguns pontos elementares, mas ainda
desconhecidos por boa parte dos discentes. Em síntese, informamos, através do texto, que: a África é um
continente muito grande, com mais de 30 milhões de quilômetros quadrados, que cobre 20,3% da área total
da terra firme do planeta. Que o continente é dividido em mais de 54 países, onde se falam mais de 2000
idiomas, sendo povoado por quase 800 milhões de habitantes, sendo o segundo continente mais populoso
do mundo ficando atrás apenas da Ásia. O texto também didático evidenciou as potencialidades econômicas
da África e a existência de grandes metrópoles como Lagos na Nigéria e a cidade do Cairo no Egito. Além
disso, o texto didático forneceu informações sobre o clima diverso, nas diferentes regiões do continente, e
revelou que o Islamismo e o Cristianismo são religiões importantes no continente.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 425

Após minhas explicações, realizei um debate com os discentes sobre as


várias representações do continente africano consolidadas em nossa cons-
ciência histórica, e indaguei os discentes sobre o referencial de formação
de suas consciências históricas. Parte deles respondeu ter aprendido algo
sobre a África nos livros didáticos e no próprio espaço escolar, através de

or
aulas de outros professores, enquanto que muitos relataram que formaram
seus pensamentos históricos sobre o continente africano através da tele-

od V
visão e por assistirem filmes (PINON, 2020, p. 128).

aut
Através da aplicação de atividades de consulta aos discentes, para avaliar

R
os resultados de aprendizagem, demonstrou que foram gerados outros sentidos
históricos sobre a História da África. A partir deles foi possível diagnosticar: o

o
aprendizado sobre a diversidade cultural e humana do continente africano; a gera-
aC
ção de sentimentos de valorização e reconhecimento das influências africanas na
cultura brasileira; a expressão do sentimento de orgulho de ter descendência afri-
cana; a demonstração de repúdio às formas de discriminação e preconceito que são
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endereçados aos afrodescendentes e à cultura africana; a valorização e o respeito


visã
em torno da História da África; o abandono da perspectiva da História única que
caracteriza a África como um lugar de miséria e pobreza; e o desalinhamento em
relação ao reducionismo da História dos africanos à História da escravidão. Em
itor

síntese, foi possível constatar que as mudanças de sentidos históricos em relação


a re

às atividades iniciais sobre os conhecimentos prévios dos discentes a respeito da


História da África foram significativas, demonstrando a viabilidade do alcance
dos objetivos de aprendizagem delimitados inicialmente.
Tal resultado se enquadra no que a pesquisadora Catherine Walsh (2009)
propôs como pedagogias decoloniais. Estas, por princípio, devem colaborar para
par

o distanciamento da epistemologia eurocêntrica a partir da criação de estratégias


de ação centradas na visão de mundo daqueles que foram negligenciados e infe-
Ed

riorizados pela colonialidade do poder e seus produtos. Segundo Walsh:

a pedagogia ou as pedagogias decoloniais estariam construídas e por construir


ão

em escolas, colégios, universidades, no seio das organizações, nos bairros,


comunidades, movimentos e na rua, entre outros lugares. [...] São aquelas
s

pedagogias que integram o questionamento e a análise crítica, a ação social


transformadora, mas também a insurgência e intervenção nos campos do
ver

poder, saber e ser, e na vida; aquelas que animam uma atitude insurgente,
decolonial e rebelde (WALSH, 2009, p. 27).

A escola é um espaço para a promoção de ações decoloniais. O ensino de


história da África, no ensino básico, consiste em uma estratégia fundamental para
romper a colonialidade do saber existentes nos espaços escolares. Realizar um
diagnostico escolar sobre o ambiente de estudo e, depois, comparar os saberes
426

escolares antes e depois da intervenção, auxiliam na avaliação do processo de


intervenção na escola. Entendemos que a produção de narrativas históricas desco-
lonizadas, como a que apresentamos, precede de uma atitude rebelde e insurgente
de questionamento aos currículos escolares eurocêntricos. Os educadores, com
conhecimento, criatividade e boa vontade, podem realizar projetos decoloniais.

or
Com tais procedimentos, a escola pode se tornar um instrumento real de libertação.

od V
aut
Considerações finais

R
Os objetivos deste artigo consistiram em sugerir estratégias para se com-
bater as desigualdades raciais, desfazer estereótipos e representações pautadas
em ideias preconcebidas sobre a África e os africanos; proporcionar conheci-

o
mentos sobre a diversidade cultural do continente africano e de sua população,
aC
compreendendo a África como um entrelaçamento de diversas culturas e identi-
dades; desfazer aprendizados equivocados sobre o continente africano; romper

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


com a perspectiva da História única, onde a África seria sempre representada
como um espaço marcado por elementos genéricos e negativos; e a superação
visã
do reducionismo da História da África à História da escravidão.
A metodologia de ensino proposta teve o objetivo de contribuir para
a busca de uma sociedade mais humana e menos desigual. A prática de
itor

uma pedagogia decolonial foi importante no intuito de difundir narrativas


a re

históricas descolonizadas, direcionando à uma atitude insurgente nas esco-


lhas daquilo que foi ensinado. Dessa forma, na contramão dos currículos
oficiais, aplicamos uma metodologia de ensino de História pautada na
produção e difusão de narrativas históricas escolares desalinhadas do viés
par

eurocêntrico tradicional.
Em síntese, buscamos demonstrar, aos discentes da escola básica, outras
Ed

histórias sobre a África e os africanos. Revelando histórias “invisíveis”. A


estratégia de ensino descrita foi ousada e ambiciosa. Contudo, não custa nada
sonhar em alcançar uma sociedade onde superaremos problemas como o
ão

racismo e as discriminações de toda a espécie. Isso perpassa por ressignificar


as formas de ensino e aprendizagem em nossas escolas. Acredito que com a
criação de práticas pedagógicas decoloniais, é possível vislumbrar um futuro
s

onde se concretize um aprendizado histórico que eduque para as relações


ver

étnico-raciais, levando nossos discentes a reconhecerem e valorizarem a


ancestralidade africana na composição dos saberes e identidades afro-brasi-
leiros. É preciso reconhecer como a África está fortemente ligada ao Brasil
e à formação da população e da cultura brasileira. O contrário também se
aplica. Afinal, o Brasil é fruto da diáspora africana. O desafio é grande. Pre-
cisamos seguir pesquisando, ensinando e repensando nossas metodologias
para o ensino de história na educação básica.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 427

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ão

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s
ver
(UMARI)ZAL:
resistência quilombola em
proximidade, Baião/PA

or
od V
Oberdan da Silva Medeiros

aut
Introdução

R
Este capítulo analisa o processo de constituição da liderança negra e práticas

o
de resistências em proximidade comunitária, metaforicamente como processo de
aC
resistência, como fator educativo na Comunidade Quilombola de Umarizal Beira,
Baião-Pará. Problematizamos os processos excludentes da violência colonial
contra a população afrodescendente escravizada que culminaram na produção do
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racismo na organização política e social da sociedade brasileira. Dando ênfase na


visã
história de vida da liderança quilombola, sua formação identitária enquanto fator
educativo e prática de resistência ao racismo junto à comunidade local. Utilizamos
os aportes teóricos e metodológicos pós-coloniais (decolonial) (BHABHA, 2010;
ESCOBAR, 2005; HALL, 2009) dialogando com a noção de Afro-descendência
itor

(OLIVEIRA FILHO, 1997; CUNHA JÚNIOR, 2005). Foi realizado um trabalho


a re

de campo na comunidade através de entrevista com o presidente da Associação


Quilombola local, com recorte analítico na figura deste sujeito e sua narrativa
de líder. A pesquisa visibiliza pensamentos-outros negados e destituídos desde o
processo colonial. O resultado das análises indica que a constituição da liderança
par

quilombola encontra-se pautada em processos culturais e políticos constituintes


das Afrodescendências de suas (re)existências contra o racismo e todas as mazelas
Ed

sociais, sendo a educação um importante instrumento contribuinte do processo


de constituição de suas identidades étnico-raciais quilombolas.
ão

Caminhos metodológicos da pesquisa

Discutimos o processo de constituição da liderança1 quilombola e de práti-


s

cas de resistências como fator educativo na comunidade quilombola de Umarizal


ver

Beira, Baião-Pará2. Terra de jovens, crianças e adultos que herdaram a condição

1 A categoria liderança será trabalhada de forma singular devido ao foco de análise centrado na figura do Sr.
Narciso Vieira como ponto de partida do depoimento.
2 Este trabalho é um desdobramento das análises e trabalho de campo obtidos ao longo da pesquisa de
mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Pará
Campus Tocantins/Cametá sob o título “EDUCAÇÃO QUILOMBOLA: Constituição da Liderança e Práticas
de Resistências na Comunidade Quilombola de Umarizal Beira, Baião-Pará”.
430

humana deixada pelos seus ascendentes, escravizados no processo de coloniza-


ção. A perspectiva decolonial se mostra na medida que pretende dar visibilidade
para práticas educativas e políticas culturais de identidade da comunidade em
questão, que se fundam na tradição e na relação com a sociedade mais ampla.
Um fato que demonstra o teor decolonial é a forma como apresentamos as

or
falas da liderança, que em sentido da produção deste trabalho é apresentada no

od V
corpo principal do texto onde diferenciamos apenas a fonte utilizada (cursiva)

aut
para dar destaque e maior visibilidade para este sujeito. Esta metodologia de
exposição da fala dos sujeitos da pesquisa vem sendo introduzida no trato de
pesquisas na área da antropologia a exemplo das orientações de dissertações e

R
teses orientada pelos professores doutores Daniel do Santos Fernandes e Jose
Guilherme dos Santos Fernandes, pesquisadores no Programa de Pós-graduação

o
em Estudos Antrópicos na Amazônia UFPA/Campus Castanhal.
aC
Umarizal-Beira, segundo a memória3 local, tem seus primórdios demarca-
dos a partir da desagregação de Paxiubal, onde a primeira povoação iniciou. Foi

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chamado de Umarizal porque havia uma grande quantidade de pés da árvore
de marí4. A população de Umarizal aumentou e se tornou Vila de Umarizal,
visã
onde reside hoje com uma maioria de famílias declaradas negras. Cabe destacar
que nem todas as famílias são originariamente remanescentes quilombolas.
Seu histórico de fundação caracteriza um pouco daquilo que Hall (2006,
itor

p. 81) indica a respeito dos processos de identificação das comunidades na


a re

pós-modernidade, “a diferença específica de um grupo ou comunidade não pode


ser afirmada de forma absoluta, sem se considerar o contexto maior de todos os
“outros” em relação aos quais a “particularidade” adquire um valor relativo”.
Como definido em Hall (2006), as comunidades constituídas por minorias
par

e sua relação com a tradição e a modernidade não se desenvolvem a partir


de uma noção de binarismo (dentro/fora; local/global; particular/universal)
Ed

como algo fixo com via única, há sim um hibridismo.

Não permanece no interior de fronteiras únicas nem transcende fronteiras. Na


ão

prática, ela refuta esses binarismos. Necessariamente, sua noção de comu-


nidade inclui uma ampla gama de práticas concretas. Alguns indivíduos
s
ver

3 O sentido empregado aqui está embasado em Bosi (1994) que destaca que a memória “lança uma ponte
entre o mundo dos vivos e o do além, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. Realiza uma evocação:
o apelo dos vivos, a vinda à luz do sol, por um momento” (p.89). Isso quer dizer que a memória, através do
seu caráter evocativo, possibilita aos sujeitos a ascensão de situações que foram vividas e que poderiam
se perder no inconsciente. Ela realiza a função de que, ao reconstruir as lembranças, o sujeito consiga
aprender algo para o seu presente e compreender que o passado é relevante para a sua formação tanto
identitária quanto de sujeito ativo na sociedade.
4 Seu nome científico é poraqueiba sericeia Tul, nativa de toda região Amazônica é facilmente encontrada nas
cercanias da vila de Umarizal de dezembro a fevereiro. Consumida na forma in natura, de sabor e aroma
acentuado e marcante.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 431

permanecem profundamente comprometidos com as práticas e valores tra-


dicionais [...]. Para outros, as chamadas identificações tradicionais têm sido
intensificadas (por exemplo, pela hostilidade da comunidade hospedeira, pelo
racismo ou pelas mudanças nas condições de vida mundiais). Para outros
ainda, a hibridização está muito avançada – mas quase nunca num sentido

or
assimilacionista. Esse é um quadro radicalmente deslocado e mais complexo
da cultura e da comunidade do que aqueles inscritos na literatura convencional.

od V
O hibridismo marca o lugar dessa incomensurabilidade (HALL, 2006, p. 72).

aut
Os dados analisados e expostos neste texto foram levantados mediante

R
pesquisa de campo, a escrita se deu de forma descritiva e analítica, ancoradas
na concepção pós-colonial de análise, pondo em evidência a transformação

o
do status colonial para o nacional a partir da atuação de diferentes grupos
sociais e buscamos nos articular com uma abordagem de natureza qualitativa.
aC
Também assumimos uma perspectiva interpretativa de pesquisa, valorizamos
a história e a cultura do lugar e das comunidades do local, sem perder de vista
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a história e a cultura de matriz africana, que considera a sucessão de gerações


visã
e de grupos ancestrais (CUNHA JÚNIOR, 2005).
Utilizamos articuladamente um viés interpretativo nas análises dos mate-
riais da pesquisa, documentos e narrativas, procurando levantar e discutir ques-
tionamentos que considere as enunciações das histórias de vida; o processo de
itor

constituição de lideranças; as práticas de resistências e lutas da comunidade


a re

como fator educativo para a compreensão das consequências do trato das


questões étnico-raciais no processo de entendimento do papel das práticas
educativas na trajetória da população negra. Nesse aspecto, cabe mencionar
que a pesquisa foi feita com as lideranças da comunidade da Associação Rema-
par

nescente de Quilombo de Umarizal Beira, no município de Baião-PA, foram


entrevistadas 04 lideranças que compõem a diretoria da associação quilom-
Ed

bola e, para título deste artigo, dialogaremos com a narrativa produzida pela
entrevista do Sr, Narciso Vieira (atual presidente da Associação Quilombola),
que pelas informações detalhadas apresentou mais condições metodológicas
ão

para análise do que constitui a liderança no quilombo.


Buscamos o diálogo com a abordagem da afrodescendência, que exige
que o pesquisador adentre e compreenda a situação, os valores sociais e as
s

formas culturais das comunidades afrodescendentes. Para tanto, se faz neces-


ver

sário reconhecer o pensamento de base africana como um dos elementos


importantes para a compreender a constituição da sociedade brasileira sob uma
perspectiva dialógica e analítica capaz de identificar sujeitos que promoveram
a nova perspectiva nacional (CUNHA JÚNIOR, 2005).
A problemática da educação para as relações étnico-raciais no Brasil
nos encaminha para o debate da garantia à igualdade racial como princí-
pio e o reconhecimento da diferença como valor. A situação vivenciada pela
432

comunidade em questão, nos traz a luz uma discussão fortemente feita em


Arroyo (2012), a reflexão sobre a consciência adquirida da população sobre
sua condição humana, levando-se em conta seus tempos e espaços.
Um dos elementos que serve como marco da pesquisa científica é o
aporte do pós-colonialismo e suas categorias analíticas, nos auxiliando na

or
compreensão das relações étnico-raciais ali presentes. Como explica Fanon
(1979), aparentemente parece que o ambiente de conflito racial está ligado a

od V
artifícios de controle como forma de poder característico do poder colonial

aut
que ainda se perpetua negando aos negros a existência.

R
Lideranças quilombolas e o “lugar” das identidades territorializadas

o
A liderança5 é uma condição da pessoa que se constitui no decorrer da
aC
vida para manter o fôlego no labor do dia a dia, a propriedade da terra, a luta
por condições dignas para comer, dormir, educar, morar, sonhar, enfim, ter o

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calor da família6. A liderança quilombola é constituída de um emaranhado de
significados interpretados a partir das experiências e práticas desses sujeitos,
visã
sobre o que pensam e fazem no dia a dia tendo como foco de nossa atenção
o cotidiano doce e amargo das relações de conflitos com o Poder Público, da
mobilização das festas, dos pares, do encontro, do diálogo e das conquistas
itor

que se faz um homem/mulher negra quilombola uma liderança.


Trabalhamos com bastante cuidado nas nossas interpretações, as crenças,
a re

posturas, valores, ações, práticas e atitudes que se configuram no sujeito/lide-


rança negra do quilombo Umarizal-Beira. Ao investigar a constituição dessas
lideranças, tendo em vista a complexidade e as multirreferencialidades que
formam esse sujeito, se perfaz um percurso “didático” que mobiliza a formação
par

e a constituição das lideranças pelas lutas, pelos sonhos e pelas possibilidades.


A liderança ao ser narrada como a primeira pessoa do saber/poder local
Ed

lança eco e luz às vozes silenciadas e invisibilizadas da história e enobrece o


lugar honroso que esse sujeito cria e desenvolve em si e nos que os cercam,
que não é o outro criado pelo olhar do colonizador, mas o outro da alteridade
ão

no qual se reconhece, se apega como modelo constitui no fazer/ser negro.


s
ver

5 O vocábulo líder e liderança estarão sendo tratados no campo da sua utilização comum. Mas de que falamos
ao usarmos estes termos? Para Neves (2001) estes termos são auxiliares na tentativa de enunciar uma
definição arrolados a termos como poder, autoridade e gestão. Importa-nos aqui dar ênfase na existência de
um sujeito que é competente para influenciar um grupo de indivíduos. A liderança pressupõe um “destinatário
coletivo”, como caraterística da personalidade indutora de obediência, que exerce influência como meio de
persuasão, relação de poder, meio de alcançar objetivos ou pela combinação de diversos.
6 São reflexões a partir do nosso olhar para ganhar sintonia com a riqueza de informações para adentrar no
espaço/tempo dos dados e das experiências vividas e narradas ao longo do trabalho.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 433

As afrodescendências7 são constituídas por afinidades de elementos de


etnicidade negra, como a cor da pele, o passado histórico, a ancestralidade
africana, a tradição religiosa e modos de gestão e de partilha/comunhão da
vida com dignidade. A paisagem política que se constitui na liderança é tra-
duzida nas trajetórias de vida repletas de subjetividades, são identidades que

or
constitui nas lutas e nas condições de vida e que os levam a um acúmulo de
saberes e concepções sobre ser liderança quilombola. Desse modo a narrativa

od V
aqui presente relata acerca das vidas de um lugar, daqueles que lutam contra

aut
as marcas da exclusão da população negra.
A metáfora da constituição do sujeito/liderança significa para nós uma

R
construção do sujeito pelos encontros e desencontros entre aquilo que se
acredita ser de direito e na ausência de políticas públicas que lhes façam sentir

o
respeitados e reconhecidos. É uma identidade construída no trilhamento da
vida, na busca por justiça e direitos e como tal carregadas de influências da
aC
história do povo negro e também das tramas da vida cotidiana.
Nesse sentido, percebemos a identidade como um fluido do cotidiano,
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das relações e das situações que se colocam como imperativo ao sujeito negro
liderança quilombola. Nas falas destacadas o Sr. Narciso Vieira atribui, em
visã
certa medida, a sua inserção no movimento social a partir de sua articulação
com as comunidades mediadas pela organização da Igreja Católica na qual
ele era atuante como catequista.
itor
a re

Olha na verdade, meu começo foi a comunidade cristão sabe? Comecei a


participar de comunidade cristã assumindo já liderança. Trabalhei como
catequista há diversos anos 6/7 anos e nesse período também fui diretor
sindical quer dizer eu me aprofundei bastante na leitura do sindicalismo
brasileiro com uma nova metodologia com uma nova filosofia de trabalho.
par

Já discordando daquele sindicato comprometido com os patrões e isso me


ajudou muito a despertar, eu consegui na verdade ter um entendimento da
Ed

realidade totalmente diferente. Teve muita divergência claro, mas isso tudo
veio com a participação do movimento comunitário, o movimento da igreja
e isso fez com que eu pudesse fazer uma grande familiarização com as
ão

comunidades, com as pessoas na época trabalhava daqui do Umarizal até


Anuzinho depois com o movimento sindical teve a felicidade de conhecer
todo o município de baião e fazer muitos cursos fora e isso me ajudou a
s

ter essa visão e essa noção de que o sindicato vale pro trabalhador e foi
ate que no final dos anos 90 foi que eu abracei essa questão quilombola
ver

e isso ajudou bastante pra que a gente pudesse ter uma visão mais critica
nessa questão da participação popular, a participação do povo. Se eu não
tenho esse conhecimento a partir do movimento comunitário, o movimento

7 Este conceito encontra-se fundamentado em trabalhos em autores como Cunha Jr. (1987 1998); Banton
(2000), Gonçalves e Silva (1994, 1999), sendo que a afrodescendência se configura num enfoque político-
cultural, construído na relação histórica da ascendência africana diversa, marcada pela trajetória de luta e
exploração no escravismo e racismo (CUNHA Jr., 1996, 1998; SODRÉ, 1983, 1999).
434

sindical eu com certeza iria enfrentar muita dificuldade ai no movimento


quilombola. [...] [...] Não funcionava sindicato, não funcionava nada aqui
nessa época que eu comecei pra você ter uma ideia teve uma proposta do
padre Geraldão não sei se você chegou a conhecer ele pra mim vir morar
aqui no Umarizal naquela época que eu não morava aqui eu morava no

or
Umarizal centro lá na Transcametá e eu não aceitei, eu não tava fim de
ir embora [...] então eu fui simplesmente avançando e participando, mas

od V
não tive aquele foco realmente de fazer como fulano faz não. Não tive

aut
esse exemplar pra mim, esse modelo8.

R
Nessa fala se expressa a dinâmica dos processos de constituição da lide-
rança que se materializa em uma consciência criada por experiências que
estão para além das experiências vivida por ele. Destaca-se a necessidade de

o
articulação e organização em torno dos problemas das comunidades rurais
aC
negras. Também percebemos nessa fala que a luta por justiça transcende o
momento vivido e se ancora em histórias do passado do povo negro. Dessa

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maneira, podemos dizer que as identidades diaspóricas constituem esses sujei-
tos ao agregar em suas vidas a história do povo negro e os modos como essa
visã
população fora marginalizada na sociedade tendo como diferencial os signi-
ficados do racismo e da desigualdade social. Cabe aqui lembrar o que Hall
(2006) afirma sobre os vínculos e negociações que articulam nas referências
itor

culturais de pessoas negras da diáspora:


a re

Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam


e intersectam as fronteiras naturais compostas por pessoas que foram dis-
persas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos
com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um
par

retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas


em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder
Ed

completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das


tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram
marcadas (HALL 2006, p.88-89).
ão

Percebemos que a ideia de lugar tem uma importância muito grande


na constituição da liderança. O lugar aqui se mostra como o enraizamento
s

na região, no local e por meio de um “apego” à região, às pessoas e aos


ver

saberes e fazeres que se constitua o próprio teor cultural do local. Há nesse


sentido uma “reafirmação do lugar” (HALL 2006, p. 135). Observamos que
a liderança nascera em Umarizal e ainda que tenham feito algum tipo de
mobilização, foi por pouco tempo e por motivo de trabalho, retornando, no
entanto, ao local de origem e ali vivendo.

8 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 435

Essa categoria “lugar” trabalhamos também a partir de Escobar (2005) da


obra A colonialidade do saber – eurocentrismo e ciências sociais: Perspectivas
latino-americanas, de organização de Edgardo Lander. Esse conceito serve
muito a nós aqui porque rompe com a noção moderna de ciência que coloca
o homem e natureza em posição dicotômica:

or
Talvez a noção mais arraigada hoje em dia seja a de que os modelos locais

od V
da natureza não dependem da dicotomia natureza/sociedade. Além do mais,

aut
e a diferença das construções modernas com sua estrita separação entre
mundo biofísico, o humano e o supranatural, entende-se comumente que

R
os modelos locais, em muitos contextos não ocidentais, são concebidos
como sustentados sobre vínculos de continuidade entre as três esferas.

o
Esta continuidade – que poderia no entanto, ser vivida como problemá-
tica e incerta – está culturalmente arraigada através de símbolos, rituais e
aC
práticas e está plasmada em especial em relações sociais que também se
diferenciam do tipo moderno, capitalista (ESCOBAR, 2005).
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O lugar é como parte das pessoas, são dimensões inseparáveis delas.


visã
Não é possível vê-las fora do lugar, pois eles imprimem ao lugar significados
que dão sentidos a vida como o plantar, construir a casa, cuidar da higiene do
corpo, preparar os alimentos, do lazer etc. O lugar é constituinte da identidade
itor

das lideranças que, por sua vez, colocam como pauta principal de reivindica-
a re

ção o reconhecimento pela terra mediante sua titulação.


A preocupação básica é a propriedade da terra colocada no art. 2º do
Estatuo da Associação, sendo a Associação “proprietária das terras ocupa-
das pela Comunidades Remanescentes de Quilombos de Umarizal-Beira,
Umarizal-Centro, Boa Vista, Paritá Miri e Florestão, localizadas na margem
par

esquerda do Rio Tocantins, na BR 222”. Em seus incisos é proibida a venda


ou partilha, prima-se por uma utilização coletiva no intuito de dar subsis-
Ed

tência com vistas à garantia da preservação do meio ambiente. Aponta-se


no corpo do documento que as propriedades da associação “poderão ser
utilizadas por Remanescentes Quilombolas de outras comunidades desde
ão

que autorizadas pela associação e que respeite o presente estatuto” (§3º


Estatuto Social da ARCORQBU).
s

Os processos de resistência envolvem a perspectiva desse lugar. É o lugar


ver

e o direito a ele que está em jogo nos processos de resistência e de luta das
lideranças quilombola. Dessa forma a ideia de lugar se torna mais forte na
educação dessa liderança que nasce e constroem-se a partir das experiências
com os espaços físico/sociais, como ratificou Narciso.

Tenho um filho aqui que faz parte dessa reserva bem aqui ó. Quilombola.
Essa aqui. Ainda tem esse resto de castanha aqui tão preservando tavam
derrubando tudo e eu fui lá no fórum com a juíza e a juíza credenciou eles
436

que ainda tem. Ele trabalhava lá pra repartimento na época ai casou pra
lá ai ta esse outro meu caçula 9

Senhor Narciso percebeu pelos diferenciais culturais e pela realidade


material desses grupos negros a necessidade de organização e de politização do

or
local. Observe que o processo de constituição dele e de outros da comunidade
se pauta na estruturação da Associação, ou seja, a criação de um instrumento

od V
legal para negociar, representar e agregar forças e poder.

aut
Nesse sentido, não há separação entre o sujeito e aquilo que ele acredita e
busca e as lutas se tornam aprendizagens na medida em que emergem as forças

R
organizativas da comunidade pela materialidade da associação. Observe que a
criação da Associação Quilombola é resultado de uma intensa mobilização em

o
meio à comunidade de Umarizal desencadeado por forças originarias da rela-
ção do Estado com as comunidades negras que caracteriza ao longo da história
aC
brasileira pela ausência de regulamentação das terras dessas comunidades.
O processo de resistência e educação dessas lideranças tem continuidades e

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adquire mais visibilidade e poder de negociação com o poder local e com os
visã
entes federativos a partir da efetiva existência da associação.
Sob a ótica da organização dos movimentos sociais, de acordo com Mauro
e Pericas (2001), a associação quilombola deve ser entendida enquanto instru-
mentos de luta que visa à transformação da realidade vivida, como declarado
itor

por eles próprios. Em termos teóricos cabe destacar os elementos essenciais em


a re

todos eles, a saber: o Projeto, a Ideologia e a Organização Hierárquica.


A associação se torna imperativo no contexto de desenvolvimento da
sociedade com seus valores capitalistas (exploração da natureza, exportação
etc.) que leva os fazendeiros (grileiros) a invadir as terras dessas comunida-
des que como descrevemos anteriormente desenvolve uma relação social e
par

cultural no território.
Consta na narrativa do Senhor Narciso Vieira, que além das ameaças,
Ed

outro fator que impulsionou a criação da associação pelos moradores foi a


necessidade de captação de recursos. Percebemos a busca pela autonomia, já
que a criação dessa instituição, irá posteriormente, expressar, exigir e organizar
ão

as políticas públicas na comunidade. As ações coletivas que se constituem


com a associação, ressignificam o poder, legitimando as possibilidades de
negociação com a sociedade mais ampla.
s
ver

[...] na verdade eu fui o fundador, através dos meus trabalhos foi que
surgiu o movimento quilombola. Então eu fui fundador da associação de
quilombos em 1999 fiquei até 2002 ai me afastei da direção e retornei em
2013 e de 2013 estamos ai e entregarei com fé em Deus em 2020 ai eu
vou descansar mesmo, não quero mais saber de direção não. [...] ajudei

9 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 437

no esclarecimento nas articulações e fundações dessas associações aí.


Quando se fundou essas associações o objetivo principal no momento
era a titulação da terra dado a tantas grilagens que acontecia na região.
Invasão por fazendeiro por madeireiro.10

or
Em temporalidades cronológicas a fundação da Associação Quilombola
de Umarizal ocorreu no dia 12 de outubro do ano de 1999, o intuito era a unifi-

od V
cação entre as comunidades quilombolas de Umarizal-Centro, Umarizal-Beira,

aut
Boa Vista, Paritá Mirí e Florestão. Na data de sua fundação já se apresenta
a frente da associação, Narciso Vieira Ramos, que atualmente desenvolve a

R
função de presidente da mesma e, pelas observações feitas, é um agente de
referência para a maioria dos líderes na atual diretoria.

o
O foco sobre a questão da terra está totalmente atrelada ao fator iden-
aC
titário, que por sua vez expõe a sua comunidade a postura de se educar pela
busca do direito e no exercício da cidadania. No caso da Associação de Uma-
rizal-Beira é um objetivo, que pelo que se nota no transcorrer das atitudes
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

institucionais percebe-se facilmente nos documentos sentidos pela associação.


visã
Em ofício emitido e encaminhado pela Associação Quilombola, via sua
secretaria de Política Agrária Fundiária Quilombola e Meio ambiente, datado
de 21 de março de 2000 ao Instituto de Terras do Estado do Pará – ITERPA,
itor

cujos anteriores já datados do ano de 1999, ano de fundação da Associação,


a área reivindicada perpassa:
a re

[...] as seguintes confinanças, frente à margem esquerda do Rio Tocantins


no Leste, sul com as terras da fazenda Joana Peres e a vila do mesmo nome,
Norte com as terras da Associação de Remanescentes de Bailique Centro e
par

Oeste com terras devolutas do Estado ultrapassando 10 km mais ou menos do


Rio Jacundá [...] (Ofício S/N da ARCORQBU, protocolado em 03/04/2000).
Ed

A recorrente problemática diz respeito à ocupação do território, há o


reconhecimento da ocupação legítima por parte do ITERPA sendo inclusive
ão

motivo para acionar a justiça em busca da validação de tal direito às terras


devidamente demarcadas.
O documento mencionado vem a dar resposta aos inúmeros anseios dos
s

quais gira em torno à vida útil da Associação de Umarizal posto que “[...] trata
ver

da regularização do território em favor da Associação [...]” (l. 05-06), observe


que atitudes anteriores como a autodeclaração da identidade fora indispen-
sáveis para tal feito, assim como o reconhecimento de tais direitos por parte
da Fundação Palmares, “[...] resultou comprovado que o referido território

10 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017


438

quilombola é legitimamente ocupado pelos familiares dos senhores [...]” (l.


10-13), seguindo com a lista dos seus beneficiários em anexo ao documento.
É bom frisar que o discurso em resposta é do próprio Estado, na pessoa
do presidente do ITERPA, que destaca “[...] a posse mansa e pacífica sobre
a área vistoriada para fins de regularização definitiva, de onde retiram o sus-

or
tento para si e seus familiares [...]” (p. 02 l. 22-23). E vai um destaque para

od V
a figura da liderança comunitária como quem de maneira legítima executa a

aut
ação pelo grupo “[...] por parte do legítimo Representante da Associação de
Comunidades Quilombolas de Umarizal Centro, Umarizal Beira, Boa Vista
e Paritá Miri, perante entidade públicos e privados de fomento de crédito nas

R
suas diversas esferas administrativas.[...]” (l. 23-25).
Merece ainda atenção o destaque de que o ocorrido não deve ser encarado

o
como uma dádiva, ou simplesmente como algo concedido por uma “ocupação
aC
mansa”, antes disso foram emitidas algumas imissões de posse, por conta da
resistência destes sujeitos.
Pelo exposto nos documentos mencionados podemos perceber que o

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


objeto do reconhecimento por parte do ITERPA é consequência dos atos
visã
dos sujeitos da Associação e não uma simples concessão. O ato de Imissão
resguarda a comunidade e indica que a mesma faça a devida ocupação e uso
da terra “[...] evitando novas invasões, sugiro que seja providenciado pela
Associação de Remanescentes de Quilombos do Umarizal a Ocupação da
itor

área objeto deste processo até decisão judicial [...]” (l. 09-12) este trecho diz
a re

respeito à imissão última de 2012 que reforça as anteriores.

Identidades étnico-raciais na constituição das lideranças quilombolas

Outro ponto relevante são as relações étnico-raciais e as atenções associa-


par

das à questão do racismo como consequência desta luta entre forças antagônicas,
que não escapam a percepção do nosso sujeito. Quando perguntado a respeito
Ed

do momento em que a liderança ouviu falar sobre raça, racismo e discriminação


e da importância que a escola tem no processo de se ensinar sobre estas ques-
tões, este líder aponta para a necessidade instituir este diálogo em sala de aula,
ão

passando a apontar que o próprio negro se discrimina e da “dor” que isso causa.
Percebemos na fala de Narciso que pelo ponto de vista do entrevistado,
que o problema é percebido desde o fenótipo, quando usado o termo “cabelo
s

espichado”, em que momento o senhor ouviu falar de raça, racismo e discrimina-


ver

ção racial? E se o senhor acha importante a escola ensinar sobre essas questões,

[...] começando do fim pro princípio como diz a história, pra mim seria
fundamental se essas coisas realmente viessem a acontecer na sala de aula
por que essa questão da discriminação o próprio negro se discrimina por
si, então isso eu acho dolorido sabe. Eu creio que agora quando vocês
chegar lá, nos chegarmos lá há de aparecer alguém negro de cabelo
loiro, negra de cabelos lisos, cabelo espichado como queira. Pra mim é
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 439

uma discriminação que dói na gente, eu defendo quem eu sou e aqui tem
poucos que fazem essa leitura, que defende o que é. Tratar do cabelo não
é problema agora mudar o cabelo isso eu acho que é uma discriminação
é muito ruim e essa educação eu acho difícil de acontecer por que como
é que uma professora fazendo, aplicando esse ato ele vai dizer pro aluno

or
dele não fazer, é complicado. Além dessas e outras coisas que envolve.11

od V
Pinho (2010) nos ajuda a entender que há um movimento constante da

aut
propagação da injustiça social no Brasil, que ofende de forma concreta, em
especial a nossa juventude, o que na narrativa anterior coincide, posto que

R
onde se aponte algo que seria a prática discriminatória, o entrevistado cita
indivíduos em idade escolar. A autora nos chama atenção para violência social

o
que se agrega a um sistema de discriminação racial. Deste modo, o racismo
é definido como uma relação de poder que não pode ser confundida com o
aC
aparato biológico ou meramente à flor da pele, este fenômeno encontra aparato
em mecanismos legais, culturais, sociais e históricos de exclusão e estigma.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Em Todorov (1993), cultura sugere um movimento dialético entre a


visã
unidade e a diversidade, entre o que o mundo universaliza e o que este relati-
viza, entre o que o mundo nos faz e o que fazemos no mundo. Neste sentido,
podemos inferir que o ser humano é possuidor de signos que se multiplicam
infinitamente estimulado pelo seu contato com o mundo, e quando o relativo
itor

e o universal são confrontados entramos em uma arena de debate sobre poder.


a re

O que assegura a retenção de suas ideias, as comunica para os outros e é


capaz de transmiti-las para descendentes em forma de herança, que sempre se
amplia. Como o racismo é um subproduto do etnocentrismo, se faz importante
considerar as facetas deste problema.
par

O etnocentrismo, portanto, tem duas facetas: a pretensão universal, de um


Ed

lado; o conteúdo particular (o mais frequentemente nacional) de outro.


Os exemplos de etnocentrismo são inumeráveis, tanto na história quanto
do pensamento da França como em outros países; não obstante, quanto se
ão

busca ilustração mais apropriada – e no momento não se trata de nada além


de uma ilustração que simplesmente se busca a ilustração que simplesmente
se busca fixar as ideias – a escolha parece claramente indicada: será que
s

Hyppolite Taine chamava, em Lês origens de lá France contemporaine, de


ver

espirito clássico, o do século XVII e XVIII e que às vezes é identificado


(no estrangeiro) como o espírito francês (TODOROV, 1993, p. 22).

A escravidão que ocorreu no Brasil desencadeou a exclusão dos negros,


refletindo tristemente numa herança histórica vergonhosa para imagem do

11 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017


440

negro, pois são vistos sempre como uma imagem negativa. Nas palavras de
Pereira (2007, p. 22).

[...] o tratamento que a sociedade brasileira dispensou aos africanos e aos


seus descendentes foi marcado, em geral, pelo preconceito e pela violência.

or
A partir da implantação do regime escravista, aos olhos das elites brasi-
leiras os aspectos referentes às culturas africanas passaram a representar

od V
o exótico o estranho, não sendo levados em conta como um fator, entre

aut
outros, de formação de nossas identidades. Essa maneira de perceber os
africanos e a África foi acolhida por outros segmentos de nossa popula-

R
ção, não obstante o papel decisivo que os africanos e os afro-brasileiros
desempenaram, juntamente com outros grupos, na formação de nossa

o
sociedade (2007, p. 22-23).
aC
A imagem refletida do negro perante a elite dominante sempre era de
inferioridade, não se procurava dar destaque que o negro contribuiu de forma

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


decisiva para o crescimento da sociedade brasileira, prestando-lhes serviços
visã
e conhecimento trazidos consigo. E nas comunidades locais do município de
Baião não era diferente, esta ideologia de manifesta de modo muito evidente.
De certo modo, a percepção da liderança aponta a necessidade de dire-
itor

cionar sua atenção para a função social da escola para inclusão educacional
da sua população e um aprofundamento dos estudos da História da África e
a re

dos africanos. Quando perguntado sobre a forma como a associação auxilia a


escola, com relação às crianças e aos jovens da comunidade, é declarado que há
uma pré-disposição por parte da associação para com a escola, no entanto não
houve aceitação. Sobre a contribuição da escola a respeito do fortalecimento
par

da cultura quilombola há uma entrada do debate acerca do samba de cacete,


mesmo que de forma restrita. Neste ponto aparentemente há uma tendência
Ed

à valorização dos elementos culturais, como é o caso também das danças de


quadrilhas que também são tradição na comunidade, no sentido do que é con-
ão

tado como história oficial. O senhor pode falar sobre a escola no sentido dela
contribuir para o fortalecimento da cultura quilombola, ao que Narciso fala,
s

[...] muito assim na espontaneidade sabe. Quando por exemplo fala da


ver

questão do samba de cacete a escola sempre dá esse apoio mesmo que


seja em restrito mais dá. Naquilo que eu tava falando na questão das qua-
drilhas de São João que sempre foram uma tradição nossa aqui, apesar
de que quadrilha é muito mais amplo, é uma cultura muito mais ampla,
mas a escola como eu disse agora, pode ser que com esse diretor possa
mudar um pouquinho a característica dela em relação à questão quilom-
bola realmente é muito mais ligado lá por cima na imposição. Uma vez
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 441

eu fui convidado pra falar a respeito do sete de setembro e achei uma


situação muito complicada por que quando Dom Pedro deu o berro de
independência e veja a situação que nos estamos, que independência nos
vamos festejar? Deveria festejar a independência que independência nos
temos pra festejar? É meio complicado, na verdade eu posso confessar pra

or
vocês que eu me senti ruim pra falar por que a maneira como eles estavam

od V
fazendo uma defesa e eu tava vendo inversa a coisa me senti muito mal.12

aut
A partir disso podemos inferir que a educação escolar desenvolvida na
comunidade é um reflexo da reprodução de ideologia da classe dominante,

R
neste sentido era necessário destituir este ambiente que se configurava nas
escolas brasileira, como relata Santos (2005).

o
aC
Portanto, ao perceberem a interiorização dos negros, ou melhor, a produção
e a reprodução da discriminação racial contra os negros e seus descenden-
tes no sistema de ensino brasileiro, os movimentos sociais negros (bem
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

como os intelectuais negros militantes) passaram a incluir em suas agendas


visã
de reivindicações junto ao Estado Brasileiro, no que tange à educação, o
estudo da história do continente africano e dos africanos, a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional brasileira. Parte desta reivindicação já constava na declaração
itor

final do I Congresso do Negro Brasileiro, que foi promovido pelo Teatro


a re

Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, entre 26 de agosto e 4 de


setembro de1950, portanto, há mais de meio século (SANTOS, 2005, p. 23).

Ainda em Pinho (2010) o termo “raça” é uma construção social, que


deriva das desigualdades sociais e da vitimização do racismo do qual, no
par

caso brasileiro, a população negra é atingida em cheio por esse processo. É


construída política e ideologicamente, que ajuda a vislumbrar a dominação
Ed

coletiva do grupo branco em detrimento do negro, e nada tem a ver com


desdobramentos biológicos.
ão

O sentido de raça é uma construção sociológica que visa compreender,


numa perspectiva dialética, a situação da população negra e de outros
grupos não brancos. Sendo assim! Reduzir o racismo ao fator biológico é
s

fechar o campo de análise e a compreensão do momento contemporâneo


ver

(PINHO, 2010, p. 31).

Esta definição do termo raça nos leva um campo de força política e ideo-
lógico, o que também buscamos perceber foi o papel político da associação
quilombola no combate ao racismo, abaixo temos a declaração de que há uma

12 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017


442

defesa constante da igualdade, de valores coletivos, perpassando as questões


religiosas e culturais, independentemente de raça/cor. E novamente a reafir-
mação que de que ser negro é uma atitude política. Agora qual o papel político
da associação quilombola no combate ao racismo? O que narciso responde,

or
[...] desde muito tempo a gente sempre trabalha em defesa da igualdade,

od V
nos defendemos, nos vamos pra cima como diz a historia. Mostrando o

aut
valor não ta na cor, todos nos somos iguais então à associação tem se
preocupado nisso. Ai que entra a questão que eu falei ainda agora envolvi-
mento com a questão religiosa e social, política e tudo pra que as pessoas

R
possam entender que nos somos todos iguais independentemente da raça
e da cor. E isso eu creio que tem surtido certos efeitos apesar do pessoal

o
gostar de pintar o cabelo. Isso é uma questão bem pessoal questão do
respeito é outra coisa. A associação tem contribuído bastante em relação
aC
a isso com certeza absoluta. Ate mesmo vendo a minha cor que a minha
pele não é negra e muitos que tem a pele negra não se consideram tão

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


negro como eu me considero negro e isso é visto por muita gente então
visã
isso é uma coisa que eu acho que tenho contribuído bastante pra que a
pessoa se sinta capaz de se identificar.

Santos (2005) nos leva a entender que a construção da identidade negra


itor

é uma tarefa política e é muito importante a atitude de contestação e ruptura


a re

com o processo contraditório do “tornar-se branco”, como uma espécie de


caricatura, anulando a sua autoestima. No âmbito da vivência destes sujeitos,
muitos momentos são apontados como característicos da manifestação do
racimo que em muitas vezes se traveste de brincadeira, ou se máscara com a
par

atitude adversa como algo que está presente aos olhos de negro que se equi-
voca ao perceber a atitude racista.
Ed

O ponto crucial aqui seria a prática do racismo, que de acordo com Souza
(1983) seja pela repressão ou persuasão, faz o indivíduo negro desejar e, até
mesmo, projetar uma identidade antagônica em relação à de seu corpo, etnia,
ão

de sua pessoa.
Esse seria um ideal que converteria o negro ao retorno a uma possibi-
lidade, onde este poderia ter sido branco, ou num futuro, onde não cabe o
s

mesmo ter um corpo ou uma identidade de negros.


ver

Nas relações de poder, ainda em Souza (1983) é nítida a percepção de que


o negro é afetado pelos artifícios negativos criados pelo branco, a exemplo das
práticas de inquisição, colonialismo, imperialismo, antissemitismo, nazismo,
stalinismo, dentre outras formas opressão. É sabido da criação da escravidão, a
pilhagem, as inúmeras guerras à destruição de incontáveis etnias. No entanto,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 443

a práticas de manutenção de poder utilizam-se de mecanismos que impregna,


legitimam tais práticas e impedem qualquer oposição sobre tais desdobramentos.
Os elementos apontados acima são, antes de tudo, fatores conflitivos que
desconsideram o mundo e suas relações que são criados por sujeitos interdepen-
dentes e, portanto, não podem ser vistos como estruturas que pressionam umas

or
às outras, mas sim constituídas por indivíduos que se pressionam de maneira

od V
recíproca, gerando uma dinâmica simbólica da socialização (SETTON, 2002).

aut
Pelo posicionamento do sujeito da pesquisa podemos perceber que este se
situa de forma consciente no mundo, de maneira diferenciada e se faz perceber

R
como agente de transformação. Em Stepan (2005) fatores políticos, econômicos,
sociais e culturais estão imbricados desde a elaboração de teorias científicas,
assim como em todas as práticas humanas, e nas relações raciais não é diferente,

o
é por exemplo o debate que a mesma faz na obra “A hora da Eugenia”. Para a
aC
autora deveria haver uma espécie de sentimento de gratidão e de humildade de
cada membro de uma cultura dada, deveria ter em relação a todas as demais,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

não deve basear- se senão numa só convicção: a de que as outras culturas são
visã
diferentes, de uma maneira a mais variada e se a natureza última das suas dife-
renças nos escapa, deve-se a que foram imperfeitamente penetradas.

Concepções e políticas de resistências no movimento quilombola


itor
a re

Como a Liderança percebe a constituição do sujeito-liderança? As lide-


ranças exprimem muito para nós sobre o que é ser um agente político do
quilombo. A narrativa expressa os sentidos que para a liderança é ser uma
liderança quilombola:
par

A concepção da liderança se constitui de maneira democrática e parti-


cipativa. Para Narciso,
Ed

[...] na participação, umas das coisas que eu acho fundamental é a pessoa


participar junto com a gente e ele vai caminhando com todos acontecendo
ão

dessa maneira vendo minhas ações, vendo o meu trabalho, eu acredito


que a pessoa tem condições d e seguir de caminhar um pouco mais junto
e com isso ele vai se espelhando nas coisas boas que o outro faz.13
s
ver

A própria política do movimento se apresenta como uma Pedagogia


EXPLICAR O CONCEITO que ensina o sujeito sobre como ser uma lide-
rança e mesmo Sr. Narciso com sua experiência e saber reconhece que apren-
deu com outra liderança o que é ser uma liderança de movimento quilombola.
Nas palavras dele,

13 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017


444

[...] o movimento quilombola a partir de 2002 a pessoa que mais me


chamou atenção foi o Daniel de Oriximiná aquele modo dele trabalhar,
mas a distância que fica é muito longe passei mais de 15 anos sem falar
com ele. É aquele tipo de pessoa que sempre respeita os outros. É o tipo
da pessoa que sempre tá a disposição do movimento tá a disposição da

or
comunidade, da associação, então eu acho isso importante à pessoa se
doar. Dizer, não tô trabalhando simplesmente pra conseguir emprego.

od V
Querer dinheiro não. Trabalhar pra contribuir para o desenvolvimento

aut
do meu lugar isso eu acho importante. Trabalhamos todos esses anos na
direção da associação e a única. Economicamente com nada, ou seja,

R
não tem sala rio não tem nada que o próprio estatuto já tá falando nisso.
Ultimamente eu tô viajando tudo por minha conta mesmo.XVI

o
As lideranças são constituídas de saberes que lhes possibilitam fazer
aC
estranhamentos dos processos de exploração e das condições de vida nas
comunidades negras. A condição material que os aflige e que engrena de

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certa forma o movimento quilombola pela igualdade de oportunidades define
também a identidade do sujeito, pois, é a partir das lutas e decisões e negocia-
visã
ções com o poder local que se desenvolve no imaginário social e no próprio
pensamento uma autodefinição (compreensão de si) como liderança.
Notavelmente o espectro de liderança buscada neste trabalho recai na
itor

figura do Senhor Narciso Vieira, que como consta nos depoimentos, serve de
a re

modelo de liderança que ao longo da história desta associação quilombola


vem por diversas vezes sendo centrada na figura deste. O Sr. Narciso, em uma
conversa informal, definiu liderança quilombola como “ter compromisso com
a raça”14 e pela posição que ocupa isso soa em todos os aspectos da realidade,
par

como comprovam em várias atitudes e documentos por ele assinados.


No entanto, se este sujeito é o modelo para os demais, o que o constitui
Ed

liderança? Quem foram os seus modelos? Quando perguntado a respeito deste


fator, as respostas revelam ambientes que em muito influenciam a região na
qual estão inseridos como um todo. Inicialmente o destaque vai para sujeitos
ão

da Igreja Católica, em especial a figura de Pe. Thiago. Agora seu Narciso


quando se trata do seu aprendizado quem o senhor tem como referência de
alguém que lhe ensinou a ser o que o senhor é enquanto líder?
s
ver

[...] Padre Thiago. O Padre Thiago tá aonde hoje? Adoeceu, foi pra
Holanda e lá ele morreu tá com muitos anos de falecido . Uma figura muito
lembrada na região, ele teve participação na fundação da comunidade?
Da comunidade sim, mas da associação não. Tempo que a associação
foi fundada ele já tinha falecido. Ele fez muito por Baião né? Morou 24
anos em Baião direto . Tirando o padre Thiago, tirando o padre Thiago

14 Este foi um momento espontâneo em meio a um café da manhã em um dia de campo.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 445

teve muitas pessoas que não se trata de se espelhar, mas de pegar algum,
aproveitar deles alguma coisa boa. Por exemplo, tive a possibilidade de
fazer curso junto com o Maciel, com o Zelito, com o Dilton. Muita gente
assim que eu aqui acolá pegava de um pegava de outro por que nessa
época eu tinha estudado muito menos. Aproveitava as oportunidades que

or
tinha e ia adquirindo mais conhecimento com esse pessoal. Depois do
padre Thiago teve outros padres, muito nãos ele trabalhou três anos em

od V
Baião, mas nos tínhamos uma convivência muito próxima. Padre Geral-

aut
dão, na verdade foi mais com o pessoal da Igreja Católica os padres né.15

R
Em vista disso, o senhor Narciso Vieira sendo, neste momento a cabeça,
os braços são seus companheiros de luta e de diretoria e, por último, as mãos

o
e os pés são os associados da comunidade, sem influências externas a asso-
ciação enquanto instituição seria impossível de existir. Contrariando os vários
aC
discursos negativos que são produzidos acerca da população afrodescendente,
é essa capacidade política desses líderes e que nos leva a perceber nessa rela-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ção reside o sucesso deste instrumento de mobilização. Neste ponto merece


visã
destaque, mas o senhor fala em dois aí o Zelito Moreira da comunidade de
calados e o Dilton de São Francisco, como é o sobrenome do seu Dilton?

[...] o nome dele é Manoel Dilton Pinto da Rocha. Falecido já Zelito.Como


itor

que a associação e o senhor como líder da associação, presidente, contribui


a re

pra essas atividades?com a minha participação com as minhas sugestões


escutarão com muito respeito por que não é só a minha opinião que vale, mas
tem uma equipe, por exemplo, nos temos agora 18 da comissão organizadora
do festival todo mundo é ouvido, todo mundo participa e eu tenho que como
direção da associação tem horas que também tem que me impor em certas
par

coisas que eu vejo que tá fugindo um pouco da razão. Então a gente tem que
ter esse cuidado de não deixar escapulir, não deixar fugir. Nesse sentido a
Ed

gente tem que, que também não sou só eu da direção da associação tem mais
pessoas que participam diretamente assim como tem aqueles que participam
indiretamente também. A comunidade Umarizal ela vem desenvolvendo a cada
ão

dia que passa gente percebe um desenvolvimento socioeconômico, político até


certo ponto muito bom. Houve um crescimento populacional e infelizmente
não houve um crescimento estrutural essa é uma dificuldade que a popula-
s

ção enfrenta. Quanto ao meu relacionamento pessoal com a comunidade em


ver

especialidade com as lideranças pessoas de responsabilidade excelente não


tenho nenhum problema vamos dizer assim no que diz respeito a respeito
mesmo, consideração. Existe divergências que eu não sei dizer se é ideoló-
gica se é pessoal, mas acredito muito mais na questão da falta de formação
e entendimento de certas pessoas, mas acredito que isso não tem prejudi-
cado o desenvolvimento do trabalho e quando se fala da associação à gente

15 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017.


446

consegue com certa eficácia a liderar sabe. Trabalhamos esses três anos ai e
uma das coisas que a gente não descuida é de fazer as coisas acontecerem de
trabalhar em prol da comunidade embora e um importante diferenciar varias
coisas que a associação na é só do Umarizal envolve outras comunidades e
ai eu tenho compromisso também com outras comunidades que fazem parte

or
e a direção tem compromisso em zelar em nome da associação pelas cinco
comunidades. A minha convivência mais direta realmente é com Umarizal.

od V
E a gente sempre tem empenhado em beneficiar tanto outras comunidades,

aut
mas não podemos deixar de adiantar que a maior preocupação é justamente
com Umarizal até por que as outras comunidades a gente não tá convivendo

R
no dia a dia e a gente não sente a necessidade que sente da onde a gente está
então por isso à gente tem essa proximidade muito mais com a população
do Umarizal.16XVIII

o
aC
A Pedagogia DEFINIR NA PRIMEIRA VEZ QUE USOU ESTA PALA-
VRA da qual nos referimos aqui é algo que de certa forma vem a se manifestar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


como a principal arma para combater a frente a qual o movimento negro como
um todo tem como inimigo: o racismo. Sobre o combate ao racismo, quando
visã
se trata disso temos, [agora qual o papel político da associação quilombola
no combate ao racismo?
itor

Desde muito tempo a gente sempre trabalha em defesa da igualdade,


a re

nos defendemos, nos vamos pra cima como diz a historia. Mostrando
o valor não tá na cor, todos nos somos iguais então à associação tem
se preocupado nisso. Ai que entra a questão que eu falei ainda agora
envolvimento com a questão religiosa e social, política e tudo pra que as
pessoas possam entender que nos somos todos iguais independentemente
par

da raça e da cor. E isso eu creio que tem surtido certos efeitos apesar do
pessoal gostar de pintar o cabelo.
Ed

Isso é uma questão bem pessoal questão do respeito é outra coisa. A asso-
ciação tem contribuído bastante em relação a isso com certeza absoluta.
Ate mesmo vendo a minha cor que a minha pele não é negra e muitos que
ão

tem a pele negra não se consideram tão negro como eu me considero negro
e isso é visto por muita gente então isso é uma coisa que eu acho que tenho
contribuído bastante pra que a pessoa se sinta capaz de se identificar.17XIX
s
ver

Nas várias viagens ao campo, pudemos perceber nas conversas com a


liderança que este defende uma comunidade politizada, sobretudo, com a
intenção de construção de espaço público de diálogo entre iguais e diferen-
tes, buscando intercâmbio tentando construir saberes, baseado em práticas
democráticas que visam ter base em práticas democráticas e que emancipem

16 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017


17 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 447

seus sujeitos. Pelas falas a seguir podemos de forma muito segura atestar que
isso é o que pretende este líder, MAS ATRAVÉS DE QUE MECANISMO O
SENHOR QUER PASSAR? COMO O SENHOR PASSA?

Na participação, umas das coisas que eu acho fundamental é a pessoa

or
participar junto com a gente e ele vai caminhando com todos acontecendo

od V
dessa maneira vendo minhas ações, vendo o meu trabalho, eu acredito que

aut
a pessoa tem condições d e seguir de caminhar um pouco mais junto e com
isso ele vai se espelhando nas coisas boas que o outro faz. O movimento
quilombola a partir de 2002 a pessoa que mais me chamou atenção foi

R
o Daniel de Oriximiná aquele modo dele trabalhar, mas a distancia que
fica é muito longe passei mais de 15 anos sem falar com ele. É aquele

o
tipo de pessoa que sempre respeita os outros. É o tipo da pessoa que
sempre tá a disposição do movimento tá a disposição da comunidade, da
aC
associação, então eu acho isso importante à pessoa se doar. Dizer, não tô
trabalhando simplesmente pra conseguir emprego. QUERER DINHEIRO
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NÃO. Trabalhar pra contribuir para o desenvolvimento do meu lugar


isso eu acho importante. Trabalhamos todos esses anos na direção da
visã
associação e a única. Economicamente com nada, ou seja, não tem sala
rio não tem nada que o próprio estatuto já t aflando nisso. Ultimamente
eu tô viajando tudo por minha conta mesmo.18
itor
a re

A concepção declarada acima aponta que o que este sujeito aprendeu no


movimento social o tornou capaz de possibilitar mudança através do papel
ativo e a partir de algo que admitimos serem seus processos educativos, aqui
isso não se reduz a transmitir algo, vemos nas falas a necessidade de enga-
jamento com o real em que se vive. Para isso o indivíduo que assume essa
par

tarefa de líder deve tomar partido, deve ser combatente.


Nesse sentido, constata-se que o que ajuda na multiplicação desse papel
Ed

é a presença de uma liderança inspiradora que unifique o grupo. Essa consta-


tação nos leva a perceber a Associação Quilombola de Umarizal-beira como
um grupo democrático, coeso em relação à atitude de sua liderança. Por outro
ão

lado, a liderança torna-se referência para os demais participantes do coletivo,


é ela que forma atitudes nos demais sobre tudo no que diz respeito a como
s

estes adentram a diretoria da associação. Podemos perceber que o modo como


ver

se aprende perpassa pelos valores que divergem da Lógica capitalista. Você


gosta das reuniões e da condução da sua vivência no grupo? Dessa condução
da associação e da comunidade o senhor gosta dessas atividades? E de viver
nesse coletivo que é a associação quilombola?

18 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017.


448

Sim, até certo ponto sim. Até porque se eu não gostasse, eu não estaria
aí por que as perseguições às difamações que a gente recebeu e recebe
até hoje por que não consegue o 100% de jeito nenhum então tem sempre
aquelas pessoas que tá perseguindo caluniando que tá traindo e assim por
diante. Então isso quando eu permaneço isso justifica que eu gosto, não

or
é aquele gostar por prazer, mas eu gosto porque eu verifico aquilo que eu
disse La atrás eu vejo que há uma necessidade de alguém fazer alguma

od V
coisa essa é uma razão de dizer que gosto. [...] Até porque aquilo que você

aut
faz por prazer aquilo que você gosta aquilo lhe dá certa, certo alívio você
tá fazendo aquilo com gosto com prazer. Por mais que você até certo ponto

R
esteja agradando a todos e você ter certeza que você tá fazendo a coisa
certa, que você tá fazendo de coração aquilo que claro ajuda bastante no
seu cotidiano.19

o
aC
Quando se trata do que é a definição do “ser quilombola”, no próprio
Estatuto ocorre uma definição do associado partindo do princípio da definição

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desta identidade em seu Art. 4º “indivíduos que integrem e/ou vierem a inte-
grar as comunidades remanescentes de Quilombos Umarizal Beira, Umarizal
visã
Centro, Boa Vista, Paritá Miri e Florestão”, há aqui uma pertença que tem
que servir como elo de exclusão e inclusão relacionado à origem destes indi-
víduos, que devem ser oriundos destas localidades. Também são inclusos na
itor

sequência os indivíduos que antes moraram e que de alguma forma possuem


a re

ligação com as mesmas por laços de parentesco, cultural, de terra de cultivo,


pela prática do esporte ou outra forma de contribuição, desde que haja ligação
de pelo menos “até o 3º (quinto) grau” Parágrafo I do Art. 4º. Há também
um espaço reservado para o trato de questões relacionadas às Relações Étni-
co-Raciais atribuídas à Coordenação de Gênero e Raça no Art. 41, visando:
par

I – Apoiar e incentivar os bons princípios como igualdade, liberdade e


Ed

respeito ao próximo, independentemente de sexo, cor, raça ou etnia;


II – Criar alternativa de oportunidades para homens e mulheres
da Associação;
ão

III – Combater as desigualdades para homens e mulheres.

Ser líder quilombola já se define como algo mais complexo. É expressivo


s

nas falas a ideia de que este sujeito se encontra mobilizado e organizado em


ver

torno de seus ideais através deste instrumento que é a associação, forjando


identidades territoriais, enfrentando conflitos vão além da luta pela terra em
sentido físico e de trabalho, ultrapassando a lógica da e a produção material
da vida. Há aqui a combinação da luta pela terra, pelo território, pelo modo
vida de quilombola, como segue:

19 Entrevistado, Narciso Vieira, agosto de 2017.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 449

Podemos entender que o vínculo que se constrói com o grupo faz este
indivíduo saír da esfera particular e passar a integrar uma esfera pública, o
que inspira mobilização e atuação coletiva. Observamos que há uma passagem
do indivíduo para o coletivo, isso é o que encaramos como fator da subjeti-
vidade, a atuação no coletivo com ações concretas o que podemos entender

or
de algumas falas é que esse sujeito exerce seu potencial de contribuir com o

od V
coletivo quando exercem seu potencial de liderança nas manifestações que

aut
se configuram como públicas e de caráter coletivo na tentativa de contribuir
em sanar as demandas do grupo.

R
Considerações finais

o
A situação vivenciada pela comunidade quilombola de Umarizal, no que
aC
concerne a vida cotidiana e a relação com a educação tratada como Pedagogia
específica do movimento quilombola se mostra desenvolvida por seus mem-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

bros e apresenta traços de aproximação que vão ao encontro da atuação dos


seus líderes no desdobramento dos processos de resistência desenvolvidos
visã
por estes sujeitos, tal como demonstrado no decorrer deste trabalho.
Nesta perspectiva, perpassamos pelo conceito de liderança e percebemos
os inúmeros significados atribuídos por essa categoria ao longo da história,
itor

verificou-se, assim, que as várias concepções do processo colonial coincidem


a re

com as práticas e os saberes locais da comunidade de Umarizal e que sua


Associação Quilombola é crucial para o exercício da cidadania e reconheci-
mento destes sujeitos como agentes políticos. Foi neste sentido que colocamos
em cena as narrativas e posicionamentos de sujeitos que buscam inserir-se
par

no cenário político e social local, regional e nacional, aproximando-nos da


realidade comunitária vivenciada, em especial, na Comunidade Quilombola
Ed

de Umarizal-Beira, Baião, no estado do Pará.


Analisando o processo de constituição da liderança quilombola enten-
demos que estas lideranças são constituídas de bases étnicas, históricas, polí-
ão

ticas e educativas, visando uma aproximação com a Educação das Relações


Étnico-raciais. É justamente no contexto social que se inserem as atitudes
destes sujeitos, cujos repertórios cultural e político apontam para a concepção
s

de que descendem de povos africanos e que vivem as consequências de um


ver

processo de diáspora, herdando, consequentemente, a condição humana de


subalternização pós-colonial.
Importante elemento que balizou nossa reflexão pesquisa foi o contato
com a liderança no âmbito do seu mecanismo político e de mobilização, isto
é, a Associação Quilombola, que tem como principal finalidade a representa-
ção de seus sócios em busca de manter acesa a esperança por um futuro mais
igualitário do ponto de vista social.
450

Apropriando-se das correntes teóricas que fundamentaram a pesquisa,


verificamos ainda que o Pós-colonialismo está pautado na exponenciação dos
valores sociais e formas culturais característicos das comunidades afrodes-
cendentes, em especial os quilombolas da Comunidade de Umarizal Beira.
Compete, ainda, salientar que a opção que se fez pelo Pós-colonialismo, pos-

or
sibilitou lançar mão de ferramentas teóricas que ajudaram na compreensão do

od V
sujeito como um ser social, e ainda mais importante, identificar a dinâmica

aut
da construção de medidas efetivas com o intuito de romper com a opressão
histórica dos seres humanos sobre os outros.
A ênfase dada ao povo quilombola tem fundamento no conjunto de ações

R
que faz destes indivíduos militantes representarem proposta de sociedade
que busca reconhecer e minimizar os impactos que o processo de escravi-

o
dão, exclusão e opressão negra deixou como herança. Este fato é facilmente
aC
depreendido do discurso da liderança, principalmente no que diz respeito ao
consenso de que é necessário o reconhecimento de ações que contribuam

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


com o reconhecimento e reparação, por meio de ação afirmativa à população
negra, em especial a quilombola.
visã
Com base nas significativas falas da liderança quilombola entrevistada, uma
das contribuições deixadas por esta pesquisa, apontam para a necessidade de
valorizar e implementar de fato e de direito instrumentos jurídico e normativos
itor

já existentes, que possam contribuir na valorização dos saberes afro-brasileiros,


a re

abrindo as portas das nossas instituições para as comunidades remanescentes de


quilombo, apropriando-se dos direitos já conquistados, mas, principalmente, bus-
cando intervir na superação das assimetrias que persistem em distanciar a prática
da cidadania daquilo que é posto enquanto direito. Desse modo, faz-se necessária
a participação e emancipação dos sujeitos, de todos os sujeitos e seus saberes e
par

culturas, especialmente as novas gerações, na construção e continuidade de sua


Ed

história de luta e resistência por conquistas de direitos sociais.


A liderança quilombola é constituída por um conjunto de instruções que
se angariam na participação de outros movimentos de resistência. Essa lide-
ão

rança é fruto da dinâmica histórica do povo negro no Brasil, que se constitui


no lugar situado, contextualizado.
s
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 451

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par

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Ed
s ão
ver
ENTRE AS MARGENS
E O PROTAGONISMO:
o viver inventivo das juventudes

or
negras no Brasil

od V
aut
Juan de Araujo Telles
Maria Helena Zamora

R
Dedicamos esse texto à memória de Ketlhen Romeu, 24

o
anos, negra, grávida, baleada em uma intervenção policial
aC no Complexo do Lins (RJ), em oito de junho de 2021.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O Brasil está diante de um extermínio generalizado de sua população


jovem, em especial, a parcela negra (CERQUEIRA; LIMA; BUENO et al.,
visã
2019, 2020; UNICEF, 2020; SANTOS; GUILHERME, 2020; BRASIL, 2017;
WAISELFISZ, 2014, 2015, 2016). Por esta razão, não há debate mais urgente
nesse país que o genocídio da juventude negra (GOMES; LABORNE, 2018).
itor

Cabe destacar que genocídio é a “recusa do direito de existência a grupos


a re

humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de


suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos
nacionais e religiosos” (NASCIMENTO, 2017, p. 15). Com esta definição
ampliada do termo é possível imaginar o dano que as populações negras têm
sofrido, no Brasil, ao longo dos séculos. É uma vivência que está muito além
par

dos constantes episódios de violência policial, em seus territórios.


Ed

Apesar de celebrarmos o dia internacional da juventude, no dia 12 de


agosto, data definida pela ONU em 1999, desconhecemos políticas públicas
voltadas para as juventudes negras, que realmente foram implementadas. Na
ão

contramão dos dados, o Estado brasileiro tem investido em cortes e em proje-


tos que vulnerabilizam a situação atual das juventudes negras e comprometem
suas perspectivas de futuro. Há falta de investimento e planejamento a longo
s

prazo, especialmente nos últimos dez anos, que se acentua. O enfraquecimento


ver

das instituições de ensino, a chamada guerra às drogas, a falta de garantias e


direitos no mercado de trabalho, a carência dos ensinos técnicos e profissio-
nalizantes, são apenas alguns exemplos da falta de investimento como um
projeto que culmina na vulnerabilização das juventudes negras.
Em 2015, a Anistia Internacional lançou a campanha “Jovem Negro Vivo”,
que evidenciou que das 56.000 pessoas que foram assassinadas no Brasil em
2012, 30.000 eram jovens entre 15 a 29 anos e desse total 77% eram negros.
454

Esta foi uma das campanhas mais expressivas, no que se refere à denúncia
sobre as condições alarmantes de violência, que a juventude negra é exposta.
Em 2017, pressionada pelos movimentos sociais, sobretudo, pelos movi-
mentos sociais negros, a ONU lançou a campanha de mobilização nacional,
chamada “Vidas Negras”, que buscou visibilizar o problema da violência

or
contra a juventude negra no país. O intuito era chamar a atenção e sensibilizar

od V
a sociedade brasileira para os impactos do racismo na restrição da cidadania

aut
de pessoas negras e pensar um modo de enfrentar essa questão.
Como se pode constatar, as mobilizações para o enfrentamento do geno-

R
cídio da juventude negra, por vias institucionais reconhecidas, são recentes e
ainda muito estão aquém da proporcionalidade do problema. Recentemente os
dados da violência e a restrição à cidadania foram diretamente associados ao

o
problema do racismo, buscando a conscientização e mobilização social. Ainda
aC
assim, apesar dos altíssimos índices de homicídio de jovens negros, o tema é em
geral tratado com indiferença na agenda pública nacional, demonstrando que:

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
“ Não há flagrante mais incontestável de uma política de extermí-
nio em massa: deve-se matar os negros em quantidade, atingindo prefe-
rencialmente os jovens enquanto cerne vital da continuidade de existência
do grupo ”(FLAUZINA, 2006, p. 116).
itor
a re

De acordo com a autora, o recado mais claro e atordoante desse cená-


rio não se limita ao fato de a maior parte dos alvos do homicídio seja de
negros, mas que tal eliminação física tem por consequência a inviabilização
do segmento enquanto coletividade, contra o futuro, contra as possibilidades
de todo um contingente existir e se reproduzir.
par

Geralmente, quando pensamos as juventudes negras as enxergamos a


Ed

partir destas violências – armadilha fácil, uma vez que nos deparamos com os
noticiários repletos de casos de violência, ainda que não nomeado diretamente
o racismo. Aliás, quando a nomeação ocorre, o caso é visto como isolado, de
ão

ordem anormal ou patológica, situação que atrapalha, e muito, a compreensão


e superação do problema.
Mas é possível inverter a lógica dada e enxergar as juventudes negras
s

como potências criativas, ainda que falando de seus desafios de enfrentamento.


ver

Para substanciar o rompimento com a lógica do senso comum, faz necessária


a interlocução, a confluência de ideias, entre três grandes pensadores da inte-
lectualidade negra: Franzt Fanon, Bell Hooks e Abdias Nascimento.
Franz Fanon, foi um psiquiatra martinicano, filósofo, um dos principais
intelectuais e ativistas do século XX. Suas obras falam sobre as consequências
psicológicas da colonização e sobre os processos de descolonização – pen-
sando o racismo do ponto de vista objetivo e subjetivo – propondo saídas para
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 455

dominação colonial, disruptivas com a ordem dada, instaurando espaços de


liberdade frente ao cenário colonial (FAUSTINO, 2015).
Já bell hooks é uma filósofa, professora universitária, escritora, ativista
estadunidense. Publicou mais de trinta livros e numerosos artigos acadêmicos.
Intelectual transdisciplinar fundamental. Suas obras falam de intersecciona-

or
lidade, amor, práticas pedagógicas. Também faz proposições para o enfren-

od V
tamento da dominação colonial (ALMEIDA, 2021).

aut
Abdias Nascimento foi um importante intelectual brasileiro, que atuou
em diferentes áreas. Foi ator, professor universitário, político, ativista pelos

R
direitos humanos, poeta, artista plástico, dramaturgo e poeta. Suas obras falam
sobre a composição da população brasileira e as violências, em diferentes
campos, sofridas pelas populações negras, visando contribuir para a emanci-

o
pação efetiva dessas populações, propondo modos de organização e criação
aC
de instituições (MACEDO, 2018).
Os três intelectuais escolhidos para sustentar a proposta de enxergar as
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

juventudes negras sob outro prisma têm em comum as propostas de ruptura


visã
frente às permanências coloniais. Estão preocupados com a emancipação de
corpos e mentes, com organizações coletivas e individuais. Não se trata da
“invenção da roda”, com a repetição das soluções pensadas simplesmente
pela via da política partidária.
itor

Nem tampouco de ideias intangíveis a vida cotidiana dessas populações.


a re

Pelo contrário. São ideias e propostas que valorizam as dinâmicas próprias já


existentes em muitas dessas populações e a possibilidade de criação de novos
cenários, como ressalta Frantz Fanon:
par

“ Não sou prisioneiro da história. Não devo procurar nela o sentido do meu
destino. Devo me lembrar, a todo instante, que o verdadeiro salto consiste
Ed

em introduzir a invenção na existência. No mundo em que me encaminho,


eu me recrio continuamente” (FANON, 2008, p. 189).
ão

A leitura de Fanon sempre inquieta muito. Suas proposições são asserti-


vas e nos convocam ações concretas de mudança e enfrentamento da realidade.
Trazendo este fragmento é possível ver o alerta do autor aos códigos comuns
s

feitos para o aprisionamento. As categorias de raça, inventadas por europeus


ver

e ocidentais, norteiam o mundo contemporâneo. Ora, tanto o negro como o


branco são invenções, apesar de elas pautarem fatidicamente as vidas das
populações e os lugares sociais. Uma forma de enfrentar tal sistema simbó-
lico é justamente romper com tais categorias, superando-as (FANON, 2008).
Esse fragmento revela também a aposta de Fanon no potencial (re)inven-
tivo da existência em contraposição ao que já está dado. A incapacidade de
se colocar como sujeito no mundo, que Fanon chama de alienação colonial,
456

é para ser superada. A partir daí pode surgir a possibilidade de escrevermos


outras histórias, a partir de uma autoria própria dos sujeitos.
Esse processo (re)inventivo é um corte na historicidade racista que ante-
cede o negro, que antecede o seu esquema corporal (“alguém que é de antemão
alguma coisa”), ou seja, promove o rompimento com a história social e racial,

or
que pela via da epidermização da inferioridade, aprisiona o negro nas categorias

od V
e nas experiências alienantes criadas pela lógica colonial, que são desorgani-

aut
zadoras para o sujeito, como a experiência da racialização (FANON, 2008).
Fanon (2008) aponta para os processos criativos, para construção de

R
outras formas de vida que não as dadas pela história colonial. Em resumo,
isso é descolonização, criação de outros mundos e possibilidade de existência,
movimento que nos lança em direção à emancipação psicológica, cultural,

o
política e econômica.
aC
É um caminho que não está dado, não há fórmula a ser aprendida, mas
que é possível e palpável, haja vista o histórico de lutas e ações emancipató-

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rias, comunidades e modelos civilizatórios que existiram e existem até hoje em
seus modos de vida contracoloniais. Um exemplo disso são as comunidades
visã
quilombolas, diferentes povos indígenas, as redes e organizações de profis-
sionais negros e negras, que repensam práticas de comunicação e empreen-
dimentos. Tudo isso é a autoria própria dessas populações como sujeitos em
itor

busca de emancipação.
a re

Isso perpassa a restituição de diversas humanidades que foram negadas


pelo colonialismo e, para além desse movimento, está à possibilidade de
construção de outro mundo possível, outra maneira de ser e estar, outros
modos de interação consigo, com a comunidade e com o ambiente. Assim
par

se dá a dinâmica de novas narrativas, e por isso essa movimentação é tão


combatida pelo sistema ocidental capitalista, não só com a violência contra
Ed

corpos desumanizados, mas também no campo simbólico, capturando seus


valores, esvaziando seus conceitos e transformando suas narrativas simbólicas
em produtos mercadológicos (FAUSTINO, 2015).
ão

Essa proposição de Fanon dialoga com o movimento agenciado pelas


juventudes negras nos dias de hoje, através de seus múltiplos agenciamentos
coletivos. Que é o de reinvenção das perspectivas de vida, de futuro, distantes
s

das ficções dominantes criadas na modernidade, onde eles não cabem; pelo
ver

contrário, que os aprisionam, que limitam o seus potenciais de vida, que os


subalternizam e que os mortificam, de alguma maneira. Neste sentido, Telles,
Zamora e Câmara (2020) argumentam que desafio que se coloca é fazer morrer
em nós esses padrões, os ideais normativos e brancocêntricos.
Para Fanon (2005; 2008), não basta mudar as visões sobre o mundo, ou
ressignificá-las. É preciso mudar o mundo. Se o narcisismo europeu definiu
o que é o humano e quem é o humano, o ciclo da liberdade se instaura na
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 457

invenção de outras humanidades, da vida a partir de outros fundamentos, que


não os eurocêntricos. Neste sentido, um importante mecanismo de ruptura
é a desalienação.
Todavia, este não é um exercício de fácil execução, não se cria algo do
nada, é preciso uma base. Uma estratégia interessante para isso está no San-

or
kofa, símbolo adinkra, dos povos akan, representado pela figura de um pássaro

od V
com a cabeça voltada para calda, símbolo da sabedoria e do conhecimento,

aut
que significa que “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para
trás” (OLIVEIRA, 2016).
A partir desse símbolo, pode-se pensar em um movimento de reconexão

R
com saberes e histórias silenciadas. Histórias que não começaram na coloni-
zação. Então, esse é um movimento que resulta na valorização de si, de sua

o
história. Possibilita uma tessitura afetiva de sua própria história. Possibilita
aC
a passagem da culpa e do auto ódio (que são efeitos do racismo) para eman-
cipação. Resulta também na devolução dos males causados pela branquitude
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e, sobretudo, na responsabilização política dos brancos no enfretamento do


racismo (TELLES; ZAMORA; CÂMARA, 2020).
visã
Neste sentido, as juventudes negras, em toda sua potência, têm apostado
num viver criativo, reinventivo de suas formas de vida próprias. Criando novas
narrativas, discursos, imaginários, realidades – em diversos segmentos – esti-
itor

lhaçando a máscara do silêncio, como diz a escritora Conceição Evaristo. É


a re

possível traçar esse movimento por diversas gerações, cada qual a sua maneira,
frente às novas necessidades. Há, como Sankofa, um retorno, ou atualização
orgânica dos movimentos de gerações passadas. Histórias que se cruzam e
tecem, ao longo do tempo, um viver contracolonial (SANTOS, 2019).
par

Vemos inúmeros agenciamentos políticos das juventudes negras nas fave-


las, com suas agendas de transformação social, de garantias de direitos e de
Ed

sobrevivência de suas comunidades. Neste período de pandemia da Covid-19


surgiram, em várias favelas, mobilizações encabeçadas por coletivos compostos
principalmente por jovens que entregam cestas básicas, materiais de higiene
ão

e limpeza para a população; assim como amplas mobilizações coletivas nas


redes sociais, conscientizando sobre os devidos cuidados sanitários e pessoais
e protestando contra operações policiais neste período mais vulnerável. Essa é
s

uma prova de que o caminho para a autonomia e manutenção dessas comuni-


ver

dades deve ser tecido e pensado por seus próprios integrantes, como agentes.
Historicamente diversas instituições foram e são criadas para atender as
demandas da população negra, lideradas principalmente por mulheres negras.
Isso assegurou a sobrevivência da população negra até aqui. Muitas foram
e são as investidas de morte, mas a juventude segue criando estratégias de
enfrentamento a realidade racista que impera no Brasil, ao longo de seus
séculos de existência (GOMES; LABORNE, 2018).
458

Neste sentido se dá o encontro de bell hooks com Frantz Fanon: na aposta


do resgate do amor por si, por sua comunidade e na construção, na criação
de um novo imaginário, de um novo mundo, em que as múltiplas formas e
expressões de vida e afeto sejam possíveis para a população negra. A partir da
definição de suas próprias realidades, do estabelecimento de suas identidades e

or
da nomeação de suas histórias, ou seja, tornando-se sujeitos. (HOOKS, 2019a).

od V
Por esta razão, a lógica do afeto inscreve na construção de suas autono-

aut
mias frente aos padrões de dominação, impostos pelo colonialismo europeu,
que colonizou territórios geográficos e existenciais. Essa lógica apresenta uma
política anti-colonial, ou contracolonial, de libertação das opressões impostas.

R
Para Bell Hooks (2019a; 2019b), a margem é um lugar de repressão, mas
também de resistência. A margem é vista, por ela, como um lugar de possibi-

o
lidades. Hooks propõe o movimento de pensar a margem para o centro, com
aC
deslocamentos geográficos, institucionais e afetivos. Com isso, torna-se pos-
sível a criação de novos papeis, fora da ordem colonial, e, novamente, a pos-

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sibilidade de mundos alternativos, novos discursos e horizontes significativos.
Aqui no Brasil, um deslocamento significativo foi a entrada da juventude
visã
negra nas universidades, a partir das cotas, reordenamento jurídico, político e
epistemológico, que afetou vários âmbitos da sociedade. A partir disso, houve
uma crescente na produção de estudos sobre o racismo, por exemplo. Não é
itor

por acaso que esses corpos, suas performances e saberes são tão combatidos
a re

nesses espaços, seja pela própria instituição ou até mesmo por ações governa-
mentais, com ações concretas como cortes de verbas, bolsas e investimentos
essenciais para a educação das populações negras.
Entretanto, a juventude é viva, pulsante, potente. Tem movido as estru-
par

turas, tem se organizado coletivamente. Os jovens têm criado articulações e


movimentações políticas de luta contra as desigualdades. E têm resistido às
Ed

investidas mortíferas do racismo em suas mais diferentes facetas; aliás, quanto


mais discutido e debatido, mais atualizado e mais se empenha em encontrar
outras formas de morte.
ão

O maior desafio é superar o racismo que construiu a ideia do corpo ini-


migo, perigoso, que desarmoniza a ordem social; ideias construídas a partir
das teorias racialistas, eugenistas, higienistas que surgem a partir do final
s

do século XIX e começo do século XX. Teorias que não estão distantes dos
ver

dias atuais, visto que além de estarem impregnadas nas estruturas sociais, é
possível enxergar seu eco nas mentalidades e nas relações sociais, operando
no plano da normalidade, a que as populações estão submetidas (ALMEIDA,
2018). A sua desconstrução é constante e urgente.
Como ressalta Fanon (2005), o racismo se configurou como uma das
maiores estratégias de permanência da lógica e do pensamento colonial, man-
tendo o grupo branco no topo da hierarquia racial inventada por eles próprios.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 459

Este é um modo genocida de operar. O genocídio, por si só, é um sintoma


colonial e todo sintoma colonial é uma produção política.
Trazer Abdias Nascimento (2017) para essa interlocução é importante,
porque ele nos trás elementos para pensarmos o racismo em nossa realidade.
Este intelectual afirma que o Brasil é um país anti-negro, devido às suas políti-

or
cas de morte direcionadas as populações negras, e aqui se pode referir a várias

od V
delas, como a guerra as drogas. Viver nesse contexto significa ter sua produção

aut
subjetiva forjada em processos e lógicas que a subjuga, animaliza e extermina.
Sendo assim, este é um terreno infértil, sobretudo, para as juventudes negras.
A juventude negra, como se vê, é o alvo preferencial das políticas de

R
morte. Diversos índices e marcadores sociais revelam que a população negra
está em condições inferiores em relação à parcela branca. Gomes e Laborne

o
(2018) destacam uma pesquisa da Seppir e do Senado Federal (2012), por
aC
exemplo, que constatou que 56% da população brasileira concorda com a
afirmação de que “a morte violenta de um jovem negro choca menos a socie-
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dade do que a morte de um jovem branco” (ONU, 2017).


Não é novidade que a cada 23 minutos morre um jovem negro (ONU,
visã
2017). Taxas de homicídio só crescem, enquanto que as de jovens brancos
diminui (BRASIL, 2017). O Atlas da Violência (2019; 2020) demonstra que
no Brasil, um indivíduo negro possui probabilidade significativamente maior
itor

de sofrer homicídio quando comparado a indivíduos de outra raça/cor e aos


a re

21 anos essa chance estatística chega ao pico. Para os sujeitos pretos e pardos,
há 147% de chances a mais de que eles sejam vitimados por homicídios, em
relação a indivíduos brancos, amarelos e indígenas.
Não bastando, o suicídio subiu 12% - A cada 10 suicídios 6 são de ado-
par

lescentes e jovens negros (FIGUEIREDO, 2019). Ou seja, o cenário é crítico


e os dados comprovam a ideia de Nascimento. O Brasil é um país antinegro,
Ed

e sua política de morte é responsável pelo extermínio simbólico e material


da juventude negra e suas subjetividades.
Não é possível pensar esse cenário sem a compreensão dois concei-
ão

tos importantes: O racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) e a necropolítica


(MBEMBE, 2018). O primeiro pode ser definido como sendo: “uma forma
sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se
s

manifesta por meio de práticas conscientes e inconscientes que culminam


ver

em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo social


ao qual pertençam” (ALMEIDA, p. 25, 2018).
Aqui no Brasil se pensa o racismo como uma violência direta, anorma-
lidade, mas ele não pode ser visto apenas por este aspecto. Conforme ressalta
Almeida (2018), o racismo constitui as relações. É estrutural e estruturante.
Uma forma de racionalidade, de normalidade. Fenômeno complexo, conjun-
tural, de várias faces. É como um polvo, com vários tentáculos. O racismo
460

está na violência em todas as suas formas e expressões, em diferentes âmbitos


da vida cotidiana das sociedades.
É preciso despatologizar o racismo, e como defende Nascimento (2017),
encarar e suportar a realidade de que o Brasil é uma sociedade racista. A partir
disso, o que deve ser feito é tirar a discussão do campo moral, e mais, olhar para

or
o problema racial não apenas na ordem do preconceito, no campo individual,

od V
mas como algo que está para além, presente na estrutura e na dinâmica de

aut
todas as instituições que mantém a sociedade de pé, à custa de pessoas negras.
O segundo conceito importante de ser compreendido é o da Necropolí-

R
tica, ou seja, a política de morte, poder da morte sobre a vida; Neste ponto é
fundamental a observação sobre a atuação do Estado Brasileiro ao longo dos

o
anos. Ora, os índices e dados de violência a que as populações negras estão
submetidas revelam números equiparados à territórios em guerra. E quando
aC
não matam os corpos negros diretamente, deixa-os morrer. A necropolítica
também está ligada a morte simbólica dessas populações, como o epistemi-

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cídio, que consiste no apagamento e morte de seus saberes.
visã
Esses fenômenos estão localizados no ceio da sociedade brasileira ao longo
dos séculos, sofrendo atualizações e sofisticações, ganhando novas formas e
modos de operação. Mas se não são novidade, por que só agora o tema entra
em efervescência? Por que só agora é que se fala disso em campos midiáticos
itor

e para o grande público? O que a negação dessas questões é capaz de revelar?


a re

É preciso pensar as raízes coloniais que ainda fundamentam as práticas


e mentalidades sociais, ainda nos dias de hoje. Isso tem muito haver com a
historicidade de opressão. O estudo do colonialismo, da colonialidade, sob
a ótica de intelectuais negros se faz cada vez mais urgente. Antes de tudo, é
par

preciso compreender que o modo pelo qual se opera a nossa escuta ainda é
colonial (TELLES; ZAMORA; CAMARA, 2020).
Ed

Talvez esse seja o maior desafio de pesquisadores e intelectuais bran-


cos, uma vez que esses corpos temem a racialização, por conta do medo de
suas potencialidades serem reduzidas a raça, como os corpos negros são.
ão

Fora isso, outro grande medo é o de se deparar com a responsabilização,


quando se encara a historicidade de opressão. Daí esses corpos investem
s

cada vez mais em seus pactos narcísicos, mantendo o estatus quó (BENTO;
ver

CARONE, 2002).
Frantz Fanon, bell hook e Abdias Nascimento apontam caminhos de
emancipação. A proposta de diálogo entre esses três importantes intelectuais
se deu no intuito de pensar, de maneira consistente, a tessitura de autonomia
por vias próprias, pautada na autodeterminação, na valorização das comuni-
dades negras. Mas a luta antirracista não se dá apenas por pessoas negras. É
importante salientar essa questão.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 461

Uma vez que o racismo foi inventado e esquematizado por pessoas bran-
cas, as beneficiando diretamente ao longo da história, até os dias atuais, é de
suma importância a sua implicação frente à colonialidade e a luta antirracista.
O que muda é de onde se está falando. Não se pode achar que conhece a dor
do outro, ou achar que estudou todos os dados. A partir dos dados, é possível

or
considerar a vivência. Isso é o que precisa ser feito: criar espaços seguros para

od V
a discussão, estudo e, sobretudo, para construção de vias de ações concretar

aut
para mudar a realidade que está dada.

Atravessamentos interseccionais

R
Quando se fala sobre as margens, é preciso considerar um fator de suma

o
importância: a interseccionalidade. Até aqui o tema se deteve na juventude
aC
negra, em suas implicações e estratégias inventivas, apesar do cenário árido a
que está acometida. Há muito que se falar nesta seara, mas é preciso esmiuçar
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ainda mais a temática, e pensar na composição dessa juventude, que é plural. É


sob este aspecto que entra a interseccionalidade (TEIXEIRA; ZAMORA, 2019).
visã
A interseccionalidade aponta para a sobreposição das identidades, e as
relaciona com o sistema de opressão imposto aos corpos identitários. Isso é
importante para entender que apesar de a opressão vir de uma mesma matriz,
itor

ela atingirá aos corpos de maneira diferente e, ainda, há corpos que estarão
a re

mais vulneráveis diante do sistema opressor (CRENSHAW, 2002).


A partir dessa informação, ainda que dentro da temática de juventude,
é possível pensar em um novo elemento: As mulheres jovens negras. Esses
corpos enfrentam outros esmagamentos, demandam outras necessidades e
estão em um lugar diferente diante do sistema opressor. Nesta direção, por
par

serem mulheres e negras, ocupam a base da pirâmide social (RIBEIRO, 2017).


Vale salientar que uma análise como essa não tem por objetivo reduzir a
Ed

realidade ao exame dos casos. Caso fosse isso, se trataria de um debate infru-
tífero, pois se prestaria ao papel de disputa sobre quais corpos sofreriam mais
ou menos. A questão por trás dessa análise é a complexificação, buscando uma
ão

compreensão ampla dos lugares sociais, entendendo a dinâmica de opressão


e suas diversas facetas, para se reagir frente a elas.
s

Compreendendo isso, torna-se muito mais interessante, e produtivo,


pensar o porquê da existência de um sistema que precisa fazer com que deter-
ver

minadas pessoas sofram muito mais por estarem vivas, sendo obrigadas a
cederem direitos básicos, e terem que viver afirmando sua existência.
Uma coisa é crescer. Outra coisa é crescer contra. Não é preciso estudar
muito para compreender o peso do racismo colorista, por exemplo. Quanto
mais retinto o corpo, mais opressão ele tende a sofrer. A opressão recai de
maneira especial sobre as mulheres negras, igualmente utilizadas, animalizadas,
reduzidas a sua sexualidade e exploradas no trabalho (GONZALEZ, 1984).
462

Há dados inquietantes que colocam as jovens negras, que estão entre as


maiores porcentagens de gravidez na adolescência e juventude, com menos
possibilidades, por exemplo, de tomar decisões sobre seu próprio corpo. Ape-
nas com o consentimento do marido, ou companheiro, é que a mulher pode
decidir sobre sua contracepção, por exemplo, se ela decide ligar as trompas.

or
Aliás, a contracepção é um problema da mulher, culpa da mulher, e ela que

od V
resolva, caso fique grávida. Na ponta, onde estão os mais oprimidos, e são

aut
os economistas que falam, está a mulher negra, mãe de vários filhos, e cami-
nhando sozinha (SILVA, 2017).
Quando somamos outras questões, se vê, nesta jovem negra, que mui-

R
tas vezes não tem um companheiro, uma família que é vista como irregular,
problemática, e, ainda, uma expressão absolutamente infeliz: Famílias deses-

o
truturadas. É preciso que psicólogos dignos desse nome, assistentes sociais e
aC
estudiosos de maneira geral, abandonem de imediato este termo.
A mulher negra, neste quadro, tem seu arranjo familiar desvalidado e

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marginalizado, porém a questão é: ela não tem a composição da família bur-
guesa clássica (pai, mãe e filhos). É preciso entender que este modelo de
visã
família burguesa já não é tão predominante assim, e em muitos lugares, nem
se quer é a maioria.
Contudo, esses outros arranjos familiares da mulher negra, por sua sobre-
itor

vivência, bastante abandonada, com a sua prole, tendo que trabalhar, não
a re

encontrando acesso a estruturas e equipamentos sociais ou políticas públicas


que funcionem, são elas mesmas, acusadas de negligência, ou como falou um
ex-governador do Rio de Janeiro, são fábricas de marginais.
O que muito se tem visto, e esses dados precisam ser cruzados, é: além
par

dessa jovem negra, geralmente ser mãe, ela não tem sua família reconhecida.
Ela não é reconhecida quando vai a procura seus direitos, ou então quando
Ed

tenta obter algum tipo de apoio. Deste modo, essa mulher se encontra ainda
mais sozinha, experimentando a face mais cruel das desigualdades, devido o
acúmulo de imposições sociais que carrega em seu corpo (CARNEIRO, 2011).
ão

Qualquer falha é atribuída a ela. Qualquer problema em relação ao compor-


tamento esperado das crianças e dos adolescentes que estão com ela, é atribuído
às suas falhas, individualizando e culpando esta mulher, via de regra solitária.
s

Isso se torna muito mais perceptível quando se está em trabalhos sociais, acom-
ver

panhando mães de adolescentes em conflito com a lei, por exemplo.


Ainda neste campo, é possível verificar que é uma batalha dura e difícil,
quando mulheres, meninas mais jovens, ditas infratoras, criminalizadas, ten-
tam protagonizar suas existências, afirmando possibilidades outras, a partir
de suas estratégias de vida e de sobrevivência frente ao cenário estéril e hostil
que as cerca. Sobre essas jovens recaem os olhares de culpa, assim como recai,
também, sobre as mães de jovens em conflito com a lei (CASTRO, 2019)
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 463

Há mais dados que complexificam ainda mais a questão ao serem cru-


zados, compondo melhor a gravidez dessa jovem mãe, dessa jovem adoles-
cente. Entre maiores números do surto de Zika que se teve notícia, e outras
doenças próximas, que traziam problemas de mau funcionamento dos órgãos
da criança, a grande maioria dos casos aconteceu com mulheres negras. E

or
elas continuam a criar, sozinhas, essas crianças que precisam do dobro de

od V
cuidados (SILVA, 2017).

aut
Seria, ainda, de suma importância que se pensasse o porquê o dobro das
mulheres negras grávidas, e puérperas, conhecem a morte na pandemia da
Covid-19 (SANTOS; MENEZES; ANDREUCCI et al., 2020). Os dados são

R
alarmantes, resultado do sistema que ainda marginaliza os corpos de jovens
negras, negando a elas o acesso ao cuidado, à saúde, e a outros direitos básicos.

o
Silva (2017) argumenta que é muito importante trazer uma das dimensões
aC
da interseccionalidade, que seria a questão do gênero, da maternidade, da
constituição dessa família que ainda é vista como irregular e desestruturada,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e como isso faz com que mesmo os programas sociais, as organizações não
governamentais (ONGs), aqueles que trabalham no sistema de garantia de
visã
direitos, operarem com uma lógica que, no fim das contas, é brancocêntrica,
referida a uma realidade burguesa, que atua arraigada de moralismos.
Ainda opera a ideia do século XVIII, inventada pelo colonizador europeu,
itor

que é a divisão entre: pobres merecedores e pobres não merecedores. As fra-


a re

ções da classe trabalhadora que merecem acessar os “auxílios” e as políticas.


É notável como a moral brancocêntrica permeia as diversas instâncias, em
diferentes campos sociais. É preciso notar para essa lógica de pensamento,
para esse mecanismo moralizante, e garantir, de fato, o acesso a direitos,
par

sobretudo, em tempos como este, em que as disparidades raciais no excesso


de mortes da covid-19 se acentuam (MARINHO; TEIXEIRA et al., 2021).
Ed

Castro (2019) demonstra que a seletividade no Brasil é orientada pelo


racismo. Desta forma, é o racismo que determina com quem a sociedade se
importa, quem é o bom, quem é o são e o direito, quem é aquele que deve
ão

viver. Neste cenário, as jovens negras são as mais desprivilegiadas, simples-


mente, por vivenciarem a intersecção entre raça e gênero.
Vê-se que a discussão sobre racismo e se torna central, de muita impor-
s

tância. E dentro dessa questão, é preciso olhar para todas as singularidades.


ver

Um psicólogo, assistente social, ou qualquer outro profissional que atue com


essas populações, precisa ver o aspecto da interseccionalidade, visto que se
configura como um instrumento de análise para perceber essas várias formas
de opressão e a interseção entre elas (TEIXEIRA; ZAMORA, 2019).
Faz toda a diferença o pertencimento negro e indígena. Faz toda a dife-
rença ser adolescente ou ser jovem, porque todas as tentativas de protago-
nismo, ou mesmo de afirmar a sua vida, de se constituir fora dos padrões,
464

são desvalidadas, questionadas e sufocadas. Quando se cresce contra, é muito


mais difícil afirmar, dessas margens, a própria existência.
O que se precisa fazer é considerar, verdadeiramente, a perspectiva da
interseccionalidade. Há outros estudos que também agregam ao debate, como
o conceito de Imbricação. A partir desse movimento de busca de conheci-

or
mento, é possível adotar o termo que mais se afina com os ideais de atuação,

od V
mas o se debruçar sobre campo dos estudos decoloniais é urgente.

aut
Então é preciso pensar: o que mais essa pessoa enfrenta? Faz diferença
morar em uma cidade pequena ou na capital, faz diferença o pertencimento

R
religioso, faz diferença pensar os acessos às redes sociais que essa pessoa
dispõe, em que lugar da cidade ela mora. É preciso olhar para essa pessoa
com o olhar do novo.

o
É preciso entender, cada vez mais, o mundo opressivo, que não deve ser
aC
idealizado, porque quando se idealiza esse mundo, chamando essas pessoas
de heróis, corre-se o risco de fazer o discurso da meritocracia. Discurso esse,

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que é facilmente desmentido com a análise de dados e observações sociais
visã
honestas e implicadas. Por esta razão, nos cabe uma responsabilização polí-
tica, enquanto sociedade, frente às questões aqui colocadas, para pensarmos
outras possibilidades de futuro.
itor

Considerações finais
a re

O tema do genocídio da juventude negra precisa ser encarado com res-


ponsabilidade pela agenda pública nacional e pelos mais diversos seguimen-
tos da sociedade civil, visto os efeitos psicossociais nefastos gerados pela
par

produção de mortes na realidade brasileira. É urgente que enfrentemos essa


problemática, que se perpetua devido à naturalização da violência, da morte e
Ed

do racismo. É preciso que nos mobilizemos para o enfrentamento desta ques-


tão, pois as violências geradas pelas ações do governo brasileiro estão longe
de garantir segurança pública, pelo contrário, contribui para intensificação da
ão

criminalização da juventude negra.


Apesar de a raça ser utilizada historicamente pelo Estado Brasileiro como
fonte de extermínio, a juventude negra tem feito uso ético, estético e político
s

do termo, ressignificando-o como símbolo de afirmação, luta e emancipação,


ver

buscando alternativas outras de se viver, denunciando o racismo de diversas


formas e expressões, e se recusando a ocupar o lugar social da morte.
As ações genocidas são políticas, bem como todo sofrimento advindo
das lógicas que as mantém. Todavia, cabe ratificar, que as juventudes negras,
apesar dos desafios que encontram num território antinegro como o Brasil,
tem apostado na construção de novos mundos, a partir de suas próprias auto-
determinações e referências, alheias as corporeidades e invenções coloniais
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 465

aprisionantes. Novos mundos e novos reordenamentos afetivos que possibili-


tam que o viver seja experienciado em toda sua potência, em que as suas múl-
tiplas formas de ser e estar sejam possíveis e plenamente vividas de maneira
pulsante, desejante e autêntica.
Evidenciar as dimensões sócio-históricas, políticas, culturais e as inter-

or
secções que constituem e singularizam os corpos, em especial, os corpos

od V
negros no Brasil, e refletir sobre as condições materiais e simbólicas que os

aut
produzem, é fundamental para qualquer análise no campo psi. Nos constituí-
mos neste mundo estruturado pela matriz branca cis-heteronormativa patriarcal
e capitalista, portanto, carregamos suas significações e construções.

R
Por fim, descolonizar além de uma palavra de ordem precisa ser uma
prática de vida, em todas as suas dimensões. É nesse sentido que Fanon nos

o
convoca. Que empreguemos todos os esforços necessários para que a vida
aC
se sobreponha ao terreno social de morte, produzido historicamente pelo
racismo e direcionado as juventudes negras. Faz-se necessário pontuar essas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

questões, visto que a manutenção da vida ainda é um enorme desafio diante


da realidade que vivemos.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
466

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par
Ed
s ão
ver
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA:
relatos de pesquisa na Campanha 21
dias de ativismo contra o racismo

or
od V
Giovanna Marafon

aut
Júlia Muniz de Alvarenga
Michelle Villaça Lino
Larissa Fernandes Pereira

R
Marcela de Toledo Piza Costa Machado
Andréa Chiesorin Nunes

o
Yohanna Gomes de Souza Almeida
aC
Introdução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A Campanha 21 dias de ativismo contra o racismo é uma iniciativa que


visã
teve início em 2017 e completa quatro anos de existência e resistência em
2021. Numa sociedade como a brasileira, que nega o racismo, a Campanha
dos 21 dias, anualmente realizada no mês de março, cria espaços e reivindica
itor

ações antirracistas. A proposta, desde a primeira campanha realizada no Rio


a re

de Janeiro, é planejar atividades e mobilizações de combate ao racismo, com


início no dia 1o de março e finalização no dia 21 de março – Dia Internacional
de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.
Ainda em 2017, foi com chamadas pelas redes sociais, que um grupo de
par

ativistas, inicialmente liderado por Luciene Lacerda (do Fórum Estadual de


Mulheres Negras) e Luiz Fernandes de Oliveira (professor da Universidade
Ed

Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ, coordenador do GPMC – grupo de


pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Cultura), convocaram
ações e criaram mobilização social, como destaca Silva (2018), e transbor-
ão

daram os ambientes acadêmicos em que estavam inseridos, observou Pereira


(2018). São muitas as agendas e pautas que a Campanha 21 dias de ativismo
contra o racismo articula, assim como os movimentos negros, tendo como
s

eixo mobilizador a luta contra o racismo. Diferentes pessoas, grupos, univer-


ver

sidades, movimentos sociais, entre outros, podem propor atividades, assim


como nosso grupo propôs.
É importante lembrar as palavras de Joselina da Silva: “os movimentos
sociais negros são os atentos agentes – ainda quase solitários – na visibiliza-
ção da racialidade inserida no tecido social brasileiro” (SILVA, 2018, p. 8).
Há que se dizer que a racialidade historicamente constituída no tecido social
brasileiro é marcada pela desigualdade racial, que alça a lugar de privilégios e
472

dominância as populações brancas às custas do sequestro de direitos e possi-


bilidades existenciais das populações negras e indígenas. São os movimentos
sociais negros que protagonizam a discussão contra o racismo e deram início
à campanha dos 21 dias. Como afirmou Silva (2018), foram esses atentos
agentes, quase solitários, a promover tão importante discussão e, ao mesmo

or
tempo, ainda invisibilizada.

od V
Entretanto, os sujeitos quase solitários, seguem acompanhados por outros

aut
grupos e sujeitos individuais que vivem e/ou são atravessados pelo que pode-
ríamos nomear aqui, pensando com Butler (2018), a condição existencial pre-

R
cária diferencialmente distribuída, ou seja, a precariedade, que marca as vidas
em meio à racionalidade neoliberal. Parafraseando a autora estadunidense: os
corpos que rejeitam as dores impostas se juntam, fazem-se luta (BUTLER,

o
2018). Nessa direção, de fazer-se luta, Pereira indicou um horizonte que se
aC
afirma com o protagonismo de mulheres negras e o feminismo negro:

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a Consciência Negra que desvela a argúcia da branquitude e o protago-
nismo de Mulheres Negras e o feminismo negro são novos territórios
visã
conceituais, teóricos e epistemológicos simbolizados pelas Ações Afir-
mativas! E impulsionam muita coisa, como o que foi visto na campanha
21 dias... deste ano (PEREIRA, 2018, p. 223).
itor
a re

Queremos tomar essa aposta como base para uma articulação neste texto.
Aqui tecemos, juntas, que a mobilização social fomentada pela Campanha
dos 21 dias de ativismo contra o racismo pode constituir alianças improváveis
e reunir em forma plural de coexistência pessoas e grupos que se opõem à
precariedade induzida, à injustiça social, ao racismo e à ideia de vidas que não
par

importam. Para isso, desde práticas de pesquisa implicadas com o combate ao


racismo e com a luta por uma educação antirracista, trazemos narrativas de
Ed

nosso fazer. Especificamente, uma composição com narrativas da realização


e das comunicações em uma atividade que organizamos para a Campanha
ão

dos 21 dias de ativismo contra o racismo, no dia 09 de março de 2021. A


pandemia de covid-19, decretada internacionalmente em março de 2020,
ainda permanece com muita força nos primeiros meses de 2021. No Brasil,
s

sem uma política de cuidado com a população, com combate e prevenção


ver

dos contágios, enfrentamos recordes diários de mortes e o país tem ganhado


o título mundial de pior gestão da pandemia. Nesse triste cenário, diante da
impossibilidade do encontro presencial, o meio virtual acolheu a possibilidade
de encontros, de conversas e de insurgências.
Trata-se da Roda de Conversa intitulada: “Educação antirracista – relatos
de pesquisa”, na qual apresentamos parte de quatro pesquisas, desenvolvidas
por mulheres integrantes da GIRA – Grupo de Pesquisa em Feminismos,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 473

Relações Raciais, Deficiência e outras dissidências – da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A partir da questão principal “educa-
ção antirracista”, articulamos as apresentações das pesquisadoras: Larissa
Pereira (mestranda PPFH/UERJ), Yohanna Almeida (estudante de pedagogia
FEBF/UERJ), Marcela de Toledo (mestranda PPFH/ UERJ) e Michelle Lino

or
(pós-doutoranda PPFH/UERJ). Contando, ainda, com a mediação de Júlia

od V
Alvarenga (doutoranda PPFH/ UERJ), comissão organizadora composta por

aut
Priscila Adolfo (estudante de pedagogia FEBF/UERJ) e Giovanna Marafon
(professora FEBF e PPFH/ UERJ), com o apoio de Andrea Nunes (mestranda

R
PPFH) e Roberta Piluso (mestranda PPFH).
Em uma espécie de coligação de anseios e lutas, integrantes da GIRA
e outros grupos e sujeitos se encontram com os movimentos negros e têm

o
participado do ativismo contra o racismo. Com isso, podem-se multiplicar
aC
os atentos agentes, podem ser muitos. Devem ser muitos, pois o racismo e o
combate ao racismo não são “problemas” dos grupos negros. Ao contrário,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

o racismo é um problema branco ou, dito de outro modo, a branquitude é o


visã
problema do racismo.

Organização da Roda de Conversa “Educação Antirracista:


relatos de pesquisa”
itor
a re

A atividade foi organizada no âmbito do grupo de orientação e pesquisa


em que estudamos e problematizamos as questões de nossas investigações,
aprofundadas com os estudos na GIRA. O grupo, no momento, é composto
por nove pesquisadoras – de iniciação científica/graduação, mestrado, dou-
par

torado e pós-doutorado. O grupo se constitui pela formação e pelo encontro


entre pesquisadoras/es e processos de pesquisas, sendo o aprendizado um
Ed

convite para refinar o ato de pesquisar e as implicações das pesquisadoras/


es. O dispositivo da análise de implicação, segundo Paulon (2005), é: “a
permanente análise do impacto que as cenas vividas/observadas têm sobre a
ão

história do pesquisador e sobre o sistema de poder que legitima o instituído


[...]” (PAULON, 2005, p. 23). Considerando os campos de forças presentes
nas experiências de cada mulher pesquisadora dentro do grupo, a proposta é
s

recusar os modos hegemônicos de saberes e práticas.


ver

Nesse sentido, por meio do encontro e das trocas, a partir dos estudos,
podemos compartilhar e aprender com o processo de cada pesquisa e, em
algumas situações, encontrar uma nova posição que possibilita o constituir de
um corpo pesquisador/a, como uma maneira de despertar estados corpóreos
desconhecidos/ainda não praticados. Ou seja, problematizar e formular as
questões pela pesquisa, com os estudos teóricos, recria e ressignifica o corpo
em um caminho para os processos de subjetivação. Ressignificar o corpo é
474

reinventá-lo, a escrita corporifica a pesquisa e formula o corpo teórico, que


cria sentidos em articulação com um campo, um situar de subjetividades e
mudanças nos modos de pensar.
Cada relato processual de pesquisa importa e, entre nós, o encontro se
faz para também nos preparar para os desafios acadêmicos. Constituídas como

or
um corpo coletivo, optamos por agilizar e aproximar as conversas entre as

od V
pesquisas e, nessa direção, cada pesquisa nos convocou a criar um encontro-

aut
-ensaio, uma maneira de criarmos modos de pertencimentos relacionados às
questões das investigações e suas problematizações, que se dariam ao vivo.
Desafio posto, assim, para preparar a participação na Campanha dos 21 dias de

R
ativismo contra o racismo, levantamos coletivamente os pontos e a sequência
das pesquisas a serem apresentadas.

o
Com o apoio do Núcleo de Estudos Étnico-Racias (NEER), do Pro-
aC
grama de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ), o canal do
YouTube do Núcleo (NEER PPFH)1 foi disponibilizado como plataforma

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


para a transmissão do evento. O NEER emergiu em meados de 2020 a partir
da iniciativa de alunas/os e professoras interessadas nos estudos acerca das
visã
relações raciais e no combate ao racismo. Essa parceria com o NEER ganha
especial relevância, pois demonstra importantes movimentos no avanço desse
debate no espaço institucional da pós-graduação.
itor

Além das redes sociais, a divulgação também foi feita na aula inaugural
a re

do PPFH “Políticas Públicas e Lutas Anti-Racistas”2, com a palestrante Jurema


Werneck, realizada dias antes, como atividade da campanha dos 21 dias, com o
mote: “Toda Friday é Black”. Nessa ocasião, convidamos à participação também
na nossa roda de conversa, oferecendo mais visibilidade a um conjunto de ações.
O encontro-ensaio aconteceu na semana que antecedeu o evento, como
par

meio de exercitar e relacionar os pontos a serem abordados em cada pesquisa,


Ed

alinhando a performatividade das pesquisadoras. Aqui relembramos Butler,


lida e discutida dias antes na reunião da GIRA: “Então, se a performatividade
era considerada linguística, como os atos corporais se tornam performativos?”
ão

(BUTLER, 2018, p. 36). Com os estudos de Butler, pensar o corpo se situa em


ressignificações para além da linguística, propomos, em poucas palavras, que
a corporificação se inscreve ao passo de um trabalho com a teoria, da escolha
s

e dos arranjos engendrados para as análises. O processo do feitio analítico


ver

encara o problema de pesquisa como um efeito corporificador e assim foi feito


coletivamente, preparamos os corpos para o aparecimento na Campanha dos
21 dias de ativismo contra o racismo.
Consideramos que o primeiro encontro do semestre na GIRA também foi
fortalecedor de nossos estudos, com a continuidade das leituras em Butler, por

1 Endereço do NEER PPFH no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCHzVDW3I0FoquESLmUqymkw


2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EBNKhog00vg
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 475

meio do livro “Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria
performativa de assembleia” (2018), o que contribuiu para a preparação da
atividade. Retomar a perspectiva do corpo nos estudos engendra conhecimento
a partir das discussões em que nos envolvemos com outras/os pesquisadoras/
es da GIRA, produzindo com referências da autora que trata do fazer alianças

or
e permanecer em luta. Ali fizemos as combinações prévias e o corpo das pes-

od V
quisadoras se corporificava a cada instante, fortalecendo-se para a presença

aut
virtual juntas. No dia anterior à atividade, com os testes da plataforma para a
transmissão e os ajustes finais, muitas questões foram partilhadas e o sentido de
confiança se estabelecia. Também previamente, as pesquisadoras encaminharam

R
para a mediadora questões e perguntas importantes para suas pesquisas, para
fomentar o segundo momento do evento que seria o debate entre as palestrantes.

o
No dia do evento, a responsabilidade da mediação se fez partícipe e
aC
implicada nas análises e questões das pesquisas. Na hora exata, surpresas,
instabilidade de internet e tentativas técnicas apareceram, no chat interno
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da reunião do grupo e externo na plataforma do YouTube3, juntas media-


mos as necessidades e a confiança coletiva resultou em presenças potentes
visã
com o público presente e futuro. As pessoas que estavam assistindo ao vivo
participaram ativamente no chat da plataforma de transmissão, ressaltando
a importância das colocações das palestrantes e com perguntas no momento
itor

do debate. Além da fluidez entre as falas das pesquisadoras, os comentários


a re

das/os participantes integraram e movimentaram o momento de discussão.


Não tendo ensaiado, mas inspirada nas apresentações das colegas e no
debate do evento, no encerramento, a mediadora finalizou a live mostrando no
vídeo a placa (semelhante às de identificação das ruas do Rio de Janeiro) “Rua
Marielle Franco: (1979-2018) Vereadora, defensora dos Direitos Humanos
par

e das minorias, covardemente assassinada no dia 14 de março de 2018”. A


placa faz referência ao assassinato da vereadora Marielle Franco, no bairro
Ed

do Estácio, no Rio de Janeiro. Mulher negra, lésbica, socióloga, feminista, e


militante dos direitos humanos, a vereadora era crítica à intervenção federal4
no Rio de Janeiro e à atuação da Polícia Militar, denunciava constantemente
ão

abusos de autoridade policial contra moradoras/es de comunidades e o exter-


mínio da população negra. O assassinato de Marielle foi um crime político,
uma tentativa de calar a voz de uma mulher negra que conseguiu a quinta
s

maior votação na eleição municipal de 2016. Cinco dias após o evento de


ver

2021, no dia 14 de março, o assassinato de Marielle completava três anos.


São igualmente três anos sem respostas de quem mandou matá-la. Por isso,
a memória de Marielle tinha que estar presente no encontro.

3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3mIACQhCdSo&t=7223s


4 O decreto da intervenção federal no Rio de Janeiro foi assinado pelo Presidente da República, Michel Temer,
em 16 de fevereiro de 2018 e era apresentado como justificativa o combate ao “grave comprometimento da
ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”, o que segundo o decreto, demandava atuação militar.
476

Narrativas de “Educação Antirracista: relatos de pesquisa”

O ato político das pesquisadoras de narrar, em um evento público, seus


pensamentos, suas histórias e pesquisas, a partir do tema da educação antirra-
cista, é também um modo potente de fazer resistência frente a discursos e práti-

or
cas que reforçam o racismo nas diferentes esferas da educação. É na recusa das

od V
narrativas hegemônicas que o evento ganha sua força. A escritora Chimamanda

aut
Adichie (2009), no vídeo divulgado no sítio eletrônico Technology, Entertain-
ment and Design – TED, com a palestra intitulada “Chimamanda Adichie: o
perigo de uma única história”, aborda o risco de uma sobreposição de histórias,

R
quando uma narrativa é considerada a única versão. “A consequência de uma
única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconheci-

o
mento de nossa humanidade compartilhada difícil” (ADICHIE, 2009, s.p) .
aC
A autora faz uma análise dos conjuntos de forças que contribuem para a
construção de perspectivas hegemônicas e explica: “é impossível falar sobre

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


uma única história sem falar sobre poder” (ADICHIE, 2009, s.p). Durante
toda a apresentação, a palestrante nos convoca a problematizar as histórias,
visã
considerando: “[...] como são contadas, quem as conta, quando e quantas
histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade
de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva
itor

daquela pessoa” (ADICHIE, 2009, s.p). Ou seja, segundo a escritora, são


a re

importantes pontos de análises: quem narra a história, quando e de que modo.


Na direção de propor narrativas diversificadas para o combate ao racismo
e por uma educação antirracista, a partir de diferentes lugares e experiên-
cias, as quatro pesquisadoras fizeram suas apresentações públicas na seguinte
sequência (também mantida para efeitos de apresentação dos sub-títulos que
par

virão neste texto): Larissa Pereira (mulher branca), Yohanna Almeida (mulher
Ed

negra), Marcela Toledo (mulher negra) e Michelle Lino (mulher negra).

Mulheres negras no ensino superior: reflexões sobre cotas raciais


ão

e educação antirracista

Nos estudos sobre relações raciais é importante que as/os brancas/os se


s

racializem e reconheçam os privilégios simbólicos e materiais forjados pela


ver

branquitude. Bento (2014) afirma que não focar as discussões nas pessoas bran-
cas é evitar considerar os privilégios que a brancura da pele fornece. A autora
ainda complementa: “mesmo em situações de pobreza, o branco tem o privi-
légio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa” (BENTO, 2014, p. 27).
Observamos muitas/os brancas/os que se esquivam do debate sobre rela-
ções raciais ao se apoiarem na ideia de que não é o lugar de fala delas/es. O
debate sobre racismo não é só para as/os negras/os (RIBEIRO, 2019). Na
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 477

verdade, todas/os as/os sujeitas/os podem falar, independentemente da sua


pertença racial, porém deve ser levado em conta o lugar social que cada um
ocupa - não tem como retirar a responsabilidade daqueles que detêm o poder,
nesse caso, da branquitude (RIBEIRO, 2019). Portanto, assumindo lugar de
fala, para o engajamento na luta antirracista, é essencial que os/as brancos/as

or
falem sobre racismo, mas com a consciência do lugar de onde falam.

od V
A partir dessa localização quanto ao pertencimento racial da pesquisa-

aut
dora, mulher branca, reflexões acerca da educação antirracista foram feitas
como uma forma de situar a relação entre os relatos de pesquisa que seriam

R
expostos com o tema central da live.
A educação antirracista não deve ser relacionada apenas com a instituição
escolar, ela deve ocorrer em todos os espaços: familiar, educação formal e não

o
formal. Devido à pesquisadora em questão ser professora, o debate foi direcio-
aC
nado para uma educação antirracista na trajetória escolar até a universidade.
A escola geralmente é o primeiro local em que negros/as experienciam
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

o racismo e o silenciamento de suas vozes. Kilomba (2019, p. 34), expõe que


a boca, no racismo, torna-se um órgão opressor: “representando o que as/os
visã
brancas/os querem - e precisam - controlar e, consequentemente o órgão que,
historicamente, tem sido severamente censurado”. Por isso, há a necessidade
de se pensar práticas escolares, que incluam e valorizem as identidades e histó-
itor

rias de negras/os, para que se sintam pertencentes ao local, que sua autoestima
a re

seja fortalecida e que seja proporcionada uma autoimagem positiva.


O racismo faz com que os corpos negros sejam considerados impróprios,
“como corpos que estão ‘fora do lugar’ e, por essa razão, corpos que não
podem pertencer” (KILOMBA, 2019, p. 56). O racismo não deve ser tratado
par

como um conflito interpessoal ou nomeado como bullying, o que encoberta o


racismo recreativo. O racismo é estrutural, pois está na estrutura da sociedade,
Ed

nas relações econômicas, jurídicas, políticas e familiares (ALMEIDA, 2019)


e precisa ser nomeado enquanto tal, para se evitar a despolitização da questão.
A definição de racismo deve ser apresentada em sala de aula (e fora dela)
ão

para que não ocorra o erro de propagação de ideias equivocadas e promotoras


de mais racismo, como o termo racismo reverso, que temos visto na mídia e
nas redes sociais. Daí uma grande importância de a educação ser antirracista.
s

A escola é uma continuidade da sociedade e sem uma educação antirracista


ver

esse espaço de educação formal perpetua racismo e desigualdade.


Qual seria então a relação entre educação antirracista e as mulheres
negras no ensino superior? Schucman (2014b) entrevistou brancas/os na
cidade de São Paulo como parte de sua tese de doutorado e uma das questões
era o que pensavam entrevistadas/os sobre as ações afirmativas para negras/
os. A maioria das/os entrevistadas/os mostrou-se contrária às cotas raciais –
mesmo após a explicação da pesquisadora do que seriam esses dispositivos
478

– ao mesmo tempo em que essas/es entrevistadas/os não se identificavam


como racistas. Elas/es admitiam os privilégios em diversas situações cotidianas
relacionados à cor de suas peles, contudo não estavam dispostos a abrir mão
dos privilégios (SCHUCMAN, 2014b).
Se a educação fosse antirracista, possivelmente opiniões como as encon-

or
tradas por Lia Vainer Schucman na pesquisa não seriam encontradas daquela

od V
forma. Uma vez que a identidade, história e cultura afro-brasileira sejam

aut
ensinadas e que os processos históricos, políticos e sociais relacionados ao
racismo sejam expostos, as/os brancas/os podem compreender sua responsa-
bilidade na manutenção da lógica colonial.

R
As cotas raciais são uma ação afirmativa que é uma política pública com
o intuito de promover a inserção de corpos negros na universidade. Cashmore

o
(2000, p. 31) afirma que as ações afirmativas são “destinadas a atender grupos
aC
sociais que se encontram em condições de desvantagem ou vulnerabilidade
social em decorrência de fatores históricos, culturais e econômicos”. Focar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a análise em relação à presença das mulheres negras no ensino superior é de
extrema relevância porque elas sofrem, ao mesmo tempo, racismo por serem
visã
negras e sexismo por serem mulheres.
Por isso, é importante destacar o conceito de interseccionalidade, cunhado
pelo feminismo negro: é a sensibilidade analítica de que as mulheres negras
itor

estão repetidas vezes no cruzamento de marcadores de desigualdade, opressão


a re

e diferença, como: raça, gênero, classe, sexualidade, território e outros efeitos


dos “aparatos coloniais” (AKOTIRENE, 2019, p. 19). Essa é uma ferramenta
teórico-metodológica que visa à mudança nas ações, por isso tão importante
para um debate sobre educação antirracista.
par

Os dados da pesquisa “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das


mulheres no Brasil”, realizada pelo IBGE, mostram que a taxa de frequência
Ed

escolar líquida no ensino superior no ano de 2019 das mulheres foi de 29,7%,
enquanto a dos homens foi de 21,5% (IBGE, 2021). Com isso, podemos
concluir que a maioria do ensino superior é composta por mulheres. Todavia,
ão

cabe questionar: de que mulheres estamos falando? As mulheres negras estão


incluídas? A maioria dos dados são separados apenas em gênero ou raça,
raramente são divididos em gênero e raça. Essa forma de apresentação dos
s

dados, além de prejudicar nossa interpretação e o estudo quanto à desigual-


ver

dade racial e de gênero, pode mascarar o racismo existente no Brasil. Alguns


poucos estudos apresentados com essa divisão serão apresentados abaixo.
Ao observar os dados dessa mesma pesquisa, vemos que a taxa de fre-
quência líquida no ensino superior entre 18 e 24 anos dos homens brancos é
de 30,5%, enquanto que a das mulheres negras é de 22,3% (IBGE, 2021). Se
analisarmos a população de 25 anos ou mais com ensino superior completo,
23,5% das mulheres brancas possuem o diploma, enquanto que apenas 10,4%
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 479

das mulheres negras o possuem (IBGE, 2018). Isto é, as mulheres brancas


se formam aproximadamente duas vezes mais que as mulheres negras, ou
seja, não basta somente garantir o acesso, a permanência de pessoas negras
deve ser garantida também.
Gomes (2017) alerta que a presença de negras/os na universidade por

or
intermédio das cotas pode ficar comprometida caso o movimento negro não

od V
questione a universidade pública como responsável pela produção do conhe-

aut
cimento. De acordo com a autora: “é preciso descolonizar os currículos e
o conhecimento” (GOMES, 2017, p. 118). Nessa direção, Kilomba (2019)
afirma que a academia não é um espaço neutro e não abre espaço de fala para

R
as/os negras/os: “[...] a academia não é um espaço neutro nem tampouco
simplesmente um espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e erudição,

o
é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a” (KILOMBA, 2019, 51). Portanto,
aC
para que haja permanência das mulheres negras na universidade, é preciso
viabilizar a educação antirracista por meio de ações como: projeto político
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

pedagógico do curso comprometido com a educação antirracista, inserção de


pessoas negras/os no referencial teórico dos cursos, docentes negras/os, cargos
visã
de gestão composta por negras/os, valorização da diferença nas estratégias
pedagógicas, metodológicas e curriculares.
Segundo dados do IBGE (2019), entre estudantes de 18 a 24 anos,
itor

78,8% estão cursando ou concluíram o ensino superior e quando considera-


a re

mos negros/as apenas 55,6%. Isso mostra que ainda não podemos falar em
representatividade sem desigualdade no ensino superior. Desse modo, as cotas
raciais são um passo importante para a formação de profissionais negras/os
e a educação antirracista em todos os espaços de formação é necessária para
promovermos uma sociedade igualitária.
par
Ed

Formação na FEBF e pesquisa com a RoquePense: deslocamentos


e potência para uma educação antirracista
ão

Esta parte contém um relato pessoal, escrito em primeira pessoa. Diz res-
peito a ingressar na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF), no
ano 2017, na graduação em Pedagogia, em meio a uma greve e sem ter noção
s

alguma do universo acadêmico e dos desdobramentos da graduação, princi-


ver

palmente em uma universidade pública, como a UERJ. A FEBF é um campus


que se localiza na Vila São Luís, bairro do município de Duque de Caxias,
cidade da Baixada Fluminense (BF), região metropolitana do Rio de Janeiro.
A FEBF constitui um universo plural, recheado de diversidade, que apre-
senta uma educação sensível e ampla, no sentido que não devemos aceitar
as coisas como naturais e já dadas, há questionamentos e problematizações a
serem feitas, pois nem tudo que sempre foi de um jeito tem que continuar da
480

mesma maneira. A possibilidade do diferente torna a educação mais abrangente


e inclusiva. Por um tempo, enquanto estudante, acreditei que essa educação,
que me foi apresentada na FEBF, era a referência e funcionava da mesma
forma em todas as graduações de Pedagogia.
Nessa universidade, na Baixada, encontrei professoras e professores

or
comprometidos com uma outra educação, nomeada dessa forma pensando na

od V
proposta apresentada por Luana Tolentino no livro Outra Educação é Possível

aut
(2019), em que a autora narra o cotidiano em sala de aula. Histórias de uma
professora negra que se propõe a uma outra educação, que é antirracista,

R
antissexista e anticapacitista, visando à inclusão. Na FEBF é possível ver os
desdobramentos de uma outra educação possível, que considera vivências e
quem somos no exercício de aprender e educar. A presença de professoras

o
negras e professores negros ajuda no processo de autoidentificação e faz
aC
lembrar o relato de bell hooks, no livro Ensinando a transgredir: a educação
como prática da liberdade (2019), no qual ela narra a sua experiência em uma

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


escola segregada, onde suas professoras, que eram todas negras, ensinavam
as crianças negras através do encanto. bell hooks conta que aprendia a impor-
visã
tância da educação para o povo negro e o poder de resistir e revolucionar.
Na FEBF, há docentes que buscam oferecer diferentes referências, con-
sideram a vivência de suas alunas e alunos, entendem que o processo de
itor

formação é uma experiência complexa e ampla. É uma universidade que


a re

quer ouvir a respeito de dores, alegrias, questionamentos e dúvidas das suas


alunas e alunos negros. Um lugar cuja constituição se parece com suas/seus
discentes, é acolhedor e sensível.
Minha relação com a BF foi modificada com o meu ingresso e a perma-
par

nência na FEBF. Como moradora de uma favela da cidade do Rio de Janeiro,


descobri que era mais parecida com a Baixada do que imaginava. Por morar
Ed

no Rio me julgava melhor e superior à BF. Morava a apenas duas estações


de trem de distância de Duque de Caxias e ainda assim havia uma percepção
distorcida de que a Baixada era muito distante de mim.
ão

Não há como pensar a relação com a Baixada e não pensar no trem, um


transporte público, que apesar de avariado e abandonado pelo Estado, é um sím-
bolo da importância do deslocamento. Diariamente o trem leva e traz milhares
s

de trabalhadoras/es que vão até o centro buscar seu ganha pão. Não obstante
ver

a falta de valorização desse transporte, que resulta em condições precárias


que afetam diretamente trabalhadoras/es, estudantes e moradoras/es que saem
e chegam da Baixada com trens superlotados, hoje ainda temos o perigo de
contrair covid-19. As linhas do trem levam para perto de lugares distantes e
outros nem tão distantes assim, os trens carregam toda a gente. Um povo que
luta, que resiste, que sorri e que sonha. Gente que é diferente de mim, mas que
também tem semelhança e reconhecimento de pertencimento. Em razão do meu
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 481

ingresso na FEBF percebo que não há superioridade e sim muitas semelhanças.


O que me iguala à Baixada e a seu povo são as histórias de luta e resistência.
Em 2019 comecei a fazer parte da pesquisa com a rede coletiva de mulhe-
res produtoras culturais por uma educação antissexista, a Roque Pense, e um
dos compromissos da formação na pesquisa era participar de aulas ministradas

or
no PPFH sobre “Feminismos Plurais, Relações Raciais e de Gênero”. Foi uma

od V
experiência rica, mostrou muitas questões e, nesta escrita, quero focar em um

aut
ponto escancarado pela minha presença semanalmente na UERJ campus Mara-
canã, que foi o privilégio de ter iniciado a vida acadêmica na FEBF. Descobri

R
que ter uma gama de autoras/es negras/os como referências nas matérias e
na pesquisa não era o usual. A gentileza e o acolhimento que parecem pairar
nos ares da FEBF não são a regra. A FEBF, como todo ambiente, é passível

o
de problemas, mas a educação antirracista não versa sobre os problemas
aC
já existentes, e sim sobre a solução desses problemas e um modo de fazer
diferente. Então o que faz diferir UERJ Maracanã e UERJ Caxias – FEBF?
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Hoje pesquiso com a rede Roque Pense! (RP!), coletiva feminista que
visã
neste ano de 2021 completa 10 anos, com uma série de novidades e projetos
incríveis. A coletiva, no feminino, como nos referimos, foi idealizada por
Giordana Moreira, uma mulher branca, de Nova Iguaçu - BF. A rede RP! atua
diretamente na BF, território atravessado pelas linhas de metal do trem, com
itor

uma população majoritariamente negra. As produções da RP põem em cena,


a re

na música e no audiovisual, mulheres diversas para mostrar suas produções,


suas artes, por vezes suas dores em forma de letras, poesias e música. Colo-
cam-se explicitamente na luta antissexista e antirracista.
A RP! tem uma produção audiovisual ampla e potente, que conta tam-
par

bém com o PodPense5, que é um podcast com dois episódios, o primeiro


com discussões sobre a presença das mulheres na música e na produção cul-
Ed

tural, muitas vezes desacreditada socialmente pelo sexismo; o segundo com


críticas a apropriações que tentaram apagar a história negra do rock e, para
isso, contam da existência das mulheres negras nessa história. A coletiva tem
ão

presença atuante na forma de um artivismo digital no Instagram e tem um


canal no Youtube6, com a produção audiovisual do “Estúdio Roque Pense”,
que conta com três temporadas completas de programas audiovisuais musi-
s

cais. Cada episódio apresenta bandas convidadas com mulheres diversas. Na


ver

terceira temporada (2019), as bandas tinham que ser compostas inteiramente


por mulheres, igualmente, nessa temporada a equipe de produção foi com-
pletamente composta por mulheres, desde a produção cultural, iluminação,
técnica de som, roteiro, fotografia, filmagens, entrevistas e edição.

5 Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLKF6_w68Bt0rYoHTb9oPNNw5gt8W3QyiA


6 Disponível em: https://www.youtube.com/user/roquepense
482

No primeiro episódio da 3ª temporada, a banda convidada foi a Dembaia7,


formada por mulheres negras, que performam uma música afrodiaspórica. As
músicas, as formas como elas se movimentam, como dançam, as composições
e poesias contam de vivências de mulheres negras. Uma das integrantes da
Dembaia, Beá, é percussionista e baixista, ela participou do segundo episódio

or
do PodPense, falando sobre Rock, Apropriação e Fronteiras Musicais, no qual

od V
destacou que o rock vem do blues, que é um estilo de música negra, criado por

aut
negros e negras nas plantações de algodão, era um lamento do povo negro.
Além disso, o rock foi pré-concebido por uma mulher negra, Sister

R
Rosetta, mas só veio a ser popularizado por um homem branco, Elvis Pres-
ley, resultado de uma estrutura de sociedade machista e racista. A branquitude
que se apropria de tudo tentou apagar da história do rock seus verdadeiros

o
criadores. Beá também fala sobre como o rock dos rebeldes tem uma causa,
aC
na entrevista, Giordana concorda e acrescenta que é punk e rock and roll fazer
o que o coletivo faz numa terra de coronéis, como a Baixada Fluminense.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


A pesquisa com a RoquePense! permite pensar como uma produção
visã
antirracista e antissexista é potente e ecoa para além dos muros de uma univer-
sidade como a FEBF. A RP! é referência de um fazer feminista na Baixada. O
território da Baixada Fluminense, com suas histórias de luta e resistência, está
em projetos de pesquisas, temas de monografias e em salas de aula. As vivên-
itor

cias são consideradas e contextualizadas, logo o território da Baixada Flumi-


a re

nense mostra-se fundamental para a educação antirracista presente na FEBF.

“Matanças Invisíveis” de mulheres negras: um novo olhar para


o feminicídio
par

É importante pensarmos a dinâmica presente na discussão das relações


Ed

raciais e sua relação com a educação. A partir disso, fazemos um questiona-


mento estruturante para esse debate: Quantas/os autoras/es negras/os fizeram
parte da nossa trajetória acadêmica e profissional?
ão

Diante dessa perspectiva, a filósofa negra Sueli Carneiro (2019) traz um


termo fundamental para olharmos para o silenciamento e apagamento das
s

produções intelectuais negras, que é o “epistemicídio”. Segundo a filósofa,


epistemicídio significa:
ver

Conjunto de estratégias que terminam por abalar a capacidade cognitiva


das pessoas negras, que conspiram sobre a nossa possibilidade de nos
afirmarmos como sujeito de conhecimento, ou seja, todos os processos
que reiteram que nós somos, por natureza, seres não muito humanos,

7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VSCT7vkLuh8&t=16s


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 483

e, portanto, não suficientemente dotados de racionalidade, capazes de


produzir conhecimento, e, sobretudo, ciência (CARNEIRO, 2019, p. 8).

Nesse sentido, temos a intenção de gerar reflexão a respeito de mulheres


negras e o lugar que a sociedade reserva a elas, percebendo silenciamentos e

or
apagamentos das vozes das pessoas negras, especificamente no âmbito epis-

od V
têmico, naturalizados historicamente, mas não só isso, são processos que

aut
acabam aniquilando as vidas da população negra no Brasil – aproximada-
mente 56% da população, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística). Essa crítica é importante quando olhamos, por exemplo, para a

R
escritora negra Carolina Maria de Jesus, que apenas no ano de 2020, 44 anos
depois de falecida, teve seu reconhecimento como doutora honoris causa

o
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – formas e exemplos
aC
de como as trajetórias de mulheres negras são marcadas pela invisibilização.
É importante perceber como, em função da colonização aqui ocorrida,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

está presente o debate construído sobre o que seria conhecimento válido e


relevante e o conhecimento que é marginalizado e secundarizado. É funda-
visã
mental olharmos para as/os autoras/es que são apresentadas/os em todas as
fases de educação em nossa vida, não só na dimensão escolar, mas também
na dimensão cotidiana, com a intensa e presente valorização de autores euro-
itor

peus, brancos. É uma crítica válida para se perceber como existe a construção
a re

intencional de olhar para o conhecimento europeu e embranquecido como


o conhecimento válido, entretanto, esse processo se vale da lógica racista e
excludente que procura inviabilizar outras produções.
Autoras e autores como Lélia Gonzalez, Maria Firmina dos Reis, Abdias
par

do Nascimento, Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Neusa San-


tos, entre outros, são alguns de muitas/os autores/as negros/as que, em suas
Ed

construções teóricas, têm importantes reflexões desenvolvidas no âmbito do


conhecimento tanto referente as suas narrativas quanto a seus estudos sobre
como a questão racial interfere em suas vidas, discussões essas que foram
ão

silenciadas e invisibilizadas como muitos outros que, inclusive, não são reco-
nhecidos. Nesse sentido, entendemos que o silenciamento e apagamento de
suas produções intelectuais são marcados pela violência e pela morte tanto
s

no âmbito do conhecimento produzido, quanto nas suas próprias vivências.


ver

O filósofo Achille Mbembe afirma a importância de compreendermos


que o contexto em que vivemos segue a lógica colonial, reproduzindo vio-
lências cotidianas e militarizadas, produzindo matanças que não são ape-
nas biológicas, mas também, formas de “morte-em-vida”. Nesse sentido,
ele afirma: “Às execuções a céu aberto somam-se a matanças invisíveis”
(MBEMBE, 2018, p. 49). Essa citação de Achille Mbembe demonstra que
tais mortes não ocorrem somente no sentido biológico dos corpos negros
484

serem mortos a céu aberto, mas também de serem mortos empiricamente


com as violências que o racismo produz. São mortificações cotidianas, na
forma de “morte-em-vida” (MBEMBE, 2018) não só de quem produz as
narrativas, nesse caso os autores/as negros/as, mas também, daqueles que
não se identificam com a narrativa que lhes é apresentada.

or
Diante do exposto, têm sido marcadas na trajetória de jovens negras/

od V
os periféricas/os a defasagem e a ausência da sensação de pertencimento,

aut
acarretando assim no seu afastamento do âmbito educacional, na apropriação
da sensação de que seus corpos não têm importância e que seus lugares não
poderiam ser em espaços de poder, por exemplo. Essa ausência se dá por conta

R
da lógica sistemática e estratégica do racismo e das violências oriundas dele,
como formas de apagamento das narrativas dessas/es jovens.

o
De acordo com o Atlas da Violência de 2020, no ano de 2018, houve um
aC
aumento de 68% das mortes de mulheres negras. Tais dados comprovam o fato
de que não há um olhar do Estado para tais mortes, entendendo que na verdade

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


o Estado, muitas vezes, é cúmplice e conivente com essas mortes, visto que são
mortes expressivamente altas, contabilizadas pelas estatísticas e que não param
visã
de aumentar. Isso leva a outro questionamento: Como ver os dados de aumento
da violência contra mulheres negras e não pensar na existência da aliança entre
tais mortes e as políticas públicas? Ou melhor, como não existem políticas
itor

públicas para frear a morte de mulheres negras, visto que elas só aumentam?
a re

Nessa direção, são importantes questões para o debate: Como não silen-
ciar/matar mulheres negras? Sendo elas alunas, professoras, autoras? Esse
é um dos desafios importantes para propormos uma educação antirracista,
principalmente considerando que não basta somente pensarmos essa prática
a partir da inclusão da temática racial, mas pensar nas dimensões visíveis
par

que acabam por restringir ou impedir tal prática. Dessa forma, é fundamental
Ed

para uma prática antirracista considerar e enfrentar a morte de jovens negros


na periferia, criando alianças com o objetivo de unir as discussões e não as
fragmentar. É mais que necessário perceber atravessamentos entre as mortes
ão

de jovens negros, as mortes em vida de mulheres negras e a educação antir-


racista, na constituição de alianças possíveis.
s

Acolhimento e adoção de crianças negras – olhares e práticas


ver

antirracistas como forma de proteção

Ao pensar sobre o objetivo da live e o recorte da pesquisa a ser apresentada,


foi necessário analisar e elaborar uma reflexão sobre os corpos negros acionados,
por diversos motivos, pelo Poder Judiciário – corpos negros seletivamente invi-
sibilizados, violados, silenciados, controlados e vigiados por séculos de opressão
resultante de práticas capilares de racismo. Como mulher negra e psicóloga no
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 485

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, observar a cor/raça daqueles que


têm suas vidas invadidas e das crianças e adolescentes preteridas/os nas adoções,
gerou incômodos que remeteram à urgência de pesquisar práticas antirracistas.
Quando observamos crianças, adolescentes e famílias pobres e negras
acionadas pelo sistema de justiça, por meio de processos como apuração de

or
infração administrativa8, medida de proteção9, acolhimento institucional, é

od V
preciso refletir e questionar quem ou o que se quer proteger. Pensar práticas

aut
antirracistas, nesse aspecto, é pensar modos de desconstrução de olhares e
atos depreciativos e desqualificadores de pessoas negras. Porém, como pensar

R
uma educação antirracista sem analisarmos as raízes do racismo? Segundo a
assistente social Márcia Campos Eurico, em seu livro Racismo na Infância:

o
O cenário atual de constante segregação e desqualificação da população
aC
negra tem, como um de seus efeitos, o alto índice de acolhimento insti-
tucional de crianças e adolescentes negras(os). Entende-se que uma ação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mais assertiva deve esmiuçar as raízes do racismo, que faz dessas crianças
e adolescentes o alvo majoritário de políticas de controle e acolhimento
visã
institucional, em vez de ações pautadas na perspectiva de que são pessoas
em situação peculiar de desenvolvimento, sujeitos de direitos, dentre eles
o direito à convivência familiar e comunitária em ambiente que favoreça
itor

seu desenvolvimento de maneira saudável (EURICO, 2020, p. 19).


a re

Assim como famílias pobres e negras têm suas falas e seus comporta-
mentos desqualificados, são as crianças e os adolescentes negras/os as/os mais
acolhidas/os institucionalmente em nome de uma proteção perversa que visa o
controle e a vigilância de seus corpos. É preciso problematizar o acolhimento
par

institucional de crianças e de adolescentes negras/os, em sua maioria, posto


que está contido nesse sistema racista que estrutura e diz quem pode ou não
Ed

circular e viver livremente em sociedade.


Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA10) revelaram
que dos quase cinco mil infantes disponíveis para adoção no Brasil, cerca
ão

8 Conforme artigo 148, inciso VI, do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n. 8.069/90 – os processos de
s

infração administrativa correspondem àqueles que infringem as normas de proteção contra crianças e adolescentes.
ver

9 Os processos de medida de proteção são abertos quando os direitos de crianças e adolescentes são ameaçados
ou violados, em decorrência de ação ou omissão do Estado ou da sociedade; da falta, omissão ou abuso por
parte dos pais ou responsáveis pelos infantes ou, ainda, em razão de sua própria conduta (BRASIL, 1990,
art. 98-102). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 10 mar. 2021.
10 O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento reúne dados quantitativos sobre crianças e adolescentes
acolhidas; crianças e adolescentes disponíveis à adoção e pretendentes habilitados. Raça/cor, faixa etária,
sexo biológico (feminino e masculino) e outras informações não sigilosas sobre os infantes podem ser
acessadas nesse sistema dinâmico e diariamente atualizado. Dados disponíveis em: https://paineisanalytics.
cnj.jus.br/single/?appid=ccd72056-8999-4434-b913-f74b5b5b31a2&sheet=4f1d9435-00b1-4c8c-beb7-8ed9
dba4e45a&opt=currsel&select=clearall Acesso em: 07 mar. 2021.
486

de 62% são negras/os. Em contrapartida, do total de pretendentes à adoção,


apenas 26% manifestaram interesse por infantes da cor/raça negra.
Quando observamos pretendentes à adoção que, ao serem provocadas/
os, dizem ter medo pelo que possa acontecer com sua filha/seu filho caso seja
preta/o ou quando nos deparamos com adotantes que verbalizam frases como

or
“racismo não existe”, “somos todos seres humanos”, “não existe raça negra,

od V
existe raça humana”, percebemos a urgência da ampliação de diálogos sobre

aut
o racismo e da intensificação de práticas antirracistas.
Muitos pretendentes à adoção acreditam que falar sobre racismo é o

R
mesmo que alimentar um monstro adormecido; há aqueles que acreditam que
falar sobre questões raciais provoque dores e feridas, mas silenciar e negar
sua existência é uma forma de aniquilar as subjetividades de adotandas/os de

o
cor/raça diferente das/os adotantes.
aC
Segundo a assistente social Silvana Rufino, no artigo intitulado Uma
realidade fragmentada: a adoção inter-racial e os desafios da formação de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


uma família multirracial, a adoção de uma criança negra por uma família
visã
branca evidencia, além da adoção propriamente dita, uma grande disposição
de enfrentar os desafios numa sociedade, como a brasileira, que insiste em se
autodeterminar democrática e repetir a retórica da democracia racial como
forma de camuflar a discriminação contra toda a população afro-brasileira
itor

(RUFINO, 2002).
a re

Como apresentado pela autora Rufino (2002), a adoção inter-racial é


algo visível, não deixa dúvidas em relação à diferença da cor das peles dos
adotantes e dos adotados, mas deixa questões pela invisibilidade do racismo.
Por isso, é importante pensar uma educação antirracista que possa instru-
par

mentalizar as/os responsáveis pela/o infante a não só lidar com as práticas


racistas, mas também a fortalecer e favorecer o conhecimento – literatura,
Ed

cultura, arte – que possibilite que suas/seus filhas/os saibam reconhecer e


desconstruir práticas racistas.
Pensar uma educação antirracista na filiação adotiva é pensar em des-
ão

construção, em mudanças nos olhares e nas atitudes de profissionais que


lidam com a temática da adoção, das famílias que adotam, da escola (lugar
onde a criança muitas vezes vivencia situações de racismo) e da sociedade
s

de um modo geral. Pensar uma educação antirracista é entender que para


ver

além da filiação adotiva, filhas/os nascidas/os de relacionamentos inter-ra-


ciais ou filhas/os negras/os precisam ter uma rede de apoio familiar capaz de
fortalecê-las/los e instrumentalizá-las/os para juntos combaterem o racismo
estrutural. É compreender que racializar o debate e reconhecer privilégios,
quando falamos sobre a branquitude, é uma forma de combater o racismo que
estrutura a sociedade e desestrutura as relações.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 487

Considerações finais

Escrever e pensar a respeito de uma educação antirracista é desafiador.


A live que preconizou a escrita deste texto foi uma experiência de dialogar
sobre variadas formas de refletir os caminhos, a partir dos relatos de pesquisa,

or
para seguirmos juntas na luta antirracista.

od V
As vivências, o relato de cada pesquisa na live, o compartilhamento das

aut
inquietações que movem cada pesquisadora, a escrita tecida por mãos de mulhe-
res inquietas são modos de resistência, de provocação e um convite a quem viu,

R
vai ver e/ou a quem nos lê, para sair da zona de conforto que impede mudanças.
O desconforto, o incômodo e a urgência norteiam e movem nossos estudos
contra sistemas de opressão que qualificam populações como minorias matáveis.

o
Enquanto pesquisadoras nos interessava problematizar uma educação
aC
antirracista, que incluísse análise das experiências que atravessaram de dife-
rentes modos as nossas existências e os relatos de parte das pesquisas que
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temos em curso na GIRA. Para isso, criar alianças possíveis e perceber como
se constituem ferramentas analíticas e práticas para uma educação antirracista
visã
foi nosso objetivo partilhado.
Desconstruir um sistema histórico, colonial e arraigado nas subjetivi-
dades como o racismo, é desafiador, mas possível. A roda de conversa que
itor

fomentou esse texto foi uma oportunidade para todas nós tecermos narrativas
a re

das pesquisas e do modo de pesquisar e escrever que temos praticado. Para


isso, foi necessário costurar e alinhavar, por meio da escrita a muitas mãos,
as principais vias para a constituição plural de uma aposta.
Essa aposta resultou na apresentação da educação antirracista em diá-
par

logo e a partir das ações afirmativas no ensino superior e a permanência de


mulheres negras na universidade, problematizando a importância de observar a
Ed

intersecção raça e gênero a partir dos dados quantitativos de pesquisas estatís-


ticas. Passando ao reconhecimento do território da Baixada Fluminense como
fundamental para a constituição do modo de ensinar e aprender que habita
ão

o campus da UERJ em Duque de Caxias, na FEBF, bem como as pesquisas


que lá acontecem, a exemplo da investigação com a coletiva Roque Pense e
seu artivismo antirracista e antissexista. Dessa perspectiva, emerge também a
s

urgência de problematizar a aparente invisibilização das mortes sobre os corpos


ver

de mulheres negras, tanto os assassinatos quanto as mortificações cotidianas,


ainda mais invisíveis. E para que se veja e aja para frear as mortes das mulheres
negras, há que se parar igualmente o genocídio da juventude negra nas perife-
rias, questões que atravessam e interpelam uma educação antirracista por se
fazer. Por fim, ou para abrir novos meios, práticas antirracistas podem emanar
de ações desde um sistema que até aqui tem oferecido continuidade à lógica
colonial – o judiciário – juntamente com as instituições de acolhimento de
488

crianças e adolescentes. As adoções inter-raciais colocam questões que chegam


cobertas pelo racismo, a ser enfrentado, e encontram-se com laços familiares.
Em vez de “tirar o corpo fora” (o corpo da branquitude que não se respon-
sabiliza pelo racismo que pratica) ou “varrer para baixo do tapete” (esse mesmo
racismo que se apresenta), com a leitura de Schucman (2014a), compreendemos

or
que pessoas brancas devem ir além do reconhecimento dos privilégios simbó-

od V
licos e materiais, do desenvolvimento de consciência racial e do entendimento

aut
que podem promover mudanças em seus micro lugares de poder. Mais ainda:
devem promover mudanças estruturais de valores da sociedade, fazendo com
que a branquitude se transforme em identidade étnico-racial branca e que “o

R
racismo não seja o pilar de sua sustentação” (SCHUCMAN, 2014a, p. 92).
Sem a pretensão de esgotar a discussão sobre a importância da educação

o
antirracista e considerando as temáticas das pesquisas abordadas neste texto,
aC
lançamos a seguinte reflexão: São muitos os caminhos possíveis para uma edu-
cação antirracista (inclusive antissexista, antiLGBTIfóbica e anticapacitista).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Ao estudarmos e nos aprofundarmos sobre a temática das relações raciais,
percebemos a existência de corpos silenciosos e silenciados, que muitas vezes
visã
andam de modo solitário: quais grupos ganham com a manutenção dessas prá-
ticas colonizadoras do pensamento e da ação? São perguntas imprescindíveis
para a caminhada por uma educação antirracista.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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SOBRE A URGÊNCIA DA
DESMILITARIZAÇÃO POLICIAL
DE NÓS MESMOS:

or
educação e trabalho em ressonâncias

od V
aut
Thiago Colmenero Cunha
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

Introdução

R
o
aC
– Já fui chamado algumas vezes com relação a conflito em sala de aula.
Numa dessas, duas alunas se atracaram, foram levadas à sala da direção.
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Estava na portaria, a diretora me chamou pra entrar no gabinete dela, eu


visã
fui. Fiquei em pé, parado de braços cruzados, vi as meninas, ainda discu-
tindo entre si. Enquanto a diretora as advertia, ela olhava às vezes pra mim,
esperando que eu fosse fazer alguma coisa, sabe? Engraçado que só pra
ter a minha presença ali, não a falar, nem a agir. Na verdade estar armado
itor

e de farda ali já diz e faz muita coisa, já gera efeito nas estudantes. Conter
a re

pela imagem, impor medo. O olhar que a diretora tabelava comigo e com
elas, como se dissesse “se você continuar se comportando desse jeito, presta
atenção, o policial vai te levar”.
– Parece que a escola fica refém de uma certa política pública e não tem
par

controle dos efeitos da presença da polícia armada, mas não há ingenuidade


nisso. A pedagogia está sendo inteligente ao usar a presença da polícia ao
Ed

se apropriar das forças da segurança pública ao seu favor. Forças essas que
ali tentam dar conta do que está em desalinho. É estratégico, é proposital, é
pensado, é articulado, não há como pensar que a pedagogia e a psicologia
ão

estejam ingênuas, elas usam e usam muito bem – narra um policial militar
que atua em escolas da Região Leste do Rio de Janeiro pelo PROEIS1 2.
A história que o policial fluminense nos conta não é um caso à parte. Tendo
s

como objetivo solucionar atritos no chão da escola, diversas propostas de segu-


ver

rança escolar têm sido implementadas pelo menos nas últimas duas décadas, mui-
tas delas propiciando uma apropriação perversa como a narrada pelo militar. Em
diversos países ao redor do mundo, assim como em muitos estados da federação
brasileira, o cenário de implementação de programas, convênios, projetos ligados

1 Programa Estadual de Integração na Segurança.


2 Entrevista colhida durante trabalho de campo para pesquisa de mestrado “Paz Armada na Escola”, de Thiago
Colmenero Cunha, sob a orientação de Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (2016).
494

à polícia e até de administração militar nas escolas públicas vem crescendo de


maneira vigorosa. Hoje, a presença da polícia em escolas tende a ser desejada
em numerosos países como garantia de segurança de educadores e estudantes.
Frente à atual discussão sobre desmilitarização da polícia, é preciso refletir
o quanto esse pedido excessivo de segurança está em nós e muitas vezes é

or
feito por nós através de nossas intervenções, ditas em nome da proteção e do

od V
cuidado (Correia, Zamora & Bicalho, 2018). Inspirados nas obras de Alessandro

aut
Baratta (2013), Michel Foucault (2005, 2008) e Félix Guattari (2013) proble-
matizaremos os conceitos de culpabilidade e governamentalidade, articulados
a dispositivos de segurança que fazem funcionar o complexo tutelar colonial,

R
organizando violências punitivas e extermínios mortificantes; dominações
segregativas e infantilizadoras; disciplinas e biopolíticas normalizantes; incri-

o
minações e criminalizações que produzem modos de subjetivação presentes
aC
nas discussões que articulam psicologia, política e segurança pública.
Então, o presente texto coloca a questão: a que serve a psicologia que

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


fazemos cotidianamente? Será que ela pode estar a serviço de um processo de
militarização da vida? Assim como o depoimento do policial militar trazido
visã
anteriormente, muitas vezes, de maneira sedutora e supostamente resolutivista,
ela pode ser utilizada para disciplinar, individualizar, julgar, punir e corrigir
(CIDADE; BICALHO, 2019). Que racionalidades sustentam esse tipo de
itor

intervenção? A serviço da ordem, da obediência, do silenciamento e de um


a re

frágil consenso parece que seguimos entrando em jogo.

Polícia: para quem precisa?

Sobre o caso da entrada dos policiais em escolas estaduais do Rio de Janeiro,


par

em dezembro de 2011, a Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) enco-


Ed

menda ao Instituto de Pesquisa Mapear3 um levantamento aberto de opiniões


com professores, pais, estudantes e direção das unidades escolares sobre como a
secretaria atuava e qual era a demanda da sociedade escolar naquele momento.
ão

Frente a relatos de arrombamentos, invasões, brigas, furtos, ameaças, alunos


armados, consumo e venda de drogas no entorno da escola, a pesquisa aponta
que a comunidade escolar queria maior rigor na fiscalização da entrada e saída
s

de desconhecidos e na venda de drogas dentro das instituições (SEEDUC, 2012).


ver

Uma das sugestões mais sugeridas, que surpreendeu os profissionais da Secretaria


na época, foi a de colocar polícia nas escolas devido à dita constante insegurança.
Em 2 de maio de 2012 a SEEDUC, a Secretaria de Segurança Pública
(SESEG) e a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) assinam
termo de cooperação técnica para implementação do Programa Estadual de

3 Empresa privada que realiza mapeamentos de perfis, tendências, mercados e opiniões (MAPEAR,[s. d.])
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 495

Integração na Segurança (PROEIS) nas unidades escolares estaduais do Rio de


Janeiro, com o objetivo manter, restaurar e promover a segurança no ambiente
escolar através da presença do policial militar nessas escolas. É crucial apontar
que o PROEIS já existia, desde um ano antes e que o convênio com a SEEDUC
não foi sua primeira ação. Instituído pelo Decreto governamental 42.875 de 15

or
de março de 2011, esse programa nasce com o objetivo maior de conservar,

od V
reforçar e articular medidas de ordem pública nos espaços urbanos, como

aut
meio de reduzir índices de criminalidade (SESEG, 2011).
Como uma oferta de salvaguarda extra, além do contingente habitual de

R
policiais nas cidades e municípios, a SESEG disponibiliza a prefeituras, empre-
sas concessionárias de serviço público ou até mesmo órgãos da administração
direta e indireta estaduais, municipais e federais policiamento ostensivo feito

o
pela Polícia Militar. Os primeiros órgãos a requerer mais segurança e presença
aC
policial foram a SuperVia4 e o MetrôRio5 ainda em 2011. Depois, além da
SEEDUC em 2012 e até hoje, outras instâncias assinaram e vêm assinando o
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convênio, como a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE)6, o Ins-


visã
tituto Estadual do Ambiente (INEA)7, a Light Serviços de Eletricidade S. A.8,
as prefeituras de Niterói, Bom Jardim, Carapebus, Rio das Ostras, Casemiro
de Abreu, Nova Friburgo, Seropédica, Queimados, Macaé, Itaperuna e Duque
de Caxias e ainda a Linha Amarela S.A. (LAMSA)9, o Departamento Geral de
itor

Ações Sócio Educativas (DEGASE)10 e a CCR Barcas11.


a re

Emerge então um dispositivo de governo que atua não somente nos


indivíduos, pelo eixo das disciplinas, mas também como poder sobre a vida,
na qual se investe através da sujeição dos corpos e da gestão calculada da
população pelo cuidado político. O PROEIS pode ser visto como a atualização
par

4 Empresa privada criada por consórcio para a operação comercial e manutenção da malha ferroviária de
Ed

trens da região metropolitana do Rio de Janeiro e do teleférico do Complexo do Alemão, Zona Norte do


Rio de Janeiro.
5 Empresa privada concessionária responsável pela operação comercial e manutenção da malha metroviária em
operação no município do Rio de Janeiro.
ão

6 Pertencente à Secretaria de Estado de OBRAS (SEOBRAS), opera e mantém a captação, tratamento,


adução, distribuição das redes de águas, além da coleta, transporte, tratamento e destino final dos esgotos
gerados nos municípios do Estado do Rio de Janeiro.
s

7 Vinculado à Secretaria Estadual do Meio Ambiente, tem com a missão de proteger, conservar e recuperar
ver

o meio ambiente para promover o desenvolvimento sustentável.


8 Empresa privatizada de geração, comercialização e distribuição de energia elétrica, responsável pela cidade
do Rio de Janeiro, além de boa parte da Baixada Fluminense. 
9 Empresa concessionária responsável por manter as condições de pavimento, sinalização e geometria da
Linha Amarela, via expressa denominada oficialmente como Avenida Governador Carlos Lacerda, que liga
Jacarepaguá à Ilha do Fundão, no município do Rio de Janeiro.
10 Vinculada à Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC), tem como objetivo promover socioeducação através
da execução das medidas judiciais aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei.
11 Empresa concessionária responsável pelo transporte aquaviário do Estado do Rio de Janeiro, operando
linhas nos municípios Angra dos Reis, Niterói e Mangaratiba, além do Rio de Janeiro.
496

da biopolítica, que para conhecer, organizar e controlar a vida, atua pelos dis-
positivos de segurança e se expande apregoando a saúde e a redução dos riscos.
A entrada da polícia nas escolas estaduais e também nos mais diversos locais
e serviços da cidade e do estado reatualiza a lógica disciplinar, agora com
tons midiáticos, estatísticos e de rendimentos (CUNHA; BICALHO, 2015b).

or
Partindo dos aspectos individuais psicológicos, constrói-se a vítima e o

od V
agressor, discurso de violência pautado no controle. Sustentada pelo senti-

aut
mento coletivo, a autoridade pública descarrega a própria reação reguladora
sobre fenômenos de desvio, evocando dispositivos de segurança. Foucault

R
(2005) nos traz a reflexão sobre esse controle das populações, apontando que,
nesta lógica, importa cuidar das pessoas para assim dizer como elas devem
se comportar. Fundamental é entender também o cruzamento entre esses dois

o
conjuntos de mecanismos, um disciplinar, o outro regulamentador, pois não
aC
estão no mesmo nível. Isso lhes permite, precisamente, não se excluírem e
poderem articular-se um com o outro.

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Além do clamor por mais segurança nos mais diferentes lugares e institui-
ções, outra linha importante é a possibilidade do policial militar (PM) trabalhar
visã
nos seus horários de folga de maneira voluntária. O PM é escalado para traba-
lhar na folga e recebe por isto, de acordo com o turno trabalhado de 6, 8 ou 12
horas. Atualmente, os programas que permitem que PMs de folga aumentem
itor

a sua renda fazendo horas extras autorizadas pelo governo, o “bico legal”, são
a re

dois, o PROEIS e o Regime Adicional de Serviço (RAS). No RAS, os policiais


trabalham para a própria corporação, seja em grandes eventos ou aumentando
o efetivo dos batalhões nas escalas normais. Nessa modulação de trabalho, é
possível que haja convocações obrigatórias, no caso para atender policiamento
par

ostensivo extraordinários em grandes eventos, como manifestações, carnaval,


eleição, réveillon. Já no PROEIS, os PMs prestam serviços a concessionárias de
Ed

serviços públicos, outros órgãos do estado e prefeituras, de maneira voluntária.


Os serviços de segurança particular, os “bicos”, nascem e crescem com
o aumento da demanda por segurança nos espaços, além da necessidade dos
ão

policiais de complementarem a renda (CUNHA; BICALHO, 2015a). Traba-


lhando no seu dia de descanso, o valor em média hoje do turno na maioria dos
lugares, isto é, boates, churrascarias, lojas, shopping, segurança particular,
s

farmácia, lojas de rua, é na faixa entre 100 a 150 reais pelo turno de 12 horas,
ver

segundo relato de policiais.


De acordo com os policiais, o modelo implantado “melhora significativa-
mente o desempenho dos alunos, além de ser o melhor modelo para colégios
localizados em áreas violentas, onde há tráfico de drogas e prostituição”. Para
provar isso, afirmam que em nove Estados os colégios comandados pela PM
ficaram com a primeira colocação entre as estaduais no Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 497

De forma geral, a escola, em um contexto de higienização de toda a socie-


dade, constitui-se no espaço privilegiado de detecção, prevenção e correção
dos desvios da infância. Aos poucos, “a psicologia entra também como arma
desse mecanismo através do braço da ciência, a partir do momento em que sua
intervenção é testada e comprovada estatisticamente, trazendo a “verdade” e

or
“melhorias” em seus resultados” (FERREIRA, 2013, p. 56).

od V
Um caso que vem ganhando força nos últimos dois anos é a entrega da

aut
gestão escolar às forças militares do Estado, ao longo do país. Cada vez mais
projetos de lei são criados e aprovados com urgência pelas assembleias legislati-
vas estaduais para que escolas públicas que atendem o público do 1º ao 3º anos

R
do Ensino Médio sejam administradas e geridas por policiais militares. Em julho
de 2019, 60 escolas militarizadas estão em Goiás, totalizando 154 em todo país,

o
em 14 estados, localizadas em regiões mais pobres das cidades. Com dinâmica
aC
parecida com a de um quartel e com a cobrança do uniforme militar, todas têm
em seus projetos e propostas a menção à melhoria do rendimento escolar.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Segundo estudos de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará


(UFC), Alessandra Benevides e Ricardo Soares (2017), esse suposto desem-
visã
penho diferenciado em provas oficiais do governo tem dado força ao projeto
de militarização das escolas. Entretanto, é preciso analisar com cuidado essas
notas: o fator escolarização é colocado de maneira dissociada da heteroge-
itor

neidade das e dos estudantes, relacionado tanto a características familiares


a re

atuais, como do seu acúmulo de conhecimento passado.


O estudo afirma que o diferencial de desempenho dos estudantes de colé-
gios militares tanto se deve ao fato de estes terem bom comportamento, quanto
à boa estrutura e qualidade das escolas. Ocultado em um discurso de sucesso
par

individual e boas condições para estudar, as escolas militarizadas apresentam


cenários de privilégios, mostrando em propagandas e divulgações como se
Ed

a solução da educação pública fosse uma questão de segurança, ocultando


processos meritocráticos invisíveis nessas instituições.
Segundo Scheinvar (2009, 2012), a efervescência de leis, decretos, con-
ão

venções, regulamentações ao longo do século XX foram e ainda são a grande


expectativa de transformação das relações instituídas e conflituosas em nossa
sociedade, em âmbito local, nacional ou internacional. Para que a sociedade e
s

o Estado prospere, cresça, gere lucro e renda, é preciso haver regras comuns e
ver

não haver desvios. A lei, como parâmetro universal, segundo Foucault (2013),
está sempre acima das pessoas. Sua violação é um crime, e o violador um
inimigo social.
Os discursos de proteção/prevenção andam lado a lado com discursos e
práticas que demandam penas mais duras. Para gerir a insatisfação da sociedade
são produzidos instrumentos de controle social como o encarceramento maciço
e indiscriminado; e a manipulação da insegurança e do medo, o que gera mais
498

controle de uma certa população perigosa do que dos fatores que terminariam
supostamente essa tal condição (OLIVEIRA; REZENDE; BICALHO, 2018).
Com bom intuito e querendo o bem de todos, para legitimar posições e
atitudes, emergem falas e argumentos que produzem, dicotomicamente, cul-
pados e deficientes. Presentes em discursos como “esse menino não tem sal-

or
vação, já está no tráfico”, “eles são terríveis”, “tá vendo, olha o que ele disse?

od V
Não adianta, ele é assim!” “o policial tem que ser o herói desses meninos”,

aut
nos dizem que olhar para essa população que frequenta as escolas públicas
do país é ver imagens de perigosos, fracassados, perdedores.

R
Mecanismo de instrumentalização da biopolítica, o dispositivo de peri-
culosidade considera tão importante quanto aquilo que o sujeito é ou fez é o

o
que ele poderá vir a ser ou a fazer. Criminalidade associada à periculosidade.
Isso significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível
aC
de suas virtualidades e não de seus atos. Possível crime do autor, não do ato.
Desse modo, não apenas o poder judiciário deve se encarregar do controle dos

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indivíduos, mas sim toda uma rede de instituições de correção e vigilância – as
visã
instituições psicológicas, psiquiátricas, pedagógicas, médicas, para correção,
e a polícia, para vigilância (MEZA; BICALHO, 2017).
É importante questionar os motivos e as consequências também de certas
itor

escolas terem sido escolhidas para a implementação do projeto. Onde elas


ficam? Que público elas atendem? Em muitos desses casos, como temos visto,
a re

o policial, o militar impõe medo, impõe cerceamento, como um exemplo vio-


lento, somente pela sua presença, pela sua figura. Que estudantes cabem nesse
modelo, que crianças e jovens queremos criar? Que crianças não voltam para
a escola depois de saber que o local que tanto gostavam agora é administrado
par

por militares? Quem vê, percebe e sente essa exclusão invisível? 


A escola pública passa a, sem perceber, excluir: não deixar caber cer-
Ed

tos meninas e meninos que não “cabem” nessa fôrma. Meninas com black
power, meninos com dread, meninos afeminados, meninas masculinizadas,
são excluídos por não “se comportarem”, por não “se enquadrarem” – quando
ão

na verdade não se questiona essa forma tão dura e rígida que é colocada como
disciplina, como ordem. Apostamos em uma educação que não seja feita a
s

partir do medo, da força, na violência, na imposição. Uma educação que


ver

não seja violenta, a qual vai se constituindo no corpo, pela forma que vai se
colocando nos espaços – não ter voz, ser um infante é um processo psíquico
violentíssimo. A/o estudante que é sempre considerado um “intruso” ou um
“problema” (FANON, 2005) – o não-lugar, a visão científica de um que separa
outro, é a principal marca da territorialização da subjetivação colonial brasi-
leira. É preciso se dar conta dessas linhas de força, perceber a própria história
para poder reinventá-la.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 499

Quanto menos se investe em política pública mais se produz desigualdade


social. Colocar a gestão militar em uma escola pública faz com que ela perca
esse caráter de instituição pública, de livre acesso, livre circulação, de ques-
tionamento, de autonomia, de problematização sobre o que está colocado. A
educação pública não pode ser um privilégio, um lugar em que você não possa

or
estar porque tem é caro, porque existem preconceitos e segregações, porque

od V
tem medo de estar ali. Como diria Nina Simone (2015), não há liberdade e

aut
autonomia enquanto há medo.

R
O governo da vida

Figura central nas discussões sobre segurança pública, a instituição

o
policial tem ligação direta com o tema do controle e do medo na sociedade
aC
contemporânea. Entretanto, Foucault (2008) nos mostra que no século XV o
entendimento da instituição policial era diferente do que hegemonicamente
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tem-se hoje. Chamava-se “polícia” simplesmente um grupo ou sociedade que


visã
era regido por uma autoridade pública, de maneira hierárquica. Aqui, a polícia
é entendida como substantivo.
A partir do século XVII, o entendimento se expande junto com o cresci-
mento das cidades. Polícia começa a ser entendida como o conjunto de atos
itor

que vão reger os grupos, comunidades e sociedades sob as rédeas de uma


a re

autoridade pública. A noção de governamentalidade (FOUCAULT, 2008)


nasce então. Em outras palavras, a polícia vai ser o cálculo e a técnica que
possibilita estabelecer uma relação móvel mas, apesar de tudo, estável e con-
trolável entre a ordem interna do Estado e o crescimento de suas forças.
par

Como governar as crianças, como governar os pobres e os mendigos,


como governar uma família, uma casa, como governar os exércitos, como
Ed

governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como governar seu


próprio corpo, como governar seu próprio espírito. Como governar? Questão
fundamental a qual respondeu a multiplicação de todas as artes de administrar,
ão

gerir, controlar – arte pedagógica, arte política, arte econômica – e de todas


as instituições de governo, no sentido amplo.
A partir de então, a polícia procura consolidar e aumentar o poderio desse
s

Estado, visando ajudar a fazer um bom uso das suas forças de produção. No
ver

Brasil, as polícias estaduais são militares e possuem raízes profundas na his-


tória do país. A Polícia Militar do Rio de Janeiro foi criada em 13 de maio de
1809 sob o nome de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte. Seu
papel era garantir a ordem e combater o contrabando, a fuga de escravos e a
prática de capoeira na então capital do império português (SOARES, 2006).
Quem segurava com força a chibata agora usa farda, engatilha a macaca,
escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista. A ditadura não criou
500

a tortura e as execuções extrajudiciais ou a ideia de que vivemos uma guerra


contra inimigos internos. Tais práticas perversas e as correspondentes concep-
ções racistas e autoritárias têm a idade das instituições policiais no Brasil. A
ditadura civil-militar que iniciou-se em 1964 reorganizou os aparatos policiais,
intensificou sua tradicional violência, autorizando-a, adestrando e legitimando

or
suas práticas. A lógica é anterior, foi fortificada nessa época, e hoje permanece

od V
a mesma, só os objetos-alvo foram sendo trocados: vadio, malandro, comu-

aut
nista, vagabundo, drogado, criminoso, traficante, delinquente, cracudo. Como
disse Marcelo Yuka (1994), todo camburão tem um pouco de navio negreiro.
A falta de uma justificativa para a manutenção de todo o sofisticado

R
aparado de repressão, montado nos frios e duros anos da ditadura, produziu
a necessidade de intensa propaganda sobre o perigo do crescimento do crime

o
(SOARES, 2006; AGUIAR; BERZINS, 2014). Os meios de comunicação
aC
desempenharam e ainda desempenham um papel fundamental ao criar um
clima de terror e medo, ao divulgar a ideia de que se vive uma situação

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incontrolável de violência criminal. Constrói-se, assim, a justificativa para
a existência de órgãos repressivos em tempos democráticos, legitimando as
visã
ações de intimidação indiscriminada contra a população.
A lógica de guerra da militarização já tem espaço nos territórios urbanos,
no armamento ostensivo e na vigilância por toda a parte, nas favelas ocupadas
itor

por blindados, arames farpados em espiral, nos programas sociais: “Guerra às


a re

drogas”, “Guerra contra a pobreza”, “Unidade de Polícia Pacificadora Social”,


“Crack: É possível vencer”, mostrando que a concepção de que a pacificação
carrrega, como pano de fundo, uma ideia de guerra, moralizada como uma
cruzada do bem contra o mal.
par

Com isso, ganha força a divulgação de estatísticas, dados, imagens e notí-


cias sobre o aumento aparentemente incontrolável da criminalidade urbana,
Ed

justificando a manutenção intacta do aparato repressivo policial-militar e


legitimando a ação violenta e pretensamente eficaz como resposta ao crime,
como também os incessantes pedidos e solicitações de policiamento nas ruas,
ão

nas orlas, nas vias, nos prédios, nas estradas, e, também, nas escolas.
Com uma obsessão contemporânea por segurança, as polícias estão cada
vez mais parecidas com os exércitos, em se tratando de suas vestimentas,
s

mas também de sua tática de guerra. O que norteia é a ideia de que o inimigo
ver

interno, agora o criminoso comum, está em algum lugar na cidade: na escola,


na rua, no morro, na praia, nas multidões. Como nos diz Graham (2011), o
cidadão encontra tranquilidade em ver o controle urbano feito pelo policia-
mento ostensivo, por temer o inimigo urbano, o próprio cidadão, o outro.
Como se trata de uma guerra, há um inimigo a ser derrotado, onde a ênfase
das políticas públicas passa a ter como foco a repressão às formas de violência
urbana, entendidas como toda e qualquer ameaça à rotina (Cunha & Bicalho,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 501

2018). Reflexo disso é perceber que o controle social, da polícia, dos traficantes
ou das milícias encontra-se cada vez mais territorializado, demarcado, visível,
anunciado: mapas, georeferenciamento, estatísticas, manchas criminais que são
produtos e são produzidos nessa conquista do território urbano.
Loïc Wacquant (2001) sugere conexões funcionais entre a adoção do

or
receituário neoliberal nos Estados Unidos e o aumento dramático das taxas

od V
de encarceramento, sobretudo de pobres e negros. O neoliberalismo, ao pro-

aut
mover o crescimento do desemprego, o esvaziamento de políticas sociais e a
desmontagem de garantias individuais, exigiria a criminalização da pobreza
para aplacar as demandas populares e evitar a eventual tradução política da

R
exclusão em protagonismo crítico ou insurgente.
Se o exército de reserva da força de trabalho não é mais necessário,

o
dadas as peculiaridades do sistema econômico globalizado que transfere a
aC
exploração do trabalho para países dependentes, ou apresenta riscos de con-
verter-se em fonte de instabilidade política, torna-se conveniente canalizar
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contingentes números dos descartáveis para o sistema penitenciário. Não por


acaso, os EUA viriam a produzir a maior população penitenciária do mundo.
visã
As hiperdesigualdades e a militarização urbana sustentada pelo neoliberalismo
se retroalimentam (LEMOS; BICALHO; ALVAREZ; BRÍCIO, 2015).
O foco urbano dessa economia política securitária está ligado às próprias
itor

condições de funcionamento da cidade moderna globalizada as quais criam a


a re

possibilidade de violência contra ela e, sobretudo, através dela. A vida coti-


diana urbana por toda a parte é espreitada pela ameaça de interrupção, sempre
em risco: o apagão, o engarrafamento, o tiroteio, o arrastão, o travamento da
cidade, a conexão rompida, o assalto, o fluxo inibido, a queda do servidor, o
par

aviso de “rede indisponível”.


Contudo, nunca antes na história desse país prendeu-se tanto. A expan-
Ed

são do encarceramento pode ser entendida a partir da combinação entre as


estruturas organizacionais das polícias, a adoção de políticas de segurança
que privilegiaram determinados focos seletivos e a vigência discricionária da
ão

lei de drogas vigente no país.


A PM é um corpo de servidores públicos pressionado pelo governo, pela
mídia e por demais setores da sociedade a trabalhar e produzir resultados, os
s

quais deveriam ser entendidos como a provisão da garantia de direitos e a


ver

redução da criminalidade, sobretudo violenta, estabilizando e universalizando


expectativas positivas, relativamente à cooperação.
Anos de execução dessa proposta geraram um “‘fetichismo da polícia’,
uma pressuposição ideológica de que a polícia é um pré-requisito essen-
cial para a ordem social, e que, sem a força policial, o caos vai instalar-se”
(SERRA; ZACCONE, 2012, p. 38). Mais que isso, esse fetichismo é efeito
de um esplendor que a polícia provoca, como diz Foucault (2008), por gerar
502

ornamento e forma à cidade, beleza visível da ordem e o brilho de uma força


que se manifesta e irradia, controlando populações. Observando a cobertura
e a associação da grande mídia, podemos compreender melhor a expressão
esplendor, já que se produz verdadeiramente uma aura mágica em torno da
polícia e das suas ações.

or
Hoje vem se discutindo o processo de desmilitarização da polícia. O que

od V
é isso? A proposta do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) de emenda constitu-

aut
cional número 51/2013, a PEC 51, é de reestruturar o modelo de segurança
pública basicamente em três pontos: (1) Desvinculação da Polícia às Forças
Armadas (FFAA). As Polícias Militares deixam de existir como tal passando

R
a configurar-se uma polícia unificada para cada estado; (2) Toda instituição
policial passa a ordenar-se em carreira única. Hoje, na instituição militar

o
(preventiva e ostensiva) há duas polícias, organizadas por dois círculos desen-
aC
contrados: oficiais e praças. Na polícia civil (investigativa e cartorária), os
delegados e inspetores. Como esperar respeito mútuo, compromisso com a

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equidade e coesão interna desse modo?; (3) Todo órgão policial deverá se
organizar em ciclo completo, responsabilizando-se cumulativamente pelas
visã
tarefas ostensivas, preventivas, investigativas e de persecução criminal.
Reflexão sutil nessa discussão mais central: hoje o patrulhamento e a
prevenção tem função militar, sob vínculo com as FFAA. Em seu cerne, na
itor

realidade, a função da polícia é prover serviços e vidas, não combater e destruir


a re

inimigos. O ideário militar de combate ao inimigo é virtualmente impossí-


vel de ser conciliado com a aspiração de uma polícia cidadã, garantidora de
direitos e imbuída na missão de servir e proteger.
As polícias devem ser defensoras do conjunto da sociedade, e não da
parte privilegiada desta. Mais do que romper com o modelo militarizado,
par

deve-se retirar a previsão existente das PMs enquanto forças auxiliares e


Ed

reserva do Exército. É preciso promover a compreensão de que a manutenção


das Forças Armadas como superiores hierárquicas do policiamento ostensivo
representa uma herança autoritária.
ão

A produção da sensação de segurança e o medo como operador


político
s
ver

É comum entender o termo ‘segurança’ como preservação da ordem


social e jurídica, que se experimenta como uma sensação. A polícia e os
técnicos de segurança entram em jogo na percepção de suas atividades como
uma presença a serviços da estabilidade daquilo que existe. Segurança, para
Spinoza, envolve assegurar a passagem do homem de um momento menor
para um maior (Deleuze, 2002). Segurança, em outras palavras é uma espécie
de direito de ser mais. A mãe de todas as inseguranças é negar ao indivíduo,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 503

como direito básico, a possibilidade de ser mais. Nessa inconsciência, se multi-


plicam as blindagens, as câmeras, os detectores de metais e as tropas armadas,
num esforço inútil de fazer derivar a tranquilidade dos artigos de um código
penal. A operação do medo como política de organização de nós mesmos.
Satisfazer uma necessidade social de justiça participando de um teatro

or
de vingança, que não satisfaz mas gera efeitos. Até onde pode ir? Até onde

od V
poderemos ir para controlar e cuidar da vida do outro? Uma instrumentação

aut
diplomática e multilateral, de um lado; de outro, organização de um exército
profissional (Foucault, 2008). Eis o primeiro grande conjunto tecnológico
característico da nova arte de governar num campo concorrencial de forças

R
que promove forças para fazer funcionar o pacto de segurança.
Deleuze e Guattari ao longo de sua obra, aqui principalmente em Guattari

o
e Rolnik (2013), abordam o tema da subjetividade e de sua produção industrial,
aC
capitalística e social. Desconstruindo a ideia de identidade, de uma unidade
inata e pré-disposta, falam da construção da subjetividade como uma engre-
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nagem, a partir da composição de peças, ferramentas, óleos e engrenagens.


O grande ponto a ser visto e ressaltado com atenção é, como em uma fábrica,
visã
é feita a elaboração de indivíduos modelizados, serializados, sempre gerados
no registro social, no coletivo, mesmo que sejam construídas individualidades
ou características únicas de cada um.
itor

Ao mesmo tempo em que unifica e dá a sensação que individualiza, cria-se


a re

um modo-indivíduo (BARROS, 2007): através de intervenções e investimentos


da sociedade burguesa, é incitada uma maneira de viver que individualiza, cria
condições de constituir um modo-padrão de experimentar as relações com o
mundo. Modos de ser uniformizados e padronizados que classificam grupos
plurais e diversos, marginalizando singularidades, aniquilando multiplicidades.
par

São criadas, então, tecnologias que tomam o indivíduo para cuidá-lo;


extraindo-lhe o conhecimento necessário para melhor assegurar o funcionamento
Ed

da sociedade. Produzida por discursos, por técnicas, por intervenções profis-


sionais, por formas de cuidar, por discursos culturais e midiáticos, a montagem
dessa subjetividade, segundo Guattari e Rolnik (2013), passa por três proce-
ão

dimentos: a segmentarização/segregação, a culpabilização e a infantilização.


O primeiro, da segregação ou da segmentarização, pressupõe a identifi-
cação de qualquer feito em quadros de referência imaginários, o que propicia
s

toda forma de manipulação. Com foco em manter a ordem social a partir de


ver

hierarquias imaginadas, sistemas de escalas de valor, disciplinarizações. Para


você fazer isso, você precisa disso. Para você chegar aqui, você precisa passar
por ali. Para entrar nesse grupo, você precisa entrar naquele antes. Você não
pode entrar aqui, você está vestido dessa forma. Quem é você, o que você faz
aqui? Você não é bem-vindo aqui, esse não é seu lugar. Seu lugar é lá. Aos
poucos, esse procedimento internaliza e gera no indivíduo um questionamento:
então, quem sou eu nesse lugar?
504

O segundo processo, da culpabilização, consiste em, a partir de inventa-


das imagens de referência, ser conduzido a assumir supostas singularidades,
sempre em débito por nunca alcançar tais referências. Remorso gerado por
nunca atingir padrões estabelecidos por modelos ideais, elementos de culpa-
bilização dos valores capitalísticos. Eu caibo nesse lugar? Será que eu devo

or
estar aqui? Será que eu mereço? Eu não posso estar aqui, eu não fiz por onde.

od V
Se tanto me questionam e me dizem que eu não posso ir e vir, não posso

aut
transitar. Isso não é para nós, esse lugar não é para nós. Começo a pensar que
eu nasci assim, eu cresci assim, tudo vai continuar da forma que está, e eu
aqui, onde me colocaram.

R
A terceira função da economia subjetiva capitalística é a infantilização.
Muito importante e principal processo de fabricação, opera por intervir na vida

o
de alguém por entender que aquele indivíduo não é capaz de decidir, fazer ou
aC
agir por si próprio. Infantilizar, inferir que aquele é sem voz, sem escolha, sem
potência para realizar algo. Pensam por nós, organizam por nós a produção e a

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vida social, isto é, tudo o que se faz, se pensa ou se possa vir a fazer ou pensar
seja mediado pelo Estado. Principalmente executado com mulheres, crianças,
visã
adolescentes, loucos, doentes, moradores de favelas e de áreas segregadas da
cidade ou outros de comportamento dissidente que “ainda não são”, que “virão a
ser”, por isso, supostamente precisam de ajuda, mediação. A ordem capitalística
itor

produz os modos de relações humanas, ordem que não pode ser tocada sem que
a re

se comprometa a própria ideia de vida social organizada – não se pode perturbar


a harmonia social, em defesa da sociedade e pelo bem de todos.
Imprimir uma lógica de perseguição, punição e exclusão a qualquer custo,
numa lógica inquisitiva nos faz entrar na guerra. Entramos no campo de bata-
par

lha, nos armamos, escolhemos um lado, puxamos e gatilho e atiramos. Muitas


vezes prendemos, castigamos, algumas vezes até matamos. Amoladores de
Ed

facas (BAPTISTA, 1999) ou esfaqueadores, nossas práticas agem, fazem agir.


Foucault (2013) pontua que muitas vezes entramos a serviço de uma
espécie de guerra particular, ou individual, que se desenvolve onde o pro-
ão

cedimento penal será a ritualização da luta contra os indivíduos. “Entrar em


um domínio de guerra, através da lei, é uma maneira regulamentada de fazer
guerra. Significa matar o assassino, mas matá-lo segundo certas regras, certas
s

formas. Ritualizar o gesto de vingança, instrumentalizando assim o ritual de


ver

guerra” (FOUCAULT, 2013, p. 60). Muitas vezes dançamos essa música:


também somos polícia, aqui como verbo e também como substantivo. Polí-
cia das famílias, polícia dos sem lei, polícia dos infames, dos infantes, dos
indecentes, dos inocentes. Polícia dos desestruturados.
Pensar a indisciplina escolar é um belo analisador para pensar a socie-
dade de controle e nossas vigilâncias a céu aberto cotidiano. Como se propa-
gandeia, só uma gestão rígida adianta. Será? É importante que se invista, não
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 505

só em discursos, nas professoras e nos professores e entendamos o cenário


atual de desinvestimento e sucateamento da educação (PATTO, 2015) – o
que temos hoje são os profissionais da educação básica com salários baixos,
ganham muito pouco, trabalham muito, exaustos, sempre em sobrecarga.
Além disso, é um setor que tem uma grande falta de profissionais, sem equipa-

or
mentos, sem alimentação adequada, sem inspetores – sem culpar a professora

od V
e educação mas também sem culpar os estudantes como indisciplinados e

aut
rebeldes, é preciso olhar e escutar esse contexto de perto, entendendo que é
preciso investir mais em pessoal e estrutura, não em câmeras, em disciplina,
em ordem em armas. Pensar o quanto nós mesmos, todos, temos deixado de

R
lado a educação pública, como um caldeirão que está entornado. A solução
está no cuidado e na atenção aos estudantes e das docentes – a estrutura

o
toda educacional dessa instituição – do que em só olharmos para hierarquia,
aC
obediência, disciplina, ordem e segurança.
Guattari e Rolnik (2013) apontam a posição política dos ‘trabalhadores
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sociais’, isto é, aqueles que atuam de alguma maneira na produção de sub-


jetividade, ao se interessarem pelo discurso do outro. Cabe escolher entre
visã
reproduzir modelos que não permitem criar saídas para processos de sin-
gularização, atuando em uma posição de reforços dos sistemas dominantes,
ou, ao contrário, trabalhar para fazer funcionar processos na medida de suas
itor

possibilidades e dos agenciamentos que consigam por para funcionar, reco-


a re

nhecendo a atuação profissional crítica, atenta e política, abrindo mão de uma


suposta neutralidade na relação.
A garantia de uma micropolítica processual, aquela que constrói novos
modos de subjetividade, que singulariza, não se encontra no primeiro viés
par

descrito. A processualidade só pode ser encontrada a cada passo, a partir de


re-existências constantes, na criação de modos de referências, de modos de
Ed

práxis. É preciso subverter a subjetividade de modo a fazer emergir singulari-


dades desejantes, produzindo um jogo que revela a subjetividade dominante,
ao invés de denunciá-la. Inventar e fazer subjetividades delirantes, que em
ão

seu embate com a subjetividade capitalística a façam desmoronar, ao invés


de pretender a liberdade. Permitir-se pensar diferente, inventar, possibilitar
questionamentos que façam novas formas de existência.
s

A polícia nas escolas é um exemplo, dentre inúmeros outros, do quanto


ver

a polícia nos habita. São práticas produzidas numa sociedade em que pre-
domina a cultura da vingança e do castigo, que produzem assujeitamento;
fazendo, assim, perder-se a potência criadora. Colocá-las em questão torna-se
um grande desafio, tendo em vista a naturalidade com que são vistas, o que nos
faz pensar em criar outras estratégias para lidar com aquilo que nos incomoda,
não conservar práticas que recorram aos tribunais formalmente estabelecidos
ou àqueles que estão em nós, fazendo-nos ora juízes, ora acusados, ora algozes,
506

ora vítimas. Frente às medidas atuais aqui estudadas, é fundamental discutir


a militarização da vida, isto é, como atualmente tem-se requerido instâncias,
contratos ou outros atores, como a polícia, para mediar relações, ausentando
a responsabilidade dos próprios atores do cenário sobre o que tem que fazer.
Criar caminhos alternativos, fazer com que o ar circule por outras vias

or
que não só as comumente instituídas. A tensão não pode ser descartada. Pre-

od V
cisamos exercitar o olhar da primeira vez, como nos dizem Rancière (1996) e

aut
Kohan (2013), seu patrimônio invisível, impalpável, experimentar caminhos
errantes, um não-saber definitivo nem acabado. Como fazer isso? É preciso que

R
nós nos analisemos. Onde estamos nesse campo? Estamos entrando em jogo
nesse campo de batalha? É preciso que nós nos desmilitarizemos, retiremos
a lógica de guerra, de combate, de duelo, de guerra de nosso modo de ação.

o
Aposta-se que a solução para um mistério não é a vingança nem o mimetismo
aC
do violador, mas o restabelecimento da confiança no comum. Comum capaz
de fazer-nos perguntar: como produzimos a militarização de nós mesmos?

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Quais práticas policiais incidem em nossas intervenções como psicólogos?
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 507

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od V
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VIGOTSKI E A CONSTRUÇÃO
DE CONHECIMENTO NO
CAMPO HISTÓRICO-CULTURAL:

or
o método na pesquisa

od V
aut
Herculano Ricardo Campos
Marilda Gonçalves Dias Facci

Introdução

R
o
aC
Este texto visa contribuir com a produção de conhecimento no campo his-
tórico-cultural, ressaltando alguns aspectos a ele subjacentes, mais ou menos
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explícitos, embora fundamentais, notadamente para o pesquisador que atua


visã
no contexto da pós-graduação. Tomando L. S. Vigotski por referência, res-
salta-se a relação entre a Filosofia e a Ciência, inclusive mostrando o afasta-
mento entre elas, que se deu no processo de desenvolvimento do projeto de
ciência moderna. Ao se caracterizar tal projeto como de feição gnosiológica
itor

e apresentar algumas críticas a tal perspectiva, defende-se a identificação de


a re

Vigotski com outra perspectiva no campo da Filosofia da Ciência, qual seja a


ontológico-histórica, nos termos como é depreendida da obra de Marx.
Tomar o psicólogo soviético como referência na presente reflexão decorre
do reconhecimento do caráter seminal do seu trabalho, marcado por uma
par

peculiar compreensão da constituição e do desenvolvimento do sujeito e por


uma crítica profunda à Psicologia de sua época, aglutinada em torno das gran-
Ed

des vertentes empirista e compreensiva. Muito embora haja clareza quanto


ao fato de que Vigotski não foi o idealizador do campo histórico-cultural, é
inegável que sua contribuição deu a esse campo um novo vigor, bem como
ão

que sua originalidade é devida à adoção do fundamento materialista histórico


e dialético para o estudo dos fenômenos psicológicos. De acordo com Marta
Shuare (2017), coube a ele “o mérito inestimável de ser o primeiro a aplicar
s

criativamente o materialismo dialético e histórico à ciência psicológica e de


ver

ter colocado a mesma “sobre seus pés”, provocando na mesma uma verdadeira
revolução copernicana” (p. 59).
Em que pese ter feito ressalvas quanto ao fato de que o materialismo
histórico e dialético não poderia ser transposto de forma acrítica para a Psi-
cologia, Vigotski não deixa dúvidas quanto a que é essa diretriz filosófica que
preside seus estudos psicológicos, como apontado por Carmo (2008) e Carmo e
Jimenez (2013). De acordo com as autoras, Vigotski “[...] apanha o método de
512

Marx em sua justa acepção: ou seja, como um método que tem por fundamento
a dimensão ontológica, priorizando a totalidade complexa do ser e, com esta,
articulando o movimento igualmente complexo de suas partes (vivas)” (p. 629).
Na mesma direção, Elhammoumi (2016) destaca, no contexto da obra
vigotskiana, o tema do trabalho, afirmando que “Vygotsky incorporou o con-

or
ceito de trabalho de Marx – atividade e práxis – à sua abordagem ontoló-

od V
gico-epistemológica ao estudo das funções mentais superiores” (p. 31). A

aut
esse respeito, no entender de Carmo e Jimenez (2013), “[...] em diferentes
passagens de sua obra Vigotski deixa registrada, motu proprio, sua compreen-
são do trabalho como momento fundante do homem, assim como a relação

R
fundante-fundado, estabelecida pelo psicólogo soviético, entre as diferentes
categorias e o complexo do trabalho” (p. 628, itálico das autoras).

o
Assim, sua compreensão da essência histórica do homem e do papel do
aC
trabalho como momento fundante do ser social, caracterizado pela atividade
vital livre e consciente, orientada para a transformação, e sua defesa intran-

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sigente da emancipação humana, “[...] condição somente possível de forma
cabal no terreno da ontologia” (CARMO; JIMENEZ, 2013, p. 630), revelam
visã
não apenas sua apropriação do método de Marx, como também da perspectiva
ontológico-histórica que o preside.
Não se trata, ressalta-se, de uma perspectiva ontológica especulativa,
itor

banida sob a acusação de subjetivismo e substituída pela perspectiva gno-


a re

siológica, que Vigotski adota ao se apropriar do método de Marx. Trata-se,


como explicitado anteriormente, de uma diretriz ontológico-histórica: “[...]
uma ontologia na qual o ser só é reconhecido pela identificação à objetividade,
em especial à objetividade social – enfim decifrada como atividade sensível
par

[...]” (CHASIN, 2009, p. 86).


Tais princípios filosófico-teóricos forneceram o arsenal para a crítica
Ed

vigotskiana à Psicologia da sua época, na qual são apontados os limites meto-


dológicos das diferentes correntes. Portanto, necessariamente, sua crítica da
metodologia até então empregada no estudo do desenvolvimento humano
ão

estava alimentada por uma diretriz filosófica, um método, com base em que
se revelava possível superar os limites entre objetividade e subjetividade,
materialismo e idealismo, a partir dos quais se desenvolvia o conhecimento
s

científico no contexto da Psicologia.


ver

O conhecimento científico tem importância sobre outras formas de pen-


samento, orientando muitos dos significados que circulam no tecido social;
exerce papel destacado na concepção de mundo compartilhada pelos sujei-
tos, visto que tanto seus axiomas não são imunes ao mundo de onde pro-
vêm, quanto que o conhecimento produzido com base neles volta ao mundo
social, constituindo elemento – científico – para a significação, a construção
de uma concepção sobre esse mundo – e uma diretriz de ação. Logo, dada a
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 513

importância desse tipo de conhecimento para a dinâmica social, é necessário


que se explicite o caráter da sua relação com a Filosofia, apontada como subs-
trato orientador daquele. De acordo com Marta Shuare (2017), mesmo “as
concepções que não reconhecem um lugar e um papel da Filosofia no conhe-
cimento científico, afirmam [...] esta relação, na medida em que sua negação

or
constitui uma determinada postura filosófico-metodológica [...]” (p. 21).

od V
Como esclarece E. G. Yudin (1978, p. 92, apud Shuare, 2017, p. 22),

aut
a Filosofia cumpre três funções principais face ao conhecimento científico:
a primeira, “de investigar as premissas e condições que estão na base do
tipo dado de pensamento científico”; a segunda, de “determinar os limites

R
historicamente concretos do conhecimento científico que se alcança com o
procedimento dado de sua organização; ou seja, a função de revelar os marcos

o
socioculturais e gnosiológicos nos quais se move a forma dada de organiza-
aC
ção da ciência”; e a terceira, de “revelar o tipo de orientação social prática,
determinado pelo lugar que a ciência ocupa no sistema da cultura”. Assim
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procedendo, a Filosofia caracteriza a ciência como “instituição sociocultural”,


explicitando seu papel na formação da concepção de mundo. A Filosofia se
visã
reveste aqui, como esclarece Shuare (2017), com base em sua apropriação
de Zinchenko e Smirnov (1983, p. 15), na “forma teórica da concepção de
mundo, seu núcleo metodológico central” (p. 22).
itor
a re

Vigotski, ciência moderna e Psicologia

Neste sentido, como exposto anteriormente, foi a diretriz filosófica do


materialismo histórico e dialético que possibilitou a Vigotski analisar criti-
par

camente a Psicologia e propor uma alternativa ao estado de coisas com que


se deparava, fosse no contexto das correntes empiristas, fosse no âmbito do
Ed

interpretacionismo ou compreensivismo. O autor deixou muito claro, no texto


O significado histórico da crise da psicologia: uma investigação metodológica
(VIGOTSKI, 1996, p. 395), que sua intenção era “aprender na globalidade do
ão

método de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique”.


O empirismo na Psicologia acenava com um modelo de ciência em
profunda sintonia com a revolução científica iniciada em Copérnico (1473-
s

1546) e Johannes Kepler (1571-1630), no século XVI, e consolidada com


ver

Galileu Galilei (1546-1642) e Isaac Newton (1643-1727), já no final do


século XVII, da qual resultou significativa mudança dos critérios de validade
do saber – e do papel que a Filosofia teria a cumprir em face desse saber.
Na esteira do avanço nos estudos da Astronomia, os filósofos da ciência
defendiam que, se a natureza podia ser descrita em linguagem matemática,
então seria possível uma ciência objetiva, comprometida em revelar a face
empírica e mensurável da realidade.
514

Atinente à sociabilidade marcada pela Revolução Industrial e pela Revo-


lução Francesa, ou seja, pelo capitalismo e pelo poder da burguesia, esse novo
saber deveria servir aos propósitos de dominar a natureza e colocá-la a serviço
do homem, para o que era requerido que abandonasse as qualidades subjetivas,
ou secundárias, dos fenômenos e das coisas e buscasse suas qualidades objeti-

or
vas e mensuráveis, ou primárias. Assim, ao invés do conhecimento filosófico

od V
de caráter intrínseco, subjetivo, que buscava apreender o ser das coisas pela

aut
razão, a busca por conhecimento ‘verdadeiro’ passou a demandar um outro
saber – científico, que alimentasse a razão cognoscente com os fenômenos
captados pelos sentidos, extrínsecos, passíveis de matematização e sujeitos

R
ao procedimento indutivo.
A condição para a construção de um conhecimento com tais caracterís-

o
ticas seria o desenvolvimento de um método, ‘claro e preciso’, para orientar
aC
a razão envolvida no processo de conhecer, tarefa assumida pela Filosofia da
Ciência, desde René Descartes (1596-1650). Nessa direção, esse novo com-

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promisso assumido pela Filosofia revelava uma mudança profunda no caráter
do conhecimento filosófico, que abandonava a perspectiva ontológica – busca
visã
do ser das coisas – para assumir a perspectiva gnosiológica, comprometida
em definir os procedimentos necessários para o conhecer, em organizar o
movimento da razão que se pretende cognoscente, ou seja, em se constituir
itor

epistemologia, teoria do conhecimento.


a re

Portanto, foi em sintonia com essa virada epistemológica que se con-


solidou a vertente empirista na Psicologia, significando a busca pelo reco-
nhecimento enquanto ciência. Nesse movimento, ela abandonou a ontologia
especulativa a partir da qual buscava explicar a psique, a alma ou espírito,
redefinindo objeto e metodologia à luz das ciências naturais, consideradas
par

paradigma da nova perspectiva de construção de conhecimento, de viés


gnosiológico. No entender de Vigotski (1996) essa “psicologia sem alma”,
Ed

de viés empiricista, revelava a falta de uma metodologia que apreendesse


empiricamente seu objeto, enquanto res extensa, para lidar com fenômenos
observáveis, como o comportamento. Em decorrência, ressaltava que a Psi-
ão

cologia, na década de 1920-1930, necessitava de uma metodologia científica


sobre uma base histórica.
s

Contudo, a crítica vigotskiana também se voltou para os limites da con-


ver

cepção compreensiva (Cornejo, 2005) ou matriz romântica (Figueiredo, 1991),


surgida na contracorrente da vertente cientificista. Juntas, elas compõem o
que atualmente se denomina Psicologia Moderna, caracterizada “[...] pela
extraordinária diversidade de posturas metodológicas e teóricas em persistente
e irredutível oposição” (Figueiredo, 1991, p. 11), ou, como afirma Cornejo
(2005, p. 189)1, marcada por “culturas antagônicas”, que definem “[...] objetos

1 Todas as traduções do espanhol para o português são de nossa responsabilidade.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 515

e métodos de estudo divergentes”, “[...] uma expressão intradisciplinar da dico-


tomia das culturas científica e humanista na sociedade ocidental”. No entender
de Vigotski (1996), em sua época – e entende-se que ainda na atualidade –,
a Psicologia era impregnada de um ecletismo no qual, entre outros aspectos,
assimilava ideias presentes nas várias tendências teóricas sem conhecer os

or
princípios que dão base a elas e guiam o entendimento dos fatos.

od V
Ressalta-se que a crítica empreendida por Vigotski (1996), no final da

aut
década de 1920, tinha em vista a construção de uma nova Psicologia. No seu
entender, “Para qualquer ciência chega, mais cedo ou mais tarde, o momento
em que deve ter consciência de si mesma como um conjunto, compreender

R
seus métodos e trasladar a atenção dos atos e fenômenos aos conceitos que
utiliza.” (1996, p. 229). No caso da Psicologia, o momento para essa tomada

o
de consciência estava assentado na situação em que se encontrava a União
aC
Soviética, marcada pelo processo revolucionário, e o vigor da crítica decor-
ria da apreensão da perspectiva ontológica do pensamento marxiano como
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princípio para estudar o ser social. Por intermédio de tal diretriz lhe foi pos-
sível retomar o objeto de estudo próprio da Psicologia, qual seja a gênese e
visã
o desenvolvimento da consciência, abandonado em nome da necessidade de
estudar o extrínseco do homem, a objetividade do comportamento, dada a
falta de metodologia adequada aos cânones científicos.
itor
a re

Gnosiologia, ontologia e produção de conhecimento

A diretriz filosófica adotada por Vigotski superava a orientação decorrente


de abordagem gnosiológica no processo de construção do conhecimento,
par

convencional e convenientemente denominada “o método”, desenvolvida em


face das vicissitudes históricas que contribuíram para relegar a Filosofia a um
Ed

papel secundário em tal processo. De acordo com Tonet (2013),

Esta maneira de abordar a questão do método se tornou tão avassaladora,


ão

até pela sua frontal contraposição ao modo de pensar greco-medieval e


pelos resultados obtidos por seu intermédio, que método científico se
tornou, pura e simplesmente, sinônimo de método científico moderno.
s

Por sua vez, método científico moderno se tornou sinônimo de caminho


ver

único e adequado de produzir conhecimento verdadeiro (p. 9).

Em seu processo de consolidação, a sociabilidade construída em face


dos movimentos que resultaram no que é chamado de modernidade, tendo o
capitalismo como modo de produção, caracterizou-se pela ênfase no sujeito
individual em detrimento do coletivo, no conhecimento pragmático/utilitário
em detrimento do ético-político/religioso e na compreensão da realidade como
516

o que pode ser apreendido pelos sentidos. Em decorrência, ao mesmo tempo


em que foi desenvolvida a noção de que o conhecimento é uma articulação
entre os dados empíricos e a razão, passou-se a considerar o indivíduo singular
como o sujeito do conhecimento, ou seja, o conhecimento como resultado de
uma construção efetuada por esse sujeito.

or
Diferentemente da concepção ontológica, de acordo com a qual a rea-

od V
lidade social e histórica concreta possibilita o desenvolvimento de indiví-

aut
duos cuja consciência é decorrente dela, ou seja, indivíduos com a marca da
sua inserção, para a perspectiva gnosiológica a singularidade da consciência

R
individual se constitui antes dessa entrada no social, isto é, o indivíduo é
ontologicamente anterior à sociedade.
Os elementos característicos da sociabilidade burguesa, moderna, “a

o
igualdade, a racionalidade, a liberdade e o autocentramento” (TONET, 2013,
aC
p. 45), são considerados como ontologicamente precedentes, como se tivessem
se constituído antes de qualquer relação social dos indivíduos, configurando

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dessa maneira a ‘essência humana’2. Em decorrência, se a sociedade são rela-
visã
ções desses indivíduos entre si, os quais são ontologicamente anteriores a ela,
então na relação entre indivíduos e sociedade são perdidas, ou secundarizadas,
as mediações que se estabelecem em face dos grupos sociais, dentre as quais
a mais importante é a que se dá entre as classes sociais. Também por isso a
itor

perspectiva moderna da construção do conhecimento é contrária à ontológica,


a re

na medida em que esta última postula a relação entre sujeito coletivo e sujeito
singular e, ainda que não desconsidere a importância do singular, é o primeiro
elemento, o coletivo, que é considerado como o fundamental.
A perspectiva moderna busca as leis que regem a ordem natural dos
par

fenômenos, enfatizando nesse processo o papel dos sentidos. De cunho


marcadamente empirista, essa perspectiva resulta em uma liberdade do
Ed

sujeito para construir um objeto – teórico, levando em conta apenas o


seu arbítrio, sua forma de ver. Tal compreensão do papel ativo do sujeito
substituiu a forma de entendimento que, embora partisse de categorias
ão

ontológicas, prendia o sujeito ao universo imóvel e limitado criado pela


metafísica grega e reproduzido pela Escolástica. Tal virada, que destro-
nou o objeto, o mundo fixo em torno do qual girava o sujeito, e que pôs
s

no centro do processo o sujeito, em torno do qual passa agora o mundo a


ver

2 Tendo em vista a discussão a respeito da noção de essência humana, afirma Markus (1974):
Creemos que Marx ha entendido por “ser humano”, <o “esencia humana” o “naturaleza humana”> ante
todo aquellos rasgos esenciales de la historia humana real que permiten entender dicha historia como
um processo unitario dotado de una determinada dirección y una determinada tendencia evolutiva. [...] La
caracterización del hombre como un ser social, consciente, que ejecuta una libre actividad de trabajo apunta
a los rasgos esenciales necesarios, a las dimensiones del proceso evolutivo global sobre la base de los
cuales se despliega aquella tendencia histórica y em cuyas esferas se manifiesta esa tendencia (p. 53).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 517

girar, teve – e tem – significado e implicações muito importantes no que


concerne ao método, na medida em que norteou a definição das suas regras,
desenvolvidas com vistas a guiar a razão que conhece.
O método que preside a produção do conhecimento no contexto da ciên-
cia moderna se inicia com a elaboração de hipóteses e avança na direção da

or
coleta de dados empíricos, organização, classificação, análise e elaboração

od V
de uma teoria explicativa. Em decorrência, como afirma Tonet (2013), “o

aut
resultado final não é o objeto real, teoricamente traduzido, mas um objeto
teoricamente construído” (p. 46, negritos do autor). Como se depreende da

R
noção de Marx e Engels (2007) sobre a determinação material entre o ser e a
consciência, no método moderno falta uma essência, a ser revelada por meio
do processo de apropriação racional da realidade. Por isso, “O sentido dos

o
dados, que também podem ser chamados de fatos ou fenômenos, esgota-se
aC
neles mesmos” (TONET, 2013, p. 46).
Uma crítica a tal concepção pode ser depreendida da afirmação de Vigot-
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ski (1996), para quem “[...] a base da observação científica consiste em sair
dos limites do visível e buscar seu significado, que não pode ser observado”
visã
(p. 289). O autor, baseado em Marx e Engels, entende que “Nenhuma ciência
é possível a não ser separando diretamente a sensação do conhecimento [...]
Se a essência e a forma de manifestação das coisas coincidissem, diz Marx,
itor

toda ciência seria desnecessária [...]” (VIGOTSKI, 1996, p. 383).


a re

A ênfase gnosiológica na subjetividade do sujeito cognoscente é expressão


do distanciamento entre a consciência individual e a realidade concreta, ou
seja, da progressiva perda de capacidade da consciência para superar a apa-
rência com que os fenômenos se apresentam e se apropriar da sua lógica con-
par

creta, histórica e socialmente determinada. Trata-se de um viés epistemológico


característico da organização capitalista de produção, marcada pela crescente
Ed

mistificação originada no processo de produção da mercadoria. Essa debilidade


analítica resulta em desvarios de toda ordem, apresentados como aperfeiçoa-
mento – ou apenas derivação – do que se pretende como sociabilidade imu-
ão

tável. Em decorrência, torna-se cada vez mais difícil – e mais necessária – a


possibilidade de uma análise histórico-ontológica da sociedade, no sentido de
retomar a perspectiva posta pela diretriz teórico-metodológica desenvolvida
s

por Marx e Engels no que tange ao método para a produção de conhecimento.


ver

Inversamente à perspectiva científica moderna, que toma por referência


a forma burguesa do ser social para desenvolver toda uma teoria do conheci-
mento, de caráter gnosiológico, a perspectiva ontológico-histórica, partindo da
gênese do ser social, da análise do ato que funda a sociabilidade, visa identifi-
car a origem, a natureza e a função social do conhecimento científico. Nessa
empreitada, ao invés de se voltar para o conhecimento, para as possibilidades,
os limites e os procedimentos para acessá-lo, busca responder à questão sobre
518

o que é o ser social (o fenômeno em estudo), quais as suas determinações


fundamentais. Para tanto, o trabalho é a categoria central, posto que fornece
as condições para a inteligibilidade sobre o que é o ser social.

Ontologia, trabalho, conhecimento

or
od V
Como afirma Lukács (2013), “Para expor em termos ontológicos as cate-

aut
gorias específicas do ser social [...] é preciso começar essa tentativa com a
análise do trabalho” (p. 41). De acordo com o autor, o significado da centra-

R
lidade dessa categoria encontra-se no fato de que,

[...] todas as outras categorias dessa forma de ser têm já, em essência,

o
um caráter puramente social; suas propriedades e seus modos de operar
aC
somente se desdobram no ser social já constituído; quaisquer manifesta-
ções delas, ainda que sejam muito primitivas, pressupõem o salto como

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


já acontecido. Somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um
claro caráter de transição: ele é, essencialmente, uma inter-relação entre
visã
homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica (ferramenta, matéria-
-prima, objeto do trabalho etc.) como orgânica, inter-relação que [...] antes
de tudo assinala a transição, no homem que trabalha, do ser meramente
itor

biológico ao social (p. 44).


a re

Nas palavras do próprio Marx (2013),

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, pro-


cesso este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla
par

seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural


como com uma potência natural. A fim de se apropriar da matéria natural
Ed

de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças
naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e
mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse
ão

movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (p. 255).

Na esteira da reflexão de Marx, afirma Markus (1974) que o homem é


s

um ser natural, assim identificado com os demais animais, mas que também
ver

é ser humano, ente genérico, que se diferencia dos animais – cuja atividade
vital é limitada – em face da sua atividade vital consciente livre, o trabalho.
Como ser natural, semelhante aos animais, a existência do homem depende
diretamente da sua relação com a natureza, na qual se encontram os objetos
necessários à satisfação das suas necessidades, essenciais à sua existência,
denominados corpo inorgânico do homem, cujo acesso se faz, necessaria-
mente, mediante atividade, trabalho.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 519

Contudo, diz-se que o animal tem atividade vital limitada, porque sua ativi-
dade cessa com a satisfação das suas necessidades, significando que é pequena
e bem delimitada a dimensão da natureza que pode transformar em objetos de
sua atividade e de sua vida. O ser humano, por outro lado, tendo em vista possuir
uma atividade vital livre, começa a se diferenciar do animal ao produzir seus

or
meios de vida. Ao desenvolver sua relação com a natureza por meio do trabalho,

od V
produz indiretamente sua própria vida material e assim a materialidade atinente à

aut
toda humanidade. No dizer de Markus (1974), “O trabalho é a relação histórica
real do homem com a natureza e determina ao mesmo tempo a relação recíproca

R
entre os homens, isto é, o conjunto da vida humana” (p. 10).
É importante observar que a satisfação das necessidades do homem não
é realizada de forma direta, requerendo dele uma intervenção na natureza, sua

o
alteração. Essa transformação tanto pode se dar por meio da ação sobre um
aC
recurso natural que o satisfaça imediatamente, como a colheita de uma fruta
com as mãos, quanto mediante a transformação de certos elementos da natureza
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

em instrumentos, que funcionarão como ponte, mediação, entre ele e a natureza


visã
a ser modificada – o desenvolvimento de utensílios para a caça, por exemplo.
De acordo com Leontiev (1978), foi a fabricação e o uso dos instru-
mentos que transformaram a relação do homem com a natureza, passando a
ser guiado pelas condições histórico-sociais. Sua relação com a natureza vai
itor

sendo mediada, regulada e controlada por meio dessa atividade, represen-


a re

tando a natureza o objeto do trabalho e o homem o seu sujeito. Por meio do


desenvolvimento de instrumentos o homem amplia, de forma permanente, o
espectro das coisas que podem servir de meios para satisfazer suas necessi-
dades, ou seja, seus meios de trabalho, da mesma forma que amplia o escopo
par

das coisas modificáveis para sua satisfação.


Em decorrência, como esclarece Markus (1974),
Ed

[...] seu processo de trabalho origina constantemente objetos, com o que se


altera paulatinamente o mundo circundante do homem. O entorno natural
ão

cede seu lugar a um entorno cultural, a um entorno que é resultado da


anterior atividade trabalhadora e em que, consequentemente, se trans-
formarão em objetos capacidades humanas, forças essenciais humanas
s

(p. 12, itálico do autor).


ver

Assim, em tal processo revelam-se o caráter humanizador e ontológico


do trabalho, ou seja, a forma como o homem se faz humano por seu intermé-
dio, assim como o caráter histórico e social que o trabalho assume em face
da relação do homem com a natureza e com os outros homens.
Ademais, na esteira da reflexão de Markus (1974), merece atenção o
fato de que o trabalho deve ser considerado tanto sob o prisma do objeto,
520

a natureza, quanto sob a ótica do sujeito, o homem, pois não é apenas a


natureza exterior que é modificada por seu intermédio, mas também a natu-
reza do homem. Nesta direção observa Vygotski (2000), apontando a dupla
natureza da dialética do trabalho, que o emprego dos instrumentos físicos,
que transformam a realidade externa, e dos signos, que controlam e dirigem

or
o comportamento humano, possibilita a complexificação das funções psico-

od V
lógicas superiores, como a memória lógica, o raciocínio abstrato, a atenção

aut
concentrada, entre outras, levando o homem a ter maior controle e condições
de transformação da natureza e do seu próprio comportamento.

R
É em face dessa dialética que se repõe a questão do conhecimento, enten-
dido na sua articulação direta com a dinâmica social, como um aspecto da
transformação da realidade. Ao mesmo tempo em que se constitui elemento

o
fundamental na mediação do homem com a natureza, com sua realidade, da
aC
mesma forma o conhecimento constitui mediação para o desenvolvimento
humano. O homem, na medida em que se apropria da natureza e do meio social

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e cultural em que está inserido, desenvolve sua consciência, sua capacidade
visã
de atuar teleologicamente, ou seja, voltado para determinados fins, de modo
tal que se universaliza histórica e socialmente.
A ação consciente do pensamento na apreensão do concreto se constitui
método, por meio do qual o pensamento busca capturar, o mais fielmente
itor

possível, o movimento real da natureza específica do objeto que se quer


a re

conhecer para transformar, suas determinações ontológicas fundamentais


(OLIVEIRA, 2005). Para tanto, faz-se necessária uma análise que considere
a relação entre o singular, o particular e o universal, no sentido de uma repre-
sentação do desenvolvimento processual da realidade. Análise que, partindo
par

do fenômeno empírico como se apresenta imediatamente, o concreto real,


apreenda as conexões internas e as leis gerais do movimento e a evolução
Ed

do fenômeno, e daí retorne ao ponto de partida, agora como concreto pen-


sado, síntese de múltiplas determinações, tomado esse desenvolvimento da
realidade em face das particularidades histórico-sociais que o condicionam
ão

(PASQUALINI; MARTINS, 2015).


Coerente com tal perspectiva, Angel Pino Sirgado (2000) afirma que,
s

também para Vigotski, os fenômenos psicológicos são sínteses de múltiplas


ver

determinações, histórica e socialmente configuradas. Pino (2000) ressalta


que, na versão inglesa do Manuscrito – Concrete Human Psychology, ao
tratar da “lei genética geral do desenvolvimento cultural”, Vygotsky defende
que “toda função psicológica foi anteriormente uma relação entre duas pes-
soas, ou seja, um acontecimento social”, do que se depreende que “o social
e o cultural constituem duas categorias fundamentais na obra do autor [...]”
(SIRGADO, 2000, p. 46).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 521

Nas palavras do próprio Vygotski (1997b),

[...] cada função psíquica aparece no processo de desenvolvimento da con-


duta duas vezes; primeiro, como função da conduta coletiva, como forma
de colaboração ou interação, como meio de adaptação social, ou seja, como

or
categoria interpsicológica, e, em segundo lugar, como modo da conduta
individual da criança, como meio da adaptação pessoal, como processo

od V
interior da conduta, quer dizer, como categoria intrapsicológica (p. 214).

aut
Essa ideia consolida o entendimento de que o desenvolvimento do psi-

R
quismo está atrelado à apropriação do legado cultural, dos instrumentos e
signos desenvolvidos pela humanidade. De acordo com Vigostki (1995), esse

o
conteúdo faz parte do movimento dialético que permeia a complexificação das
aC
funções psicológicas superiores, em direção a uma posição ativa do sujeito na
realidade. Em suma, é clara a adoção da perspectiva ontológica por Vigotski,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de modo a tornar original a compreensão dos fatos humanos na sua Teoria


Histórico-Cultural. Em decorrência, tendo em vista a proposição e o desenvol-
visã
vimento das pesquisas, faz-se necessária a apreensão das noções de método e
metodologia, tanto na sua identidade quanto em suas peculiaridades.
itor

Método e metodologia nas pesquisas


a re

Desde muito cedo a reflexão sobre método se constituiu central para


Vygotsky. Para ele, o método era entendido para além da metodologia, como
um pré-requisito, uma ferramenta e também um produto da pesquisa: define o
caminho a ser seguido e “se contempla como um meio de cognição”. O método
par

“Vem determinado em todos os seus pontos pelo objetivo que o conduz. Assim,
a prática reestrutura toda a metodologia da ciência” (VYGOTSKI, 1997a,
Ed

p. 357). E acrescenta: “G. P. Zeliony3 assinala acertadamente que entre nós a


palavra “método” inclui duas coisas distintas: 1) a metodologia da investiga-
ão

ção, o procedimento técnico, e 2) o método de conhecimento, que determina


o objetivo da investigação, o caráter e a natureza de uma ciência” (p. 314).
Embora componha o escopo do que entende por método, claramente
s

se encontra na afirmação acima uma diferença entre método e metodologia.


ver

Tal diferença é também destacada no livro em que José Paulo Netto faz uma
Introdução ao Estudo do Método em Marx (Netto, 2011), quando afirma que
os instrumentos e as técnicas, embora em grande número e muito diferentes,
“desde a análise documental até as formas mais diversas de observação, reco-
lha de dados, quantificação etc.”, os quais constituem “meios de que se vale o
3 Georgii Pavlovich Zeliony (1878/1951) foi um fisiologista russo, aluno de Pavlov, que contribuiu com os
estudos sobre reflexos condicionados e não condicionados.
522

pesquisador para “apoderar-se da matéria”, não devem ser identificados com


o método”. Logo, na prática cotidiana das pesquisas, enquanto as ferramentas
são associadas às metodologias, o que efetivamente constitui o método é a
“estrutura integrada do processo epistemológico” (NETTO, 2011, p. 25-26).
Muito embora Marx nunca tenha escrito algo específico sobre o método,

or
pois não se colocava o desafio epistemológico de responder à questão de

od V
“como conhecer” em geral, mas sim o desafio ontológico de “como conhecer

aut
um objeto real e determinado”, é inegável que um conjunto de princípios
teórico-metodológicos pode ser depreendido da sua obra, na medida em que

R
fez uso deles para a investigação a que se propôs, da sociedade burguesa. Não
obstante, como Chasin (2009) chama a atenção, “Se por método se entende
uma arrumação operativa, a priori, da subjetividade, consubstanciada por

o
um conjunto normativo de procedimentos, ditos científicos, com os quais o
aC
investigador deve levar a cabo seu trabalho, então não há método em Marx”
(p. 89, itálicos do autor).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Diferente de um “conjunto de regras para orientar a pesquisa”, ou “um
visã
rol de definições para dirigir a investigação”, os princípios marxianos sobre
o método apontam no sentido da apreensão, pelo pesquisador, da estrutura e
da dinâmica do objeto estudado, de modo a reproduzir idealmente – na cons-
ciência – o movimento do objeto real. Como esclarece Netto (2011), depois
itor

de concluída a investigação por meio da qual se descreve o movimento do


a re

real, “Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade
pesquisada” (p. 26-27). De acordo com Marx (2013),

[...] A investigação tem de se apropriar da matéria [Stoff] em seus detalhes,


par

analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo


interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor
Ed

adequadamente o movimento do real. Se isso é realizado com sucesso, e


se a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter
a impressão de se encontrar diante de uma construção a priori (MARX,
ão

2013, p. 90, observação do tradutor).

O método de Marx tem em vista, portanto, a relação entre a objetividade e


s

a subjetividade, ou melhor, a determinação material entre o ser e a consciência,


ver

nos termos adotados por Vigotski (2000) ao tratar do método. Em oposição à


perspectiva idealista, de matiz hegeliana, que entende a realidade como sendo o
efeito das ideias, o produto da consciência, afirmam Marx e Engels (2007) que,

[...] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou represen-


tam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para,
a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens
realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 523

o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de


vida. [...] A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem
como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui,
da aparência de autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem
desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu

or
intercâmbio materiais, transformam também, com esta, sua realidade, seu
pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a

od V
vida, mas a vida que determina a consciência. [...] Seus pressupostos são

aut
os homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantásticos, mas em
seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob

R
determinadas condições (p. 94).

o
Nesta direção, José Paulo Netto (2011) opera uma síntese em que ressalta
o papel ativo do indivíduo na apreensão da dinâmica do real e, portanto, na
aC
construção do conhecimento:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

[...] a teoria é a reprodução, no plano do pensamento, do movimento real


visã
do objeto. Esta reprodução, porém, não é uma espécie de reflexo mecânico,
com o pensamento espelhando a realidade tal como um espelho reflete a
imagem que tem diante de si. Se assim fosse, o papel do sujeito que pes-
quisa, no processo do conhecimento, seria meramente passivo. Para Marx,
itor

ao contrário, o papel do sujeito é essencialmente ativo: precisamente para


a re

apreender não a aparência ou a forma dada ao objeto, mas a sua essência,


a sua estrutura e a sua dinâmica [...] (p. 25, itálicos do autor).

Logo, tendo em vista a reflexão marxiana, o método, além de não poder


ser confundido com metodologia, não pode ser entendido como um conjunto
par

de regras, como ressaltam Chasin (2009) e Netto (2011), pois não existem
normas formais, alegadamente científicas, que devam ser aplicadas a um
Ed

objeto de estudo, nem tampouco regras que o pesquisador escolhe para dar
conta do seu objeto, circunscrevê-lo em uma inteligibilidade, como é a tônica
da produção de conhecimento na ciência moderna, sob perspectiva gnosio-
ão

lógica. Para Marx, como esclarece Netto (2011), o método pressupõe, “[...]
uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em
s

que se põe o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as
ver

suas múltiplas determinações” (p. 53, itálicos do autor).

Considerações finais

A elaboração do presente texto configura uma resposta à preocupação


com o desenvolvimento da pesquisa no campo histórico-cultural, notadamente
na pós-graduação em Psicologia e particularmente nos estudos que adotam
524

por referência a reflexão vigotskiana. Trata-se de um cuidado com vistas à


coerência dos estudos, no que concerne à diretriz teórica adotada, às estratégias
metodológicas e ao processo de análise de dados e conclusões. É, portanto,
um texto que se volta à produção de conhecimento e que, por isso, requereu
uma breve discussão a respeito dos pressupostos filosóficos implicados nessa

or
produção. Buscou-se fazer tal discussão sob uma perspectiva ontológica, sina-

od V
lizando pistas sociais e históricas que significam determinantes fundamentais

aut
no evolver do fazer ciência, tanto no sentido do que é afirmado na perspectiva
moderna quanto em relação ao que tal perspectiva desconsidera.

R
Essa breve incursão no campo da Filosofia da Ciência serviu de lastro
para, também brevemente, reiterar que o diferencial da Teoria Histórico-
-Cultural como pensada por Vigotski está em sua adoção de uma diretriz

o
filosófica específica, materialista histórica e dialética, particularmente de
aC
matiz ontológico-histórico. Ao se proceder nessa perspectiva, uma questão
em particular emerge para os pesquisadores, qual seja a distinção entre método

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e metodologia. Tal não é uma questão menor, inclusive porque aspectos de
visã
ordem filosófica estão implicados, os quais se configuram orientadores dos
procedimentos de pesquisa e da forma de construção do conhecimento deles
proveniente. Ressalta-se, não obstante, que muito ao contrário de tentar defi-
nir procedimentos válidos para toda pesquisa, interessou mais esclarecer a
itor

postura a ser adotada ante a construção do conhecimento. Afinal, como afirma


a re

Vigotski (1996, p. 404),

Somos dialéticos e não pensamos, de modo algum, que o caminho de


desenvolvimento das ciências ande em linha reta. E se nele há ziguezagues,
par

retrocessos ou mudanças de direção compreendemos seu significado histó-


rico e os consideramos (assim como o capitalismo é uma etapa inevitável
Ed

em direção ao socialismo) como elos necessários de nossa corrente, etapas


inevitáveis de nosso trajeto. Valorizamos até aqui cada um dos passos
rumo à verdade que nossa ciência tenha podido dar, pois não pensamos
que esta tenha começado com nós [...]” (Grifos do autor).
ão

Não se esqueça que a pesquisa, na vertente aqui abordada, segue uma


s

longa trajetória, ainda em consolidação. Também Vigotski (1996) alerta para


ver

o fato de que “A psicologia está grávida de uma disciplina geral, mas ainda
não deu à luz” (1996, p. 212). Se tal afirmação era verdade no final dos
anos de 1920, é certo que ainda na atualidade vive-se, como já afirmado,
uma Psicologia com diversas posturas teóricas que buscam compreender
o psiquismo humano, configurando a encruzilhada sobre a qual alertava
o psicólogo bielorusso: “[...] vemos que a psicologia como conhecimento
tem dois caminhos: ou o da ciência, e neste caso deverá saber explicar; ou
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 525

o conhecimento de visões fragmentárias e, neste caso, é impossível como


ciência” (VIGOTSKI, 1996, p. 385. Grifos do autor).
Defende-se aqui uma ciência que deve explicar, para tanto descortinando
a essência dos fatos. Por esse meio acredita-se ser coerente com o alerta de
Duarte (2006), segundo quem não se pode perder de vista, no trabalho de

or
pesquisa e em qualquer atividade desenvolvida na sociedade capitalista, a

od V
contradição entre humanização e alienação.

aut
Nesse sentido, retomando a questão do método, parte-se da reflexão de
Leontiev (1978) e Vygotsky (2004), segundo os quais o desenvolvimento do

R
psiquismo está consubstanciado nas relações estabelecidas entre os homens,
marcadas pelas relações de classe. Em decorrência, falar de método de pes-
quisa na abordagem histórico-cultural é entender como, pelo trabalho, os

o
homens foram transformando a natureza e se transformando, formando o
aC
psiquismo em uma sociedade historicamente constituída, permeada pela alie-
nação e pela desigualdade de acesso aos bens materiais e culturais. Afinal,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

como ressalta Leontiev (1978, p. 274),


visã
[...] a desigualdade entre os homens não provém das suas diferenças bio-
lógicas naturais. Ela é o produto da desigualdade econômica, da desi-
gualdade de classes e da diversidade consecutiva das suas relações com
itor

as aquisições que encarnam todas as aptidões e faculdades da natureza


a re

humana, formadas no decurso de um processo sócio-histórico.

Por fim, aponta-se a importância de que o método que norteia as pesqui-


sas esteja calcado na realidade concreta, material, de modo que seus resultados
efetivamente contribuam, como afirma Duarte (2006), para a transformação
par

dessas relações; se configurem “[...] fonte de elevação da individualidade ao


nível do desenvolvimento cultural alcançado pelo gênero humano” (p. 106).
Ed
s ão
ver
526

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o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
POLÍTICAS AFIRMATIVAS E A
FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA:
o capital humano em questão

or
od V
Renata Vilela Rodrigues

aut
Luiz Guilherme Araújo Gomes
Alexandra Marcelina da S. Barros
Dhiânelly Santos Tolentino

R
Emily Thainá Meneguzzo

o
Introdução
aC
Problematizamos nesse trabalho, a partir de entrevistas com acadêmicos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

do curso de Psicologia de uma Instituição de Ensino Superior (IES) privada


visã
em Mato Grosso, às perspectivas que alunos contratantes do Fundo de Finan-
ciamento Estudantil (FIES) possuem acerca deste modo de vinculação com
a formação profissional. Em específico, buscamos refletir como se deu o
processo de inserção no ensino superior de sujeitos que historicamente não
itor

tiveram acesso à educação pública, compreendendo a função desta política


a re

afirmativa no contexto biopolítico contemporâneo.


Política que é voltada para o governo dos corpos e da vida da população,
considerada como uma estratégia do regime biopolítico por proporcionar o
acesso ao ensino superior com vistas à qualificação profissional destinado
par

ao mercado de trabalho. Nos processos neoliberais, o Estado exerce uma


regulamentação no plano do direito público a fim de criar uma racionalidade
Ed

de governo. Também busca administrar as condutas das pessoas sem destruir


a sua existência e autonomia, o que é possível por meio da proliferação de
especialistas – médicos, cientistas, pais, agentes sociais, psicólogos – e da
ão

criação de alianças entre cidadãos e economia de mercado (MILLER; ROSE,


2012). Ideias neoliberais que se intensificaram, no Brasil, nos considerados
processos de redemocratização, em que os governantes objetivavam impul-
s

sionar o desenvolvimento econômico privatizando alguns setores de mercado


ver

regulados pelo Estado, incluindo aí a educação (VITURI, 2019).


O FIES tem sido tratado como alternativa de reformulação do finan-
ciamento estudantil a partir de uma analítica de redemocratização do ensino
superior (APRILE; BARONE, 2009; NASCIMENTO, 2015; PEREZ; MES-
SEDER, 2016). Entretanto, compreendemos ser necessário também uma
análise sobre tal política que considere a complexidade inerente aos proces-
sos sociais que se desenvolvem com as grandes transformações econômicas,
530

sociais e políticas. Sem mencionar as dificuldades de ingresso ao mercado


de trabalho, no cenário político e econômico contemporâneo, como mostra
os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019), cerca de
13,4 milhões de pessoas estavam desempregadas no país, das quais 26,7%
possuíam diploma de nível superior.

or
Colocamos esta política em questão diante da ideia do capital humano,

od V
definido como tudo o que pode ser de uma forma ou de outra uma renda futura,

aut
“é o conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que tornaram uma pes-
soa capaz de ganhar este ou aquele salário” (FOUCAULT, 2008, p. 30). Nessa
direção, investimentos são dispensados para a formação de indivíduos enquanto

R
competências-máquinas, formadas para contribuir lucrativamente à economia
de mercado na medida em que se tornam produtivas (FOUCAULT, 2008).

o
Tendo em vista tais aspectos, este trabalho parte da experiência dos sujeitos
aC
que utilizaram o FIES como entrada no ensino superior, mas se mantém vincu-
lados à estas instituições atravessadas por vários dispositivos sociais, psicológi-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


cos e econômicos, característicos de uma educação pautada em uma lógica de
governamentalidade neoliberal. Vale destacar que, apesar de a presente pesquisa
visã
ser direcionada aos alunos de Psicologia, em consequência da proximidade
dos autores com esta área, entendemos que esta realidade pode ser comum a
estudantes de outros cursos e/ou que utilizem outros financiamentos existentes.
itor
a re

A privatização do Ensino Superior e as Políticas Afirmativas:


Ações compensatórias?

As privatizações do ensino superior partem de um projeto político do


par

Governo Militar (1964-1985), que a partir do golpe do Estado, instaurou-se


um modelo de governo que objetivava o desenvolvimento econômico do país.
Ed

Partindo do ideário de que os investimentos na educação privada, e em outros


setores, almejavam assegurar o aumento da produtividade e renda do mercado.
Para isto, nesse período e com a Constituição de 1969, o Estado no âmbito Fede-
ão

ral desobrigou-se da destinação de um percentual mínimo da receita da união


para a educação e progressivamente foi reduzindo seus investimentos. Ficando
a cargo dos municípios o uso de 20% de seus recursos (SAVIANI, 2008).
s

Assim como as anteriores, a Constituição de 1969 relativizava a gra-


ver

tuidade do ensino, criando bolsas e formas do universitário ressarcir o valor


investido pelo Estado. Entretanto, esse modo de pagamento da Universidade
Pública não funcionou, e foi motivo para aprovar a abertura de inúmeras
instituições de ensino superior, expandindo 744,7% entre 1964 e 1973, movi-
mento que intentava garantir o ingresso de profissionais especialistas para
atender os objetivos do mercado e impulsionar o desenvolvimento econômico
no país (SAVIANI, 2008).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 531

A partir do ano de 1970, o sistema universitário se concentrou no desen-


volvimento de atividade no âmbito das pesquisas para dar continuidade ao
plano de desenvolvimento econômico do governo militar e “responder as
demandas pontuais do setor produtivo ou a implementar projetos de prestação
de serviços no setor da saúde ou na formação e aperfeiçoamento de profes-

or
sores” (MACEDO et al., 2005, p. 129). Nesse sentido, muitas instituições de

od V
ensino superior no setor privado foram criadas, objetivando atender à crescente

aut
demanda pela educação superior, uma vez que as universidades públicas se
viram limitadas pelo baixo investimento e pelos altos custos de manutenção,
pela indissociabilidade da universidade e pesquisa.

R
Neste período de intento a democratização de acesso à educação e ala-
vancagem do desenvolvimento econômico, foi aprovado o primeiro Programa

o
de Crédito Educativo (PCE) para o ensino superior, posteriormente denomi-
aC
nado de CREDUC, pelo Presidente da República Ernesto Geisel em agosto
de 1975. Teve sua implantação no primeiro semestre do ano de 1976, nas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e no segundo semestre foi estendido


a todas as instituições brasileiras. Inicialmente, esse crédito era financiado
visã
com recursos do Fundo de Assistência Social. Em 1988, passa a ser respon-
sabilidade do Ministério da Educação, administrado pela Caixa Econômica
Federal. Restrito àqueles considerados economicamente carentes e que não
itor

recebiam nenhum outro tipo de auxílio (BRASIL, 2018a). Tornando-se um dos


a re

dispositivos que descentraliza a obrigação do Estado em relação a educação


pública ao firmar parcerias privadas.
A partir da década de 1990, vivenciamos as crescentes ideias da econo-
mia neoliberal com pouca intervenção do governo no mercado de trabalho
par

por meio de privatizações de alguns setores antes regulados pelo Estado. O


que forneceu o solo fértil para o fortalecimento da privatização e da criação
Ed

de instituições de ensino superior e a mercantilização da educação. É válido


destacar, nesse período, a função da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) de nº 9.394 de 1996, criada durante o governo de Fernando
ão

Henrique Cardoso; que, por um lado, garante acesso a todos a educação


gratuita e de responsabilidade do Estado e, por outo, facilita a expansão das
instituições privadas (VITURI, 2019).
s

É ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) que


ver

assistimos à modificação do crédito educativo e o desenvolvimento de outros


programas estudantis em conjunto com instituições públicas e privadas, que
tinham um ideário de proporcionar o “direito de cidadania para algum segmento
social, étnico ou econômico” da sociedade (SILVA; SANTOS, 2017, p. 742).
Em 1999, o Ministério da Educação criou o FIES que não dependia dire-
tamente do repasse do governo, como por exemplo o CREDUC, cujo finan-
ciamento era mediado entre aluno e instituição, dividindo o valor a ser pago
532

durante o curso e após seu término. Ainda nesse contexto, surgiu o programa
Educa Mais Brasil que funciona em todo nível de educação e possui pouca
burocracia na adesão, todavia depende de instituições parceiras do Governo,
podendo chegar a um desconto de até 70% das mensalidades (BRASIL, 2018b).
O FIES, que é operacionalizado pela Caixa Econômica Federal, oferece

or
financiamento para cursos de graduação em instituições privadas brasileiras.

od V
Este tipo de financiamento foi concebido com o propósito de ser autossus-

aut
tentado e substituir o Programa de Crédito Educativo (PCE/CREDUC), que,
devido a inadimplência em relação a quitação dos empréstimos efetuados
aos estudantes, estava falido por volta de 1983 (APRILE; BARONE, 2009;

R
PEREZ 2015). Um dos critérios para conseguir o FIES é a renda familiar, que
não deve ultrapassar três salários mínimos e, além do mais, o aluno deve estar

o
matriculado em instituições privadas cadastradas no Programa e com avaliação
aC
positiva nos processos conduzidos pelo MEC (APRILE; BARONE, 2009).
Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva observamos uma amplia-

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ção do FIES, em 2014. De acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), foram investidos R$ 13,7 bilhões, considerado um valor
visã
maior do previsto, a partir do aumento dos juros anuais de 3,4% para 6,5%
ao ano. Ademais, também tiveram mudanças no âmbito da IES concedente,
como ter conceito superior a 4 no Sistema Nacional de Avaliação da Educação
itor

Superior (BRASIL, 2018b).


a re

Outra modificação foi que agora se tem duas modalidades de contratação,


sendo a primeira com vagas com juros zero para alunos com renda per capita
mensal familiar de até três salários mínimos, o pagamento respeita o limite da
renda, assim como uma redução nos encargos a serem pagos. A segunda moda-
par

lidade denominada P-Fies busca abranger alunos com renda mensal família
de até cinco salários mínimos, esta modalidade utiliza recursos dos Fundos
Ed

Constitucionais e de Desenvolvimento e de bancos privados (BRASIL, 2018b).


De acordo com a Portaria nº 10 de 30 de abril de 2010, o estudante que
contrata o FIES pode ter até dois fiadores, e esses têm que ter uma renda mensal
ão

bruta totalizando ao menos o dobro da parcela mensal da semestralidade, consi-


derando os descontos regulares e por pontualidade no pagamento. O art. 13 desta
portaria cita quais pessoas não podem ser fiadoras: cônjuges, companheiro(a),
s

estudantes que recebem bolsa do PCE/CREDUC que ainda não tenham realizado
ver

a quitação total, estudantes do FIES, estrangeiros com exceção de portugueses


que comprovem o usufruto dos benefícios do Estatuto da Igualdade, conforme
Decreto nº 3.927, de 19 de setembro de 2001 (BRASIL, 2010).
A criação e ampliação do FIES e de outras políticas afirmativas, pelos
governos brasileiros, seguem um discurso de inclusão e justiça social, em que
a população de baixa renda pode acessar e ter uma perspectiva de ascensão
social. Entretanto, ocorrem diversos atravessamentos com relação à economia
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 533

e ao mercado de trabalho, em que possuir um diploma de nível superior não


se torna garantia de emprego e crescimento financeiro (VITURI, 2019).
Segundo Foucault (2008), é possível notar que as políticas governamentais
dos países de economia neoliberal se direcionam à investimentos em saúde,
cultura, educação, esporte, que favoreçam ao crescimento e qualidade do capital

or
humano, que se transformará em economia futura. Em países como o Brasil,

od V
entendemos a criação das políticas afirmativas como um dos desdobramentos

aut
dessa noção econômica, e como uma faceta da biopolítica contemporânea.
Possuir uma graduação tem sido estimulado ao longo dos anos por disposi-
tivos biopolíticos nos quais a população é gerenciada a buscar profissionalização.

R
Para isso, diversas estratégias são construídas que muito mais do que estimular e
redemocratizar o ensino, nos tornam sujeitos especialistas e endividados. Nessa

o
lógica, somos cada vez mais capital humano, no modelo do homo economicus,
aC
em que respondemos aos estímulos do mercado nos tornando seu próprio pro-
dutor de rendimentos, potencializando nossas capacidades e evitando situações
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que desfavoreça o sustento deste mercado (FOUCAULT, 2008).


Num analítica do capital humano, Foucault (2008) afirma ser necessário
visã
compreender as pessoas que trabalham considerando-as não apenas como
objetos de análise, mas sujeitos economicamente ativos. Dentro das ideias
neoliberais, o capital é considerado de acordo com Foucault (2008) como:
itor
a re

[...] um conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que tornam


uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário, de sorte que, visto do
lado do trabalhador, o trabalho não é uma mercadoria reduzida por abs-
tração à uma força de trabalho e ao tempo [durante] o qual ela é utilizada.
Decomposto do ponto de vista do trabalhador, em termos econômicos
par

o trabalho comporta um capital, isto é, uma aptidão, uma competência,


como eles dizem: “uma máquina”. [...] Em outras palavras, a competência
Ed

do trabalhador é uma máquina, sim, mas uma máquina que não se pode
separar do próprio trabalhador [...] (p. 308-309).
ão

Foucault (2008) argumenta, nessa direção, que o trabalhador, visto como


máquina, é compreendido em seu sentido positivo de produzir fluxos de renda.
A máquina possui duração de vida e seus salários dependerão de sua utilidade
s

no momento. Ademais, por meio do neoliberalismo, os sujeitos são “empre-


ver

sários de si mesmos” (FOUCAULT, 2008, p. 311), uma vez que ele é seu
próprio capital e fonte de renda. Para que esse capital humano seja produtivo
às demandas do mercado é preciso investir de diversos modos, como pelos
vieses educacionais.
Existem também os investimentos familiares como afetos ligados às
expectativas de que os filhos sejam adultos produtivos e motivos de orgulho.
Os investimentos em saúde também têm grande relevância na formação desse
534

capital, proporcionando cuidados com as condições de higiene e saúde que


busca garantir a utilização do capital por mais tempo possível (FOUCAULT,
2008, 2005). Para melhor ordenação e agenciamento do capital humano tam-
bém se utiliza do biopoder, que é operado em uma lógica de proteção da vida
e de postergar a morte preocupando-se com higiene, natalidade, sexualidade,

or
saúde e educação (FOUCAULT, 2005).

od V
Os investimentos se referem também a um modo de controle, de intenção

aut
em que o sujeito possa buscar por si mesmo ser o capital humano e contribua
com o desenvolvimento econômico do país, trata-se, portanto, de um controle

R
da vida, denominado por Foucault (2005), como estratégias biopolíticas. Nessa
lógica, o capital humano na figura do “o homo economicus é aquele que é
eminentemente governável” (FOUCAULT, 2008, p. 369).

o
Em outras palavras, o capital humano pode ser disciplinado, normalizado
aC
e ainda vigiado para cumprir as determinações da lógica neoliberal de existir.
Um modo subjetivador de busca de uma felicidade que se paute na produção

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e no consumo, pois ele é o homem do consumo, e na medida que consome
visã
é produtor, e essa produção que ele gera é a de satisfação, de felicidade em
consumir (FOUCAULT, 2008).
Dessa forma, o centro deixa ser apenas o corpo e passa a ser também a
vida, procurando controlar e até modificar a ocorrência dos acontecimentos e
itor

compensar os efeitos que possam surgir, partindo de um movimento de fazer


a re

viver, porém de delimitar como o sujeito lida com os acontecimentos. Em uma


sociedade com características do neoliberalismo, nós, considerados como capital
humano, passamos a gerir nossos corpos e condutas, nos tornando produto e
produtor, ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, possuir um diploma de nível
par

superior torna-se um investimento em nós mesmos e no mercado e economia


de um país, incidindo diretamente nos modos de subjetivação que se produzem
Ed

nos acadêmicos inseridos nas IES privadas, contratantes de políticas afirmativas.


Levando-nos a questionar de que modo isto se apresenta na vida destes sujeitos.
ão

Metodologia
Para esta discussão, realizamos uma pesquisa entre novembro de 2018
s

e dezembro de 2019 com alunos contratantes do FIES de uma IES de Mato


ver

Grosso, do curso de Psicologia. A produção de dados se deu por meio de


entrevistas, entendida, perspectiva da Psicologia Social, “como um processo
dialógico em que ocorre negociação de pontos de vista e de versões sobre os
assuntos e acontecimentos, e que vai posicionando ambos/as os/as participan-
tes durante a sua interanimação” (ARAGAKI et al., 2014, p. 59). A entrevista
proporciona ao pesquisador e entrevistado processos de negociação na medida
em que transforma e desafia os posicionamentos que vão ocorrendo durante a
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 535

sua realização. Durante o processo do entrevistar, o participante re(constrói)


e conta ao pesquisador suas experiências de vida, possibilitando a ambos
vivenciá-las e senti-las (ARAGAKI et al., 2014).
Inicialmente, a proposta de metodologia planejada consistia em realizar
vinte entrevistas, sendo dez estudantes frequentantes do 5º semestre e dez do

or
9º, já que um dos objetivos específicos da pesquisa consistia em comparar as

od V
perspectivas de alunos que estavam na metade da graduação com àqueles que

aut
estavam ao final. Entretanto, no período de realização da pesquisa, tivemos
dificuldades em conseguir voluntários dos quintos semestres devido à dimi-
nuição do número de indivíduos que utilizam do financiamento nos últimos

R
anos em consequência da necessidade do fiador, instituída em 2010. Diante
disso, entrevistamos cinco estudantes do 5º semestre e 15 do 9º semestre,

o
todas do sexo feminino com idades que entre 20 a 45 anos. Duas universitárias
aC
estavam matriculadas no 10º semestre, mas cursam matérias no 9º semestre.
Utilizamos a análise do discurso de Michel Foucault por se preocupar
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com a descrição das descontinuidades presentes nos discursos. Compreen-


demos e analisamos o discurso em sua irrupção de acontecimentos, na pon-
visã
tualidade com que ele aparece e na dispersão temporal que lhe permite ser
repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado (FOUCAULT, 2000;
2012). A análise do discurso “designa o tema geral de uma descrição que
itor

interroga o já dito no nível de sua existência; da função enunciativa que nele


se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo
a re

de que faz parte” (FOUCAULT, 2008, p. 14).


Em articulação com a analítica do discurso, usamos a ferramenta meto-
dológica dos incidentes críticos que, de acordo com Galindo e Rodrigues
(2014), permite que lidemos com:
par

[...] temporalidade múltipla dos documentos e com a complexidade das


Ed

práticas cotidianas sem nos prendermos a uma pretensa linearidade bem


como para dar margem à adoção de processos nos quais interlocutores
participam ativamente da sua delimitação (p. 168).
ão

Os incidentes críticos podem ser construídos com quaisquer registros


que sejam importantes para compreender o cotidiano permeado pelas rela-
s

ções heterogêneas, evidenciando os jogos políticos entre os atores envolvi-


ver

dos (GALINDO; RODRIGUES, 2014). A utilização dos incidentes críticos,


em articulação à análise do discurso de Foucault, permite fazer um recorte
daquilo que nos discursos se fizeram mais presentes e importantes de serem
discutidos, não sendo representativos de uma série maior de eventos, como
afirmam Galindo e Rodrigues (2014).
Os discursos das entrevistadas, na presente pesquisa, foram divididos
em três incidentes críticos: (1) a importância do FIES no ingresso do Ensino
536

Superior; (2) as políticas afirmativas e a promessa de ascensão social e; (3)


gerenciando o capital humano: investimentos familiares. Para garantir o sigilo
das participantes da pesquisa, utilizamos nomes de mulheres que tiveram uma
relevância social para a história brasileira e mundial. Optamos pelos nomes
dessas mulheres a fim de dar representatividade às entrevistadas, uma vez que

or
durante a pesquisa percebemos os diversos enfrentamentos destas, por um

od V
lado, pelas condições socioeconômicas e, por outro, por serem mulheres e por

aut
toda figuração cultural em torno de si, marca importante das profissionais psi-
cólogas da realidade brasileira (LHULLIER; ROSLINDO; MOREIRA, 2013).

R
Algumas entrevistas apontam, inclusive, ser a primeira mulher da família a
cursar o ensino superior e que não recebiam incentivo para isso.

o
A importância do FIES no ingresso do Ensino Superior
aC
Na sociedade neoliberal, algumas pessoas se encontram em situação de

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vulnerabilidade social e econômica diante da rápida e desigual ascensão do
visã
mercado e do consumo, que, de acordo Teixeira e Correia (2002), diz não
apenas da condição da pobreza, desemprego, fracasso escolar, dos sofrimentos
psíquicos e dos seus modos de subjetivação, mas também por pertencerem às
minorias étnicas e culturais.
itor

É nessa perspectiva que o FIES surge como alternativas à ampliação da


a re

educação superior e intenta suprir os desafios e defasagens que ainda per-


sistem na educação básica, especialmente a pública. Ocupa no imaginário
social a garantia de determinados grupos sociais em atividades educacionais
(PASSOS, 2015). Percebemos, nas falas das entrevistadas, que sem o finan-
par

ciamento não conseguiriam ingressar a graduação. Os motivos dados foram


diversos, mas há um consenso da importância do FIES quanto possibilidade
Ed

de cursar um ensino superior: “se não fosse isso talvez eu não conseguiria
estar aqui” (Chica – 9º semestre); “muito importante, senão eu não estaria
aqui hoje” (Judith – 9º semestre); “Sem o FIES provavelmente eu não estaria
ão

aqui estudando” (Marielle – 5º semestre).


O FIES, no discurso das entrevistadas, insere-se no âmbito das políticas
públicas compensatórias, uma vez que intenta “corrigir” as lacunas deixa-
s

das em nosso país pelas políticas educacionais insuficientes e excludentes.


ver

Independente do motivo determinante de contratação da política, sem o


financiamento as entrevistadas não viam outra opção para iniciar a formação
acadêmica. Como podemos visualizar na fala de Frida do 9º semestre:

Eu sei que é uma dívida grande, praticamente eterna, entendeu? Mas eu


tenho a plena consciência de que se não fosse isso, para mim não teria
jeito, entendeu? Não teria outra possibilidade. Então eu meio que não
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 537

consigo me arrepender [...]. Se eu pensasse muito no que fazer depois que


a faculdade acabasse eu não iria fazer, e aí? Entendeu? Então não tinha
outro jeito, não pensei.

Quem optou por esse modo de ingresso à faculdade diz das condições

or
econômicas e sociais que a levou a contratação da política, como exemplo:

od V
“Em termos de... o acesso do FIES que dá disposição pra mim poder pagar

aut
depois, se eu tivesse, se fosse pra mim pagar a matrícula é, pagar as mensali-
dades, eu não teria condições financeiras” (Carmen – 9º semestre). Ademais,
foi possível encontrar nos relatos afirmações que apontam a importância do

R
FIES e das políticas públicas voltadas para o âmbito educacional, Dilma diz:

o
[...] salientar a importância desse programa para ter aquelas pessoas
aC
que não tem condições de pagar uma faculdade durante a graduação
poder ter alguma expectativa de futuro, de ter alguma profissão, eu acho
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

que acaba meio que incentivando as pessoas meio que estudarem, quem
realmente quer acaba se incentivando e isso auxilia muito.
visã
De forma semelhante à nossa pesquisa, Aprile e Barone (2009), ao anali-
sarem diferentes políticas públicas de acesso ao ensino superior, mostram que
itor

o FIES aumentou consideravelmente o número de estudantes nas IES no País


e tem se tornado um método, junto com outras políticas afirmativas, na busca
a re

de acesso igualitário à educação. Beauvoir do 9º semestre relata perceber a


diferença da quantidade de pessoas que estava em sala de aula pelo FIES e
as que não conseguiram:
par

[...] eu lembro que minha turma foi uma das últimas turmas do FIES
então muita gente da sala infelizmente não conseguiu, eu lembro que na
Ed

primeira semana de prova, a sala ‘tava’ praticamente vazia e que muitos


não tinham conseguido e já desistiram logo no começo, mas eu consegui,
nossa eu lembro que chorei muito o dia que eu consegui o FIES.
ão

O FIES possibilita, ainda, as entrevistadas conciliar o emprego e a formação,


o que consideram mais difícil nas universidades públicas devido a uma grade
s

curricular com cursos integrais, como podemos verificar no trecho a seguir:


ver

Eu não tenho condições de pagar uma faculdade, no momento, nenhuma


condição. Eu tinha a oportunidade de fazer gratuita, mas eu precisava
trabalhar pra me manter, então o FIES abriu uma ponte pra ‘mim’ ter
uma chance de continuar trabalhando sem ter a mensalidade pra ‘mim’
pagar, né, por isso (Carmen – 9º semestre).
538

Apesar da importância dada a esta política por quem a contrata, verifi-


camos nos últimos anos um projeto político de sucateamento da mesma, com
redução nos investimentos e criação de estratégias que dificultam o acesso e/ou
manutenção da política por quem já a contratou, a exemplo da necessidade de
fiador proposta na última atualização. Tais modificações geraram inseguranças

or
nas contratantes. Algumas estudantes do 9º semestre relataram dificuldade em

od V
conseguir um fiador após assinar o contrato, como afirma Dilma:

aut
eu tive para aditar nesse semestre de agora o nono, deu problema lá com
fiador e eu nunca tive fiador ai tive que colocar, nessa parte eu fiquei

R
com receio porque ou eu colocava fiador ou não conseguiria concluir,
ai eu coloquei o fiador e graças a Deus deu tudo certo, mas foi o único

o
momento que eu fiquei com medo, fiquei com medo de perder o FIES,
aC
porque na hora de colocar o fiador eu estava indo contra o contrato, no
meu contrato não exigia fiador.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Em outro trecho podemos visualizar os sentimentos inerentes a essa
visã
modificação contratual. Carmen do 9º semestre diz sobre seu receio e as
mudanças que aconteceram na reta final do curso:
itor

[...] agora na reta final, porque eles exigem fiador, e assim, agora pro
décimo semestre eles vão exigir fiador, e eu corro o risco de perder o
a re

financiamento no último semestre, no semestre passado, agora no nono


semestre fizeram essa exigência e aí derrubaram uma liminar com a exi-
gência do fiador e aí foi permitido, eu fiquei desesperada, porque eu achei
que ia perder, porque eu não tenho condições, eu diminuí meu tempo de
par

trabalhado, eu tinha um salão, em um ponto comercial, eu fechei esse


ponto comercial, estou trabalhando às coxas em casa, pra poder tá aqui,
Ed

foi difícil pra mim, até o ano passado eu cheguei pensar em desistir
porque eu não tinha passagem pra vim, imagina pagar a mensalidade,
então correr o risco de agora o final não consegui finalizar com o finan-
ciamento [...] Porque tá tendo mudanças, quando eu assinei o contrato,
ão

tava lá eu li, eu li o contrato que não exigia fiador, não exigia, não tinha
aquela coisa de restrição né, de nome, nada disso, se podia fazer né sem
s

problema nenhum, e agora eles colocaram no contrato, não tinha nem


um tipo de exigência que eles estão fazendo agora.
ver

O FIES ao mesmo tempo que possibilita ingresso ao ensino superior é


causador de preocupações quanto ao seu pagamento. Os sentimentos de medo
e de preocupação são recorrentes nos discursos das entrevistas, ligados às
pressões sociais, familiares e próprias quanto a um futuro incerto no mercado
de trabalho existente e possibilidades de quitação da dívida realizada. O que
leva algumas a questionar essa modalidade de ingresso: “para aquele momento
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 539

da minha vida serviu, é, mas se eu pudesse voltar atrás eu não contrataria


eu tentaria ingressar na faculdade pública quantas vezes fosse preciso até
conseguir, mas naquela época serviu. Mas não, não, não queria ser assim”
(Ághata – 5º semestre).
Além da incerteza quanto ao pagamento, surgem temores quanto aos

or
juros e a preocupação em relação a um financiamento tão longo. Nos torna-

od V
mos, nessa lógica, sujeitos endividados e temerosos:

aut
[...] minha mãe trabalhou muito tempo com banco e tals então ela
“manja” muito de bolsa de valores de juros etc, taxa e ela começou a ler

R
e ficou meio “filha olha só você vai ter dívida aqui para tipo sei lá uns
72 anos” ‘aquelas né!’, fiquei: “huum entendi”, mas assim eu acho que

o
é complicado né!? porque depois a gente vai ter que pagar por muito
aC
tempo e se a gente for parar para pensar e fazer as contas sai o valor
muito mais caro do que se eu tivesse pagando pela Bolsa Brasil, né?!,
mas se eu não tenho outra opção, agora então tipo né!, isso é o que há
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(Maria Quitéria – 5º semestre).


visã
Para Lazzarato (2011), o paradigma social em que estamos envolvidos
hoje é definido pelo crédito e pela tradução do “homem devedor”, culpado de
sua sorte. Nessa direção, a economia de mercado está indissociável da pro-
itor

dução de sujeitos “trabalhador sobre si mesmo” e de sua moralidade credora


a re

(LAZZARATO, 2011). Em outro trabalho, o autor argumenta que a relação


credor-devedor está organizada em torno de uma propriedade, incluindo como
propriedade materialidades e imaterialidades (LAZZARATO, 2012).
Nessa perspectiva, o corpo, a força de trabalho junto com as emoções e
par

os sentimentos podem ser comercializados e rentabilizados na economia do


endividamento. Essa relação não precisa igualmente de dinheiro, já que não
Ed

faz distinção entre empregados e desempregados, trabalho material e imaterial,


assalariados e não assalariados, pois todos estamos endividados (LAZZARATO,
2012). Entendemos o homem endividado como uma extensão do capital humano,
ão

na sociedade neoliberal, pois estamos sempre devendo, e continuamente novos


métodos são criados para nos tornar um sujeito mais rentável, como os investi-
s

mentos realizados em nós por meio da graduação e do endividamento via FIES.


As preocupações referentes as formas de quitar o financiamento estão pre-
ver

sentes nas entrevistadas do início e término da graduação, porém observamos


maior preocupação naqueles que estão próximas da formação universitária,
como podemos ver na fala de Frida do 9º semestre:

esse ano né que eu fui me dar conta. E eu fui olhando lá a quantidade de


parcelas colocando o dedo naquelas linhas ali e eu pensei ‘vou morrer
pagando’, tá entendendo? Tanto que eu até falei com minha mãe, eu liguei
540

pra ela na hora, ela tava no serviço e eu falei “mãe, já é ano que vem”,
tipo assim, incrédula, não acreditando [...] Mas eu tenho medo, eu tenho
muito medo [...] o medo maior é o primeiro ano depois da faculdade, que
já tem que pagar e a gente não sabe o que vai acontecer, não sabe se vai
conseguir um trabalho entendeu? Pode ser que sim, pode ser que não.

or
Com a perspectiva neoliberal de formação e contratação por especia-

od V
lidades, o sujeito torna cada vez mais, como aponta Foucault (2008), homo

aut
economicus, potencializando sua capacidade a fim de tornar-se competitivo
para o mercado de trabalho. Um homem que gere a si mesmo, investe em seu

R
próprio eu, como única possibilidade de alcançar o suposto sucesso profissional
e realização pessoal mascarados pela capacidade de consumo. Nessa lógica,

o
as políticas afirmativas, para além de propiciar o desenvolvimento científico
aC
e tecnológico, buscam atender as necessidades de mercado, colocando profis-
sionais especialistas endividados para atuar em determinados campos e áreas.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


As políticas afirmativas e a promessa de ascensão social
visã
As mudanças no âmbito do mercado de trabalho, na produção, na relação
com o dinheiro e com o conceito de sucesso, instituídas pelo governamen-
itor

talidade neoliberal, instigam no homem a necessidade de adequação. Desse


a re

modo, jovens e adultos se sentem compelidos a atingir e, até mesmo, superar


expectativas sociais com sua vida profissional, pessoal e familiar. Em um dos
relatos do 5º semestre, Ághata trouxe em sua fala questões sobre as escolhas
que nem sempre são feitas por desejo e sim por serem socialmente impostas,
que acompanham o que é delimitado pelo senso comum de algumas pessoas
par

como o modo de se viver, afirmando que esse movimento “[...] é uma daque-
Ed

las coisas que tá na lista de coisas que você tem que fazer da vida, você tem
que terminar o ensino médio você tem que fazer uma graduação, você tem
que casar, passar no concurso público, trabalhar o resto da vida e a vida no
ão

Brasil pelo menos se resume a isso.”


Teixeira e Correia (2002) dizem sobre essa necessidade social relatada
pela aluna de padronizar e de perceber as expectativas sobre a vida dos sujei-
s

tos, chegando a um ponto que fica cada vez mais difícil realizar diante das
ver

oportunidades que lhe são oferecidas, e quando não atendidas ele é culpabili-
zado pelo “próprio” fracasso. Nota-se nos posteriores relatos que tais cobran-
ças relacionadas com a entrada na graduação foram incentivadas por questões
ligadas não somente ao querer do sujeito, mas por ser ofertada a oportunidade.
De acordo com Agamben (1995 apud DUARTE, 2008), tais cobranças e o
sentimento de viver para cumprir papéis sociais podem acarretar angústias no
indivíduo, questões essas que apareceram em alguns discursos das universitárias
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 541

entrevistadas, e que afetam a qualidade de vida dos sujeitos e muitas vezes os


paralisam perante sua própria existência. Esse assujeitamento pode ser expe-
rienciado por muitos com sofrimento, quando os sujeitos se sentem excluídos
desse contexto, ou quando percorrem caminhos indicados por outros, sem a
suposta autonomia de escolha difundida pela concepção neoliberal.

or
O receio de deixar o ensino superior para o outro ano e não dar continui-

od V
dade aos estudos da educação básica apareceu nas entrevistas como um dos

aut
motivadores para se iniciar o ensino superior, Frida do 9º semestre relata que:

R
“[...] queria fazer alguma coisa enquanto eu era nova. Porque tinha gente
que acabou de terminar o ensino médio comigo e falou “a vou ficar um
ano sem fazer nada” e eu falava “gente pelo amor de deus.” E falou

o
que no próximo ano ia fazer e não tão fazendo nada até hoje, então eu
aC
tinha medo de acontecer isso comigo, se eu ficasse parada um ano eu ia
deixar a preguiça levar.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Além de ser uma possibilidade para as pessoas que não possuem condi-
visã
ções de custear uma faculdade privada, essa política proporciona que o estu-
dante tente exercer um trabalho com remuneração, visto que também precisam
quitar com as quantias trimestrais estipuladas na contratação do financiamento.
itor

O desejo de ingressar no ensino superior partiu da premissa de que ter o


a re

diploma facilitaria o ingresso no mercado de trabalho, junto com a perspectiva


de melhores salários e qualidade de vida: Ter maior perspectiva de entrar no
mercado de trabalho, ter um salário mais alto e também por prestígio né, uma
pessoa que tem ensino superior é mais respeitada” (Chica – 9º semestre). O
ensino superior e a especialização que este oferece são tratados em termos
par

de melhorias das condições social, econômico e cultural:


Ed

Ai eu acho que é ter um futuro melhor né, ver que uma graduação hoje
nos proporciona, é... novos caminhos, novos horizontes né, então minha
busca por isso, pelo estudo né, foi a questão de ter uma vida melhor, de
ão

conseguir ter um futuro melhor e também conseguir ajudar as pessoas


de alguma forma né (Dandara – 9º semestre).
s

A singularidade de pagamento do FIES após a conclusão do curso, com


ver

carência de 18 meses para o início desse pagamento, levam seus contratantes


a inquietarem-se ainda mais com a entrada no mercado de trabalho logo após
a conclusão da faculdade1. Ainda que exista o interesse de buscar atender uma

1 Considera-se que a preocupação com o mercado de trabalho perpassa estudantes de instituições de ensino
superior público e/ou de ensino privado que são pagantes, porém o recorte é realizado para pontuar que,
algumas vezes, esse sentimento vem atrelado com as questões referentes à dívida adquirida pelo FIES.
542

necessidade mercadológica, o que possibilitaria a inserção de profissionais consi-


derados mais qualificados no mercado de trabalho e proporcionaria o desenvolvi-
mento científico e tecnológico do País (APRILE; BARONE, 2009), tal realidade
muitas vezes não acontece, tornando-se também um produtor de sofrimento.
Como estratégia para superar as dificuldades econômicas, ao longo do

or
percurso da faculdade, Dandara afirma que não conseguiu trabalhar e estu-

od V
dar concomitantemente até o final do curso, dando os contornos da política

aut
afirmativa na viabilização da formação sem a obrigatoriedade do trabalho:

R
[...] a gente acaba não conseguindo conciliar trabalho com a faculdade,
então seria muito complicado se eu tivesse que trabalhar pra pagar a
faculdade né, eu acho que eu não me dedicaria tanto, então o FIES me

o
propõe isso, ter essa possibilidade de me dedicar somente aos estudos,
aC
principalmente agora no final do curso e aí depois de formada ter a pos-
sibilidade de pagar né.

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Apesar da política afirmativa, encontramos nos discursos das entrevis-
visã
tadas receio e preocupação com os juros e a forma que conseguirão quitar o
financiamento, como Tarsila do 9º semestre que diz: “a gente fica um pouco
assustado de como que eu vou pagar isso, né? Mas eu vejo como uma forma
itor

de tá me ajudando.” Ághata do 5º semestre chegou a dizer que se tivesse a


a re

oportunidade de voltar atrás não contrataria o FIES: “para aquele momento


da minha vida serviu, é, mas se eu pudesse voltar atrás eu não contrataria
eu tentaria ingressar na faculdade pública quantas vezes fosse preciso até
conseguir, mas naquela época serviu. Mas não, não, não queria ser assim”.
Pontos referentes à incerteza de estar dentro do mercado de trabalho tam-
par

bém aparecem já nas primeiras perguntas em relação ao FIES, evidenciado na


fala da Marielle do 9º semestre, “contribuiu muito e apesar de ser um absurdo
Ed

né a mensalidade, o valor cheio depois a ser pago não é uma garantia de que
a gente vai estar empregado para poder pagar o financiamento, mas sem ele
não estaria aqui, não teria conseguido ingressar na faculdade”. Dessa forma,
ão

por mais que os contratantes considerem o financiamento como essencial


para o seu processo de formação, a incerteza em relação ao pagamento gera
s

apreensão, alguns ainda afirmam que a submissão ao FIES como uma escolha
ver

necessária, porém não a mais atrativa ou a primeira opção.


Além disso, os estudantes lidam com os estereótipos criados por depen-
derem do governo, por terem que ser bons alunos e evitar a reprovação, uma
vez que, o FIES cobre a reprovação de matérias apenas se o aluno apresentar
aproveitamento de 75% do curso em um semestre, assim ele pode solicitar a
dilatação do valor do FIES para poder cursar a matéria reprovada, e essa pode
ocorrer apenas por até dois semestres consecutivos (BRASIL, 2012; 2018b).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 543

Nessa direção, existe uma preocupação de conseguirem formas de quitar


o financiamento. Como um dos requisitos para aquisição da política é a baixa
renda familiar a probabilidade que consigam arcar com as parcelas sem que
tenham um trabalho com remuneração é baixa. Como já apontamos os dados
de desemprego no Brasil, possuir um diploma não é garantia de estar dentro do

or
mercado de trabalho, mesmo que esse seja o motivador do contrato do FIES.

od V
Assim, a expectativa que é colocada sobre o ingresso no ensino para uma melhor

aut
qualidade de vida, bons salários, reconhecimento social, ou seja, a promessa
de ascensão social não se confirma ou se torna mais distantes de se alcançar.

R
A analítica deste segundo incidente crítico dos discursos nos leva a pensar
a noção de sujeitos empresários de si, representado na figura do homo oecono-

o
micus, que investe em si para obter sua própria melhoria. O homem econômico
é o indivíduo visto como empresa, como investidor e, ao mesmo tempo, como
aC
investimento. Por sua característica heterogênea, ele é aquele cujo interesse
pessoal é tão governamentalizável que, espontaneamente, vai convergir com
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o interesse dos outros (FOUCAULT, 2008; LAZZARATO, 2014).


visã
Esse homem passa a gerenciar e comercializar a si mesmo, visando a
melhora de sua mão-obra e, consequentemente, a aumentar seu valor no mer-
cado de trabalho. Entretanto, esse homem econômico não é um sujeito expro-
itor

priado pelo mercado de trabalho, é, segundo Foucault (2008), consumidor e


possui interesses. Como consumidor, ele, ao mesmo tempo em que consome
a re

serviços e técnicas empresariais, é um produtor da própria satisfação. Como


sujeito de interesse, é aquele que participa da economia de mercado quando
tem vontade porque poderá lhe trazer algum benefício (FOUCAULT, 2008;
LAZZARATO, 2013), como a tão sonhada ascensão social das entrevistadas.
par

Importante destacar que, o interesse aparece como uma forma de vontade


que é absolutamente subjetiva e constituída a partir das relações que estes
Ed

sujeitos estabelecem com outros dispositivos e instituições, como as sociais,


as familiares e as econômicas.
ão

Gerenciando o capital humano: investimentos familiares


s

Neste incidente crítico, demos visibilidade a influência da família na


ver

formação universitária das entrevistas, que aparecem em duas dimensões: (1)


preocupação de pais e outros membros da família em relação a dívida con-
traída e os modos de pagamentos após término da faculdade e (2) sentimentos
de felicidade e orgulho por ter um parente cursando o ensino superior que, em
alguns casos, é o primeiro a ter essa formação. Os familiares não investem
apenas economicamente; mas também afetiva e subjetivamente naquele que
está se profissionalizando.
544

Para Foucault (2008), “[...] o simples tempo de criação, o simples tempo


de afeto consagrado pelos pais a seus filhos, deve poder ser analisado em ter-
mos de investimento capaz de constituir um capital humano”, pois essa com-
petência-máquina que está sendo formada trará aos familiares uma satisfação
psicológica (FOUCAULT, 2008, p. 315). Nesse sentido, a teoria do capital

or
humano possibilita reinterpretar em termos econômicos vários campos que,

od V
até então, eram considerados não econômicos, como os investimentos afetivos

aut
e as relações sociais e familiares (LAZZARATO, 2014; FOUCAULT, 2008).
Malala do 9º semestre afirmou que teve o histórico acadêmico da sua

R
família modificado pela oportunidade que o FIES proporcionou e se tornou um
exemplo por ser a primeira a se formar, e este foi o incentivo para ingressar
na vida acadêmica:

o
aC
Para mim é uma realização, não só para mim, mas também para minha
família né?! porque nenhum conseguiu chegar o nível superior eu fui a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


única e passei por muita coisa assim para chegar até aqui e para mim
não só para mim mas para o meus irmãos é um orgulho para meus sobri-
visã
nhos né inclusive eles para tia você é meu orgulho e alguns sobrinhos
também que estão seguindo o mesmo, assim desejo que eu dei para um
curso superior, já tem uns que tão indo que fala que se espelha em mim
itor

isso é muito bom.


a re

E acrescenta:

Então esse é um desejo muitos anos, nós somos uma família muito grande
de onze irmãos, [...] meus pais e meus irmãos são quase são a maio-
par

ria semianalfabetos e aí eu fui a única pessoa querer estudar, e [...] me


dediquei os filhos ao trabalho e isso vai passando o tempo e aí só houve
Ed

mesmo a oportunidade mesmo para eu estudar já com 40 anos, e agora


estou realizando o meu sonho.
ão

A faculdade torna-se uma possibilidade de mudança de vida e quebra


de paradigmas familiares. No ideário da sociedade é vista como um “sonho”
a ser alcançado independentemente da idade. Os momentos vividos na/para
s

a graduação possui entre si interstícios com a existência privada na qual os


ver

sujeitos são “guiados” por desejos também familiares, que almejam uma
independência futura para seu membro. A análise dos discursos sobre os
sentimentos de ingressar no ensino superior, deram visibilidade “entre as
travessias forçadas e os percursos imprevistos, existe a preciosa noção do
caminho familiar, com marcos onde a significação da vida se encontra”. O
caminho familiar é, aqui, entendido enquanto o universo dos valores do sujeito
onde ações e reações ganham sentido (BOSI, 1992, p. 111).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 545

Sobre a influência da família, a discente do 9º semestre, Beauvoir, expôs


que o incentivo da família foi pelo fato de seus pais não possuírem o ensino
superior e fazerem um comparativo sobre ser alguém na vida possuindo o
diploma: “Na minha família, meus pais não tinham graduação até então e
eles sempre falaram, falavam pra mim que nunca deveria parar de estudar

or
e que a vida só teria estabilidade, seria alguém na vida um dia se eu tivesse

od V
uma formação”. Nessa mesma direção, Marielle do 5º semestre relata que

aut
sua influência para fazer a graduação e escolher o curso de Psicologia veio do
exemplo da irmã que é formada nesta profissão, ao relatar:“[...] a influência
da minha irmã que eu acredito que teve muito e porque eu pesquisei e gostei,

R
eu sempre quis algo da área da saúde e me interessei em fazer Psicologia”.
Estas narrativas mostram a importância da graduação para algumas entre-

o
vistadas e o quanto isso é mobilizador para toda a família. A família pode pos-
aC
suir influências nas decisões das universitárias, como o ingresso na faculdade
e no mercado de trabalho. Em diversas falas as entrevistadas referem-se aos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

familiares como interventores no processo de escolha do curso, assim como


na contratação do FIES, influenciando com que muitos se sintam pressionados
visã
com a expectativa do término da faculdade e o pagamento do financiamento,
com entrar no mercado de trabalho rapidamente, trazendo muitas vezes sen-
timentos de preocupação, inseguranças e ansiedade em relação ao futuro. E
itor

o que visualizamos na fala de Dandara acadêmica do 9º semestre:


a re

às vezes a família sim, por exemplo, minha mãe até fala ‘ai tem que ver
o que você vai fazer ano que vem, porque tem que começar a pagar o
FIES’, então acaba vindo aquela preocupação né, tipo ó você tem uma
dívida pra você pagar né [...] preocupação mesmo, ansiedade.
par

Diante das mesmas questões Ághata, estudante do 5º semestre afirma:


Ed

é engraçado, pois se torna uma preocupação não só da pessoa que faz,


porque uma vez que ela não paga é o nome dela que vai ficar sujo né, mas
ão

acaba se tornando uma preocupação das outras pessoas que moram com
você e da sua família [...] É isso me traz um pouco de angústia, principal-
mente depois que, na verdade estamos em uma situação econômica que
s

está difícil para todo mundo, [...] o fato de pagar independente se você
vai atuar na área ou não, você vai ter que pagar.
ver

Notamos que as questões sociais e econômicas afetam às tomadas de


decisões de entrada, permanência e saída da graduação. A própria vida se
transforma em objeto de lutas políticas e econômicas. Os regimes biopolíticas
formam um conjunto de estratégias de regulação da vida, tendo como alvo
os corpos das populações e objetivando produzir mais vidas, mais educação,
expressas em mão de obras especializadas e assalariadas (FOUCAULT, 1988).
546

Evidenciamos nos discursos das entrevistas uma sociedade capitalista


cujo problema político e econômico diz respeito ao governo “do todo e de cada
um” como organismos vivos, isto é, ao governo da vida e das condutas através
da aplicação de uma variedade de técnicas de vigilância, regulações biopolí-
ticas e produções de vida, dos corpos e das subjetividades (PRADO-FILHO,

or
2010), definidas por nós de empresárias de si, na figura do homem econômico.

od V
Destacamos, nesse ponto, que não negamos a necessidade de políticas

aut
afirmativas para tentar minimizar as lacunas sociais, culturais, políticas e eco-
nômicas existentes na sociedade, dando oportunidades de acessos à educação.

R
Como bem afirmam Albuquerque e Pedron (2018), as políticas afirmativas
colocam os indivíduos em um nível de competição mais igualitário aos que se
beneficiaram com a exclusão daquela parcela populacional, tentando, assim,

o
corrigir a situação de desigualdades existentes no Brasil.
aC
Considerações finais

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visã
Inicialmente, os pressupostos levantados no projeto de pesquisa con-
sistiam em identificar se as demandas sociais contemporâneas mobilizavam
e influenciavam no ingresso ao ensino superior, na tentativa de buscar uma
melhor qualidade de vida e ascensão social e profissional, e como a instabi-
itor

lidade do mercado de trabalho pode interferir na forma com que graduandos


a re

lidam com a quitação da dívida realizada por meio do FIES. Para isso, foi
analisado as expectativas quanto ao ingresso no mercado de trabalho após o
término do curso, os fatores sociais que influenciaram, como pretendem efe-
tuar o pagamento das parcelas e identificar os impactos sociais, econômicos
par

e os possíveis sofrimentos psíquicos que podem surgir em decorrência dessas


questões apresentadas.
Ed

Evidenciamos em diversos discursos que a motivação de buscar um


curso de nível superior se deve ao desejo de um futuro profissional e pessoal
mais estável, com melhores salários, e que encontraram nessa política de
ão

financiamento uma oportunidade de concretização desse desejo. Algumas


entrevistadas, ao mesmo tempo em que, consideram ser importante para o seu
ingresso no ensino superior, afirmam que atualmente não o fariam e buscariam
s

outros meios de ingressar, pois não tinham a dimensão dos custos futuros.
ver

As maiores fontes de preocupação com relação ao futuro profissional


estão relacionadas às incertezas no mercado de trabalho, e o consequente
pagamento do financiamento após o período de carência. O modo pelo qual
cada sujeito lida com esses sentimentos é diferente, porém apresentam seme-
lhanças entre si, como aqueles que estão muito preocupados e ansiosos com
as incertezas do fim da graduação, os que já se sentiram assim e preferem
pensar e lidar com as demandas atuais da faculdade e de outras áreas da
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 547

vida, em vez focar sua preocupação com o futuro profissional. E outros que
enxergam possibilidades de atuação no mercado de trabalho e acreditam que
conseguirão quitar a dívida.
Existem inúmeros atravessadores na vida durante o percurso acadêmico,
como a família, o trabalho, questões financeiras, vida social, projetos pessoais,

or
responsabilidades que fogem do âmbito educacional, e que estão presentes

od V
também nos contratantes do FIES. Esses fatores externos influenciam o modo

aut
de vivenciar os sentimentos relacionados a graduação, assim como as formas
de enfrentamento e/ou compreensão desta etapa da vida.
Notamos nos discursos que uma parcela das entrevistadas gostaria ou

R
cursaria algum curso superior em instituições públicas, mas trouxeram uma
perspectiva sobre a dificuldade de passar no curso desejado nessas instituições

o
decorrente da desfasagem do ensino básico público cursado. Outras argumen-
aC
tam a possibilidade de não conseguir conciliar o ensino com o trabalho em
universidades públicas que oferecem a graduação de modo integral.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Diante disso, as políticas afirmativas se fizeram importantes para que


tivessem acesso ao ensino superior privado e pudessem buscar condições de
visã
vida desejáveis e instituídas por uma lógica de governamentalidade neolibe-
ral. Porém, é preciso pontuar que tais políticas permitiram que grupos antes
excluídos desses espaços pudessem ter outras perspectivas de vida e de tra-
itor

balho, mesmo diante das mudanças mercadológicas que provocam incertezas


a re

tanto em profissionais que possuem graduação, quanto os que não. Contudo,


ressalta-se que concomitantemente tais políticas têm uma função de existirem
na sociedade neoliberal, na garantia de uma da mão de obra qualificada e
especializada para o desenvolvimento econômico do país.
par

Salientamos alguns aspectos que não foram abarcados na pesquisa e que


abrem a possibilidade para estudos futuros, como a relação que os sujeitos
Ed

possuem com o contrato, uma vez que algumas contratantes não leram antes de
assinar e/ou não compreendiam sobre o valor total financiado e como funcio-
naria o pagamento. Outro ponto é a comparação com os egressos que contra-
ão

taram o FIES e estão no processo de seu pagamento, a fim de entender como é


esse processo após os 18 meses de carência até se iniciarem as parcelas. Além
disso, também é viável observar as perspectivas sobre o FIES com estudantes
s

de outros cursos que não foram contemplados nessa pesquisa, considerando


ver

que para cada pessoa o ingresso na graduação pode ser realizado e idealizado
de um modo diferente, e que as perspectivas também podem ser plurais.
Destacamos a dificuldade em conseguir voluntários dos quintos semes-
tres para a pesquisa pela diminuição do número de contratantes do FIES
nos últimos anos, devido as alterações feitas no Programa que exigem um
fiador para a contratação, por exemplo. Diante disso, podemos pensar que
menos pessoas estão se inserindo nas graduações no âmbito privado por este
548

programa, e que pela defasagem na educação básica como já dito por Aprile
e Barone (2009), grande parte dos estudantes que saem do ensino médio de
escolas públicas também encontram dificuldades de ingresso na Universidade
Pública, o que corrobora para a realidade de que apenas parte da população,
com certo nível socioeconômico adentram no ensino superior, reafirmando a

or
lógica de exclusão e desigualdade.

od V
A educação tem o potencial de ser libertadora, construindo sujeitos que

aut
são autônomos e críticos, e que poderão ocasionar transformações em sua
realidade política, econômica e social, na medida em que é fornecida com
qualidade e com esse propósito. Entretanto, o que é percebido na atual conjun-

R
tura política e econômica do país, em que é feito muitos cortes de verbas no
âmbito educacional público e privado, e também pelos modelos de educação

o
implantados ao longo da história brasileira, é um ensino básico e médico
aC
orientado para uma perspectiva neoliberal, em que os sujeitos são ensinados
a reproduzirem e não estimulados a criarem, pois a reprodução alimenta a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


economia neoliberal na medida em que os indivíduos trabalham para ela, na
ideia de capital humano, já escrita por Foucault (2005).
visã
Partindo dessa mesma lógica, os cortes na educação e a reprodução ao
invés do fomento do pensamento crítico também estão presentes no ensino
superior. Recentemente foi proposto pelo Ministério da Educação (2019) o
itor

Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (FUTU-


a re

RE-SE) que de acordo com o projeto objetiva maior “autonomia financeira


às universidades e institutos federais por meio de ações de governança, ges-
tão, empreendedorismo, pesquisa, inovação e internacionalização do ensino
superior” (BRASIL, 2019, p. 1).
par

Todavia, em um trecho do texto de apresentação, uma das propostas é


“oferecer inovações que supram a demanda da sociedade” (BRASIL, 2019,
Ed

p. 6) voltando a mesma lógica expressa no governo de FHC que fomentou um


viés privado-mercantil, onde a educação poderia ser comercializada. Além
disso, tiraria a autonomia das pesquisas, uma vez que só acontece financia-
ão

mento privado se há lucro, assim as pesquisas deixariam de ser da população


e passariam a ser das empresas, retomando o que Foucault (2008) diz sobre o
capital humano e os futuros profissionais serem investimentos para poder con-
s

tribuir economicamente com a regulação e manutenção do mercado neoliberal.


ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 549

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itor
a re
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Ed
s ão
ver
TRANSDISCIPLINARIDADE E
SITUAÇÕES CATASTRÓFICAS:
contribuições de Pierre Benghozi

or
para pensar o presente

od V
aut
Thaís Seltzer Goldstein

R
Precisamos tecer, esse verbo horizontal, colorido, que só se
embeleza na diferença. Temos que começar a imaginar um futuro

o
onde possamos viver. O presente só pode ser tecido se o futuro for
aC
imaginado. Ninguém consegue viver num presente sem futuro.
Eliane Brum
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Tinha um Pierre no meio do caminho...


visã
Nas últimas décadas, diversas produções acadêmicas nas áreas da psi-
cologia, psicanálise, ciências sociais e filosofia vêm se dedicando a refletir
itor

sobre os aspectos envolvidos nos processos de sofrimento, adoecimento e


a re

saúde, discussão que se desdobra na problematização dos modos de viver


contemporâneos. A despeito das tantas inovações tecnológicas e do acúmulo
de conhecimentos, situações catastróficas seguem atingindo pessoas e comu-
nidades. Nessas horas, repertórios diversos de saberes e práticas transdisci-
plinares precisam ser acessados.
par

Neste capítulo, apresento algumas ideias de Pierre Benghozi, um médico


Ed

ginecologista francês, que se tornou psiquiatra e psicanalista, além de estu-


dioso da antropologia. Em seguida, busco articular as reflexões suscitadas por
ele às de outros autores da Filosofia, Psicanálise e Psicologia Social, em busca
ão

de trazer elementos que possam contribuir para pensar crítica e clinicamente,


a realidade catastrófica que nos assola no Brasil de 2020.
Com Benghozi, tive a oportunidade de aprimorar minha formação clínica
s

por meio de leituras, cursos e convivência: ele foi um interlocutor importante,


ver

entrevistado em minha pesquisa de doutorado sobre os desafios da clínica no


mundo contemporâneo, incluída em tese defendida no Instituto de Psicolo-
gia da Universidade de São Paulo (2013). Dentre as produções contempo-
râneas em psicanálise, foi particularmente significativo conhecer o trabalho
de Benghozi, cujo saber-fazer clínico está apoiado em experiências radicais
de atendimento: antropologicamente adversas e humanamente vergonhosas.
Refiro-me a seus artigos sobre violência física e simbólica, em que pensa a
554

clínica a partir da experiência com sobreviventes do genocídio em Ruanda


e com prisioneiras bósnias das guerras étnicas ocorridas na ex-Iugoslávia.
Para Benghozi, compreender a dimensão dos não ditos e suas confi-
gurações psiquicamente problemáticas, inclusive as catastróficas, além das
especificidades subjetivas e socioantropológicas, é condição fundamental para

or
se avaliar a dimensão do dano e encontrar restaurações possíveis para o que

od V
ele nomeia como continentes psíquicos individuais e grupais.

aut
Trabalhando com uma epistemologia de complexidade, Benghozi leva à
psicanálise uma pauta original de reflexões, na qual se entrevê uma dimensão

R
ético-política da clínica. O modo didático de teorizar por meio de metáforas
sobre tricô, carpintaria, culinária, música, arquitetura etc. imprime uma dinâmica
visível e convincente a suas proposições teóricas em psicanálise. Sua teoria

o
clínica tem uma feição pragmática e transdisciplinar, com vistas a sedimentar
aC
campos de intervenção sobre os complexos arranjos psíquicos defensivos que
enredam sujeitos, famílias, culturas e até nações. É interessante que, mesmo

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transitando por outros saberes, ele não deixe de pensar como médico (formação
visã
de base), preocupado em compreender e enfrentar o que lhe parece doentio.

Trajetória profissional e história de vida: sensibilidades que se


entrecruzam
itor
a re

Com algo em torno de 70 anos, Pierre Benghozi é um judeu sefaradi


que emigrou adolescente, com a família, da Argélia para a França, onde vive
até hoje. Quando era pequeno, seu país de origem atravessava uma guerra de
disputa de territórios algerianos entre a França e o Marrocos. Sua família então
par

se fixou na França, onde ele prosseguiu os estudos e acompanhou de perto a


efervescência social e política dos anos 1960, inclusive maio de 1968. Esse
Ed

importante momento histórico foi concomitante a mudanças de vida: com a


saída da Argélia, a família também acabou enfrentando rupturas, incertezas e
novas adaptações na periferia parisiense, repleta de imigrantes. Sua trajetória
ão

familiar, assim como o contexto histórico em que cresceu, concorreram para


que ele viesse a escolher primeiro a ginecologia, depois a psiquiatria, áreas
s

afetadas pela sensibilidade às lutas sociais das mulheres (pelo uso de contra-
ceptivos e pelo aborto, então proibido na França) e às lutas da antipsiquiatria.
ver

Um olhar para o invisível

Benghozi mira psicanaliticamente uma questão cara à antropologia: as


trocas1 humanas. Estaria ele já sob a influência de leituras de Mauss, que refere

1 Em sua teoria, o autor usa a palavra “transmissões”.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 555

em seu livro (BENGHOZI, 2010)? De fato, a teoria de Benghozi apresenta


configurações, inclusive as ditas catastróficas, de uma “economia psíquica”
que atravessa a relação do sujeito consigo mesmo, com seus pares, amigos,
parentes, ancestrais e descendentes (inclusive aqueles que ainda não nasce-
ram), por meio da qual ocorrem transmissões afetivas verbais e não verbais,

or
que participam da construção do psiquismo individual, familiar e comunitário.

od V
Nesse sentido, podemos pensar que a base de sua psicanálise bebe em

aut
fontes sociais e antropológicas. Foi pela imersão no cotidiano institucional
que seu olhar se alargou definitivamente, deslizando do mais evidente (o

R
paciente) para as relações e trocas que acontecem entre esse paciente e os
outros, incluindo os que podem estar fisicamente ausentes, assim como os per-
sonificados em identidades coletivas, tantas vezes invisíveis no espaço público

o
(GONÇALVES FILHO, 2008). É com base na clínica das psicoses infantis
aC
que Benghozi problematiza os dispositivos tradicionais de escuta psicanalítica,
resgatando o valor da presença, inclusive daqueles que não estão presentes,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

como os antepassados já idos ou os descendentes que se espera que venham.


Ele defende que herdamos e transmitimos material psíquico aos outros, seja
visã
em nível consciente, seja inconsciente. No desvelamento progressivo daquilo
que observa, Benghozi busca ver o que ficou do lado escuro, na periferia do
fenômeno. Note-se o prefixo “peri”, com que ele caracteriza seu campo de
itor

atuação clínica, em termos como periadolescência e perinatalidade, indicando


a re

algo que está nas margens e não, no imediatamente dado à visão habitual. E
que, por vezes escuso, participa (da origem) dos fenômenos sem o devido
reconhecimento e, consequentemente, sem as devidas manobras psíquicas em
direção a destinos mais salutares.
par

Considerando que sua formação de base é a de ginecologista, é coerente


pensar que ele parte do corpo concreto e do nascimento biológico individual
Ed

para tecer considerações sobre a corporeidade e a dimensão psíquica do nas-


cimento de uma criança como filha para seus pais/cuidadores e do nascimento
de seus pais/cuidadores como “pais” para essa criança.
ão

Vínculos de filiação e de afiliação


s

Benghozi chama de “vínculos de filiação” aqueles apoiados em uma base


ver

biológica. Tem-se, então, uma linha diacrônica vertical, que pode ser filiativa
ascendente (com os que vieram antes, como pais, avós, bisavós...) ou filiativa
descendente (com os que vieram ou virão depois: filhos, netos, bisnetos...)
Numa linhagem genética, além da transmissão de DNA, transmite-se também
material psíquico inconsciente familiar, cultural, ancestral. Essas transmissões
vão constituir o que o autor chama de vínculos de “afiliação”, que se dão de
maneira sincrônica (horizontal), e podem ser tanto com familiares, como com
556

pares, amigos etc. Ou seja, diferentemente dos filiativos, os vínculos afiliativos


não dependem de uma conexão biológica ou genética. Quando, então, se diz
que eles são sincrônicos, é porque o reconhecimento de si é concomitante ao
reconhecimento do outro. E a depender do modo como um pai ou uma mãe
se assumem na relação com o/a filho/a, seja biológico ou adotado, isso estará

or
atrelado ao modo como a criança constrói para si um lugar de filho/a junto

od V
àqueles pais. Trata-se, então, de uma identidade formada em relação: um

aut
nascimento de si pelo outro e para o outro, em meio a processos recíprocos de
subjetivação e acordos de pertencimento grupal. Por isso, Benghozi distingue
os vínculos de “afiliação primária” – que se apoiam na filiação biológica –

R
dos vínculos de “afiliação secundária” – que se constituem entre pais e filhos
independentemente do liame biológico, como nos casos de adoção.

o
aC
A (re)malhagem terapêutica de continentes psíquicos individuais,
familiares e grupais

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visã
Inspirado em Bion, que atribui ao aparelho psíquico materno uma “função
alfa” de continência, Benghozi estende essa ideia ao nível grupal-familiar,
propondo uma modelagem antropológica na qual haveria um “continente
genealógico grupal familiar com uma trama e uma malhagem” (2010). A
itor

“trama” é modulada pela estrutura que organiza as relações de parentesco.


a re

A “malhagem” se refere às narrativas míticas grupais e às ritualizações que


dão certa coesão e integridade ao corpo psíquico grupal. Enquanto a “trama”
diz respeito ao “continente”, a “malhagem” diz respeito ao conteúdo, que dá
liga e continuidade à estrutura da trama.
par

No trabalho psicanalítico grupal – campo de práticas e teorizações ao qual


Benhghozi se dedica há cerca de 20 anos –, o psicanalista interage dinamica-
Ed

mente com a família e a rede terapêutica, em busca de condições para “rema-


lhagens”, por meio de uma construção conjunta de “vínculos afiliativos” – que
como vimos, são horizontais e independentes de parentesco biológico - articu-
ão

lados aos “vínculos filiativos” – verticais e com base no parentesco biológico.


Para Benghozi, a articulação dos vínculos de filiação e afiliação pela
remalhagem terapêutica possibilita a reconstrução de um corpo psíquico indi-
s

vidual, familiar e comunitário, capaz de delimitar fronteiras entre o fora e o


ver

dentro e de conter transmissões psíquicas difíceis, sem que se rompam as


identidades e os laços de pertencimento. A clínica de Benghozi orienta-se,
portanto, no sentido de promover remalhagens dos continentes genealógicos
grupais enfraquecidos, esburacados, ou drasticamente rompidos – situação
que ele denomina “catastrófica”.
Durante o trabalho psicanalítico familiar, vêm à tona determinadas trans-
missões que se dão “em negativo”, ou seja, sem suficiente “metabolização
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 557

simbólica”. Por exemplo, vivências de vergonha, humilhação e violência, vividas


por ancestrais, podem ser transmitidas a gerações futuras, mesmo que delas nada
se fale. Traumas assim podem produzir rupturas na malha psíquica dos vínculos,
que ameaçam a integridade psíquica do sujeito, da família e da comunidade.
Para ele, o sintoma – que na maioria das vezes se dá a ver pelo adoeci-

or
mento de um membro da família – “é uma forma particular de malhagem dos

od V
continentes genealógicos enfraquecidos” (BENGHOZI, 2010, p. 223), a qual

aut
pode traduzir uma “crise narcísica grupal”. Nesse sentido, a emergência de
uma psicose infantil pode ser uma tentativa de “organização implosiva” das
angústias vividas pela criança, que não foram contidas nem metabolizadas

R
pelo aparelho psíquico grupal familiar de gerações anteriores.
Uma vez configurado o campo da terapia psicanalítica familiar, vejamos

o
sinteticamente alguns cuidados que ele propõe em seu método clínico:
aC
(1) O respeito e a importância dada ao setting terapêutico, que envolve
a reunião de todos em determinados lugares, dia e hora, por certo período.
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O enquadre terapêutico permite uma ritualização coletiva por meio da qual


se fortalece o continente grupal familiar enfraquecido, às vezes estrutural-
visã
mente danificado.
(2) A coparticipação – nas entrevistas familiares iniciais – de uma pessoa
que sirva como uma referência à criança, em geral um profissional do hospital-
itor

-dia ou da escola, capaz de estabelecer uma interface entre o cotidiano institucio-


a re

nal da criança e o que vai sendo evocado no transcorrer das sessões. Ele afirma
que, num segundo momento, o surgimento de uma demanda de terapia familiar
esvazia o sentido simbólico do profissional de referência naquele contexto.
(3) O apoio à construção e à partilha de sentidos e narrativas que não são
par

necessariamente os predominantes. Isso empenha, além de boa escuta analítica,


um convite à fala e uma habilidosa gestão do trânsito da palavra durante as ses-
Ed

sões. Para isso, Benghozi muitas vezes propõe que se façam desenhos (“genogra-
mas” e “espaçogramas”), além de associações livres a partir de algum estímulo
presente, como, por exemplo, uma frase estampada na camiseta de alguém.
ão

(4) A mobilização de recursos próprios do analista, de suas competências


conscientes e inconscientes, de sua presença e criatividade junto à família,
aliada à prática regular de autoanálise, em que se procurarão elaborar as ques-
s

tões suscitadas pela/na contratransferência, bem como seus efeitos no trabalho.


ver

Psicanálise e violência

Considero a metodologia de trabalho de Benghozi coerente e cuidadosa.


Lamentavelmente, ao mirar o entorno, percebo quão longe estamos de contar
com propostas clínicas de qualidade e integração profissional nos serviços
de saúde no Brasil.
558

Neste início de século, as políticas públicas de saúde mental retrocederam


em relação às conquistas alcançadas nas últimas décadas do século XX. Não
há como não repudiar o reaparecimento de instituições e práticas manicomiais
por todo o país (muitas delas ironicamente chamadas de “comunidades tera-
pêuticas”).2 Não há como não lamentar a redução da participação popular nas

or
políticas públicas, em tempos marcados pela informatização de processos,

od V
precarização do trabalho, terceirização de responsabilidades e serviços, antes

aut
assumidos pelo poder público e hoje repassados a organizações de assistên-
cia não governamentais que, muitas vezes, seguem uma lógica produtivista,

R
cuja prioridade é o cumprimento de metas quantitativas, sem as quais não há
repasse de verbas.
Infelizmente, em pleno século XXI, ainda banalizamos o descaso e a

o
dominação, testemunhamos em silêncio processos brutais de desenraizamento
aC
e uso da violência que discrimina, exclui, silencia, apaga e ainda corrói a
capacidade humana de lembrar, narrar, pensar e agir. Vejo a violência como

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um fenômeno engolidor: como a baba da aranha, imobiliza e digere aos poucos
visã
a dignidade da vítima, de modo consciente ou inconsciente, às vezes a ponto
de esta também passar a perpetrar atos de violência contra outros. Ora, quão
comuns na vida real são os crimes e as situações de humilhação movidas por
raiva ruminada e anseio de vingança? Assim, a violência tende a se inserir e
itor

se perpetuar em ciclos irrefletidos que reforçam a porção irracional e impul-


a re

siva do ser humano, sobretudo quando impedido do trabalho da memória, do


pensamento e da reparação em companhia dos outros.
Refletindo sobre o impacto psíquico das ditaduras militares, o psicanalista
de grupos René Kaëss (2005) propôs a ideia de “catástrofe social”, espécie
par

de ataque abrupto ao sistema que, por meio da violência física e psicológica,


gera uma mutação na ordem vigente que altera a capacidade de memória e
Ed

pensamento das vítimas. O golpe psíquico pode afetar de tal maneira aqueles
que sobreviveram à violência (incluindo os entes próximos, vítimas indiretas),
que eles podem vir a se tornar apáticos ou mesmo futuros (cúmplices dos)
ão

carrascos. Um exemplo dado por Kaëss é o que se passou na ex-Iugoslávia,


quando torturadores exigiam a presença de parentes das vítimas como teste-
munhas da tortura.
s
ver

Não se trata somente de fazer, por meio do testemunho passivo, uma


segunda vítima identificada à primeira; trata-se também de separá-la da
primeira vítima, de torná-la cúmplice do carrasco. Ao final das contas,
operar uma colusão da vítima, da testemunha e do carrasco num mesmo ato

2 Recentemente, em rede nacional de televisão, foram exibidas práticas degradantes da condição humana
que ainda se adotam em instituições de atenção à saúde mental, após onze anos da vigência da Lei de
Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei nº 10.216/2001).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 559

em que se fundem num amálgama aflito todos os desejos de assassinato.


Assim é mantido o terror e tornado perene o ciclo diabólico que faz dos
sobreviventes os perseguidores-perseguidos dos mortos sem sepultura
(KAËSS, 2005, p. 169).

or
Ao discutir os efeitos daquilo que ele chama de “ruptura do continente
psíquico genealógico”, Benghozi reconhece que um trauma social dessa

od V
ordem atinge não só os sujeitos diretamente envolvidos, mas toda uma rede

aut
de vínculos e fluxos de transmissão entre o psiquismo individual, familiar e
comunitário. Nesse sentido, um evento coletivamente traumático tem poder

R
“simbolicida”, uma vez que ataca a própria capacidade de elaboração sim-
bólica de um grupo humano.

o
aC
O ataque ao humano e ao que humaniza
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Após a queda do ditador romeno Ceaucescu, que ficou no poder entre 1965
e 1989, Benghozi trabalhou na Romênia, em orfanatos que abrigavam meninos
visã
abandonados; segundo ele, eles eram tratados como se fossem dejetos sociais.
Não havia qualquer notícia do paradeiro dos pais, provavelmente perseguidos
e torturados pela violência política que assolou o país durante aqueles anos.
itor

Em 1994, trabalhou em Ruanda e Goma, na África, atuando como psi-


a re

quiatra (o único) junto a refugiados hutus. A partir dos efeitos do genocídio,


percebeu com clareza algo sobre o que, até então, não havia refletido: o fato
de que humanos não podem ser confundidos com coisas, nem com seres não
humanos. Ao ver um cachorro andando pela rua com um osso de fêmur –
encontrado num amontoado de cadáveres humanos empilhados como lixo
par

–, Benghozi percebeu que, igual ou pior do que a morte era a maneira como
Ed

(não) se lidava com ela: o abandono dos corpos a céu aberto fazia lembrar
que os vivos seguiam tratando essa gente como lixo. Mas humanos não são
coisas. Nesse momento, sentiu que faltava ali uma ritualização que pudesse
ão

marcar a diferença entre humanos e não humanos. Logo, além da violência


física, havia a violência psicológica e ética, cujo paradigma é a humilhação.
Vale destacar a diferença que Benghozi faz entre humilhação e vergonha.
s

Para ele, uma pessoa “tem” vergonha ao perceber que seus atos destoam de
ver

seus valores, cujas raízes nascem num solo comunitário. A transmissão da


vergonha pode também acontecer de modo inconsciente: na clínica, muitas
vezes se reconhece que um membro da família/grupo tornou-se um “porta-ver-
gonha” do grupo expressando (a frustração de) um “ideal de eu” sustentado
comunitariamente. Já no caso da humilhação, a pessoa “é” humilhada, de
maneira que a violência é o paradigma. Atacou-se não só o laço social, mas
aquilo que faz do indivíduo um membro da comunidade humana.
560

Para Benghozi, a humilhação ataca o laço entre os humanos também pelo


ataque aos rituais. A ausência do ritual de morte e a banalização da convivência
com os mortos, despejados como se fossem dejetos, levou-o a pensar que a
ritualização poderia ser um caminho para se restaurarem diferenciações fun-
damentais, quando a dignidade é atacada ou, como diz Gilberto Safra (2004),

or
quando o “ethos humano é fraturado”.

od V
Na perspectiva de Benghozi, a experiência da fé está ligada menos a não

aut
duvidar do que se vê e mais à experiência do sagrado que se faz presente em
determinados rituais (como, por exemplo, o da morte), na beleza da arte, assim

R
como nas referências sociocomunitárias cultivadas e transmitidas através das
gerações. No seu próprio caso, elas remetem sobretudo a elementos da cultura
judaica sefaradi. Para ele, o sagrado pode ser laico, desde que diga respeito

o
a tudo o que promove a dignidade humana, distinguindo o humano do não
aC
humano. Assim, o sagrado é atacado quando se dá ao ser humano o mesmo
estatuto que o de um animal, um vegetal ou um mineral.

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visã
A incestualidade como amálgama de indiferenciações

Para Benghozi, estamos expostos não apenas a golpes éticos, em que


vamos sendo confundidos com coisas e bichos, mas também ao ataque à dife-
itor

rença e à diferenciação, como temos visto. Como exemplos, cita o apagamento


a re

de diferenças relacionadas à nossa origem sexuada (a transgeneridade põe isso


em xeque), às gerações (creio que aqui ele se refira às crianças precocemente
adultizadas e erotizadas, concomitante à infantilização de adultos); às confusões
entre as esferas presencial e virtual e à diferença entre o que é fundamental e o
par

que é banal, ponto para o qual a mídia e as redes sociais concorrem fortemente.
Pensando nos efeitos do ataque à diferença e à diferenciação, Benghozi
Ed

percebe a sociedade atual como incestuosa. A palavra pode ser polêmica, talvez
porque a interdição ao incesto ainda guarde, simbolicamente, algo do pacto
civilizatório, pelo qual todos aceitam abdicar de alimentar desejos egoístas
ão

e violentos e direcioná-los para fins mais criativos, de modo que a razão e a


solidariedade possam triunfar sobre paixões impulsivas, egoístas e (auto)des-
trutivas, ameaçadoras da coesão grupal: “Não se trata do incesto no sentido do
s

ato incestuoso propriamente dito. Mas de uma incestualidade no sentido de uma


ver

confusão de diferenciações e talvez até mesmo da erotização dessa confusão”.3


Dentre os exemplos com que Benghozi ilustra essa incestualidade con-
temporânea, destaco a confusão que costuma haver entre paternidade/mater-
nidade e parentalidade, ou seja, entre o que é da ordem do biológico e o que
3 “Il ne s’agit pas de l’inceste au sens de l’agir incestueux. Mais incestualité au sens de la confusion des
différenciations. La confusion des différences. Et peut-être même l’érotisation de cette confusion” (Benghozi,
tradução nossa).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 561

é da ordem das construções afetivas e sociais. Para usar sua terminologia,


estaria havendo uma confusão entre os vínculos de filiação e afiliação, o que
fica claro na sua discussão sobre adoção e na “indústria da procriação”, como
diz Eric Laurent (2012). Mas ele acredita que práticas incestuosas povoem
a clínica também de outras maneiras. No que tange à sexualidade, o ataque

or
à diferença pode estar contribuindo para a produção social de estéticas e

od V
subjetividades andrógenas.

aut
Conta que, certa vez, numa entrevista que deu na Argentina, ao ser
questionado sobre o aumento da incidência de anorexia entre as jovens, ele
elaborou um raciocínio que partia do reconhecimento de uma indiferencia-

R
ção corporal – a magreza que nega as curvas próprias do corpo feminino –,
associando-a a um mecanismo de resistência corporal transgeracional, que

o
aludia a violências e perdas ancestrais transmitidas sem suficiente elabo-
aC
ração. No caso, era clara a associação que ele fazia com a ditadura militar
e o efeito de práticas como cerceamento, perseguição, tortura, assassinato,
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sequestro de bebês, desaparecimento de corpos e ocultamento de provas.


Logo, o corpo psíquico individual, grupal e comunitário são pensados de
visã
maneira imbricada: a anorexia (assim como outros sintomas aparentemente
individuais) podem manifestar-se – num tempo posterior e no corpo indi-
vidual – como efeitos de uma indiferenciação problemática que deve ter
itor

atravessado o corpo psíquico familiar/comunitário/nacional, dificultando


a re

reconhecimentos e elaborações psíquicas de acontecimentos violentos que


ficaram sem simbolização suficiente.
Benghozi conta que, na Bósnia Herzegovina, não houve apenas vio-
lação do corpo das mulheres prisioneiras e tortura do marido na presença
par

delas, o que já seria em si uma tragédia, mas também a impossibilidade


de elas interromperem gestações resultantes de sucessivos estrupros. Ele se
Ed

pergunta como poderiam essas mulheres dar à luz os filhos da violência e da


vergonha; como poderiam tais crianças se inscrever nos laços de filiação e
afiliação. Para ele, uma situação dessas configura um “genocídio identitário”:
ão

o corpo das mulheres metaforiza um prolongamento ou uma ressonância do


próprio corpo psíquico comunitário, que foi invadido, violado e destruído.
Analogamente, isso pode acontecer no ataque a cemitérios e lugares de culto
s

e memória de um povo.
ver

Felizmente, situações dessa gravidade não são as mais comuns no coti-


diano de sua clínica. Conquanto sejam exceções agora distantes, elas permi-
tem repensar o campo das práticas profissionais. Benghozi não afirma que
a incestualidade e a indiferenciação sejam fenômenos exclusivos do mundo
contemporâneo, mas o impressiona o fato de que isso aconteça de diversos
modos na atualidade, muitas vezes sem que cause nenhum estranhamento
nem suscite problematização.
562

Certa vez, Zygmunt Bauman (2011) disse que a pós-modernidade havia


começado numa tarde de quinta-feira do ano de 1980, quando, num programa
de auditório, colocou-se em debate o caso de uma mulher que não vinha conse-
guindo ter orgasmos. Desde então, parece ter crescido a indiferenciação entre
problemas da vida pública e da vida privada, com uma tremenda confusão

or
quanto aos espaços mais apropriados para seu enfrentamento.

od V
Na mídia, dá-se visibilidade a temas eleitos como “a bola da vez”, ainda

aut
que sejam triviais, desinteressantes ou completamente distorcidos. Em tempos
de velocidade da informação que prescinde de feitos e de história, a “sociedade

R
do espetáculo”4 permite que qualquer um se torne protagonista de um show
cuja finalidade nada mais é do que garantir audiência, lucro e poder aos que
dominam os meios de comunicação, ao custo de se atrofiar a reflexão crítica

o
do espectador. Reconheço outros exemplos dessa diluição de fronteiras entre
aC
fenômenos bastante diferentes, indiferenciação essa que confunde o importante
com o desimportante,5 consumo e consumismo, autoridade e autoritarismo,

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liberdade e abandono, humor e humilhação, justiça e vingança, anarquia e
visã
anomia etc. Como efeito, passamos a considerar naturais ou banais determi-
nados atos humanos que deveriam ser repudiados e impedidos, mas, ao invés
disso, vão sendo perpetuados.
itor

A justiça como articulação necessária à clínica da violência


a re

Mesmo diante de violências atrozes, perpetradas pelo Estado – em suas


ações e omissões, verdadeiras políticas de morte e processos de desenraiza-
mento, Benghozi aposta que o trabalho psicanalítico com famílias e grupos
par

seja capaz de promover “remalhagens psíquicas”, individuais e comunitárias,


na quais se fia um novo tecido psíquico individual e comunitário, que reco-
Ed

nhece os rasgos, mas segue tecendo, restaurando, fazendo outras amarrações.


Para ele, não existe o irrecuperável.
Benghozi acredita que, mesmo em casos assim, o trabalho psicanalítico
ão

grupal pode promover novos “laços afiliativos”, assim como a reconstrução


de uma “malhagem” psíquica restauradora dos danos que golpearam a digni-
dade e ameaçaram a integridade narcísica (identitária) dos sujeitos e grupos
s

sociais afetados. Por isso, ele acredita que, mesmo em casos de “desmalhagem
ver

catastrófica”, quando o continente psíquico grupal ou individual é dilacerado,


ainda é possível contar com o apoio de continentes recíprocos ou, como
diz ele, de um “apoio transcontinental”, aludindo à possibilidade de uma

4 Expressão do cineasta e teórico marxista Guy Debord (1931-1994).


5 No filme Para Roma com amor, de Woody Allen, esse aspecto é bastante explorado no sucesso insólito e
repentino que passa a ter o personagem de Roberto Benigni.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 563

oferta temporária, por parte da instituição, de um apoio organizador alterna-


tivo, visando à re-construção criativa de novos continentes psíquicos, por ele
chamados de “neocontinentes narrativos” e “míticos”, pois consistem num
conjunto de crenças e valores que permitem aos sujeitos reestruturarem um
senso de pertencimento e um reconhecimento recíproco referendado no grupo.

or
O filósofo camaronês Achille Mbembe (2016), ao propor a ideia de necro-

od V
política, permite-nos perceber que em seu cerne, está o racismo, e isso desde

aut
o Colonialismo, perdurando até hoje, na versão neoliberal do capitalismo.
Isso se revela tanto nas ditas políticas de austeridade, que defendem o Estado
mínimo – e deixam à deriva os que mais precisam dos serviços públicos, ou

R
seja, as pessoas negras e pobres –, como no extermínio assombroso desta
população. No Brasil de 2020, mesmo antes da pandemia, que só agravou

o
o cenário, a cada 23 minutos um jovem negro assassinado nas periferias
aC
pelas ditas “forças de segurança”. São 60 mil jovens negros executados por
ano. Muitos, sequer tem o corpo encontrado: vidas sequestradas, ausência
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de ritos funerários, luto impedido aos familiares. Mas... Como realizar uma
“remalhagem terapêutica”? Será ela suficiente para lidar com aquilo que os
visã
sobreviventes carregam do trauma, de maneira não simbolizada?
Para muitos, a distância do fato traumático pode aliviar, sobretudo se uma
punição puder recair sobre o agressor. Para outros, o tormento segue vivo e
itor

perturbador, mesmo que dele não se fale. As condições para a rememoração


a re

de um acontecimento violento, traumático e humilhante não estão dadas. Elas


requerem aproximações delicadas, respeitadoras do silêncio e do tempo de
cada um, até que seja possível compartilhar a dor, a culpa, as histórias e (des)
esperanças. É, muitas vezes, desta partilha, que se criam forças de resistência,
par

reinvenção, solidariedade e reconstrução da malhagem psíquica esburacada.


Benghozi (2005) pensa na prática clínica com grupos, apontando a impor-
Ed

tância de rituais e narrativas que fortaleçam a identidade grupal e habilitem o


grupo para tais enfrentamentos. Para construir um espaço grupal terapêutico,
diz ele, é preciso que o psicoterapeuta sustente, junto ao grupo, um trabalho
ão

sobre crenças, valores e ritualizações que retomem laços de pertencimento e


minimizem o efeito nocivo de eventuais rupturas na malha psicossocial do
grupo. O laço é ritualizado, e o ritual assegura a transmissão do mito fundador
s

do grupo de pertencimento.
ver

Mas o grupo terapêutico nem sempre é espaço suficiente para esse tipo
de elaboração. Não à toa, ele articula o registro psicoterápico grupal ao social
e jurídico, intervenção que chama de “metaquadro”. Benghozi sublinha a
função simbólica dos tribunais internacionais, sem os quais os crimes con-
tra a humanidade não seriam coletivamente inscritos na história, operando
simbolicamente como um repúdio público continuado, do qual o Estado se
envergonha e que não quer repetir.
564

Em situações de ditadura militar, ou mesmo em governos neoliberais


em algumas chamadas “democracias” (restritas a bolhas), a realidade dos
fatos incomoda as forças qu estão no poder. Diante do aumento da violência,
da desigualdade social, dos efeitos desastrosos das políticas públicas, – ou
da falta delas –, o dito quarto poder entra em cena: as mídias e redes sociais

or
são infestadas de notícias que suavizam, acobertam, distorcem ou mesmo

od V
inventam fatos. Questionar a história “oficial” e resgatar a verdadeira versão

aut
dos fatos é fundamental. Por doloroso que seja o trabalho da memória e do
horror, ele é necessário, e um importante aspecto mobilizador também no
campo da clínica: dignidades e potências são recobradas quando injustiças e

R
violências cometidas pelo Estado são reconhecidas, quando vítimas e algozes
de outrora são reposicionados, esterótipos desmanchados e acontecimentos

o
ressignificados. E se há um pedido público de desculpas, isso pode ter efeito
aC
terapêutico para indivíduos e grupos. Só quando outras versões invisibilizadas
e silenciadas da história emergem, é que se pode reconhecer as opressões,

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interditar a violência, vislumbrar um futuro com dignidade e justiça. Há aqui
uma articulação entre o aspecto singular da clínica e sua dimensão política: o
visã
pertencimento comunitário que, em algum momento, precisa ser reafirmado.

A banalização do mal e das políticas de morte


itor
a re

A crueldade que atribuímos a ditadores e seus colaboradores, pelos atos


de sequestro, tortura, prisão e assassinato, faz pensar que a violência é parte
do que chamamos, às vezes com uma visão romanceada, de humanidade.
Com a filósofa Hannah Arendt (1999), vimos que o mal se banaliza (e assim
se torna imperceptível), uma vez que é perpetrado por pessoas comuns, tais
par

como hoje os autodenominados “cidadãos de bem”, exercendo suas tarefas


cotidianas, porque aprendem que determinadas atividades, ainda que à prin-
Ed

cípio, incômodas do ponto de vista ético, têm de ser realizadas, essa é a regra
do jogo, assim as autoridades recomendam, então deve estar correto.
Nesse sentido, é oportuno lembrar um experimento descrito por Bosi (2004,
ão

p. 29), acontecido no Laboratório de Interação da Universidade de Yale na


década de 1960: pessoas de várias profissões, inclusive de pendor humanitário,
s

transformavam-se em torturadoras quando eram instruídas pelo pesquisador a


ver

testar os efeitos da punição sobre o aprendizado de um sujeito desconhecido.


Esta experiência aconteceu na Universidade de Yale, em 1962, e foi coordenada
pelo psicólogo social Stanley Milgram6. Tinha, como objetivo, responder à
questão sobre como os participantes tendiam a obedecer às autoridades, mesmo
quando as ordens contradissessem o bom-senso individual. Esse objetivo não
era relatado aos voluntários; ao invés disso, o que lhes era dito é que estavam

6 Há um filme intitulado “O experimento de Milgram” (2015) baseado nesse experimento.


FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 565

ali para testarem a capacidade de aprendizagem de um outro sujeito, por meio


de um método pedagógico baseado em punir os erros. A cada erro cometido
pelo sujeito supostamente testado, o voluntário devia mover uma alavanca no
painel, disparando-lhe um choque elétrico. O que não era dito era que a suposta
“vítima” dos choques estava apenas simulando dor e não recebia choque algum

or
(era cúmplice do pesquisador). “Cada vez que o voluntário hesitava, o cientista

od V
o exortava a continuar. A princípio, os choques causavam gemidos que iam num

aut
crescendo até gritos de agonia e afinal o silêncio. 62,5% dos ‘experimentadores’
vão até a última voltagem. [...] Os voluntários foram esclarecidos depois que o
que se estava avaliando era a possibilidade de infligir tortura num desconhecido

R
em nome da ciência” (BOSI, 2003, p. 129).
Bosi conclui que, ao se examinar a história e reconhecer a ocorrência de

o
barbáries (como a escravidão, o nazismo, as ditaduras militares latino-america-
aC
nas e o próprio colonialismo7), fica evidente que a obediência já causou males
maiores que a rebeldia, e que pessoas comuns, cumprindo suas tarefas ordi-
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nárias, podem se tornar agentes de um processo atroz de aniquilação, por não


terem força ou recursos psíquicos para resistir e questionar a ordem vigente.
visã
Ao contrário, prevalecem comportamentos conformistas que, na maioria das
vezes, se justificam ora pelo apoio do grupo, ora pela responsabilização de
outrem (por exemplo, o superior ou “o sistema”), ora pela desqualificação da
itor

vítima, que passa a ser concebida como uma ameaça à coletividade.


Ao comentar a obra de Marcel Mauss, o antropólogo Claude Levy Strauss
a re

(2003) afirma que não há sociedade capaz de satisfazer a todos os seus mem-
bros. Assim, podemos pensar que, mesmo em situações não catastróficas,
sempre haverá contradições e lacunas sociais que não conseguem abarcar
todas as nuances do humano, deflagrando manifestações individuais e/ou
par

grupais agressivas que não necessariamente são destrutivas: podem ser atos
de rebeldia e excentricidade criativa, que enriquecem a cultura. Contudo, em
Ed

regimes totalitários e violentos, o tratamento da diferença é cortante e contu-


maz: o diferente é desqualificado, banido, tratado como inimigo.
Em 1955, Salomon Asch já demonstrava experimentalmente a poderosa
ão

influência que a pressão social pode exercer sobre os indivíduos. Sua pesquisa
conclui que 36,8% dos sujeitos pesquisados – universitários que se ofereciam
como voluntários de um experimento em grupo – tendia a se posicionar em
s

concordância com a maioria, mesmo quando estava visivelmente equivocada.


ver

Asch demonstra que, em situações grupais, os indivíduos podem ignorar os


dados da própria percepção, agindo de maneira a não destoar do padrão cole-
tivo de comportamento (ASCH, 1955). No Brasil, a partir de 2016, vimos

7 Como já nos alertou Aimé Cèsaire, a perplexidade da Europa com o nazismo veio da percepção de que o
assassinato e a tortura como práticas políticas poderiam ser repetidas em território europeu, contra brancos,
e não apenas nos territórios colonizados, contra os povos “não-civilizados” (ALMEIDA, 2019, p. 117).
566

o quanto as investidas midiáticas continuadas, semeadoras de ódio contra o


partido da presidente eleita, colaboraram para a sua deposição, independen-
temente de comprovação de crime de responsabilidade, criando um senso
comum de ódio capaz de eleger “qualquer coisa” para se evitar o tal partido
maldito: até mesmo pessoas estudadas endossaram a ascensão de um projeto

or
antidemocrático e neofascista, conformando-se à tendência dominante.

od V
Essas considerações remetem à necessidade de um terapeuta de grupos

aut
estar atento aos poderosos efeitos da pressão social, assim como à tarefa
de estimular expressões autênticas e posicionamentos autônomos por parte
dos participantes.

R
Pandemônio e pandemia: crises que retroalimentam a necropolítica

o
no Brasil
aC
Como o presente capítulo versa sobre situações catastróficas e aposta na

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transdisciplinaridade como modo de lhes fazer frente, não poderíamos deixar de
visã
comentar a atual conjuntura: estamos há quatro meses do primeiro caso de covid-
19 no Brasil, batendo a taxa de quase 60 mil mortos e 1.323.069 contaminados.
De volta ao mapa da fome, o Brasil é um país onde fazer quarentena é privilégio
de uma minoria, assim como cumprir orientações básicas da OMS como lavar
itor

as mãos várias vezes ao dia, durante 30 segundos. Ora, dezenas de milhões de


a re

famílias brasileiras sequer têm água encanada em suas residências nem sanea-
mento básico em seu território. O número de desempregados e de trabalhadores
informais em condições precarizadas cresceu enormemente. Populações inteiras
vivem em cubículos, cortiços e favelas, onde não há como uma pessoa – con-
par

taminada ou não- ficar isolada das outras nem como fingir que a violência de
estado não existe. Nas unidades de atendimento do Sistema Único de Saúde,
Ed

faltam equipamentos de proteção individual e medicações. Trabalhadores estão


morrendo, as UTI(s) estão operando perto da capacidade máxima, a doença
está se interiorizando pelo Brasil, atingindo grupos quilombolas, populações
ão

ribeirinhas e até povos indígenas isolados. Não há indícios de que estejamos


chegando ao pico da curva de casos, apesar disso, assistimos, estarrecidos, a
flexibilização do isolamento social por parte de governos de diferentes estados
s

brasileiros. Mais tragédia anunciada. Pessoas negras e pobres estão morrendo


ver

três vezes mais que pessoas brancas de classe média e alta. Políticas de enfre-
tamento à pandemia – no campo da saúde, assistência social, educação, cultura,
trabalho, meio ambiente etc. – simplesmente inexistem, ou então, operam na
dinâmica do “passar a boiada” para projetos privatistas e predatórios assom-
brosos. A mídia se ocupa dos escândalos relacionados à família do presidente
eleito à base da disseminação de mentiras e robôs. A renda básica emergen-
cial atrasa, é insuficiente e não está garantida. Muitas pessoas, abandonadas à
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 567

própria sorte pelo Estado, estão passando fome e arriscando suas vidas e a de
seus familiares, em trabalhos informais nas ruas. Muitos acreditam no álcool
em gel e nas máscaras, como se fossem escudos absolutamente protetores, o
que não ocorre. Talvez seja um jeito de suportar a realidade. Constatamos duas
graves ausências propositais por parte do Estado: a de uma gestão coordenada

or
da crise para combater a pandemia, e a da transparência nos dados.

od V
Enquanto a crise da pandemia se agrava, aprofundam-se outras crises, ante-

aut
riores a ela, como a grilagem de terras amazônicas, o desmatamento, o contágio
dos povos da floresta, a violência doméstica machista e LGBTTQIa+fóbica,
as execuções policiais nos bairros periféricos onde a população é predominan-

R
temente negra e pobre, a precarização do trabalho remoto, a impunidade etc.
A política econômica ultra neoliberal do atual governo demonstra ser

o
sua prioridade salvar os bancos e não, os cidadãos. Que se virem por si mes-
aC
mos, os trabalhadores informais, os pequenos e médios empresários! Que se
virem os que têm que buscar seu sustento saindo às ruas e ampliando o risco
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de contágio e morte para si, para os seus e para outros tantos desconhecidos.
No Brasil, ouvimos discursos que minimizam o número chocante de
visã
mortes por covid-19, propositalmente subnotificadas. Por que será que a
covid-19 mata três vezes mais pessoas negras e pobres do que pessoas bran-
cas? Nas fissuras da estrutura racista do capitalismo, especialmente em sua
itor

versão neoliberal, a necropolítica encontrou ressonância com a ideia de que


a re

a economia vale mais que a vida. “A crise da pandemia é desdobramento da


crise do pandemônio”, afirma Paulo Lima, o Galo, líder dos entregadores
antifascistas que ganhou espaço nas lives e mídias independentes nos últi-
mos meses. É estarrecedor constatar que a vida e o sofrimentos de milhares
de pessoas poderiam ser evitados, se houvesse uma política coordenada de
par

proteção à vida e à saúde em vários níveis.


Ed

A saúde tecida no diálogo e na memória compartilhada

Quando estive com Pierre Benghozi, em 2011, perguntei-lhe: tendo ele


ão

testemunhado de perto realidades tão duras e atrozes, como ainda mantinha


algum otimismo? E ele me disse:
s
ver

Eu sou bastante otimista. Acho que minha conceitualização é de um otimismo


extraordinário, pois permite teorizar até sobre o que parece sem saída, ou
seja, a ideia é de que não existe o irrecuperável. [...] Sempre há possibili-
dades plásticas de transformação. Então, minha teoria permite pensar que
a malhagem não é apenas um eixo de laço, mas constrói uma malha. [...] E
portanto, a ideia de malhagem é de que sempre é possível reconstruí-la. Ali
onde há uma falha no [laço] filiativo, é sempre possível reconstruir a malha
por meio do laço afiliativo. É como consertar meias: há sempre um conserto
568

possível. Às vezes, estamos diante de um estrago tamanho, que tudo parece


rasgado; é o que eu chamo de “desmalhagem catastrófica”. Isso quer dizer
que, efetivamente, nesse momento, não se trata apenas de recobrir um buraco,
mas de realizar uma operação capaz de “retecer” um suporte por meio de
outros continentes que permitirão assegurar um continente alternativo durante

or
o período em que a reconstrução acontece. Há diferentes possibilidades de
expressão da remalhagem: elas compreendem as remalhagens, os apoios

od V
transcontinentes – essa é a teoria dos continentes recíprocos. Portanto, desse

aut
ponto de vista, podem ocorrer transformações nos continentes, e, uma vez
que elas acontecem, permitem novas recuperações. Quando digo recupera-

R
ção, não estou dizendo que se trata de reconstruir a mesma coisa que havia
antes, mas de alternativas criativas a outros neocontinentes. Por exemplo,

o
a terapia é o lugar que podem ocupar, entre outros, esses neocontinentes
que representam os neocontinentes narrativos, os neocontinentes míticos,
aC
as novas organizações. [...] E o trabalho de remalhagem, como na culinária,
permite, justamente, que se reconstruam as condições necessárias à transfor-

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mação. É aí que me vejo otimista, ainda que eu não tenha o controle. Mas
tenho confiança de que ela seja possível. É essa confiança que faz com que
visã
eu tenha sempre confiança no trabalho terapêutico e, em particular, que eu
tenha confiança nas famílias. Se não tivesse confiança nas famílias, eu assu-
miria seu lugar, decidiria por elas. Eu cuidaria delas como gostaria que elas
itor

se cuidassem. É porque tenho confiança que sou otimista nisso que eu vou
chamar de “competências” e que me permite estar mais presente por meio de
a re

um acompanhamento de apoio à possibilidade de reconstruções alternativas


(BENGHOZI apud GOLDSTEIN, 2013).

Considerando o que foi dito até aqui, poderíamos nos perguntar, em um


par

mundo de tantas injustiças, fraturas éticas e de uma severa sobreposição de


crises (sanitária, política, econômica, climática, ética etc.), como pensar em
Ed

produzir saúde individual e comunitária? Como têm conseguido fazer o luto,


as mães de meninos mortos (quando não desaparecidos) pelo braço armado do
Estado? Passou da hora de ouvirmos suas histórias de luto e luta. Como ficará
ão

o luto sem despedida, sem ritual e sem abraço, dos inúmeros parentes das
vítimas fatais, que ainda podem estar carregando consigo uma culpa terrível?
Em meio a tantas catástrofes, grupos de profissionais e movimentos de
s

organização civil têm se articulado por meio de ações sociais de auxílio (com
ver

alimentação, higiene, transporte, atendimento em saúde, apoio psicossocial,


amparo espiritual etc.). São pessoas que praticam uma solidariedade ativa. Vale
destacar o trabalho da Rede de Apoio às Famílias de Vítimas de Covid-19,
composta por profissionais de diversas áreas – historiadores, psicólogos, psi-
canalistas, assistentes sociais, arte-educadores, jornalistas, professores, comu-
nicadores, designers ativistas etc. – que desenvolvem ações fundamentadas
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 569

na importância do direito à memória e às expressões de luto. Lutar por esse


direito, que não é um direito imediatamente percebido, sobretudo em meio
a tantos direitos sequestrados, é tarefa fundamental nesses tempos, especial-
mente se quisermos vislumbrar um futuro melhor para as próximas gerações,
e um projeto civilizatório para a humanidade.

or
Se emprestarmos de Gonçalves Filho a formulação de sua pequena lista

od V
de experiências eminentemente humanas e humanizantes, poderíamos consi-

aut
derá-las como pistas ou expressões possíveis de saúde psicossocial.

R
Brincar e rir. Apreciar a aparência das coisas, zelar por certas coisas não
porque sejam necessárias ou úteis, mas porque são bonitas. Trabalhar não
apenas como quem obtém alimentos ou utensílios, mas também como

o
quem faz cultura. Agir e falar. A cidadania. A percepção singular, a per-
aC
cepção de pessoa, e não a percepção de um tipo ou exemplar da espécie
(GONÇALVES FILHO, 2008, p. 44).
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A maturação de tais experiências supõe a presença do outro, espécie de


visã
fiador ou transmissor de humanidade aos que dela foram destituídos.

Há certas experiências que não chegamos a alcançar senão em companhia de


itor

gente. Antropólogos, psicanalistas ou psicólogos sociais não se cansam de


frisar certas experiências para as quais nascemos mais ou menos preparados,
a re

mas que, fora da companhia dos outros, fora sobretudo de uma comunidade
com os outros, não germinam (GONÇALVES FILHO, 2008, p. 44).

Se a Psicologia e a psicanálise não considerarem a crise da pandemia


par

no interior de crises estruturais mais amplas, que requerem conhecimento


histórico, sócio-antropológico, leituras racializadas e interseccionais (dos
Ed

discursos e dispositivos de poder e resistência), elas correm o risco de produzir


compreensões restritas e despolitizadas, que passam ao largo da transdiscipli-
naridade e do compromisso ético-político com a superação das desigualdades
ão

sociais. Ouçamos as famílias enlutadas; arrisquemos com elas a remalhar


continentes psíquicos individuais e comunitários esgarçados ou rompidos,
apostando na potência do encontro e do diálogo. Que deles possam emergir
s

experiências “eminentemente humanas e humanizantes”. Partilhemos memó-


ver

rias, risos, choros, canções e poesia. Façamos arte, ciência, literatura, rodas,
ritos e botecos virtuais. Questionemos o poder dos senhores do ódio que
intencionalmente se omitem. Que saibamos re-tecer um senso de comunidade
e aprender como fazem as pessoas que passam do luto à luta. Caso contrário,
corremos o risco de falar somente para, e do lugar de uma branquitude que
se supõe sábia e engajada, mas ignora sua herança de privilégios e a relação
deles com as feridas abertas do Brasil profundo.
570

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Ed
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par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
SOBRE O SUICÍDIO:
da literatura aos profissionais do

or
CAPS II em Santarém-Pará

od V
aut
Kássya Christinna Oliveira Rodrigues

R
Este artigo emerge de estudo realizado com profissionais que integram
uma equipe multiprofissional do CAPS II em Santarém no estado do Pará e

o
teve como centralidade a situação de morrência1, morte autoinfligida e ou o
aC
suicídio vividos pelo ser humano.
Apresenta como problemática de investigação: como profissionais que
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atuam em uma equipe multiprofissional do CAPS II representam socialmente o


visã
suicídio? Entre os objetivos, propõe-se a investigar o campo de representações
sociais produzidas sobre o suicídio por profissionais que atuam em uma equipe
multiprofissional do CAPS II em Santarém-Pará e a levantar um referencial
teórico que permita a compreensão da produção de representações sociais
itor

sobre o suicídio numa perspectiva histórica com suas digressões.


a re

Trata-se de uma pesquisa de campo descritiva, qualitativa que se apro-


priou da teoria das Representações Sociais para problematizar os dados levan-
tados em campo de pesquisa. A abordagem qualitativa se justifica por se
considerar que a complexidade da temática em evidência exige do pesquisador
par

um referencial teórico-metodológico que supere “metodologias dedutivas


tradicionais” (FLICK, 2004, p. 18) e que coloque o profissional psicólogo
Ed

em um lugar que possa compreender as nuances que permeiam o campo das


representações sociais quando se discute a temática do suicídio.
Integram, como informantes deste estudo, sete profissionais, entre homens
ão

e mulheres que têm como tempo mínimo um ano de experiência na saúde men-
tal. Os profissionais apresentam diferentes formações na área da saúde, com-
pondo uma equipe multiprofissional no CAPS II, constituída por psicólogo,
s

terapeuta ocupacional, assistente social, farmacêutica, médico, enfermeira.


ver

A realização da pesquisa considerou as questões éticas em pesquisa que


envolve seres humanos – Resolução 466/2012 e Resolução 510/2016; elabo-
rou-se um termo de consentimento livre e esclarecido contendo tema, breve

1 Neste estudo apropria-se do termo “processo de morrência”, com a conotação da complexidade que envolve
o suicídio. O termo é utilizado por Fukumitsu que o significa como “um definhar existencial resultante da
complexidade de processos autodestrutivos em que o suicídio representa seu ápice. Disponível em https://
vyaestelar.com.br/processo-de-morrencia-voce-sabe-o-que-e/
574

conteúdo, objetivos da pesquisa para posterior adesão de seus informantes,


que são identificados com nomes fictícios sugeridos por eles.
Entre os teóricos que contribuíram com reflexões que fundamentaram
este estudo destacam-se Hillman (2009), Marquetti (2011), Buber (2004),
Moscovici (2015), Cruvinel (2008), Bauman (2011), Hycner (1995) que dis-

or
cutem sobre as Representações Sociais e o suicídio.

od V
Suicídio, palavra que evoca sentimentos, sensações e campo de repre-

aut
sentações sociais bastante diversos na contemporaneidade, mas produzido
ao longo da história da humanidade. Tema que inquieta pessoas comuns,
intelectuais, filósofos, religiosos, especialmente os de matrizes cristã, é ainda

R
timidamente tratado em espaços formativos iniciais da Psicologia, situação
que justifica pesquisas que aprofundem este fenômeno.

o
A temática do suicídio é regada a preconceitos de múltiplas ordens cir-
aC
cunscritas e materializadas em diferentes representações sociais produzidas
e impressas no imaginário de pessoas e/ou grupos humanos que compõem

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diferentes contextos históricos. Os informantes deste estudo expressam múl-
tiplas representações sociais sobre o suicídio a partir de campo discursivo e
visã
imagético. Estas representações se reencontram com as elaboradas em dis-
tintos contextos históricos, a exemplo da Idade Média, Moderna e Pós-Mo-
derna (contemporânea).
itor

Este texto está organizado em três seções: a primeira dialoga com a


a re

teoria das representações sociais; a segunda apresenta a produção de repre-


sentações sociais sobre o suicídio inscrito numa perspectiva histórica, des-
tacando-se um recorte temporal da idade média à contemporaneidade, e, por
fim, apresenta e dialoga sobre algumas representações sociais produzidas
par

por profissionais que compõem uma equipe multiprofissional do CAPS II,


no município de Santarém-PA.
Ed

A teoria das Representações Sociais


ão

Moscovici (2015) discorre que as representações sociais precisam ser


vistas como uma maneira específica de “compreender e comunicar o que nós
já sabemos” (p. 46), mas há uma dinâmica peculiar no momento da produção
s

dos conceitos a serem compreendidos e comunicados.


ver

Dessa forma, o conceito é produzido com o objetivo de “abstrair sentido


do mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo
de uma forma significativa” (MOSCOVICI, 2015, p. 46) essa reprodução do
mundo de forma significativa está imbuída de interesse daquilo que se quer
transmitir, assim a “ordem” e “percepção” acabam por materializar condições
de subjetividade que são significadas como exclusão, ao mesmo tempo em
que são tornadas verdadeiras no cotidiano.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 575

O autor confirma ser a representação:

fundamentalmente um sistema de classificação e de denotação, de alocação


e de categorias e nomes. A neutralidade é proibida, pela lógica mesma do
sistema, onde cada objeto e ser deve possuir um valor positivo ou negativo e

or
assumir um determinado lugar em uma clara escala hierárquica (2015, p. 62).

od V
Nesse “jogo” das representações há que se nomear e classificar aspectos

aut
como o afetivo, simbólico em que são exigidos posicionamentos intencionais
daqueles que mantêm o sistema, pois “a representação social é apenas uma

R
dentre outras variedades de construtos do senso comum, juntamente com
ideologias, atitudes, nexus, imagens sociais, dentre outros” (WACHELKE;

o
CAMARGO, 2007, p. 380). Não há espaço para neutralidades, assim, cate-
aC
gorizações polarizadas, como bom-mal, feio-bonito, louco-são, ser-não ser,
vida-morte, entre outras, emergem.
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Moscovici (2015) assinala que o “propósito de todas as representações


é tornar algo não familiar, ou a própria não familiaridade, familiar” (p. 20),
visã
Oliveira (2004) considera que “a representação é construída nas diversas
relações de comunicações sociais e de poder, nas quais as diferenças são
estabelecidas” (p. 99) e Jodelet destaca que a representação “é uma forma de
itor

conhecimento prático [savoir] conectando um sujeito a um objeto” (JODELET


a re

apud MOSCOVICI, 2015, p. 21).


As assertivas anunciadas pelos autores assinalam pontos de conver-
gência quando trazem nas suas definições sobre a representação: 1) “tornar
algo familiar”; 2) “estabelecimento de diferenças”, e; 3) a “conexão de um
sujeito a um objeto”. Têm-se nas três afirmativas a representação como campo
par

fecundo de produção, no cotidiano, de subjetividades que excluem pessoa


Ed

e/ou grupos humanos da convivência da sociedade, mesmo que estes estejam


presentes nela.
No exercício de produção dessas subjetividades, a pessoa e/ou grupos
ão

humanos são nomeados, classificados, rotulados com adjetivos que não lhe
conferem capacidades para existir como ser humano que tem potencialida-
des. Essa pessoa ou grupo humano é colocado em lugares em que sejam
s

socialmente lidos como seres de incapacidade, como o outro não familiar ao


ver

contexto da sociedade mais ampla. O outro com o sentido adjetivado, o outro


coisificado, o outro não ser.
A Representação Social corrobora com a “produção” da subjetividade
do indivíduo ao longo do seu processo de socialização, diz respeito a “for-
mas de conhecimento compartilhado, elaborado socialmente, que permite ao
indivíduo compreender e explicar a realidade, guiar comportamentos e ações
e justificar tomadas de posição” (NOVA, 2014, p. 2).
576

Ancoragem e Objetivação são duas categorias teóricas fundamentais


para se compreender a Teoria da Representação Social. Ambas as categorias
estão intimamente vinculadas ao conceito de familiarização: “é sempre um
processo construtivo de ancoragem e objetivação” em que a pessoa e/ou grupo
é representada como “não familiar” ocupa um lugar no mundo “familiar”

or
(MOSCOVICI, 2015, p. 20).

od V
Moscovici (2015) assinala que ancorar “é, pois, classificar e dar nome

aut
a alguma coisa” (p. 61), já a objetivação pretende tornar familiar a não fami-
liaridade para então unir “a ideia de não familiaridade com a de realidade,

R
torna-se verdadeira essência da realidade” (p. 71). Desse modo, nomeiam-se
o ser e/ou grupo ao mesmo tempo em que são colocados numa realidade de
exclusão. Realidade, agora, tomada como a essencial de suas existências.

o
As produções das subjetividades humanas das pessoas que sofrem e
aC
experimentam processos de morrência, da morte autoinflingida ou o suicídio
são ilustradas neste texto a partir das representações sociais que ancoram e

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objetivam as suas existências.
visã
Breve digressão sobre a morte voluntária/suicídio no ocidente

A morte voluntária na Idade Média


itor
a re

Cruvinel (2008) discorre que na idade média ocidental tem-se uma cons-
trução ambígua sobre suicídio, tanto no que se refere à percepção da Igreja
quanto da justiça civil. O fenômeno apresenta diferentes representações, de
acordo com quem o pratica.
par

Caso a pessoa que cometesse a “morte voluntária” fosse um artesão


ou um camponês, que naquele contexto histórico, afogava-se, enforcava-se
Ed

(entre outras formas de morte) para escapar de situações de dura miséria,


esta morte era considerada uma morte egoísta e covarde que deveria ser for-
temente reprimida com a mutilação e a exposição dos corpos nus em praça
ão

pública, sendo arrastados por animais até chegarem à fogueira para serem
queimados. A esses “suicidas” eram vetados rituais funerários, seus bens
s

eram confiscados e não tinham direito ao sepultamento em terras sagradas


ver

(CRUVINEL, 2008). Em contrapartida, o clérigo e o nobre que se “permitia”


morrer em duelos, em guerras ou por martírios, cometiam o ato por questões
consideradas “honrosas”.
As compreensões sobre o suicídio descritas acima apontam, de um lado,
para representações vinculadas ao “desespero” e a uma persuasão “diabólica”,
quando cometido por um ser humano comum, bem como ação heroica em se
tratando de um componente da nobreza ou do clero.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 577

Neste contexto, Foucault (1980) relata que:

O poder exercia-se sobre o direito do confisco, mecanismo de subtração,


direito de se apropriar de uma parte das riquezas: extorsão de produtos,
bens, serviços, de trabalho e de sangue imposta aos súditos. O poder era,

or
antes de tudo, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e,
finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida

od V
para suprimi-la (p. 129).

aut
Diante da reflexão do autor, identifica-se, além da condenação moral e

R
religiosa tecida sobre a pessoa que cometia a morte autoinfligida, que havia
ainda sanções punitivas para este, mesmo depois de morto, com a subtração

o
de seus bens que ficavam sob o controle do Estado ou da Igreja.
aC
A condenação radical do suicídio é inaugurada por Santo Agostinho em
seu tratado “A cidade de Deus” obra que marca a posição da igreja a partir
de uma doutrina rigorosa.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
Nós dizemos, declaramos e confirmamos de qualquer forma que ninguém
tem o direito de espontaneamente se entregar à morte sob o pretexto de
escapar aos tormentos passageiros, sob pena de mergulhar nos tormentos
eternos; ninguém tem o direito de se matar pelo pecado de outrem; isso
itor

seria cometer um pecado mais grave, por que a falta de um outro não seria
a re

aliviada; ninguém tem o direito de se matar por faltas passadas, porque


são sobretudo os que pecaram que mais necessidade têm na vida para nela
fazerem a sua penitência e curar-se; ninguém tem o direito de se matar na
esperança de uma vida melhor imaginada depois da morte, porque os que
se mostram culpados da sua própria morte não terão acesso a essa vida
par

melhor (MINOIS, 1998 apud CRUVINEL, 2008, p. 85).


Ed

A posição de Agostinho representa um marco importante para a Igreja


Católica Medieval que reafirma o mandamento “não matarás” e interdita
o suicídio compreendendo que a vida representa um dom divino, cabendo
ão

apenas a Deus tirá-la.


Entre 1266 e 1273, São Tomás de Aquino, na escrita da Summa Theologica,
reafirma as ideias de Santo Agostinho de interdição do suicídio, na proibição do
s

sepultamento de suicidas em terras sagradas e acrescenta em seu discurso que


ver

a prática do suicídio prejudica a comunidade, visto que o ser humano compõe


a sociedade, desse modo, realiza-se a introdução (baseado em Aristóteles) do
princípio jurídico-social que o suicídio é um ato contra o Estado.
Cruvinel (2008) ressalta ainda que:

Todos os casos de suicídio nesta época da Idade Média são atribuídos


a uma causa precisa. Morrer simplesmente por desgosto, tristeza ou
578

melancolia era visto como loucura, sintoma de desequilíbrio mental.


Começa-se a “fabricação” da loucura como possibilidade de escapar às
sanções instituídas aos suicidas e familiares (p. 87).

Até o momento, percebe-se que, na idade média, há uma crescente cons-

or
trução de representações sociais sobre o suicídio que ganham variadas conota-

od V
ções, a saber: “ação diabólica”, “atos heroicos”, “loucura”; e estas classificam

aut
o fenômeno no campo de marginalidade, especialmente quando se trata do
ato cometido por pessoas comuns.
Observa-se, ainda, que o Estado se apropria do discurso para ancorar suas

R
representações sobre o suicídio e o coloca no cotidiano como um discurso
verdadeiro e irrefutável.

o
aC
A morte voluntária na Idade Moderna Ocidental

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No final da idade média, o desgaste da estrutura feudal dá lugar a
uma nova ordem social, econômica, política e cultural que marcam a Idade
visã
Moderna, a qual apresenta uma racionalidade científica como uma de suas
sustentações. Santos (2006) discorre ser “um modelo global a nova raciona-
lidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o
itor

caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem em


a re

seus princípios epistemológicos” (p. 21).


Na Idade Moderna, vivem-se os movimentos Renascentista e Romântico,
a revolução científica, revolução industrial, e um forte movimento filosófico
discutindo a temática do suicídio, que, de um lado traz em seu bojo questões
existenciais do ser humano, e, de outro, a fabricação da loucura.
par

No Renascimento, a morte voluntária é tematizada com significativa


Ed

expansão no movimento literário, especialmente no teatro, todavia esta con-


cepção de morte estará associada aos suicídios heroicos praticados na antigui-
dade greco-romana, portanto dissociados da concepção moral cristã medieval.
ão

Já no Romantismo, realizava-se um culto a morte, tendo na figura do


poeta a expressão da dor e do sofrimento. Esta escola literária marca a difu-
são da temática do suicídio entre os jovens da classe média que, ao ter como
s

inacessível sua amada, não aguentavam o sofrimento e colocavam fim à sua


ver

própria vida, a exemplo da obra “Os Sofrimentos do Jovem Werther!” de


Goeth (CRUVINEL, 2008), texto que, ao ser lido, desencadeou uma série de
suicídios entre os jovens e adolescentes daquela época.
Além do movimento literário, há um filosófico que reflete sobre a morte
voluntária, tendo em suas obras o suicídio como temática central, todavia há que
se considerar que a problematização sobre este fenômeno não implicava a apologia
do ato, mas em reflexões sobre a vida e a morte, compreendendo esta díade como
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 579

paradoxos que não se excluem. Cruvinel (2008) discorre ser a primeira vez na
história do ocidente que o discurso do suicídio evade do “restrito circuito ecle-
siástico e jurídico” (p.89) e passa para um debate mais amplo, o dos intelectuais.
A novidade destes discursos filosóficos que começaram a circular entre
uma elite intelectual não era a defesa ou a apologia ao suicídio, mas alinhar

or
argumentos favoráveis e contrários ao suicídio, delegando ao indivíduo o

od V
direito de escolher entre a vida e a morte (CRUVINEL, 2008, p. 89).

aut
Há que se considerar que, mesmo neste período histórico, o suicídio
ainda era concebido como crime, interdito e o Estado mantinha sua rigidez
na aplicação de sansões punitivas, para quem o cometesse. Cruvinel (2008)

R
destaca como exemplo da intolerância eclesiástica a publicação do livro “A
ilha da utopia” de Thomas More (1515):

o
aC
Em que descreve a vida dos habitantes de uma ilha ideal – a Ilha da Utopia.
Ele sugere o direito ao suicídio no caso de doença dolorosa e incurável.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O indivíduo que se encontrasse nestas condições poderia dispor de sua


própria vida com devida autorização dos padres e do Senado. O suicídio
visã
aparece como uma possibilidade utópica para abreviar os sofrimentos da
vida. O autor, inspirando-se em filósofos da Antiguidade, traz à tona os
discursos sobre ética e eutanásia (CRUVINEL, 2008, p. 89-90).
itor

A autora relata que More vivia em um reino cristão e, em 1534, período


a re

que estava preso em uma torre de Londres, escreveu outro livro “A Dialogue
of Confort”, no qual recua de suas ideias iniciais sobre o suicídio registradas
no livro da “Ilha de Utopia”. Esta situação marca a presença castradora e puni-
tiva do Estado e da Igreja quanto à discussão sobre o suicídio neste período.
par

Quando se pensa em igreja, neste contexto, há que se considerar o movi-


mento protestante luterano e calvinista que acentuam ainda mais uma percep-
Ed

ção de negação sobre a prática do suicídio, valorizando nela “o papel do diabo


na decisão do sujeito colocar fim à própria vida” (CRUVINEL, 2008, p. 90).
Em 1610, John Donne, um capelão anglicano e doutor em teologia ousa
ão

romper bruscamente com a concepção que o Estado e a igreja apresentavam


sobre o suicídio. Em sua obra “Biathanatos”, contradiz os discursos crista-
s

lizados de interdição do suicídio pela igreja e coloca este fenômeno como


ver

passível de justificação.
É no iluminismo que o nome “suicídio” é criado, como relata Cruvinel:

É no Iluminismo também, que se cria um nome para a morte volun-


tária. Até então, o ato era referido por perífrases como: “matar-se a si
mesmo”, “ser homicida de si mesmo”, “ser criminoso de si mesmo”,
“derrotar-se”. A criação do neologismo de raiz latina (suicidium) surge
como uma forma de diferenciar o suicídio do homicídio (2008, p. 90).
580

A palavra suicídio deriva do latim SUI que significa “a si mesmo”, mais


CIDIUM, forma combinante de caedere “bater, golpear, matar”, assim implica
a ação de bater, golpear, matar a si mesmo (FUKUMITSO, 2013).
É importante destacar que, mesmo havendo uma difusão da discussão sobre
o suicídio, esta ainda estava concentrada nas mãos de uma pequena elite, os

or
filósofos e a classe média. O suicídio ainda era compreendido como um grande

od V
mal quando cometido por pessoas das classes populares em detrimento de ato

aut
heroico, bravo ou sentimento de sofrimento, quando desempenhado por pessoas
de classes sociais mais favorecidas, incluindo-se os jovens e os adolescentes.

R
Neste contexto histórico, as representações sociais tecidas sobre o sui-
cídio significam “os suicidas filosóficos seguem para o nada, os suicidas
românticos para o céu, os suicidas populares para o inferno. Por isso, se o

o
clero se mantém firme, os juristas hesitam cada vez mais” (MINOIS, 1995
aC
apud CRUVINEL, 2008, p. 94).
Percebe-se que, além das representações sociais tecidas sobre o suicídio

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no campo teológico, filosófico e artístico, há que se considerar dois outros cam-
pos, a saber: o do direito e o da medicina. O primeiro interdita o suicídio, já a
visã
medicina apresenta toda uma construção teórica que preza eminentemente pela
vida, desse modo feri-la implica infringir o seu princípio básico: manter a vida.
Hillman (2009) discorre que as tarefas do médico são as de “impedir a enfer-
itor

midade; tratar, medicar e curar, sempre que possível; confortar sempre; reparar e
a re

encorajar; mitigar a dor; descobrir e combater a doença – tudo a fim de promover


o bem estar físico, isto é, a vida” (p.43), todavia, verifica-se que a percepção da
vida está associada a questões de ordem orgânica, portanto funcional do corpo.
Por isso, mesmo qualquer ameaça que este corpo possa vir a sofrer, como
par

possível situação de suicídio, requer ações preventivas eficazes desse profissio-


nal. Se este corpo não “deseja” viver é entendido como “um sintoma”, “uma
Ed

aberração”, um “desvio a ser abordado” (HILLMAN, 2009, p. 46) e uma das


formas de “conter” esse corpo dá-se com a perspectiva da prevenção. Preve-
nir, neste contexto, significa a contenção dele, sua possível medicalização,
ão

sua “docilização”. A vida passa a ser monitorada e controlada a partir de um


domínio técnico e se perde a dimensão puramente humana.
Dessa forma, a maioria das representações sociais sobre o suicídio são
s

negativas, e nelas a morte é negada como dialética da vida, especialmente


ver

quando a morte humana é “querida” pelo sujeito que a comete.

O suicídio na modernidade um passo para a pós-modernidade

No período moderno, vive-se em uma era em que o ser humano já não


tem mais tempo para cultivar as relações. Neste texto, relações significa com-
preensão recíproca de alteridade entre as pessoas, um lugar que se encontra
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 581

no “entre” humano, desse modo, a relação, para ser compreendida como tal,
necessariamente, coloca-se num campo em que o diálogo, as relações de cui-
dado e a ética humana fazem-se um imperativo a ser exercitado cotidianamente.
Compreende-se ainda, neste texto, o ser humano como proposto
por Buber:

or
od V
O homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas quando,

aut
estando Eu presente diante dele, que já é meu Tu, endereço-lhe a palavra
princípio. (Eu-Tu) Ele não é um simples Ele ou Ela limitado por outros
Eles ou Elas, um ponto inscrito na rede do universo de espaço e de tempo.

R
Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável, descritível, um
feixe flácido de qualidades definidas. Ele é Tu sem limites, sem costuras

o
preenchendo todo o horizonte (2004, p. 57).
aC
Marquetti (2011, p. 15) discorre que a temporalidade acelerada é uma prá-
tica comum na modernidade/contemporaneidade (era pós-moderna), marcada
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mais especificamente com o advento da Revolução Industrial, “é exatamente


visã
aquela que pretende reduzir modos de sentir, pensar, agir a um consumo
imediato, a uma intervenção que resolva dissolva e afaste os problemas – não
há tempo para refletir e pensar”.
itor

Percebe-se na reflexão de Marquetti (2011) que as relações sociais esta-


belecidas no contexto da modernidade viabilizam severas agressões ao ser
a re

humano contemporâneo: furtou o seu tempo. Isto é, tempo de refletir, sentir,


viver, pensar, dialogar, problematizar, criticar, propor, sofrer, brigar, com-
preender, superar, entender sobre a sua existência no mundo, num movimento
constante do vir a ser. Tempo de o ser humano desenvolver-se no campo rela-
par

cional em que possui a capacidade de lidar com diversos outros que podem
significar uma multiplicidade de eus, bem como de issos.
Ed

Esta reflexão encaminha para a relação Eu-Tu e Eu-Isso Buberiana. Na


primeira construção, a relação estabelece-se numa linha humana horizontal e
dialógica, já na segunda construção, tece-se uma relação objetal, descartável.
ão

Com o furto do tempo, o ser humano é alijado de conceber a vida com o


sentido de ser vivida, gozada, experimentada. Falta-lhe condição para conferir
s

substantivo significado ao evento do viver. Nesta perspectiva, o suicídio perde


ver

a conotação de morte e de vazio e passa a conferir a busca por um sentido da


vida perdido na contemporaneidade.

Ausência de significado é mais dolorida quando faz parte da vida, e talvez


daí a busca de um significado de morte resulte em um preenchimento, e
procurar desvendar esse significado é sem dúvida procurar um retorno à
vida (MARQUETTI, 2011, p. 18).
582

O sofrimento humano passa a ser enfatizado também pelo viver. Viver


sem ter na concepção da vida razões que impulsione o ser humano a respirar,
a encontrar sentidos, que transcendam o tempo do capitalismo/capital e a
lógica racionalista moderna cartesiana que é excludente.
Angerami-Camon (2004) discorre que “em cada sujeito que se mata,

or
fracassa uma proposta comunitária” (p. 177). Esta afirmação viabiliza refle-

od V
xões profundas sobre a existência humana, bem como suas inter-relações

aut
sociais que são datadas e situadas historicamente. Dessa forma, o ser humano
é pensado dentro de sistemas sociais excludentes, colonialistas, patriarcais e
capitalistas. Sistemas esses interessados com o lucro, com a dominação, com

R
a exploração e menos preocupados com uma ética humana.
Vive-se num contexto socioeconômico capitalista neoliberal em que a

o
necessidade de ter é colocada nas prateleiras de tal forma que, a todo instante,
aC
o ser humano sente a “falta de”, todavia se deve considerar que no estado
nação brasileiro as disparidades socioeconômicas são brutalmente acentuadas

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e isso implica os fetiches censurados de uma grande massa de despossuídos.
Por outro lado, verifica-se que, mesmo em uma parcela da população
visã
possuidora de bens materiais, o sentimento de falta ainda perdura. Identifica-se
que o campo relacional humano encontra-se fragmentado, bem como que o
individualismo se sobrepõe à coletividade, situação que tem, talvez, provo-
itor

cado nos seres humanos vazios abismais que representam no self lacunas que
a re

recursos materiais não podem sanar ou são efêmeros.


Neste contexto, o Ter sobrepõe-se a condição de Ser pessoa humana, pois,
como já anunciava a sábia raposa ao pequeno príncipe, as relações sociais
estão em processo de degradação há muito quando cita “os homens não têm
mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas.
par

Mas, como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos”
Ed

(SAINT-EXUPÉRE, 2009, p. 67).


Nesse contexto, o suicídio possui causas multifatoriais que envolvem
problemáticas de ordem social/relacional, econômica, afetiva, cultural, de
ão

identidade, geracional, entre outras. O suicídio apresenta-se como um sintoma


de uma sociedade em crise que ainda não encontrou alicerces importantes
para ancorar outras possibilidades de existência, mais igualitária, mais justa
s

e por que não dizer Humana.


ver

Com isso, aponta-se para a necessidade de se buscar sucessivas superações


do caos das relações interpessoais sociais em que o ser humano está inserido e
trabalhar, no cotidiano, outras relações sociais e humanas possíveis, dialógicas,
humanizadas, éticas que visem a minimizar sofrimentos que possam resultar
em formas de agressão comunitária tão perversa e dolorosa como o suicídio.
Qual será, então, a proposta comunitária a que se refere Angerami-Ca-
mon? A proposta comunitária já não está, a priori, fracassada, adoecida,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 583

sofrida e por isso mesmo o ser humano tem cometido autoagressões tão brutais
que não conseguem mais perceber fios de possibilidades de existir? O autor
relata que “o suicídio, assim como outras manifestações de rebeldia, nada
mais é do que uma resposta esperada diante de situações de extrema pressão
emocional” (ANGERAMI-CAMON, 2004, 193).

or
Marquetti (2011) discute que a vida representa um problema contempo-

od V
râneo, assim a discussão sobre o suicídio não evoca, necessariamente, o tema

aut
da morte, mas do vazio em que a vida é colocada. Desse modo, o sujeito que
tenta e que comete o suicídio ganha um lugar de vítima dentro de um sistema
antropofágico em que o homem é colocado como lobo do homem como dizia

R
Hobbes (2002).
A autora discorre sobre dinâmicas ímpares que marcam as vidas dos

o
sujeitos no cenário das cidades na pós-modernidade, propondo reflexões sobre
aC
as novas configurações nas relações humanas no contexto da pós-modernidade
e explica como estas interferem a psique do ser humano como possibilidade
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de este cometer o suicídio.


A pós-modernidade é marcada pela fragilidade nas relações dos grupos
visã
sociais primários, pelo fortalecimento dos grupos sociais secundários, pela
dinâmica ímpar da produção e do não ficar parado. Exige-se do ser humano
produção, movimento, atividade, dinâmica, flexibilidade, e, quando ele não
itor

consegue dar respostas “socialmente adequadas” sofre.


a re

Tem-se, ainda no contexto da pós-modernidade, um sujeito situado em


uma realidade que lhe apresenta inúmeras possibilidades, todavia por “causa
delas corre o risco de imiscuir-se nas incontáveis significações possíveis de
sua existência, perde-se nesse labirinto, nesse jogo” (MARQUETTI, 2011) e,
assim, o ser humano corre o risco de não conseguir articular “mais o mínimo
par

necessário dessa cadeia de significantes para garantir a sua sobrevivência e


Ed

seu sentido” (p. 44).


Desse modo, identifica-se um ser humano perdido em meio à multi-
plicidade de “escolhas”, mas estas não se revelam para ele com sentidos
ão

que sustentem a sua existência. Tem-se um ser humano fragmentado, que na


modernidade possuía uma identidade sólida e estável, mas na pós-modernidade
um ser humano que evita a fixidez e que precisa manter aberta as opções para
s

constituir o seu ser no mundo (BAUMAN, 2011, p. 113).


ver

Diante deste ser humano multifacetado e com relações cada vez mais
liquidas, é que se identifica a representação social do suicídio na pós-moder-
nidade como fuga da cena, fuga do enfrentamento, desistência das relações
e interações e, por isso mesmo, desistência da vida.
A partir deste breve movimento histórico, percebe-se, a partir de cada
contexto, a produção de subjetividades materializadas em múltiplas repre-
sentações sociais sobre o suicídio, assim são identificadas representações de
584

interdição do ato por uma significação divina que o exorta pelo “pecado”, “falta
de fé”, em outro momento pelo poder de “cura” e de “manutenção da vida”
pelo profissional médico; noutras situações o suicídio é representado como
perda da razão, momento em que se fabrica a loucura, e, por conseguinte, a
medicalização da vida. Na pós-modernidade, esse fenômeno é lido como perda

or
de sentido da vida, ser humano fragmentado, furtado no seu tempo, mas que

od V
“precisa” responder, a contento, às demandas que lhe são solicitadas.

aut
São inúmeras as representações sociais produzidas historicamente que
significam a existência, os modos de sentir e de viver humano. Na seção a
seguir, serão levantadas algumas representações sociais elaboradas por pro-

R
fissionais que integram uma equipe multiprofissional de saúde que atua no
CAPS II do município de Santarém.

o
aC
Profissionais da saúde e representações sociais sobre o suicídio

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


A compreensão do suicídio pelos profissionais da equipe multiprofissio-
nal ganha conotações diversas e resultam de suas crenças, formações, visões
visã
de mundo e percepções sobre o ser humano. Todavia, há que se considerar
que, nos diversos discursos, o suicídio é percebido como uma ação cometida
por uma pessoa que viabilizará alívios de suas dores emocionais como serão
itor

ilustrados nos desenhos a seguir.


a re

Suicídio: fim de um sofrimento, mas afastamento de Jesus...

Na figura 1, José, ao representar o suicídio, apresenta inúmeros instru-


par

mentos que o ser humano pode usar para pôr fim a sua vida. Destaca os que ele
considera serem mais comuns, bem como o revólver que põe fim cabal à vida.
Ed

Figura 1 – José (15.06.15)


s ão
ver
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 585

Uma corda pescoço, um copo de veneno, forca, veneno... são os mais


comuns, não é? E infelizmente muito usado... o revólver. E bem aqui...
importante isso ao ter sobrevivido o cérebro, não é? Aqui está o cérebro
se afastando, sempre longe de Jesus (JOSÉ, 15.06.15).

or
Interessante perceber que sua representação sobre o ser humano é mar-
cada pelo desenho de um cérebro, figura que delimita, de um lado a fragmen-

od V
aut
tação do humano entre mente e corpo e, de outro, ratifica o cérebro como lugar
da racionalidade, que no contexto deste desenho, está fragilizada em virtude
de estar sob o risco iminente de morte, à medida que este ser humano está

R
colocado no lugar de morrência, pelo suicídio.
Há ainda outra representação social neste desenho que é de ordem reli-

o
giosa confirmada no seguinte discurso: “aqui está o cérebro se afastando,
aC
sempre longe de Jesus” (JOSÉ, 15.06.15), representação teológica do suicídio,
o que sugere punição para o ente que se mata e apresenta distanciamento de
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Jesus, figura divina em religiões de matrizes cristã.


Do mesmo modo que José, Andressa, ao representar o suicídio na figura
visã
2, desenha um cérebro. Mais uma vez se observa a fragmentação do ser
humano em mente e corpo.
Percebe-se, no momento mesmo em que ela realiza o desenho, o seu campo
itor

discursivo, o que lhe é materializado (ancorado e objetivado) sobre a pessoa


a re

em situação de morrência ou suicídio, assim anuncia “vamos ser se eu consigo


fazer uma pessoa... deixa eu desenhar o cabelo pra saber que é uma cabeça
[...] um cérebro... é o que mais atinge...” (Andressa, 15.05.2015). Ao final de
seu esforço, reafirma a pessoa com a figura do cérebro, órgão que, segundo
par

Andressa, é mais afetado pelos problemas exteriores que, ao serem interna-


lizados, provocam sofrimentos à pessoa que está em processo de morrência.
Ed

Figura 2 – Andressa (15.05.15)


s ão
ver
586

Isso é uma cabeça, vamos ser se eu consigo fazer uma pessoa... deixa eu
desenhar o cabelo pra saber que é uma cabeça. Olha como tu me pegaste!
A gente trabalha com eles muito o desenho pra eles retratarem... um cére-
bro... é o que mais atinge as coisas que vem de fora. As dificuldades que
eles têm dentro é o emaranhado que ele não consegue, resolver dentro aí

or
essa confusão que leva eles a fazer, né? O suicídio. Eles não conseguem,
perdoar e aquilo vai maltratando (ANDRESSA, 15.05.15).

od V
aut
No desenho elaborado por Andressa, verifica-se ainda uma série de sen-
timentos não elaborados pela pessoa que sofre, como a incompreensão, razão,

R
rancor, solidão, medo, entre outros sentimentos que, vividos intensamente,
podem desorganizar o ser.

o
Marquetti (2011) discorre sobre a existência da militância da morte, suave
aC
espaço ao suicídio, um grupo internacional que milita a favor do suicídio e que
pensa a morte e o suicídio por outra perspectiva que não a punitiva. Segundo

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a autora, o suicídio na sociedade ocidental causa “um estorvo no nosso meio
sociocultural, desencadeia reações de incômodo e, via de regra ele é concebido
visã
como desagradável, às vezes negado, tratado como algo inoportuno e sempre
associado a sentimentos negativos” (p.88).
Historicamente, há uma elaboração teórico-prática que coloca o suicídio
itor

ancorado em saberes que negam a existência do ser humano que o come-


a re

teu, assim “as representações simbólicas e conceitos a seu respeito circulam


sempre entre elementos negativos como crime, doenças, agressão, perversão,
ausência de caráter, anormalidade e outros” (MARQUETTI, 2011).
Identifica-se que as representações sociais sobre um determinado ser
e/ou fenômeno ancora conceitos no contexto da sociedade de maneira obje-
par

tivada, assim o ser e/ou o fenômeno como o caso da pessoa na condição de


morrência ou suicídio passam a ser concebidos como um objeto, uma coisa
Ed

(MOSCOVICI, 2015).

Suicídio: profundo desespero do ser humano


ão

Percebe-se abaixo, na figura 3, que Aline representa a pessoa em estado


s

de morrência como aquela que goza profundo sofrimento. O desenho lembra


ver

a obra “O grito” de Edvard Munch, tela expressionista que significa a angús-


tia e a solidão vivida pelo humano, mesmo estando este imerso em múltiplas
relações de convivência.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 587

Figura 3 – Aline (17.06.15)

or
od V
aut
R
O paciente pedindo ajuda e ele vê a ajuda lá longe. Na verdade, é desespe-

o
rador. Ele já se vê morto! Ele vê que ele já não faz parte daquele ambiente
aC
que ele está. É isso que o paciente vê (ALINE, 17.06.15).
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Na sua representação do suicídio, o ser humano se encontra sem con-


dições emocionais, cognitivas, psíquicas para compreender a vida. Ele está
visã
fragmentado e sem referências para se perceber em interação consigo mesmo
e com os outros, percebe-se como inumano. É assim que chegam muitos
pacientes para o atendimento no CAPS II, segundo Aline.
itor
a re

Suicídio: morte anunciada, mas ainda resta um fôlego de vida

Clara, na sua representação sobre a pessoa em estado de morrência,


apresenta o desenho de um conjunto de flores murchas, mas que têm um caule
que mantém a planta (pessoa) viva.
par

Figura 4 – Clara (08.05.15)


Ed
s ão
ver

Eu quero desenhar uma flor murcha. Ela murchou... o suicídio, a flor mur-
cha. Elas murcharam. Elas estão assim... eu vejo assim... mesmo murcho
ainda existe a possibilidade... esses pacientes eu atendi. Eu atendi pacien-
tes suicidas e um deles se suicidou, mas ele disse eu não quero viver. Então,
588

é muito forte quando essa pessoa toma essa decisão, porém na família
desse homem duas outras pessoas cometeram suicídio (CLARA, 08.05.15).

A representação de Clara remete a um campo fértil de possibilidades


no trato com pessoas com ideação suicida e daquela que tentou e por algum

or
motivo não pôs fim à sua vida. Clara compreende que, mesmo em meio a

od V
muitas dificuldades, é possível desenvolver atividades laborais com essas

aut
pessoas de modo que facilite a ressignificação da vida e da existência humana,
por meio do exercício da escuta sensível e da presença do profissional numa
relação dialógica com o seu cliente – o usuário do CAPS II (BUBER, 2004).

R
Zinker (2007) discorre sobre a necessidade de significar a criatividade no
processo terapêutico, pois, para ele “no processo de criar, expandimos nosso

o
psiquismo e alcançamos tanto a dimensão pessoal quanto a dimensão arque-
aC
típica de nossas origens” (p. 21). Nesse sentido “o fazer artístico como uma
atividade lúdica e de sustento da vida se torna, campo profissional” (ZINKER,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


2007, p. 21), assim ações criativas com pessoas com risco de suicídio pode
se tornar potencial para se alcançar o ser humano que sofre. Como inscrito
visã
na reflexão a seguir:

Quando um homem está cantando sem conseguir soltar a sua voz e um


itor

segundo homem, que consegue soltar a própria voz, chega a cantar com
a re

ele, o primeiro também se torna capaz disso. Esse é o segredo da ligação


entre os espíritos (BUBER, 1962 apud ZINKER, 2007, p. 20).

A relação com o outro, na perspectiva dialógica e criativa, possibilita ao


terapeuta um “mergulho” para dentro da alma do outro. Quando do retorno do
par

mergulho, o terapeuta compreende o seu cliente dentro de um campo da tota-


lidade e assim pode ajudá-lo em sua jornada, percebendo que o coração ainda
Ed

pulsa e que resta fôlego de vida na flor, por ainda se encontrar firme o seu caule.
Neste sentido, urge a necessidade de os profissionais da saúde mental
estarem sensibilizados para discutir a temática do suicídio abertamente e sem
ão

preconceitos com o usuário, buscando alcançá-lo no mais íntimo de seu ser,


na sua alma.
s

Diante do percurso histórico elaborado neste estudo, percebeu-se que


ver

as subjetividades daqueles que experimentam a condição da morrência são


forjadas e materializadas a partir de representações sociais que ancoram esses
sujeitos em lugares de não existência.
Da mesma forma, os discursos e expressões, pelos desenhos, dos infor-
mantes da pesquisa sobre o suicídio levantados em campo, confirmam que as
representações sociais sobre este tema ainda estão ancoradas em um campo
teórico que naturaliza processos de exclusão daquele que comete o suicídio.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 589

Assim, o suicídio e a pessoa do suicida, aquela que vive a condição de


morrência, é narrada eminentemente como ato e efeito do pecado, do dis-
tanciamento de Deus, daquele que sofre a perda da racionalidade, da figura
do doente e ou do louco que precisa ser contido, medicalizado e controlado.
Pouco se problematiza os contextos do viver e do morrer significados por

or
essas pessoas que sofrem e que estão inseridas em lugares da história, não

od V
são a-históricas, não são simplesmente narradas, são existências concretas.

aut
Algumas considerações

R
As reflexões sobre as representações sociais sobre o suicídio apontadas
neste texto encaminham para outras, a do campo de formação inicial e con-

o
tínua de profissionais da saúde.
aC
Na pesquisa de campo, identificou-se que os informantes da pesquisa
conferem afetos às suas representações sobre o suicídio e estes apresentam
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

uma relação com suas percepções sobre o fenômeno, que foram construídas
visã
ao longo de suas histórias de vida, mas alguns desses afetos acabam por tra-
zer à cena o outro como ser fragmentado, o outro sem racionalidade, o outro
desamparado de um apoio divino, o outro que é colocado como inumano.
Esses afetos ratificam a necessidade de inclusão de temas “marginais”
itor

como o suicídio nas estruturas curriculares dos cursos de graduação em saúde


a re

e em propostas de formação continuada em serviço, visto ser o suicídio um


fenômeno multifatorial que aflige o ser humano, desde que se tem notícia de
sua existência. Especialmente na contemporaneidade, em que ele é tornado
cada vez mais fragmentado, desreferencializado e exigido a dar respostas
par

satisfatórias ao que faz em curto espaço de tempo.


Ed
s ão
ver
590

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ver
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s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
PARÂMETROS DE PROTEÇÃO DO
DIREITO À VIDA DE DEFENSORES
E DEFENSORAS DE DIREITOS

or
HUMANOS NO PARÁ

od V
aut
João Gabriel Soares
Paula Arruda

Introdução

R
o
aC
O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Estado
do Pará (PEPDDH/PA) enfrenta desafios devido à extensão territorial do
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estado, a criminalização policial frente à atuação de defensores e defensoras


visã
de direitos humanos (DDH’s), a falta de recursos para formação em direitos
humanos e capacitação para efetivação desta política e, principalmente, a
existência de um registro situacional de violências que se perpetua. Para essa
abordagem analisaremos as formas de violências contra a vida destes defen-
itor

sores, o cenário de conflitos na Amazônia paraense e a atuação dos programas


a re

de proteção à vida destes sujeitos, conforme veremos a seguir.

Violências contra a vida de defensores e defensoras de Direitos


Humanos
par

As desigualdades social e econômica acionam a exclusão moral manifes-


Ed

tada em duas principais características: a) a invisibilidade dos excluídos, pelas


percepções negativas de capacidade e desigualdade de alguns, que cria uma
impermeabilidade às mudanças; e, b) a demonização, que se assemelha ao pro-
ão

cesso de difamação, pois são demonizados aqueles que desafiam esta impermea-
bilidade. A partir disso, “a violência é frequentemente o instrumento utilizado
s

para tratar os que contestam a injustiça” (VIEIRA; DUPREE, 2004, p. 56).


ver

É nesse contexto de exclusão moral que perfeitamente pode ser enqua-


drada a realidade de defensores e defensoras de direitos humanos, sendo que
o artigo 2º, parágrafo 2º da Política Nacional de Proteção aos Defensores dos
Direitos Humanos (PNPDDH) afirma que:
[...] a violação caracteriza-se por toda e qualquer conduta atentatória à
atividade pessoal ou institucional do defensor dos direitos humanos ou de
organização e movimento social, que se manifeste, ainda que indiretamente,
594

sobre familiares ou pessoas de sua convivência próxima, pela prática de homi-


cídio tentado ou consumado, tortura, agressão física, ameaça, intimidação,
difamação, prisão ilegal ou arbitrária, falsa acusação, atentados ou retaliações
de natureza política, econômica ou cultural, de origem, etnia, gênero ou orien-
tação sexual, cor, idade entre outras formas de discriminação, desqualificação

or
e criminalização de sua atividade pessoal que ofenda a sua integridade física,

od V
psíquica ou moral, a honra ou o seu patrimônio (BRASIL, 2007, s/n).

aut
A violação do direito à vida de defensores e defensoras de direitos huma-
nos significa a violação à atuação da subjetividade da defensora e do defen-

R
sor como tal, considerando sua ampla perspectiva em dimensões de vida
plena; ou seja, abarca a integridade física, integridade psíquica e capacidade

o
laboral, conforme analisa a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), sendo que tais pessoas estão sujeitas a execuções, torturas, homi-
aC
cídios, agressões físicas, psíquicas e morais, sequestros, desaparecimentos
forçados, prisões e detenções arbitrárias e/ou ilegais, violação de domicílio,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


falsas acusações, ameaças de morte, atentados ou retaliações de qualquer
visã
natureza (política, econômica, etc.), intimidações, difamações, desqualificação
moral e criminalização de suas atuações; bem como, restrições à privacidade, à
informação, às liberdades de movimento, expressão, associação e assembleia,
itor

com claro objetivo de intimidá-los, com a ocorrência de ingerências arbitrárias


às suas instalações e/ou de suas entidades, assim como das correspondências
a re

ou comunicações telefônicas ou eletrônicas e, por fim, também sujeitos a


perseguições e vigilância constante (CIDH, 2006, p. 7).
No mesmo sentido, segundo os relatórios do Conselho Indigenista Mis-
sionário (CIMI /2011, 2018) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT /2011,
par

2019), que passaremos a analisar e referenciar mais à frente, a violência


abarca abuso de poder, agressão física ou moral, ameaça de morte, tentativas
Ed

de assassinatos, homicídios, lesões corporais dolosas, prisões, detenções,


intimações, práticas de racismo e discriminação étnico-culturais, violências
sexuais, despejos, destruição das roças, omissão e morosidade na regularização
ão

de terras, invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais, danos


ao patrimônio, desassistência do poder público à educação escolar e saúde.
s

Para a Anistia Internacional, “son pocos los casos de abusos en contra de


ver

personas defensoras en los que se logran avances en las investigaciones y se


llevan a los responsables de estas graves violaciones a los derechos humanos
ante la justicia” (ANISTIA, 2014, p. 4).
Com efeito, podem-se classificar como critérios de violência praticados
contra os defensores e defensoras os seguintes: quanto às formas, quanto às
fontes e quanto ao alcance. Em relação às formas, refere-se à materialização
da violência, ou seja, como ela é praticada, e pode se apresentar como via
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 595

de ameaças, desaparecimentos, agressões, e sucedâneos, sendo que algumas


formas visam, inclusive, a eliminação do sujeito defensor, como assassinatos
ou desaparecimentos forçados (FLORES, 2012, p. 35-40).
O segundo critério de classificação utilizado refere-se às fontes institu-
cionais ou não institucionais; ou seja, a violência pode ser praticada através

or
de ação ou omissão estatal e/ou por grupos privados (caso de milícias, grupos

od V
de pistolagem, grupos de extermínio, interesses de grupos dominantes, como

aut
por exemplo, proprietários de grandes fazendas e serrarias, gerentes e dire-
tores de companhias mineradoras, comerciantes autônomos e representantes

R
do capital corporativo)1.
Na publicação “Na linha de frente: defensores de direitos humanos no
Brasil 2002-2005”, a Justiça Global e a Front Line Defenders destacam a

o
contratação de milícias privadas, em especial nos conflitos do campo no Brasil,
aC
como um dos principais desafios para a atuação de defensoras e defensores
no país (MEDEIROS, 2012, p. 55).
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A violência institucional é a mais grave e reflete fragilidades de proteção


aos direitos humanos pelo próprio estado, apesar das obrigações específicas
visã
para a proteção do direito à vida por suas instituições. O alcance da violência
pode ser generalizado abarcando integralmente a população territorial de um
estado ameaçado, como por exemplo, o combate ao crime organizado e a que-
itor

bra da ordem democrática. Esses fatores de generalização tornam o defensor


a re

mais vulnerável às constantes violações. Por outro lado, a violência também


pode se manifestar especificamente a determinado sujeito ou grupo de sujeitos,
sendo a modalidade mais comum de ser visualizada (FLORES, 2012, p. 40-42).
No mesmo sentido, Marco Apolo Leão (2008, p. 82) afirma que são três
par

os processos de violação do direito à vida de defensores e defensoras, que


estão interligados: difamação, criminalização e vitimização, consubstanciados
Ed

em calúnias, injúrias, acusações, prisões, ameaças e até violências físicas.


Antonia Urrejola Noguera (2020, p. 24-26) explica que os principais desafios
à atuação do/da defensor/defensora são os processos de estigmatização, as
ão

campanhas de difamação, as criminalizações e os assassinatos.


Defensoras e defensores direitos humanos são sistematicamente difama-
dos em imagem e idoneidade diante da sua comunidade e da opinião pública,
s

com objetivo de macular a reputação destas subjetividades, colocando em


ver

1 Segundo apuração do primeiro Relatório “Linha de Frente” a contratação de milícias privadas é mencionada
como fator de risco, pois esses sujeitos atuam constantemente em conflitos fundiários no Brasil e são
grandes desafiadores da atuação dos defensores. Dessa forma, tais defensores contrapõem-se aos
interesses de fazendeiros, empresas privadas e diversos grupos de poder e, consequentemente, tornam-se
sujeitos “marcados para morrer”. Demais disso, percebe-se que nesses grupos de milícia, extermínio e
esquadrões da morte, existe forte presença de agentes públicos estatais, dentre eles policiais e agentes
carcerários, afirmando-se que as fontes institucionais e não-institucionais muitas vezes são atuantes na
violação (GAIO et al., 2006, p. 27).
596

constantes dúvidas a credibilidade do trabalho; por outro lado, a difamação é


estruturada como meio de disputa ideológica significando uma desqualifica-
ção e despolitização de seus discursos e práticas, à tentativa de deslegitimar,
invisibilizar e até silenciar suas atuações (JUSTIÇA GLOBAL, 2016, p. 8-9).
Arruda et al. (2018, p. 20) afirmam que é comum pensar que o/a defensor/

or
defensora de direitos humanos somente seria a pessoa que atua como ativista

od V
de organizações não governamentais (ONGs), entretanto ressalta-se que o con-

aut
ceito restritivo de quem é o defensor também é um marcador da violência e
que, muitas vezes, sindicalistas, religiosos, líderes camponeses, comunitários
e integrantes de outros movimentos sociais são excluídos da proteção como

R
“defensores de direitos humanos” justamente por essa noção equivocada. Flores
(2012, p. 32) afirma existir uma noção ampla, dinâmica e abrangente do conceito

o
de quem é o/a defensor/defensora de direitos humanos, o que inclui organizações
aC
da sociedade civil, sindicalistas, ambientalistas, lideranças de comunidades tradi-
cionais, bem como operadores de justiça e funcionários públicos que trabalhem

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em prol da defesa dos direitos humanos, de forma contínua e comprometida.
Comumente observa-se a difamação relacionando os/as defensores/as de
visã
forma estigmatizada pela luta por determinados direitos, intitulando-os até como
“defensores de bandidos”, “desordeiros”, “criminosos”, “ONG de esquerda”,
“vândalos” (NOGUEIRA, 2020, p. 17). Foi possível perceber, por exemplo, a
itor

expressão “encrenqueiros que merecem ser punidos por causar perturbações”


a re

expressamente utilizada por autoridade local em reunião com representantes da


Anistia Internacional, em 2009, o que demonstra tanto o grau de difamação a
eles imposto, quanto o estereótipo acima mencionado (ANISTIA, 2012, p. 15).
Essa situação de descrédito à atuação de defensoras e defensores de
par

direitos humanos foi mencionada pela relatora da Organização das Nações


Unidas (ONU), quando afirmou que os líderes de movimentos sociais ou de
Ed

ONGs têm sido alvo de constantes difamações, chamados como “criadores


de problemas”, visando desacreditar seu trabalho. A Anistia Internacional
esclarece esse processo:
ão

No entanto, defensoras e defensores dos direitos humanos de todas as


Américas têm sido publicamente condenados como “ilegais”, “ilegítimos”,
“inescrupulosos” e até “imorais”. Foram acusados de serem criminosos, cor-
s

ruptos, mentirosos, encrenqueiros ou subversivos, de defenderem criminosos e


ver

de apoiarem grupos guerrilheiros. Essas críticas foram expressas publicamente


por autoridades do governo e por atores não estatais (ANISTIA, 2012, p. 27).
Por sua vez, o processo de criminalização ocorre por meio de “atos e
omissões que resultam na imputação de crimes e/ou condutas ilegais contra
defensores e defensoras de direitos humanos e/ou às suas organizações, através
de procedimentos judiciais ou policiais, em função das atividades de defesa
e promoção de direitos humanos que desenvolvem” (LEÃO, 2008, p. 104).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 597

Segundo o Guia de Proteção para Defensoras e Defensores de Direitos


Humanos, publicado pela Justiça Global (2016, p. 7), a criminalização tem o
objetivo de esvaziar o conteúdo político presente nas manifestações sociais
de resistência em face da exploração e da negação de direitos através de um
processo de violência física e simbólica, às vezes com ares institucionais

or
(públicos ou privados), para lhes atribuir uma natureza criminosa.

od V
Em síntese, criminalizar a atuação do defensor significa ressaltar a pre-

aut
ponderância do estado e de seus agentes sobre a pessoa em situação de conflito,
com o uso de imputação criminosa (clássicas imputações de formação de

R
quadrilha) ou pelo uso de processos judiciais e da força policial para investi-
gações e detenções2, tais como indenização por dano, esbulho possessório
(na modalidade de interdito proibitório) e organização criminosa.

o
O Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
aC
(CBDDH), juntamente com a Terra de Direitos, Justiça Global, Comissão
Pastoral da Terra, entre outras organizações, publicou os relatórios intitulados
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

“Vidas em Luta: criminalização e violência contra defensoras e defensores de


visã
direitos humanos no Brasil”, que trazem dados sobre a situação dos defensores
de direitos humanos brasileiros em 2016, 2017 e 2018-2020/1 identificando
estratégias de criminalização.
O CBDDH afirma o aumento dos conflitos por terra em 16,5%, entre
itor

2015 e 2017, explicando que houve um significativo aumento de conflitos no


a re

campo contra populações tradicionais, o que foi intensificado com o impea-


chment à presidenta Dilma e com a proliferação de discursos odiosos contra
defensoras/es de direitos humanos, conduzidos “pelo que há de mais con-
servador e reacionário na política brasileira”, somando-se à crise econômica
par

brasileira e à antiga política neoliberal de austeridade impostas (CBDDH,


2017, p. 15; p. 39 / CBDDH, 2020, p. 64).
Ed

O CBDDH (2017, p. 39) afirma que, durante 2016, foram levantados


64 (sessenta e quatro) casos de criminalizações, ataques e ameaças contra os
movimentos sociais. Deste número, 16 (dezesseis) casos estão relacionados a
ão

conflitos envolvendo grandes projetos desenvolvimentistas. Também identifi-


caram ao menos 06 (seis) casos de ajuizamento de ações possessórias, denún-
s

cias de exercício arbitrário das próprias razões, calúnia, esbulho e até uma ação
ver

cível de indenização com intuito de criminalizar a atuação de um defensor.


A Justiça Global publicou o relatório “Na Linha de Frente - 2006-2012”
destacando resultados que permitem a análise de práticas de criminalizações
e ameaças perpetradas contra defensores e defensoras de direitos humanos
como estratégias políticas de medo e sanções penais, o que perpassa por uma

2 Imputam-se acusações de esbulho possessório, formação de quadrilha ou bando, danos, incitação ao crime,
porte ilegal de armas, resistência à prisão, desobediência e desacato (LEÃO, 2008, p. 88).
598

desqualificação da atuação, pela invisibilização/ocultação da demanda, do


contexto social e da manifestação dos defensores, pelo não-reconhecimento
de direitos, pela omissão e pela despolitização da atuação (JUSTIÇA GLO-
BAL, 2013, p. 23-24).
O CBDDH (2017, p. 48) expõe que a criminalização ocorre, principal-

or
mente, pelo ajuizamento de ações criminais, manejo de ações possessórias

od V
e intimidação policial, junto às práticas de ameaças, perseguição política e

aut
ações civis indenizatórias, mencionando a participação do Estado como prin-
cipal envolvido nestas práticas criminalizatórias, em número até superior ao

R
envolvimento de grupos privados desenvolvimentistas.
Leão (2008, p. 87) desenha este cenário esclarecendo que as ações de
criminalização costumeiramente são praticadas pelo estado ou são materia-

o
lizadas por instrumentos institucionais e agentes públicos. O autor ressalta
aC
que esse processo é patrocinado pelas políticas federal e estadual, em todos
os poderes, ou seja, comumente trata-se de uma violação que se dá pela ação

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de agentes e instrumentos estatais, revestidos pela mobilização de aparatos
policiais e judiciais envoltos de aparente legalidade.
visã
Em dados coletados nas entrevistas realizadas e disponibilizadas pelo
diagnóstico da realidade das/os defensoras/es de direitos humanos no Estado
do Pará, demonstra-se que dos 71 (setenta e um) defensores entrevistados,
itor

18,31% relataram terem sido vítimas de processos judiciais que julgaram


a re

indevidos, assim como 14,08% foram vítimas de prisões que declararam ser
arbitrárias (LEÃO, 2008, p. 88).
O processo de vitimização da atuação de defensoras e defensores de
direitos humanos pode ser observado pelo conceito constante na Declaração
par

dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas de Criminalidade e


Abuso de Poder da Organização das Nações Unidas, aprovada pela Assembleia
Ed

Geral com a edição da Resolução 40/34, de 29 de novembro de 1985, na qual


se compreende como vítima a pessoa que, individual ou coletivamente, sofre
um prejuízo, nomeadamente um atendado à sua integridade física ou mental,
ão

um sofrimento moral, perda material ou grave atentado aos seus direitos


fundamentais, como consequência de atos ou omissões violadoras das leis
penais, incluindo-se a família próxima ou pessoas a cargo da vítima direta,
s

assim como pessoas que sofreram um prejuízo ao intervirem para prestar


ver

assistência às vítimas e impedir a vitimização.


Deste modo, a vitimização consiste em atos e omissões que geram violência
contra DDH’s, “provocada por terceiros quer sejam civis ou agentes públicos,
pessoas jurídicas privadas ou instituições públicas”, por meio de ameaças, inti-
midações, desaparecimentos, tortura e até assassinatos (LEÃO, 2008, p. 119).
Em consequência, a violência ao direito à vida das defensoras e dos
defensores de direitos humanos causa um impacto que vai além da própria
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 599

vítima, pois interfere no nível do trabalho de advocacia e promoção de direitos


humanos, assim como na proteção dos outros sujeitos e direitos que buscam
defender. Em razão disso, se reconhece que “os ataques às vidas dos defen-
sores de direitos humanos têm um efeito multiplicador [...] que se estende
para aqueles que defendem causas semelhantes” (NOGUEIRA, 2020, p. 16).

or
Assim, três são os efeitos negativos trazidos pelos processos de violência:

od V
a) negativa de acesso à justiça; b) impossibilidade de avaliação do correto

aut
funcionamento das instituições públicas; c) impunidade e consequente “efeito
amedrontador” como mensagem aos demais ativistas (FLORES, p. 34; 42-43).

R
Em paralelo a essas estratégias de difamação, criminalização e vitimiza-
ção são possíveis relacionar outros mecanismos de violências, quais sejam:
silenciamento, invisibilização e não-reconhecimento, omissão estatal, desqua-

o
lificação, inferiorização e despolitização das demandas (JUSTIÇA GLOBAL,
aC
2016, p. 8-9).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O contexto amazônico de violação do direito à vida de defensores


visã
e defensoras de direitos humanos no estado do Pará

Em relação às violações do direito à vida de defensores e defensoras de


direitos humanos, o Relatório Final do Observatório da Proteção dos Direitos
itor

Humanos da Universidade de São Paulo, intitulado “Situação das Defensoras


a re

e Defensores dos Direitos Humanos no Brasil”, fez um mapeamento sobre


as ameaças e violações de direitos humanos, a partir de diversos relatórios
publicados entre 2013 e 2018, identificando 66 casos de assassinatos em
2016, concluindo que a maioria está relacionada a conflitos agrários, sendo
par

as regiões Norte e Nordeste as mais perigosas e com maiores dados de vio-


lência, podendo-se notar o registro de 56 casos, deste total de assassinatos
Ed

(USP, 2020, p. 32).


O Front Line Defenders publicou estudo analisando a concentração de
80% dos assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos em
ão

países como Brasil, Colômbia, México e Filipinas, sendo que 156 desses
assassinatos ocorreram apenas no Brasil3 e Colômbia, relacionados aos con-
s

flitos ambientais e territoriais indígenas. O referido estudo destaca que “67%


estavam engajadas na defesa dos direitos à terra, ao meio ambiente e dos
ver

povos indígenas e, quase sempre, no contexto de megaprojetos, indústrias


extrativistas e grandes empresas” (FRONT LINE DEFENDERS, 2017, p. 6).
3 Então, o Brasil se apresenta como um dos países mais ameaçadores à atuação de defensores e defensoras
de direitos humanos – números de 58 mortos em 2015 (FRONT LINE DEFENDERS, 2016, p. 11) e 68
homicídios em 2016 (CBDDH, 2017, p. 1), reiterando que 74% destas mortes se concentra na região Norte
ou Nordeste e estão relacionadas aos conflitos agrário-territoriais, ao meio ambiente ou aos direitos dos
povos e comunidades tradicionais.
600

A Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), a


Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Laboratório de Justiça Global e Educação
em Direitos Humanos na Amazônia (LAJUSA/UFPA) e a Terra de Direitos,
por meio de encontros realizados em Altamira, Marabá, Santarém e Belém,
em 2015 e 2016, observaram que o Pará é o campeão de assassinatos, com

or
número quase cinco vezes superior ao Estado do Maranhão – entre 1985 e

od V
2013, com 645 mortes de DDH’s no Pará. Somente no ano de 2015 foram 50

aut
mortos, 144 ameaçados e 59 tentativas de homicídio decorrentes de conflitos
do campo no Brasil, com concentração de 90% desses casos no Pará, Mara-
nhão e Rondônia (SDDH et al., 2016, p. 8).

R
Durante o ano de 2016 foram registrados 64 casos de criminalizações,
ataques e ameaças contra os movimentos sociais, em diagnóstico realizado

o
pelo Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos.
aC
Desse total, 16 casos estão relacionados aos conflitos territoriais envolvendo
grandes projetos desenvolvimentistas, ratificando a relação das violações com

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a disputa agrária (CBDDH, 2017, p. 46).
Em 2017 foram registrados 71 assassinatos (o maior número registrado
visã
desde 2003); enquanto que em 2018 verificou-se uma queda dessa estatís-
tica para 28 assassinatos registrados em conflitos territoriais (deste total, 16
defensores de direitos humanos assassinados localizavam-se em território
itor

paraense). Porém, os números voltaram a crescer em 2019, quando ocorreram


a re

32 assassinatos, 30 tentativas de homicídio e 201 ameaças de morte, com


índices de aumento respectivamente de 14,3%, 7,1% e 21,8%, em relação ao
ano anterior (CPT, 2019, p. 38)4.
Neste sentido, os dados apresentados tornam evidente o nexo de causa-
par

lidade entre as ameaças de morte e os homicídios com os conflitos territoriais


ocasionados por interesses econômicos exploratórios, o que foi reconhecido
Ed

pela Anistia Internacional no Informe 2017/2018 (ANISTIA, 2018, p. 91),


com expressa menção ao Estado do Pará como um dos mais ameaçadores a
defensores e defensoras de direitos humanos.
ão

Segundo José Guilherme Silva (2008, p. 39), os megaprojetos de explo-


ração são concebidos para atender interesses exógenos, assim como questões
estratégicas que, em tese, são direcionadas para a região, mas acabam decidi-
s

das sem participação efetiva da população local. Nesse contexto, é necessário


ver

trazer uma abordagem social, histórica e econômica da Amazônia como “palco


de investimentos contaminados pelo interesse do capital externo e do Estado
Nacional” (ARRUDA et al., 2018, p. 19).

4 A CPT, além de publicar os relatórios de conflito no campo anualmente, mantém uma tabela atualizada
de dados sobre conflitos agrários no Brasil. Por exemplo, faz uma comparação de conflitos no campo
entre 2010 e 2019, indicando o total de 386 assassinatos relativos aos 150 conflitos por terra catalogados
(CPT, 2019, p. 63).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 601

Na Amazônia paraense tais violações estão diretamente relacionadas a um


contexto desenvolvimentista de exploração do território para a implementação
de grandes projetos de integração econômica e planejamentos verticalizados
instituídos nacionalmente, acompanhados da violência como um mecanismo
de expansão do capital. Dentro de um contexto de resistência fundiária, os

or
defensores de direitos humanos assumem relevância para uma atuação de

od V
resistência política a esses interesses exógenos (SILVA, 2008, p. 39-41).

aut
A atuação das/dos defensoras/es concentra-se nos direitos à terra, moradia
e meio ambiente, atuando principalmente contra crimes ambientais, contra a
grilagem de terras, contra a exploração de mão-de-obra escrava, crimes sexuais

R
e contra as impunidades institucionais, além de atuarem na proteção de povos
e comunidades tradicionais (ARRUDA et al., 2018, p. 21).

o
Em relação aos conflitos agrários, o contexto de resistência de DDH’s foi
aC
demonstrado no relatório levantado pelo Laboratório de Justiça Global e Educa-
ção em Direitos Humanos na Amazônia (LAJUSA), em 2016, que constatou, por
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exemplo, que o município de Altamira tem questões estruturais relacionadas aos


grandes projetos de integração econômica e planejamentos verticalizados e que
visã
há uma inércia na demarcação de terras indígenas, o que implica em conflitos
de posse na região. Essa inércia é acompanhada pela falta de investigação de
violências contra lideranças, criminalização dos defensores, desmobilização dos
itor

movimentos sociais e sanções administrativas aplicadas aos moradores locais,


tais como apreensão de material de pesca (ARRUDA et al., 2018, p. 29).
a re

Na região do Tapajós, chega-se à mesma conclusão, ou seja, os conflitos


e violações de direitos ocorrem em decorrência de grandes projetos implanta-
dos, o que afeta, diretamente, interesses das comunidades tradicionais, assim
como há uma inércia e falta de apoio estatal para a prevenção e mediação
par

destes conflitos. Nos casos de violência tentada ou consumada, há ausência


de investigação dos fatos (ARRUDA et al., 2018, p. 34).
Ed

Esse mesmo relatório conclui que, no município de Marabá, os conflitos


são oriundos da expansão do agronegócio, pondo fazendeiros e as comuni-
dades locais em confronto direto. Observou-se, ainda, a inércia da respon-
ão

sabilidade estatal com a demora na criação de assentamentos e lentidão nos


processos de regularização fundiária, gerando graves conflitos agroambientais
nesta localidade (ARRUDA et al., 2018, p. 33).
s

Em relação à impunidade, a Comissão Pastoral da Terra reafirma tais


ver

conclusões em dados, ao dizer que entre 1985 e 2019, ocorreram 1.496 casos
envolvendo 1.973 vítimas assassinadas no campo e somente 120 destes casos
foram julgados, com a mera condenação de 35 mandantes e 106 executores.
Até 2017, os casos devidamente julgados no Brasil correspondiam a 8% dos
casos processados. E novamente merece atenção a região paraense, por ter
sido o local com maior número de ocorrências no país e com maior número
de situações de violência contra mulheres (CPT, 2019, p. 175).
602

Por fim, é possível identificar um quadro preocupante de ameaças e


criminalização dos movimentos sociais, assim como uma ausência do Estado
na garantia de direitos destes defensores e destas defensoras, uma vez que “as
questões de fundo que permeiam as ameaças aos defensores e defensoras de
direitos humanos dizem respeito à própria ineficiência dos órgãos públicas

or
em executar políticas que garantam direitos” (SDDH et al., 2016, p. 16).

od V
O Livro “Em Defesa da Vida” foi publicado em 2008, mas ainda apre-

aut
sentada uma situação diagnóstica atual, oferecendo dados consistentes sobre
a realidade de ameaças de morte às/aos defensoras/es no Estado do Pará. A

R
publicação objetivou realizar um diagnóstico situacional da realidade dos
defensores de direitos humanos no Pará e, por fim, buscou alcançar uma com-
preensão da dinâmica de violação de direitos no Estado por meio de análise

o
jurídica, socioeconômica e psicossocial (OSHAI et al., 2008, p. 31-32).
aC
O diagnóstico foi produzido entre maio de 2006 e janeiro de 2008, com
base na lista de lideranças ameaçadas de morte, elaborada pela Federação dos

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Trabalhadores da Agricultura (FETAGRI), através de financiamento concedido
visã
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República5.
O Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (CEDENPA)6 e a Defensoria
Pública do Estado do Pará realizaram entrevistas com as/os defensoras/es pro-
duzindo uma análise qualitativa e quantitativa relevante para fundamentar a
itor

atuação do PEPDDH, utilizando-se de instrumentos de pesquisa-ação participa-


a re

tiva e pesquisa quantitativa. O formulário foi dividido em nove itens de análise:


perfil do defensor; sociedade civil no município ou região de atuação; poder
público no município ou região de atuação; caracterização da ameaça; perfil dos
agressores; aspectos psicológicos; expectativas com o Programa de Proteção;
par

comentários e sugestões; e, posicionamento sobre a proteção. Para realização


do diagnóstico, foram realizados oito deslocamentos às regiões paraenses Norte,
Ed

Sul, Sudeste, Nordeste e Oeste, onde foram realizadas visitas e entrevistas por
uma equipe chamada de “Equipe de Abordagem e Sensibilização”, que buscava
abordar os investigados de forma sensível, justamente pela complexidade das
ão

violações envolvidas na análise (OSHAI et al., 2008, p. 31-32).


O diagnóstico traçado apresentou “problemas, números, denúncias dos
DDH’s, sugeriu reflexões e propostas, assim como constatou que há uma
s

situação de risco e ameaça constante ao desempenho das atuações destes


ver

defensores e defensoras, mediante processos de difamação, criminalização

5 Este órgão articulava e formulava políticas públicas voltadas à promoção e proteção dos direitos humanos,
inclusive participava do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos.
6 Segundo sua página eletrônica, é uma entidade sem fins lucrativos e sem vínculos político-partidários, que
trabalha em prol do processo de superação do racismo, preconceito e discriminação racial em todos os aspectos
da sociedade brasileira, tendo recursos financeiros por projetos e convênios apoiados/firmados por órgãos do
Estado, cooperação internacional, ONGs nacionais e vendas de livros, artesanato, roupas e doações.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 603

e vitimização, constatando a impunidade como fator de reforço da violação


de direitos. Além disso, reafirmou a existência de corrupção e conivência de
instituições públicas, como facilitadoras das violações e a omissão e/ou ações
indevidas pelo poder público, enquanto fator que alimenta a violência contra
as/os defensoras/es. O relatório da Equipe de Abordagem e Sensibilização

or
menciona que 53,73% das violências foram realizadas de forma direta; 19,40%

od V
foram indiretas; 25,37% foram diretas e indiretas e o 1,49% restante não tive-

aut
ram informação suficiente para ser enquadrado nas anteriores. Avaliando os
motivos da ausência de denúncias acerca das ameaças de morte constatou-se,

R
majoritariamente, que as/os defensoras/es não confiam nas autoridades poli-
ciais (51,28%), assim como houve recusa policial em realizar a formalização
do Boletim de Ocorrência (12,82%), somados ao fato de haver medo na visi-

o
bilidade pessoal que o registro de ameaça poderia gerar (10,26%), bem como
aC
ocorreram circunstâncias de ausência de autoridade policial ou delegacia no
local (2,56%) (LEÃO, 2008, p. 106-118).
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Os processos de vitimização ocorreram, principalmente, através de homi-


visã
cídios, lesões corporais, torturas, processos de calúnia, difamação e injúria,
esbulhos possessórios ou invasões de privacidade, danos patrimoniais, denún-
cias caluniosas, prisões arbitrárias, manutenção em cárcere privado, violên-
cias sexuais e abusos de autoridade. A falta de denúncia sobre esses crimes
itor

cometidos contra DDH’s foi alarmante, alcançando um total de 83,33% de


a re

ocorrências não registradas. O diagnóstico alerta que o levantamento de dados


e causas para este não-registro ficou comprometido devido à desconfiança da
polícia (22,00%), recusa policial (12,00%), medo (8,00%), não quis denunciar
(6,00%), sem delegacia ou autoridade policial/sem informação (2,00% cada),
par

outros (24,00%). Vale ressaltar que há dificuldade de se trabalhar com dados


oficiais fornecidos pelas instituições públicas, porque as violações são enco-
Ed

bertas por conivência, bem como pela dificuldade de se investigar quando há


participação direta de agentes públicos 7 (LEÃO, 2008, p. 106-118).
Portanto, o Pará se apresenta como um ambiente onde resta clara a situa-
ão

ção de risco e vulnerabilidade psicossocial das/os defensoras/es de direitos


humanos. A análise sobre o impacto psicossocial sobre DDH’s aponta tristeza,
desesperança, desamparo, inquietude, irritação, ansiedade e desconfiança,
s

aumento ou perda de peso/de apetite, dores na cabeça, costas, peso nos ombros
ver

e dificuldade de dormir (ALVES; MOREIRA, 2008, p. 158).

7 Em complementariedade, Leão diz que o homicídio qualificado é considerado crime hediondo e precisa
de instauração e conclusão de inquérito policial, assim como ajuizamento de processo e julgamento dos
responsáveis. O autor conclui que este não é o retrospecto dos julgamentos de homicídios praticados contra
defensores de direitos humanos no Pará. Demais disso, crimes de menor potencial ofensivo também não
costumam ser julgados em virtude de mecanismos de descriminalização, tal como a transação penal ou a
suspensão do processo (LEÃO, 2008, p. 118).
604

Segundo a SDDH (2016, p. 17) faz-se de grande importância pensar estra-


tégias para a saúde psicológica dos defensores, pois os impactos psicossociais
se relacionam diretamente com a difamação e a perseguição contra a imagem
dos defensores, prejudicando o estado de saúde psicológica e a construção da
identidade e memória de um defensor. Até mesmo quem está “inserido” no

or
Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos relata

od V
que se sente desacreditado com o programa.

aut
Mesmo com toda essa realidade alarmante, o diagnóstico demonstra que
ainda há esperança e motivação para continuar na luta ao expressarem um

R
desejo de viver (100% dos homens e 94,74% das mulheres acreditam que a
vida vale a pena): “a maioria dos/as defensores/as da pesquisa estão marcados/
as para morrer e têm suas mortes anunciadas por vários meios de comunica-

o
ção [...], mesmo assim têm esperança e acreditam que a vida é constituída de
aC
experiências alegres e tristes” (ALVES; MOREIRA, 2008, p. 205).

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Situação de ineficácia, medo e a urgente necessidade de uma
visã
política de proteção efetiva
A conquista de políticas públicas nacionais que busquem a defesa das
garantias jurídicas e reparação de direitos de defensores e defensoras de direitos
itor

humanos teve início, marcadamente, em fevereiro de 20048, com a propositura


a re

do projeto de lei nº 2.980/04, que buscou instituir o Programa Nacional de Pro-


teção aos Defensores de Direitos Humanos e trouxe o objetivo geral promover
uma construção democrática de elaboração metodológica, marco legal e efeti-
vação pedagógica à atuação de defensoras e defensores de direitos humanos.
par

Porém, tais mobilizações só ocorreram após intensa reivindicação da


sociedade civil brasileira, em especial das organizações articuladas no Movi-
Ed

mento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e pelo interesse de evidenciar


as violações sofridas9.
Como resultado do Grupo de Trabalho, foi apresentado em julho de 2004,
ão

em reunião ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana


(CDDPH), um texto com as diretrizes de um Programa Nacional de Proteção
s
ver

8 As discussões surgiram em 2003 com proposta da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da


República de criação de grupo de trabalho específico para tratar das diretrizes de construção de uma política
pública permanente acerca da proteção de defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil. Esse
grupo estudava propositura de medidas, ações e programas governamentais a respeito da Declaração
da ONU sobre defensores, visava manter o defensor no exato local em que desenvolve suas atividades e
analisava casos concretos de violência. Oriundo desse contexto, saiu a proposta do Programa Nacional de
Proteção e de uma política permanente de proteção de defensores de direitos humanos.
9 Com isso, Anna Budahazi (2020, p. 43) explica que houve a divulgação de um primeiro relatório sobre
a situação dos defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil, logo em seguida sendo criado
efetivamente o Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), em 2004.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 605

dos Defensores de Direitos Humanos. [...] O Programa foi lançado oficial-


mente pelo então ministro Nilmário Miranda no dia 26 de outubro de 2004,
em Brasília, durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos
da Câmara dos Deputados. [...] a Coordenação Nacional do Programa ficou
sem operar o Programa até novembro daquele ano, quando finalmente, por

or
insistência dos integrantes da sociedade civil, no dia 22 de novembro, uma

od V
reunião foi realizada. Apesar da ausência de muitos integrantes, essa reunião

aut
apontou importantes passos a serem dados: a) construção do marco metodo-
lógico do Programa, com a definição dos procedimentos de implantação das
coordenações estaduais, com um cronograma de implantação em três Estados

R
até o fim de março de 2005; b) definição dos procedimentos a serem dados nos
casos concretos de proteção; apresentação pelo Governo Federal do Núcleo

o
Federal de Proteção do Programa; c) realização do treinamento dos policiais
aC
em âmbito federal e estadual para formar os corpos de escolta que estariam
envolvidos com o Programa Nacional de Proteção. [...] Em fevereiro de 2005,
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o Programa Nacional de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos teve


um segundo lançamento no Estado do Pará, cerca de uma semana antes da
visã
missionária Dorothy Stang ser assassinada. [...] Apesar de ter tido dois lan-
çamentos oficiais, persiste ainda nos dias de hoje uma confusão por parte da
SEDH em relação ao papel de formulação e monitoramento da política do
itor

Programa Nacional de Proteção dos Defensores (GAIO et al., 2006, p. 32-33).


a re

Nesse sentido, as discussões travaram iniciativas sobre a conceituação


de quem são os defensores de direitos humanos, a necessidade de inclusão
dos defensores no Programa de Proteção às Testemunhas e a autorização do
Poder Executivo a estabelecer Programa Nacional de Proteção, com vistas
a reprimir qualquer forma de violência, ameaça, retaliação, discriminação
par

negativa, de fato ou de direito, coação ou qualquer outra ação arbitrária rela-


tiva à atuação de defensores.
Ed

O programa nacional foi criado a partir da integração de uma Coordena-


ção Nacional e de Coordenações Estaduais, que “son cuerpos deliberativos
con autoridad para responder las solicitudes de protección y determinar qué
ão

medidas deben ser adoptadas y puestas en marcha” (CIDH, 2017, p. 122).


No âmbito federal, a política concentra-se na Coordenação Nacional10,
s

com composição múltipla de membros da sociedade civil e representantes do


ver

Poder Executivo. Em seguida, os estados-membros podem assinar acordos


para participar do programa, ambos (tanto o estadual e quanto o federal) com
autoridade para responder e determinar medidas de proteção11.

10 O Programa é composto pelo Conselho Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos; pela
Coordenação Geral e pelas Coordenações estaduais.
11 Este programa é monitorado por sua Coordenação Nacional com as seguintes atribuições: coordenar e
implementar as ações previstas no programa; monitorar os casos de violação; encaminhar as denúncias
606

O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos


(2017, p. 61) menciona que esse histórico contextual do Programa Nacional
de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos é amplamente criticável pelo
pouco planejamento e pouca estrutura oferecida pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos. Assim, diz que o referido programa foi inaugurado com

or
carência de metodologia, falta de treinamento de agentes públicos, de recursos

od V
orçamentários, de campanhas públicas sobre os/as defensores(as) e de delimita-

aut
ção de responsabilidades pela sua execução, entendendo que essa fraca institu-
cionalidade marca o desenvolvimento do programa brasileiro ao longo dos anos.
Dois anos depois da iniciativa para o Programa Nacional de Proteção dos

R
Defensores de Direitos Humanos, emergiu a Política Nacional de Proteção
aos Defensores de Direitos Humanos (pelo Decreto nº 6044/0712), instituída

o
em 2009, que visa a estruturar a elaboração do Plano Nacional de Proteção
aC
aos Defensores e mantém a preocupação com a proteção13.
O referido decreto descaracteriza o programa nacional e retrocede na

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proteção já estabelecida, pois restringe seu alcance apenas às pessoas em
situação de ameaça, assim como exclui a participação social que antes tinha
visã
assento por cinco organizações da sociedade civil, contando atualmente com
apenas dois membros da SDH e um membro do Ministério da Justiça, que
comporiam o seu Conselho Deliberativo. Além disso, o Programa é conside-
itor

rado raso por trazer apenas dois princípios gerais: a proteção à integridade
a re

recebidas às Coordenações Estaduais; complementar ou substituir, quando necessário, as atribuições


das Coordenações Estaduais; nos casos de violações ou denúncias relativos aos estados que ainda não
tenham constituído sua coordenação estadual, tomar, com urgência, as providências necessárias; constituir
par

e operar banco de dados com informações sobre os defensores, bem como das denúncias efetuadas;
implementar, com a cooperação dos entes da Federação, as recomendações dos órgãos internacionais de
Ed

proteção dos quais o Brasil seja signatário; sensibilizar os entes da Federação para a definição de políticas
locais e desenvolvimento de ações; estimular, junto aos entes da Federação, a criação e o fortalecimento
das Coordenações Estaduais; recomendar às instituições e às autoridades competentes a adoção de
providências para investigar ameaças e apuração de denúncias; desenvolver programa de capacitação dos
ão

agentes envolvidos no Programa e promover a orientação de autoproteção para os defensores dos direitos
humanos; elaborar critérios e parâmetros para a adoção de medidas de proteção; visitar regularmente
os locais de trabalho e avaliar situações de risco iminente aos defensores dos direitos humanos; possuir
s

equipes técnicas estaduais e federais para avaliar pedidos de proteção, conforme o risco enfrentado, bem
ver

como o monitoramento periódico dos casos; adotar medidas urgentes de proteção e garantir integridade
física, psicológica e financeira dos defensores e das defensoras.
12 Esta política buscou consignar a valorização do trabalho do defensor, identificando os princípios gerais,
tais como a dignidade da pessoa humana; a não-discriminação por motivo de gênero, orientação sexual,
origem étnica ou social, deficiência, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa
etária, situação migratória ou outro status; promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos;
respeito aos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e universalidade das dimensões
dos direitos humanos.
13 O artigo 2º do Decreto 6044/07 estabelece que a Secretaria Especial teria 90 dias para preparar o Plano
Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, porém este prazo não foi cumprido.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 607

pessoal e a proteção à atuação na defesa dos direitos humanos, sem especifi-


cá-los (CARVALHO et al., 2016, p. 80; CBDDH, 2017, p. 61).
Em 2007, a Defensoria Pública do Estado do Pará firmou convênio com o
governo federal, por intermédio da Secretaria Especial, e implementou o Pro-
grama Estadual de Proteção que esteve vigente entre 2005 e 2012. Somente em

or
2016 foi aprovada lei estadual que efetivamente buscou instituir o Programa de

od V
Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Estado do Pará, criando um

aut
Conselho Estadual de Proteção aos Defensores, com objetivo de deliberar sobre
a necessidade da proteção policial às/aos defensoras/es de direitos humanos.
Neste sentido, foi promulgada a Lei 6.444/2016, que instituiu o Programa

R
de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos no Estado do Pará, bem
como instituiu o Conselho de Estadual de Proteção aos Defensores. A referida

o
lei prevê a concessão de recursos financeiros para medidas protetivas; aten-
aC
dimento psicossocial; parcerias institucionais com outros entes federativos,
além de campanhas de conscientização e educação em direitos humanos.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Em seguida, a Portaria n. 70 da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos


do Estado homologou a composição do Conselho Deliberativo do Programa
visã
Estadual, indicando ser um órgão de deliberação colegiada de caráter perma-
nente, autônomo e não-jurisdicional. O Conselho é composto pela Federação
dos Trabalhadores Rurais de Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do
itor

Pará (FETAGRI), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Sociedade Paraense de


a re

Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e a Terra de Direitos, que são entidades
que já atuam na proteção de defensores de direitos humanos no Estado do Pará.
Este Conselho deve implementar e fiscalizar a política de proteção inte-
gral, bem como difundir e propor diretrizes para a implementação de políti-
par

cas públicas para proteção de direitos humanos; deve monitorar violações de


direitos contra os defensores; deve deliberar sobre o ingresso, a manutenção
Ed

e a exclusão da proteção contra a emaça de morte no programa estadual, bem


como estabelecer as medidas de proteção necessárias em cada caso; deve
definir estratégias de articulação com os órgãos públicos federais, estaduais e
ão

municipais; deve acompanhar e auxiliar o encaminhamento das denúncias; deve


requerer a instauração dos procedimentos administrativos ou judiciais neces-
sários para apuração de responsabilidade pela violação de direitos humanos.
s

O programa deve elaborar medidas de enfrentamento, tal como assessoria


ver

jurídica gratuita em nível nacional e internacional; apresentação de projetos


de educação em direitos humanos; assistência psicossocial e elaboração de
documentos referenciais a respeito da temática, que relacionem uma incidência
política e transmissão dos saberes de movimentos sociais.
608

Os três primeiros estados brasileiros a adotarem a política estadual de


proteção foram Pará, Pernambuco e Espírito Santo14, conhecidos como pro-
gramas-pilotos relevantes pela inovação, mas principalmente pelo alto número
de defensores ameaçados e o histórico de violências nessas localidades.
O CBDDH identificou pontos críticos à gestão e execução dos programas,

or
quais sejam: a) a formalização via convênio, e o prazo de vigência, uma vez

od V
que os convênios, em regra, têm prazo de execução de um ano, o que dificulta

aut
a execução devido à interrupção no trabalho; b) o número limitado de mem-
bros da equipe técnica; c) a precariedade do instrumento legal que institui o

R
programa, muitas vezes considerados insuficientes, precários e até inexistentes;
d) temporariedade e excepcionalidade dos programas, que muitas vezes não
tem continuidade devido ao atraso ou insuficiência no repasse de verbas – em

o
2017, o repasse previsto pela Lei Orçamentária Anual era de R$ 4.600.000,00
aC
(quatro milhões e seiscentos mil reais), reconhecido como insuficiente para
manter o programa federal funcionando regularmente (CBDDH, 2017, p. 64).

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Gaio, Aragão, Gorsdof e Carvalho afirmam que o Estado do Pará apresen-
visã
tou um modelo de gestão do programa mais avançado em relação ao anterior,
construído em 2003, mas o Governo Federal, por intermédio da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, não se mobilizou para destinar recursos para
concretizá-lo. Em consequência, o programa paraense apenas ofereceu pro-
itor

teção policial aos defensores, distante das diretrizes da concepção original


a re

do Programa Nacional (GAIO et al., 2006, p. 33).


Em seguida, outro convênio foi realizado no ano seguinte para dar con-
tinuidade às ações de proteção e vigeu até 2012. O CBDDH destaca que o
par

14
Ressalta-se que a maioria dos Estados não tem convênio firmado para implantação de um programa estadual
de proteção e os casos ocorridos nestes territórios são acompanhados pela Equipe Técnica Federal sediada
Ed

em Brasília, diretamente vinculada à Coordenação Geral do Programa e à Secretaria Nacional de Cidadania.


Budahazi et al. (2020, p. 50) explicam que “a cada ano varia o quadro de estados capazes de manter um
programa estadual de proteção dos defensores”, inclusive alguns estados possuem programas que deixaram
de funcionar (o programa do Espírito Santo, pela lei estadual nº 8.233/05, foi fechado em 2016, por exemplo).
ão

Em 2016, foi implementado em seis estados (BA, CE, ES, PE, MG e MA) e, em 2018, foram nove estados
(BA, CE, PE, PA, MA, MG, AM, DF e PA) com o programa estadual instituído, com Mato Grosso, Paraíba e
Amazonas com programas em fase de implementação (MDH, 2020). Segundo os dados do CBDDH (2017,
s

p. 78), somente os programas mineiro, maranhense, pernambucano e cearense permaneciam vigentes


ver

àquela época. Desde 2005, por exemplo, avançaram programas implementado pelos seguintes estados:
Minas Gerais: lei estadual nº 21.164/14; Rio de Janeiro; Pernambuco: lei estadual nº 14.912/12; Pará: lei
estadual nº 8.444/16; Rio Grande do Sul: lei estadual nº 14.481/14. Esta informação dos Programas estaduais
também é retirada da Anistia Internacional, que afirma que, das 27 unidades federativas estaduais brasileiras,
somente oito adotaram o Programa, mas apenas cinco cumprem sua função de proteção (ANISTIA, 2014,
p. 33-34) e pela Comissão Interamericana, que aponta para um dado igualmente alarmante: os programas
estaduais foram implementados em nove Estados, mas, por diversos motivos, deixou de ser aplicado nos
estados do Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, além de ter sido interrompido várias vezes nos demais
estados. O relatório afirma que foi estabelecido formalmente somente em seis Estados (PE, MG, ES, CE,
MA e BA) e que os programas maranhense e baiano não estão operativos (CIDH, 2017, p. 122).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 609

programa paraense foi desativado em decorrência de fragilidade institucional,


o que indica um “retrocesso na institucionalização do programa em estados
importantes”, mesmo possuindo o maior número de defensores e defensoras
vítimas de violência no Brasil (CBDDH, 2017, p. 100).
Por ser um estado que possui graves números de ameaça de morte e

or
consumação de homicídios, é possível considerar tais violações como uma

od V
situação estrutural de violência, o que se agrava com os constantes alertas

aut
sobre os graves conflitos fundiários na região. Em consequência, fica clara
a frágil garantia ao direito de defender direitos e a necessidade de proteção

R
integral de seus defensores, identificando-se como o estado campeão de assas-
sinatos e constante violador de direitos, inclusive com dados que demonstram
a participação estatal nestas violações.

o
aC
Conclusão
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A presente pesquisa buscou compreender os dados de violações ao direito


visã
à vida de defensores e defensoras de direitos humanos no Estado do Pará,
em um cenário de exploração econômica desenvolvimentista e de conflitos
agroambientais que potencializam as ameaças de morte e homicídios consu-
mados contra estes sujeitos, envolvendo práticas de difamação, vitimização
itor

e criminalização, permitindo-nos concluir que o Estado paraense está territo-


a re

rialmente permeado por conflitos de terras e instalações de grandes projetos


econômicos de interesses exógenos à região.
Neste contexto, a promulgação do Programa Nacional de Proteção dos
Defensores de Direitos Humanos e do Programa de Proteção aos Defensores
par

de Direitos Humanos do Estado do Pará, traça algumas críticas necessárias


para entender os principais elementos de não-efetivação da proteção do direito
Ed

à vida destes defensores e defensoras, chegando-se à conclusão de que há um


registro situacional de ineficácia da proteção e medo diante do envolvendo
de instituições públicas na perpetração da violência. Assim, fica clara a frágil
ão

posição do estado paraense em relação ao direito de defender direitos e a


necessidade de proteção efetiva de seus defensores e defensoras.
A realidade apresentada clama como imperativo o aperfeiçoamento do
s

Programa Estadual de Proteção aos Defensores e de Direitos Humanos no


ver

Estado do Pará, instituído pela Lei nº 6.444/2016, com vistas a superar os


desafios de ineficácia por descontinuidade de vigência dos programas em anda-
mento, por ausência de repasse de orçamento e liberação financeira para exe-
cução das medidas necessárias à proteção, bem como pela necessidade de que
se estabeleça efetiva proteção integral à vida destes defensores e defensoras.
610

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a re
par
Ed
s ão
ver
ENTRE TROCAS COMERCIAIS
E PALAVRAS TROCADAS:
construção de vínculos e encontros no

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mercado municipal de Araguaína – TO1

od V
aut
Angélica Cabral Oliveira Alves
Jaíne Daise Alves dos Santos

R
Stefania Cardoso Brito
Sthefany Monteiro Salazar Ataide

o
Kamila Soares de Araújo Coimbra
Robenilson Moura Barreto
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Introdução
visã
O presente trabalho converge com os valores essenciais e fundamentais para
o exercício de uma psicologia comunitária, alicerçada pelo compromisso social e
a produção de conhecimento consolidando as práticas psicológicas como ciência
itor

e profissão vivenciada e percebida desde os primeiros períodos da graduação


a re

em psicologia da Faculdade Católica Dom Orione (FACDO). Conduzimos essa


experiência baseada nas experiências enriquecedoras vividas e construídas na
disciplina de antropologia, em que realizamos um trabalho em visitas ao mercado
municipal e feira livre de Araguaína – TO, intitulado “Pequeno Ensaio Etnográ-
fico” em que foi observado o trabalho das mulheres naquele lugar a partir de uma
par

visão antropológica das construções culturais e sociais estabelecidas no território.


Entender os processos históricos, culturais e antropológicos nos quais os
Ed

sujeitos estão inserido na sociedade possibilita a oportunidade de compreen-


são das relações estabelecidas em determinadas culturas. É importante olhar
ão

para o sujeito como sujeito de relações e ativo nos processos sociais, a fim de
reconhecer sua importância e compreender o seu papel na sociedade. Con-
trapondo a essa posição, muitas vezes tornam-se sujeitos passivos diante das
s

oportunidades das condições nas quais estão inseridos, quando não conseguem
ver

conceber outras oportunidades (NEVES; DAMIANI, 2006). Do mesmo modo,


as construções dos sujeitos sociais e da subjetividade é constituída por meio
da inserção social, cultural, histórica e dialética ao qual o sujeito pertence. As
relações estabelecidas com o meio formam e possibilitam aos sujeitos únicos
e singulares, serem sujeitos plurais e sociais (BARÓ, 1996).

1 Esse texto é resultado do relatório final da disciplina obrigatória de Estágio Básico Supervisionado I em
Psicologia Social realizada no 5° período de Psicologia na Faculdade Católica Dom Orione (FACDO).
618

O estágio Básico Supervisionado I em Psicologia Social, tem um impor-


tante papel para a formação acadêmica no curso de Psicologia, sobretudo
porque aspira novas experiências em práticas sociais promotora de transfor-
mações nos atores envolvidos. As imersões realizadas no Mercado Municipal
e feira livre de Araguaína - TO, descortinou inúmeras possibilidades de olhar

or
o espaço, suas relações e os vínculos estabelecidos entre os trabalhadores e

od V
trabalhadoras, assim como suas características e dimensões psicossociais,

aut
econômicas e cultural (SANTOS; NÓBREGA, 2017). Da mesma forma, o
estágio trouxe questões acerca de como as trabalhadoras se percebiam nesse
campo, as condições para que fizessem ocupar o território e as formas de

R
relações e vínculos estabelecidas. Portanto, além de observar essa dinâmica,
eram suscitadas ainda, novas indagações e reflexões acerca de novas possibi-

o
lidades de aprendizados e compreensões, sobretudo para o campo do ensino
aC
e aprendizagem na formação de Psicólogas.
Além disso, é importante ressaltar que acompanhar a rotina dessas tra-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


balhadoras nos possibilitou conhecer o território, bem como construir um
processo de identificação e transferência de forma mais extensa e aprofundada.
visã
Isto envolve colocar em prática, arcabouços teóricos e usar o conhecimento
aprendido durante a formação.
Desse modo, o estágio apresentou como objetivo principal, observar a
itor

dinâmica das trabalhadoras do Mercado Municipal e feira livre de Araguaína


na construção de seus vínculos e relações no espaço de trabalho, bem como
a re

as dinâmicas de trocas da feira-livre no seu dia a dia. Por conseguinte, com-


preender a influência do trabalho na vida das trabalhadoras em seus aspectos
físicos e psíquicos diante da produção do trabalho.
Por se tratar de um estágio básico no campo da psicologia social, o
par

percurso metodológico adotado traz uma relação com o pesquisar e o fazer


de forma simultânea que podemos nominar de pesquisa-ação. Esse método,
Ed

segundo Tripp (2005), propõe um processo de investigação-ação que contem-


plem um ciclo de práticas sistêmicas entre o fazer no campo e sua investigação
na medida em que estamos inseridos em sua realidade. Essa investigação se
ão

materializou diante das observações, escutas e conversas realizadas com as


trabalhadoras e trabalhadores no espaço do Mercado Municipal de Araguaína
e na feira livre que acontece ao seu redor. Os registros foram realizados no
s

diário de campo na medida em que a imersão acontecia no território, produ-


ver

zidos a partir das informações colhidas por meio das narrativas não apenas
dos trabalhadores, mas também dos clientes e usuários da feira.

A história das feiras livre e seu lugar na cidade

A feira livre é um fenômeno antigo e sua importância vai além da questão


econômica, ela também é o palco social e cultural de um povo. A feira é o
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 619

lugar das relações de proximidade, intimidade, a relação de amizade” (JESUS;


DAMERCÊ, 2016, p. 9). Historicamente, a feira livre se constituiu na relação
entre produtores do campo que tinham necessidade de trocar e/ou vender seus
produtos excedentes, mas também obter produtos que necessitavam. De tempos
em tempos esses produtores se reuniam em um local, como pequenos vilarejos,

or
que deram origem às cidades, permanecendo a interação entre rural e urbano.

od V
O conceito feira surgiu no século XV dentro do contexto mercantilista

aut
como um espaço de comercialização, no entanto, atividades que envolviam
relações de troca, escambo, são bem mais antigas, remontam o período da

R
antiguidade onde templos religiosos eram utilizados como espaços para trocas
dos produtos excedentes que eram produzidos pelos camponeses e artesãos
das comunidades, vilas e pequenas cidades que aos poucos formaram grandes

o
centros urbanos, de acordo com Araújo (2011), (apud CHILDEN; GORDON),
aC
nas cidades teocráticas como as do Egito e da Suméria, os deuses foram os
“primeiros capitalistas”, devido ao uso dos templos para fins comerciais.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Vale ressaltar que nessas cidades da antiguidade, desde a Mesopotâmia,


localizada no que hoje conhecemos como Oriente Médio, Egito, localizado
visã
no continente africano e vale do Indo, na Ásia, o comércio tem o papel de
abastecimento das cidades, ocorrendo uma relação por vezes de troca de
produtos, mas tendo também a existência de um comércio monetário nessas
itor

localidades com o uso de moedas, a existência de caravanas de comércio e


a re

feiras permanentes. Todo esse movimento em torno do comércio existente


nessas regiões citadas influenciou o ocidente europeu em sua dinâmica comer-
cial, tanto na formação de suas cidades, como em suas práticas de mercado.
Dentro do contexto ocidental europeu, as feiras livres surgem no século IX
par

no contexto da Idade Média, primeiramente para o abastecimento das comunida-


des. Com a expansão comercial, ocasionada principalmente pela intensificação
Ed

do contato entre ocidente e oriente, contato este provocado por uma série de
fatores como: as cruzadas, a crise do sistema feudal, o reavivamento dos burgos
(cidades), logo, os centros urbanos dentro do contexto medievo ganham um
ão

aumento na circulação de mercadorias vindas principalmente do oriente próximo.


Os locais das feiras livres nesta conjuntura medieval, eram espaços liga-
dos a religiosidade, religiosidade está muito forte no período em questão,
s

estando presente inclusive no nome feira, que é derivado da palavra latim


ver

“feria”, que significa “dia santo, dia de descanso ou feriado”, segundo Silva
(2018) muito provavelmente os dias escolhidos para a prática do comércio,
eram os mesmos em que realizavam aglomeração de pessoas para frequentar
os eventos religiosos. É importante lembrar a intima ligação entre o surgimento
das feiras e as cidades, essas feiras surgiram como uma expansão do comercio
local, onde, geralmente as cidades se constituíram em torno da igreja e dos
mercados e praças.
620

Logo segundo Silva (2018), (apud GONÇALVES; ABDAL, 2013, p. 02),


atribui-se que a origem das feiras esteja intimamente ligada ao surgimento de
cidades. Uma vez que as mesmas geraram centros de aglomeração humana,
a partir das atividades comerciais que instigaram a abertura de estradas e
comunicações entre diferentes grupos. É importante pontuar que esse esta-

or
belecimento das feiras livres está diretamente ligado a expansão marítima e o

od V
avanço do comércio na Península Itálica, fomentando desta forma a circulação

aut
de mercadorias na região a partir dos portos italianos principalmente.
De acordo com a autora Silva (2018), (apud CALADO, 2013, p. 22)
na Idade Média o que se denominava como feiras eram as grandes reuniões

R
de comerciantes de várias regiões da Europa, que comercializavam os mais
diversos produtos.

o
No Brasil as feiras iniciaram durante o período da ocupação europeia
aC
portuguesa, tendo como base o modelo português europeu de feira. Os nativos
brasileiros tinham uma outra dinâmica com os produtos por eles fabricados,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


segundo Araújo (2011) os nativos estavam acostumados a uma cultura de sub-
sistência e não de acumulação de excedentes. Não existindo, portanto, segundo a
visã
autora, registro de transações comerciais antes da chegada dos europeus, Araújo
(2011, p. 65) continua dizendo que, entretanto, há sim registo de uma “troca
silenciosa” efetivada entre as aldeias e começa a descrever de forma breve, no
itor

entanto, detalhada como ocorria essa “troca silenciosa” entre as aldeias:


a re

[...] num terreno descampado, inimigos mortais estabeleciam uma rudi-


mentar “paz de mercado” -de um lado ficavam os Tupinambá, e do Tupi-
niquim. Intercambiavam apenas dois produtos altamente valorizados e
especialidades de cada grupo: os primeiros ofereciam quantidades de penas
par

coloridas, enquanto os outros traziam pedras de cores, utilizadas para


fazer enfeites faciais. Os Tupinambá colocavam seus produtos no meio do
Ed

descampado, e se retiravam. Vinham os Tupiniquim, levavam as penas e


deixavam as pedras semipreciosas. Em seguida era a vez dos Tupinambá
de recolherem os bens deixados pela tribo inimiga. Cada grupo levava o
ão

produto trazido pelo outro, sem qualquer comunicação intergrupal, e mal se


distanciavam do local, interrompia-se a trégua, reiniciando as hostilidades
s

Com a chegada dos portugueses essas trocas continuam presentes nas rela-
ver

ções iniciais entre os nativos e os europeus, ocorrendo trocas de produtos como,


o pau-Brasil, de interesse português, produtos como canivetes e facas que eram
de interesse dos nativos no quais usavam como adornos especiais de enfeites.
A primeira feira realizada no Brasil é datada de 1548, dentro do período
colonial, especificamente, do governo-geral, determinado por Dom João III,
o objetivo inicial era que a feira acontecesse semanalmente com o intuito de
abastecimento local e circulação de bens e pessoas, visando uma ocupação
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 621

efetiva do território, no entanto somente em 1588 é que as feiras se conso-


lidaram de fato nas povoações existentes no Brasil, com o intento primário
de abastecimento, Araújo (2011), (apud MOTT) acrescenta que, as feiras
surgiram no Brasil, efetivamente, quando um maior desenvolvimento demo-
gráfico e uma maior diversidade económica da colónia justificaram a criação

or
de lugares de troca de mercadorias.

od V
No decorrer dos séculos XIX, XX até os dias atuais as feiras se mul-

aut
tiplicaram pelas cidades, seguindo as características das feiras portuguesas
de abastecimento local, encontro de diversos comerciantes locais e regiões
próximas para revenderem seus produtos, um espaço de socialização e uma

R
ligação com a religiosidade. Esses locais onde geralmente elas ocorrem, sem-
pre no centro da cidade fazendo uma extensão do comércio e no geral são

o
lugares ligados ao surgimento dos centros urbanos.
aC
De acordo com Carvalho, Borges, Rêgo (2010), SILVA (apud PIERRI;
VALENTE, 2010) e Beiras et al. (2004), a feira é compreendida como um
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conjunto de pessoas que a transforma em um “organismo” e preserva uma


energia vital, como que uma resistência às modernidades e conveniências, e
visã
resguarda tesouros de subjetividade, sociabilidade, proximidade e humanidade.
A feira que surge como um espaço de troca de produtos, como algo monetá-
rio dentro do contexto da globalização é a mesma que através das relações
itor

humanas constitui espaços culturais de histórias e memórias.


a re

Mercado municipal de Araguaína: histórias e memórias

Ainda na perspectiva de mercados e feiras livres, o Mercado Municipal e


par

feira livre de Araguaína – TO é um local de comércio informal, onde podem ser


encontrados os mais diversos tipos de produtos, desde aqueles vindos da zona
Ed

rural até os produtos industrializados e importados. Há uma grande variedade


de produtos nas áreas de vestimentas, acessórios, artesanatos, redes, produtos
nordestinos, peixaria, queijarias, lanchonetes, produtos rurais, bijuteria, grãos,
ão

frutas, remédios, panelas, ervas, temperos, pimentas, verduras, eletroeletrôni-


cos, e artigos exclusivos e específico como sandálias de couro rústicas, raízes
medicinais, fumo em rolo, sapucaia (fruto típico da região), massa puba. Além
s

da praça de alimentação, onde servem os famosos Chambaris e buchadas.


ver

Nesse contexto, se faz necessário pontuarmos brevemente sobre a história


de Araguaína e a forma com a qual ela é contada, a partir da historiografia
oficinal do Tocantins, na qual a BR 153 dá início a um processo de desenvol-
vimento que é concretizado com a separação do estado em 1988. Na narrativa
oficial o antigo norte goiano era um lugar isolado de outras localidades do
Brasil, e com a construção da BR 153 e a separação do antigo norte goiano
fez com que o progresso e desenvolvimento fossem trazidos para onde hoje
622

chamamos de Tocantins. O que a historiografia oficial não conta é que a


navegação pelos rios Araguaia, Tocantins e Grajau era intensa nessa região,
fazendo com que esta não fosse isolada, ao contrário do que nos é narrado.
Segundo Venancio (2019), (apud PARENTE, 2003) Povos indígenas
diversos habitavam a região do que hoje é o estado do Tocantins. Acredita-se

or
que o contato desses grupos com os não indígenas iniciou-se ainda no século

od V
XVI, por meio das bandeiras e da ação de missionários. De início as ações

aut
missionárias e a mineração fazem esse processo de ligação dentro dessa região,
que com o passar do tempo, será um território de intenso processo migratório
de povos das regiões norte e nordeste, principalmente maranhenses e paraenses.

R
No século XVIII o ouro motiva as levas migratórias para a região, ainda
no mesmo século, no final dele, a pecuária será o motor de um novo ciclo

o
demográfico para tal localidade, segundo Venancio (2019), (apud ROCHA,
aC
1998) ocorre um afluxo populacional motivado pelas frentes de expansão
baseadas na pecuária: uma, ao norte, proveniente do Maranhão [especialmente

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


da região de Pastos bons], e outra ao sul, movimentando-se de Minas Gerais
em direção ao Mato Grosso. A pecuária assim como o ouro faz com que
visã
aumente a circulação de pessoas nessas regiões, os rios Araguaia, Tocantins e
o Grajau, são de fundamental importância para o escoamento de mercadorias
da região e para a chegada de produtos a serem comercializados de outras
itor

regiões do país abastecendo assim a localidade.


a re

Esses rios foram por séculos ponto de integração econômica das regiões,
norte goiano, Maranhão e Pará, que na prática o norte goiano não era isolado
do país, mas, ligado as regiões norte e nordeste, Venancio (2019) reforça essa
ideia referindo-se principalmente ao rio Grajau ao dizer que, por mais de um
par

século e meio, esse rio foi ponto de integração econômica e cultural entre o
sul maranhense e o norte goiano com o centro-sul maranhense, os rios têm
Ed

um caráter integrador entre as regiões, fomentando em suas mediações o


surgimento de cidades com seus centros comerciais e suas feiras.
Isso fica evidente quando atualmente em uma breve conversa com os
ão

trabalhadores e trabalhadoras do mercado municipal e feira da cidade de


Araguaína – TO, nota-se que em sua grande maioria são advindos da região
nordeste do país, característica essa que dialoga diretamente com o caráter
s

integrador dos rios e com o intenso fluxo migratório dessa região para a
ver

localidade em questão.
Para Venancio (2019) fluvial ou terrestre em certos trechos e conectando
regiões maranhenses e goiana/tocantinenses, a rota aberta pela pecuária veio a
ser usada pelos imigrantes em 1970 para chegar em Araguaína. A pecuária e os
rios sempre mantiveram essa região conectada, o fato é que a criação da BR
153 amplia o acesso à região norte, seja a população local, seja a população de
outras regiões do país como sudeste e sul. O interessante a observar ao se estudar
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 623

a história do Tocantins e consequentemente de Araguaína, é que estamos estu-


dando regiões que receberam e recebem levas migratórias, fazendo com que aqui
coexistam uma multiplicidade de memorias que formam identidades diversas.
A partir disse, podemos pensar a memória como o ato de lembrar e reme-
morar algo, sendo também ela responsável por conservar lembranças de uma

or
sociedade, logo, a memória como diz Halbwachs (2003) ela é coletiva tornan-

od V
do-se de suma importância para se analisar a identidade. Sendo a memória

aut
coletiva ela também é individual, faz-se assim um entrelaçar entre memória
individual e coletiva, onde a primeira é um ponto de vista da segunda, logo

R
para Canabarro, Moser, Ernesto (2018, p. 117), (apud HALBWACHS, 2003)

É mais comum considerar-se a memória uma faculdade propriamente

o
individual – ou seja, que aparece numa consciência reduzida a seus únicos
aC
recursos, isolada dos outros, e capaz de evocar, por vontade ou por acaso,
os estados pelos quais passou antes. No entanto, como não é possível
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

questionar o fato de que frequentemente reintegramos nossas lembranças


em um espaço e um tempo sobre cujas divisões nos entendemos com os
visã
outros, de que nos situamos também entre datas que não tem sentido senão
em relação aos grupos de que fazíamos parte.
itor

Para Halbwachs (2003) a memória individual não existe sem a memória


coletiva, elas coexistem, uma como ponto de vista da outra, a primeira irá
a re

olhar e narra a segunda a partir do seu olhar individual, mas, sua construção
em relação a coletividade é feita a partir dessa memória coletiva, desta cons-
trução em grupo socialmente compartilhada e vivenciada.
A memória faz essa ponte entre passado e presente, Silva (2018), (apud
par

LE GOFF, 2013) nos diz que, a memória como capacidade de conservar


informações importantes e vitais, remete a um conjunto de funções psíqui-
Ed

cas, graças às quais o homem pode atualizar impressões passadas, ou que ele
apresenta como passadas. Um passado sempre em construção e vividamente
vivenciado, a autora continua dizendo que; essa memória tem um aspecto
ão

sempre ligado ao presente, cuja narrativa leva a composição de uma história


e uma identidade que tem validade enquanto completar a produção de sentido
s

à vida do indivíduo que a narra.


ver

Pensando especificamente Araguaína – TO uma região de intensos fluxos


migratórios e suas diversas memórias coletivas, podemos observar a partir
da oralidade as identidades construídas a partir da memória de grupo. Essa
concepção coletiva de construção da identidade a partir de uma memória
coletiva é extremamente importante quando pensarmos e olharmos para uma
cidade como Araguaína, onde pessoas de diversas localidades do país vieram
e aqui chegaram e vivenciam uma multiplicidade de identidades e memórias.
624

Os espaços de coletividade como mercado municipal e a feira livre, é


um exemplo do trânsito dos diversas grupos de pessoas que para aqui vieram
em determinados momentos da história da cidade e do estado. Se olharmos
para feira como um espaço que surge com um caráter de troca de mercadorias
excedentes, que ganha também um caráter monetário com o passar do tempo,

or
mas, na sua dinâmica essencialmente humana, cria suas teias culturais para-

od V
fraseando GEERTZ, teias estas que criam significados constantes, onde esses

aut
signos se entrelaçam, vemos que, a cultura não é um poder, algo ao qual podem
ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos,
as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles

R
podem ser descritos com densidade GEERTZ (1989), densidades estas que
são construídas, e que podem ser observadas e interpretadas.

o
Neste ponto temos a oralidade como um possível instrumento de análise
aC
que pode ajudar a pensar a memória coletiva que é repleta de signos, mitos,
simbologias, que para Canabarro, Moser, Ernesto (2018) essas significações

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presentes em mitos, simbologias, tradição popular, são parte de um processo
geral da memória social, fazendo brotar relações sociais, padrões de estrutu-
visã
ração de um imaginário. A oralidade como escuta de uma memória de grupo,
coletivamente construída e socialmente compartilhada em espaços como a
exemplo do Mercado Municipal e da feira de Araguaína – TO.
itor

Dentro dessa perspectiva da oralidade, foi averiguado que todos os que


a re

trabalham no espaço do Mercado Municipal de Araguaína – TO, são chamados


de permissionários, pagam mensalmente valores que variam de acordo com
os tamanhos das salas, box e bancas quanto pela localização. Em 2019, havia
no mercado cerca de 264 permissionários e 300 bancas de feirantes na feira
par

livre que ocorre no entorno do mercado todas as sextas-feiras e sábados, a


feira que se estende sempre ao mercado fazendo uma memória coletiva que
Ed

também traz noção de localização como pontua Halbwachs (2003), nessa


questão podemos marcar os espaços das feiras europeias que foram produzidas
no Brasil e que se refazem até os dias atuais, mesmo que algumas questões
ão

temporais e regionais produzam particularidades, mas a dinâmica de comér-


cio coletivo, que se estende ao mercado, que trazia um fluxo de pessoas e
mercadorias para abastecimento local se mantem.
s

Ainda sobre o Mercado Municipal e feira livre de Araguaína – TO eles


ver

são administrados pela FUNAMC e têm como cuidadores do local, um coor-


denador, um fiscal, um auxiliar administrativo e funcionários da FUNAMC,
que fazem o trabalho da limpeza.
Embora não tenha registros escritos oficiais a respeito do Mercado Muni-
cipal sobre sua construção e mudanças realizadas ao longo do tempo, pudemos
encontrar várias narrativas da história do Mercado Municipal e da feira livre
de Araguaína – TO.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 625

Fazendo o uso da oralidade podemos entrevistar uma das trabalhadoras


do mercado, que nos relatou, que este era feito de madeira e que havia uma
quantidade muito maior de feirantes. Ela também fala que o mercado atual foi
resposta de uma grande luta dos trabalhadores, pois as condições eram pre-
cárias, principalmente quando chovia e que alagava toda a feira. Atualmente

or
o Mercado Municipal tem uma outra estrutura, sendo desta forma totalmente

od V
reformado, como nos mostra a figura a seguir:

aut
Figura 1 – Planta atualizada até 2019 do Mercado Municipal de Araguaína

R
o
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

Fonte: Fornecido pela administração do Mercado Municipal de Araguaína.


626

Ao observamos a imagem podemos notar uma organização no espaço


físico em box, como já foi relatado acima, o que vai de encontro com a
mudança que foi narrada pela anteriormente, na qual, o mercado inicialmente
era de madeira, nos levando a imaginar um lugar mais simples e improvisado,
no mapa observamos um local planejado e com uma estrutura física própria

or
para o comércio no modelo globalizado.

od V
Essa dinâmica de comércio observada no mapa se reflete nas relações

aut
comerciais do mercado, isso fica evidente no relato de um dos usuários
frequente do mercado que relatou que as mudanças estruturais ajudaram

R
muito na organização dos trabalhos e dos trabalhadores. Ressalta ainda que
a limpeza que é feita duas vezes por dia por agentes da prefeitura, coisa que
antes não acontecia. Gosta da feira livre como referência de aconchego fami-

o
liar e cultural no que se refere às tradições de pequenas cidades. As relações
aC
humanas construídas nas dinâmicas das feiras livres, fica evidenciada no
momento que é relatado pelo usuário o aconchego que ela proporciona e a

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dinâmica que é específica das feiras livres.
Um lugar de histórias, de memórias coletivas, de sociabilidade, que está
visã
para além das estruturas físicas, e que se remete também às relações sociais
e afetivas estabelecidas, bem como às próprias características históricas e
culturais que o lugar e as relações oferecem. Lugar esse que rompe com as
itor

barreiras do tempo e da modernidade, da comodidade dos grandes supermerca-


a re

dos e agrega valores sociais e de subjetividades nas relações humanos em seus


produtos. Relações constroem vínculos e trocas afetivas para além da troca de
mercadoria, mas trocas simbólicas das experiências de vida e o compartilhar
do dia a dia em uma unidade de pertencimento identitário do território.
par

Vínculos e encontros no mercado municipal de Araguaína - To


Ed

O espaço do mercado e da feira livre é de muita troca e compartilha-


mento, de relações próximas e fraternas entre feirantes e consumidores, que
ão

em sua grande maioria são frequentadores assíduos e têm uma rotina de ir à


feira no sábado pela manhã para comprar produtos especializados e especí-
ficos somente encontrados na feira. Uma das frequentadora assídua da feira,
s

relata que: “Compro no mercado pois tenho oportunidade de comprar para


ver

pagar depois, quando recebo meu salário. Eu compro no mercado durante a


semana quando sei que no final de semana não posso ir à feira. Fico feliz e
alegre quando estou aqui. Gosto do clima da feira, só não venho aos sábados
quando não tenho condições mesmo, o mercado e a feira pra mim são lugares
de terapia, aqui esqueço todos os meus problemas e me sinto feliz e acolhida
por estar neste local, pois é um hábito que tenho desde minha infância e que
preservo com muita alegria e amor.”
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 627

Nota-se que no horário da manhã, o perfil dos frequentadores da feira tem


uma faixa de idade acima dos 55 anos e geralmente são aposentados. Nesse
momento, o público se diversifica e frequentemente aparecem pessoas mais
jovens. Havia presenças de cadeirantes, uma usando “balão” de oxigênio,
crianças acompanhadas por seus avós e aprendendo com eles sobre alguns

or
materiais que tinham na feira. Os feirantes trabalhadores atendem com muita

od V
disposição e sempre prontos a solucionar o problema dos clientes, dando

aut
receitas, indicando outra banca de produtos, baixando os preços, confiando
no cliente para que leve o produto fiado e pague no sábado consecutivo. A
feira é composta por muitos personagens já bem conhecidos e antigos, tanto

R
pelos próprios feirantes quanto pelos consumidores.
Essa realidade vivenciada afirma que assim como a ciência surgi direta e

o
ou indiretamente através dos fenômenos naturais, a psicologia se desenvolve
aC
diretamente com as relações naturais/sociais, assim como a feira e o mercado
municipal nos mostra que a ciência psicológica está visivelmente presente em
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

acontecimentos comuns do dia a dia, semblante significativamente importante


a ser explorado e investigado para analisar momentos únicos apresentados em
visã
momentos oportunos, como a fala de Manuela anteriormente mencionada, no
qual a mesma apresenta alguns fatores em sua fala, exemplo, a interferência
sócio econômico, a relação com o outro, o bem estar no ambiente, entre outros
itor

fatores. Aspectos esses que também são presenciadas em outros diálogos


a re

que a seguir serão apresentados. Essa comunicação mostra com eficácia que
a psicologia está presente nos lugares mais “simples” vivenciados pelo ser
humano, seja ele em uma feira quanto em um mercado (CAMINO et al.,
2013, GONÇALVES, 2010).
par

Continuando a descrição, as autoras perceberam que no sábado, há uma


migração dos comerciantes que têm lojas que estão nas ruas acima citadas
Ed

para a rua em frente aos seus comércios, tendo uma visibilidade maior dos
consumidores. Beiras (2004) nos informa sobre as estratégias necessárias
que os vendedores possuem para a sobrevivência enquanto grupos sociais
ão

na articulação de novas possibilidades como grande fluxo de pessoas, ques-


tões estas aprendidas através de suas experiências, reflexão essa que segundo
Pichon Riviere (2009) é proporcionada pela dialética, isto é, pela dialética
s

na realidade, onde através da percepção da estrutura do funcionamento do


ver

grupo social que o sujeito se encontra, é que ele aprende e se instrumentaliza


para transformar-se e evolui-se ao decorrer de sua interação com o ambiente
(PEREIRA, 2013). Aplicando essas teorias à realidade do campo investigado,
aos comerciantes no mercado perceberem que na sexta o fluxo de clientes é
maior, porém percorre-se mais frequente no local específico da feira, alguns
vendedores transitam do local fixo do mercado para se posicionar tempora-
riamente à feira, obtendo mais oportunidade de vender sua mercadoria por ter
628

mais visibilidade da freguesia. Ou seja, através de sua interação e integração


com o local vivenciado, eles adquirem estratégias e aprendizagens necessárias
de novas possibilidades de sobrevivência e adequação no ambiente.
Outro fator presenciado é que há uma grande variedade na clientela do
mercado, porém na sua grande maioria são de maior idade e um vínculo de

or
amizade com os funcionários do mercado, ficam muito tempo por ali conver-

od V
sando, em uma relação fraterna. Outro frequentador, João, que falou conosco

aut
era um senhor já com mais de setenta anos, disse: “Sempre venho à feira
quando venho na cidade, e que só não compro muito porque acho os produ-

R
tos caros; eu gosto de vim no mercado para ver as coisas, conversar com os
barraqueiros porquê me sinto bem, sempre que possível levo alguma coisa”.
Observa-se uma relação de amizade e confiança entre as trabalhadoras e

o
os trabalhadores do mercado juntamente com os seus frequentadores, faz-se
aC
referência a Baró (1996) e Jesus & Damercê (2016), que revela um olhar
humanista sobre as relações sociais. Quando, também, há uma pluralidade nas

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relações tanto quanto mercadológica, histórica e cultural peculiares encontradas
no mercado. Logo que chegamos, uma das trabalhadoras do mercado, relatou
visã
sobre a chuva e as bênçãos que a chuva traz. Ela estava arrumando uma lona
que cobria suas frutas e legumes que ficam na banca da calçada, enquanto fazia
isso apareceu uma pessoa em situação de rua para ajudá-la. Nesse momento,
itor

pegou na outra ponta da lona sem que ela o pedisse e enquanto a ajudava, a
a re

trabalhadora começou a narrar sobre a importância das pessoas em situação de


rua na feira como parte integrante e pertencente ao espaço. Nesse momento,
percebemos uma troca afetiva, fraterna e sobretudo com dignidade entre os
frequentadores do espaço; seja trabalhador, seja usuário do espaço, ou qual-
par

quer outra pessoa que circule no ambiente. Então a trabalhadora relata: “São
anjos enviados por Deus” que aparece sempre quando mais precisava. Então
Ed

a pessoa em situação de rua que passava naquele momento relata: “gosto de


ajudar as pessoas”. Após o reconhecimento e estabelecimento de uma forma
humanizada de tratamento e cuidado, o rapaz saiu e não mais voltou.
ão

O recorte e observação do espaço do mercado municipal e feira livre


de Araguaína converge por muitas vezes em uma dinâmica de invisibilidade
naquilo que se refere às relações diante das suas diversas características e revela
s

condições de desfavor e desvalor quanto ao que o capital faz com que sujeitos se
ver

encontram (CELEGUIM; ROESLER, 2009), porém ao mesmo tempo traz algu-


mas possibilidades para amenizar realidades vividas, alguns dos mecanismos
presenciados no estágio social foram os banheiros públicos (lavados algumas
vezes durante o dia pelos servidores públicos) com horário de funcionamento no
qual também possui chuveiros, e também oferece um bebedouro público. Algu-
mas possibilidades presenciados que são utilizadas tanto por algumas pessoas
em situação de rua, quanto pelos trabalhadores do local e população em geral.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 629

Existe respeito, adequação e parceria de cuidado mútuos por parte de


alguns trabalhadores do mercado às pessoas em situação de rua, proporcio-
nando diversas vezes alimento, escuta e aproximação, já o favorecido oferece
segurança e ajuda física. Ocasionando trocas de cuidado, semelhança e equi-
dade através da relação humana produzida (FREITAS, 1998).

or
Foi observado também que o Mercado Municipal de Araguaína é utili-

od V
zado pelos trabalhadores como um local de acolhimento, que eles não se sen-

aut
tem isolados por ter a presença de pessoas que possam conversar e desabafar,
tendo como referência um dos diálogos de uma mulher idosa trabalhadora
observada, Jacinta, a qual fala que: “Estar no mercado é melhor do que estar

R
em casa, pois estar sozinho adoece meu corpo e minha alma. O que me faz
vir trabalhar todos os dias é estar com pessoas e me sentir útil”.

o
Assim como Jacinta, muitos dos idosos desfrutam de boa saúde física
aC
e mental. Embora algumas habilidades possam diminuir, as pessoas física e
intelectualmente ativas podem manter-se muito bem na maioria dos aspectos
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e até mesmo melhorar sua competência. É notável como esse bom desenvol-
vimento, funcionamento físico e cognitivo tem efeitos psicossociais, muitas
visã
vezes determinando o estado emocional dessa idosa e a capacidade de viver
de maneira independente, criando e articulando maneiras de encarar suas
limitações e proteger sua saúde mental (PAPALAIA; OLDS, 2013). O relato
itor

de Jacinta, deixa evidente além da satisfação por sua independência financeira,


a re

o fato de se sentir muito orgulhosa por estar nessa idade com tanto vigor. A
característica de força, autoestima, sentido de vida, realização social, espe-
rança, sonhos desta idosa estão diretamente relacionada e ligada ao espaço
que ela está e no grupo de inserção, e como este pelo tipo de trabalho realiza
par

acolhimento na perspectiva da psicologia social que intrinsecamente elabora


ferramentas de enfrentamento, relações que criam vínculos afetivos e sociais
Ed

que a demonstra ter um envelhecer tranquilo e prazeroso para si.


Essa perspectiva teórica dialoga com o relato do usuário que frequenta o
Mercado todos os dias para não ficar sozinho em casa: “Minhas filhas, eu tenho
ão

setenta e quatro anos de idade, sou aposentado e venho todos os dias para
o mercado, pois não gosto de solidão e aqui as pessoas me escuta e contam
suas histórias, e essas histórias me dão força e vontade de viver”. Observa-
s

mos nos relatos das trabalhadoras feirantes que através dos seus trabalhos
ver

desempenhados, conseguem ressignificar suas vidas, tanto financeiramente


quanto emocionalmente, como se esse lugar os trouxesse força e apoio para
enfrentar as lutas do dia a dia.
As relações de trabalho mesclam-se com relações familiares, de amizade
e de vizinhança no bairro de moradia, as relações interpessoais na feira livre
são norteadas por diversas gramáticas. Nessa rede, os fluxos de interação
simbólica não estão norteados por um centro a partir do qual emanam as
630

informações, os motes das conversas e as decisões, os “fios” que ligam as


pessoas entre si estendem-se em diversas direções. A estrutura da rede de
relações sociais e de significados pôde ser apreendida (AUGÉ, 1999).
Como parte da vida, os trabalhadores trouxeram relatos sobre suas cren-
ças, valores, culturas, origens, vivências, esperanças, projetos, relações e

or
sonhos. Nesse contexto, o sentido do trabalho no Mercado Municipal e na feira

od V
livre tem um lugar significativo e de construções de afetividade, identidade e

aut
trocas simbólicas e sociais amparada no bem-estar e na vida de todos que se
permitem a essas outras trocas além da relação comercial. Foi possível notar

R
que as diferenças em diversos aspectos entre os frequentadores e trabalhadores
do mercado é parte fundante de espaço que acolhe para além do consumo
material. Com isso, a diferença também se torna parte dessa troca entre as

o
estratificações sociais estabelecidas em outras instituições.
aC
O Mercado Municipal traz “uma volta ao passado” por conta da dinâmica
do lugar bem como os aspectos e características socioculturais estabelecidos,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


existe um olhar para o futuro, a fim de que essa prática não se perca. No
visã
entanto, existem possibilidades de viver relações de comércio com afetivi-
dade e respeito, também, evidenciando os aspectos da cultura no território e
valorizando o desenvolvimento econômico e potencial por meio das diversas
trocas estabelecidas no espaço da feira livre e do Mercado Municipal.
itor

Em algum momento, observando a dinâmica do Mercado Municipal e


a re

escutando uma das trabalhadoras, encontramos um de nossos professores que


foram almoçar no local. Nos relator não conhecem muitos daqueles produtos
e nunca frequentaram a feira livre. Nesse momento convidados a circular,
conhecer e experimentar outros aspectos e lugares da feira e do Mercado
par

Municipal. Andamos por toda a feira mostrando a sua estrutura e as diversida-


des de produtos que poderia “trocar” no espaço da feira livre. Certamente, já
Ed

munidas do aprendizado, das experiências e trocas que tínhamos construídos


nos dias de estágio em que frequentamos há alguns dias.
Para nossa surpresa, o professor se mostrou admirado e entusiasmado com
ão

tantas coisas peculiares e novas. Relatou sentir-se feliz em ter tido a oportunidade
de conhecer um lugar muito agradável e interessante para se fazer um estágio
social. Relatou ainda que gostou muito do lugar e da experiência e que voltaria
s

por mais vezes para experimentar novas coisas e estar com as pessoas do mercado
ver

que ele chamou de ‘muito acolhedoras’. Agradeceu à tarde de conhecimento e


alegria. Saiu com algumas sacolas de produtos regionais e com um desejo agu-
çado de conhecer mais sobre os costumes e sabores desse povo tão distinto e
hospitaleiro ao qual descobriu depois de um ano e meio que reside no território.
Baseando-se no pensamento de Michel de Certeau (1995), “entendemos
que o espaço é um lugar praticado e a relação do homem com os espaços em
que ele vive, possibilita o surgimento de práticas e representações sociais,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 631

modos de viver, costumes, tradições, referências culturais, memórias etc.


Assim, as feiras são espaços repletos de conteúdo, símbolos e valores cul-
turais que são sentidos, vivenciados e capazes de transformá-las em lugares
tão afetuosos”. A memória é coletiva, é construída coletivamente, ela faz o
elo entre passado e presente construindo a partir de suas lembranças e reme-

or
morações as identidades, as referências culturais de um grupo e seus lugares

od V
de memória. A memória carrega testemunhos cheios de informações sobre o

aut
tempo, que contam histórias dos grupos (feirantes e frequentadores) que ali
convivem, se tornando um espaço humanizado.
De acordo com Beiras (2004), podemos afirmar que a motivação de cada

R
um deles para trabalhar no comércio informal do Mercado deve-se à falta de
opção, capacitação para o trabalho formal e ao desemprego, mas esse trabalho

o
traz significado e dignidade como sujeito. Trabalhar no Mercado é também uma
aC
oportunidade de acolher e ser acolhido no universo de pluralidade e diversidade
construindo novos laços familiares, de confiança e de diversas outras relações.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Inicialmente, não era isso que desejavam, porém, com o passar do tempo os
níveis de satisfação pelas conquistas pessoais se tornaram uma realidade.
visã
A despeito das construções de laços e sustentabilidade das trabalhado-
ras do Mercado Municipal temos um exemplo trazido por uma trabalhadora
do mercado. Ao chegarmos em uma das bancas, encontramos uma senhora
itor

muito comunicativa. Perguntamos sobre alguns produtos e nos trouxe outras


a re

informações, assim como relatos sobre sua história familiar, com os seus
vizinhos e mais ainda, sobre a sua história que se confundia com a história
do mercado. Relatou ainda que: “Trabalho no mercado municipal há muitos
anos, criei meus 08 filhos com esse trabalho, construí minha casa e mantenho
par

toda minha renda com esse trabalho. Estou nesse trabalho há cerca de trinta
anos por conta da autonomia que ele me proporciona, da liberdade como
Ed

mulher e da oportunidade de estar sempre em contato com outras pessoas,


conversando, sendo útil de alguma forma”.
A relação e experiência da personagem supracitada com o grupo, dialoga
ão

com Ávila (2009, p. 43) “O indivíduo não existe por si mesmo. Ele não é a
unidade última e nem é integralmente autônomo”, mostrando que a ideia de
liberdade, de oportunidade, de ser mulher, de se sentir útil surge da integração
s

e contato com o outro. Quando o mesmo autor ainda aponta, da perspectiva


ver

da psicanálise, cinco conceitos de grupos: o indivíduo não existe; o eu é feito


de relações; o eu é múltiplo; o eu é eu - outro; o eu é plural. Elaborando assim
sua própria referência por meio da relação com o outro e com o meio.
Dentro dos relatos apontados com as trabalhadoras a qual escutamos
nessa imersão do estágio Básico em Psicologia social encontramos dimensões
da vida no trabalho com pessoas, e mercadorias uma relação de respeito,
igualdade, trocas (em diversas dimensões), possibilidades de construções de
632

vínculos e laços que sonoramente, ficou materializado no contato com esses


sujeitos produzindo dimensões relacionais infinitas explícito nas relações
vistas nas visitas ao campo.

Considerações finais

or
od V
Ao pensar os papéis da psicologia e do psicólogo no grupo social e suas

aut
disparidades econômicas, as mesmas produzem uma grande diferença nos
processos de adoecimento e cuidados no caso de grupos vulneráveis e modi-

R
ficam significativamente a atuação da psicologia comunitária no âmbito das
suas ações. Essas se articulam com as políticas públicas – “Redes de Apoio”
– por conta dos determinantes sociais e econômicos diante da “saúde men-

o
tal”, pois nesse caso a saúde não é apenas a ausência de doença, ela se torna
aC
produto de múltiplos fatores compostos: biológicos, psicológicos e sociais.
Neste sentido o estágio social, trouxe grandes aprendizados no que se refere

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


a entender, que as construções socioculturais fazem de cada indivíduo parte
visã
de contextos históricos e de preservação da identidade cultural local.
O trabalho dos vendedores no mercado municipal e na feira-livre é exer-
cido com alegria e perseverança, pois destaca o caráter de herança fami-
liar deste nicho de mercado, mas também riquezas nas relações de trabalho
itor

que podem servir de exemplo para outros ambientes em que as disparidades


a re

sociais se tornam mais evidentes. Além disso, ressalta uma preocupação com
melhores condições de vida para seus filhos, que por sua vez põe em cheque
a continuidade do trabalho familiar na feira e, em última instância, a preser-
vação de uma modalidade íntima de relação entre comerciantes e clientes,
par

uma psicologia social viva, como é o caso encontrada no Mercado Municipal


e feira livre de Araguaína.
Ed

Analisando a atividade do psiquismo decorrente do modo de vida do


lugar/comunidade/mercado municipal e feira livre é observado níveis de cons-
ciência, identidades e sistema de relações, representações e identificação dos
ão

grupos comunitários, a psicologia social/comunitária possibilita às popu-


lações minoritárias condições de serem assistidas de uma forma particular,
dentro das demandas vigentes em cada grupo em que se é trabalhado, com
s

um olhar próprio do psicólogo e um papel de atuação frente às necessidades,


ver

de maneira a integrar-se ao grupo. Possibilita-se que compreenda o indivíduo


por meio do seu coletivo e o coletivo por meio de cada indivíduo sendo este
biopsicossocial, estudando as condições internas e externas ao homem que
o fazem sujeito e as condições que o fazem sujeito na comunidade, consta-
tando e dando significados a partir da realidade, sofrimentos e angústias do
eu, tratando de demandas específicas dentro do grupo.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 633

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ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
O LUGAR DOS OPRIMIDOS
NA “POLÍTICA NACIONAL
DE EDUCAÇÃO ESPECIAL:

or
equitativa, inclusiva e com

od V
aprendizagem ao longo da vida”

aut
R
Carolline Septimio Limeira
Izane Flexa Santa Brigida 

o
Reginalva do Socorro Ribeiro Colares
aC
Introdução
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

A educação especial vem sendo pautada nos últimos anos no sentido de


visã
evidenciar as pessoas com deficiência alijadas do projeto educativo. Atual-
mente a educação especial se situa como uma modalidade de ensino que
perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento edu-
itor

cacional especializado, disponibiliza os serviços e recursos próprios desse


atendimento e orienta os alunos e seus professores quanto a sua utilização
a re

nas turmas comuns do ensino regular (BRASIL, 2008, p. 16).


Sobre a definição de educação especial, Rodrigues (2006) destaca os
termos empregados para se referir a essa modalidade como “educação de
excepcionais”, em 1961 na LDB nº 4.024, “tratamento especial”, em 1971
par

na Lei nº 5.692, e por fim “educação especial”, em 1978 na Emenda Consti-


tucional nº 12. Localizar os termos empregados é importante para que pos-
Ed

samos pensar as diversas formas de compreensão pelas quais passaram e o


pensamento que abundava em cada momento histórico.
Konder (2020) defende que a linguagem possui uma ambivalência ineli-
ão

minável, fruto da contradição entre o real inesgotável, infinito, e a necessidade


de dizê-la adequadamente em termos finitos. Portanto, as palavras utilizadas
por todos acolhem não só a marca dos critérios impostos pelos opressores
s

como também, algumas vezes, a marca da resistência dos oprimidos. Nos


ver

últimos anos temos acompanhado os discursos tensionados sobre a educação


no país a partir de um governo marcado por uma perspectiva conservadora. A
educação especial segue pautada em termos legais por meio da atual “Política
Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao
Longo da Vida (PNEE)”, instituída pelo Decreto 10.502 de 30 de setembro
de 2020. Sobre essa Política lançaremos nosso olhar crítico, sabendo que tal
documento surge diante de uma tentativa de retrocesso educacional.
638

Garantir não somente o acesso à educação mas também condições de


permanência é direito assegurado na Constituição Federal de 1988 a qual
estabelece “a igualdade de condições de e permanência na escola” como um
dos princípios para o ensino “[...] além de garantir como dever do Estado, a
oferta do atendimento educacional especializado” (BRASIL, 1988). Mantoan

or
(2015) alerta que no texto da Constituição

od V
aut
Não se usam adjetivos para garantias à educação. Parte do princípio que
educação e acesso à escola é um direito de todos, não podendo excluir
nenhuma pessoa em razão da sua origem, raça, cor, sexo, idade ou defi-

R
ciência. Essa interpretação já seria suficiente para que não se negasse a
nenhum indivíduo com ou sem deficiência o acesso à mesma sala de aula

o
que qualquer outro aluno (MANTOAN, 2015, p. 39).
aC
Portanto, é direito assegurado que todos tenham acesso aos conhecimen-
tos sistêmicos e que sob nenhum aspecto lhes sejam negados.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Um marco significativo na luta dos direitos das pessoas com deficiência à
visã
educação resultou da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais
Especiais: Acesso e Qualidade. Desse encontro originou-se a Declaração de
Salamanca (1994), marco internacional no contexto da garantia dos direitos
itor

das pessoas com deficiência.


Na Declaração, reafirma-se o compromisso com a Educação para Todos,
a re

reconhecendo a necessidade e urgência de uma educação para as crianças,


jovens e adultos com necessidades educacionais especiais dentro do sistema
regular de ensino. Enfatizam que a escola deve centralizar o ensino na criança,
base para a construção de uma sociedade que respeita tanto a dignidade quan­to
par

as diferenças de todos os seres humanos, possibilitando a todos(as) condi-


ções de aprendizagem mais adequadas às necessidades de cada um. Nesse
Ed

documento começam a se desenhar os termos da educação inclusiva que


conhecemos hoje. Nesse sentido
ão

Existe um consenso emergente de que crianças e jovens com necessida-


des educacionais especiais devam ser incluídos em arranjos educacionais
s

feitos para a maioria das crianças. Isto levou ao conceito de escola inclu-
siva. O desafio que confronta a escola inclusiva é no que diz respeito ao
ver

desenvolvimento de uma pedagogia centrada na criança e capaz de bem


sucedidamente educar todas as crianças, incluindo aquelas que possuam
desvantagens severas (BRASIL, 1994).

Não negamos que a inclusão tem sido um imperativo do Estado, ope-


rando como estratégia para promoção da educação para todos (LOPES;
FABRIS, 2017). Contudo, o objetivo desta análise é identificar sob qual
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 639

perspectiva tem sido abordada a inclusão de pessoas com deficiência na


educação na atual PNEE (BRASIL, 2020).
Diante disso, questiona-se a perspectiva da inclusão educacional de pessoas
com deficiência, a partir da legislação nacional, levando em conta os muitos
movimentos das ruas e segmentos diversos na luta por dignidade e na conquista

or
de direitos dessas pessoas. De acordo com Sassaki (2010), constitui-se inclusão

od V
social o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir em seus

aut
sistemas sociais pessoas com deficiências (além de outras) e, simultaneamente,
estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. Portanto, o acesso à edu-
cação é elemento essencial na conquista dos direitos das pessoas com deficiência.

R
Pensar a inclusão educacional pressupõe “um processo bilateral no qual
as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar

o
problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades
aC
para todos” (SASSAKI, 2010, p. 39).
Nessa senda, observar como a legislação vem abordando essas discussões
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

é um movimento dialético que beneficia não apenas aqueles que necessitam


de igualdade de oportunidades para o ingresso nesse nível educacional, como
visã
também a todos nós que convivemos e lutamos por uma educação básica
inclusiva e por pesquisas que denotem a importância ao fomento de ações
de inclusão nos espaços educacionais. Sabemos que diversas são as barreiras
itor

encontradas para a inclusão de estudantes com deficiência na educação básica.


a re

Investigar as transformações legais e seus avanços e retrocessos é imprescin-


dível para fomentar a discussão sobre a escola inclusiva.
É sabido que a inclusão “é a dimensão que assegura a todos os cidadãos
de dada sociedade o acesso e participação sem discriminação a todos os seus
níveis e serviços. Assim, a inclusão essencial pressupõe que ninguém pode ser
par

discriminado” (RODRIGUES, 2006, p. 303). Nesse sentido, garantir a parti-


cipação de pessoas com deficiência no campo educacional é mister em uma
Ed

sociedade que busca de igualdade de oportunidades. Nesta análise optamos


por um estudo qualitativo com enfoque na análise da PNEE (2020) pontuando
a Constituição Federal (1988), Declaração de Salamanca (1994), Lei de Dire-
ão

trizes e Bases da Educação Nacional (1996) e a Política Nacional de Educação


Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008). No debate utilizou-se
s

como referência os estudos de Skliar (2013, 2016), Rodrigues (2006) e Freire


ver

(2005). Sobre a análise documental Lüdke e André (2018) discorrem que:

Os documentos constituem uma fonte importante de onde podem ser


retiradas evidências que fundamentem afirmações e declarações do pes-
quisador. Representam ainda uma fonte “natural” de informação. Não
são apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem num
determinado contexto e fornecem informações sobre esse mesmo contexto
(LÜDKE; ANDRÉ, 2018, p. 45).
640

Desse modo, realizamos observações acerca dos documentos legais


e suas perspectivas pautadas no paradigma da inclusão sobre as quais
foram produzidas.

As políticas da educação especial e as artimanhas da exclusão

or
od V
A Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com

aut
Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE), representada pelo Decreto 10.502 de
30 de setembro de 2020, encontra-se atualmente em debate no Supremo Tribunal

R
Federal. Este Tribunal avaliou como inconstitucional tal Política por encontrar
subsídios que ferem garantias à convivência e configuram violação da dignidade
e do valor inerente ao ser humano, sendo também criticada por pesquisadores e

o
por movimentos que discutem a educação Especial/Inclusiva no país.
aC
O Decreto nº 10.502 (BRASIL, 2020) deixa evidente o caráter segregacio-
nista amparado no modelo médico da deficiência, sob a justificativa da ineficiên-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


cia do atendimento a esses alunos em classe comum. A Política defende a retirada
visã
das crianças das classes em detrimento de um atendimento individualizado,
afirmando que outros benefícios educacionais não seriam possíveis nesse formato. 
Em 2009, o Decreto nº 6.949 (BRASIL, 2009), promulgado a partir da
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em
itor

seu artigo 24, alínea “a” já destacava que “às pessoas com deficiência não
a re

sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência”. Tal


documento conceitua a educação inclusiva como o lugar no qual as pessoas
com deficiência podem ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade
e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais
par

pessoas na comunidade em que vivem (BRASIL, 2009).


No Decreto de 2009 é perceptível que o conceito de inclusão vem das
Ed

discussões sobre o modelo social da deficiência no qual não se coloca o corpo


deficiente como centro dos questionamentos, mas sim no ordenamento exclu-
dente da sociedade. No campo dos estudos sobre a deficiência discutem-se dois
ão

conceitos historicamente conflitantes: o modelo médico e o modelo social da


deficiência. Segundo Diniz (2012) no modelo médico deficiência é consequência
natural da lesão em um corpo e a pessoa deficiente deve ser objeto de cuidados
s

biomédicos. No modelo social coloca-se o ordenamento da sociedade no centro


ver

da exclusão, questionando as estruturas sociais como excludentes e limitantes.


A “escola especial” defendida na PNEE de 2020 caminha numa perspectiva
excludente e faz parte de mecanismos de controle através dos quais se obscurece
o entendimento sobre diferenças e negam-se as múltiplas identidades. Portanto,
nota-se que a exclusão educacional das pessoas com deficiência emerge tam-
bém por meio das políticas e práticas educacionais reprodutoras do ordena-
mento social e de forma legitimada em documentos do governo federal, como
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 641

o Decreto nº 10.502 (BRASIL, 2020). Skliar (2013) contesta em seus estudos


o sentido de uma instituição escolar especial através do seguinte argumento

Se é porque contém fisicamente aqueles sujeitos especiais, então não se trata


de uma escola, mas de um hospital. Se, por outro lado, se trata de que as ins-

or
tituições são especiais porque pretendem desenvolver uma didática especial
para aqueles sujeitos deficientes, então pode ocorrer que, em vez de processos

od V
interativos da educação, exista uma aplicação sistemática de recursos, exer-

aut
citações e metodologias neutras e desideologizadas. Por último, se é especial
porque é menor, porque atua sobre sujeitos menores, então seria necessária

R
toda uma discussão embaraçosa e improdutiva acerca do significado do oposto,
isto é, acerca do que significa uma educação maior para supostos sujeitos

o
maiores, uma educação completa, relevante, absoluta (SKLIAR, 2013, p. 7).
aC
Ao modelo clínico da deficiência Skliar (2013) denomina modelo clíni-
co-terapêutico, no qual considera toda opinião e toda prática que anteponha
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

valores e determinações acerca do tipo e nível da deficiência acima da ideia


de construção do sujeito como pessoa integral, com sua deficiência específica.
visã
A PNNE (2020) se localiza dentro desse discurso no momento em que

[...] institui os serviços de apoio especializado, na escola regular, para


itor

atender às peculiaridades da clientela da educação especial e prescreve


a re

que o atendimento educacional seja feito em classes, escolas ou serviços


especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alu-
nos, não for possível a sua inclusão (BRASIL, 2020, p. 36).

A própria Constituição Federal (Brasil, 1988) admite que o atendimento


par

educacional especializado pode ser oferecido fora da rede regular de ensino,


em qualquer instituição, já que seria apenas um complemento e não um substi-
Ed

tutivo das classes regulares. Ratificando essa ideia, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (BRASIL, 1996) em seu Art. 58 também afirma que
ão

Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade


de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino,
para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento
s

e altas habilidades ou superdotação (BRASIL, 1996).


ver

Segundo o Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e


Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o percentual de alunos incluí-
dos em salas regulares passou de 54%, em 2008, a 92% em 2018, um total de
1,2 milhão de matrículas (BRASIL, 2019). O crescente número de matrículas
naqueles anos é reflexo de uma política sistematizada que mais se aproxima das
discussões sobre a efetividade da educação inclusiva por meio de documentos
642

como a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (BRA-


SIL, 2008). Neste documento não há uma definição de inclusão, mas um con-
ceito em evolução a partir de ideias de igualdade e participação social

Os estudos mais recentes no campo da educação especial enfatizam que

or
as definições e uso de classificações devem ser contextualizados, não se

od V
esgotando na mera especificação ou categorização atribuída a um quadro de

aut
deficiência, transtorno, distúrbio, síndrome ou aptidão. Considera-se que as
pessoas se modificam continuamente, transformando o contexto no qual se
inserem. Esse dinamismo exige uma atuação pedagógica voltada para alterar

R
a situação de exclusão, reforçando a importância dos ambientes heterogêneos
para a promoção da aprendizagem de todos os estudantes (BRASIL, 2008).

o
Batista (2019) em uma análise sobre a escolarização das pessoas com
aC
deficiência no Brasil, compreendeu o período de 2008 a 2018, identificou
um movimento progressivo da educação especial brasileira no sentido da

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


escolarização, nas quais ganham organicidade na Política de 2008 pois esse
visã
texto reafirma a inclusão como eixo para a educação brasileira e indica um
público-alvo em modo mais restrito em relação às necessidades especiais,
sendo a escola comum o lócus da escolarização de todos os alunos
Em sentido contrário, a Política Nacional de Educação Especial (PNEE)
itor

de 2020 adota o conceito de inclusão relativizado.


a re

‘inclusão’ é usado em tantas formas diferentes que pode significar diferen-


tes coisas para diferentes pessoas, ou todas as coisas para todas as pessoas,
de tal forma que, a menos que seja claramente definido, o conceito se torna
sem sentido. Por exemplo, a defesa da inclusão total no contexto da sala
par

de aula convencional, (mesmo que o educando não seja academicamente


Ed

beneficiado por estar ali), na prática acaba sendo uma posição contrária a
defesa da inclusão (BRASIL, 2020, p. 16).

Dessa forma, nota-se o anacronismo conceitual no que se refere à PNNE


ão

(BRASIL, 2020), um desacordo ao que historicamente vem sendo tratado no


contexto da educação inclusiva em debates nacionais e acordos internacio-
s

nais. Skliar (2013) aponta para uma problemática no campo conceitual sobre
ver

o que é Educação Especial/Inclusiva. Em todas as definições tradicionais e


mecanicistas sobre Educação Especial/Inclusiva, aparece sistematicamente
um obstáculo que pode ser considerado como não salvável:

Em que sentido seria possível afirmar que, por exemplo, os surdos, os


deficientes mentais, os cegos etc. são sujeitos educativos especiais, dife-
rentes de outros grupos também especiais, mas que foram submetidos a
essa cosmovisão e organização da educação? (SKLIAR, 2013, p. 7).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 643

A PNEE (2020) chega a declarar que o conceito de inclusão pode ser


sem sentido ou entendido apenas como teoria que não se configura em prática.
Dessa forma “se configura o caráter dúbio do termo inclusão, coloca-se em
jogo um intrincado conjunto de variáveis sociais e culturais que vão desde
princípios e ideologias até interesses e disputas por significação” (VEIGA-

or
-NETO; LOPES, 2007, p. 948).

od V
O Decreto 6.949 (BRASIL, 2009) que promulga a Convenção Inter-

aut
nacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007 no Artigo
24 discorre sobre a educação:

R
Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à

o
educação. Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igual-
aC
dade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional
inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a vida (BRASIL, 2009).


visã
Esse documento avança ao determinar que o direito da pessoa com defi-
ciência à educação somente se efetiva em um sistema educacional inclusivo.
Tal afirmativa elimina qualquer dúvida sobre a admissibilidade de um sistema
itor

educacional paralelo, organizado com base na deficiência. Mantoan (2015)


discorre que problemas conceituais, desrespeito a preceitos constitucionais,
a re

interpretações tendenciosas de nossa legislação educacional e preconceitos


distorcem o sentido da inclusão escolar. 
Em um dos documentos que fundamentam o conceito de Inclusão Educacio-
nal trazemos a seara a Lei Brasileira de Inclusão – LBI, alçou-se um significativo
par

avanço na legislação garantindo o direito à educação inclusiva com condições


de acesso e permanência (BRASIL, 2015). A Lei em seu Art. 27 declara que:
Ed

a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurado sistema


educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda
ão

a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus


talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas
características, interesses e necessidades de aprendizagem (BRASIL, 2015).
s
ver

Atualmente a educação especial/ inclusiva passa por um processo de


desmonte dos princípios básicos garantidos legalmente com os projetos atuais.
Retirar o estudante com deficiência da escola comum é anular o que vem
sendo discutido sobre diversidade, diferença e políticas de inclusão, excluir
esse debate do contexto escolar. Essa é a primeira e mais danosa discriminação
“sobre a qual, depois se projetam sutilmente todas as demais discriminações,
por exemplo, as civis, legais, laborais, culturais, etc.” (SKLIAR, 2013, p. 11).
644

Sabemos que a narrativa escolar de igualdade de oportunidades para


todos facilita mecanismos sutis que produzem a desigualdade social. Em
contrapartida, defendemos que a igualdade de oportunidades não se configura
apenas como discurso, mas objetivo a ser alcançado por meio de políticas
públicas numa perspectiva inclusiva

or
Na contramão de todo o debate acerca dos direitos das pessoas com

od V
deficiência à educação inclusiva, a atual PNEE de 2020 que fundamenta as

aut
ações excludentes no momento em que favorece e incentiva a matrículas de
estudantes com deficiência em escolas ou classes especiais. O ataque siste-
mático pautado na legalidade enfraquecendo a educação especial/inclusiva

R
fragiliza a educação como um todo, pois não somente representa um retrocesso
para os estudantes com deficiência como também para a construção de uma

o
sociedade plural, igualitária e de reconhecimento das diferenças.
aC
O oprimido e a educação inclusiva

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Levemos nossa observação às palavras de apresentação da PNEE (BRA-
visã
SIL, 2020), o tom de apelo emocional quando se refere ao estudante com
deficiência na escola:
itor

e inclusive lá encontramos estudantes com impedimentos de natureza


a re

física, sensorial, intelectual, mental comunicacional, comportamental e


integrativa, bem como estudantes com altas habilidades ou superdotação,
nosso coração se enche de alegria (BRASIL, 2020).

Concordamos com Freire (2005) quando discorre que os opressores em


par

seus discursos demonstram generosidade, escondendo suas verdadeiras facetas


quando afirmam que reconhecem a dor do oprimido. O objetivo é mantê-los
Ed

acreditando que merecem só o que é destinado a eles sem “jamais entender


esta “generosidade” pois que a verdadeira generosidade está em lutar para que
desapareçam as razões que alimentam o falso amor” (FREIRE, 2005, p. 20). 
ão

De acordo com Freire (2005) a inclusão está longe de ser contemplada e


só através de uma educação transformadora alcançaremos homens livres e
s

transformados. Essa autonomia vai se conquistando a partir do momento em


ver

que é potencializada a valorização dos sujeitos e não

A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do “demitido da vida”,


medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos
esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grande generosidade
está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou
de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes
a poderosos (FREIRE, 2005, p. 20).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 645

Historicamente, o lugar da pessoa com deficiência sempre foi marcado


pela exclusão e discriminação. Consideradas anomalias sociais, essas pessoas
eram tratadas como indivíduos a serem eliminados, uma vez que não seguiam
padrões estéticos e de comportamento em consonância com as normas sociais.
Por isso, a escola deve ser o espaço onde o ser humano seja amparado

or
na sua totalidade numa perspectiva transgressora e rupturas de paradigmas.

od V
Tal ruptura é baseada no sonho pela humanização dos sujeitos, o qual

aut
[....] é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras
reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que

R
nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência
ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos

o
e que nos faz e re-faz (FREIRE, 2001, p. 99).
aC
Desse modo, a condição humana deveria conduzir toda educação. A escola de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

hoje é composta na diversidade humana. O princípio da diversidade é o paradigma


da escola inclusiva. É nesse complexo contexto de relações que se manifestam
visã
as diversas formas de controle, segregação e opressão em relação aos ditos des-
viantes, ou seja, no contexto social que se manifestam as mais variadas formas de
preconceito e/ou aceitação daquilo que se apresenta como “o diferente” ou “o inde-
itor

sejado”, atitudes contra as quais Freire sempre se posicionou de forma incisiva.


Desta forma, Freire enfatiza que o público da educação especial e inclu-
a re

siva precisa de reconhecimento e respeito, todos têm direito a uma educação


igualitária e que imposições ideológicas mais uma vez, de forma engessada
vêm impor critérios para segregar com o discurso de educar e formar cidadãos. 
par

De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada,
que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em
Ed

virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade”.


Falam de si como os que não sabem e do “doutor” como o que sabe e a
quem devem escutar. São os convencionais (FREIRE, 2005, p. 32). 
ão

Ainda nesse questionamento Freire (2005) expõe claramente que para o


homem sair do seu lugar de oprimido faz-se necessária uma educação emanci-
s

padora. A emancipação defendida por Freire acontece na coletividade, sistema


ver

em que todos devem ter acesso aos conhecimentos sistematizados e, a partir


de então, questioná-los.
A Política de 2020 categoriza tipos de inclusão chegando a afirmar que
‘inclusão’ pode ser utilizado em tantas formas diferentes que pode significar
diferentes coisas para diferentes pessoas, ou todas as coisas para todas as
pessoas, de tal forma que, a menos que seja claramente definido, o conceito
se torna sem sentido.
646

Por exemplo, a defesa da inclusão total no contexto da sala de aula conven-


cional, (mesmo que o educando não seja academicamente beneficiado por estar
ali), na prática acaba sendo uma posição contrária àdefesa da inclusão (BRASIL,
2020, p.16). Ainda, nesse sentido, o texto esclarece que nem todos entendem da
mesma forma o significado de algumas palavras, a exemplo: inclusão, exclusão,

or
direitos educacionais, pares, currículo e evidências científicas (BRASIL, 2020).

od V
Valendo-se desse argumento, a Política afirma que o debate atual tem

aut
dividido os estudiosos entre defensores da educação especial e defensores da
inclusão total. Para fortalecer a segregação dos estudantes com deficiência e
o atendimento especializado, a PNEE tenta esvaziar o conceito de inclusão

R
uma espécie de mecanismo de poder que se dispõe em torno do “anormal”,
seja para marcá-lo, seja para modificá-lo.

o
No documento chega-se a declarar que o conceito pode ser sem sentido
aC
ou entendido apenas como teoria que não se configura em prática, deixando
claro que “sob essa palavra, coloca-se em jogo um intrincado conjunto de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


variáveis sociais e culturais que vão desde princípios e ideologias até interesses
e disputas por significação” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 948). Assim,
visã
o texto denomina de inclusão total ou inclusão radical “a colocação de todos
os estudantes, independentemente do grau e tipo de impedimento” (BRASIL,
2020, p. 17) e os defensores desse “tipo” de inclusão.
itor

Para Freire a única forma de vencer a barreira de uma educação exclu-


dente é uma educação problematizadora, em que todos aprendem juntos,
a re

que o professor não sabe tudo, que o conhecimento de mundo é valorizado,


que cada indivíduo tem respeitadas suas pluralidades e formas diferentes de
aprender, pois “Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta,
impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e
par

com os outros” (FREIRE, 2005, p. 38).


O professor problematizador tem uma grande importância, pois ele não
Ed

dá a resposta, mas mostra o caminho e nessa busca acontece a aprendiza-


gem. Ao se conscientizar que essas imposições precisam ser questionadas,
o homem passa a refletir, descobrir-se e emancipar-se, nasce um homem
ão

novo, crítico e transformado.


Segundo Freire (2005) “A reflexão e a ação se impõem, quando não se
pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser
s

do homem’’ (FREIRE,2005, p.59). A emancipação acontece quando somos


ver

conscientizados e nos tornamos sujeitos críticos da nossa própria história.

Considerações finais 

É importante nas políticas da educação inclusiva, observarmos: quem


são as pessoas com deficiência excluídas da educação em um possível sistema
paralelo? Quando pontuamos a perspectiva nos marcos legais da educação
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 647

especial/inclusiva e seus conceitos, observamos que a legislação e as polí-


ticas são (ou deveriam ser) dispositivos de garantias mínimas, que igualam
os indivíduos, dando-lhes oportunidade de convívio, considerando a inclu-
são educacional como fundamento inegociável. Em um possível sistema de
educação que incentive escolas especializadas para pessoas com deficiência,

or
caracteriza-se o retrocesso legitimado em políticas públicas.

od V
A garantia da exclusão por meio de documentos legais como a PNEE

aut
de 2020 é um movimento perigoso e traz fortes traços de rupturas com os
princípios da educação inclusiva que se tem discutido entre pesquisadores,
professores e movimentos que lutam por direitos das pessoas com deficiência.

R
Espera-se que os documentos normativos construídos coletivamente
a partir de negociações políticas proporcionem bases para promover a par-

o
ticipação e responder satisfatoriamente às necessidades educativas de cada
aC
aluno, propiciando, assim, espaços democráticos e participativos, socialmente
ricos, que facilitem a aprendizagem e dêem ênfase ao interesse por conviver,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

aprender, compreender, comunicar e relacionar-se com o outro. A educação


inclusiva escolar é fruto de uma educação plural, democrática e transgressora
visã
que produz ressignificação. Incluir é necessário, sobretudo para o fortaleci-
mento da escola. A escola democrática é produzida na diferença.
Vimos no decorrer do tempo como o entendimento dos conceitos que
itor

dizem respeito à inclusão são deturpados na elaboração de políticas. A “abran-


a re

gência semântica e analítica, comporta várias prescrições” (RODRIGUES;


ABRAMOWICZ, 2012, p. 40), acarretando uma série de prejuízos às pes-
soas estão à margem do processo educativo. Porque o jogo de poder sobre a
apropriação e/ou imprecisão de “conceito”? Através do conceito localiza-se
par

a perspectiva educativa, incluem e/ ou excluem, intersecciona- se a exclusão


educacional, exerce-se o poder de controle das pessoas marginalizadas.
Ed

A análise da PNEE (2020) no bojo de todo o debate nacional e internacio-


nal de educação inclusiva, com os documentos aqui apresentados, concretiza
o descompasso que se propaga a inclusão nos discursos oficiais e o que de
ão

fato ocorre nos espaços educacionais. O entendimento dúbio dos conceitos


nos documentos oficiais traz prejuízos, sem precedentes, nas políticas edu-
cacionais. As afirmativas pautadas na diversidade e diferença paulatinamente
s

vêm sendo retiradas através de ato legitimado do debate educacional com a


ver

justificativa de que a escola não está preparada para o atendimento de todas


as pessoas. Esta análise aponta que a Política Nacional de Educação Especial
(BRASIL, 2020) não contempla o atual debate acerca da educação inclusiva,
marginalizando os elementos discursivos que já circulam socialmente.
648

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ver
ver
Ed
s ão itor
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a re
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od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
O USO EXCESSIVO DAS TELAS E
AS POSSÍVEIS REPERCUSSÕES
PSÍQUICAS NAS CRIANÇAS

or
DURANTE A PANDEMIA COVID 19

od V
aut
Luana Souza de Deus Neto Almeida
Niamey Granhen Brandão da Costa

R
Encontramos crianças confrontadas ao excesso de objetos oferecidos por

o
pais que tantas vezes preferem não ter que dizer não; [...] crianças para
aC
as quais se disponibiliza um conhecimento supostamente total do Dr.
Google, mas sem ter com quem singularizar seu percurso de investigação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

(JERUSALINSKY, 2015, p. 4).


visã
Introdução

Em 2020 o mundo se deparou com o surgimento de um novo vírus


itor

com um alto grau de transmissibilidade, denominado de SARS CoV-2 o qual


a re

provoca a Covid 19. No período de dezembro de 2019 até maio de 2020


foram confirmados 5.175.925 casos no mundo, com 338.089 óbitos, sendo
que no Brasil foram confirmados 347.398 casos e 22.013 (6,3%) foram a
óbito (BRASIL, 2020). Este acelerado aumento de casos, e principalmente de
óbitos, tornou-se uma situação de emergência de Saúde Pública, de interesse
par

da Organização Mundial da Saúde (OMS).


Ed

Deste modo, foi necessário pensar em medidas não farmacológicas que


pudessem minimizar a contaminação em decorrência do vírus. De acordo
com Linhares e Enumo (2020), a principal intervenção realizada foi o distan-
ão

ciamento e o isolamento social, como “estratégias de controle da dissemina-


ção da contaminação na população pelo distanciamento físico e redução da
mobilidade” (p. 2). Assim, foram proibidas quaisquer atividades realizadas
s

em conjunto, sendo necessário realiza-las de modo remoto/ online, no caso


ver

das crianças estamos falando das atividades escolares.


Há de convir que nos tempos atuais, as telas estão presentes de forma
constante na vida de todos. Logo, podemos considerar que a criança é um ser
histórico cultural, que irá aprender e se desenvolver nas suas relações com
os outros neste contexto tecnológico. Diante disto, ao nascer o ser humano
já pode ser considerado como um “nativo digital”. Desta forma, podemos
observar que as crianças hoje, brincam de diversas formas, participando de
652

jogos e brincadeiras consideradas “tradicionais” e também jogam e interagem


a partir das mídias digitais.
A criança, em uma idade muito precoce do seu desenvolvimento, entra
em contato com tablets, celulares, videogames e isso, atualmente, faz parte
da cultura infantil. Os adultos apresentam a elas estas mídias digitais como

or
uma forma da criança brincar e também de favorecer o desenvolvimento de

od V
habilidades, como a capacidade de raciocínio, autonomia, atenção, intelec-

aut
tualidade e socialização.
Em uma pesquisa realizada em 2014 pelo Comitê Gestor da Internet (apud
Sociedade Brasileira de Pediatria, 2016) foi constatado que 82% dos jovens

R
entram na rede por telefones móveis, enquanto 56% navegam em dispositivos
fixos. Foram coletados dados a partir de 2,1 mil entrevistas domiciliares com

o
jovens de 9 a 17 anos. Na pesquisa feita em 2013, o percentual de crianças e
aC
adolescentes que acessavam a internet pelo celular era de 53% e pelo computa-
dor, 71%. É possível observar o crescimento significativo com relação ao índice

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de jovens que acessam a rede por tablets, de 16%, em 2013, para 32%, em
2014. A pesquisa mostrou ainda que 81% da população dentro da faixa etária
visã
analisada acessa a internet todos os dias. Em 2013, o percentual era de 63%.
A partir deste aumento do uso de aparelhos eletrônicos por crianças e ado-
lescentes tornou-se necessário que a Sociedade Brasileira de Pediatria criasse
itor

um Manual para orientação acerca da saúde de crianças e adolescentes na era


a re

digital. De acordo com o Manual (2016, p. 1), “crianças e adolescentes fazem


parte da geração digital e usam os dispositivos, aplicativos, videogames e a
Internet cada vez mais em idades precoces e em todos os lugares”. E é diante
desta precocidade e da dificuldade em impor limites que devemos ficar atentos.
par

Quando conseguimos calar um pouco nossas frustrações, desejos, experiên-


Ed

cias, talvez a gente consiga perceber o que eles dizem da própria infância, do
próprio mundo, das próprias necessidades, frustrações e desejos. Às vezes,
a criança brinca sozinha de boneca porque precisa, porque está tentando ela-
ão

borar alguma situação ou sensação vivida, como a aula do dia anterior, a ida
ao dentista, a briga dos pais. Por vezes, ela está tentando elaborar algo do seu
mundo interno, de seus medos, angústias, desejos. Às vezes, a criança e o ado-
s

lescente buscam o gadget para conseguir lidar com a aproximação excessiva


ver

do Outro, para fugir do alcance de seu olhar invasivo protegendo-se em seu


próprio isolamento. Outras vezes, buscam o gadget para conseguir lidar com
a solidão, conectando-se compulsivamente ao Outro (MENA, 2017, p. 217).

Diante desta passagem descrita, passamos a olhar para a criança que vive
imersa em um contexto tecnológico, que não sabe o que é um mundo sem tec-
nologia. A infância de hoje não é a mesma da década passada. Ao falarmos do
uso precoce de aparelhos eletrônicos, faz-se necessário compreender que cada
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 653

criança utilizará à sua maneira, com um propósito particular. Dito isto, é impor-
tante singularizarmos a experiência de cada criança frente ao uso das telas.
Na atual conjuntura, principalmente com o início da pandemia Covid 19,
o estilo de vida das crianças foi se modificando rapidamente, assim como os
avanços tecnológicos, aos quais elas devem se adaptar na mesma velocidade.

or
O mundo digital surge para as crianças que, entram “no sistema de mídia

od V
proposto pelo adulto” (LEVIN, 2007, p. 72).

aut
No Brasil, durante a pandemia, a maioria das crianças em idade escolar
permaneceu em casa, sem frequentar a escola de março a novembro de 2020.

R
Deste modo, a partir de um estudo realizado pela empresa de tecnologia infantil,
SuperAwesome, verificou-se que nos Estados Unidos crianças de 6 a 12 anos
estão permanecendo pelo menos 50% do tempo expostas às telas. Realizando ati-

o
vidades escolares, de interesse próprio, bem como para ocupar o tempo ocioso.
aC
Através das telas de modo geral – tablets, celulares, computadores e
televisão – a criança possui diferentes formas de se entreter.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
O monitor do computador aprisiona, alienando em suas redes. Uma tela
cheia de brilhantes, imagens animadas, sons, músicas, barulhos insólitos,
um ‘pianinho’ e uma espécie de caixinha com botões (mouse) que ativa
tudo – este conjunto vira o brinquedo ideal, aquele que põe em ação o jogo
itor

do ciberespaço já desde os primeiros meses de vida (LEVIN, 2007, p. 66).


a re

A partir da passagem descrita acima, observa-se um fascínio das crianças


pelas telas e com o que elas podem proporcionar. Ao realizar uma analogia
com os dados da pesquisa “Gerações Interativas Brasil – Crianças e ado-
lescentes diante das telas”, é constatado que este deslumbramento com as
par

imagens em tela, corresponde em mais da metade das crianças entrevistadas


que fazem uso de videogames ou de jogos no computador.
Ed

Diante disto, o “Manual de Orientação para a saúde de crianças e ado-


lescentes na era digital” (2016), aponta que “a tecnologia influencia compor-
ão

tamentos através do mundo digital, modificando hábitos desde a infância que


podem causar prejuízos e danos à saúde” (p. 2). Para isto, algumas medidas
de prevenção são descritas pelos pediatras, como exemplo “crianças meno-
s

res de 6 anos precisam ser mais protegidas da violência virtual, pois não
ver

conseguem separar a fantasia da realidade” (p.3); deve-se “limitar o tempo


de exposição às mídias ao máximo de 1 hora por dia para crianças entre 2 a
5 anos de idade” (p. 3); e também “equilibrar as horas de jogos online com
atividades esportivas, brincadeiras, exercícios ao ar livre ou em contato direto
com a natureza” (p. 3). De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria
(2016), “há benefícios e malefícios que tem acompanhado a tecnologia digital”
(p. 1). Dessa forma, os profissionais da área da saúde têm a responsabilidade
654

de orientar, adequadamente, os familiares, crianças e adolescentes que estão


inseridos nesse mundo virtual (ibid, 2016).
Estas orientações da Sociedade Brasileira de Pediatria citadas anterior-
mente se limitam a este momento de pandemia, com a substituição das aulas
presenciais por aulas via online. Esbarramos em uma questão de que não há

or
outro recurso para ser utilizado pela criança, apenas as telas. Por este modo, foi

od V
necessário um nova orientação da Sociedade Brasileira de Pediatria para este

aut
momento atual, sendo publicado em maio de 2020 um documento intitulado:
Recomendações sobre o uso saudável das telas digitais em tempos de pande-

R
mia da Covid 19 #Boas telas #Mais saúde (2020), o qual aborda sobre o uso
adequado das telas de acordo com a faixa etária da criança ou do adolescente,

o
conciliando com o tempo para realizar outras atividades durante o período de iso-
lamento social, como por exemplo, valorizar os horários de sono e alimentação,
aC
tempo para relacionamento afetivo/ familiar, tempo para o lazer , entre outros.
Com a imposição do isolamento social, os pais tiveram que passar 24

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


horas com seus filhos, em casa, e muitas vezes sem o auxílio de terceiros para
visã
proporcionar os cuidados necessários com as crianças além disso, também
tiveram que adaptar as suas atividades laborais no mesmo espaço físico que
as crianças e adolescentes. No entanto, devemos nos questionar, como foi/está
itor

sendo utilizado estas 24 horas de presença física pais-filhos? Cada um fica no


seu Cyberespaço? De que modo se relacionam? É importante ressaltar que
a re

no Brasil temos em torno de “65 milhões de crianças e adolescentes, o que


corresponde a 34% da população e onde há muitas diversidades sociais e eco-
nômicas, e assim necessidades diferentes de cuidados de saúde para se adaptar
a esta nova situação” (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2020).
par

A Sociedade Brasileira de Pediatria (2020), afirma que o uso constante


e quase ininterrupto do meio digital é uma nova experiência que precisa ser
Ed

analisada com cautela. No entanto, é fato que isto causará repercussões no


psiquismo do sujeito que está inserido neste contexto, não só da intensificação
do uso das telas, como também pela pandemia em si. O que pode provocar
ão

sentimentos de medo, angústia e estresse e consequentemente desencadear


sintomas de depressão, ansiedade e atos de violência física e psicológica
s

(Sociedade Brasileira de Pediatria, 2020).


ver

A criança, marcada pelo ritmo da sociedade contemporânea, passa parte


do seu tempo em espaços limitados, diante das telas, “com seus corpos apaga-
dos e as telas acesas” (MEIRA, 2004, p. 148). Dessa forma, Levin (2007) ao
fazer uma analogia do brincar de faz-de-conta com os jogos digitais, afirma
que o primeiro possibilita a criança colocar em cena o seu corpo e fazer do
brinquedo “um vazio gerador de novas imagens e invocador de espaços fic-
cionais” (p. 57); já o segundo, reduz a experiência corporal da criança, o qual
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 655

exige “constante atenção e ágil execução mediante os dedos, último registro


corporal de uma reação automática em rede” (p. 68).
A relação das crianças com as telas, está diretamente associada ao con-
texto familiar e a forma que elas são apresentadas, no sentido de, como usar,
onde e com quem. “Alguns pais, também nativos digitais, não percebem as

or
mudanças ou problemas que vão surgindo, como se tudo já fosse parte da

od V
rotina familiar (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2016, p. 1). Visto isso,

aut
“torna-se necessário ter claro que por si só o virtual não é bom, nem mau,
mas também não é neutro” (RAMOS, 2013, p. 111). A partir disto, pode-se

R
destacar que o mundo virtual tem a sua particularidade e que está sujeita a
forma com que cada pessoa irá se posicionar diante dele.
De acordo com Julieta Jerusalinsky (2017), “há uma descontinuidade

o
produzida pela era digital nos modos de estabelecer o laço social e nas formas
aC
discursivas de sustentar subjetivamente as experiências” (p. 15-16). Diante
das telas, o sujeito não singulariza seu percurso, a presença do automatismo
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

gerado pela velocidade das informações e necessidade de ter uma resposta


visã
provoca no sujeito o imediatismo.

Os aparelhos emitem sons emitem sequencias sonoras, mas não conversam,


não produzem uma matriz dialógica em que os lugares sejam subjetivados,
itor

eles oferecem fragmentariamente uma linguagem mas não sustentam a


a re

sua função. Emitir sequências sonoras é bem diferente de dar lugar a que
o sujeito possa se representar na linguagem, subvertendo, por meio dos
chistes ou atos falhos, sua significação (JERUSALINSKY, 2017, p. 41).

Assim, desde muito cedo, é apresentado para as crianças a tecnologia,


par

principalmente o uso de telas. E, o seu uso proporciona a estas crianças uma


lógica da agilidade, instantaneidade e velocidade de informações. Desta forma,
Ed

além dos pais já estarem se apropriando do contexto tecnológico, as crian-


ças também vão conhecendo este mundo, muitas vezes, por meio dos jogos
eletrônicos. Logo, é importante ressaltarmos que, cada época tem os seus
ão

ideais e os seus sintomas, e, devemos olhar para as crianças, só elas poderão


nos dizer a maneira que lidam com este mal-estar (JERUSALINSKY, 2017).
s
ver

Família e o uso das telas

A família é o primeiro grupo em que a criança se integra, proporcionando


o seu crescimento psíquico, físico, cognitivo e social. A partir dessas rela-
ções com os pais que a criança irá “descobrir sentimentos de amor e ódio, e
onde elas podem esperar simpatia e tolerância” (WINNICOTT, 2011 [1966]
p.136) e também, que se aprende a “compartilhar, a respeitar os limites, a
656

viver em equipe, de modo comunitário, a estabelecer vínculos e a suportar


perdas” (VASCONCELOS, 2009 [1997], p. 121). Para isto, é necessário que
a criança tenha um “ambiente medianamente aceitável”, a qual seja auxiliada
por alguém que se adapte de maneira sensível as suas necessidades, visto que
“a criança está no processo de adquirir a capacidade de usar a fantasia, de

or
apelar para a realidade interna e para o sonho, e de manipular brinquedos”

od V
(WINNICOTT, 2011 [1966], p. 129).

aut
Considera-se que é no ambiente familiar que a criança pode ter as experiên-
cias mais ricas da vida. No entanto, Winnicott (2011 [1966]) complementa que

R
“deve-se estar sempre vigilante em relação a uma criança que, por uma razão ou
por outra, não pode ser criativa no jogo imaginativo se não passar algumas horas
longe da família” (p. 135). Dessa maneira, é importante ressaltar que o lar, é

o
responsabilidade dos pais e não da criança (WINNICOTT, 2011 [1957], p. 118).
aC
Nas relações familiares da contemporaneidade tudo acontece muito rapi-
damente e “os afetos, os encontros sofrem mudanças com muita frequência”

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(MARTINS FILHO, 2012, p. 74). Diante disto, nota-se que as crianças passam
grande parte do seu tempo diante do computador, da televisão, dos tablets e
visã
celulares, realizando múltiplas atividades. No entanto, esta relação da criança
com as telas irá depender das particularidades familiares, culturais e históricas.
Atualmente, pontua Meira (2003), “é comum os pais assistirem como
itor

espectadores ao espetáculo cotidiano que as crianças revelam em sua infância.


a re

Não julgam, não interferem, não proíbem, apenas se dedicam a oferecer às


crianças os objetos que lhes são mostrados virtualmente, em uma dimensão de
excesso” (p. 78). Ao mesmo tempo, neste contexto, os pais não se surpreendem
mais com a proficiência das crianças para mexer com os aparelhos eletrônicos,
par

o que os preocupa é o fato das crianças não desligarem estes aparelhos. Desta
forma, os sujeitos estabelecem uma relação de dependência com os objetos,
Ed

Jerusalinsky (2016, p. 3) acrescenta que “somos todos usuários desde épocas


mais precoces. As crianças ganham seu primeiro celular cada vez mais cedo
e com ele, têm acesso a quase tudo”.
ão

Hoje, como destaca Ponte (2011), as crianças crescem em casa com


uma determinada infraestrutura midiática que não havia na geração anterior,
dos seus pais. O autor acrescenta que “o televisor instalou-se no quarto da
s

criança e do adolescente, onde também já tinha dado entrada o gravador de


ver

cassetes” e os primeiros consoles de jogos (p. 3). Na intenção de proteger os


filhos do que acontecia no exterior – considerado extremamente violento – os
pais investiram em tecnologia no quarto dos filhos, proporcionando contato
com lugares e pessoas fora do espaço a seu redor.
Como intermédio das relações familiares com as telas digitais, a Socie-
dade Brasileira de Pediatria, ao elaborar um Manual de Orientação (citado
anteriormente), busca nortear não só aos pais, educadores e pediatras, mas as
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 657

próprias crianças e adolescentes que tem acesso a era digital. Desta maneira,
uma das orientações destinada aos pais no Manual é “estabelecer regras e
limites bem claros e ‘concordantes’ entre todos sobre o tempo de duração
em jogos por dia ou no final de semana e sobre a entrada e permanência [...]
durante os jogos de videogames online. Não fornecer cartões de crédito de uso

or
pessoal” (p. 6). A partir desta perspectiva, os profissionais da saúde ressaltam,

od V
para os pais, o que deve ou não ser feito.

aut
Ainda sobre as orientações, o Manual acrescenta que os pais devem
“brincar mais com seu/s filho/s de maneira interativa, olhando, abraçando,

R
sendo parceiro e estando ao lado deles, sempre que precisar, supervisionando
e construindo uma relação de confiança, para a vida, juntos” (p. 6). Alerta
também que, é importante que os pais criem “tempo para ser pai, mãe, avó,

o
tio/ tia, madrinha/ padrinho sem o uso de tecnologias” (p. 6). Diante das cita-
aC
ções, nota-se que a tecnologia invadiu os ambientes familiares e provocou
modificações, sendo necessária a elaboração deste instrumento.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Como já dito, as crianças e adolescentes também recebem orientações


visã
neste Manual. E é importante ressaltar que todas as mensagens direcionadas a
este público estão em uma linguagem acessível e em uma entonação de alerta
para as situações que ocorrem na era digital. Exemplo disso são as frases: “não
se deixe enganar no mundo virtual” e “Não marque bobeira à toa! Cuidado,
itor

desconfie de mensagens esquisitas ou confusas” (p. 6). Com relação aos jogos,
a re

é colocado mais em evidencia os jogos online – aqueles que são jogados com
auxílio da internet – em que é alertado para as crianças e adolescentes que não
devem criar “avatares, heróis ou inimigos que não existem, ou só existem em
sua imaginação” (p. 7). A Sociedade Brasileira de Pediatria, observa que há
par

um alto índice de crianças e adolescentes que estão fazendo uso inadequado


da tecnologia, assim como os pais estão apresentando dificuldade em orientar
Ed

esses jovens, por isso na tentativa de auxiliar eles criam este Manual, que
funciona como um suposto saber diante dos pais.
Numa pesquisa realizada em Portugal, Ponte (2011) ressalta que, há
ão

diferentes maneiras para os pais se relacionarem com as mídias, mas espe-


cificamente ele trata da televisão, abordando três tipos de envolvimento dos
s

pais. A primeira é a considerada mediação ativa, a qual os pais conhecem


ver

os conteúdos dos programas e as atividades online dos filhos; a segunda é a


mediação restritiva, em que os pais recorrem a televisão ou a internet como
recompensa ou castigo diante de alguma atitude da criança; a terceira é a
mediação instrutiva, a qual os pais conversam, explicam, estão atentos às
emoções, ao entendimento das informações e avaliação por parte dos filhos.
Diante destas mediações descritas, pode-se realizar uma analogia com o envol-
vimento dos pais com relação aos jogos eletrônicos.
658

A respeito da referida pesquisa realizada em Portugal, Ponte (2011) com-


preende que questões culturais também interferem na forma como vai ser
mediada o uso da internet. O autor afirma que “são lares de estratos sociais mais
elevados os que apresentam maior regulação parental no uso das tecnologias
por parte dos filhos e uma menor profusão de aparelhos a seu dispor” (p.10),

or
já com os pais que estão em classes econômicas mais baixas ele afirma que

od V
“eles estão divididos entre a ansiedade pelos riscos da tecnologia e o desejo

aut
de tudo proporcionarem aos filhos” (PONTE; MALHO, 2008 apud PONTE,
2011, p. 10). Assim, mesmo que a pesquisa tenha sido realizada em Portugal,

R
pode-se notar semelhança com o Brasil, o qual possui diferenças entre as classes
sociais e a sua forma de se relacionar com os aparelhos eletrônicos.
Muitas vezes, as telas, costumam funcionar para as crianças como uma

o
“chupeta eletrônica”, em que a criança acaba sendo silenciada em suas deman-
aC
das (JERUSALINSKY, 2015). Desta forma, o brincar da criança com os pais
fica cada vez mais distante, na corrida vida contemporânea. Cabe ressaltar

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


que, a experiência do brincar é diferente da experiencia dos jogos eletrônicos,
visã
visto que o primeiro permite mais trocas de olhares, gestos e palavras; já o
segundo está em uma outra direção, na qual os gestos e olhares se dirigem a
uma tela, com ‘imagens perfeitas’, onde não existe troca de palavras (MEIRA,
2004). É importante não perder de vista que os jogos eletrônicos no contexto
itor

familiar podem ser intermediados de diferentes formas e que cada uma delas
a re

gera uma repercussão na constituição de cada sujeito.

Considerações finais
par

As telas estão presentes no dia a dia de todos e se tornaram mais frequen-


tes durante o período da pandemia Covid 19, decorrente da necessidade de
Ed

distanciamento e isolamento social. Foi possível observar que a atenção da


Sociedade Brasileira de Pediatria que já existia anteriormente, ficou redobrada,
sendo observado a partir da Nota de Alerta emitida em 2020, após o início
ão

das atividades remotas e a intensificação do uso das telas. Com orientações e


sugestões direcionadas ao uso das telas para crianças e adolescentes durante
o momento da pandemia Covid 19, enfatizando o período da quarentena.
s

De acordo com a Psicanálise, só é possível conhecer as repercussões


ver

psíquicas a posteriori. Deste modo, como o início da pandemia no Brasil foi


decretado em março de 2020, já podemos observar no consultório pequenos
sinais de possíveis repercussões psíquicas nas crianças, como o desinteresse
nas atividades escolares, episódios de ansiedade diante da necessidade de
realizar provas presenciais, oscilação de humor com frequência, baixa tole-
rância à frustração, entre outros sinais que já comparecem nos atendimentos
clínicos. No entanto, ressaltamos a importância de serem realizados outros
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 659

estudos após, com trechos dos casos clínicos atendidos em consultório parti-
cular para fomentar próximas pesquisas nesta área.
Desta forma, consideramos que o uso das telas, apresenta implicações
para o psiquismo das crianças, bem como para as relações familiares, pois
interfere nas interações dos pais com a criança. Observamos também que o uso

or
excessivo das telas durante a pandemia Covid 19, esta permeado por questões

od V
culturais, subjetivas e familiares. Desta forma, não é possível generalizar as

aut
considerações aqui colocadas para outras crianças e/ou famílias.
Sugerimos que sejam realizadas outras pesquisas acerca do uso das telas
neste período de pandemia, podendo ser estendidas para as repercussões psí-

R
quicas em bebês que também tiveram sua rotina modificada durante esse
período. Visto que, é possível observar a tecnologia presente em épocas cada

o
vez mais precoces da constituição do sujeito.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
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ver
660

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Introdução

o
Muitos avanços têm sido obtidos no que tange à educação inclusiva de
aC
pessoas com deficiência. Nozu, de Sá e Damasceno (2019) discutem como desde
a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
(BRASIL, 2008), muitos avanços foram obtidos tanto no que tangem os marcos
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legais quanto ao aumento de matrículas de estudantes público-alvo da educação


visã
especial em escolas comuns, incluindo aquelas caracterizadas como escolas do
campo e indígenas. Ainda assim, a proporção de pessoas com deficiência matricu-
ladas em escolas rurais é muito inferior à proporção existente na população geral
itor

do país, possibilitando inferir que as crianças com deficiência dessas localidades


não estão majoritariamente inseridas nas escolas regulares (CAIADO, 2015).
a re

Ao discutir a realidade de pessoas com deficiência na educação do campo,


é importante compreender a interseccionalidade que atravessa esse debate. Para
Nozu, Bruno e Heredero (2016), ambos os grupos sociais – população do campo
e pessoas com deficiência – tendem a ter direitos sociais, incluso o direito à
par

educação, negados historicamente. Segundo Caiado (2015), tanto a educação


do campo quanto a educação especial são consideradas um direito social apenas
Ed

na história recente, tendo uma trajetória marcada pelo descaso governamental.


Emerge, assim, a necessidade de discutir como se desenvolve a educa-
ção de pessoas com deficiência no campo. De acordo com Koehler, Chaga
ão

e Kuster (2020, p. 7), “a história da inclusão de pessoas com deficiência nas


instituições regulares de ensino ainda é narrada hegemonicamente sob ponto
s

de vista urbano”. Um dos motivos dessa “invisibilidade” da educação especial


ver

no campo, para Das Mercês (2018), é a distância entre o contexto educacional


e os setores responsáveis pelas políticas educacionais, o que se materializa
ainda na ausência de informações relevantes para o desenvolvimento de prá-
ticas inclusivas (como número de matriculados com deficiência; diagnósticos
dos estudantes; etc.). Essa lacuna comparece tanto na produção acadêmica
como nos próprios documentos legais, começando a ser preenchida apenas
na última década (NOZU; DE SÁ; DAMASCENO, 2019).
664

Para contextualizar a temática aqui abordada, faz-se necessária uma


breve apresentação de conceitos-chave que compõem a discussão, a saber:
deficiência; educação inclusiva; educação do campo.
De acordo com a Lei Brasileira de Inclusão – LBI (BRASIL, 2015), em
seu artigo 2º, seria uma pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento

or
de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em

od V
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena

aut
e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Esta definição está em consonância com o debate mais atual que defende um
olhar multidisciplinar e funcional para compreender a deficiência (NUBILLA;

R
BUCHALLA, 2008). Isto é, o que faz com que uma pessoa seja considerada
com deficiência não são apenas aspectos biológicos, centrais em um modelo

o
médico de análise, mas as limitações socialmente impostas por ambientes (físi-
aC
cos e sociais) pouco preparados para a participação universal dos indivíduos.
Ao abordar a inclusão de pessoas com deficiência na rede regular de

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ensino, no inciso II do artigo 28 da LBI, é colocado como dever do poder
público garantir o “Aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a
visã
garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por
meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as
barreiras e promovam a inclusão plena;”.
itor

De acordo com Mendes (2019), no final do Século XX houve um movi-


mento de crítica à educação de pessoas com deficiência centralizada em
a re

instituições especializadas e classes especiais, por serem práticas que margi-


nalizavam e segregavam a população alvo da educação especial, tornando as
escolas brasileiras elitistas e discriminatórias. Para a autora,
par

“qualquer proposta de política de Educação Especial na perspectiva da edu-


cação inclusiva que pretenda garantir o direito à educação deste público deve
Ed

considerar as metas de equidade e qualidade que visem tanto a ampliação


ou universalização do acesso à escola quanto a melhoria na qualidade da
educação que é oferecida a esta parcela da população [...] Neste sentido,
ão

além de imperativo moral e legal, a política de inclusão escolar seria o


caminho mais viável para garantir avanço na escolarização destas crianças”
(MENDES, 2019, p. 13).
s
ver

O terceiro conceito que precisa ser aqui discutido é o de educação do


campo. De acordo com Decreto Nº 7.352 (BRASIL, 2010), em seu artigo 1,
parágrafo 1º, inciso I, são entendidas como populações do campo:

“os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais,


os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os traba-
lhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 665

floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de


existência a partir do trabalho no meio rural;”

Neste mesmo decreto, ainda, consta que as escolas do campo podem ser
definidas tanto pela sua localização (área rural) quanto pela população atendida

or
(isto é, situadas em área urbana mas direcionadas à população do campo). A edu-
cação ofertada nestas escolas deve ser organizada de modo a contemplar e res-

od V
peitar as particularidades da realidade vivenciada por essas populações, estando

aut
isso refletido em currículos, metodologias, calendário etc. (BRASIL, 1996).
De acordo com Nozu, Bruno e Heredero (2016), ao analisar a Política

R
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRA-
SIL, 2008), para que haja a inclusão de pessoas com deficiência no contexto

o
da educação do campo é necessário que os serviços, projetos e atendimentos
aC
relativos à educação especial sejam pensados e operacionalizados como parte
constituinte dos projetos pedagógicos destas escolas, sendo compatíveis com
as características socioculturais do grupo ao qual se destina.
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A partir de um levantamento de estudos que buscam a interface entre


visã
educação especial e educação do campo, esses autores elencam vários aspectos
que merecem ser destacados aqui por caracterizarem a interseccionalidade já
previamente mencionada. Tanto a educação do campo quanto a educação esco-
itor

lar possuem histórico de descaso governamental que leva a percurso marcado


por lutas e conquistas a partir de movimentos e organizações sociais, nas quais
a re

almejam o reconhecimento de suas identidades e necessidades. Outra interface


consiste nas matrizes educacionais de ambas as educações, por serem pauta-
das na autonomia, trabalho, cultura, eticidade e criticidade. Neste processo,
os autores destacam que ambas são comumente abordadas sob uma política
par

assistencialista que reflete um contexto social de inferiorização, estigmatização


e invisibilidade dos seus públicos-alvo (NOZU; BRUNO; HEREDERO, 2016).
Ed

Distantes dos centros políticos do país e menos expressivas enquanto ao


seu potencial eleitoral, populações do campo e pessoas com deficiência tendem
a ter suas realidades e suas vozes apagadas do debate de políticas públicas
ão

nacionais, em especial no que se refere a particularidades das comunidades


ribeirinhas, muitas vezes dispersas por grandes extensões territoriais e isoladas
tanto geográfica quanto politicamente.
s

Uma questão que emerge na relação entre educação especial e educa-


ver

ção do campo tem relação com as avaliações diagnósticas realizadas nestes


contextos. Com menos acesso a profissionais especializados, muitos alunos
são descritos como possuindo deficiência intelectual ou sendo descritos como
crianças que “não aprendem” sem na realidade terem sido avaliados adequa-
damente (CAIADO, 2015), o que pode refletir um viés urbanocêntrico do
desenvolvimento infantil e dos processos de aprendizagem que se tornam
descontextualizados (NOZU; BRUNO; HEREDERO, 2016).
666

De acordo com Koehler, Chaga e Kuster (2020) para que os objetivos da


educação do campo sejam alcançados tal qual previsto nos documentos legais
junto à população de alunos com deficiência, é preciso que o atendimento
especializado seja ofertado de modo a considerar e impactar mais do que o
espaço físico da escola, abrangendo componentes culturais e respeitando

or
características geográficas e econômicas das famílias envolvidas.

od V
Em um levantamento realizado por De Freitas (2020), foram identifica-

aut
dos vários direitos que são apontados em múltiplas pesquisas nacionais como
não estando garantidos na educação especial no campo. Os mais recorrentes
foram: formação inicial e continuada dos professores (apontada em seis

R
estudos); necessidade de espaços para a reflexão dos professores (destacada
em cinco estudos); matrícula e aprendizagem dos alunos em sala regular (em

o
quatro estudos cada).
aC
A questão da matrícula pode parecer meramente burocrática em um olhar
inicial, mas traz implicações diretas sobre o processo de inclusão. Das Mercês

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(2018) relata a realidade de um docente na qual a matrícula de estudantes com
deficiência ribeirinhos não é inserida no sistema identificando a deficiência, o
visã
que dificulta o acesso a serviços, à captação de recursos e à formação docente
adequados à demanda existente. Essa ausência de dados precisos invisibiliza
ainda mais a educação destes alunos e afeta, inclusive, a oferta de formação
itor

continuada fornecida pelos órgãos governamentais, que tende a ser direcionada


a re

apenas à realidade urbana.


Koehler, Chaga e Kuster (2020) também relatam a falta de formação con-
tinuada dos profissionais que atuam na educação do campo, o que é agravado
por estruturas físicas e materiais pedagógicos insuficientes e/ou inacessíveis
par

à população a que se direcionam.


Em um estudo com escolas ribeirinhas do Amapá, Valente (2016) encon-
Ed

trou que a carência na formação continuada é por vezes combatida a partir


da atuação do atendimento educacional especializado (AEE) que, quando
presente e qualificado, pode atuar de forma mais direcionada às demandas
ão

específicas de cada realidade em que atua, buscando sanar lacunas da for-


mação básica docente. Todavia, a autora destaca que esta formação se torna
relevante justamente pela ausência de políticas de formação continuada por
s

parte do poder público mas que é, ainda, limitada.


ver

Apesar de o trabalho realizado pelos professores da escola, sob a orientação


e apoio da professora do AEE, estar repleto de boa vontade e verdadeiras
intenções para melhorar a prática inclusiva, não é o bastante, é necessário
também que os professores do ensino regular busquem outros meios para
dar continuidade na formação continuada (VALENTE, 2016, p. 98).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 667

Além das limitações apontadas pela autora, vale destacar que o aten-
dimento educacional especializado nem sempre se faz presente no contexto
educacional do campo. Muitas escolas compreendem esse serviço como limi-
tado a um atendimento extraclasse, reduzido à sala de recursos, configurado
de modo uniforme para todos os estudantes e, assim, resultando em pouco

or
impacto para a sala regular e para a oferta de um ensino de qualidade (NOZU;

od V
BRUNO; HEREDERO, 2016; MENDES, 2019).

aut
O funcionamento de salas de recurso no contraturno é confrontado com
desafios ainda maiores no contexto do campo, em especial no que diz respeito

R
à questão dos transportes. Koehler, Chaga e Kuster (2020) relatam em seu
estudo que esse serviço não foi ofertado na escola estudada pois o transporte
escolar para levar a criança para almoçar em casa, sendo suas residências em

o
localidades distantes e/ou de difícil acesso, inviabilizava o retorno no contra-
aC
turno. Como consequência, não houve contratação de docente para o AEE.
Essa questão do transporte foi abordada ainda por Caiado (2015), que
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descreveu as dificuldades enfrentadas pelos estudantes com deficiência de


escolas do campo de São Paulo ao dependerem do ônibus escolar que além
visã
de muitas vezes não ser acessível, possui horários restritos e longas jornadas,
implicando em muito cansaço e inviabilizando o retorno.
Nas escolas ribeirinhas essa situação também é repleta de limitações. Fur-
itor

tado, Cordeiro e Oliveira (2018) relatam que os barcos gratuitos responsáveis


a re

pelo transporte escolar são insuficientes, muitas vezes sem acessibilidade e não
atendem todas as ilhas da região pesquisada (município de Cametá, no Pará).
Além do trabalho in loco, junto ao professor, conforme já apresentado no
trabalho de Valente (2016), é importante que sejam encontradas alternativas
par

para o enfrentamento dessas barreiras e não que a escolha seja a não oferta do
serviço. Koehler, Chaga e Kuster (2020) refletem a necessidade de tais proble-
Ed

mas sejam enfrentados considerando particularidades do contexto local e não


sejam buscadas apenas estratégias e formatos de atuação tal qual presentes no
contexto urbano. Um exemplo pode ser encontrado na experiência do serviço
ão

de contraturno do AEE ofertado na Escola Bosque de Belém-PA (projeto edu-


cacional da Fundação Escola Bosque, que atende prioritariamente a população
do campo, seja em unidades localizadas em ilhas ou na sede, situada no distrito
s

de Outeiro-PA). Nesta escola foi desenvolvida uma alternativa para lidar com
ver

a situação do retorno respeitando a realidade da população atendida. Todas


as crianças acompanhadas pelo AEE recebem almoço oferecido pela própria
escola, possuindo espaço para descanso posterior e então o atendimento pelo
serviço, após o qual retornam para suas residências (WANZELLER, 2015).
Nozu, de Sá e Damasceno (2019) apresentam dados da educação do
campo em quatro estados brasileiros (Amapá, Mato Grosso do Sul, Pará e
São Paulo) e discutem como os serviços de educação especial tendem a ser
668

limitados, precários e descontextualizados. Este cenário é descrito com preo-


cupação pelos autores em face dos presentes retrocessos vivenciados pela área
no âmbito das políticas públicas, em especial as reduções de investimento na
educação e o fechamento de escolas do campo, o que pode gerar uma ampliação
da exclusão da população do campo como um todo do processo educacional.

or
Mais especificamente na realidade amazônica, há algumas particularidades

od V
que precisam ser apresentadas. Em sua maioria, as escolas rurais e ribeirinhas

aut
são organizadas no formato multiano (previamente denominadas multisseriadas)
“onde um único professor ensina para dois ou mais anos ao mesmo tempo (em
quatro horas/aulas diárias), no mesmo espaço físico (sala de aula)” (VALENTE,

R
2016, p. 97). O estado com o maior número de turmas multiano na Região Norte
é o Pará, sendo muitas vezes escolas com infraestrutura e condições de trabalho

o
precárias (HAGE, 2014 apud DAS MERCÊS, 2018). Em pesquisa realizada
aC
por Cosme (2018) com docentes do município de Concórdia do Pará sobre a
inclusão de pessoas com deficiência em turmas multiano, foi encontrado que as

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principais dificuldades enfrentadas por eles são: falta de formação adequada e
informação acerca das deficiências; estrutura precária das escolas; o preconceito;
visã
e a falta de apoio da Secretaria Municipal de Educação.
Outra característica da realidade paraense é o número expressivo de
comunidades ribeirinhas em quase todos os seus municípios (MEIRELLES
itor

FILHO, 2014). Furtado, Cordeiro e Oliveira (2018, p. 85) descrevem que


a re

os ribeirinhos tendem a se organizar em comunidades que “apresentam uma


multiplicidade de significados e usos sociais, políticos, culturais, religiosos”
que devem ser considerados no contexto educacional.
Poucos são os estudos desenvolvidos na interface entre educação especial
e educação do campo na realidade paraense. Nozu, de Sá e Damasceno (2019)
par

apresentam os estudos de Fernandes (2015) e Negrão (2017) como produções


de destaque. Fernades (2015 apud NOZU, DE SÁ, DAMASCENO, 2019)
Ed

identificou a elevada demanda de matrículas de estudantes com deficiência na


região da Belém insular, estando vinculados a escolas ribeirinhas da Secretaria
Municipal de Educação de Belém. A autora encontrou carência de serviços/
ão

profissionais especializados, os quais atuam na área continental urbana e apre-


sentam resistência em atuar nas comunidades investigadas, faltando inclusive
atividades agendadas. Outras carências identificadas são relativas a recursos
s

didáticos, transporte escolar e estrutura física das escolas.


ver

Um dado que merece atenção, e que coaduna com a preocupação com


o cenário político de Nozu, de Sá e Damasceno (2019) supramencionada, é o
fechamento de escolas do campo e de salas de recurso nestas localidades apon-
tado por Negrão (2017 apud NOZU; de SÁ; DAMASCENO; 2019). No estudo
dessa autora, foi identificado que os alunos público-alvo da educação especial das
ilhas eram atendidos na sede (urbana) do município, o que pode ser considerado
como uma forma de desvalorização e descontextualização da realidade ribeirinha.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 669

Segundo dados do Plano Diretor do Município de Belém, a cidade possui 39


ilhas, que em geral são densamente florestadas e com baixa densidade populacio-
nal (BELÉM, 2010). Em 2010, havia 78.377 pessoas em uma área de aproxima-
damente 33 hectares, o que representa 6% da população em 65% do território de
Belém (SOARES; OLIVEIRA, 2021). Essa realidade influencia na expressividade

or
política dessas comunidades, que seguem invisibilizadas e são confrontadas com a

od V
constante pressão para a urbanização (com o fechamento de escolas, por exemplo),

aut
violando seus direitos sociais e violentando suas identidades.
Tendo em vista a limitada produção acadêmica sobre a realidade das
escolas paraenses de educação do campo e as dificuldades para obtenção de

R
dados oficiais (como a discrepância entre o número de matrículas e o número
efetivo de alunos com deficiência, apontada por Das Mercês, 2018), o presente

o
estudo buscou descrever criticamente o cenário atual da inclusão escolar na
aC
educação do campo, em especial a ribeirinha, do Estado do Pará a partir das
experiências de licenciandos de matemática vinculados ao Plano Nacional de
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Formação de Professores (PARFOR).


O PARFOR se caracteriza como uma iniciativa governamental para pro-
visã
piciar a formação no nível superior de professores da rede básica de ensino,
tendo sido instituído pelo Decreto Nº 6.769 da Coordenação de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal de Nível Superior (BRASIL, 2009). Das 420 turmas implan-
itor

tadas, em 21 cursos de licenciatura no estado desde 2009, 303 concluíram as


a re

atividades e 117 seguiam ativas até 2020.

Ilustração 1 – Alcance do PARFOR por região do Pará


Marajó Metropolitana
par

Ativas 24 de Belém
Concluída 34 Ativas 17
Concluída 68
Ed

Baixo
ão

Amazonas
Ativas 8
Concluída 11
s

Nordeste
ver

Paraense
Ativas 51
Concluída 116

Sudoeste Sudeste
Paraense Paraense
Ativas 7 Ativas 10
Concluída 29 Concluída 45

Fonte: Rezende, 2018.


670

Conforme pode ser observado na Ilustração 1, os polos onde são ofertadas


turmas do PARFOR são capilarizados pelo estado do Pará, alcançando assim
diferentes realidades educacionais.
No caso do curso de Licenciatura em Matemática ofertado pela Universi-
dade Federal do Pará no PARFOR, há uma disciplina intitulada “Estágio Super-

or
visionado III (Educação Inclusiva)” na qual os licenciandos, quase todos já com

od V
experiência docente, são demandados a acompanhar o processo educacional

aut
de um estudante com deficiência de sua localidade por um semestre letivo. O
registro descritivo, crítico e analítico dessas observações é feito em relatórios

R
de estágio que são armazenados na administração do curso. É neste conjunto
de dados que o presente trabalho se debruçou para alcançar os seus objetivos.

o
Método
aC
A presente pesquisa se caracteriza como mista (incluindo a análise de

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dados quantitativos e qualitativos) e documental consistindo na análise de 178
visã
relatórios finais da disciplina “Estágio Supervisionado III (Educação Inclu-
siva)” do curso Licenciatura em Matemática do Parfor/UFPA, desenvolvidos
no período de 2011 a 2016.
Os relatórios analisados incluem a descrição do processo de inclusão
itor

em 143 escolas públicas, de 53 municípios do estado do Pará. A distribui-


a re

ção destes municípios abrange todas as seis mesorregiões do estado: Baixo


Amazonas, Marajó, Metropolitana de Belém, Nordeste Paraense, Sudoeste
Paraense e Sudeste Paraense (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
E ESTATÍSTICA, 2020).
par

A análise dos dados envolveu a seleção de excertos do relatório que


contivessem informações sobre a escola em si; sobre o processo educacional
Ed

da criança com deficiência; sobre a experiência formativa do estágio. Foram


destacados então 1976 excertos dos relatórios, os quais foram categorizados
a partir de 10 categorias de análise, definidas a posteriori.
ão

As categorias de análise foram: Localização; Tipos de deficiências;


Atendimento Educacional Especializado – AEE; Acessibilidade na escola;
Profissionais especializados; Socialização da pessoa com deficiência; Con-
s

duta docente; Qualidade do material inclusivo; Autonomia da pessoa com


ver

deficiência; Experiência do relator.

Resultados e discussão

Os dados serão apresentados a partir das categorias de análise, sendo


contrapostos à literatura da área para que possam ser problematizados
e contextualizados.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 671

Localização
Apesar de que a maioria das escolas era direcionada à população do
campo, apenas 29% estavam localizadas na zona rural (abrangendo tanto
localidades continentais, em sua maioria em rodovias e ramais, e comunida-

or
des ribeirinhas). 63% das escolas estavam localizadas na zona urbana. Desta

od V
forma, a ausência de escolas ribeirinhas para atender uma parcela dessa popu-

aut
lação faz com que muitos estudantes precisem se locomover a zonas urbanas.
De modo similar, a baixa densidade demográfica das regiões continentais
implica em longas distâncias para cada escola.

R
Como já discutido anteriormente, a oferta de transporte escolar é limi-
tada e, em sua maioria, inacessível para estudantes com qualquer restrição de

o
mobilidade (CAIADO, 2015; FURTADO; CORDEIRO; OLIVEIRA, 2018;
aC
KOEHLER, CHAGA, KUSTER, 2020). Para Fernandes e Fernandes (2016)
essa realidade da localização das escolas ribeirinhas e da inacessibilidade de
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transportes dificulta ou mesmo inviabiliza a inclusão de pessoas com deficiência.


visã
Tipos de deficiência

De acordo com o Gráfico 1, os diagnósticos mais encontrados nos rela-


itor

tórios foram de deficiência auditiva (23%) e deficiência intelectual (20%).


a re

Apenas 1% dos estudantes acompanhados não possuíam diagnóstico.

Gráfico 1 – Incidência de diagnóstico dos estudantes com deficiência


Distúrbio de
Aprendizagem
Transtorno Global do
par

6%
Desenvolvimento Sem Diagnós�co
15% 1%
Física
Ed

17%

Intelectual
20%
s ão
ver

Visual
14%
Múl�pla
4%

Audi�va
23%

Fonte: Dados da pesquisa.


672

É importante contrapor esses dados com a estatística nacional. De acordo


com o Censo Demográfico de 2010 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEO-
GRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019), considerando apenas a população rural do
estado do Pará, 60% das pessoas com deficiência teriam deficiência visual,
21% teriam deficiência motora, 15% teriam deficiência auditiva e 4% teriam

or
deficiência mental/intelectual. Essa disparidade fica ainda maior se for con-

od V
siderado que nos índices nacionais não há a categoria de Transtornos Globais

aut
do Desenvolvimento, sendo que muitos desses indivíduos podem ter sido
inseridos na estatística de deficiência mental ou intelectual.

R
Apesar de ser necessário compreender que os dados obtidos nos relatórios
não compreendem o total de discentes matriculados, há de se questionar o que
pode justificar a discrepância ante as estatísticas oficiais. Uma possibilidade pode

o
ser a reflexão crítica sobre uma possível classificação como deficiência intelec-
aC
tual as diferentes formas de aprender e se comunicar, patologizando caracterís-
ticas socioculturais (CAIADO, 2015; NOZU; BRUNO; HEREDERO, 2016).

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Outro aspecto que pode ser apontado é ausência de profissionais de medi-
visã
cina na região, dificultando uma avaliação diagnóstica adequada de alguns
quadros, já que de acordo com o Conselho Regional de Medicina do Estado
do Pará (2018), o Pará possui a menor proporção de médicos do país (0,97
por mil habitantes), sendo que apenas metade destes são especialistas (51,8%)
itor

e somente 30,3% dos médicos estão fora da capital (localidades onde a pro-
a re

porção se reduz a 0,35 por mil habitantes). Como consequência, o acesso a


serviços diagnósticos ainda é muito centralizado em grandes centros urbanos,
em especial na capital, implicando em grandes custos de deslocamento para
usufruir destes serviços. Esta realidade praticamente inviabiliza a atuação
par

multidisciplinar tanto no contexto diagnóstico quanto no acompanhamento e


pode resultar em diagnósticos de deficiência mental precipitados ou mesmo
Ed

preconceituosos (NUBILLA; BUCHALLA, 2008).


Essa hipótese recebe o suporte do R22 (Relatório 22), onde o licenciando
descreve que ao perguntar à docente sobre se havia alunos público-alvo da
ão

educação especial na escola, recebeu resposta afirmativa, pois segundo a


docente “[...] a escola recebe alunos com realidades diferentes, uns moram
no campo”. Pode-se perceber, nesse relato, a inferência de uma correlação
s

(espúria) entre residir no campo e possuir algum tipo de deficiência.


ver

Atendimento Educacional Especializado - AEE

Dos relatórios analisados, 47% não trouxeram informações sobre a presença


ou ausência do AEE na escola em questão. Dos relatórios que incluíram essa
informação, 34% das escolas possuíam o serviço e 19% não. Ainda que seja pos-
sível que as escolas sobre as quais não se obteve informações possuam o serviço,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 673

pode-se inferir que o mesmo não se faz relevante no processo de acompanhamento


da inclusão escolar ou teria comparecido nos relatos diários. Sendo assim, obser-
va-se que apenas aproximadamente um terço das escolas são apoiadas pelo AEE.
De modo similar ao que já havia sido encontrado na literatura (NOZU;
BRUNO; HEREDERO, 2016; MENDES, 2019), os relatórios trouxeram

or
relatos de que o AEE em sua maioria das vezes é reduzido à Sala de Recur-

od V
sos, quando não configurado como Classe Especial – isolando e excluindo

aut
as crianças com deficiência dos demais estudantes da escola – e apenas alte-
rando a nomenclatura do serviço. Este tipo de estrutura contradiz o que é
preconizado nos documentos legais, exemplificando o distanciamento entre

R
os documentos legais e a realidade educacional, em especial na educação do
campo. Por exemplo, está previsto no Decreto Nº 7.611 (BRASIL, 2011) de

o
que o AEE deveria ser voltado a eliminar as barreiras que possam obstruir o
aC
processo de escolarização de estudantes com deficiência e na LBI, por sua
vez, consta que o AEE deve ser institucionalizado no projeto pedagógico da
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

escola, de modo a “garantir o seu pleno acesso ao currículo em condições de


igualdade, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia” (BRA-
visã
SIL, 2015, Art. 28, Inciso III). Pode-se defender, assim, que o AEE deve ser
mais do que uma questão semântica e deve contribuir para a transformação
da realidade escolar em uma realidade inclusiva.
itor
a re

Acessibilidade

Segundo a avaliação dos licenciandos, apenas 25 escolas (9%) foram


consideradas acessíveis, não havendo uma apresentação clara dessa infor-
par

mação em 65% dos relatórios. Contudo, nos relatórios em que comparece


essa descrição pode-se perceber uma ênfase na infraestrutura necessária
Ed

para a mobilidade de estudantes com deficiência física (mesmo sendo menos


representativa no universo analisado). Nas escolas acessíveis, foram descri-
tos banheiros e portas adaptados; presença de rampas e pisos táteis. Em sua
ão

maioria, esses relatos eram relacionados a reformas recentes e de repasse de


recursos governamentais para acessibilidade, havendo ainda relatos escassos
de aquisição de tecnologias assistivas e transportes adaptados.
s
ver

Profissionais especializados

Apenas 12 escolas (8,4%) foram relatadas possuindo profissionais espe-


cializados lotados no AEE. Já em 8 escolas foram identificados profissionais
que trabalham no processo de inclusão (psicólogos, fonoaudiólogos, fisiote-
rapeutas, assistentes sociais, educadores físicos e professores de libras) e 2
possuem acesso a esses profissionais através de parcerias (7% do total).
674

Quanto à formação profissional, vários relatórios apresentam a busca


pessoal por formação por parte do corpo docente, incluindo o PARFOR. Na
ausência de cursos mais direcionados à temática em suas localidades e con-
siderando as restrições de acesso à internet, muitos relatam sentir dificuldade
em se preparar adequadamente para lidar com a educação de pessoas com

or
deficiência. Esse cenário foi encontrado também na literatura já existente,

od V
como os estudos de Valente (2016) e das Mercês (2018).

aut
Socialização da pessoa com deficiência

R
A maioria dos relatórios (57%) não registrou esse tópico, demonstrando
que este não foi visto como elemento relevante do processo educativo pelos

o
licenciandos. Dentre os 88 relatórios que destacaram a socialização, 71,5%
aC
a perceberam de forma positiva. Nestes casos, as formas de promoção da
socialização relatadas foram através de grupos de conversas sobre temas varia-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dos; atividades acadêmicas em grupos; e atividades recreativas (brincadeiras,
visã
músicas e danças). Em 31% dos relatórios são descritas relações afetuosas
com a equipe da escola, incluindo funcionários da portaria e da limpeza. Em
10%, havia ênfase na relação professor-aluno e/ou com a cuidadora, desta-
cando uma certa dependência, como descrito no R156 “[...] a aluna interage
itor

mais com a sua cuidadora do que com as outras crianças”. Em apenas 18%
a re

dos relatórios a socialização era inexistente ou negativa.


Rosa e Menezes (2019) destacam que a socialização infantil é funda-
mental para o desenvolvimento pleno do indivíduo, afetando suas habilidades
sociais e o desempenho acadêmico. Contudo, na revisão realizada pelas auto-
par

ras, foi encontrado que a maioria dos artigos levantados relatam um cenário
de exclusão social de crianças com deficiência, havendo poucas ou nenhuma
Ed

interação com os pares. Nesse sentido, pode-se considerar assim que o cenário
encontrado na educação do campo no Pará, a partir dos relatórios analisados,
é de uma inserção social mais positiva que o usual.
ão

Conduta docente
s

Quanto à conduta docente observada pelos licenciandos, foi relatado o


ver

uso de recursos didáticos concretos e lúdicos, bem como da dificuldade de


acesso a estes. O relato presente no R133 apresenta que a docente

“atua de forma dedicada, esforçando-se o máximo em ensinar seus alunos,


de modo que haja realmente aprendizagem, mantendo uma relação de
respeito e compromisso com a educação de seus alunos.”
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 675

Este trecho descreve o empenho pessoal da docente em busca de um


ensino de qualidade para alunos público-alvo da educação especial. Este tipo
de relato foi também encontrado em outros relatórios. Estes relatos se desta-
cam pela ênfase em características pessoais dos professores para lidar com os
alunos como paciência, atenção, cautela e dedicação, bem como o estímulo à

or
participação dos estudantes com deficiência.

od V
Contrariamente a isso, também foram relatadas aulas tradicionais pouco

aut
adaptadas. Nesses casos, compareciam de um lado relatos de descaso e negli-
gência por alguns docentes, enquanto outros percebiam os déficits de suas

R
práticas, mas descreviam frustrações, inseguranças e ansiedades em lidar
com essa situação.

o
Qualidade do material inclusivo
aC
Em duas escolas foi descrito haver materiais de qualidade para o atendi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mento inclusivo. Entre os materiais descritos, havia: soroban; material dou-


visã
rado; tangram; softwares matemáticos adaptados; dicionário de libras; sistema
braile; sistema DASHER.
Em 26 escolas (14%), os materiais não eram específicos para inclusão ou
existiam em quantidade limitada. Nos demais relatórios os materiais didáticos
itor

foram declarados faltosos ou não correspondiam às necessidades inclusivas


a re

dos alunos.
De acordo com o R216, “os recursos pedagógicos não atendiam a todos
e alguns eram improvisados, outros não eram adequados à faixa etária de
alguns alunos, tornando a aula um desafio”.
par

Koehler, Chaga e Kuster (2020) discutem que os materiais pedagógicos


deveriam ser disponibilizados ao corpo docente de modo a favorecer o plane-
Ed

jamento de práticas pedagógicas que considerem tanto as necessidades edu-


cativas de cada estudantes, na perspectiva da educação inclusiva, bem como
suas características socioculturais enquanto população do campo. Pode-se
ão

perceber, pelos relatórios analisados, que essa não é a realidade da maioria


das escolas investigadas.
s

Autonomia da pessoa com deficiência


ver

A questão da autonomia foi percebida de modo paradoxal nos relatórios


analisados, pois se por um lado a oferta de apoio é importante para a educa-
ção inclusiva, por outro lado é fundamental que a atuação docente busque
estimular a autonomia estudantil. O limiar entre estas duas formas de lidar
com as características da pessoa com deficiência é bastante debatido no con-
texto do capacitismo. Mello e Cabistani (2019) discutem o capacitismo como
676

uma pressão à adequação a um ideal de capacidade funcional e defendem a


importância do lugar de fala da pessoa com deficiência, sendo ela quem deve
delimitar seus limites e potencialidades.
No R42, há um relato que contribui com essa reflexão:

or
“os colegas estão sempre ajudando, levando-o ao bebedouro, fazendo

od V
companhia na hora do lanche e nas horas em que necessita ir ao banheiro

aut
tem sempre alguém (diretor ou vice-diretor ou secretário) disponível para
atender suas necessidades”.

R
Neste relato, pode-se perceber uma barreira atitudinal chamada de subes-
timação por Tavares (2012), a qual descreve que o desenvolvimento individual

o
é prejudicado pela expectativa de outrem de que a pessoa não é capaz de
aC
realizar nenhuma destas atividades sozinha. Pode-se destacar, em especial,
a “companhia na hora do lanche”, afinal, deveria ser esperado que a criança
tivesse companhia de seus pares em função da socialização natural esperada

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


junto a eles e não como uma forma de “ajuda” decorrente da deficiência.
visã
Por sua vez, foram encontrados relados de oferta de funções ativas na
escola desempenhadas por estudantes com deficiência e o uso de tecnologias
assistivas que permitam o aprendizado autônomo. É o caso de R123 que
itor

diz: “a escola dispõe de um trabalho de companheirismo, concentração para


desenvolver a autonomia do aluno dentro e fora de sala de aula […]” e de R43,
a re

quando afirma “[...] nunca perdendo a autonomia, o respeito e o compromisso


de preparar o nosso discente para a convivência social”.

Importância da experiência
par

Esta última categoria foi criada para dar destaque à experiência do estágio
Ed

para a formação dos licenciandos, especialmente considerando que nem todo


curso de licenciatura possui uma disciplina de estágio exclusivamente para
debater a educação especial na perspectiva da educação inclusiva.
ão

Os principais tópicos destacados nos relatórios se referem a uma mudança


de percepção com relação à educação inclusiva, ampliando o reconhecimento,
por parte dos licenciandos, das potencialidades das pessoas com deficiência.
s

Destacam, ainda, o papel no estágio no aprimoramento na formação docente,


ver

especialmente a partir do contato com outras metodologias de ensino.


Um ponto sinalizado como positivo em diversos relatórios é ter favo-
recido o desenvolvimento de uma visão crítica com relação à inclusão, enri-
quecida pela compreensão de que a educação inclusiva precisa ser inserida e
adequada à realidade local.
De acordo com Terra e Gomes (2003), a inserção de experiências de
estágio relacionadas à inclusão podem contribuir com uma formação docente
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 677

mais adequada à construção de escolas inclusivas. Considerando a carência


de literatura sobre a educação especial na educação do campo, como já dis-
cutido neste texto, pode-se defender que a experiência de estágio que gera a
vivência nessa interseccionalidade pode ser ainda mais transformadora para
aqueles que participam da disciplina.

or
od V
Considerações finais

aut
Com base nos relatórios analisados, pôde-se perceber que a lacuna na

R
formação de professores e no acesso a profissionais especializados acaba por
ser contrabalanceado a partir do empenho pessoal e investimento emocional de
docentes e demais membros da comunidade escolar no processo de inclusão.

o
Alguns aspectos referem-se, ainda, às particularidades da educação do
aC
campo (rural e ribeirinha), como as distâncias das localidades, o isolamento
gerado por estas distâncias e a falta de investimento público tanto no que
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tange a recursos materiais quanto na oferta de profissionais especializados.


visã
Há outros aspectos culturais particulares a cada um destes municípios e das
comunidades atendidas pelas unidades educacionais acompanhadas que mere-
cem investigação em estudos futuros para um maior aprofundamento de como
a educação especial se desenvolve e se entrelaça com a realidade local.
itor

Pode-se perceber que, apesar das condições precárias e de diversas limi-


a re

tações, a inserção de estudantes com deficiência em escolas públicas regulares


é uma realidade por todo o estado, considerando que não houve relatórios
que tenham se deparado com a ausência deste alunado. Há, inclusive, esco-
las relativamente bem preparadas para esse tipo de atendimento através de
par

parcerias com as secretarias de educação; da existência do AEE; de equipes


multiprofissionais e com estruturas adequadas.
Ed

Defende-se que é essencial considerar as particularidades de cada região


do Brasil ao se pensar em políticas educacionais inclusivas, respeitando as
particularidades de suas localizações geográficas para que a educação inclusiva
ão

seja eficazmente implementada e para que possamos democratizar ainda mais


a educação pública brasileira.
s
ver
678

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par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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NUCLEAÇÃO DAS ESCOLAS
DO CAMPO:
as faces de uma política pública

or
e suas implicações na garantia do

od V
direito de acesso e permanência

aut
R
Areli Ferreira Vasconcelos

o
Introdução
aC
Este trabalho analisa a política de Nucleação das escolas do campo pre-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sentes no território de Matacurá e das comunidades ao seu entorno, no muni-


cípio de Baião – Pa. Adota, como categorias de análise, as compreensões dos
visã
sujeitos e as contradições na garantia de direito ao acesso à educação para os
alunos que necessitam deslocar-se de suas comunidades até a escola núcleo.
A educação do campo completou 20 anos (FONEC, 2018) e neste percurso
itor

foram muitos desafios transpostos e muitos que ainda existem, pois “a educação
a re

do campo nomeia um fenômeno da realidade brasileira, protagonizada pelos


trabalhadores do campo e suas organizações [...]” (CALDART, 2012, p. 259),
assim, faz-se necessário a compreensão do contexto das comunidades de toda a
sua dinâmica, para que as políticas públicas atendam às suas especificidades e
par

tenham significados que de fato contribuam para a vida das populações do campo.
A política de Nucleação surgiu embasada na justificativa de melhorar
Ed

a qualidade de ensino dos alunos, neste sentido, “a nucleação consiste em


reunir um determinado número de escolas de uma determinada região ou
espaço geográfico em torno de apenas uma unidade de ensino maior, com
ão

mais infraestrutura, denominada escola núcleo” (CARMO, 2016, p. 23), ou


seja, ainda segundo este estudioso, a polarização é promovida pelos governos
estaduais e municipais com o propósito de organizar uma estrutura escolar
s

mais moderna e com melhores ambientes e estruturas pedagógicas.


ver

Nesse cenário da implementação da política de nucleação, acordar mais


cedo, percorrer longos caminhos (terrestres ou fluviais) para chegar a escola
núcleo, assim como o distanciamento geográfico da sua comunidade de ori-
gem, entre outros fatores, podem provocar práticas que os afastam ou os
desvinculam de suas vivências diárias, concedendo-lhes novos valores cultu-
rais e também situações que podem negar a sua identidade, deixando de ver
sua comunidade como possibilidade de vida. Além dos possíveis riscos que
684

estes alunos ficam expostos durante o trajeto casa-escola/escola-casa, que


não podem ser desconsiderados, visto que muitos deste passam um tempo
importante no transporte escolar.
Esses fatores têm sido enfrentados pelo movimento de educação do
campo no Brasil como uma política que desconhece ou desrespeita a história

or
de seus educandos, toda vez que se desvincula da realidade dos que deveriam

od V
ser seus sujeitos, não os reconhecendo como tais, ela escolhe a desenraizar

aut
e a fixar seus educandos num presente sem laços (CALDART, 2005). Logo,
afastar esses alunos de sua comunidade, gera mudanças significativas na sua

R
formação, enquanto sujeitos pertencentes a um determinado lugar.
Na concepção de educação do campo, a defesa é de que o território do
campo é diferente do espaço urbano. Deste modo, o conceito de rural não mais

o
dá conta das especificidades das comunidades campesinas que nos últimos
aC
anos vêm lutado pela compreensão do espaço rural como espaço de vida; e
traz como uma das suas bandeiras, que vem a ser a educação do e no campo;

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do por ser pensada para a realidade dos povos campesinos e no porque deve
acontecer naquele espaço geográfico (CALDART, 2005).
visã
As formas de trabalho das populações do campo voltam-se para a agricul-
tura familiar, extrativismo, pequenas criações e pequenos comércios, no entanto,
tem forte presença da monocultura da pimenta-do-reino, que juntamente com
itor

os comércios situados na sede do Município, movimentam a economia local.


a re

As relações de trabalho nas comunidades estão ligadas ao eixo familiar


e comunitário, as tomadas de decisão sobre o trabalho, em sua maioria, são
patriarcais. Entretanto, há uma forte participação das mulheres nestas tomadas
de decisão, pois as mesmas vêm ganhando espaço no seio das famílias e, em
par

algumas situações, são as responsáveis pela renda da família.


Os sujeitos que residem nestas comunidades, sejam agrícolas, agroex-
Ed

trativistas, ribeirinhas ou quilombolas, trazem consigo histórias de vida, de


lutas, dos embates e enfrentamento de desigualdades sociais. Carregam o peso
da caracterização pejorativa no sentido de serem, muitas vezes, tratadas pelo
ão

poder público como se fossem inferiores e que qualquer coisa servisse para
elas, fomentando um histórico de negação social.
Além disso, não é levado em conta que são vidas que trabalham para a
s

vida, que plantam, cuidam, colhem, pescam, caçam e tem uma relação intima
ver

com os rios, as florestas e que tem direito a uma educação formal, que pos-
sibilite uma análise crítica da mesma forma e com a mesma qualidade que é
oferecida nas escolas urbanas.
No contexto de discussão do processo de nucleação das escolas do
campo, no município de Baião-PA, esta pesquisa pretendeu compreender
de que modo a política de nucleação é percebida pelos moradores de uma
comunidade que presenciou sua escola fechada.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 685

Na perspectiva profissional, pesquisar os impactos das nucleações e até


onde proporcionam educação de qualidade, visto que os alunos necessitam
deslocarem-se de suas comunidades para outra, que, muitas vezes, encontra-se
distante da sua.
Por este motivo, entende-se a importância da compreensão da vida dos

or
sujeitos envolvidos neste processo, pois como pertencente a uma comunidade

od V
do campo, sabemos o quão é traumático desvincular-se do lugar a que pertence

aut
e como é difícil a adaptação ao novo, nova escola, novo dialeto e novos cole-
gas, sem que sejam consideradas todo o percurso de uma vida já construída.

R
O trilhar da educação do campo como direito: visitando os

o
marcos legais
aC
Para a compreensão do cenário das lutas políticas, principalmente no
campo da educação nas áreas rurais do país, há de compreender a diversidade
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de projetos para o campo. Torna-se, portanto, necessário a busca por elemen-


visã
tos, eventos e movimentos que possam contribuir para a compreensão dessa
realidade (OLIVEIRA et al., 2012).
No bojo dessas discussões, entende-se que a Educação do Campo deve
itor

partir das reflexões que remetem entender o campo como lugar de vida, no
qual estão presentes sujeitos construtores do seu espaço (CALDART, 2012).
a re

É nesse sentido que se faz necessária a defesa pelo acesso e permanência à


escola pública e gratuita, nas diferentes comunidades e realidades que confi-
guram o território do campo.
A legislação brasileira garante amparo legal na “adequação” às espe-
par

cificidades das escolas do campo. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação


(LDB), em seus artigos 23º e 28º, estabelece que os sistemas de ensino devem
Ed

promover as adequações necessárias para atender a estas especificidades, seja


no currículo, no calendário escolar e na organização pedagógica ao considerar
as condições climáticas, períodos de plantio e colheita, como também, con-
ão

dições de trabalho no campo. Segundo Hage (2010, p. 2), “essas adequações


são importantes pois, a simultaneidade entre o trabalho e a escolarização
s

no meio rural, constitui-se um fator incentivador para o fracasso escolar de


ver

crianças, jovens e adultos do campo”.


Em consonância com a LDB, as Diretrizes Operacionais para a Educa-
ção Básica nas Escolas do Campo “oportunizam a elaboração de políticas
públicas que afirmam a diversidade cultural, política, econômica, de gênero,
geração e etnia presente no campo” (HAGE, 2010, p. 2). Elas foram apro-
vadas pela Resolução CNE/ CEB n° 1, de 3 de abril de 2002, da Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação; constituindo-se
686

num conjunto de princípios e procedimentos que visam legitimar a identi-


dade própria das escolas do campo, que deve ser definida numa vinculação
estreita com sua realidade existencial, “referenciando-se na temporalidade
e saberes próprios dos povos do campo, em sua memória coletiva, na rede
de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais”

or
(HAGE, 2010, p. 2).

od V
Diante disso, certifica-se a importância das escolas do campo serem

aut
no campo e na comunidade onde os alunos residem, pois cada comunidade,
mesmo de uma mesma região, traz consigo particularidades subjetivas que

R
necessitam ser valorizadas no âmbito do sujeito como construtor do seu
espaço, argumento este, amparado pelo Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA-lei nº 8069/90), o qual defende que os educandos devem ser

o
atendidos em sua própria comunidade, e pela resolução CNE/CEB nº 02
aC
de 28 de abril de 2008, que estabelece diretrizes complementares, normas
e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento

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da Educação Básica do Campo.
Segundo Nascimento (2012), o processo de nucleação1 ganhou força
visã
A partir do entendimento de que a nucleação escolar segue a lógica de
um modelo moderno e hegemônico de escola, modelo este que desconsi-
itor

dera outras formas de ser e estar no mundo”, “a nucleação como política


educacional começou a ser adotada nacionalmente desde a década de 70,
a re

em meio a um contexto histórico de expansão do ideal americano e a uma


repressão militar deflagrada pela ditadura militar (p. 17).

Segundo o parecer CEB 23/2007, um dos motivos alegados por aqueles


par

favoráveis a nucleação são: “baixa densidade populacional, determinando


a sala multisseriada e a unidocente; facilitação da coordenação pedagógica;
Ed

racionalização da gestão dos serviços escolares e melhoria na qualidade


da aprendizagem” (CEB 23/2007, p. 06). Com base neste argumento e nas
questões custo benefício, os governos têm aderido a esta política, e ainda
ão

geram barganha política partidária pelas notáveis obras de construção de


escolas nas comunidades.
Neste sentido, quando crianças e jovens saem de suas comunidades para
s

outra, pode haver perda de raiz, pertencimento, e é este pertencimento que


ver

faz com que nos encontremos no mundo, além também de nos fazer entender
que temos um lugar.
Segundo Arroyo (2006, p. 114)

1 Caracteriza-se por um processo que tem como objetivo a organização do ensino no meio rural, em
escolas-núcleo, contrapondo-se a organização das escolas multisseriadas, mas localizadas dentro de
cada comunidade, ainda que pequena e recebendo um pequeno número de alunos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 687

[...] a escola do campo, o sistema educativo do campo se afirmará na


medida em que se entrelaçarem com a própria organização dos povos do
campo, com as relações de proximidade inerentes a produção camponesa
- vizinhança, as famílias, os grupos, enraizar-se e aproximar as formas de
vida centrada no grupo, na articulação entre as formas de produzir a vida.

or
Diante do exposto, reforça-se a importância dos sujeitos que residem

od V
no campo, tendo-o como seu lugar de vida, receberem educação neste lugar,

aut
lugar este onde os mesmos desenvolvem sua produção, vizinhança, laços. Daí
a importância de enraizar-se.

R
O fechamento da escolinha2 de uma comunidade representa muito mais
do que o mero deslocamento da estrutura educacional para a cidade ou para

o
uma comunidade maior, no contexto dessas comunidades, no qual as políti-
cas públicas estão ausentes, quase em sua totalidade, o fechamento da escola
aC
representa o desaparecimento de uma importante referência de cidadania e de
um espaço de vivência social, no qual os moradores reúnem-se para discutir
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

os problemas enfrentados e para falar sobre os anseios e sonhos de melhores


visã
condições de vida.
Neste contexto, a nucleação das escolas do campo está a serviço do capi-
tal em detrimento da qualidade de educação como garantia de direito para os
sujeitos do campo e acabam se transformando em polarização, pois a partir
itor

do momento que os governos partem da premissa de nuclear, fechar pequenas


a re

escolas para que estes alunos sejam atendidos em escolas maiores, seriadas,
mesmo distantes de suas comunidades para conter gastos, neste momento ele
visa o capital e o lucro.
Segundo Frigoto (2003, p. 19), tem por consequência “o desmantelamento
par

da escola pública e reforça a educação como negócio”. Neste sentido, a política


de nucleação torna-se uma nova roupagem da pedagogia hegemônica, gerando
Ed

uma educação de baixo custo, negando as diversidades existentes no campo.

Os caminhos que nos levaram ao campo da pesquisa


ão

Diante dessas bases teóricas, esta pesquisa assume uma abordagem qua-
litativa de investigação, por considerar as questões existenciais dos sujeitos,
s

tais como o trabalho, a cultura, os modos de vida e saberes cotidianos, a trans-


ver

formação, a mudança, as superações das situações contraditórias da realidade.


Por termos realizado observação direta, esta pesquisa se configura como
observação participante, que para Severino (2007, p. 120) “é aquela o que
observador compartilha a vivencia dos sujeitos pesquisados, participando de

2 Termo usado de forma visivelmente carinhosa, em especial pelos moradores da comunidade ao referirem-se
à escola da comunidade como “nossa escolinha”, dando ênfase ao fato de a escola ser pequena, geralmente
contendo apenas uma sala de aula.
688

forma sistemática e permanente ao longo do tempo da pesquisa das suas ati-


vidades”. A vivência com os sujeitos pesquisados possibilita a compreensão e
a experiência de saber como é, de fato, viver como vivem, fazer o que fazem,
esperar o que esperam, sonhar o que sonham...
Como instrumento de coleta de dados, utilizou-se a entrevista semiestru-

or
turada, uma vez que esta visa a obtenção de respostas com maior flexibilidade

od V
dos sujeitos de pesquisa (GIL, 2008). Vale ressaltar que todas as entrevistas

aut
foram gravadas em áudio para posterior análise.
A análise dos dados ocorreu de forma qualitativa e reflexiva, buscando
explicitar pontos de convergência ou divergência dos sujeitos colaboradores

R
da pesquisa. Para isso, utilizou-se a análise de conteúdo conforme Bardin
(1977). A análise de conteúdo auxilia o pesquisador para compreender o

o
conteúdo das mensagens e, com isso, construir “inferências de conheci-
aC
mentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens”
(BARDIN, 1977, p. 42).

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O universo dos sujeitos desta investigação foi definido entre alunos, pais
dos alunos, professores e coordenadores da Escola Municipal de Ensino Fun-
visã
damental de Matacurá, localizada ao leste do Rio Tocantins, acerca de 70 km
da sede do Município de Baião, especificamente localizada na Vila Matacurá,
com acesso fluvial pelo rio Tocantins e terrestre pela PA 151 – Baião – Breu
itor

Branco, que conceitua-se como comunidade tradicional3 agroextrativista, por


a re

seus moradores praticarem agricultura, pesca, coleta de castanha, cacau, açaí,


dentre outros, portanto, agroextrativista.
A referida escola possui 296 alunos, dentre estes, alunos que necessitam
deslocar-se de comunidades e vilarejos vizinhos para a escola nucleada. No
período da observação em loco, utilizou-se recursos tecnológicos para efetuar
par

filmagens, gravações e fotos, previamente solicitados os consentimentos


do envolvidos.
Ed
s ão
ver

3 Por possuírem formas próprias de organização social, ocupando e usando territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução social, cultural, religiosa, ancestral, econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (conceito definido pela Política Nacional de
Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída por meio do decreto 6.040 de 7
de fevereiro de 2017, frutos dos trabalhos da Comissão nacional do Desenvolvimento Sustentável das
Comunidades Tradicionais instituídos pelo decreto nº 27/2004, reformulada pelo decreto 13/2006).
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 689

Figura 1 – Mapa do Zoneamento das comunidades rurais de Baião

Universidade Federal do Pará

Núcleo de Ciências Agrárias


e Desenvolvimento Rural

or
Grupo de Estudos sobre a
Diversidade sobre
Agricultura Familiar

od V
Legenda

aut
Zona 1: Terra Firme com
influência de Baião

Zona 2: Ilhas

Zona 3: Quilombolas

R
Zona 4 Resex

Zona 5 Assentamentos e
Agricultura Familiar

Zona 6: Frente Pioneira

o
Zona 7: Reserva Indígena
aC Comunidades de Baião
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visã
itor

Fonte: Ledoc, Baião, 2018.


a re

Dessa forma, pensa-se que este estudo terá relevância para compreensão
do processo de implantação da política de nucleação das escolas do campo
no município de Baião e os impactos na vivência escolar dos alunos que se
par

deslocam de suas comunidades para as comunidades onde comportam as


escolas nucleadas.
Ed

“Já faz três anos que eu não terminei de estudar, porque o barco
não vem trazer”: as tessituras acerca dos resultados e discussões
ão

da pesquisa
s

A Política de nucleação das escolas do campo, no município de Baião,


ver

iniciou no ano de 2008, quando a gestão municipal acessou ao projeto de


construção de “Escolas Polos”. Segundo a Secretaria Municipal de Educação
(SEMED), os estudos acerca da nucleação começaram ainda em 2008, na
gestão da então prefeita Benedita do Pilar Lobo Dias, com a realização do
chamado LSE – Levantamento Situacional Escolar. Neste estudo, foi possível
apresentar ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) a
real necessidade para construção das escolas Núcleos de 6 e 4 salas.
690

Os critérios e justificativas para acesso ao recurso e a planta arquitetônica


das escolas deram-se em torno da demanda reprimida nas comunidades rurais,
justificando que haviam alunos, porém não haviam espaços físicos. A partir
de então, na transição do governo de Benedita do Pilar Lobo Dias para o de
Nilton Lopes de Farias, foi dada a continuidade do Projeto de construção das

or
escolas núcleos, incluindo a justificativa do projeto para acesso às construções.

od V
Cabe-nos ressaltar que a construção destes estabelecimentos escolares, nem

aut
sempre são de conhecimento das comunidades, pois geralmente não são realiza-
das uma apresentação da política e, muitas vezes, as populações trabalhadoras
rurais desconhecem as implicações de uma política como esta. Esse tratamento

R
pode ser compreendido como uma ação de violência simbólica dos governos
ao instituírem políticas e diretrizes educacionais formuladas para as pessoas do

o
campo (CALDART, 2009) e não pelos camponeses, segundo suas perspectivas.
aC
As escolas núcleo, quando construídas, contavam com a mesma infraes-
trutura. Quatro ou seis salas de aula, sala de direção, secretaria, sala de profes-

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sores, uma sala destinada a biblioteca, sala de computação, cozinha, depósito,
banheiro de alunos (feminino e masculino), banheiro de professores, banheiro
visã
de serviço e área social.
A construção de novas escolas nas comunidades, ao mesmo tempo
que traz esperança de melhores condições de ensino, representa, também,
itor

o fechamento de várias “escolinhas” em outras comunidades. Cenário que


a re

gera dúvidas e incertezas para os moradores que deixam de ter a referência


educacional na sua própria comunidade. Por exemplo, com a construção da
escola na comunidade de Matacurá4, que foi a última a ser entregue e outras
duas escolas, em comunidades vizinhas, deixaram de funcionar.
par

Figura 2 – Escola Multisserie da Comunidade de Vila Pantoja


Ed
s ão
ver

Fonte: Pesquisa de campo.

4 A nucleação na comunidade de Matacurá já ocorre desde 2016, entretanto, somente em novembro de 2018,
a escola nucleada fora inaugurada e dessa forma, concretizou-se o processo de implementação.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 691

A comunidade de Vila Pantoja conseguiu reverter o fechamento de sua


escola e garantiu o funcionamento da escola multissérie, que atende alunos
do ensino infantil ao 5º ano. Com isso, apenas os estudantes do 6º ao 9º ano
deslocam-se para a escola Núcleo de Matacurá.
Como podemos observar na figura 02, trata-se de um estabelecimento

or
com infraestrutura reduzida, mas de grande significado para os moradores

od V
da comunidade. Não é apenas um espaço físico, mas uma das formas de

aut
manutenção da vida nesta comunidade. É a garantia do direito a estudar sem
precisar sair do local onde vivem.

R
Outa situação de fechamento, mas que não foi revertida, foi o da Escola
Municipal de Ensino Fundamental de Matacurazinho, localizada no entorno
da Vila de Matacurá. Com o fechamento desta escola, todos os estudantes

o
foram matriculados na escola Núcleo da Vila de Matacurá.
aC
Neste sentido, é importante frisar que há um descumprimento de nor-
mas em relação à escola de Matacurazinho, pois a resolução SEB nº02 de
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2008, em seu artigo 3º, estabelece que “A Educação Infantil e os anos iniciais
visã
do Ensino Fundamental serão sempre oferecidos nas próprias comunidades
rurais, evitando-se os processos de nucleação de escolas e de deslocamento
das crianças”. Neste sentido, ao fechar a escola e encaminhar os alunos para
outras escolas distantes, mesmo da educação infantil e das séries iniciais, o
itor

poder público está descumprindo a legislação e negando o direito que assiste


a re

ao educando de ter escola em seu lugar de residência.

Compreensões acerca da política de nucleação da escola


em Matacurá
par

Sabe-se que as políticas públicas de educação não atendem, em sua


Ed

totalidade, as demandas dos povos do campo, demandas essas, muitas vezes,


básicas. As mudanças ocorridas com a implementação nem sempre congrega
qualidade e satisfação, diante disso, abordaremos a seguir os entendimentos
ão

dos sujeitos pesquisados acerca de suas compreensões sobre uma escola de


qualidade e de seus entendimentos sobre fatores que tornam a política de
s

Nucleação distante das especificidades dos sujeitos do campo, visto que estes
residem em locais distantes da escola núcleo.
ver

Para ilustrar esta ‘insatisfação’ ou ‘satisfação’ por parte dos moradores


e alunos, destacaremos algumas falas significativas:

“Mudou a rotina porque a gente tem que se arrumar mais cedo; a parte
negativa é ter que vim de lá pra cá, a gente espera que o nosso prefeito ‘da’
mais atenção para nos alunos ribeirinhos da nossa região de Matacurá”
(J. S. C – aluno).
692

“Eu não gostei porque um ano eu não terminei de estudar. Já faz três anos
que eu não terminei de estudar, porque o barco não vem trazer; porque o
prefeito não paga; a gente usa uma lancha de transporte, gente leva mais
ou menos uma hora e meia pra chegar aqui, porque a gente mora entre
Arrependido e Santa Maria, é longe...; eu queria que a escola fosse lá

or
perto” (O. S. M. 15 anos – aluna).

od V
“Olha, eu acho que o prefeito mandou construir esse colégio, eu não sei se

aut
eles falaram o que é a nucleação, eles até queriam fechar essa escola aqui,
mas foi o povo da vila, tudo o que vem é pra vila, eles (poder público) não

R
enxergam o lado da ilha. O transporte escolar é fraco, trabalha uma semana
e duas eles não trabalham, as crianças do Arrependido outro mês aí ficaram

o
mais de mês sem ir...prejudica os alunos esse tempo no barco, prejudica ficar
sem barco, os alunos são os prejudicados [...] é muita coisa errada, Dona.”
aC
(R.D.P.P – 63anos – morador de vila Pantoja; pai de aluno – lavrador)

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Podemos observar, nos relatos dos alunos, o descaso do poder público
em relação a manutenção de uma educação com qualidade social, pois a
visã
nucleação demanda que o transporte escolar funcione de forma prioritária,
que seja efetivo e que possibilite acesso e permanência destes alunos na escola
Núcleo. No entanto, como podemos observar, não é o que tem acontecido,
itor

assim, cai por terra o argumento de nuclear dar uma escola mais estruturada
a re

para melhorar a qualidade de ensino, uma vez que os alunos estão repetindo
de ano por falta de garantia de acesso à escola
No relato do morador e pai de aluno, podemos observar o reforço
da falta de qualidade social e a negação do acesso e permanência, como
par

também a importância da escola multissérie para aquela comunidade, entre-


tanto, o que mais nos chamou atenção, foi a fato de ele culpar os moradores
Ed

e os professores da Vila onde está a escola nucleada, em razão da ameaça


de fechamento da escola de Vila Pantoja, local em que o mesmo reside com
sua família. Mesmo tendo filhos estudando na escola Núcleo, o informante
ão

tem netos que estudam na escola multissérie e defende que a escolinha


continue em sua comunidade.
s

“Quando falha o barco, ou a lancha, não é toda vez que os meninos vão,
ver

as ‘vez’ a gente também não tem gasolina pra levar eles [...], ainda bem
que abriram a escolinha daqui, já pensou? Minha filha é muito novinha
pra ir pra vila” (S.M.X, 31 anos – pescadora e dona de casa)

Nota-se mais uma vez a importância da escola multissérie para a comu-


nidade de Vila Pantoja. A escola fica localizada a cerca de 60 metros da casa
da entrevistada.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 693

No entanto, há moradores e alunos que concordam que a política de


nucleação é uma política que atende aos seus direitos, veremos a seguir:

“Olha, meus filhos têm onde estudar, eu não tive, tem um barco que leva
eles, a gente tinha que ir ‘no remo’, tem merenda...não é todo dia, mas

or
tem, pra mim tá bom essa escola lá na vila” (K.C.P., 29 anos – pescadora

od V
– moradora de Matacurazinho)

aut
“Eu gosto de vim pra cá, lá no meu lugar não tem quase nada. A escola
aqui é bonita, lajotada, é grande, bonita...eu acho a gente aprende mais”

R
(J.S.C, 17 anos, aluno).

o
“A nucleação é melhor sim, inclusive, só não está funcionando direito, porque
ainda tem aquela escola lá na ilha, se tem a escola aqui, grande, tem que fechar
aC
a de lá. O espaço é maior, o prédio é muito bom” (E.C.C, 36 anos, professor).
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De acordo com os relatos, a política de nucleação divide entendimentos,


visã
entretanto, chamou-nos atenção os relatos dos professores, pois dos 5 entre-
vistados, 03 deles concordam que a nucleação seja muito boa.
É o que conseguimos observar em relatos como: “A dificuldade que os
alunos passam com transporte e tempo no transporte, faz com que eles queiram
itor

mais aprender, não importa se ficam cansados”.


a re

Um dos professores ousou dizer que este tempo “prejudica muito, pois os
mesmos ficam cansados da viagem e já chegam estressados” e “que eles pode-
riam aprender mais, porém ainda tem que subir a ladeira, que não é pequena”
e somente um dos professores não se posicionou em relação a este assunto.
A análise das entrevistas permitiu perceber que a maior rejeição em
par

relação a política de nucleação está entre os pais dos alunos, seguido pelos
Ed

próprios alunos e o menor índice entre os professores.


Durante a realização das entrevistas, os professores deixam claro que,
para que a nucleação seja de fato efetivada, faz-se necessário fechar as escolas
ão

multissérie, pois, dessa forma, aumenta o número de alunos da Escola Núcleo.


Entre os fatores que podem dificultar aprendizagem apareceram o tempo
no transporte escolar, o próprio transporte, merenda escolar e a escadaria
s

que dá acesso à vila. Entretanto, há quem considere o transporte, o tempo no


ver

transporte e a merenda, todos juntos, como determinantes na dificuldade da


aprendizagem. Para construir este indicador, assim como para o anterior, foi
considerado o universo, como um todo, dos sujeitos pesquisados.
Notamos, entretanto, que o que está entre o fator que mais dificulta a
aprendizagem dos alunos é o tempo no transporte escolar, já a escadaria é o
que menos influi nesta aprendizagem. No entanto, há de ser levar em consi-
deração a falta de merenda escolar, pois:
694

As vezes tem merenda, mas tem vez que não, agora tem. A gente chega
com fome, porque a gente sai de casa onze e meia, demora chegar aqui.
Quando não tem a gente fica com fome aqui...a gente só chega em casa
umas sete horas da noite (J.S.C. 15 anos).

or
A efetivação da nucleação das escolas consiste em garantir transporte e ali-
mentação escolar, entretanto, de acordo com os relatos, é possível notar que nem

od V
sempre é garantido na integralidade, tanto o transporte escolar como a alimentação

aut
escolar para estes alunos, acarretando, desta forma, a repetência de alunos com
potencial de aprovação, ou, até mesmo, evasão escolar. Sem contar que a falta

R
da alimentação escolar causa a desmotivação destes em continuar os estudos. O
tempo é outro fator que não pode passar despercebido, pois este varia de vinte

o
minutos a uma hora e meia, tanto para ir para a escola, quanto para voltar para casa.
aC
Ressaltamos que, de acordo com a resolução 02 de 28 de abril de 2008,
que trata da educação do campo, em seu artigo 3º, os alunos deverão permane-

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cer o menor tempo possível no transporte escolar e só deverão ir para escolas
nucleadas intra-campo quando esgotadas as possibilidades de oferta em sua
visã
própria comunidade, de acordo com os moradores e respeitando sua cultura.
Nota-se que 70% dos alunos investigados levam entre 1h e 1h e 30min.
para chegarem à escola, ou seja, há uma quantidade significativa de alunos que
itor

gastam até 3h do seu tempo no transporte escolar. Isto quer dizer que, o tempo
a re

que ficam dentro da sala de aula com professor é de 4h e 30min. e dentro do


transporte escolar, para terem acesso à escola, é de 3h ou aproximadamente isso.
Após a coleta e exposição dos dados, compreende-se que as concepções
dos sujeitos da pesquisa, em relação a política de nucleação, não é unanime
nem para concordâncias ou discordâncias acerca, tanto do acesso quanto da
par

garantia de direitos ou vivência escolar dos alunos, que inclui aprendizagem,


merenda escolar e tempo no transporte escolar.
Ed

Para os sujeitos entrevistados, a nucleação na comunidade de Matacurá


não atende, em sua totalidade, os direitos à educação ou garante a aprendiza-
ão

gem. Da mesma forma que gostariam de poder contar com uma escola em suas
comunidades, pois consideram que há riscos, há perda de tempo, há implicações
financeiras para que seus filhos saiam de suas comunidades para irem estudar
s

na Vila (comunidade de Matacurá). Enfatizam que se faltar o transporte escolar


ver

e se não tiverem dinheiro para abastecer as rabetas5, seus filhos faltam à escola,
e que essas faltas dificilmente são repostas de alguma forma.
Essas realidades enfrentadas pelos sujeitos que fazem uso do transporte
em decorrência da nucleação das escolas de suas comunidades, não são evi-
denciadas quando as políticas públicas são formuladas e implementadas nas

5 Pequenas embarcações que comporta um motor a gasolina com uma extensão de cerca de 2 metros para
a hélice, denominado de rabetas ou rabudos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 695

comunidades. A escola, em si, sente-se impotente diante da situação, pois


não dispõe de recursos para solucionar os problemas que são, obviamente,
da gestão municipal.
Segundo CARMO (2016, p. 22) “a escola do campo é um espaço inerente
da organização social e cultural das comunidades”, logo, negar este direito,

or
significa negar os direitos sociais e culturais dos alunos, configura-se como

od V
crime contra a sociedade, pois assegura que a educação é um direito de todos

aut
e é dever do estado e da família concedê-la.
Há tanta contradição na materialização destas políticas públicas, que

R
chegamos a questionar sobre os objetivos dessas políticas, se de fato priorizam
o acesso e permanência, ou apenas são palco para ações eleitoreiras.

o
Figura 3 – Cenas do transporte escolar terceirizado e transporte particular
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver

A situação dos portos de acesso também foi relatada, pois, dependendo


da maré, isso também implica na hora de embarcar e nem sempre o transporte
ancora de forma a facilitar este embarque.
696

Figura 4 – Porto de uma das famílias que fazem uso do transporte escolar

or
od V
aut
R
o
Fonte: Pesquisa de campo.
aC
Por outro lado, em relação a garantia ao acesso dos alunos à escola, 36%
dos entrevistados, consideram que o transporte escolar é um grande fator pelo

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qual ela não acontece. De acordo com relatos de alunos, a falta do transporte,
visã
seja por falta de pagamento, seja por que quebrou, seja por falta de combustí-
vel, é o grande responsável pelas evasões, perdas de conteúdo, programações,
provas e repetência dos alunos, explicitando, dessa forma, seu caráter contradi-
tório, pois o mesmo que garante o acesso, impede a permanecia destes alunos.
itor
a re

Está na hora de ir! O que levamos? O que deixamos?

A realização desta pesquisa pode ser analisada sob duas perspectivas. A


primeira seria no âmbito pessoal, fruto das nossas inquietações em relação às
par

políticas educacionais oriundas das nossas vivências no campo e por sermos


fruto de políticas perversas para o campo, fato que nos tira o direito de escolher
Ed

quando ir ou quando ficar, pois para o campo “vai (quando vai) o que der, da
forma que der pra ir e se der”.
A segunda seria de cunho social e profissional, sobre a constituciona-
ão

lidade a aplicabilidade das políticas educacionais, como um dos meios de


garantir a educação para os povos do campo, partido da premissa de que os
direitos à educação não devem partir das imposições do estado, mas sim dos
s

direitos que as classes trabalhadoras possuem.


ver

Para tanto, o acesso à educação escolar, fruto das relações sociais his-
tóricas, é um direito que precisa ser assegurado com equidade aos povos
do campo, visto que estes são construtores do seu espaço e de fundamental
importância para o todo.
Apesar de, com o passar dos anos, ter havido melhorias em relação ao
acesso à educação escolar, observa-se que uma parte dos moradores e alunos
não se sentem contemplados com a política de nucleação, uma vez que há
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 697

relatos de negligências de toda ordem, seja pelo contraditório transporte esco-


lar, que ora quebra, ora falta o pagamento aos barqueiros e ora há a falta de
combustível, causando, dessa forma, evasão escolar e repetência dos alunos
que fazem uso deste transporte.
Outro fator importante, é o desconhecimento acerca da política de

or
nucleação e de seus objetivos, como também a não consulta aos moradores

od V
das comunidades onde as escolas foram nucleadas, além da luta de uma das

aut
comunidades para reaver a escola multissérie, justamente pela sua importância
na reprodução social daquela comunidade, pois essas pessoas necessitam da
escola para que aquele espaço continue sendo visto como um espaço de vida.

R
O caráter contraditório do acesso e permanência à escola não foi pauta
de discussão com os principais interessados, no caso, pais e alunos, aliás, as

o
soluções são evidenciadas, porém, nunca discutidas.
aC
Criou-se a ilusão de que com uma escola maior e mais estruturada, a
educação melhoraria, porém não se garante o acesso efetivo para que isso se
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

torne realidade, pois ainda há alunos com potencial cognitivo e intelectual


que não conseguem obter êxito na vida escolar pelo caráter contraditório do
visã
acesso e permanência a esta escola.
Sabemos que esta política promoveu a substituição de uma aparcela das
escolas daquela região, porém outra se manteve em função da luta dos sujeitos
itor

para que a escola permanecesse em sua comunidade.


a re

A nucleação não levou em consideração os aspectos econômicos da


população por tratar-se de populações expostas a profunda desigualdade social,
e isso implica, muitas vezes, em situações extremas para aqueles alunos que
se deslocam, pois esta política não mantem o mínimo do que deveria, como,
par

por exemplo, alimentação escolar regular.


Diante das circunstâncias, a nucleação, ao faltar com a garantia das
Ed

condições necessárias para a efetivação de uma educação ‘do’ e ‘no’ campo


(CALDART, 2012) para a população ribeirinha de Matacurá, comprometeu
a qualidade do acesso e permanência dos alunos do campo dessa região,
ão

localizada no Município de Baião, no estado do Pará.


s
ver
698

REFERÊNCIAS
ARROYO, M. G. Formar Educadores e Educadoras de Jovens e adultos. In:
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PROVITA: algumas considerações
descoloniais para a Psicologia Social

or
od V
Marcelo Moraes Moreira
Alcindo Antônio Ferla

aut
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Daiane Gasparetto da Silva

R
Hélder Côrrea Luz
Shirle Rosângela Meira de Miranda

o
aC
Introdução
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O aspecto ensejador do ingresso no PROVITA sempre foi o testemu-


visã
nho de um crime violento. Ante à violência presenciada e/ou sofrida surgia
a necessidade radical de proteção da vida, em suas integridades físicas e
emocionais. A violência, além de originar a necessidade de acolhimento e
itor

proteção, também interferia sobremaneira no conjunto dos procedimentos


a re

para assegurar a integridade das pessoas ameaçadas.


A inserção de usuários em comunidades supostamente seguras consti-
tuía-se como um novo desafio, ao considerarmos a violência difusa presente
tanto em áreas urbanas, quanto rurais. Assim, para além da proteção ante
par

as graves ameaças de morte, era imprescindível a atenção técnica sobre os


frequentes episódios de violência sofrida pela população comum, de acordo
Ed

com os dados da segurança pública que compõe o Conselho Deliberativo do


PROVITA/PA, por exemplo.
Uma das atividades da equipe técnica era de convencer os usuários para
ão

a importância de sempre estarem atentos às normas de segurança previstas


em documento que estes assinam quando ingressam no Programa. Entre-
s

tanto, o desafio também era de enfrentar a explícita campanha midiática que


ver

vivenciamos no Brasil, na atualidade, onde a associação entre violência e


pobreza, encontra-se escancarada nos veículos de comunicação ou de forma
sutil, subliminar, a fim de que se construam subjetividades sobre o que/quem
é perigoso e, portanto, responsável pela sensação de insegurança presente
nas grandes cidades brasileiras. Esta sensação também atingia os usuários
do PROVITA, talvez, até de maneira mais contundente, considerando suas
experiências anteriores, como vítimas de algum episódio violento.
702

Isolamento, desesperança, impotência, perplexidade e, mesmo, tensão e


temor têm sido as reações mais fortemente vividas pelas populações dos
grandes centros urbanos brasileiros nestes anos 90. As diferentes faces da
violência presentes nestas cidades são interpretadas pelo chamado senso-
-comum como se originando, principalmente, das favelas e periferias. Tais

or
visões têm sido competentemente produzidas e fortalecidas pela mídia
que, cotidianamente, aponta serem esses locais – onde predomina a fome

od V
e a miséria – os espaços da desordem, do crime, da marginalidade, da

aut
bandidagem (COIMBRA, 1999, p. 01).

R
Desta maneira, a atividade pedagógica, de esclarecimento e contraponto
a tal associação perversa, constituía um trabalho técnico necessário para asse-

o
gurar um acompanhamento mais tranquilo junto aos usuários. Isto posto,
acredito ser importante debater a temática da violência, a partir de algumas
aC
das suas múltiplas concepções teóricas.
A violência constitui um fenômeno complexo que envolve indivíduos,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


relações interpessoais, comunidades e sociedades. É uma das maiores causas
visã
de mortalidade em várias partes do mundo. Do latim violentia, traz como
significados violência, caráter violento ou bravio, força. Já o verbo violare
quer dizer tratar com violência, profanar, transgredir.
itor

Hannah Arendt, importante autora que trouxe relevantes contribuições


para o estudo da violência, em sua obra “Sobre a Violência”, produzida entre
a re

os anos 1968 e 1969, assentou suas reflexões no binômio poder e violência,


criticando a teoria que defendeu que estes fenômenos são equiparáveis ou de
que o poder tenha por base a violência.
Importante esclarecer que ao distinguir esses dois fenômenos, Arendt
par

não negou o caráter relacional entre eles, pensando, inclusive, na relação que
diz que onde há mais poder há menos violência e, logo, há um maior distan-
Ed

ciamento de regimes déspotas, ditatoriais e totalitários; e onde existe mais


violência existe menos poder e, portanto, com mais intensidade a violência
será exercida pelas instituições, a fim de assegurar a dominação. Trata-se,
ão

então, de uma relação inversamente proporcional.


Dessa maneira, afirmou a autora, “a forma extrema de poder é Todos con-
s

tra Um; a forma extrema da violência é Um contra Todos” (ARENDT, 2010,


ver

p. 58). E complementou, “poder e violência são opostos; onde um domina


absolutamente, o outro está ausente” (ARENDT, 2010, p. 73).
Arendt disse que o poder é sempre de uma comunidade que age em
concerto. A violência age quando há enfraquecimento do poder. Isto é, de
maneira explícita ou tácita, o apoio, mas principalmente o consentimento dos
governados era o que fundamentava o poder dos governos e não os meios de
violência dos quais estes (os governos) dispunham. Fica clara a necessidade
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 703

de legitimidade do poder, vez que somente ele pode ser legitimado, sendo
que à violência resta apenas a sua justificação ou não.
Este pode ser o ponto que deva orientar os entes que estão à frente, na
gestão direta ou indireta do PROVITA, principalmente de quem mais interage
e intervém junto aos usuários. Não seria esta a estratégia que romperia com o

or
paradigma de que a coação – sustentada pela força, pela propriedade/domí-

od V
nio do recurso, por um saber hegemônico ou por uma hierarquia estrutural,

aut
dentro de um esquema social – seria a única maneira de garantir o êxito do
processo de proteção?

R
Sintetizando esse raciocínio, Duarte (2010, p. 147) em seu ensaio crítico
acerca da obra “Sobre a Violência”, afirmou o seguinte:

o
É a partir da ênfase na questão da legitimidade do poder efetivado em
aC
atos e palavras não violentos que o fenômeno da obediência às leis e às
instituições políticas de um país pode ser compreendido e diferenciado
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

em relação àquela obediência que é extorquida sob a ameaça da coerção,


da punição ou mesmo da violência.
visã
Assim, foi na interação humana, na reunião entre os homens, que o poder
passou a existir, sendo, portanto, essencial a preservação, para assegurá-lo, dos
itor

espaços públicos – onde se garante a coletividade das discussões, as divergên-


a re

cias e os consensos. Da mesma maneira, o poder sempre manteve os espaços


públicos a partir do exercício constante das ações e das palavras não-violentas.
A partir dessa premissa, a autora apontou uma articulação entre poder e
autoridade, apesar de distingui-los. A autoridade deveria ser respeitada para
ser legitimada. No autoritarismo, para Arendt, nunca houve legitimidade.
par

Como exemplo, pode-se citar a ditadura militar ocorrida no Brasil, onde ins-
talou-se a dominação e não o poder, já que a violência era instrumentalizada
Ed

pela tortura, pelo extermínio, e etc. Neste sentido, a violência pode destruir
o poder, mas nunca pode cria-lo para si, pois no caso o poder não advém de
ão

um grupo unido, que o reconhece, que o consente e, logicamente, o legitima.


Sérgio Adorno (2002) afirmou que o evidente recrudescimento do fenômeno
da violência na atualidade, em seus vários tipos – crime organizado, violência
s

intrafamiliar, violações de direitos humanos, dentre outros – teria mobilizado a


ver

população brasileira, a qual vem reagindo com medo e com sensação de insegu-
rança coletivos, ante a intensa difusão midiática da onda de violência, além de
mobilizar o sistema de justiça e de segurança pública, o qual vem sendo cobrado
no sentido de apresentar estratégias de ação capazes de coibir tal fenômeno.
O crescimento da violência e o impacto disso na lei e na ordem instituídas
vêm perturbando a credibilidade dos órgãos de justiça e segurança, no seu
“legítimo monopólio estatal da violência”, evidenciando a tentativa cada vez
704

mais frequente de resoluções, de cunho privado, para tentar intervir em crises


que surgem no âmbito social e/ou intersubjetivo.
Certamente o enfrentamento à violência sempre carecerá de políticas
embasadas em estudos que abarquem não só a descrição dos crimes mais
comuns, mas também os desdobramentos e repercussões em nível subjetivo

or
e cultural. Somente assim seria possível fortalecer o sistema de justiça e o

od V
controle social, a partir de políticas mais eficazes, coadunadas com o Estado

aut
democrático de direito vigente.
Segundo Adorno (2002), o monopólio estatal da violência era exercido

R
pelo Estado de direito, pois baseado no pensamento de Max Weber, a violência
fora legitimada pelo direito, sendo garantida ao Estado a regulação de seu
uso. O autor nos afirmou, porém, que:

o
aC
O simples fato de os meios da violência física legítima estarem concentra-
dos nas mãos do Estado não foi condição suficiente para assegurar a paci-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ficação dos costumes e hábitos enraizados na sociedade desde os tempos
imemoriais. Daí a necessidade de um direito positivo, fruto da vontade
visã
racional dos homens, voltado, por um lado, para restringir e regular o uso
dessa força e, por outro lado, para mediar os contenciosos dos indivíduos
ente si. (ADORNO, 2002, p. 273).
itor

Adorno descreveu em seu texto “O monopólio estatal da violência” (2002)


a re

o conceito Weberiano de Estado. Este se configurava pelo monopólio legítimo


da violência, pela dominação e pelo seu território. Weber entendia que o Estado
moderno avocava o direito exclusivo ao uso da violência, com os devidos limites,
sendo tolerada em duas situações específicas, como a defesa de sua soberania
par

ante à ameaça de outra potência estrangeira e, em nível interno, para defender sua
coesão política no caso de uma guerra civil ou outro conflito interno.
Ed

Esses limites ao uso da violência se davam por meio da lei e dos estatutos
legais, obedecendo assim à dominação legítima, determinada, de um Estado.
Quanto ao requisito do território, essencial na constituição de um Estado,
ão

referia-se ao fato de que nesse espaço, ações violentas cometidas por parti-
culares não eram legítimas, tampouco imperativas, devido o controle estatal
s

da violência depender do controle estatal do território.


ver

De forma cada vez mais frequente vêm surgindo debates que questionam
essa teoria Weberiana, mencionando uma perda gradativa, pelo Estado-nação,
de seu monopólio estatal da violência. Vários foram os argumentos para tal
questionamento, dentre eles a globalização, por exemplo, principalmente no
aspecto da economia, quando o poderio econômico de grandes corporações
enfraqueceu o Estado em sua tentativa de regulamentar o mercado frente às
ações abusivas dos mais fortes contra os mais fracos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 705

Outra questão pertinente à fragilização da legitimidade estatal referiu-se


às políticas neoliberais e suas restrições ao bem-estar social, pois nesse sentido
houve significativa redução do amparo populacional por meio de serviços
essenciais, dentre eles, políticas de segurança pública, fato que repercutiu
negativamente no âmbito da lei e da ordem. Esta questão nos reportou ao

or
PROVITA e nos fez indagar o quanto que esta política se embasou nesta

od V
lógica neoliberal. Afinal, as deficiências das políticas de segurança pública

aut
e as limitações do poder judiciário foram o que fundamentou a criação de
um programa de proteção, contudo ao avançar nos registros dos relatórios
analisados era comum a descrição de queixas de que esta e outras políticas

R
necessárias à proteção com qualidade dos usuários, não cumpriam integral-
mente com suas funções e a saída fora acionar a rede privada de serviços,

o
pagos com recursos públicos, a fim de que se cumprisse a garantia de direitos.
aC
Conforme Harvey (2008), o neoliberalismo se constitui em práticas polí-
ticas e econômicas que, sob a égide de um suposto bem-estar social e humano,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

estimulam o empreendedorismo individual, caracterizando um regime que


privilegia a propriedade privada e o livre comércio. Essa teoria propôs a
visã
ampliação da mercantilização, como a privatização de patrimônio estatal,
além de retirar o estado da ordem econômica. Ora, ante o crescimento evidente
do tráfico de entorpecentes, por exemplo, nas grandes cidades (e mesmo nas
itor

pequenas), e considerando as restrições nos serviços públicos, como o Estado


a re

pode combater eficazmente essa modalidade criminosa? Inclusive, sempre


foi bastante comum a disputa pelo controle de espaços territoriais entre o
Estado e crime organizado, no que concerne a organização política e social
de efetivação da dominação.
par

Por fim, o aumento da intervenção da sociedade civil no controle do


crime, já que tal responsabilidade estatal, a priori, não vem sendo adequada-
Ed

mente cumprida, foi um fato que também corroborou para desafiar a tese do
monopólio estatal da violência. Ademais, a expansão dos serviços privados
de segurança, desde a vasta oferta no mercado até a sofisticação e desenvol-
ão

vimento do seu aparato tecnológico, vem se tornando um forte desafiante da


autoridade estatal de controle da violência e do crime.
s

Violações de Direitos Humanos na Democracia brasileira:


ver

Importante nesse item descrever a Democracia representativa e a partici-


pativa e os desdobramentos das violações de Direitos à Democracia brasileira.
Segundo Simonsen (1970) a Democracia Representativa constituiu-se
na eleição de pessoa ou grupo para agir, decidir e manifestar-se em “nome
do povo”. São, então, chamados de “representantes do povo”, sendo que sua
reunião configura um parlamento, uma assembleia ou um congresso.
706

Diferentemente do que ocorria na Grécia antiga, onde a participação


no processo democrático era restrita a determinadas figuras da sociedade,
na Democracia representativa – pelo exercício do voto – a participação dos
cidadãos era ampliada. Conforme nos resumiu Castoriadis (1983, p. 274):

or
a representação “política” tende a “educar” – isto é, a “deseducar” – as

od V
pessoas na convicção de que elas não poderiam gerir os problemas de

aut
sociedade, que existe uma categoria especial de homens dotado de capa-
cidade específica de governar.

R
Dessa maneira, a “consulta” (voto), que geralmente realiza-se em geral a
cada quatro anos – também fora objeto de crítica a essa forma de Democracia,

o
já que questionou esse “controle do povo”, além de distanciar “dirigentes”
aC
e “dirigidos”. Na Democracia Participativa (ou Deliberativa) para além do
exercício do voto, buscou-se outro mecanismo de controle sobre a gover-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


nança pública, especialmente no âmbito social. Nas palavras de Luchmann
(2002, p. 19):
visã
A Democracia Deliberativa constitui-se como um modelo ou processo
de deliberação política, caracterizado por um conjunto de pressupostos
itor

teóricos-normativos que incorporam a participação da sociedade civil na


regulação da vida coletiva. Trata-se de um conceito que está fundamen-
a re

talmente ancorado na ideia de que a legitimidade das decisões e ações


políticas deriva da deliberação pública de coletividade de cidadãos livres e
iguais. Constitui-se, portanto, em uma alternativa crítica às teorias “realis-
tas” da Democracia que, a exemplo do “elitismo democrático”, enfatizam
par

o caráter privado e instrumental da política.


Ed

O elitismo democrático, com a finalidade de preservação da prevalência


de uma determinada classe dita “governante”, promoveu pequena concessão
à representação política, sem, contudo abalar a distinção essencial entre a
ão

“minoria” que governa e a “maioria” governada.


Dessa maneira, o Orçamento Participativo que intencionava submeter
à apreciação pública parte da destinação de recursos públicos, por meio de
s

reuniões/assembleias comunitárias – as quais definiram propostas e prioridades


ver

– não garantiram, por si só, a constituição de uma Democracia Participativa.


O orçamento participativo, de acordo com Souza (2001) “enfraqueceu” o
paradigma de que o Estado era o único ente que regulava o desenvolvimento
econômico, contribuindo, assim, à redemocratização da democracia, pois
estimulou o exercício da democracia direta.
Schumpeter (1984) criticou essa ação política, sustentando que a Demo-
cracia Participativa se apoiou em dois equívocos. O primeiro deles referia-se
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 707

à remota possibilidade de se alcançar consenso, pois não existiu um ideal


político que atendesse aos interesses de todos os grupos de indivíduos. Obvia-
mente sempre existiram conflitos de entendimentos sobre o chamado bem
comum. O segundo engano residia na crença de que os homens eram orien-
tados somente por suas razões, já que humanos também são mobilizados por

or
conteúdo subjetivo e imaterial.

od V
Considerando que vivemos sob a égide de um estado democrático de

aut
direito – ou seja, pelo direito estão, todos e todas, submetidos às leis e normas,
desde o cidadão comum até a maior potência institucional pública; pela demo-

R
cracia sempre foram destacados elementos como soberania, cidadania, valores
sociais do trabalho, pluralismo político e a dignidade da pessoa humana,
alargando a participação da sociedade na lide da coisa pública – parece-nos

o
bastante paradoxal e gritante as alardeadas violações de Direitos dos homens e
aC
das mulheres, principalmente a partir das práticas políticas neoliberais vigen-
tes. Será que democracia no Brasil significa melhoria das condições de vida
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da maioria populacional?
visã
Coimbra (1999, p. 02) ao descrever um panorama sobre os direitos huma-
nos, na história mundial, porém fazendo a conexão com a realidade brasileira
atual, buscou em Deleuze (1992) subsídios para a seguinte afirmação:
itor

Deleuze afirma que os direitos humanos – desde suas gêneses – têm servido
a re

para levar aos subalternizados a ilusão de participação, de que as elites preo-


cupam-se com o seu bem estar, de que o humanismo dentro do capitalismo é
uma realidade e com isso confirma-se o artigo primeiro da Declaração de 1948:
“todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Entretanto,
sempre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade os segmentos pau-
par

perizados e percebidos como “marginais”: os “deficientes” de todos os tipos,


os “desviantes”, os miseráveis, dentre muitos outros. A esses, efetivamente,
Ed

os direitos humanos sempre foram – e continuam sendo – negados, pois tais


parcelas foram produzidas para serem vistas como “sub-humanas”, como
não pertencentes ao gênero humano [...] Ou seja, foram e continuam sendo
ão

defendidos certos tipos de direitos, dentro de certos modelos, que terão que
estar e caber dentro de certos territórios bem marcados e delimitados e dentro
de certos parâmetros que não poderão ser ultrapassados.
s
ver

Na atualidade a criminalização dos movimentos sociais e dos defen-


sores e defensoras de direitos humanos no Brasil e, especificamente, no
estado do Pará tem chamado nossa atenção pelo fato dessa prática vir
se constituindo como uma estratégia refinada, perversa, porém sutil, de
desestabilizar e descredibilizar a resistência mantida há décadas e, que tem
registrado a partir de sua luta, alguns avanços no campo da promoção de
direitos às categorias consideradas mais vulneráveis da sociedade.
708

De acordo com LEÃO (2008, p. 99) numa pesquisa interessante sobre


defensores de direitos humanos da Amazônia, existem basicamente três
formas de violações que atingem essa categoria de militantes, a saber:

A primeira [...] denominamos “processo de difamação ou demonização”

or
(que) são ataques à imagem e idoneidade [...] perante à comunidade e à

od V
opinião pública; a segunda [...] chamamos de “criminalização de movi-
mentos sociais e de defensores/as de direitos humanos” [...] são prisões,

aut
inquéritos, TCO’s, procedimentos judiciais cíveis e criminais abertos
contra militantes [...] como retaliação às suas atividades [...] e o terceiro

R
momento consiste na “vitimização de defensores/as de direitos humanos”
[...] configura-se em ameaças, violências e outros crimes que são feitos

o
para impedir que o/a defensor/a ou uma determinada organização continue
com sua atuação, ou mesmo como retaliação ou vingança.
aC
O autor ressaltou que no desenvolvimento de sua pesquisa não foram

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


encontrados elementos que apontassem que essas formas de violações de
visã
direitos, eram estruturadas e planejadas de maneira perversa, contudo as inú-
meras entrevistas e levantamento de informações juntos aos/as defensores/as
confirmaram que muitas dessas pessoas experimentaram (ou experimentam)
situações que visavam a desestabilização de suas militâncias políticas, nos
itor

moldes das violações descritas acima.


a re

O Pará e o seu contexto de violações:

O Estado do Pará, com sua grande dimensão territorial, apresenta uma


par

impressionante diversidade ambiental, cultural e social. As riquezas naturais


e abundantes atraíram muitos imigrantes e forçaram um desenvolvimento
Ed

carente de planejamento que contribuísse para uma ocupação ordenada do


território paraense.
O primeiro episódio que atraiu um grande contingente populacional foi o
ão

período conhecido como ciclo da borracha, quase no fim do Século XIX. Mui-
tos imigrantes vieram para esse Estado, principalmente do nordeste brasileiro,
a fim de trabalharem em grandes latifúndios pertencentes aos Barões da bor-
s

racha que formavam a elite da Capital Belém, por quase quarenta anos. Com
ver

o fim desse ciclo, o Pará herda os problemas para administrar um significativo


número de pessoas que estavam vivendo em condições miseráveis, carentes
de políticas públicas. No período da 2ª grande guerra, ocorreu o 2º ciclo,
porém menos intenso que o primeiro. Novamente se repetiu o movimento de
imigração e a falta de infraestrutura urbana para absorver a população.
Com a construção de Brasília, nos anos 1960, Belém voltou a ser um
atrativo para a imigração, considerando a abertura da rodovia Belém-Brasília.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 709

Muitos municípios paraenses foram criados às margens dessa rodovia, a partir


de um plano de colonização pensada para a região, com investimento prio-
ritário na agricultura. Entretanto, muitos colonos desistiram de suas terras e
se instalaram em cidades vizinhas, pois naquela região paraense – sudeste
– simultaneamente foram descobertas jazidas minerais abundantes, que colo-

or
caram o Pará entre as maiores reservas mineralógicas mundiais. Mais uma

od V
vez, não existiam serviços públicos e sociais suficientes para absorver tal

aut
demanda, o que gerou verdadeiras explosões demográficas que rapidamente
saturaram os serviços estatais existentes. A construção da hidrelétrica de Tucu-
ruí também atraiu muitas pessoas para compor a mão-de-obra necessária à

R
construção da maior hidrelétrica totalmente nacional. Dessa forma, o sudeste
paraense testemunhou grilagem de terras, desterritorialização de populações,

o
expansão de latifúndios, corrida do ouro no garimpo de serra pelada, dentre
aC
outras situações geradoras de conflitos.
O oeste paraense vive sua explosão demográfica, na atualidade, em fun-
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ção da construção da hidrelétrica de Belo Monte, no município de Altamira/


PA. Com a promessa de alavancar o desenvolvimento naquela região, esse
visã
empreendimento vem motivando embates, conforme estudos divulgados pelo
Instituto Socioambiental – ISA, em virtude do acentuado impacto ambiental –
especula-se que o lago formado pela barragem terá a dimensão de 400 Km², o
itor

que significa muitos hectares de floresta que ficarão submersos, exterminando


a re

a diversidade de flora e fauna que compõem esse bioma. Do ponto de vista


cultural e social, 24 etnias indígenas terão suas vidas afetadas diretamente,
inclusive pela remoção obrigatória desses povos das terras com as quais man-
têm forte identidade, há muitas gerações de sua raça; 100 mil pessoas é a
expectativa de imigrantes que correrão para o município de Altamira e adja-
par

cências em busca de trabalho e de melhoria de vida. Ora, os empregos gerados


Ed

com a construção da hidrelétrica devem ser de pouco mais de 20 mil postos


de trabalho, de acordo com dados apresentados pela Norte Energia (consórcio
responsável pela construção) no 53º Congresso brasileiro de concreto (novem-
ão

bro/2011); os serviços públicos nos municípios de Altamira e do entorno


da obra não possuem capacidade para absorver tamanha demanda. Então,
sem um planejamento para absorção desse volumoso número de imigrantes,
s

começam a surgir muitas situações de violações de direitos humanos, como


ver

subempregos, exploração sexual, violência gerada por conflitos fundiários,


além do recrudescimento da violência urbana.
Falar de violações de direitos humanos implica como bem colocou Sauer
(2005, p. 17), em considerar o contexto circundante de uma comunidade,
além de ampliar as dimensões dos direitos afetadas: “Não se limita apenas à
defesa dos direitos civis e políticos, mas se redimensiona a partir dos direitos
humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca)”. Assim, ele
710

nos alertou que elementos como água, meio ambiente, terra, trabalho digno
devem ser assegurados, enquanto direitos humanos, além de nos lembrar do
princípio da indivisibilidade, quando os direitos fundamentais não são estan-
ques e, portanto, são inter-relacionados.
O autor organizou uma pesquisa no ano de 2005, em conjunto com

or
entidades reconhecidamente ativistas de direitos humanos, como Comissão

od V
Pastoral da Terra, Justiça Global e Terra de Direitos. Esse trabalho resultou

aut
num amplo relatório que propôs a discussão sobre crimes agrários, impuni-
dade, reforma agrária, degradação ambiental, criminalização de defensores

R
de direitos humanos e justiça social no Pará.
Ao abordar um campo fértil de situações de violações de direitos huma-
nos, obviamente discorremos sobre demandas que pululam e acionam diver-

o
sas instâncias e políticas a apresentarem resolutividade que as satisfaça. O
aC
PROVITA constituiu-se, nesse contexto, como um valioso instrumento de
enfrentamento a essas violações, contudo não é a única ferramenta para tal,

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posto que, vale dizer, suas atribuições são delimitadas por dispositivos legais
visã
que demarcam e controlam as ações/atividades do mesmo.
Ademais, não parece claro o objetivo deste programa de proteção, quando
as denúncias que ensejam as ações na justiça carecem de celeridade e, não
raras vezes, ocasionam a desistência da testemunha em permanecer no PRO-
itor

VITA e de colaborar para o deslinde de caso hediondo, conforme descrito nos


a re

documentos analisados nesta pesquisa.


Uma das causas mais geradoras de conflitos e crimes no Pará referiu-se
à falta de uma política de reforma agrária, de fato estruturada e assertiva; “a
problemática que envolve os conflitos e a violência no Estado do Pará está
par

diretamente associada à concentração da propriedade da terra” (SAUER,


2005, p. 14).
Ed

Além dos crimes gerados pela ausência de reforma agrária planejada


– frequentemente homicídios, trabalho análogo ao trabalho escravo, grila-
gem, extração ilegal de matéria-prima, dentre outros – os denunciantes são,
ão

majoritariamente, defensores e defensoras de direitos humanos e, portanto,


lideranças atuantes, verdadeiros alicerces da luta e resistência popular, as quais
precisam da convivência com a terra e com a comunidade para se sustentar
s

e se fortalecer.
ver

Então, esta foi uma demanda difícil de ser absorvida pelo PROVITA, já
que como dito, a estratégia primeira pensada pelo processo de proteção era
a retirada das pessoas que denunciam ditos “grupos poderosos” – este termo
refere-se ao alto poder aquisitivo e de influência política que certas pessoas,
geralmente pertencentes à classe elitizada, dispõem e exercem em determinada
região – nesses municípios. Tal procedimento, neste caso, colaboraria com
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 711

o enfraquecimento da resistência e premiaria o violador, pois o defensor de


direitos humanos que anima o movimento de enfrentamento às suas práticas
criminosas, já não se encontra atuante naquele município e, portanto, não
provoca mais constrangimento ao denunciado. Ora, essa não é a motivação
à criação deste Programa, ao contrário, proteger testemunhas ameaçadas é

or
subsidiar a justiça na apuração de graves denúncias.

od V
aut
Considerações finais

R
Estudos (RIBEIRO, 2009) revelaram que há uma probabilidade maior
de alguns segmentos sociais sofrerem violência – física, psicológica, sexual,
econômica, dentre outras. Uma das consequências seria a maior possibili-

o
dade para representantes desses segmentos, a exemplo de mulheres vítimas
aC
de violência, para desenvolverem algum tipo de transtorno mental: quadros
depressivos, estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade, etc.
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O grau de exposição à violência também tem influenciado na gravidade


visã
dos transtornos experimentados. Crianças, adolescentes e mulheres figuram
como as maiores vítimas de violência perpetrada, no ambiente doméstico, por
seus cônjuges e/ou demais membros de sua família. No caso das crianças e
adolescentes corrobora, ainda, a naturalização da punição física, no ambiente
itor

doméstico, posto que é socialmente e legalmente tolerado.


a re

A violência perpetrada por homens junto às mulheres e às crianças em


países em desenvolvimento pode estar baseada na cultura desses países onde
a violência é importante ferramenta disciplinar ou serve de instrumento de
manutenção do poder masculino. Paradoxalmente, os homens são as maiores
par

vítimas de violência na comunidade onde residem, principalmente homicídios


de homens mais jovens.
Ed

Do ponto de vista econômico, infelizmente, é difícil determinar com


exatidão os custos gerados pela violência, contudo, baseado em dados do
setor público de saúde, estima-se que estes são significativamente elevados:
ão

Duas limitações nos dados disponíveis dificultam o cálculo direto do


custo da violência para o sistema de saúde pública no Brasil. Em pri-
s

meiro lugar, as informações disponíveis não permitem uma distinção dos


ver

procedimentos – e custos associados – adotados para o tratamento das


vítimas de violência daqueles atendimentos devido às demais causas de
morbidade, no nível ambulatorial do SUS. De fato, o Sistema de Infor-
mações Ambulatoriais (SIA) incorpora desde consultas de atendimento
básico até os procedimentos realizados por prontos-socorros e ambulató-
rios de urgência/emergência, mas não classifica as informações de acordo
com o tipo de doença (causa) do atendimento [...]. Em segundo lugar, os
712

pagamentos por serviços produzidos, que são registrados no SIA e no


Sistema de Informações Hospitalares (SIH), representam apenas uma parte
das despesas governamentais destinadas à rede de atendimento pública.
Uma parcela importante dos recursos provém dos orçamentos públicos
estaduais e municipais que complementam os recursos repassados para

or
a “remuneração por serviços produzidos” a partir do Fundo Nacional de
Saúde (FNS) (RODRIGUES, et al., 2009, p. 2).

od V
aut
A violência, portanto, vem se constituindo num grave problema da saúde
pública, além de um potencial desencadeador de problemas que afetam a

R
saúde mental da população.
Falar sobre saúde mental é abordar um complexo tema. É importante

o
nortear essa discussão a partir de algumas concepções, a fim de dar base à
aC
relação da saúde mental com o Programa de Proteção às Testemunhas Amea-
çadas – PROVITA.

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Na conceituação da Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde é um
visã
estado de completo bem-estar físico, mental e social que não se carac-
teriza unicamente pela ausência de doenças. Singer (1987) acredita que
esta formulação inclui as circunstâncias econômicas, sociais e políticas,
como também a discriminação social, religiosa ou sexual; as restrições
itor

aos direitos humanos de ir e vir, de exprimir livremente o pensamento...


a re

Este conceito reconhece como paradoxal alguém ser reconhecido com


saúde mental, quando é afetado por pobreza extrema, discriminação ou
repressão. O autor argumenta que, nesse sentido, a formulação da OMS
relaciona a saúde da pessoa com o atendimento de suas necessidades e as
possibilidades do sistema sócio-econômico e sociopolítico em atendê-las.
par

Assim, a doença não resulta apenas de uma contradição entre o homem


e o meio natural, mas também, necessariamente, da contradição entre a
Ed

pessoa e o meio social. Pensar a questão da saúde mental é, antes de tudo,


pensar sobre o homem e sobre sua condição de “ser” e “estar-no-mundo”.
Para o autor, o conceito de homem sadio baseia-se na liberdade e indepen-
ão

dência, sendo, ao mesmo tempo, ativo, relacionado e produtivo (FILHA,


et al., 2003, p. 1).
s

Diante do excerto acima, começamos a correlacionar os rebatimentos do


ver

modelo de proteção do PROVITA na saúde mental dos usuários. Em que pese


a clara necessidade em preservar a vida, enquanto um direito fundamental, o
processo de proteção não parece ser tranquilo.
Os usuários ao ingressarem na proteção são imediatamente remanejados
para um local distante de onde residem, em função do risco advindo de sua
colaboração com a justiça. Ao serem introduzidos em novas comunidades
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 713

precisam utilizar “estórias de cobertura” (algo que proteja sua verdadeira


identidade) que justifiquem a sua chegada numa nova comunidade. Afinal,
trata-se de um “forasteiro” com sotaque e hábitos diferentes das pessoas
daquele local, então, o que ele está fazendo aqui?
Esta estratégia distancia e limita as interações sociais, pois parece arris-

or
cado manter intimidade com as pessoas originárias em função do risco de

od V
ser desvelada sua real condição (testemunha protegida). Ademais, fica difícil

aut
construir relações estáveis e sadias se, aprioristicamente, estas têm um limite
imposto pelo binômio sigilo/segurança, onde não há total independência para

R
se envolver com as pessoas.
É essencial trazer à discussão aspectos norteadores da intervenção pro-
fissional, a fim de que as estratégias tenham embasamento técnico adequado

o
e sustentem atendimentos qualificados.
aC
Merhy (2003) falou da necessidade de se compreender os modelos tec-
noassistenciais, enquanto maneiras de organização de produção de serviços, a
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partir da associação de saberes da área e do modo de organização do trabalho.


visã
Isto é, a produção de cuidado está associada a um determinado modo de agir
com o objetivo final, em princípio, de melhorar a saúde de um sujeito usuário
e de uma coletividade. Ou seja, na dimensão das práticas, do trabalho em
si, se compreende a modelagem tecnoassistencial e essa revela característi-
itor

cas que falam de qual cuidado está sendo ofertado. Para essa aproximação
a re

analítica, o autor utilizou a natureza predominante de tecnologias utilizadas


como marcador.
A micropolítica do trabalho na constituição do modelo assistencial, pro-
posta por Merhy (2003), configurou-se basicamente como: tecnologias leves,
par

referentes ao caráter relacional, ao modo de agir entre os trabalhadores da


saúde e os usuários; tecnologias duras, inscritas nos instrumentais e aparelhos
Ed

e, finalmente, as tecnologias leves-duras, as quais diziam respeito ao conhe-


cimento técnico, sendo dura a parte estruturada e leve o modo particular,
diferenciado como cada profissional aplica seu conhecimento.
ão

O autor nos falou ainda sobre o que denomina trabalho morto e trabalho
vivo referindo-se ao fazer usual de um determinado trabalhador da saúde.
No primeiro estaria inscrita a atenção nos instrumentos, fundamentalmente
s

o trabalho repetitivo e instrumental, e no trabalho vivo percebia-se a valori-


ver

zação das tecnologias leves que consideravam o contexto e a subjetividade


do usuário para além dos exames e da medicação, sendo predominante o
trabalho criativo e inventivo. O trabalho vivo considerava o protagonismo do
usuário nos atos cuidadores e seu potencial à autonomia e, consequentemente,
produção de saúde. Um cuidado integral seria possível apenas se centrado no
usuário e gerido por tecnologias leves e, portanto, um trabalho do tipo vivo.
714

De acordo com Passos (2005, p. 317) em suas reflexões sobre o processo


de humanização que deveria permear as políticas de atendimento em saúde,
humanizar seria, antes de tudo, “uma estratégia de interferência no processo
de produção de saúde levando em conta que sujeitos, quando mobilizados, são
capazes de transformar realidades transformando-se a si próprios nesse pro-

or
cesso”; isto é, humanizar significaria qualificar práticas. Afinal, não devemos

od V
nos esquecer do movimento de reforma sanitária no Brasil, ocorrido princi-

aut
palmente entre os anos 1970 e 1980, que subsidiou os avanços no campo da
saúde coletiva reconhecidos hoje. De acordo com Ferla (2008/2009, p. 442 ):

R
Um movimento especificamente do setor da saúde organizou-se e conso-
lidou-se no Brasil, principalmente durante os anos de 1970 e 1980, como

o
luta social em defesa da saúde. Saúde como direito de cidadania e como
aC
parte integrante e ativa das lutas contra a ditadura militar. O slogan ‘saúde
é democracia’ designava o direito à saúde e era a expressão de um conjunto

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de condições saudáveis – condições de vida e de trabalho – das quais não
se poderia abrir mão. A saúde adquiria um conceito ‘ampliado’, ampliação
visã
resultante da compreensão de seus fatores condicionantes (ou determinan-
tes) e em defesa da superação das dicotomias entre ações de promoção e
prevenção (saúde pública) e ações curativas (assistência médica), como
vigente até então.
itor
a re

Nessa seara, o PROVITA precisava manter uma relação aproximada –


apesar de não institucionalizada, posto que ainda não foi possível a pactuação
de termos de cooperação técnica, instrumentos essenciais para regulamentar
e qualificar a parceria entre a saúde e a proteção – com os serviços disponi-
par

bilizados pelo Sistema SUS.


O SUS foi criado pela constituição federal de 1988 para garantir o acesso
Ed

de toda a população à saúde pública brasileira. Antes de sua criação, a assis-


tência era prestada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previ-
dência Social, o qual garantia o acesso somente aos que contribuíam com a
ão

previdência social.
Dentre os seus princípios foi interessante, inicialmente, para nossa pes-
quisa a citação de dois, a fim de que se pudesse fazer a interface com o coti-
s

diano do PROVITA. Foram eles a integralidade – que referia a necessidade de


ver

se assegurar ações individuais e/ou coletivas de promoção, proteção e recupe-


ração da saúde, considerando a continuidade e articulação entre essas ações,
em todos os níveis de complexidade da assistência; o outro foi a equidade,
que dizia da importância da igualdade de oportunidades no uso pela popu-
lação do SUS; ou seja, era preciso saber investir onde havia mais carência,
considerando inclusive a diversidade regional brasileira, já que existe uma
lacuna histórica entre as regiões brasileiras, sendo a Amazônia e o Nordeste
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 715

brasileiro as que reuniam os piores índices de qualidade de serviços públicos,


a exemplo da área da saúde.
Segundo Oliveira (2005, p. 23-24) na sua tese intitulada “O Sistema
Único de Saúde, descentralização e a desigualdade regional: um enfoque
sobre a região da Amazônia Legal”, afirmou que:

or
od V
A descentralização do sistema de saúde brasileiro é um processo hetero-

aut
gêneo e de acordo com as características regionais e intra-regionais, ou
seja, em virtude do seu desenvolvimento, porte, sociodiversidade [...] as
Normas Operacionais, como indutoras do processo de descentralização e

R
como constituintes de uma agenda de governança no âmbito do Sistema
Único de Saúde, não levaram em conta a amplitude dos problemas e

o
especificidades próprias das características regionais e impuseram, nas
aC
suas formulações, condicionantes muitas vezes inadequadas à realidade
da Amazônia Legal.
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Segundo publicação do Ministério da Saúde (2011. p. 193), intersetoria-


visã
lidade “permite considerar o cidadão na sua totalidade, nas suas necessidades
individuais e coletivas”. Ou seja, propostas de resoluções na área da saúde
careciam de parcerias de vários setores como a educação, a habitação, cultura,
trabalho e emprego, dentre outros. Analogamente à proposta da intersetoria-
itor

lidade – enquanto estratégia da gestão de saúde que visava a superação da


a re

fragmentação entre as várias políticas públicas, as quais em suas ações cola-


boravam para a qualidade de vida e, consequentemente, com impacto positivo
na saúde da população – o PROVITA também carecia da união de diversas
ações públicas, a fim de lograr êxito na proteção das pessoas ameaçadas,
par

considerando que esse processo ia além da preservação da integridade física,


pretendendo se estender até a inserção e autonomia social dos protegidos.
Ed

Era a partir dessa perspectiva, de cuidado e atenção, que o PROVITA


deveria pautar suas ações, em consonância com a diretriz de Direitos Huma-
nos que subsidiou a idealização desse Programa de Proteção, sendo que esta
ão

interface foi um aspecto interessante a nossa pesquisa.


Ainda discutindo a questão da humanização era necessário que se trou-
s

xesse à baila o aspecto inclusivo, já que humanização também é um método


ver

de inclusão que favorece o olhar sobre o diferente, qualificando e ampliando


intervenções técnicas, conforme nos alertou Pasche (2010, p. 426):

Inclusão, na perspectiva democrática, significa acolher e incluir as diferen-


ças, colocando a diversidade lado a lado. Diversidade da manifestação do
vivo, da heterogeneidade e das singularidades do humano. Incluir o outro,
aquele que não sou eu, que de mim estranha, e que em mim produz estra-
nhamento, provocando tanto o contentamento e a alegria, como mal-estar.
716

Segundo a abordagem proposta por Regina Benevides (2002, p. 174-


175), ficava óbvia a necessidade de primar por análises técnicas criteriosas
e contextuais:

Em primeiro lugar, cabe lembrar que o termo saúde mental vem, na maior

or
parte das vezes, atrelado à ideia de promoção de saúde mental. Tal noção,

od V
veiculada por muito tempo e ainda hoje presente no cenário das práticas

aut
psi, está associada à uma concepção de prevenção da doença mental.
Para prevenir é necessário que se tenha uma definição do que é certo ou
errado, do que é doente ou são, normal ou patológico, tornando possí-

R
vel estabelecer medidas de prevenção da doença mental e, consequente-
mente, promoção de saúde mental. Isto pressupõe uma espécie de lista

o
de características a serem atingidas em menor ou maior grau, menor ou
maior quantidade de itens. Observe-se que os termos – saúde e doença
aC
– são apresentados como pólos de uma linha contínua em que quantida-
des de distúrbios podem ser mensurados e qualificados segundo seu grau

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de periculosidade e desagregação mental [...] se o profissional acredita
visã
numa concepção de saúde mental como a que delineamos acima, em que
padrões já pré-definidos estipulam comportamentos normais X anormais,
etc., as técnicas de que se servirá estarão voltadas para uma investigação
sobre o indivíduo, sua história, sua estrutura mental, a configuração de
itor

sua família... enfim, fatores referidos ao sujeito.... No campo das práticas


a re

psi, os efeitos dessas assertivas implementaram uma visão positivista,


classificatória, despolitizada, anistórica, reafirmando a dicotomia indiví-
duo/coletivo implantada.

Desta maneira, a prática das equipes técnicas que atendiam testemu-


par

nhas ameaçadas deveria considerar o contexto no qual estava inserido esse


indivíduo, a partir da dinâmica de proteção imposta e sob uma condição que
Ed

o vulnerabilizava, a fim de que se fizessem análises mais precisas de uma


determinada realidade. Um relato deveria ser ouvido como um enunciado
sociopolítico, produzido num determinado período e não como um processo
ão

individual e que mobiliza um sujeito em seu sistema pessoal de valores.


s
ver
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tramas históricas em educação libertária – v. 16 717

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s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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ÍNDICE REMISSIVO

or
Ações 24, 25, 26, 29, 31, 32, 42, 52, 77, 78, 79, 80, 82, 86, 106, 134, 141,

od V
142, 169, 172, 176, 178, 218, 235, 237, 239, 241, 252, 263, 271, 286, 290,

aut
293, 296, 298, 317, 318, 320, 324, 328, 341, 351, 362, 363, 379, 380, 393,
405, 410, 425, 432, 436, 443, 447, 449, 450, 455, 456, 458, 461, 464, 471,

R
472, 474, 477, 478, 479, 485, 487, 495, 500, 502, 530, 544, 548, 549, 551,
562, 568, 569, 575, 580, 588, 597, 598, 603, 604, 605, 606, 608, 622, 632,

o
639, 644, 695, 703, 704, 706, 710, 714, 715
Alunos 30, 118, 137, 141, 142, 174, 231, 239, 276, 286, 318, 323, 327, 342,
aC
343, 344, 375, 379, 380, 391, 395, 423, 424, 480, 494, 496, 529, 530, 532,
534, 535, 542, 637, 640, 641, 642, 665, 666, 668, 669, 672, 674, 675, 683,
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684, 685, 686, 687, 688, 689, 690, 691, 692, 693, 694, 695, 696, 697
visã
Amazônia 15, 16, 57, 67, 74, 75, 97, 98, 99, 106, 107, 108, 109, 110, 111,
162, 223, 229, 257, 300, 304, 307, 312, 314, 355, 366, 367, 369, 387, 396,
397, 399, 400, 401, 403, 404, 405, 406, 407, 408, 409, 410, 411, 413, 414,
itor

415, 430, 593, 600, 601, 610, 611, 613, 614, 615, 679, 681, 699, 708, 715,
a re

720, 722, 731, 732, 734, 735, 736, 740, 744, 745, 748, 752
Associação 26, 73, 149, 156, 183, 271, 282, 308, 395, 429, 431, 435, 436,
437, 438, 440, 441, 442, 444, 445, 446, 447, 448, 449, 502, 561, 594, 660,
701, 702, 713, 738, 739, 745, 748, 750, 751
par

C
Ed

Campo 14, 16, 17, 18, 21, 22, 24, 25, 26, 28, 31, 32, 62, 64, 65, 66, 67, 69,
70, 97, 98, 106, 109, 115, 136, 138, 141, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153,
155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 163, 165, 168, 172, 175, 179, 183, 184,
ão

188, 189, 190, 192, 193, 194, 199, 201, 202, 203, 204, 208, 209, 210, 211,
212, 213, 214, 215, 216, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 227, 232, 233, 234,
235, 243, 246, 247, 248, 249, 250, 251, 252, 261, 262, 263, 266, 268, 269,
s

275, 285, 289, 290, 291, 292, 293, 306, 307, 308, 331, 333, 334, 335, 338,
ver

340, 343, 344, 371, 376, 384, 410, 411, 429, 431, 432, 441, 444, 446, 452,
456, 460, 462, 464, 465, 474, 493, 503, 504, 506, 507, 511, 523, 524, 555,
556, 557, 561, 564, 566, 573, 574, 575, 578, 580, 581, 582, 585, 588, 589,
595, 597, 600, 601, 611, 618, 619, 627, 632, 639, 640, 642, 663, 664, 665,
666, 667, 668, 669, 671, 672, 673, 674, 675, 677, 678, 679, 680, 683, 684,
726

685, 686, 687, 689, 690, 691, 694, 695, 696, 697, 698, 699, 707, 710, 714,
716, 721, 736, 737, 740, 745, 747, 750, 751
Cartografia 14, 15, 24, 34, 37, 38, 131, 142, 144, 168, 231, 232, 235, 236,
237, 238, 240, 243, 244, 289, 290, 293, 294, 297, 298, 299, 303, 304, 305,

or
306, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 313, 314, 315, 735
Ciência 22, 25, 31, 33, 34, 36, 37, 106, 107, 138, 148, 149, 155, 156, 162,

od V
192, 198, 236, 242, 254, 255, 259, 262, 267, 268, 270, 272, 283, 285, 289,

aut
290, 291, 292, 293, 294, 304, 305, 309, 310, 311, 313, 314, 322, 345, 346,
360, 361, 366, 389, 395, 418, 427, 435, 466, 479, 483, 497, 511, 513, 514,

R
515, 517, 521, 523, 524, 525, 565, 569, 617, 627, 633, 635, 686, 717, 718,
719, 721, 732, 736, 739, 746, 751

o
Comunidade 24, 52, 78, 81, 102, 107, 138, 142, 171, 216, 252, 276, 286,
aC
303, 308, 309, 314, 315, 327, 353, 354, 355, 357, 358, 363, 364, 365, 366,
370, 375, 379, 381, 386, 393, 396, 400, 406, 429, 430, 431, 432, 433, 436,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


437, 438, 440, 441, 444, 445, 446, 447, 449, 450, 456, 458, 494, 549, 557,
560, 569, 577, 595, 632, 634, 635, 640, 677, 679, 683, 684, 685, 686, 687,
visã
688, 690, 691, 692, 694, 697, 702, 708, 709, 710, 711, 713, 748
Comunidades 52, 99, 170, 176, 179, 208, 290, 304, 305, 306, 308, 309, 311,
313, 351, 352, 353, 354, 355, 356, 357, 359, 361, 363, 370, 372, 373, 383,
itor

396, 397, 402, 417, 425, 430, 431, 433, 434, 435, 436, 437, 438, 440, 444,
a re

446, 448, 450, 456, 457, 460, 475, 499, 553, 558, 596, 599, 601, 619, 665,
668, 669, 671, 677, 683, 684, 685, 686, 687, 688, 689, 690, 691, 694, 695,
697, 700, 701, 702, 713
Conhecimento 16, 27, 30, 40, 41, 45, 53, 54, 79, 81, 82, 83, 98, 103, 106, 112,
par

115, 116, 117, 119, 120, 122, 126, 132, 134, 135, 140, 141, 151, 162, 167,
171, 176, 177, 202, 209, 221, 223, 225, 232, 235, 236, 237, 238, 245, 261,
Ed

263, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 276, 283, 289, 290, 291, 292,
293, 294, 295, 299, 303, 304, 311, 318, 319, 320, 321, 322, 323, 324, 325,
326, 328, 329, 356, 357, 359, 361, 362, 363, 378, 379, 380, 382, 384, 385,
ão

395, 397, 403, 417, 419, 420, 426, 428, 433, 440, 445, 457, 464, 475, 479,
482, 483, 486, 497, 503, 511, 512, 513, 514, 515, 516, 517, 518, 520, 521,
523, 524, 525, 569, 575, 578, 617, 618, 630, 646, 651, 680, 690, 698, 713, 739
s
ver

Construção 14, 16, 17, 24, 33, 34, 38, 40, 42, 45, 52, 62, 69, 79, 87, 94, 95,
103, 127, 129, 149, 150, 183, 184, 186, 188, 198, 199, 202, 210, 211, 212,
225, 226, 227, 231, 235, 236, 238, 245, 247, 250, 264, 267, 270, 276, 285,
290, 291, 292, 293, 304, 305, 309, 335, 343, 348, 349, 384, 389, 393, 394,
420, 424, 428, 433, 441, 442, 446, 450, 456, 458, 461, 464, 466, 476, 483,
503, 511, 512, 514, 515, 516, 522, 523, 524, 555, 556, 557, 563, 576, 578,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 727

580, 581, 604, 605, 617, 618, 621, 623, 624, 638, 641, 644, 677, 681, 686,
689, 690, 708, 709
Corpo 29, 30, 32, 35, 44, 45, 46, 47, 48, 52, 55, 89, 117, 118, 124, 134, 138,
139, 140, 141, 170, 179, 180, 191, 204, 247, 268, 269, 270, 279, 346, 358,

or
366, 395, 430, 435, 442, 458, 461, 462, 467, 473, 474, 475, 488, 498, 499,
501, 518, 534, 539, 555, 556, 561, 563, 580, 585, 629, 640, 654, 660, 674,

od V
675, 721, 739, 748

aut
Corpos 15, 21, 22, 23, 25, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 39, 41, 43, 48, 49,
82, 118, 119, 126, 140, 141, 142, 225, 227, 263, 266, 267, 268, 269, 270, 317,

R
322, 327, 328, 405, 455, 456, 458, 460, 461, 463, 465, 472, 474, 475, 477,
478, 484, 485, 487, 488, 489, 495, 529, 534, 545, 546, 559, 561, 576, 577,

o
605, 654, 717, 721, 722
aC
Crítica 7, 22, 24, 25, 27, 28, 33, 37, 44, 46, 49, 75, 84, 101, 102, 111, 117,
149, 150, 157, 159, 163, 172, 202, 216, 219, 224, 227, 238, 239, 248, 258,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

261, 262, 277, 280, 282, 284, 286, 287, 288, 291, 314, 326, 360, 371, 378,
388, 389, 417, 418, 425, 427, 428, 466, 475, 483, 505, 507, 511, 512, 514,
visã
515, 517, 527, 553, 562, 634, 664, 672, 676, 684, 699, 706, 734, 737, 742, 746
Cultura 22, 24, 31, 34, 36, 37, 41, 42, 47, 48, 49, 52, 55, 56, 59, 62, 69, 72,
73, 75, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 86, 87, 88, 89, 92, 93, 95, 97, 98, 101, 102,
itor

104, 106, 109, 111, 145, 158, 172, 176, 185, 186, 218, 220, 222, 223, 224,
a re

225, 229, 231, 233, 234, 235, 236, 237, 240, 241, 245, 252, 264, 268, 270,
275, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 284, 285, 286, 298, 332, 349, 353, 356,
357, 359, 361, 362, 363, 367, 377, 378, 379, 380, 381, 382, 383, 400, 401,
402, 406, 408, 414, 417, 420, 421, 424, 425, 426, 427, 428, 431, 439, 440,
par

441, 443, 451, 468, 471, 478, 486, 505, 513, 526, 533, 551, 560, 565, 566,
569, 591, 616, 620, 624, 630, 633, 634, 652, 661, 665, 687, 694, 711, 715,
Ed

722, 732, 735, 739, 741, 747, 748, 752


Culturais 22, 23, 31, 33, 34, 36, 40, 52, 58, 72, 82, 98, 99, 101, 102, 106,
107, 167, 172, 176, 185, 222, 223, 224, 225, 227, 228, 240, 269, 278, 281,
ão

282, 291, 303, 305, 310, 328, 351, 353, 357, 363, 370, 378, 385, 400, 402,
420, 429, 430, 431, 434, 436, 439, 440, 442, 443, 450, 453, 465, 468, 478,
481, 503, 525, 536, 546, 594, 617, 621, 624, 626, 631, 643, 644, 646, 656,
s

658, 659, 666, 668, 677, 683, 695, 709, 742, 743
ver

Cultural 14, 16, 23, 40, 41, 44, 46, 48, 51, 53, 60, 62, 67, 68, 69, 72, 73, 74,
75, 86, 92, 97, 99, 101, 106, 108, 109, 110, 128, 137, 143, 157, 176, 219,
220, 221, 222, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 232, 233, 234, 238, 242,
264, 268, 272, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 282, 284, 286, 290, 298, 304,
322, 357, 359, 362, 366, 367, 370, 371, 377, 379, 380, 381, 385, 401, 417,
420, 424, 425, 426, 428, 433, 434, 436, 448, 449, 451, 456, 481, 511, 519,
728

520, 521, 523, 524, 525, 526, 527, 536, 541, 555, 578, 582, 594, 617, 618,
619, 622, 626, 628, 632, 651, 685, 688, 695, 704, 708, 709, 735, 737, 740,
741, 742, 747

or
Defensores 17, 593, 594, 595, 596, 597, 598, 599, 600, 601, 602, 603, 604,

od V
605, 606, 607, 608, 609, 610, 611, 612, 613, 614, 615, 616, 646, 707, 708,

aut
710, 720, 748
Deficiência 80, 89, 286, 473, 606, 637, 638, 639, 640, 641, 642, 643, 644,

R
645, 646, 647, 648, 663, 664, 665, 666, 667, 668, 669, 670, 671, 672, 673,
674, 675, 676, 677, 678, 679, 680, 731

o
Direito 17, 18, 45, 81, 84, 90, 93, 100, 109, 139, 168, 175, 177, 193, 195,
aC
208, 220, 223, 224, 228, 233, 234, 236, 244, 250, 265, 275, 314, 420, 421,
433, 435, 437, 450, 451, 453, 463, 485, 502, 503, 507, 529, 531, 569, 576,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


577, 579, 580, 593, 594, 595, 598, 599, 605, 609, 613, 615, 638, 643, 645,
663, 664, 683, 684, 685, 687, 691, 693, 695, 696, 698, 704, 707, 712, 714,
visã
717, 731, 736, 741, 744, 748, 751, 752
Direitos 4, 17, 41, 52, 81, 93, 179, 218, 224, 233, 234, 235, 237, 240, 244,
250, 251, 253, 254, 257, 285, 359, 369, 382, 398, 400, 433, 437, 450, 453,
itor

455, 457, 461, 462, 463, 472, 475, 485, 501, 502, 507, 508, 509, 569, 593,
a re

594, 595, 596, 597, 598, 599, 600, 601, 602, 603, 604, 605, 606, 607, 608,
609, 610, 611, 612, 613, 614, 615, 616, 638, 639, 640, 643, 644, 646, 647,
648, 663, 666, 669, 693, 694, 695, 696, 703, 705, 707, 708, 709, 710, 711, 712,
715, 717, 718, 719, 720, 721, 722, 731, 734, 735, 741, 743, 744, 748, 751, 752
par

Direitos humanos 17, 93, 237, 250, 251, 257, 285, 359, 398, 400, 455, 475,
507, 508, 593, 594, 595, 596, 597, 598, 599, 600, 601, 602, 603, 604, 605,
Ed

606, 607, 608, 609, 610, 611, 612, 613, 614, 615, 616, 703, 705, 707, 708,
709, 710, 711, 712, 715, 717, 718, 719, 720, 721, 722, 731, 734, 735, 741,
743, 744, 748, 751, 752
ão

Discurso 14, 24, 27, 28, 34, 36, 41, 42, 44, 87, 99, 105, 109, 122, 131, 136,
137, 138, 183, 184, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 196, 197,
s

199, 211, 221, 230, 244, 246, 268, 326, 336, 341, 343, 347, 405, 414, 420, 438,
ver

450, 464, 496, 497, 505, 532, 535, 536, 550, 577, 578, 579, 585, 641, 644, 645
Discursos 23, 30, 86, 87, 95, 97, 126, 137, 139, 185, 187, 188, 189, 190,
191, 192, 194, 195, 198, 199, 214, 221, 227, 232, 245, 246, 248, 279, 284,
312, 317, 332, 339, 341, 418, 445, 457, 458, 476, 497, 498, 503, 505, 507,
535, 538, 541, 542, 543, 544, 546, 547, 567, 569, 579, 584, 588, 590, 596,
597, 637, 644, 647
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 729

E
Educação 3, 4, 9, 13, 14, 16, 17, 24, 45, 64, 77, 78, 80, 81, 82, 83, 84, 86,
87, 88, 89, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 98, 105, 106, 109, 110, 113, 131, 132, 133,
134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 152, 158, 168, 170, 171, 172,

or
173, 175, 176, 177, 178, 179, 181, 191, 219, 227, 228, 229, 230, 231, 232,
236, 237, 240, 241, 256, 259, 262, 265, 266, 270, 272, 273, 275, 276, 277,

od V
279, 280, 281, 285, 287, 288, 291, 292, 305, 312, 317, 318, 319, 324, 326,

aut
347, 348, 353, 354, 359, 367, 369, 373, 374, 379, 382, 384, 385, 387, 388,
389, 390, 391, 392, 393, 395, 397, 398, 413, 417, 419, 420, 421, 423, 427,

R
428, 429, 431, 435, 436, 439, 441, 449, 451, 452, 458, 468, 471, 472, 473,
476, 477, 478, 479, 480, 481, 482, 483, 484, 485, 486, 487, 488, 489, 491,

o
493, 494, 495, 497, 498, 499, 505, 507, 526, 527, 529, 530, 531, 532, 533,
534, 536, 537, 541, 545, 546, 548, 549, 550, 551, 552, 566, 591, 594, 600,
aC
601, 607, 635, 637, 638, 639, 640, 641, 642, 643, 644, 645, 646, 647, 648,
649, 663, 664, 665, 666, 667, 668, 669, 670, 672, 673, 674, 675, 676, 677,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

678, 679, 680, 681, 683, 684, 685, 686, 687, 689, 691, 692, 694, 695, 696,
visã
697, 698, 699, 700, 715, 718, 731, 732, 733, 734, 735, 736, 737, 738, 739,
740, 741, 742, 743, 744, 745, 746, 748, 749, 751, 752, 753, 754
Ensino 9, 13, 14, 15, 16, 24, 26, 30, 78, 80, 82, 89, 91, 97, 98, 99, 104, 105,
itor

106, 107, 108, 109, 111, 112, 113, 117, 123, 126, 155, 168, 173, 179, 180,
a re

222, 231, 232, 235, 236, 237, 238, 240, 241, 242, 243, 244, 251, 253, 261,
262, 264, 265, 272, 285, 289, 290, 291, 292, 293, 294, 305, 309, 311, 312,
317, 318, 319, 321, 323, 324, 325, 326, 328, 335, 346, 353, 369, 386, 387,
388, 389, 390, 391, 393, 395, 397, 398, 406, 417, 419, 420, 421, 422, 423,
425, 426, 427, 428, 441, 453, 469, 476, 477, 478, 479, 487, 497, 507, 529,
par

530, 531, 533, 536, 537, 538, 540, 541, 543, 544, 545, 546, 547, 548, 549,
552, 618, 635, 637, 638, 640, 641, 663, 664, 666, 667, 669, 675, 676, 683,
Ed

685, 686, 688, 690, 691, 692, 699, 718, 719, 722, 731, 732, 733, 734, 735,
736, 737, 738, 742, 745, 749, 752
ão

Ensino superior 24, 113, 117, 155, 261, 262, 264, 265, 317, 318, 319, 321,
323, 324, 325, 326, 328, 335, 346, 386, 387, 388, 389, 393, 397, 398, 476,
477, 478, 479, 487, 529, 530, 531, 536, 537, 538, 541, 543, 544, 545, 546,
s

547, 548, 549, 552, 732, 733, 735, 749


ver

Escola 19, 82, 89, 94, 98, 123, 134, 136, 149, 150, 157, 160, 161, 176, 231,
233, 235, 236, 238, 239, 240, 264, 276, 285, 353, 370, 375, 376, 379, 380,
383, 388, 421, 423, 425, 426, 438, 440, 452, 477, 480, 486, 493, 494, 497,
498, 499, 500, 507, 508, 509, 557, 578, 638, 639, 640, 641, 642, 643, 644,
645, 647, 648, 653, 664, 666, 667, 670, 671, 672, 673, 674, 676, 683, 684,
685, 686, 687, 688, 690, 691, 692, 693, 694, 695, 696, 697, 698, 699, 718,
722, 732, 733, 735, 737, 741, 742, 743, 750, 751, 753
730

Escolas 18, 81, 91, 98, 119, 132, 148, 179, 180, 206, 232, 236, 251, 276,
286, 292, 309, 354, 377, 410, 411, 420, 425, 426, 441, 493, 494, 495, 496,
497, 498, 500, 505, 507, 509, 548, 641, 644, 647, 663, 664, 665, 666, 667,
668, 669, 670, 671, 672, 673, 675, 677, 679, 680, 683, 684, 685, 686, 687,
689, 690, 691, 693, 694, 697, 698, 699, 750

or
Espaços 24, 32, 35, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 66, 68, 70, 71, 72, 73, 78, 89,

od V
91, 92, 97, 98, 107, 113, 116, 118, 119, 125, 126, 135, 151, 168, 171, 175,

aut
179, 202, 207, 216, 224, 225, 226, 233, 238, 247, 263, 264, 289, 295, 296,
304, 310, 311, 317, 318, 323, 328, 369, 370, 372, 382, 393, 395, 403, 425,

R
432, 435, 451, 455, 458, 461, 471, 477, 479, 484, 495, 496, 498, 547, 562,
574, 616, 619, 621, 624, 630, 631, 639, 647, 654, 666, 690, 702, 703, 705

o
Estudos 15, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 31, 33, 36, 37, 49, 55, 61, 77, 78, 79, 80,
aC
86, 87, 91, 94, 95, 97, 98, 102, 128, 154, 155, 156, 157, 158, 160, 161, 163,
164, 199, 213, 215, 223, 224, 229, 232, 233, 234, 235, 236, 241, 242, 243,
244, 254, 255, 258, 290, 331, 333, 334, 335, 336, 337, 338, 339, 340, 341,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


342, 343, 344, 345, 346, 347, 348, 349, 351, 352, 361, 362, 367, 370, 371,
visã
378, 382, 385, 398, 413, 419, 427, 430, 440, 458, 464, 466, 467, 473, 474,
475, 476, 478, 483, 487, 489, 497, 511, 513, 521, 524, 541, 542, 547, 549,
554, 570, 602, 610, 613, 614, 615, 633, 639, 640, 641, 642, 648, 659, 661,
itor

665, 666, 668, 674, 677, 679, 680, 689, 694, 699, 704, 709, 711, 718, 720,
a re

732, 736, 737, 738, 739, 741, 742, 743, 744, 745, 746, 749, 751, 752, 753
Experiência 13, 14, 30, 34, 43, 66, 68, 77, 80, 90, 92, 96, 113, 119, 121, 122,
124, 167, 168, 172, 173, 177, 207, 213, 231, 241, 243, 262, 265, 267, 268,
269, 278, 281, 282, 284, 286, 291, 295, 296, 303, 318, 321, 324, 328, 332,
340, 342, 343, 360, 367, 375, 389, 418, 443, 456, 480, 481, 487, 530, 554,
par

560, 564, 573, 617, 630, 631, 653, 654, 655, 658, 667, 670, 676, 677, 688,
Ed

719, 720, 722, 731, 732, 733, 735, 736, 737, 738, 740, 741, 742, 743, 745,
747, 750, 751
ão

F
Foucault 9, 13, 21, 22, 27, 28, 30, 33, 36, 105, 132, 143, 144, 159, 161, 184,
187, 188, 189, 190, 191, 198, 199, 205, 206, 208, 217, 219, 221, 222, 224,
s

227, 229, 230, 247, 256, 263, 272, 494, 496, 497, 499, 502, 503, 504, 508,
ver

530, 533, 534, 535, 540, 543, 544, 546, 548, 550, 577, 590, 717, 719, 720,
721, 722, 734, 738, 741, 742

G
Gênero 25, 26, 27, 30, 31, 32, 36, 37, 38, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 55,
119, 125, 142, 151, 222, 244, 245, 246, 250, 259, 321, 331, 332, 334, 335, 336,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 731

337, 338, 339, 340, 342, 343, 344, 345, 346, 347, 348, 349, 373, 448, 452,
463, 467, 468, 478, 481, 487, 490, 526, 594, 606, 685, 707, 731, 743, 745, 751
Grupos 26, 29, 30, 40, 42, 59, 65, 68, 71, 78, 79, 80, 89, 90, 97, 99, 102, 105,
109, 131, 151, 167, 168, 172, 177, 202, 205, 215, 220, 223, 224, 225, 226,

or
227, 237, 240, 251, 266, 304, 313, 326, 342, 344, 352, 358, 359, 360, 361,
371, 372, 381, 394, 395, 400, 401, 407, 417, 421, 431, 436, 440, 441, 453,

od V
471, 472, 473, 478, 488, 499, 503, 516, 536, 547, 558, 562, 563, 564, 566,

aut
568, 574, 575, 583, 595, 596, 598, 620, 622, 623, 624, 627, 631, 632, 633,
634, 642, 663, 674, 687, 707, 710, 738, 743, 749

R
H

o
História 13, 14, 15, 16, 24, 26, 27, 28, 35, 37, 38, 40, 41, 42, 47, 48, 51, 53,
aC
57, 64, 72, 79, 82, 87, 88, 92, 93, 95, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104,
105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 117, 121, 122, 124, 149,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

156, 158, 161, 162, 168, 172, 177, 186, 189, 204, 207, 210, 217, 219, 220,
221, 222, 223, 224, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 236, 237,
visã
238, 239, 240, 241, 242, 249, 252, 261, 262, 263, 267, 268, 269, 276, 283,
288, 290, 292, 310, 313, 314, 322, 324, 328, 335, 339, 351, 352, 366, 374,
376, 377, 378, 379, 382, 384, 387, 388, 389, 390, 396, 398, 399, 407, 412,
itor

413, 414, 415, 417, 418, 419, 420, 421, 422, 423, 424, 425, 426, 427, 428,
a re

429, 431, 432, 433, 434, 436, 438, 439, 440, 441, 444, 449, 450, 451, 455,
456, 457, 461, 473, 476, 478, 481, 482, 489, 493, 499, 501, 508, 523, 536,
548, 550, 554, 562, 563, 564, 565, 574, 579, 589, 590, 618, 621, 623, 624,
631, 633, 635, 645, 646, 663, 684, 699, 700, 707, 716, 720, 721, 722, 723,
731, 732, 733, 735, 740, 741, 742, 747, 752
par

Histórias 28, 82, 83, 87, 88, 91, 98, 100, 106, 108, 114, 116, 128, 162, 168,
Ed

171, 178, 207, 224, 226, 233, 235, 237, 262, 263, 265, 266, 268, 269, 270,
272, 305, 327, 356, 369, 372, 380, 424, 426, 428, 431, 434, 451, 456, 457,
458, 476, 477, 480, 481, 482, 509, 563, 568, 589, 621, 626, 629, 631, 684
ão

Histórico 16, 39, 40, 41, 42, 58, 65, 66, 68, 69, 73, 74, 75, 98, 103, 106, 107,
110, 133, 134, 139, 150, 156, 158, 159, 172, 174, 176, 184, 189, 190, 196,
198, 219, 220, 222, 224, 226, 227, 230, 233, 234, 235, 236, 237, 238, 239,
s

240, 244, 247, 264, 267, 290, 318, 319, 332, 353, 371, 374, 375, 376, 380,
ver

381, 388, 389, 390, 396, 399, 412, 419, 420, 426, 430, 433, 456, 487, 511,
513, 517, 519, 520, 521, 523, 524, 525, 526, 527, 544, 554, 569, 576, 579,
580, 583, 588, 606, 608, 637, 651, 665, 684, 686, 718, 742
Humanos 17, 25, 33, 53, 80, 89, 93, 134, 188, 225, 231, 237, 250, 251, 257,
285, 294, 296, 352, 359, 372, 398, 400, 401, 407, 450, 453, 455, 475, 483,
486, 507, 508, 521, 559, 560, 562, 573, 574, 575, 582, 593, 594, 595, 596,
732

597, 598, 599, 600, 601, 602, 603, 604, 605, 606, 607, 608, 609, 610, 611,
612, 613, 614, 615, 616, 626, 638, 703, 705, 707, 708, 709, 710, 711, 712,
715, 717, 718, 719, 720, 721, 722, 731, 734, 735, 741, 743, 744, 748, 751, 752

or
Identidade 35, 36, 79, 81, 88, 89, 95, 107, 111, 112, 158, 159, 161, 193, 208,

od V
223, 229, 231, 236, 258, 309, 345, 349, 355, 362, 367, 369, 370, 371, 372,

aut
374, 375, 376, 377, 380, 381, 382, 383, 385, 386, 389, 392, 397, 414, 417,
430, 433, 434, 435, 437, 442, 444, 448, 451, 478, 488, 503, 521, 556, 563,

R
582, 583, 604, 623, 630, 632, 633, 683, 686, 709, 713
Indígena 22, 41, 44, 46, 49, 69, 82, 108, 223, 225, 231, 240, 241, 351, 352,

o
353, 354, 355, 356, 357, 359, 361, 362, 363, 366, 367, 369, 373, 374, 375,
aC
376, 378, 379, 380, 381, 382, 383, 384, 385, 400, 401, 402, 403, 404, 405,
406, 408, 420, 463, 735, 741

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Indígenas 15, 34, 39, 43, 51, 53, 79, 81, 83, 86, 89, 106, 107, 108, 109, 124,
223, 236, 237, 238, 240, 351, 352, 353, 354, 355, 356, 357, 358, 359, 360,
visã
361, 362, 363, 366, 367, 369, 370, 372, 373, 374, 376, 377, 378, 380, 381,
382, 383, 384, 385, 397, 399, 401, 402, 403, 404, 405, 406, 407, 408, 410,
411, 413, 414, 456, 459, 472, 566, 599, 601, 610, 611, 612, 622, 663, 680, 709
itor

Instituições 86, 88, 89, 106, 114, 116, 134, 135, 136, 144, 184, 185, 188, 190,
a re

191, 205, 206, 209, 210, 214, 215, 216, 237, 249, 264, 266, 277, 282, 319,
321, 325, 326, 332, 335, 353, 387, 389, 395, 397, 450, 453, 455, 457, 460,
488, 494, 496, 497, 498, 499, 500, 530, 531, 532, 541, 543, 547, 558, 595,
598, 599, 603, 606, 609, 624, 630, 641, 663, 664, 680, 702, 703, 717, 722, 751
par

L
Ed

Lógica 31, 41, 46, 47, 52, 86, 89, 108, 109, 133, 134, 136, 137, 138, 140,
184, 204, 208, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 251, 253, 262, 269, 270, 295,
324, 325, 326, 447, 448, 454, 456, 458, 463, 468, 470, 478, 483, 484, 487,
ão

496, 500, 504, 506, 509, 517, 520, 530, 533, 534, 539, 540, 547, 548, 558,
575, 582, 655, 686, 705
s

Luta 26, 49, 50, 51, 53, 78, 80, 93, 142, 172, 174, 175, 185, 186, 198, 220,
ver

223, 232, 235, 240, 250, 252, 253, 290, 355, 359, 360, 369, 378, 382, 397,
421, 422, 432, 433, 434, 435, 436, 438, 441, 445, 448, 450, 451, 458, 460,
461, 464, 471, 472, 475, 477, 480, 481, 482, 487, 504, 526, 568, 569, 596,
597, 604, 611, 625, 638, 639, 697, 707, 710, 714
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 733

M
Morte 43, 119, 222, 246, 254, 257, 284, 357, 418, 457, 458, 459, 460, 463,
464, 465, 469, 470, 483, 484, 490, 534, 559, 560, 562, 564, 567, 573, 575,
576, 577, 578, 579, 580, 581, 583, 585, 586, 587, 590, 594, 595, 600, 602,

or
603, 607, 609, 610, 701, 734
Movimento 9, 26, 27, 28, 30, 37, 40, 44, 45, 52, 68, 79, 81, 83, 88, 90, 94,

od V
97, 100, 101, 107, 115, 122, 133, 136, 137, 139, 141, 142, 149, 150, 157, 172,

aut
185, 197, 207, 208, 221, 232, 233, 239, 242, 267, 273, 279, 296, 310, 318,
323, 331, 354, 373, 374, 377, 408, 433, 434, 436, 439, 443, 444, 446, 447,

R
449, 456, 457, 458, 464, 468, 479, 489, 512, 514, 518, 520, 521, 522, 523,
530, 534, 540, 578, 579, 581, 583, 593, 594, 604, 619, 639, 642, 647, 664,

o
684, 698, 708, 711, 714, 748
aC
P
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Pensamento 25, 34, 39, 47, 53, 55, 97, 99, 100, 101, 104, 120, 121, 122, 123,
128, 129, 131, 137, 139, 140, 141, 143, 157, 158, 159, 172, 180, 188, 214,
visã
221, 229, 238, 248, 251, 254, 273, 286, 295, 296, 313, 320, 322, 371, 377,
380, 381, 389, 417, 420, 421, 422, 427, 431, 439, 444, 458, 463, 488, 512,
513, 515, 520, 523, 526, 548, 550, 558, 570, 630, 637, 704, 712, 719, 732
itor

Políticas 16, 60, 72, 73, 75, 80, 81, 82, 89, 93, 98, 99, 106, 114, 125, 129,
a re

131, 133, 141, 142, 151, 183, 184, 185, 186, 187, 196, 198, 201, 209, 210,
211, 212, 225, 234, 235, 237, 240, 241, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250,
251, 252, 253, 254, 255, 258, 265, 266, 269, 270, 272, 283, 285, 313, 333,
342, 343, 385, 389, 396, 397, 410, 420, 430, 433, 436, 443, 449, 453, 458,
par

459, 462, 463, 464, 465, 468, 471, 474, 477, 484, 485, 500, 501, 529, 530,
532, 533, 534, 536, 537, 540, 545, 546, 547, 549, 552, 558, 562, 563, 564,
Ed

565, 566, 597, 598, 602, 604, 606, 607, 610, 632, 634, 640, 643, 644, 646,
647, 649, 663, 665, 666, 668, 677, 678, 680, 683, 685, 686, 687, 690, 691,
694, 695, 696, 698, 699, 703, 704, 705, 706, 707, 708, 710, 712, 714, 715,
ão

718, 720, 722, 723, 731, 732, 733, 734, 735, 736, 738, 740, 741, 742, 743,
745, 747, 750, 751, 752
s

Políticas públicas 73, 80, 93, 131, 142, 151, 201, 209, 210, 211, 212, 247,
248, 249, 250, 251, 252, 253, 270, 333, 385, 389, 396, 397, 410, 433, 436,
ver

453, 462, 471, 474, 484, 500, 536, 537, 549, 558, 564, 602, 604, 607, 632,
634, 644, 647, 665, 668, 683, 685, 686, 687, 691, 694, 695, 698, 708, 715,
718, 720, 722, 723, 731, 732, 734, 735, 738, 741, 742, 743, 745, 747, 750, 752
População 69, 77, 79, 83, 89, 108, 137, 138, 170, 172, 190, 201, 208, 209,
210, 211, 215, 217, 223, 235, 236, 237, 263, 277, 301, 303, 305, 320, 322,
337, 338, 351, 359, 363, 387, 388, 390, 405, 410, 418, 420, 424, 426, 429,
734

430, 431, 432, 433, 434, 440, 441, 445, 446, 450, 453, 455, 457, 458, 459,
472, 475, 478, 481, 483, 485, 486, 495, 498, 500, 501, 508, 529, 532, 533,
548, 563, 567, 582, 595, 600, 622, 629, 651, 652, 654, 663, 664, 665, 666,
667, 668, 669, 671, 672, 675, 679, 697, 701, 703, 708, 712, 714, 715, 736, 743

or
Povos 16, 42, 45, 69, 77, 82, 83, 97, 107, 124, 223, 224, 229, 237, 238, 293,
294, 296, 324, 352, 353, 355, 359, 360, 361, 362, 363, 366, 367, 369, 378,

od V
382, 389, 399, 401, 402, 404, 406, 407, 408, 410, 411, 414, 449, 456, 457,

aut
565, 566, 567, 599, 601, 610, 611, 612, 622, 644, 665, 684, 686, 687, 688,
691, 696, 709, 743

R
Prática 9, 22, 23, 31, 48, 49, 81, 84, 86, 91, 106, 116, 128, 139, 143, 149,
155, 162, 168, 176, 177, 179, 184, 188, 189, 212, 215, 223, 231, 239, 240,

o
247, 249, 251, 253, 256, 262, 267, 269, 277, 290, 295, 311, 314, 320, 327,
aC
343, 345, 347, 351, 361, 362, 363, 375, 378, 388, 403, 405, 422, 426, 429,
430, 439, 442, 448, 450, 465, 480, 484, 489, 499, 508, 513, 521, 522, 557,
563, 577, 579, 581, 586, 594, 618, 619, 622, 630, 634, 641, 642, 643, 646,

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666, 707, 716, 717
visã
Práticas 14, 23, 27, 29, 30, 32, 35, 40, 42, 69, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 84, 86,
87, 89, 92, 97, 98, 105, 106, 107, 108, 113, 125, 129, 140, 148, 153, 176, 189,
210, 212, 214, 215, 218, 219, 221, 222, 223, 224, 225, 227, 229, 232, 236,
itor

240, 248, 249, 250, 251, 252, 253, 257, 276, 277, 278, 279, 281, 289, 290,
a re

295, 309, 317, 318, 320, 325, 327, 328, 332, 333, 338, 360, 371, 388, 395,
400, 422, 426, 429, 430, 431, 432, 435, 442, 443, 446, 447, 449, 455, 456,
459, 460, 470, 472, 473, 476, 477, 484, 485, 486, 487, 488, 497, 500, 504,
505, 506, 535, 552, 553, 556, 558, 561, 565, 594, 596, 597, 598, 609, 617,
618, 619, 631, 640, 663, 664, 675, 683, 688, 705, 707, 711, 713, 714, 716,
par

718, 719, 720, 733, 739, 741, 743, 745, 748, 750, 751
Ed

Processo 26, 29, 30, 34, 35, 40, 41, 42, 44, 45, 49, 51, 53, 54, 64, 68, 69,
82, 98, 99, 100, 101, 103, 105, 106, 107, 109, 122, 135, 140, 141, 142, 148,
153, 158, 161, 171, 172, 177, 179, 181, 184, 189, 193, 195, 201, 204, 205,
ão

207, 208, 209, 216, 219, 220, 224, 225, 234, 237, 238, 240, 244, 245, 255,
258, 262, 278, 280, 289, 290, 291, 292, 293, 294, 295, 298, 303, 304, 306,
310, 311, 312, 315, 317, 319, 320, 321, 324, 325, 326, 327, 339, 342, 351,
s

353, 357, 369, 371, 373, 374, 375, 378, 379, 380, 383, 389, 390, 391, 392,
ver

394, 395, 400, 401, 402, 405, 406, 426, 429, 430, 431, 436, 438, 441, 442,
449, 450, 452, 456, 469, 473, 474, 480, 483, 494, 498, 502, 504, 511, 514,
515, 516, 517, 518, 519, 521, 522, 523, 524, 525, 527, 529, 534, 535, 542,
545, 547, 565, 573, 575, 576, 582, 585, 588, 590, 591, 593, 596, 597, 598,
602, 603, 618, 621, 622, 624, 635, 639, 643, 645, 647, 656, 665, 666, 668,
670, 673, 674, 677, 684, 685, 686, 689, 690, 703, 706, 708, 710, 712, 714,
715, 716, 720, 738
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 735

Produção 21, 22, 25, 26, 27, 28, 30, 32, 35, 37, 45, 52, 53, 78, 87, 89, 90, 106,
115, 116, 117, 126, 134, 135, 137, 139, 141, 152, 155, 157, 159, 161, 162,
168, 184, 190, 198, 199, 201, 202, 208, 209, 218, 221, 223, 224, 227, 232,
237, 244, 245, 246, 247, 250, 251, 252, 255, 267, 271, 277, 279, 280, 281,
291, 294, 296, 298, 303, 304, 315, 318, 319, 320, 322, 324, 325, 326, 327,

or
333, 344, 345, 346, 354, 374, 389, 395, 397, 402, 421, 426, 429, 430, 441,

od V
448, 458, 459, 464, 468, 479, 481, 482, 499, 502, 503, 504, 505, 507, 509,

aut
511, 515, 517, 523, 524, 527, 534, 539, 540, 549, 550, 561, 573, 574, 575,
583, 617, 618, 623, 663, 669, 680, 687, 688, 698, 713, 714, 718, 721, 732, 744

R
Professores 13, 78, 81, 82, 91, 92, 97, 98, 99, 104, 105, 108, 109, 156, 157,
159, 174, 185, 236, 239, 240, 251, 281, 283, 285, 292, 323, 369, 374, 378,

o
379, 384, 385, 391, 392, 393, 395, 410, 420, 421, 425, 430, 480, 494, 505,
531, 568, 630, 637, 647, 666, 669, 673, 675, 677, 679, 688, 690, 692, 693,
aC
699, 731, 732, 733, 750
Psicologia 3, 4, 14, 15, 18, 24, 25, 26, 27, 33, 37, 38, 64, 113, 116, 129, 144,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

145, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160,
visã
161, 162, 163, 164, 165, 184, 199, 202, 209, 219, 222, 223, 224, 225, 226,
227, 228, 229, 243, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 251, 252, 253, 254,
255, 257, 258, 259, 261, 265, 293, 314, 330, 331, 333, 334, 336, 339, 341,
itor

342, 343, 344, 345, 346, 347, 348, 349, 359, 360, 366, 367, 371, 385, 387,
a re

388, 389, 390, 391, 392, 393, 394, 395, 396, 397, 398, 413, 414, 466, 467,
469, 470, 489, 490, 491, 493, 494, 497, 507, 508, 509, 511, 512, 513, 514,
515, 523, 524, 526, 527, 528, 529, 530, 534, 545, 551, 552, 553, 569, 570,
571, 574, 590, 591, 617, 618, 627, 629, 631, 632, 633, 634, 635, 660, 679,
701, 718, 719, 720, 721, 731, 732, 733, 734, 735, 736, 737, 738, 739, 740,
par

741, 742, 743, 744, 745, 746, 747, 748, 749, 750, 751, 752, 753, 754
Ed

Psicologia social 3, 4, 14, 18, 25, 26, 37, 113, 147, 148, 149, 150, 151, 152,
153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 202, 219,
223, 227, 243, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 251, 252, 253, 254, 255,
ão

257, 258, 371, 385, 388, 466, 489, 534, 553, 570, 591, 617, 618, 629, 631,
632, 633, 701, 731, 732, 733, 734, 735, 736, 737, 738, 739, 740, 742, 743,
745, 746, 747, 748, 750, 753
s
ver

R
Racismo 16, 39, 48, 77, 79, 80, 81, 84, 86, 88, 89, 90, 94, 95, 116, 125, 126,
129, 232, 235, 240, 241, 244, 246, 251, 254, 255, 256, 257, 258, 263, 329,
420, 421, 422, 426, 429, 431, 433, 434, 438, 439, 441, 442, 446, 454, 457,
458, 459, 460, 461, 463, 464, 465, 466, 468, 469, 471, 472, 473, 474, 476,
477, 478, 484, 485, 486, 487, 488, 489, 490, 491, 563, 570, 594, 602, 744
736

Realidade 24, 25, 29, 32, 34, 42, 43, 45, 53, 54, 62, 80, 91, 101, 102, 104,
105, 108, 116, 169, 170, 171, 172, 173, 177, 178, 179, 180, 190, 192, 197,
202, 224, 236, 239, 249, 256, 277, 286, 291, 292, 295, 299, 302, 310, 314,
318, 325, 338, 343, 344, 348, 359, 371, 378, 379, 384, 388, 389, 392, 394,
433, 436, 444, 449, 455, 457, 459, 460, 461, 463, 464, 466, 486, 490, 502,

or
514, 516, 517, 520, 521, 522, 523, 525, 530, 536, 542, 548, 549, 553, 564,

od V
567, 575, 576, 583, 593, 598, 602, 604, 609, 610, 613, 614, 615, 618, 627,

aut
631, 632, 635, 653, 656, 661, 663, 665, 666, 667, 668, 669, 671, 672, 673,
675, 676, 677, 683, 684, 685, 686, 687, 697, 699, 707, 715, 716, 720, 723, 743

R
Reflexões 13, 39, 41, 45, 46, 80, 86, 88, 89, 90, 94, 95, 97, 99, 102, 104, 105,
107, 131, 138, 198, 199, 201, 202, 208, 209, 210, 214, 222, 229, 231, 232,

o
239, 240, 242, 247, 262, 280, 287, 317, 347, 362, 367, 370, 371, 389, 392,
395, 396, 399, 417, 418, 427, 432, 476, 477, 483, 553, 554, 574, 578, 582,
aC
583, 589, 602, 615, 616, 618, 634, 660, 685, 702, 714
Representações 17, 52, 89, 97, 99, 100, 101, 148, 149, 151, 156, 158, 159,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


161, 178, 180, 295, 296, 299, 301, 304, 305, 306, 310, 312, 331, 332, 336,
visã
339, 340, 343, 372, 399, 418, 423, 424, 425, 426, 573, 574, 575, 576, 578,
580, 583, 584, 586, 588, 589, 591, 631, 632
Respeito 22, 30, 34, 41, 78, 79, 83, 87, 91, 97, 99, 108, 119, 126, 132, 136,
itor

150, 161, 209, 210, 211, 231, 237, 249, 251, 276, 287, 289, 295, 298, 299,
a re

304, 322, 323, 357, 362, 363, 370, 371, 374, 376, 378, 379, 381, 383, 388,
400, 404, 419, 425, 430, 437, 438, 440, 441, 442, 444, 445, 446, 447, 448,
450, 479, 480, 483, 487, 502, 512, 516, 524, 546, 556, 557, 560, 575, 586,
602, 604, 606, 607, 624, 629, 630, 631, 638, 645, 647, 658, 667, 674, 676, 713
par

S
Ed

Saber 27, 28, 35, 51, 78, 85, 87, 98, 99, 102, 105, 109, 111, 115, 117, 121,
126, 129, 137, 138, 141, 147, 148, 151, 152, 156, 158, 159, 161, 174, 183,
187, 188, 196, 201, 202, 208, 215, 220, 221, 223, 224, 227, 229, 238, 247,
ão

250, 253, 266, 268, 289, 293, 304, 311, 320, 321, 324, 325, 327, 333, 339,
343, 346, 362, 400, 425, 432, 435, 436, 437, 443, 451, 469, 498, 506, 513,
514, 525, 550, 553, 578, 580, 585, 586, 590, 645, 646, 657, 664, 688, 703,
s

708, 714, 718, 721, 722


ver

Saberes 13, 21, 22, 24, 28, 30, 35, 37, 67, 83, 93, 94, 95, 99, 102, 106, 107,
110, 113, 128, 131, 134, 137, 138, 141, 142, 160, 167, 172, 188, 189, 214, 215,
220, 223, 224, 225, 226, 227, 229, 238, 242, 244, 245, 246, 247, 249, 256,
262, 264, 267, 268, 269, 292, 296, 304, 310, 311, 324, 329, 356, 360, 361,
363, 402, 413, 414, 422, 423, 426, 433, 434, 444, 446, 449, 450, 457, 458,
460, 468, 473, 489, 508, 553, 554, 586, 591, 608, 648, 686, 687, 713, 743, 745
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 737

Saúde mental 14, 179, 201, 209, 211, 214, 215, 216, 217, 218, 250, 259, 262,
336, 346, 349, 367, 388, 389, 558, 573, 588, 629, 632, 712, 716, 717, 731,
733, 734, 735, 736, 738, 741, 745, 750, 751
Sistema 28, 30, 40, 43, 46, 47, 49, 50, 51, 52, 53, 56, 64, 107, 133, 136, 178,

or
179, 190, 217, 221, 233, 236, 248, 259, 276, 278, 279, 280, 284, 293, 294,
299, 310, 321, 331, 337, 339, 345, 388, 400, 402, 406, 414, 422, 439, 441,

od V
455, 456, 461, 463, 467, 473, 485, 487, 501, 513, 531, 532, 535, 558, 565,

aut
566, 575, 583, 612, 614, 619, 632, 638, 640, 643, 645, 646, 647, 653, 666,
675, 687, 703, 704, 711, 712, 714, 715, 717, 722, 734, 740

R
Sociais 17, 23, 25, 26, 27, 31, 34, 40, 41, 47, 48, 49, 51, 59, 60, 62, 64, 69,
79, 82, 89, 90, 97, 100, 106, 107, 111, 117, 126, 133, 135, 137, 142, 147, 148,

o
149, 150, 151, 156, 158, 159, 160, 161, 168, 171, 172, 173, 175, 177, 178,
aC
179, 180, 185, 187, 189, 197, 198, 202, 204, 205, 210, 211, 212, 213, 215,
218, 221, 224, 226, 227, 229, 233, 234, 235, 236, 237, 240, 244, 245, 246,
250, 251, 252, 257, 264, 265, 266, 267, 269, 270, 277, 279, 280, 285, 289,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

290, 291, 292, 294, 297, 298, 304, 305, 309, 319, 324, 325, 328, 332, 333,
visã
336, 340, 349, 354, 355, 359, 360, 361, 362, 370, 371, 372, 375, 381, 399,
400, 408, 410, 413, 417, 420, 429, 431, 435, 436, 439, 441, 443, 450, 451,
453, 454, 455, 457, 458, 459, 460, 461, 462, 463, 464, 468, 471, 472, 474,
itor

477, 478, 490, 500, 501, 505, 516, 519, 520, 524, 529, 530, 536, 537, 538,
a re

540, 543, 544, 545, 546, 549, 550, 553, 554, 555, 559, 560, 561, 562, 564,
565, 568, 569, 573, 574, 575, 576, 578, 580, 581, 582, 583, 584, 586, 588,
589, 591, 596, 597, 600, 601, 602, 608, 615, 617, 618, 624, 626, 627, 628,
629, 630, 631, 632, 639, 640, 643, 645, 646, 654, 658, 663, 664, 665, 668,
669, 673, 674, 679, 684, 686, 695, 696, 699, 707, 708, 709, 711, 712, 713,
par

719, 722, 732, 734, 735, 737, 739, 740, 742, 743, 752
Ed

Social 3, 4, 14, 15, 16, 18, 25, 26, 27, 29, 30, 31, 34, 36, 37, 41, 45, 47, 50,
51, 59, 60, 61, 64, 68, 69, 70, 71, 77, 79, 80, 89, 97, 105, 107, 110, 113, 119,
123, 125, 132, 134, 135, 136, 138, 140, 142, 147, 148, 149, 150, 151, 152,
ão

153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 167, 168,
170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 179, 181, 189, 191, 194, 196, 201,
202, 205, 206, 207, 208, 209, 212, 214, 215, 217, 219, 221, 223, 224, 227,
s

229, 230, 233, 237, 238, 239, 240, 243, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250,
ver

251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 262, 268, 272, 273, 277, 278,
279, 280, 281, 286, 290, 292, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 303, 304, 305,
310, 313, 314, 318, 319, 320, 322, 323, 324, 327, 329, 339, 341, 346, 347,
357, 360, 362, 369, 371, 374, 375, 377, 379, 380, 381, 382, 383, 384, 385,
386, 387, 388, 389, 390, 392, 394, 395, 399, 400, 401, 403, 406, 408, 411, 413,
417, 421, 425, 427, 428, 429, 433, 434, 435, 436, 439, 440, 441, 442, 444,
446, 447, 449, 450, 451, 454, 456, 457, 458, 459, 461, 463, 464, 465, 466,
738

469, 471, 472, 477, 478, 485, 486, 489, 497, 499, 500, 501, 502, 503, 504,
507, 512, 513, 515, 516, 517, 518, 519, 520, 521, 526, 527, 531, 532, 534,
536, 539, 540, 541, 543, 546, 547, 548, 549, 550, 551, 552, 553, 554, 558,
559, 561, 563, 564, 565, 566, 570, 571, 573, 575, 576, 577, 578, 582, 583,
585, 591, 593, 598, 600, 606, 617, 618, 619, 624, 627, 628, 629, 630, 631,

or
632, 633, 635, 639, 640, 642, 644, 645, 651, 654, 655, 658, 663, 665, 674,

od V
676, 680, 684, 687, 688, 690, 692, 695, 696, 697, 700, 701, 703, 704, 705,

aut
706, 708, 709, 710, 712, 714, 715, 717, 718, 722, 731, 732, 733, 734, 735,
736, 737, 738, 739, 740, 742, 743, 744, 745, 746, 747, 748, 749, 750, 751, 753

R
Sociedade 24, 26, 29, 40, 47, 48, 49, 69, 79, 80, 88, 89, 90, 102, 108, 123,
128, 133, 134, 137, 138, 143, 148, 149, 154, 155, 158, 160, 162, 163, 164,

o
167, 172, 174, 175, 176, 178, 179, 180, 185, 189, 190, 198, 202, 205, 207,
208, 210, 214, 215, 216, 220, 228, 229, 231, 232, 233, 235, 240, 241, 249,
aC
257, 258, 259, 264, 269, 272, 275, 276, 277, 278, 280, 285, 286, 287, 289,
290, 291, 292, 293, 294, 295, 298, 302, 303, 305, 306, 320, 322, 324, 325,

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329, 346, 347, 353, 354, 356, 359, 360, 361, 363, 369, 371, 372, 374, 378,
visã
383, 385, 392, 394, 396, 398, 399, 400, 403, 406, 408, 421, 424, 426, 428,
429, 430, 431, 434, 435, 436, 440, 441, 450, 451, 454, 458, 459, 460, 463,
464, 471, 477, 479, 482, 483, 485, 486, 487, 488, 490, 491, 494, 497, 498,
499, 501, 502, 503, 504, 505, 507, 508, 509, 515, 516, 517, 518, 522, 525,
itor

527, 531, 534, 536, 539, 544, 546, 547, 548, 550, 560, 562, 565, 575, 577,
a re

582, 586, 596, 600, 602, 604, 605, 606, 607, 616, 617, 623, 638, 639, 640,
644, 649, 652, 653, 654, 655, 656, 657, 658, 660, 661, 664, 680, 686, 695,
699, 704, 705, 706, 707, 708, 717, 719, 720, 722, 732, 737, 738, 739, 741,
744, 745, 746, 750, 751, 753, 754
par

Suicídio 17, 459, 467, 573, 574, 576, 577, 578, 579, 580, 581, 582, 583, 584,
585, 586, 587, 588, 589, 590, 591
Ed

Sujeito 24, 28, 29, 34, 40, 41, 43, 46, 49, 105, 117, 167, 170, 171, 172, 174,
175, 176, 178, 179, 199, 226, 233, 234, 246, 252, 278, 291, 320, 371, 381,
ão

385, 396, 427, 429, 430, 432, 433, 436, 438, 443, 444, 447, 448, 449, 450,
455, 456, 482, 498, 511, 515, 516, 517, 519, 520, 521, 523, 534, 539, 540,
543, 544, 546, 555, 557, 564, 565, 575, 579, 580, 582, 583, 595, 617, 627,
s

631, 632, 641, 654, 655, 658, 660, 686, 713, 716, 719
ver

Sujeitos 29, 40, 50, 69, 97, 98, 100, 101, 104, 105, 106, 107, 108, 110, 141,
167, 178, 188, 210, 213, 220, 222, 224, 225, 226, 227, 237, 238, 239, 249,
261, 264, 276, 277, 279, 290, 292, 297, 303, 305, 309, 311, 327, 328, 340,
369, 371, 372, 400, 419, 422, 430, 431, 432, 434, 438, 442, 443, 444, 447,
449, 450, 456, 458, 459, 472, 473, 485, 512, 514, 529, 530, 533, 534, 539,
540, 541, 543, 544, 547, 548, 551, 554, 559, 562, 563, 565, 583, 588, 593,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 739

594, 595, 599, 609, 617, 618, 628, 632, 641, 642, 644, 645, 646, 656, 683,
684, 685, 687, 688, 691, 693, 694, 697, 714, 743

or
Teoria 22, 24, 36, 40, 43, 56, 60, 100, 102, 143, 145, 149, 150, 151, 155,
157, 158, 162, 163, 199, 228, 242, 247, 253, 256, 262, 267, 277, 287, 288,

od V
297, 311, 314, 328, 339, 345, 347, 349, 388, 390, 405, 466, 468, 474, 475,

aut
489, 514, 517, 521, 523, 524, 526, 527, 544, 554, 555, 567, 568, 573, 574,
576, 635, 643, 646, 661, 699, 700, 702, 704, 705, 718, 747

R
Território 27, 30, 33, 34, 42, 44, 45, 46, 107, 125, 149, 150, 201, 202, 209,
216, 217, 220, 227, 248, 250, 251, 252, 253, 259, 261, 262, 269, 270, 297,

o
298, 303, 304, 305, 307, 308, 309, 312, 315, 352, 353, 355, 356, 358, 363,
aC
404, 405, 436, 437, 438, 448, 464, 478, 481, 482, 487, 501, 508, 565, 566,
600, 601, 617, 618, 621, 622, 626, 630, 669, 680, 683, 684, 685, 704, 708, 743
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

V
visã
Violência 42, 43, 44, 53, 80, 93, 152, 209, 224, 235, 236, 237, 244, 245, 251,
254, 258, 259, 331, 336, 341, 342, 343, 346, 347, 348, 349, 351, 363, 429,
439, 440, 453, 454, 456, 459, 460, 464, 466, 470, 483, 484, 490, 496, 498,
itor

500, 501, 507, 551, 553, 557, 558, 559, 561, 562, 564, 566, 567, 571, 593,
a re

594, 595, 596, 597, 598, 599, 601, 603, 604, 605, 609, 610, 611, 612, 614,
615, 653, 654, 690, 701, 702, 703, 704, 705, 709, 710, 711, 712, 717, 718,
719, 720, 721, 722, 731, 735, 744, 747, 748
par
Ed
s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
SOBRE OS ORGANIZADORES/AUTORES

Adriana Elisa de Alencar Macedo (Org.)

or
Possui graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia – UNAMA

od V
(2005). Especialização em Saúde Mental pela Universidade do Estado do

aut
Pará – UEPA (2004). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará
– UFPA (2012-2014) com foco para políticas públicas em Centros Socioe-
ducativos Femininos e foi bolsista do CNPq durante esse período. Doutora

R
em Psicologia pela UFPA. Doutorado sanduíche na Universidade de Évora
- Bolsista CAPES (2019). Experiência em Psicologia Clínica e pessoas com

o
deficiência. Já atuou como psicóloga para vítimas de violência sexual. Pre-
aC
sidenta da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) do CRP10. Conse-
lheira Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Pará (CEDCA)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

- 2013 a 2017. Membro do Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência


Sexual Contra a Criança e o Adolescente - Pará - 2013 a 2018. Conselheira
visã
do conselho municipal de assistência social de Belém (CMAS) - 2017 a 2018.
Integrante do Fórum do direito da criança e adolescente do Pará - FDCA -
2013 a 2018. Integrante da coordenação do núcleo ABRAPSO - BELÈM de
itor

2015 a 2017. Entre 2015 e 2017 atuou como docente no Plano Nacional de
a re

Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR). Atualmente compõe


a comissão de gênero e diversidade sexual do CRP 16. Tem experiência na
área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando principalmente
nos seguintes temas: direitos humanos, violências, medidas socioeducativas,
políticas públicas, SINASE, história oral e pesquisa documental.
par

Adriane Raquel Santana de Lima


Ed

Professora da, Universidade Federal do Pará, coordenadora do Grupo de


Estudo e Pesquisa em Educação, Gênero, feminismos e Interseccionalidade
GEPEGEFI-UFPA/ICED adrianelima29@yahoo.com.br
ão

Alcindo Antônio Ferla


s

Possui graduação em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do


ver

Sul (1996) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (2002). Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuando no Curso de Bacharelado e no Pro-
grama de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Também atua como professor
no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Social da Universi-
dade Federal do Pará (UFPA), como professor no Mestrado Profissional em
Saúde da Família da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS),
742

como pesquisador visitante do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane


da Fundação Oswaldo Cruz/FAPEAM, como pesquisador visitante na Alma
Mater Studiorum - Università Di Bologna / Centro de Saúde Internacional
e Intercultural e como pesquisador convidado no Centro de Investigaciones
y Estudios de la Salud, da Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua.

or
Líder do Grupo de Pesquisas Rede Internacional de Políticas e Práticas de

od V
Educação e Saúde Coletiva (Rede Interstício).

aut
Alerrandson Afonso Melo Pinon
É Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Pará (2020).

R
Possui Especialização Lato Sensu em Ciências Humanas: História da Amazônia
pela Universidade da Amazônia (2009) e graduação em História Bacharelado e

o
Licenciatura pela Universidade Federal do Pará (2007). Atualmente é professor
aC
efetivo da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém e professor
classe II da Secretaria Executiva de Educação do Pará. Tem experiência na área

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de Educação, com ênfase em Educação, atuando principalmente nos seguintes
temas: História da Amazônia, História da África, Didática da História, Pensa-
visã
mento Decolonial, Pedagogias Decoloniais e Ensino de História.

Alexandra Marcelina da S. Barros


itor

Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Várzea Grande.


a re

Alexandre Silva Nunes


Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia - UFBA
(2010), Mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas - UNI-
CAMP (2005) e Licenciado em Educação Artística, com habilitação em
par

Artes Cênicas, pela Universidade Federal de Pernambuco (2000). Professor


Associado da Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC) da Universidade
Ed

Federal de Goiás (UFG) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em


Artes da Cena. Coordena o LABORSATORI - Núcleo Multidisciplinar de
Pesquisa nas Artes da Cena e o Festival Universitário de Artes Cênicas de
ão

Goiás - FUGA. E-mail: alexandrenunes@ufg.br.

Aline Beckmann Menezes


s

Professora Adjunta da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do


ver

Pará e do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comporta-


mento da Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduada em Psicologia,
com Mestrado e Doutorado em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Psicologia Escolar e
Educacional pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). Membro do GT de
Psicologia Escolar e Educacional da ANPEPP e Coordenadora do Laboratório
de Soluções Educacionais.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 743

Aline Kelly da Silva


É doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institu-
cional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Alabucana-
-pernamgoana, vivendo e sonhando entre os agrestes, os litorais e as quebradas
maceioenses. Estuda epistemologias anticoloniais, feministas e antirracistas, na

or
articulação com juventudes negras. Escreve e pesquisa para aprender e partilhar.

od V
aut
Aline Lima da Silveira Lage
Possui graduação em Psicologia (1999) e mestrado em Ciência Ambiental

R
(2003) pela Universidade Federal Fluminense e doutorado em Educação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2019). Tem experiência na área de

o
Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Psicologia e Educa-
ção, Formação de professores, surdez, Medicalização, políticas públicas, pro-
aC
dução de subjetividade e movimentos sociais. É Professora de Psicologia do
Departamento de Ensino Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

(DESU-INES), membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da


visã
Sociedade. Integra o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Surdez (GEPESS-U-
FRJ) e coordena, com o Professor Maurício Rocha Cruz, o Grupo de Pesquisas
Formação de Professores (de) Surdos (GPFPS-INES).
itor
a re

Aline Maira Herculano Oliveira da Silva


Graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA).

Aluísio Ferreira Lima (Org.)


Possui graduação em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do
par

Sul (1996) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande


Ed

do Sul (2002). Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal


do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuando no Curso de Bacharelado e no Pro-
grama de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Também atua como professor
ão

no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Social da Universi-


dade Federal do Pará (UFPA), como professor no Mestrado Profissional em
Saúde da Família da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS),
s

como pesquisador visitante do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane


ver

da Fundação Oswaldo Cruz/FAPEAM, como pesquisador visitante na Alma


Mater Studiorum - Università Di Bologna / Centro de Saúde Internacional
e Intercultural e como pesquisador convidado no Centro de Investigaciones
y Estudios de la Salud, da Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua.
Líder do Grupo de Pesquisas Rede Internacional de Políticas e Práticas de
Educação e Saúde Coletiva (Rede Interstício).
744

Amanda Gabriella Borges Magalhães


Graduada em Psicologia - Formação do Psicólogo pela Universidade Federal
do Pará (2017). Possui Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia na mesma instituição (2019). Atua como Psicóloga Educacional na
Divisão de Assistência Estudantil da Universidade Federal do Pará - Campus

or
Cametá. Tem interesse nas áreas de Psicologia Escolar/Educacional, Psi-

od V
cologia Social e História da Psicologia. Atualmente, coordena o Programa

aut
“Conexões: Vida Universitária e Saúde Mental” da Assistência Estudantil,
que tem como objetivo promover práticas coletivas de promoção de saúde

R
mental no ensino superior.

o
Ana Carla Cividanes Furlan Scarin (Org.)
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina
aC
(1993), mestrado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (2003) e doutorado em Educação pela Universidade Esta-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008). Pós-doutorado pela Universi-
visã
dade de São Paulo - Instituto de Psicologia - São Paulo. Tem experiência na
área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Desenvolvimento Humano
e Epistemologia da Psicopatologia, atuando principalmente nos seguintes
itor

temas: aprendizagem, cotidiano escolar, escola, educação, desenvolvimento


sócio-moral, psicologia clínica (abordagem psicanalítica), psicopatologia,
a re

patologização, medicalização e saúde mental.

Ana Carolina Farias Franco (Org.)


Psicóloga/UFPA. Mestre em Psicologia/UFPA. Doutora em Educação/UFPA.
par

Concursada como Psicóloga/IFPA.


Ed

Ana Claudia Assunção Chaves (Org.)


Graduada em Letras/UFPA. Graduanda em Psicologia/UFPA.
ão

Ana Cristina Fernandes Martins


Doutora em Psicologia pela USP com o título Entre picadas e trilhas: trajetó-
s

rias de famílias em área de assentamento em Manaus-Am (2010) e foi bolsista


ver

pela FAPEAM no mesmo período. É mestra em Educação pela UFAM com


foco nas políticas públicas (2002). É graduada em pedagogia pela UFAM
(1990). Ingressou na UFAM em 08 de abril de 1991, por intermédio de Con-
curso Público para Carreira do Magistério Superior. Desenvolve atividades
de ensino, extensão e pesquisa na área de Educação e Psicologia, atuando
principalmente nos seguintes temas: políticas públicas, gestão da educação,
gestão escolar, psicologia escolar/ educacional e processos educativos.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 745

Anderson Reis de Oliveira (Org.)


Estudante de Psicologia, oitavo semestre. Bolsista de iniciação cien-
tífica CNPQ.

André Benassuly Arruda (Org.)

or
Obteve graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia (2006). Rea-

od V
lizou mestrado na UFPA através do Programa de Pós-Graduação em Psicologia

aut
Social (PPGP), iniciado em 2011 e concluído em junho de 2013. Iniciou o Dou-
torado no PPGP/UFPA em 2021 com prazo de defesa para 2025. Participa do

R
Grupo de Pesquisa “Transversalizando” coordenado pela Profª. Drª Flávia Cris-
tina Silveira Lemos (UFPA), focado em temáticas sociais, tendo como referência
teórica central a obra de Michel Foucault e Filosofia Crítica. Nos anos de 2006

o
a 2007 trabalhou no município de Trairão/PA (transamazônica) com enquadra-
aC
mento funcional de técnico psicólogo no Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS), onde contribuiu na organização e efetivação do Sistema Único
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

de Saúde na referida região. De 2007 a 2008 desenvolveu suas atividades profis-


visã
sionais no município de Abaetetuba em unidades governamentais como: Centro
de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especiali-
zado de Assistência Social (CREAS) e Núcleo de Atendimento Especializado da
Criança e do Adolescente (NAECA). De 2009 a 2010, com enquadramento de
itor

assessor, contribui na Câmara de Defesa Social e Direitos Humanos da Secreta-


a re

ria de Governo do Estado do Pará. A partir do início de 2013 passou a compor


o quadro de técnicos psicólogos do Centro de Defesa da Criança e do Adoles-
cente (CEDECA), mais especificamente do Programa de Proteção de Crianças
e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), encerrando suas atividades
par

neste programa em junho de 2014. Entre os de 2015 c a 2020 lecionou na Uni-


versidade da Amazônia, nos cursos de Psicologia, História, Letras, Artes Visuais,
Ed

Matemática e Biologia, Comunicação Social, Serviço Social, entre outros. Tem


experiência profissional na área de Psicologia Social, com ênfase em Serviço
Social; Políticas Públicas Sociais; Direitos Humanos; Controle Penal Juvenil e
ão

Violência Letal Juvenil; Saúde Mental e atendimento psicossocial. Atualmente


é docente na Faculdade dos Carajás pelo curso de Psicologia.
s

Andréa Chiesorin Nunes


ver

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Forma-


ção Humana (PPFH), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Bolsista CAPES. E-mail: andreachiesorin@gmail.com

Angélica Cabral Oliveira Alves


Acadêmica de Psicologia da Faculdade Católica Dom Orione (FACDO).
746

Anna Amélia de Faria


Psicóloga, Mestre em Comunicação (UNB). Doutora em Letras e Linguística
“Documentos da Memória Cultural” (UFBA). E Pós-doutoranda em Artes
Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (UNB). É Professora
Adjunta do Curso de Psicologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde

or
Pública (EBMSP). Professora do Mestrado Profissional Psicologia e Inter-

od V
venções em Saúde (EBMSP). Psicanalista. Área de atuação: psicanálise de

aut
orientação lacaniana.

Anna Karollina Silva Alencar

R
Possui Bacharelado e Licenciatura em Psicologia pela Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Goiás – UFG (2014), mestrado pelo Programa

o
de Pós-Graduação em Psicologia - PPGP da UFG (2018) e atualmente cursa
aC
doutorado no Programa de Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de
Brasília - Unb. É professora do ensino básico e do ensino superior, no curso

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de Psicologia. E-mail: alencar.2311@gmail.com.
visã
Antônia Maria Rodrigues Brioso
Professora de História da Escola de Aplicação da UFPA. Mestre em Ensino
de História e coordenadora do Projeto Cartografia da Cultura Afro-brasileira
itor

e Indígena da EA-UFPA. E-mail: antoniabioso@gmail.com.


a re

Areli Ferreira Vasconcelos


É mestranda pelo PPGEDUC - Educação e Cultura pela UFPA - Campus Tocan-
tins/Cametá, possui graduação em Pedagogia pela Universidade da Amazônia
par

(2006). Especialista em Gestão de Saúde Pública pela Universidade Federal do


Pará - UFPA e Universidade Aberta do Brasil - UAB. Foi Tesoureira do fundo
Ed

municipal de saúde de Baião da Prefeitura Municipal de Baião; é professora


titular da rede pública Municipal de Baião, já atuou na EJA. Atualmente lotada
na educação Infantil. Tem experiência na área de letramento em series iniciais,
ão

educação de jovens e adultos e experiência em gestão financeira e administrativa


de saúde pública. Atualmente, professora de educação básica, atuando no 3º ano
do Ensino Fundamental. É graduada em Licenciatura em Educação do Campo
s

-LEDOC/FECAMPO/ UFPA. Como pesquisadora, realiza pesquisa na área das


ver

políticas públicas educacionais voltadas à educação do campo e participa do


grupo de pesquisa GEPECAM- Grupo de Pesquisa em educação do Campo na
Amazônia. EMAIL: areli347@gmail.com FONE: 91 98894-0533.

Ataualpa Maciel Sampaio (Org.)


Possui graduação (1997) e mestrado (2005) em Psicologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Leciona Psicologia Social e Psicologia
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 747

Aplicada ao Direito no Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM).


Atua como psicólogo no Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF3),
realizando trabalhos com as equipes de saúde da família e com a população
por elas assistidas. Tem experiência e interesse de pesquisa nas áreas de
saúde mental e de modelos de atenção e de promoção à saúde.

or
od V
Ayumi Gabriela Domingues (Org.)

aut
Discente de Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

R
Bruna de Almeida Cruz (Org.)
Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em
Psicologia Clínica e Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia

o
da UFPA e atualmente doutoranda do mesmo programa. Psicóloga educacio-
aC
nal do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA),
Campus Belém, atua na Assistência Estudantil e na equipe multiprofissional do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Núcleo de Atendimento a Pessoas com Necessidades Específicas. É também


visã
membro da Comissão de Permanência e Êxito do IFPA, no Campus Belém.
Dedica-se à pesquisa sobre processos de medicalização da vida, práticas não
medicalizantes e a interface entre Educação e Saúde. É membro do Grupo de
Pesquisa em Educação Inclusiva (GPEI - NAPNE/IFPA). Participa também
itor

dos grupos de pesquisa InquietAções e Transversalizando, ambos vinculados


a re

à UFPA.

Bruno Jáy Mercês de Lima (Org.)


Possui graduação em Enfermagem pela Universidade do Estado do Pará
par

(UEPA) e graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).


É especialista em Estratégia Saúde da Família pela Universidade Federal de
Ed

Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e especialista em Educação


para Relações Etnicorraciais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnología do Pará (IFPA). Mestre e Doutor em Psicologia (PPGP-UFPA).
ão

Desenvolve pesquisas nas áreas de saúde pública, saúde mental, psicologia


social e psicologia política. Experiência em docência de nível técnico, supe-
rior e pós-graduação. Integrante do Grupo de Pesquisa Transversalizando. É
s

assessor parlamentar da Deputada Federal Vivi Reis (PSOL/PA).


ver

Caio Monteiro Silva


Doutor pela Universidade Federal do Ceará (2021) com foco para estudos
com relacionado à família. É Mestre em Psicologia pela Universidade Federal
do Ceará (2017). Gestalt-Terapeuta pelo Instituto Gestalt do Ceará - IGC;
Formado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2013). Foi colabo-
rador do Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade - LAPSUS.
748

Atualmente é Professor no curso de psicologia da Faculdade Ari de Sá (FAS),


é membro colaborador do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Inter-
venções em Psicologia Social Crítica (PARALAXE). Desenvolve trabalhos no
campo dos estudos Pós-Coloniais trabalhando com os temas: Epistemologia,
Ética, Família, Sociedade e Subjetividades Contemporâneas.

or
od V
Camila dos Santos Leonardo

aut
Mestranda em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES-UFC. Bolsista
CAPES. E-mail: camilasantosleonardo@gmail.com

R
Carla Jéssica de Araújo Gomes

o
Graduanda em Psicologia pela UFC. Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/
CNPq). Integrante do VIESES-UFC. E-mail: carlajessica.cjag@gmail.com
aC
Carlos Alberto Ferreira Danon

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia
visã
(1993) e mestrado em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do
Estado da Bahia (2005). Atualmente é professor titular do Centro Universitário
Jorge Amado.Professor assistente da Escola Bahiana de Medicina e Saúde
Pública - EBMSP. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em
itor

Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino


a re

fundamental, gestão escolar, diversidade cultural, democracia e psicologia.

Carlos Jorge Nogueira de Castro


Geógrafo. Universidade do Estado do Pará. E-mail: carlosjorge319@gmail.com
par

Carolline Septimio Limeira


Ed

Doutora em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina-


(UDESC) e Professora da Faculdade Estacio Castanhal
ão

Cleude Alcantara Alves Storch


Graduada em Pedagogia (2016) pela Faculdade Panamericana de Ji-Paraná.
s

Especialista em Supervisão, orientação e gestão escolar com ênfase em Psico-


ver

logia educacional. Especialista em Educação Infantil com ênfase em Psicolo-


gia educacional. Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia
na linha de pesquisa em “Psicologia Escolar e Processos Educativos” (2019).

Dagualberto Barboza da Silva


Mestrando em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES-UFC. Bolsista
CAPES: E-mail: dalgobarboza92@gmail.com
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 749

Daiane Gasparetto da Silva


Graduada em psicologia pela Universidade Federal do Pará, mestra e doutora
pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Pará. Realiza pesquisa sobre produção de subjetividade e modos de existência
nas cidades. Integrante do Grupo de Pesquisa Transversalizando, do Grupo de

or
Trabalho “Saúde Mental, Álcool e outras drogas” (CRP-10) e da Associação

od V
Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Em 2015, atuou como docente no

aut
Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR)
e, entre 2015 e 2017, como professora substituta na Faculdade de Educação

R
da Universidade Federal do Pará. Atua, desde 2019, como professora subs-
tituta do Departamento de Psicologia da Universidade do Estado do Pará e

o
como Psicóloga/Técnica em Gestão Penitenciária do Estado do Pará (SEAP).
Conselheira do CRP 10 - PA/AP. Possui experiência em artes, principalmente
aC
em dança contemporânea e composição de canções.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Daniel Castro Silva (Org.)


visã
Graduando em Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi
bolsista (PIBIC/CNPq) de Iniciação Científica (2018/2019). Atualmente
está como Bolsista Estagiário (PROBOLSA/UFPA) no projeto de extensão
itor

“Plantão Psicológico” da Superintendência de Assistência Estudantil


a re

(SAEST/UFPA). É integrante do Grupo Transversalizando, do Grupo de


Estudos na Abordagem Centrada na Pessoa (GEACP) e membro estudantil
da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Tem experiência
na área de Saúde Mental, Plantão Psicológico, Judicialização, Psicologia
Social e Política, Sexualidade, Michel Foucault, Carl Rogers.
par
Ed

Daniel de Castro Barral


Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília,
Brasil (2019).
ão

Daniel Sombra
Geógrafo. Universidade Federal do Pará. E-mail: dsombra@ufpa.br
s
ver

Daniele Vasco Santos (org.)


Professora Adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Tocan-
tins/UFT (Campus Miracema). Possui Graduação em Psicologia pela Uni-
versidade Federal do Pará/UFPA (2002). Mestra em Educação/UFPA (2009).
Doutora em Educação /UFPA (2017). Integra o Grupo de Pesquisa Trans-
versalizando: ensino, pesquisa-intervenção e extensão/UFPA. É associada
à Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) e à Associação
750

Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE). Foi docente na


Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará/UNIFESSPA e na Estácio-
-SEAMA/Amapá. Realiza estudos nos campos sobre Educação, Currículo
e Modos de Subjetivação, Políticas Públicas de Saúde Mental, Psicologia e
Relações Raciais. Atuou como psicóloga nos campos das políticas públicas de

or
saúde e da assistência social. Compôs a Comissão de Psicologia e Relações

od V
Raciais do Conselho Regional de Psicologia (CRP) 10º Região Pará/Amapá

aut
(2017-2019). Possui Formação em Processo Grupais pela Sociedade Brasileira
de Dinâmica de Grupos (SBDG).

R
David Coutinho
Graduando em Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA).

o
aC
Dhiânelly Santos Tolentino
Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Várzea Grande.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Dolores Galindo (Org.)
visã
Possui Pós-Doutorado (2015-2016), Doutorado (2006) e mestrado (2002) em
Psicologia Social pela Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), com
Doutorado Sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona (2004). Gra-
duada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em
itor

1999. Atua como Professora no Programa de Pós-Graduação em Estudos de


a re

Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso. Foi vice-


-coordenadora e posteriormente Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
(Mestrado e Doutorado) em Estudos de Cultura Contemporânea. Na gradua-
ção, atua como Docente lotada no Instituto de Educação da Universidade
par

Federal de Mato Grosso (2013-2014). Lidera o Grupo de Pesquisa Laboratório


Tecnologias, Ciências e Criação (LABTECC), desde 2010. Atua como docente
Ed

nos Programas de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea e em


Psicologia da UFMT. Como convidada, orienta no Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia e Sociedade da UNESP / Assis. Foi da Diretoria Nacional
ão

da Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO (2016-2017),


Conselheira Alterna da ULAPSI (2016-2017) e integrou a Coordenação da
Red Latinoamericana de posgrados em estudos sobre a cultura - ReLaPec
s

(2014-2016). Compõe o GT Conhecimento, Subjetividade, Práticas Sociais da


ver

ANPEPP. Foi Vice-Presidente da Regional Centro-Oeste da Associação Brasi-


leira de Psicologia Social - ABRAPSO (2012-2013) e Secretária (2014-2015).
É membro associado da ESOCITE.BR - Associação Brasileira dos Estudos
Sociais das Ciências e Tecnologias, da ABRAPSO - Associação Brasileira de
Psicologia Social e SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Coordenou a Comissão de Internacionalização do Fórum de Ciências Huma-
nas, Sociais e Aplicadas. Atua como Editora de Section of Athenea Digital:
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 751

revista de pensamiento y investigacion Social (UAB-Espanha) e integra o


corpo de pareceristas de diversos periódicos nacionais e internacionais. ID do
autor 23099606000. ID do ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2071-3967.
https://www.researchgate.net/profile/Dolores_Galindo.

or
Domenico Uhng Hur

od V
Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da

aut
Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral na Universidade Autô-
noma de Barcelona e pós-doutoral na Universidade de Santiago de Compostela
(USC), Espanha. Professor associado de graduação e do Programa de Pós-Gra-

R
duação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Membro do
Instituto Gregorio Baremblitt. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ-2) do

o
CNPq. Autor e organizador de diversos livros de psicologia política, entre eles:
aC
“Psicologia, Política e Esquizoanálise” (Hur, 2018) e “Psicologia dos extremis-
mos políticos” (Hur & Sabucedo, 2020). Possui um blog com seus textos: https://
domenicohur.wordpress.com/ e um canal no Youtube com seus vídeos e cursos:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

https://www.youtube.com/DomenicoHur.
visã
Edilson Mateus Costa da Silva
Historiador. Doutor em História Social da Amazônia (PPHIST/UFPA). Pro-
fessor da Secretaria de Educação do Pará (SEDUC-PA), integrante do pro-
itor

jeto Sistema Educacional Interativo (SEI). Integrante da equipe de Ciências


a re

Humanas e Sociais Aplicadas do Documento Curricular do Estado do Pará.


E-mail: emateushistoria@yahoo.com.br.

Emily Thainá Meneguzzo


par

Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Várzea Grande.


Ed

Enock da Silva Pessoa


Prof Dr em Psicologia/UFAC
ão

Érika Cecília Soares Oliveira


Professora do Departamento de Fundamentos Pedagógicos da Faculdade
de Educação na Universidade Federal Fluminense, tenho me encantado por
s

políticas de escritas feministas e epistemologias subalternas e contracoloniais


ver

que estão espalhadas em teorias, livros infantis, poemas, literatura. Acredito


em uma poética feminista que se ancora e desliza por nossas corpas e recria
mundos dentro e fora da universidade.

Fábio Henrique Martins da Silva


Fábio Martins CRP 06/146608, é psicólogo clínico e pesquisador em Psicolo-
gia e Sociedades, doutorando na UNESP Assis-SP (2020). Possui graduação
752

em Psicologia UNESP Assis-SP (2016) e mestrado acadêmico em Psicologia


e Sociedade UNESP Assis-SP (2018). Integrante do Grupo de Pesquisa Psi-
CUqueer - Coletivos, Psicologias e Culturas Queer (Unesp, Assis).

Felipe Vasconcelos de Sá

or
Discente da Universidade Federal do Pará, Faculdade de Ciências Sociais

od V
(FCS/UFPA).

aut
Fernanda Cristine dos Santos Bengio

R
Professora Adjunta na Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de
Altamira. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (2011)

o
e em Gestão de Órgãos Públicos pela Universidade da Amazônia (2006).
aC
Especialista em Psicologia Clínica. Doutora e Mestra em Psicologia (UFPA).
Possui experiência profissional no campo da Assistência Social (proteção

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


básica e especial), na clínica psicológica e educação. Interesses de pesquisa
no campo da Psicologia da Educação e Psicologia Social com os seguintes
visã
recortes: infância e juventude; assistência social; processos de territorialização;
patrimônio cultural; memória coletiva; e direito à cidade.
itor

Fernanda Teixeira de Barros Neta


a re

Psicóloga/UFPA. Mestre em Psicologia/UFPA. Doutora em Psicologia/UFPA.

Flávia Cristina Silveira Lemos (Org.)


Possui graduação em Psicologia/UNESP (1999). Pedagoga, Especialista em
par

Psicopedagogia Clínica e Institucional. Mestre em Psicologia e Sociedade/


UNESP (2003). Doutora em História Cultural/UNESP (2007). É professora
Ed

associada III, na Graduação e no Programa de Pós-graduação em Psicologia/


UFPA. Foi professora colaboradora no Programa de Pós-graduação em Edu-
cação/UFPA. Integrou a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal
ão

de Psicologia (2017-2019). Integrante do Fórum sobre Medicalização da Edu-


cação e da Sociedade. Coordena o Grupo: Transversalizando. Realiza estudos
s

sobre: Modos de subjetivação contemporâneos, práticas de medicalização


ver

e judicialização da vida; Psicologia, justiça e políticas públicas; Recepção


sócio-histórica de Michel Foucault no Brasil e Filosofia da diferença; Psi-
cologia, formação, epistemologia e história; Cidade, cultura e subjetividade;
Dispositivo clínico, saúde mental e direitos de crianças e adolescentes. Realiza
estudos sobre Deleuze, Foucault e Guattari, em Esquizoanálise, Filosofia da
Diferença e Arqueogenealogia.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 753

Flávia de Bastos Ascenço Soares


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia - PPGP da Universidade
Federal de Goiás (2018). Possui Licenciatura em Artes Cênicas pela Escola
de Música e Artes Cênicas - EMAC da Universidade Federal de Goiás - UFG
(2016). Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Católica de Goiás – PUC/

or
GOIÁS. É atriz, pesquisadora e produtora do LABORSATORI - Núcleo Mul-

od V
tidisciplinar de Pesquisa nas Artes da Cena. E-mail: flaviabasoares@gmail.com.

aut
Geana Baniwa
Psicóloga indígena, formada pelo Centro Universitário Fametro e mestranda

R
no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Amazonas. E-mail: geebatistaluciano@gmail.com.

o
aC
Geise do Socorro Lima Gomes (Org.)
Possui graduação em Formação em Psicologia pela Universidade Federal
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

do Pará (2008), graduação em Licenciatura em Psicologia pela Universi-


dade Federal do Pará (2008), graduação em Bacharel em Psicologia pela
visã
Universidade Federal do Pará (2007), mestrado em Psicologia - Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (2011)
e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Pará (2017). Tem
itor

experiência na área da Saúde Coletiva, atuando principalmente nas seguintes


a re

áreas e temas: política de saúde, clínica ampliada, sofrimento psíquico e for-


madora no Programa Saúde na Escola. Na Psicologia trabalha nas áreas da
Psicologia Social: trabalho forçado, Foucault, governamentalidade, biopoder
e formação em psicologia. Na pedagogia atua principalmente com os temas:
par

Psicologia da Educação, Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem,


Psicogênese. Atuou como conselheira no Conselho Regional de Psicologia
Ed

durante a gestão 2013-2016. Atualmente exerce a função de professora na


Faculdade de Pedagogia do Campus Castanhal/UFPA.
ão

Giovanna Marafon
Doutora em Psicologia - Estudos da Subjetividade (UFF), com pós-doutorado
em Educação (PUC-Rio). Professora da Faculdade de Educação da Baixada
s

Fluminense (FEBF) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas


ver

e Formação Humana (PPFH), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


(UERJ). E-mail: giovannamarafon@gmail.com

Hélder Côrrea Luz


Filósofo. Psicólogo/UFPA. Mestre em Desenvolvimento Sustentável/UFPA.
Doutorando em Psicologia/UFPA. Professor de Filosofia da SEDUC/PA.
754

Herculano Ricardo Campos


É graduado em Psicologia (1983) e possui Mestrado (1998) e Doutorado
(2001) em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Desenvolveu estudos pós-doutorais em Psicologia pela Universidade Estadual
de Maringá/PR. Atua na UFRN como Professor Titular, junto ao Departamento

or
de Psicologia e ao Programa de Pós-graduação em Psicologia. Desenvolve

od V
estudos, prioritariamente, na área de Psicologia Escolar e Educacional, mas

aut
também na Psicologia Social. Suas linhas de pesquisa são Práticas sociais e
educacionais com crianças e adolescentes e Psicologia e Educação na pers-

R
pectiva Histórico-Cultural.

Iara Flor Richwin

o
Psicóloga com experiência e atuação clínicas no campo da atenção e cuidado
aC
a usuários de drogas (CAPS-AD/GDF de 2011 a 2016), no sistema socioe-
ducativo para adolescentes em conflito com a lei do Distrito Federal (2008

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


- atual) e em consultório particular. Pesquisadora colaboradora do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da UnB, no qual realiza
visã
atualmente pesquisa de pós-doutorado sobre saúde mental de mulheres que
estão em situação de rua e de mulheres que fazem uso de crack. Doutora
(2017) pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da
itor

Universidade de Brasília em cotutela com a École Doctorale Recherches en


a re

Psychanalyse et Psychopathologie da Université Paris Diderot, onde tam-


bém realizou formação universitária complementar em “Adicções: clínica
dos riscos e dependências” (2015-2016) . Mestre (2010) pelo Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasí-
par

lia. Bacharel em Psicologia (2006) e Psicóloga (2007) pela Universidade


de Brasília. Dedica-se a pesquisas sobre os seguintes temas: psicanálise e
Ed

toxicomanias; a clínica com usuários de drogas; psicanálise e a prática clíni-


co-institucional e psicossocial com usuários de crack; psicanálise e a clínica
em situações de precariedade; a subjetividade em face da vulnerabilidade e
ão

exclusão social; dimensões sociopolíticas e culturais da constituição subjetiva


e dos sintomas e manifestações psicopatológicas; gênero e saúde mental; o uso
de crack por mulheres a partir da categoria analítica de gênero e sua relação
s

com as violências múltiplas e gendradas.


ver

Igor Monteiro Silva


Possui Doutorado em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Ceará (2015) e Pós-doutorado, na mesma instituição,
na área de Sociologia Urbana. Foi bolsista pelo FUNCAP durante o desenvolvi-
mento de seu mestrado. É formado em ciências sociais pela Universidade Federal
do Ceará (2006). É professor adjunto da Universidade da Integração Internacional
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 755

da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), no curso de Licenciatura em Sociologia,


compondo a área de Ensino de Sociologia e Estágio. Atualmente, é coordenador
do Núcleo de Estudos das Performances Culturais e do Patrimônio Cultural Ima-
terial (PERFORMARTE/UNILAB) e pesquisador do Laboratório de Estudos da
Oralidade (LEO-UFC). Entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019, foi coordenador

or
de área do PIBID Multidisciplinar “Sociologia e História” na UNILAB. Tem

od V
experiência e interesses de pesquisa nas seguintes áreas: ensino de sociologia,

aut
cidades, mobilidades, fronteiras, turismos, literatura de viagem e capoeira.

Iolete Ribeiro da Silva

R
Atualmente atua como docente titular na UFAM. É graduada em Psicologia
pelo Centro Universitário de Brasília (1990). Mestre em Psicologia (1998)

o
pela Universidade de Brasília e é doutora (2004) em Psicologia pela Univer-
aC
sidade de Brasília. Bolsista Produtividade CNPq. Docente no Programa de
Pós-Graduação em Educação - PPGE/UFAM e Programa de Pós-Graduação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

em Psicologia - PPGPSI/UFAM. Desenvolve pesquisas a partir da perspectiva


visã
crítica da Psicologia histórico-cultural abordando a constituição das subjeti-
vidades dos povos amazônicos, seus processos de desenvolvimento e inter-
relações com os processos educativos. Os temas de interesse são: aspectos
psicossociais da desigualdade e processos de transformação social; psicologia,
itor

movimentos sociais e processos de inclusão de grupos historicamente excluí-


a re

dos; interseccionalidade entre gênero e raça, preconceitos, violências, pro-


cessos de exclusão e manifestações de sexismo na escola e na Universidade;
a escola como espaço de constituição dos sujeitos; processos psicossociais e
culturais que permeiam as práticas e saberes acerca da realidade amazônica;
par

processos de desenvolvimento de crianças e adolescentes em contextos sócio


institucionais específicos; políticas públicas e a promoção de direitos humanos
Ed

à população amazônica.

Isadora dos Santos Alves


ão

Graduanda em Psicologia pela UFC. Bolsista de Iniciação à Docência (PID/


UFC). Integrante do VIESES-UFC. E-mail: isadora05@alu.ufc.br
s

Izane Flexa Santa Brigida


ver

Pós-graduanda em Neuropsicopedagogia Institucional e Clínica e Educa-


ção Especial pela Faculdade da Região Serrana- (FARESE) e Pedagoga pela
Faculdade Estacio Castanhal. 

Jaíne Daise Alves dos Santos


Acadêmica de Psicologia da Faculdade Católica Dom Orione (FACDO).
756

Jéssica Costa Veiga (Org.)


Arquiteta/UNAMA.

Jéssica Modinne de Souza e Silva (Org.)


Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP)

or
da Universidade Federal do Pará (UFPA) e graduada em Psicologia/Formação

od V
do Psicólogo pela mesma instituição. Atua como Professora Colaboradora na

aut
Universidade Federal do Pará (UEPA), no programa de aperfeiçoamento de
Filosofia e Direitos Humanos (CCSE). Foi docente dos cursos de Psicologia e

R
Educação Física (Bacharelado) da Faculdade Estácio Belém - Campus Nazaré
(Belém-PA); atuou como Coordenadora do Núcleo de Apoio e Atendimento

o
Psicopedagógico - NAAP da mesma instituição, através de atendimentos aos
docentes e discentes. Coordenou o grupo de estudos em gênero, sexualidade,
aC
raça, classe e território, chamado Ver-O-Gênero, também na mesma IES. Foi
educadora popular e psicóloga no Cursinho Popular da Rede EMANCIPA-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


-PA. Tem experiência e ênfase em Psicologia Social, Psicologia da Educação
visã
(PARFOR - ICA/UFPA), Psicologia(s) de base fenomenológicas, existenciais
e humanistas (Psicologia da Gestalt, Gestalt-terapia e Abordagem Centrada
na Pessoa) e estudos voltados para a Psicologia da Percepção, tanto na área
itor

de pesquisa, quanto na vivência em docência e trabalho em clínica. É pesqui-


a re

sadora do grupo de estudos Transversalizando (UFPA).

João Gabriel Soares


Mestre em Direito na linha de pesquisa Constitucionalismo, Democracia e
Direitos Humanos pelo PPGD/UFPA. Membro-pesquisador do Laboratório
par

em Justiça Global e Direitos Humanos na Amazônia (LAJUSA). Membro e


Ed

Diretor Científico da Liga

João Paulo Pereira Barros (Org.)


ão

Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação


em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenador do
VIESES-UFC: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão
s

Social e Subjetivação. Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: joaopau-


ver

lobarros@ufc.br

Joelma do Socorro Lima Bezerra (Org.)


Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (2013). Mestra
em Psicologia, pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia- UFPA (2018),
linha de pesquisa Psicologia, Sociedade e Saúde. Atuou como avaliadora do
Programa Nacional de Avaliação dos Serviços de Saúde (PNASS). Foi bolsista
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 757

de Apoio Técnico em Extensão no País (ATP/CNPq), em projeto realizado no


Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB). Servidora pública no
município de Abaetetuba/PA, como Psicóloga do Centro de Referência Espe-
cializado de Assistência Social (CREAS) 2016 - 2020. Cursando a Residência

or
Multiprofissional de Saúde em Oncologia, no HUJBB/UFPA.

od V
Juan de Araujo Telles

aut
Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio), mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica

R
da PUC-Rio, integrante do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção
Porta da Lembrança (PUC-Rio) desde 2016 e membro do Coletivo Nuvem

o
Negra. Foi bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq na PUC-Rio (2017-
aC
2019) e estudante bolsista no Programa de Educação pelo Trabalho do Minis-
tério da Saúde/PUC-Rio (2014-2015). Atualmente pesquisa sobre os efeitos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

psicossociais do racismo, descolonização, decolonialidade e produção de


saberes e práticas em Psicologia.
visã
Júlia Muniz de Alvarenga
Mestra em Psicologia - Estudos da Subjetividade (UFF). Doutoranda no Pro-
itor

grama de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH),


a re

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista CAPES E-mail:


juliamunizalvarenga@gmail.com

Juliana Maia
Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
par

Kamila Soares de Araújo Coimbra


Ed

Atualmente professora do ensino básico no Colégio Santa Cruz (TO).


ão

Kássya Christinna Oliveira Rodrigues


Docente na Universidade Federal do Oeste do Pará. Vice-líder do Grupo de
Pesquisa em Educação Especial e Processos Inclusivos e integrante do Núcleo
s

de Educação Popular Paulo Freire. E-mail kassyaor@gmail.com


ver

Késia dos Anjos Rocha


É feminista, anticolonial, aprendiz na arte de tocar tambor, depois de um encon-
tro afetuoso com o maracatu alagoano. Atualmente está doutoranda no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Vive, aprende e (des)aprende no campo dos estudos de gênero, sexualidades
e raça em diálogo com os pensamentos feministas, queer e contracoloniais. 
758

Larissa Azevedo Mendes (Org.)


Doutoranda em Psicologia-linha de pesquisa: Psicologia, Sociedade e Saúde -
Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Pará-UFPA. Mestra
em Psicologia- linha de pesquisa: Psicologia, Sociedade e Saúde-pela UFPA.
Possui Graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia-UNAMA.

or
Tem experiência na área da SAÚDE com ênfase em: CLÍNICA, ENSINO-

od V
-APRENDIZAGENS, PSICOLOGIA SOCIAL E EDUCACIONAL, atuando

aut
principalmente nos seguintes temas: Educação, Medicalização, Saúde mental,
Saúde Coletiva, Clínica ampliada, Psicologia Política e Social. Perspectivas
Foucaultianas e Modos de Subjetivação. Membro da Associação Brasileira

R
de Ensino de Psicologia-ABEP e da Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-graduação em Psicologia-ANPEPP. Participa do grupo de estudos, pes-

o
quisa e extensão Transversalizando UFPA/CNPQ. Atuou como conselheira
aC
no Conselho Regional de Psicologia 10ª Região e no Conselho Estadual da
Política sobre Drogas do Estado do Pará.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Larissa Fernandes Pereira
visã
Especialista em Educação Tecnológica (CEFET/RJ). Mestranda no Programa
de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista FAPERJ. E-mail:
itor

larissafpereira24@gmail.com
a re

Larissa Ferreira Nunes


Doutoranda em Psicologia na UFC. Bolsista FUNCAP. Integrante do VIE-
SES-UFC. E-mail: larissafnpsico@gmail.com
par

Lauany Câmara Chermont Pinheiro (Org.)


Psicóloga/UNAMA. Mestre em Psicologia/UFPA.
Ed

Luana Souza de Deus Neto Almeida


Graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia, Brasil (2017). Resi-
ão

dente de Psicologia da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará , Brasil.


s

Lúcia Maria Bertini


ver

Doutoranda em Psicologia na UFC, integrante do VIESES-UFC. E-mail:


lubertini.ce@gmail.com

Luciana Batista da Silva (Org.)


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho - Campus de Assis (1999) e mestrado em Psicologia - UNESP
- Faculdade de Ciências e Letras de Assis (2008). Atualmente é Pesquisadora
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 759

Doutoranda em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras - Unesp - Assis


e Professora Visitante no curso de pós-graduação da Universidade Paulista.
Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Processos Grupais
e de Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: criança,
adolescente, políticas públicas, brasil (estatuto da criança e do adolescente)

or
e perspectiva social.

od V
aut
Luciana Lobo Miranda
Doutora em Psicologia pela PUC-RJ, com estágio doutoral no Programa de
Ciência da Educação em Paris 8, França; Pós-Doutorado no Programa de

R
Psicologia Social Crítica e Personalidade pela City University of New York
(CUNY), EUA (Bolsa CAPES). Professora associada do Programa de Pós-gra-

o
duação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Vice-coorde-
aC
nadora do PPG-Psicologia UFC. Coordenadora do Laboratório em Psicologia,
Subjetividade e Sociedade (LAPSUS). E-mail: lobo.lu@uol.com.br
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Lucimar Rosa Dias


visã
Professora da UFPR. Doutora pela USP, Mestra pela UFMS. Coordenadora
do ErêYá Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação para as Relações
Étnico-Raciais/UFPR. http://lattes.cnpq.br/3476684741346049 http://orcid.
itor

org/0000-0003-1334-5692
a re

Luiz Augusto Pinheiro Leal


Pós-doutor em Antropologia Social pela UFSCar. Doutor em Estudos Étni-
cos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Professor Associado da
par

Universidade Federal do Pará. Coordenador do Grupo de Pesquisa História


em Campo (GHISCAM).
Ed

Luiz Guilherme Araújo Gomes


Doutor e Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Mato
ão

Grosso. Especialista em Teoria e Clínica Psicanalista e Graduado em Psico-


logia, ambos pela Universidade de Cuiabá. Professor do curso de Psicologia
do Centro Universitário de Várzea Grande.
s
ver

Madson José Nascimento Quaresma


Geógrafo. Universidade do Estado do Pará. E-mail: madsonqua@hotmail.com

Marcela de Toledo Piza Costa Machado


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Forma-
ção Humana (PPFH), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Bolsista CAPES. E-mail: marcela.toledo.machado@hotmail.com
760

Marcelo Calegare
Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Psicologia Social
(IP-USP). Pós-doutorado no PGPDE/UnB (2020-2021). Professor adjunto
da Faculdade de Psicologia (FAPSI-UFAM) e professor permanente no Pro-
grama de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI-UFAM). Membro do GT

or
Psicologia Comunitária da ANPEPP. E-mail: mcalegare@ufam.edu.br

od V
aut
Marcelo Moraes Moreira
Graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia (1995), pós-gradua-
ção lato sensu pela Universidade Católica de Brasília (2009) e Mestrado em

R
Psicologia Social e Clínica pela Universidade Federal do Pará (2013). Tenho
boa capacidade para falar em público e boa experiência como palestrante.

o
Sou professor do ensino superior, com experiência de docência nos cursos
aC
de Psicologia, Farmácia, Nutrição, Fisioterapia, Odontologia, Enfermagem,
Direito, Educação Física e Administração. Também dou aulas na Pós-Gra-
duação lato sensu nas áreas da Educação, Saúde e Engenharias. Já tive a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


oportunidade de assumir a Coordenação do curso de Psicologia por quase 03
visã
anos numa IES, onde pude aprender muito nas minhas relações com o corpo
docente e discente. Atualmente, estou na Coordenação do Curso de Psicologia
da Faculdade Estácio Belém, além da docência nesse curso. Sou Psicanalista
em formação, vinculado ao Círculo Psicanalítico do Pará - CPPA
itor
a re

Marck de Souza Torres


Doutorado em Psicologia Clínica na PUC-RS em 2019 com foco para a vio-
lência sexual. É Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB em 2014.
Graduação em Formação do Psicólogo pela UFAM no ano de 2007. Professor
par

Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade


Federal do Amazonas. Líder do Grupo de Pesquisa em Contextos Clínicos
Ed

e Avaliativos certificado pela Universidade Federal do Amazonas no CNPq.


Experiência como docente em cursos de graduação e pós-graduação de psico-
logia. Tem experiência nas áreas de: vitimização de violência sexual, trauma,
ão

avaliação psicológica, intervenção e avaliação em psicologia clínica e psico-


patologia, adaptação cultural de instrumentos psicológicos.
s

Maria Eduarda de Pinho Oliveira (Org.)


ver

Graduação em andamento em Psicologia na Universidade Federal do Pará,


UFPA, Brasil. Possui experiencia em Psicologia

Maria Helena Zamora


Mestra e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. É Profa. Associada do
Depto. de Psicologia da PUC-Rio. Professora convidada da National/Global
Advisory Board for Faith and Justice in Community and Society, Indiana,
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 761

USA, entre 2011 e 2015. Iniciou cooperação com o Instituto de Psicologia


Cognitiva, Desenvolvimento Vocacional e Social, de Coimbra, em 2012. Em
2017 é pesquisadora convidada da linha de pesquisa “Acolhimento e inclu-
são de jovens em risco” do IPCDHS/FCT, Univ. Coimbra e consultora do
Laboratório de Intervenção na Comunidade (LInC). É Vice-coordenadora

or
do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS da

od V
VRC/PUC-Rio) desde 2006. Em 2010, foi Coordenadora Adjunta do ProU-

aut
nir, Protagonismo Universitário e Empoderamento Profissional e SEPPIR
e consultora em 2011. Foi docente do Mestrado em Psicologia Social na
UNIVERSO entre 04/2010 e 08/2012. Atuou nas pós-graduações lato sensu

R
em Psicologia Jurídica: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-
2007 a 2011), Universidade Potiguar (UnP- 2007 a 2009) e Universidade da

o
Amazônia (UNAMA - 2009 a 2011), além de ser professora convidada da
aC
Especialização em Teorias e Práticas Transdisciplinares e Violência: Direito,
Educação e Saúde, da FUNEMAC (Fundação Educacional de Macaé - 2007
a 2009), do Curso de Espec. em Segurança Pública, Cultura e Cidadania da
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

UFRJ e Ministério da Justiça (2007 a 2011), Especialização em Psicologia


visã
da Saúde da PUC-Rio (2007 a 2011). Participou do Projeto Justiça Juvenil
da ABMP (Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e
Defensores Públicos da Infância e Juventude), de 2008 a 2009. Foi consultora
do Projeto ?Oficinas de Capacitação em Gestão de Risco? da organização
itor

Médicos Sem Fronteiras, de 2008 a 2009. Foi sócia da ABRAPSO (Associação


a re

Brasileira de Psicologia Social) por cinco anos. Membro da ANPEPP desde


2012 e atualmente no GT GT Psicologia e Relações Étnico-Raciais. É mem-
bro do corpo editorial e consultora de diversas revistas e editoras científicas
nacionais e internacionais. É membro da CEDECA-RJ (Centro de Defesa
par

dos Direitos da Criança e do Adolescente) desde 2012. Foi colaboradora do


CRP-5 (Conselho Estadual de Psicologia) em 2009- 2010 e 2014-2015 e
Ed

Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos em 2019. Colaboradora do


Núcleo Interdisciplinar de Memória, Subjetividade e Cultura (NIMESC) da
PUC-Rio, entre 2014 e 2015. Pesquisadora associada do Núcleo Interdiscipli-
ão

nar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA) da PUC-Rio, desde


2015 e do Núcleo Transdisciplinar Subjetividades, Violências e Processos
de Criminalização (TRANSCRIM) da UFF, entre 2016 e 2019. Membro da
s

Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura RJ, como suplente do


ver

Movimento MOLEQUE de 2015 a 2018. Membro do Conselho Consultivo do


Instituto de Cidadania e Direitos Humanos, fundado em 2017, MG. Membro
do Comitê de Prevenção de Homicídios de Adolescentes da UNICEF em
02/2019, passando a integrar o Comitê de Ética em 08/2019. Coordenadora
da Comissão de Dirs Hs do Conselho Regional de Psicologia - RJ em 2019.1.
Docente nas pós-grs Psicologia Hospitalar e da Saúde e Psicologia Junguiana,
Arte e Imaginário em 2017, Práticas Contemplativas e Mindfulness desde
762

2019 e da Pós-graduação em Crianças, Adolescentes e Famílias do MPRJ


desde 2019. Membro da Cátedra Sergio Vieira de Melo do ACNUR/ONU, da
PUC-Rio, desde 2017. A partir de atividades em 2016, institui-se em 2020 o
intercâmbio com a Universidade Federal do Tocantins (UFT). Pesquisadora
convidada da rede de pesquisa SPPREAD International (Social Pedagogy,

or
Practice Research and Development International) sobre socioeducação, com

od V
membros no Reino Unido, Dinamarca e Brasil, desde 01/2018, Profa. de

aut
Especialização em Psicologia Organizacional em 2020 e Fellow convidada
da rede internacional de pesquisa ASARPI (Institute for the Advanced Study
of African Renaissance Policies Ideas), também em 2020, com membros de

R
vários países africanos.

o
Maria Ivonete Barbosa Tamboril
aC
Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Departamento de Psicologia
(DEPSI). Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI). Grupo Ama-
zônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação (GAEPPE)

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


E-mail institucional: ivonetetamboril@unir.br
visã
Marilda Gonçalves Dias Facci
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá
(1986), mestrado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio
itor

de Mesquita Filho (1998); doutorado em Educação Escolar pela faculdade


a re

de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP (2003) e Pós-doutorado pelo


Instituto de Psicologia da USP e Pós-Doutorado na Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. É professora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Foi Professora Visitante na
par

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, no período de 2019 a 2021 e


atualmente é professora senior no Programa de Pós-Graduação de Psicologia
Ed

nesta instituição. Atualmente tem Bolsa de Produtividade em Pesquisa pelo


CNPq. Foi coordenadora do GT de Psicologia da Educação da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação - ANPEd no período de
ão

2010-2013, é Editora Geral da Revista Psicologia em Estudo e da Revista Psi-


cologia Escolar e Educacional , membro do Grupo de Trabalho de Psicologia
Educacional da ULAPSI e Presidente Anterior da Associação Brasileira de
s

Psicologia Escolar e Educacional-ABRAPEE. Atualmente atua na diretoria da


ver

ABRAPEE, ocupando o cargo de presidente eleita. Foi coordenadora do GT


de Psicologia e Políticas Educacionais da Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Psicologia - ANPEPP, no periodo de 2016 a 2018. Foi
coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Estadual de Maringa nos seguintes períodos: 2006-2010, 2014-2016, 2018-
2019. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do
Ensino e da Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas:
psicologia histórico-cultural, educação, psicologia escolar.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 763

Marina Oliveira
Graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA).

Mário Nunes Nascimento Neto (Org.)


Graduando em Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA).

or
od V
Maurício Rocha Cruz

aut
Guaduado em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(2001). Mestrado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2006).

R
Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2016). Pro-
fessor Adjunto IV do Instituto Nacional de Educação de Surdos onde a partir

o
de 2007 atuou/atua no Departamento de Ensino Superior, em seu Colegiado,
em comissões e grupos de trabalhos, como Procurador Institucional (INES-
aC
-MEC), como Pesquisador Institucional (INES-INEP), como Coordenador
da Pesquisa Sinalizando a Educação (concluída), como Desenvolvedor do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

AVA Sinal Aberto (DESU), como professor na graduação e na pós-graduação,


visã
em orientações de TCC, como Desenvolvedor e Coordenador do Projeto de
Extensão Ambiente Virtual de Pesquisa (AVP), como Coordenador da Pes-
quisa Observatório Professor de Surdos, como Líder do Grupo de Pesquisa
itor

Interinstitucional Formação de Professores (de) Surdos, etc.


a re

Melina Navegantes Alves (Org.)


Graduada em Psicologia da Universidade Federal do Pará (2022). Bolsista PIBIC
- Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - CNPq no projeto
“Práticas de judicialização da criança e adolescentes nos documentos do UNI-
par

CEF de 2000 a 2015”(2019-2020, 2021-2022); experiência na área de Psicologia


Ed

da Saude - atuando na Atenção Básica a partir do projeto Multicampi Saude


da Criança 2019/2020 -, escutas terapeuticas em escolas públicas - a partir do
projeto de extenção “Atensão Psicológica ao Adolescente: promoção de saúde
ão

e prevenção de riscos a partir da escola”(2017-2019) -; rodas de conversas com


adultos, crianças e adolescentes - a partir do projeto de extenção “Psicologia nas
Ruas” (2019) -; e pesquisa de campo em CAPS de Belém - a partir do projeto de
s

pesquisa “Práticas integrativas e complementares em saúde: uma pesquisa-in-


ver

tervenção em saúde mental em Belém” (2019-2020). Atuou na coordenação do


Centro Acadêmico de Psicologia Nise da Silveira (2018-2020) e da ABRAPSO
(Associação Brasileira de Psicologia Social) – Núcleo Belém (2019). Principais
interesses acadêmicos estão na Psicologia Social, Psicologia da Saúde, Psicologia
Comunitária, Reforma Psiquiátrica, Políticas Públicas e Saúde Coletiva.
E-mail para contato: melinanavegantesalves@gmail.com
764

Michel Renan Rodrigues de Andrade


Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Bolsista FUNCAP. Mestre em Psicologia pela Uni-
versidade de Fortaleza (UNIFOR). Graduado em Comunicação Social com
ênfase em Jornalismo pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Membro

or
do Laboratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS). E-mail:

od V
michel_renan84@hotmail.com

aut
Michelle Villaça Lino
Doutora e Mestra em Políticas Públicas e Formação Humana, pelo Programa

R
de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde realiza estágio de

o
pós-doutoramento. E-mail: mvlino@gmail.com
aC
Milena Silva Lisboa

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (2005),
mestrado e doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade
visã
Católica de São Paulo (2008), com bolsa CNPq em ambos os projetos de
pesquisa. Foi contemplada com bolsa de doutorado sanduíche (CNPq) na
Universitat Autònoma de Barcelona, Espanha, por um ano. Tem experiência
itor

na área de Saúde Mental, é pesquisadora no Grupo de Pesquisa Psicologia,


Diversidade e Saúde (Coordenado pela Profª. Drª. Mônica Ramos Daltro) e
a re

participa remotamente do Grupo Fractalidades en Investigación Crítica (UAB),


coordenado pela Profa. Dra. Marisela Montenegro (UAB) e pelo Prof. Dr.
Joan Pujol (UAB) e do Grupo LAICOS - IAPSI, coordenado pelo Prof. Dr.
Lupicínio Iiguez Rueda (UAB). É professora da graduação de Psicologia da
par

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e de cursos de pós-graduação


(especialização) na área de Saúde Mental em diversas faculdades de Salvador.
Ed

Monalisa Pontes Xavier


Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade Federal do Rio dos
ão

Sinos. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uni-


versidade Federal do Piauí (UFPI) e do Curso de Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Delta da Parnaíba (UFDPar). Coordenadora do
s

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Comunicação, Identidades e Subjetividades


ver

(NEPCIS. E-mail: monalisapx@yahoo.com.br

Mônica Ramos Daltro


Doutora em Medicina e Saúde Humana, pela Escola Bahiana de Medicina
e Saúde Pública (EBMSP). Possui graduação em Psicologia pela Universi-
dade Federal da Bahia (1986). Psicanalista com consultório particular desde
1986. Professora titular do curso de psicologia da Bahiana e do programa de
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 765

Pós-graduação em Medicina e Saúde Humana na EBMSP e coordenadora e


docente do Mestrado Profissional em Psicologia e Intervenções em Saúde.
Com experiência docente em psicologia e sociedade contemporânea, pesquisa
qualitativa em saúde e, psicologia médica. Membro da diretoria da Associa-
ção Brasileira de Psicologia da Saúde e da Diretoria ampliada da Associação

or
Brasileira de Educação (ABEP). Membro da Asociácion Latinoamericana

od V
para Lá Formación y Enseñenza de la Psicologia (ALFEPSI), Membro do

aut
Conselho do Instituto Brasileiro de Oftalmologia e Prevenção à Cegueira
(IBOPC). Pesquisadora da interface psicologia, saúde e educação. Atualmente

R
investiga a saúde mental e suas interfaces no campo formação de profissionais
e de práticas em contexto do SUS (sofrimento psíquico, questões de gênero,
luto, relação profissional de saúde-paciente). Vice-líder do Grupo de Pesquisa

o
Psicologia, Diversidade e Saúde (CNPQ), no qual coordena a Linha de Pes-
aC
quisa: Formação e Práticas de Profissionais de Saúde. Editora Científica da
Revista Psicologia Diversidade e Saúde.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
Niamey Granhen Brandão da Costa
Mestra em Psicologia Clínica e Social (UFPA), Doutoranda no Programa de
pós-graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento (UFPA) e Especia-
lização em Docência do Terceiro Grau pela União das Escolas Superiores do
itor

Pará. Atualmente é professora Assistente II da Universidade Federal do Pará


a re

(UFPA).

Oberdan da Silva Medeiros


Cientista social, doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação
par

PPGED da Universidade Federal do Pará, Campus Guamá e professor efetivo


do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Pará.
Ed

Otávio do Canto
Geógrafo. Universidade Federal do Pará. E-mail: odocanto@gmail.com
ão

Paula Arruda
s

Pós-Doutora pela Universidade de Duisburg-Essen (Alemanha). Doutora em


ver

Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestra em


Instituições Jurídico-políticas pela Universidade Federal do Pará. Professora
da Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará,
com ênfase em Direito Constitucional e Direitos Humanos. Coordenadora
do Laboratório de Justiça Global e Educação em Direitos Humanos na
Amazônia (LAJUSA).
766

Paula Pamplona Beltrão da Silva (Org.)


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia na
Universidade Federal do Pará - Linha de pesquisa: ética, trabalho e sociabili-
dades (2020 -) - Bolsista CAPES. Graduanda em Psicologia na Universidade
Federal do Pará (2019 -). Advogada. Especialista em Direito Tributário pela

or
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2013). Bacharel em Direito

od V
pela Universidade da Amazônia (2010).

aut
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Especialista, Mestre e Doutor em Saúde Pública, pela Escola Nacional de

R
Saúde Pública (ENSP). Professor Adjunto III da Faculdade de Psicologia e do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará

o
(UFPA). Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará
aC
(1988), Mestrado em Saúde Pública - Ensp (1998) e Doutorado em Saúde
Pública - Ensp (2005). Atualmente é professor Associado II da Universidade

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Federal do Pará. Tem experiência na área de Saúde Coletiva e Psicologia,
em que atua nos seguintes campos do conhecimento: saúde do trabalhador,
visã
sofrimento psíquico, análise institucional, política de saúde e monitoramento
e avaliação. É membro da Abrasco-Associação Brasileira de Saúde Coletiva
e Diretor da Rede Unida. Participa do Conselho Editorial da Revista Saúde
itor

e Debate e é membro do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde - CEBES e


membro do GT da ANPPEP de Psicodinâmica do Trabalho. É Coordenador
a re

da Rede Unida/ Região Norte e Coordenador do Programa de Pós-Graduação


da UFPA. E-mail: pttarso@gmail.com

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (Org.)


par

Psicólogo; especialista em Psicologia Jurídica; mestre e doutor em Psicologia.


Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Ed

vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia e ao Programa de


Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bolsista de pro-
dutividade em pesquisa (CNPq).
ão

Raimundo Erundino Santos Diniz


Historiador. Doutor em Ciências Sócio-Ambientais. Professor Permanente
s

do Programa de Mestrado Profissional do Ensino de História- PPGEH/PRO-


ver

FHISTORIA/UNIFAP. Professor Adjunto da Universidade Federal do Amapá


(UNIFAP). E-mail: derundinosantos@yahoo.com.br

Reginalva do Socorro Ribeiro Colares


Graduanda em Psicopedagogia Institucional Clínica e Educação especial pela
Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI) e Pedagoga pela Faculdade
Estacio Castanhal.
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 767

Renata de Godoy
Professora adjunta do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Univer-
sidade Federal do Pará (IFCH/UFPA), Faculdade de Ciências Sociais (FCS),
Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) e Programa de Pós-
-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU).

or
od V
Renata Vilela Rodrigues (Org.)

aut
Mestra em Estudos de Cultura Contemporânea, pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT). Graduada em

R
Psicologia, também pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professora
do curso de Psicologia do Centro Universitário de Várzea Grande.

o
Robenilson Moura Barreto (Org.)
aC
Psicólogo, Psicanalista. Especialista em Educação Especial e Inclusiva. Mestre
pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Pará (PPGP-UFPA). Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatolo-


visã
gia Fundamental da Universidade Federal do Pará (LPPF/UFPA). Coordenador
da Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadoras (es)
(ANPSINEP) – Região Norte. Atualmente docente de Psicologia na Faculdade
itor

Católica Dom Orione (TO). E-mail: robenilsonbarreto@hotmail.com


a re

Sara da Silva Pereira


Professora da Rede Municipal de Educação de São José dos Pinhais Pinhais.
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação/UFPR, Mestre
em Educação (UFPR) Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucio-
par

nal, Psicomotricidade e Mídias Integradas na Educação http://lattes.cnpq.


Ed

br/5831959237508025 https://orcid.org/0000-0002-5825-3532

Shirle Rosângela Meira de Miranda


ão

Mestrado em Administração pela Universidade da Amazônia, Brasil (2014).


Psicóloga da Comissão de Direitos Humanos do Assembleia Legislativa do
Estado do Pará , Brasil.
s
ver

Simone Maria Hüning


É docente e pesquisadora no Instituto de Psicologia da Universidade Federal
de Alagoas (UFAL), bolsista PQ CNPq. Tem conduzido seus estudos em
diálogo sobretudo com mulheres que inspiram e propõem epistemologias
anticoloniais, feministas e antirracistas, buscando aí as referências éticas,
estéticas e epistemológicas para a pesquisa em psicologia social e para a vida.
768

Stefania Cardoso Brito


Acadêmica de Psicologia da Faculdade Católica Dom Orione (FACDO).

Sthefany Monteiro Salazar Ataide


Acadêmica de Psicologia da Faculdade Católica Dom Orione (FACDO).

or
od V
Suzane Bandeira de Magalhães

aut
Possui Graduação em Formação de Psicólogo (UFBA), Mestre em Família
na Sociedade Contemporânea (UCSal) e Doutora pela (EBMSP). Leciona na

R
Escola Baiana de medicina e saúde pública (EBMSP) no curso de Psicologia
e participa do curso de Pós-Graduação como professora da Faculdade Rui

o
Barbosa e no Mestrado em Psicologia e Intervenções em Saúde da Bahiana.
Atualmente é coordenadora do Serviço de Psicologia do Hospital Aristides
aC
Maltez. É membro fundadora da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar.
É co-autora do livro “Diretrizes para assistência Interdisciplinar em câncer

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de mama”, realização da SIS -Senologia International Society (2012/2013).
visã
Thaís Seltzer Goldstein
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia
itor

(FACED-UFBA). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa EPIS: Educação, Polí-


tica, Indivíduo e Sociedade: leituras a partir da Pedagogia, da Psicologia e da
a re

Filosofia. Membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.

Thiago Colmenero Cunha


Psicólogo; pedagogo; mestre em Psicologia. Professor da Universidade Santa
par

Úrsula. Discente do curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em


Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista CNPq.
Ed

Valeska Maria Zanello de Loyola


Possui graduação em Filosofia e Psicologia (UNB), e Doutora em Psicolo-
ão

gia (UNB) com período sanduíche de um ano na Université Catholique de


Louvain (Bélgica). Professora Associada 1 do departamento de Psicologia
s

Clínica da Universidade de Brasília (UNB). Foi coordenadora do programa de


ver

Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPSICC/UNB) de agosto


de 2019 a março de 2021. Orientadora de mestrado e doutorado no Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPG-PSICC). Coordena
o grupo de pesquisa “Saúde Mental e Gênero” (foco em mulheres) no CNPq.
Foi representante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher (SPM) e no GEA (Grupo de Estudos do Aborto) no
período de 2014 a 2016. Membro do Grupo de Estudos Feministas (GEFEM)
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E SOCIOLOGIAS INSURGENTES:
tramas históricas em educação libertária – v. 16 769

da UnB. Participou do TEDx Universidade de Brasília com o talk “Por que


xingamos homens e mulheres de formas diferentes?” e do Pint of Science/
Brasília com a fala “Por que as mulheres sofrem tanto no amor? Uma análise
psicossocial”. Gravou o (vídeo aula) ORIENTAPSI, do Conselho Federal de
Psicologia, sobre o tema “Saúde Mental e Gênero”. Blog do grupo SAÚDE

or
MENTAL E GÊNERO: https://saudementalegenero.wordpress.com/

od V
aut
Yohanna Gomes de Souza Almeida
Estudante de Pedagogia na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense

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(FEBF), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista de
Iniciação Científica - CNPq. E-mail: yohannagsa@gmail.com

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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