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Jan/feV/mar 2005 1
sumário ExpeDiente
carioquice DIRETOR
Ricardo Cravo Albin
Nº 4 JAN/ FEV/ MAR 2005 DIRETORA-ASSISTENTE
Maria Eugênia Stein
EDITOR RESPONSÁVEL
Luiz Cesar Faro
É som, é sal, é mar EDITOR GERAL
4 Êta viola ensolarada! Sérgio Costa
EDITORA EXECUTIVA
14 O samba de cara nova Vera de Souza
REPÓRTER
18 MPB de A a Z Kelly Nascimento
ARTE
Paula Barrenne de Artagão
Pitaco FOTOGRAFIA
Adriana Lorete & Marcelo Carnaval
20 Millôr à Vera PRODUÇÃO GRÁFICA
Ruy Saraiva
REVISÃO
Marcus Neves
Magia do olhar CAPA
Foto de Adriana Lorete
22 A gênese da fantasia
32 Fragmentos de um cenário solar CONSELHEIROS E AMIGOS DE CARIOQUICE
Ì Afonso Arinos de Mello Franco Ì Marcílio Marques Moreira
Ì Amaro Viana Ì Marcos Faver
Ì Ana Arruda Callado Ì Maria Beltrão
Ì Anna Letycia Ì Mário Priolli
Saga carioca Ì
Ì
Boni
Chico Caruso
Ì
Ì
Martinho da Vila
Nélida Piñon
Ì Cícero Sandroni Ì Neville d’Almeida
38 Liberdade, seu nome é Moreyra Ì Eva Mariani Ì Noca da Portela
Ì Everardo Magalhães Castro Ì Octávio Melo Alvarenga
48 E Lan criou a mulata Ì Francis Hime Ì Oduvaldo de Azevedo Braga
Ì Henrique Luz Ì Olívia Hime
Ì Jaguar Ì Oscar Niemeyer
56 Madureira chorou Zaquia Ì Jerônimo Moscardo Ì Paulinho da Viola
Ì João Maurício Ì Paulo Fernando Marcondes
de Araújo Pinho Ferraz
60 Memórias de um cafajeste Ì Joaquim Ferreira dos Santos Ì Paulo Roberto Direito
Ì Jorge Goulart Menezes
Ì José Louzeiro Ì Philip Carruthers
Ì Lan Ì Raphael de Almeida
Ì Lélia Coelho Frota Magalhães
Cidade maravilhosa Ì
Ì
Leonel Kaz
Lilibeth Monteiro de
Ì
Ì
Rosiska Darcy de Oliveira
Ruy Castro
Carvalho Ì Verônica Dantas
68 A sétima maravilha do Rio Ì Lucy Barreto Ì Vivi Nabuco
Ì Luiz Antonio Viana Ì Wagner Victer
Ì Ì Wanderley Guilherme
74 Carnaval é uma espécie de mediunidade Ì
Luiz Carlos Barreto
Luiz Cesar Faro dos Santos
Ì Lula Vieira Ì Zelito Viana
66 Ì Marcelo Carnaval Ì Ziraldo
Editores da Carioquice – Para começar: você teve propôs um encontro. Foi uma empatia total.
mesmo um Corcel cor de mel? (risos) Fizemos um trio e tocamos em alguns progra-
Marcos Valle – Não! (risos) Na verdade, nem mas de televisão, eu no piano e os dois no
existia. Era para rimar. Só que a Ford, por cau- violão. Isto foi em 1962. Por intermédio do Edu
sa do sucesso da música, lançou mesmo um fui levado à minha primeira reunião na casa de
modelo desta cor. Mas nunca me deram nada, Ary Barroso. Nem acreditei! Chegamos lá e
não! estavam o Ary e toda a trupe: o Carlinhos Lyra,
Rober to Menescal, Baden Powell, Lúcio Ran-
Editores da Carioquice – E como foi o início na gel, Ronaldo Bôscoli...
música?
Marcos Valle – Meu pai é advogado, mas mi- Ricardo Cravo Albin – Foi ali que se tirou a céle-
nha avó era professora de piano e minha mãe bre foto do encontro do Ary Barroso com a Bos-
tocava. Antes de escutar samba, escutava sa Nova.
baião e aprendi acordeão por causa disso. Eu Marcos Valle – Foi exatamente nessa tarde! É uma
tinha estudado com o Edu Lobo no Colégio foto clássica! Todo mundo em escadinha... Fi-
Santo Inácio. Um dia reencontro o Edu, ele com quei ali no meio, de fã ardoroso. Era muito tími-
um violão na mão. Falamos sobre música, ele do! Não ousei tocar, fiquei ouvindo, ouvindo, me
disse que era muito amigo do Dori Caymmi e deliciando com aquilo...
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Ricardo Cravo Albin
6 Carioquice
minha alma canta
Marcos Valle
Henrique Luz
Eva Mariani
Ricardo Cravo Albin – Os grandes nomes eram teceu! O Tamba Trio vai gravar nossa música”.
Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, Menescal, Tom, Foi uma loucura.
Vinicius e João Gilberto.
Marcos Valle – Sim, e fomos a segunda gera- Ricardo Cravo Albin – E como surgiu o trabalho
ção. Depois, na casa do Vinicius, teve uma se- com o Tom?
gunda reunião. No final da noite peguei o vio- Marcos Valle – Um dia o Menescal, que também
lão e toquei. O Lula Freire, filho do senador foi uma pessoa maravilhosa para o início de mi-
Vitorino Freire, disse que eu tinha de tocar na nha carreira, me levou à gravadora Odeon. O di-
casa dele para o Tamba Trio. Ele tinha cer teza retor era o Milton Miranda. Toquei minhas músi-
de que eles gravariam minha música. Achei que cas e, quando terminei, o Milton disse: “Olha,
ele estava louco... Uma semana depois, teve o aqui ninguém vai gravar as músicas!” Pensei que
encontro. Chegaram Hélcio, Luizinho e Bebeto não tinha agradado. “É você quem vai gravar! Va-
e disseram: “Olha, menino, o Lula disse que mos assinar um contrato”. E ainda completou:
você tem uma música, vamos ouvir, mas o dis- “Quem tem de fazer os arranjos é o Tom Jobim”.
co tá cheio!” Quando toquei “Sonho de Ma- Parecia que eu estava vivendo um sonho! Fui à
ria”, eles disseram que tiravam qualquer mú- casa do Tom. Ele foi maravilhoso comigo. Ouviu
sica para incluí-la... Fingi que ia ao banheiro, as músicas e perguntou: “Você tem essas músi-
corri para o telefone e liguei para o Paulo Sér- cas escritas?” “Não!”, eu disse. “Mas por que
gio: “Cara, você não vai acreditar no que acon- você não escreveu?” “Porque não sei escrever!”
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minha alma canta
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A musa Duda Cavalcanti
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No estúdio, em 1965 Com Eumir Deodato, em 1967
minha alma canta
Fotos de divulgação do
disco Samba 68, em 1967
Ricardo Cravo Albin – E o Zelão tocou? Eva Mariani – E a música “Não confie em nin-
Marcos Valle – Tocou! O Ray deu um abraço nele, guém com mais de trinta”? Como você encara
deu força... isso hoje?
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Marcos Valle – Naquela época, a gente estava muito lá em casa. Um dia tem um show do Dori
falando que os que tinham mais de trinta anos, no Mistura Fina, e ele faz questão de convidar
trinta cruzeiros, trinta conselhos, ou eram aque- minha mãe. No meio do show o Dori diz: “Bom,
les milionários que não estavam ligando pra nin- Dona Lizelote, quero lhe fazer uma confissão.
guém ou aqueles que vinham cheios de conse- Pedir desculpas por aquele dia em que derramei
lhos para a garotada, se achando os donos da guaraná no seu piano.” Eu digo: “Mas não foi o
verdade. Hoje, depois de ler um artigo da Mar- Osmar Milito?” “Não, fui eu!” Isto tudo no meio
tha Ribeiro sobre a música, vejo que ela somou do show, um diálogo completamente doido!
ao que queríamos dizer. Ou seja, depois dos trin-
ta a gente vai ficando tão tranqüilo, tão pondera- Editores da Carioquice – Você tem essa paixão
do, que não procura mais a novidade, a paixão. pelo Rio, isso está claro na sua música. Mas
você tem umas três ou quatro fases nos Esta-
Henrique Luz – O Dori Caymmi, há dois ou três dos Unidos?
anos, no Mistura Fina, elucidou uma injustiça de Marcos Valle – A primeira vez estive a convite do
mais de trinta anos... Sérgio Mendes. Foi interessante, mas com um
Marcos Valle – É verdade... Tenho até hoje um ano encerrei. A segunda foi quando o “Samba
piano que minha mãe me deu há quarenta anos. de verão” estourou. Surgiram todos esses pro-
É um Petrov. Ali todo mundo tocava. Tom, Beth gramas de TV e achei importante aproveitar. A
Carvalho. O Dori ia muito lá com o Jorge Amado, terceira ida, uma permanência ótima, que nunca
amigo do papai. Só que um dia derramaram entendi como consegui ficar tanto tempo, foi em
guaraná no piano, e já no dia seguinte as teclas 1975. Fiquei cinco anos. Estava casado com mi-
colaram. Deu um trabalho monumental. Sempre nha segunda mulher, e chateado com o ambiente
achei que tinha sido o Osmar Milito, outro que ia político, as músicas sendo censuradas. Fiquei
mais tímido no palco ainda, a não querer cantar.
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minha alma canta
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É com esses que eu vou
A Lapa de hoje tem um quê da Praça Onze no Teresa Cristina e Grupo Semente
início do século passado. Lá o samba reina ab-
soluto. E se o revitalizado reduto da boemia ca-
rioca fosse um filme, a trilha sonora seria entoa-
da pela voz de Teresa Cristina. Das apresenta-
ções “descompromissadas” nas noites de sá-
bado no Bar Semente, a moça tímida do subúr-
bio se viu eleita figura-símbolo da nova geração
do samba. Não pode negar que teve sua parcela
de culpa ao cantar com tanto esmero o repertó-
rio de Paulinho da Viola.
Teresa e o samba se reencontram graças à
melodia de um disco de Candeia, “Samba de
roda”, que seu pai colocava para ela ouvir quan-
do era criança. Os ouvidos, acostumados a mui-
ta música estrangeira, se voltaram àquela sono-
ridade diferente. “Redescobri esse disco aos 26
anos. Foi um choque cultural. Ouvi e me apaixo-
nei”, recorda. De Candeia veio a inspiração para
se arriscar no mundo do samba. Pesquisou as
raízes do ritmo e sua evolução ao longo do tem-
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Sururu na Roda
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É com esses que eu vou
mas de televisão, onde era apresentada como cluiu até uma banda que só tocava os hits ame-
fenômeno do cavaquinho. ricanos das décadas de 60 e 70. Mas a tônica
A ligação da parceira Camila com a música sempre foi a música brasileira, da Bossa ao rock
também vem da infância. Só que não era bem dos anos 80. O contato aprofundado com sam-
samba o que ela ouvia. “Lá em casa sempre se ba, choro e maxixe só se daria ao conhecer Nilze.
escutou música brasileira em geral. Cresci ao som O momento não poderia ser mais propício: a
de Elis, Tom, Nara Leão”, diz. A paixão pela dança Lapa ganhava novos bares onde a principal atra-
ajudou a aprimorar o gosto musical. “Aos dois ção seria a música ao vivo de qualidade.
anos comecei a fazer balé e tive a sorte de ter Logo surgiu uma oportunidade para tocar
aulas com uma professora que tocava piano”. numas dessas casas. Escolheram um nome às
Acabou trocando as sapatilhas pelo violão. “Pe- pressas para produzir material de divulgação.
guei emprestado o violão do meu irmão e nunca Na correria, alguém sugeriu “Sururu de Capote”
mais larguei!”, relembra. As feições de meninas e todos aceitaram. “As pessoas ligavam para o
da dupla não tem nada a ver com falta de expe- Empório 100 para confirmar se era o Sururu de
riência. Aos 14 anos Camila já cantava e tocava Capote que ia mesmo se apresentar. A gente
profissionalmente na noite. estranhou um número tão alto de reservas. Só
Também tendo passado por vários estilos depois caiu a ficha que o nome, que soava fami-
musicais antes de chegar ao samba, o que in- liar, era da antiga banda do Djavan”, Camila se
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Teresa Cristina e Grupo Semente Sururu na Roda Pagode Jazz Sardinha’s Club
diverte contando. Substituíram o “capote” pela capacidade de transformação é que faz o sam-
“roda” – numa alusão ao ritmo que é o carro- ba ser a ponta-de-lança da música brasileira”,
chefe do grupo – e estava resolvido o problema. define. Para ele, a roda de samba que eles fa-
Mas nem só de Teresa Cristina, Nilze e Camila zem hoje está diretamente ligada àquela que Tia
vive a Lapa. A rapaziada do Pagode Jazz Ciata organizava na Praça Onze. “Nossa missão
Sardinha’s Club também cumpriu essa etapa é trazer esse espírito de mistura e ousadia ao
“obrigatória” da nova geração: tocou no bairro cenário da música. É a metamorfose que nos faz
por dois anos, atraindo semanalmente cerca de eternos”, sentencia.
mil pessoas para o Rio Scenarium. O grupo foi A missão nem sempre é fácil. E às vezes ta-
criado em 1997, mas a dobradinha Eduardo lento e juventude não bastam. Prova disso é que
Neves-Rodrigo Lessa vem de outros tempos. São nem todos se sentem à vontade para se procla-
amigos de adolescência, quando começaram a mar sambista. “Prefiro não me rotular de nada.
compor juntos. “Encontrei o samba na porta de Sou apenas uma amante de música brasileira”,
casa, pelos bares da Zona Sul”, conta Eduardo. diz a modesta Teresa, explicando que os gru-
Já Rodrigo, que começou a tocar bandolim aos pos de samba de sua geração às vezes se acham
16, se define como parte de uma das camadas em meio a um fogo-cruzado. “Sei que há quem
da nova geração que se interessou pelo choro. conteste nossa legitimidade por não sermos cria
Formou-se em Economia mas atendeu ao cha- direta de escola de samba. Somos novos no
mado da música. samba, mas a herança vem de muito tempo e
A sonoridade singular, marca registrada do aprendemos com ela”, completa.
grupo, é fruto da fusão de ritmos como samba, Gaiato, Eduardo Neves afirma que seu estilo
choro, funk e jazz. “A visão brasileira é antropo- musical é o “pagode-jazz”, para depois se defi-
fágica. Nossa mistura vem daí”, teoriza o econo- nir como sambista. Já Nilze não se incomoda tan-
mista do samba. O “pagode” deles refere-se ao to: “daqui a pouco me rotulam de outra coisa.
sentido original da palavra – uma festa, reunião Vou acumulando títulos”. Enquanto Camila se diz
de pessoas em torno de uma música – esqueci- orgulhosa de fazer parte dessa nova geração.
do em tempos de incursões paulistas no samba. “Sou carioca, o samba é a cara do Rio. É muito
Na concepção de Rodrigo, o samba é o obje- bom poder provar que o samba não é estático.
to direto ideal para dois verbos: manter e mu- É isso que a gente comprova”, defende. Alguém
dar. É este último que ele prefere conjugar. “A ainda duvida?
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sopa de letrinhas
mpB de a a z
Finalmente a Constituição de todas as canções. De quebra,
movimentos musicais, compositores e histórias sem fim. A MPB
ganhará seu primeiro dicionário impresso, resultado de parceria entre
os institutos Cultural Cravo Albin (ICCA) e Houaiss. É a versão “real” do
Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira, hoje disponível
somente no mundo virtual, no endereço www.dicionariompb.com.br.
É como se fosse um duo de pandeiro e ca- e, em especial, pela MPB – foram responsá-
vaquinho. O encontro de Ricardo Cravo Albin, veis pela aproximação dos dois dicionaristas.
autor da idéia e presidente do ICCA, e Francis- “Vínhamos germinando esse sonho há quase
co Melo Franco, que dirige o Instituto Houaiss, dois anos”, conta Cravo Albin, que se encarre-
foi fundamental para a realização do projeto. gará da supervisão do trabalho.
Interesses em comum – a paixão pela cultura A parceria, com a qualidade de um dicioná-
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