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AS MARGENS DO AMARELO

PERCURSOS ATÉ O UBUNTU DA EMANCIPAÇÃO


23 de maio de 1958

Quando puis a comida o João sorriu.

Comeram e não aludiram a cor negra do feijão.

Porque negra é a nossa vida.

Negro é tudo que nos rodeia.

Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p.43


Carolina, espero que meu pequeno trabalho, que provavelmente em nada irá ajudar a diminuir os sofrimentos que você passou e tantos passam hoje, incida pelo
menos sobre mim e meus próximos, com o fim de mudar milimetricamente toda essa sociedade que foi responsável pelo seu sucesso e depois, esquecimento.

A fome é amarela, e ela dói, você dizia. Hoje, 60 anos depois, o amarelo ganhou novos significados, como o amarelo para Emicida. Ele é um artista, como você, e
a carrega tatuada no braço. Você se tornou referência para muita gente. Você se transformou em uma simbólica canalização de forças, que propulsiona os que
tentam mudar as raízes que foram fincadas há tantos séculos, mas que os frutos, podres, perseguem até hoje os que correm pelo certo.

Vou te contar um pouco mais sobre o presente. O Emicida transformou o amarelo em um símbolo de amor. Queria que você estivesse viva para poder ter esse
significado em mente também. Você, que dizia que o país só mudaria quando fosse governado por alguém que conhecesse a fome... Bom, aconteceu. E o Brasil
saiu do Mapa da Fome... Acho então que essas pessoas puderam começar a enxergar a beleza nas flores amarelas, nas casas amarelas, no pôr do sol amarelo...

Ah Carolina, mas ainda tem gente que passa fome. E que sofre. E que é violentado apenas por causa de sua cor. Se olhar por esse lado, passo a preferir que você
descanse em paz onde estiver. Como disse Gabriela, uma arquiteta e urbanista da Bahia que fez uma tese inteira de doutorado sobre você, ser jovem, negro, pobre
e morar na periferia, é estar ali, colado com a morte. Não é fácil. Há dois anos tivemos uma vereadora do Rio de Janeiro que foi assassinada por defender apenas
os direitos dos favelados! O nome dela era Marielle Franco.

Existe muita gente hoje que luta pra melhorar essa vida. Mas é difícil, porque são muitos pesos para carregar, e forças contrárias que fazem de tudo para as
coisas não mudarem. Como você pode ver, várias “Carolinas”, sejam homens ou mulheres, conseguiram ter uma casa de alvenaria no Brasil até agora, como Dona
Jacira, mãe de Emicida. E são eles, os que puderam ver o amarelo de outra forma, que estão pelas ruas tentando mudar as coisas, junto à outros, que mesmo
nunca tendo visto o amarelo da fome tentam lutar pelo que é justo e direito... Mas é preciso mais, sabemos. Estamos nas margens do amarelo, sendo esse, um
longo caminho até o ubuntu da emancipação.

Até um dia , Larissa


às Carolinas, Emicidas e
Donas Jaciras desse Brasil
PARTE 0: INTRO
(É NECESSÁRIO
VOLTAR AO COMEÇO)
Pra quem já mordeu um cachorro por
comida, até que eu cheguei longe...

[...]

Século XXI, progresso, olha de novo irmão

Cê vai ver que os preto ainda tão, na rua,


no gueto e na prisão

Sem saber se são, regra ou exceção

Todo mundo é igual, e ainda assim, nóiz tá


fora do padrão

Emicida - Intro (É necessário voltar ao começo)


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TREMEMBÉ, onde fica
o Jd Fontalis

O encerramento da história de
Carolina Maria de Jesus e o início
da de Leandro Roque de Oliveira é
separada por oito anos. A escritora
e poetisa faleceu em 1977, em seu
sítio em Parelheiros, extremo Sul de
São Paulo. Já Emicida, nasceu e foi PAR E
LHE I R O S
criado no Jardim Fontalis, norte da ZO NA S U
cidade. Cerca de 52km separam seus JD F L D
ON E SP
lugares finais e iniciais de vivência. Um percurso que TALIS
hoje equivale a 11h40min a pé - meio de transporte ZO
N
tão “natural” para Carolina - ou 3h15 de transporte A NOR TE
DE SP
público meio tão conhecido pra Emicida, depois de
tantos corres, desde o início da carreira em busca do
reconhecimento, vendendo sua mixtape à R$2,00 pelas
ruas de São Paulo, participando da Rinha de MC’s e das
Batalhas da Santa Cruz.

PARELHEIROS, onde
fica o sítio de Carolina
10 11
As diversas marcas da estrutura escravocrata,
racista e colonialista da sociedade brasileira
são transversais à história de Carolina, que
nasceu apenas algumas décadas após Já Emicida, tem sua trajetória marcada
a abolição da escravidão. Assim como por outro momento da história brasileira,
sua adolescência é marcada pelos já marcado pela redemocratização, e a
latentes movimentos migratórios partir dos anos 2000, fomento à cultura
em busca de melhores condições popular, saída do Brasil do mapa da
econômicas para sobrevivência, fome elaborado pela ONU, e diminuição
a idade adulta da autora é dos níveis de pobreza. Entretanto, não é
transpassada pelo movimento possível falar que não existe mais fome, racismo, segregação
modernizador do país, onde e diversos outros tipos de marginalização dos corpos negros.
crescimento exponencial da “Ser jovem, negro, pobre e morar na periferia,
SACRAMENTO,
pobreza e de concentração é estar ali, colado com a morte”
MINAS GERAIS
de renda estão de onde Carolina (Pereira, p.20). Todos
encontro com o nasceu, por volta esses problemas
surgimento das de 1914 continuam.
primeiras favelas,
e movimentos
de espoliação
e segregação
cada vez
maiores nas
cidades.

12 13
PARTE 1: O
PRIMEIRO TOM DE
AMARELO
Favela do Canindé
0 25 50

9
S A,

CA
DE C O A
AR LINA, RU

A
21 de maio de 1958
Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa
residivel, tinha banheiro, cozinha, copa, e até quarto de criada. Eu ia festejar o
casa de carolina aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito
rua A, número 9 ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para
comer. A tolha era alva ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e
salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na
cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas.

16 Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p.39 17


20 de julho de 1955
[...]
Já que não posso dar aos meus filhos uma casa
decente para residir, procuro lhe dar uma refeição
condigna.
13 de maio de 1958
[...]
Que deus ilumine os brancos para que
os pretos sejam feliz.
Continua chovendo. E eu tenho só
feijão e sal. A chuva está forte.
M
L A, E DÓI U IT Mesmo assim, mandei os meninos
RE O
para a escola. Estou escrevendo
A

.. .
até passar a chuva, para eu ir lá no
AM

senhor Manuel vender os ferros. Com


FOME É

o dinheiro dos ferros vou comprar


arroz e linguiça. A chuva passou um
pouco. Vou sair.

, A ... Eu tenho tanta dó dos meus


S O U N E GRA filhos. Quando eles vê as coisas de
comer eles brada:
- Viva a mamãe!
A manifestação agrada-me. Mas já perdi o
hábito de sorrir.
Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p. 22 e 30
18 19
[...] tive que penar pra aprender
- Minha mãe trabalhava de empregada
Que minha mãe não ia poder tá lá pra me ver crescer
doméstica, a gente não tinha grana pra
Tinha que trabalhar pra ter o que comer
nada. À tarde, o que tinha pra comer
Não ver seu filho aprende a falar, essa porra deve doer
eram dois pães, que a gente cortava
Aguentar madame mandar e ter que acatar
no meio e cada irmão comia metade.
Ainda ouvindo o bairro sussurrar: Você sabe, mãe solteira é o que?
Um dia eu tava comendo e vendo TV, e
a Afrodite veio e comeu num bocado
[...]
só. Fiquei puto, puxei ela aqui e dei uma
Eu vi minha mãe, me jogar dentro do guarda-roupa trancado
mordida nela. Aí comecei a refletir:
Era o lugar mais seguro, quando a chuva levou os telhado
caralho, que situação foda, você morder
E dizia: Não se preocupa, chuva é normal
um cachorro porque ele comeu o único
Já vi o pior disso aqui, ver o bom hoje é natural
pedaço de pão que você tinha. Graças
Emicida - Ooorra
a Deus virou piada, mas foi foda. Por isso
eu coloquei na capa do disco.

Emicida em entrevista para Trip, 2011

Emicida, Katiane,
Afrodite (cachorra),
Evandro e Dona Jacira

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PARTE 2: A FAMA E
A FOME
Com a fé de quem olha do banco a cena
Do gol que nós mais precisava na trave
A felicidade do branco é plena

A pé, trilha em brasa e barranco, que


pena
Se até pra sonhar tem entrave

A felicidade do branco é plena


A felicidade do preto é quase...

Olhei no espelho, Ícaro me encarou


“Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles num ‘guenta te ver livre,
imagina te ver rei”
O abutre quer te ver de algema
pra dizer
“Ó, num falei?”

Emicida (feat. Larissa Luz e Fernanda


Montenegro) - Ismália

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Enquanto mulher, negra, pobre,
moradora de favela, a escritora
Carolina Maria de Jesus poderia ter
sido mais uma dentre os tantos
indivíduos invisibilizados que de
tão “desqualificados” pela [...]
sociedade sequer poderiam ser
“considerados” cidadãos. Um
corpo-sujeito tão “ilegal”
E vou por aí, Taleban
quanto o território que
habitava. Pois Carolina Vendo os boy beber
escapa e inventa um
outro lugar. Essa
Dois mês de salário da minha irmã
invenção se expressa pela
construção de um discurso Hennessys, avelãs, camarins, fãs,
que, redigido como diário e
publicado em fragmentos
globais
- ao qual se segue Mano, onde eles tavam há dez
uma produção ainda anos atrás? (Pois é)
pouco conhecida [...].
Uma narradora
imprevista, de um lugar Showbiz como a regra diz,
improvável, cujo discurso lek
soa estranho.
A sociedade vende
Gabriela Leandro Jesus, por que que não ia
26 Pereira, 2019, p.25 vender rap? 27
O mundo vai se ocupar com seu cifrão
Dizendo que a miséria é quem carecia de atenção...

Emicida (feat Pitty) - Hoje Cedo

Apesar das tentativas de não sucumbir às críticas e


da insistência em publicar suas obras, Carolina veria os
críticos e o público condená-la ao esquecimento. Os
desentendimentos com seu “descobridor” Audálio Dantas
(bem evidente no prefácio de seu segundo livro, Casa de
Alvenaria 1961); a desqualificação de sua capacidade
literária pela imprensa; a falência e o endividamento
de quem, em boa parte da vida, teve como
referência comercial o escambo de mercadorias
catadas no lixo; a instauração da ditadura militar
e o consequente acirramento da censura com
o AI-5,foram fatores que contribuíram para
o desfecho de sua história. Sem conseguir
se sustentar na “sala de visitas”, Carolina
falece em 1977, pobre, em uma chácara
na periferia de São Paulo.

Gabriela Leandro Pereira, 2019, p. 35

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PARTE 3: O
SEGUNDO TOM DE
AMARELO
A voz da minha bisavó ecoou
criança nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
Vozes-mulheres
Conceição Evaristo
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Há 10 anos, eu estava na Cachoeira, na
Associação, há um ano estudando diáspora africana,
Eu escrevia peças e apresentava para os diretores de entendendo a mim mesma, corrompendo o sistema.
circos. Eles respondia-me: 10.639, Gilberto Gil no Ministério da Cultura... Agora era lei:
os professores teriam que respeitar e contr as histórias afro
- É pena você ser preta. indígenas descendentes nas escolas. Era lei.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o Grandes questionamentos internos meus: “era preciso
meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro alisar cabelo?”. Está pergunta saiu de mim quando vi os
mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelos lindos das mulheres negras, que eu conhecia, a todo
cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o momento. Não, não era, mas o cabelo era meu, eu que
cabelo de branco, é só dar um movimento que fizesse do meu jeito, SOU LIVRE. E creiam, quando decidi
já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe largar pra lá escovas quentes e sodas cáusticas... Além de
reincarnações, eu quero voltar sempre preta. me achar mais bonita, ganhei tempo e sobrou dinheiro pra eu
conseguir levantar o alicerce da casa em que vivo hoje. Na
Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, p. 64 conta de noves fora, cada escova levava 4 sacos de cimento
e, junto, o sonho de ter uma casa de alvenaria.

EMICIDA. Reflexão para Leandro (Só isso) - Dona Jacira. In: Antologia inspirada no
universo da Mixtape Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu
34 cheguei longe... Laboratório Fantasma, LiteraRUA. 2019, p.55-56 35
Os meninos me disseram : “Mãe, a gente precisa se abraçar mais.
A gente precisa se beijar mais. A gente precisa se amar mais e
[...] entendemos que a urgência de Carolina dizer que se ama”. “E você precisa continuar criando, precisa
em escrever é a urgência de quem quer se viajar pra ver que o mundo não é ruim como nos dizem, tirando
inscrever no mundo, de quem quer deixar nele seu os fdps que tem em todo lugar, o mundo é bom”. “A senhora já
legado de forma “oficial”. De quem quer acessar ouviu falar numa escritora chamada
os códigos e entrar na cidade pela porta da frente, Carolina Maria de Jesus?”
não só pela porta dos fundos de um quarto de Eu disse: “Não ouvi, mas acho que é tarde
despejo. pra mim, não sei escrever!”. Hoje dou
risada da trava que meu subconsciente
Gabriela Leandro Pereira, 2019, p. 38
me empunhava. Eu iria escrever meu
livro, fazer exposições pelo Brasil e
ter a oportunidade de falar para
o mundo parar de maltratar as
crianças. Eu iria escrever, enfim,
sobre a fumaça do Café da minha
mãe.
EMICIDA. Reflexão para Leandro (Só isso) -
Dona Jacira. In: Antologia inspirada no universo
da Mixtape Pra quem já mordeu um cachorro por
comida, até que eu cheguei longe... Laboratório
36 Fantasma, LiteraRUA. 2019, p.57
37
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir

Emicida- AmarElo

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[...] enquanto houver amor
Eu mudarei o curso da vida
Farei um altar para comunhão
Nele eu serei um com o mundo
Até ver o ubuntu da emancipação
Porque eu descobri o segredo que me faz humano
Já não está mais perdido o elo
O amor é o segredo de tudo
E eu pinto tudo em amarelo

Emicida (feat Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira, Pastoras do Rosário) - Principia

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Elaborado para a disciplina de Desenho Urbano e Projeto dos
Espaços da Cidade e para a disciplina de Projeto da Paisagem, pela
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

por Larissa Gabrille da Silva Hiratsuka

Julho de 2020

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