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Nº 1

R$

R$ 4,00
do preço
de capa
vão para o
vendedor.

1
EXPEDIENTE
EDIÇÃO 1 – NÚMERO 1

Hamilton de Holanda – conterrâneo torto, pródigo

cidade que hoje se cala à noite, do prazer de tocar


Gente que conquista o direito à cidade por meio

de eventos no Plano e nas Satélites inspiram um


novo convívio entre as quadras e para além dos

e prodigioso – fala da Brasília onde cresceu, da

pelo mundo e sobre seus caprichos e os de seu


de arte, cultura e entretenimento. Produtores
Ocupações

Entrevista

instrumento: o bandolim.
monumentos.
Diretor de Redação:
André Noblat
Subeditora:
Fábia Pessoa
Chefe de Redação:
José Rezende Jr.
Repórter:
Marcus V. F. Lacerda
Estagiários:
devana babu e Marcela Lemgruber
Coordenador de Fotografia:
Bento Viana
Fotógrafa:
Thaís Mallon
Projeto Gráfico:

08 18
Fermento Promo
Diretores de Criação:
Cheo Gonzales e Carlos Grillo
Diretor de Arte:
Luciano Crispiniano
Designer Gráfico:
Vinícius Veríssimo
Assistente de Arte:
Gabriel Junqueira
Produtora Executiva: 06 | CÓDIGO DE CONDUTA
Chaia Dechen
Coordenador das Ações Sociais: 07 | POUCAS E BOAS
Alexandre Rangel
Coordenadora Administrativa:
Michelle Cano
25 | AGÁ-TETÊ-PÊ
Coordenadora de Distribuição:
Tahiana Oliveira 28 | ÁGUA E ÓLEO
Coordenador do Conselho Editorial:
Reinaldo Gomes
Foto da capa:
Bento Viana

4
Mirian Leitão
“Especiais são essas mães” - um testemunho

26
da força de mulheres diante das deficiências

30 | 3x4
físicas e mentais dos filhos e como elas não
se esmorecem e nem se apagam.

48 | BUTECO
47 | MIUDINHO

56 | MOVIMENTE-SE
Instantes
Com uma câmera na mão e a bordo de um

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helicóptero, Bento Viana mostra a cidade
incrustada no cerrado como se fosse vista por
janelas abertas nas nuvens. Nesta edição de
Traços, o fotógrafo apresenta fotos inéditas
da capital vista do alto de seu mar: o céu.

Toca Raul
Música em foto e vice-versa. Scalene e
o seu rock bem ajambrado em peso e
melodia. E o hip hop rico, despojado e
sinuoso do oiteto Ataque Beliz.

44/65

65 | HOLOFOTE
58 | RASCUNHO

60 | É OUTRA HISTÓRIA
Orla
Paranoá: a trajetória de poça ingrata a
50 potencial balneário democrático. O lazer nas
margens transformadas em praias pelo povo
do DF, que enfim descobre o lago a despeito
de seu passado poluído.

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Traços é um projeto de reinserção de pessoas em situação de rua na sociedade. Por meio
de uma publicação cultural de alta qualidade, geramos renda aos nossos beneficiários. Dos
R$ 5 que você paga pela revista, R$ 4 ficam para o vendedor, que chamamos de Porta-Voz da
Cultura, e R$ 1 é usado por ele para comprar outra revista e ampliar ainda mais a sua renda.

O Código de Conduta estabelece a ética e a moral pelos quais os evolvidos na Traços,


principalmente os Porta-Vozes da Cultura, se comprometem a viver:

1. Não praticar o uso de linguagem racista, sexista, homofóbica ou


Código de Conduta
ofensiva e reportar à equipe de acompanhamento quando presenciar
este tipo de comportamento.

2. Não praticar atos agressivos ou violentos contra o público ou


qualquer integrante da Traços e seus parceiros.

3. Em hipótese nenhuma o Porta-Voz poderá oferecer a revista bêbado


ou sob influência de drogas ilícitas.

4. Não brigar por ponto de venda com outros Porta-Vozes da Traços ou


com outras pessoas que ganham a vida nas ruas.

5. Não pedir qualquer tipo de doação enquanto usa o crachá ou uniforme


de identificação da Traços.

6. Não usar o nome do projeto para pedir qualquer coisa para o público.

7. Não vender edições atrasadas sem informar ao leitor.

8. Não pedir um valor superior ao estipulado na capa da revista.

9. Não trabalhar acompanhado por criança.

10. Não oferecer nem vender outros produtos ou serviços nos pontos
de vendas estabelecidos pela Traços.

Solicitamos que tais ocorrências sejam comunicadas à Griô, pelo telefone (61) 3033 4541.

Todos os vendedores são maiores de 18 anos, selecionados e treinados pela Griô Produções
ou por instituições parceiras. São portadores de identificação, que deverá ser usada em
local visível. O vendedor que não conseguir vender todos os exemplares da revista poderá
trocá-los gratuitamente por quantidade igual de edições novas.

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POUCAS E BOAS
POR ANDRÉ NOBLAT {noblat@traços.com.br}

Uma nova oportunidadeOlá!


Estamos chegando.
Sou um Porta-Voz da Cultura;
Fui criado pelo mundo;
Não tive a mesma infância que você;
Não tenha medo de mim;
Não me julgue, me conheça.
Acredite em mim!
Me enxergue com outros olhos.
Não quero ajuda, quero reconhecimento.
Queremos abrir seus olhos para a cultura de Brasília.
Hoje estamos divulgando a cultura.
Amanhã posso fazer cultura, ser a cultura!
A única coisa que a gente PEDE é que você leia mais.

Assinam essas frases:


Adelcio Santos, Adriano Oliveira, Alex Barbosa, Ana Paula Fernandes, Anderson
Barbosa, Antônio Carneiro, Carlos Lima, Carlos Macedo, Anderson Ventura, Daniel
Dutra, Davi Santos, David Cavalcante, Deusete França, Diego Rodriguez, Diego Leão,
Edimundo Rocha, Edinaldo Mendes, Eduardo Souza, Elenílson Santo, Elione Ferreira,
Evanílson Silva, Geovane Santos, Helton Oliveira, Iago Dutra, Izael Filho, Jairo Santos,
Jean Lima, Joabe Santos, João Filho, Jonatas Santos, José Silva, José Santos, José
Nascimento, José Pinto, Jucélio Oliveira, Keli Silva, Luis Silva, Luis Santos, Maicom
Ferreira, Marcelo Reis, Marcos Andrade, Odair Souza, Pablo Gonçalves, Raimundo
Nascimento, Reinaldo Carvalho, Ricardo Silva, Rodinei Oliveira, Rogério Araújo,
Wanderson Marques, Valdecir Santos, Werler Mendes, Aílton Silva, Amanda Assis,
André Souza, Bruno Costa, Fabiano Ribeiro, Fabio Oliveira, Fabrício Silva, Francisco
Silva, Hamilton Silva, Thiago Costa, Yuri Lopes, Alexsandro Santos, Angelisia Silva,
Maria Santos, Nelson Sales, Paulo Rosa, Reginaldo Aureliano, Rubens Fernandes,
Silmar Rigueira, Thiago Almeida e Valdique Silva.

Pessoas em situação de rua que hoje se despem da invisibilidade e se vestem de Porta-


Vozes da Cultura. Eles estarão nos lugares de sempre: em bares, restaurantes, centros
comerciais, pontos turísticos. Mas, ao invés de pedir ajuda, esmola ou piedade, vão te
vender uma revista, vão divulgar a cultura da nossa cidade. Cultura que, às vezes, também
é invisível aos olhos de alguns, mas que existe, insiste e resiste.

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Ocupações
Brasília finalmente tomada, com arte e
cultura, pelas pessoas que vivem a cidade

Por José Rezende Jr.

O sociólogo e historiador norte-ame- e concreto. Incrustadas em automóveis


ricano Richard Sennett veio a Brasília e autarquias, as pessoas são ilhas.
e não gostou do que viu. “É bonita,
mas fiquei horrorizado. As pessoas Pura ilusão de ótica. O deserto de car-
não se relacionam!” tão postal ganhou vida. Aprendeu a
conviver com outra invasão, promovida
O planejador do transporte urbano de não pela especulação imobiliária ,mas
San Francisco (EUA), Patrick Gough, pelo seu oposto.
visitou a cidade na época da Copa e teve
pena de nós. “Eu me sinto mal pelas pes- A convite de artistas e produtores cul-
soas que vivem aqui e estão tão isoladas turais, brasilienses saem cada vez mais
umas das outras!” de seus blocos. Rompem os limites da
superquadra, ocupam as áreas públicas.
À primeira vista, ao olhar estrangeiro, Pisam – com rebeldia e carinho – a grama
Brasília lembra um arquipélago de solidão às margens do concreto que já rachou.

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9
Foto: Bento Viana
Esqueça a cidade meio monumento/ livremente sua arte e seu ofício, sem AO PÚBLICO O QUE
meio repartição pública. Imagine que pagar nada a ninguém. É DO PÚBLICO
Brasília é uma cidade comum, daque- Os inventores da Feira Livre não
las em que você anda a pé, sem rumo “As pessoas não caminham por estão sozinhos no sonho de reinven-
e sem pressa, esbarra em gente de Brasília, o que é um absurdo, porque tar a cidade. “Queremos inverter a
todas as idades, reencontra e faz esta é uma cidade maravilhosa para lógica, que prevalece no imaginário
novos amigos, senta na grama para se andar a pé. Nossa ideia é ocupar coletivo, de que o que é público não é
ouvir música de graça ao lado do vizi- o espaço público, reunir as pessoas, de ninguém para o que é público é de
nho que nunca viu na vida. O avesso quebrar a tradição do brasiliense de todas e todos”, anuncia o manifesto
da cidade que tanto desencantou os se isolar dentro de casa ou do traba- da ocupação F.O.D.A Pública. “Se nós
dois gringos que abrem este texto. lho e só ver a cidade de passagem, de não primarmos pelo uso consciente
dentro do automóvel em movimento. do espaço público, outros o farão
Pois essa Brasília utópica se materializa, Sonhamos com uma Brasília transfor- com atividades indesejáveis.” Por
ainda que em miniatura, durante um mada numa grande Feira Livre”, pro- “atividades indesejáveis”, leia-se: mais
domingo a cada dois meses. Nascida clamam os integrantes do Coletivo automóveis e mais concreto, menos
não do traço preciso do arquiteto, mas Livre, responsável pela ocupação. pessoas e menos imaginação.
do firme desejo de quem a ocupa, essa
cidade (re)inventada se espalha pela O sonho parece muito, muito dis- Em pouco mais de um ano de vida,
margem direita do Eixão, na altura da tante, mas há cada vez mais gente dis- a Festa de Ocupação Dinâmica de
214 Norte. Tem o nome de Feira Livre, posta a sonhar junto. A primeira edi- Área Pública (F.O.D.A Pública) levou
porque é de fato uma feira, um espaço ção da Feira Livre, em 7 de setembro música, poesia e cultura underground
aberto e colaborativo, onde músi- de 2014, atraiu umas 400 pessoas; a a diferentes realidades do DF e do
cos, poetas, malabaristas, artesãos e mais recente, apenas um ano depois, Entorno, como Plano Piloto, Santa
comerciantes independentes expõem juntou cerca de 7 mil. Maria, Riacho Fundo, Recanto das

Foto: Bento Viana

Feira Livre: Brasília reinventada por


10 poetas, artesãos, gente
músicos,
que anda a pé e ama a cidade
Em apenas um ano, público da Feira
Livre cresceu de 400 para nada
menos que 7 mil pessoas

Foto: Bento Viana

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Sobre as cabeças, os
automóveis: vale tudo,
até dançar forró nos
subterrâneos do Eixão
Foto: Thaís Mallon

Emas, Cidade Estrutural, Sobradinho, Asa Sul protestando contra a instala- censura, coerção, proibição, taxas,
São Sebastião, Gama, Samambaia, ção de uma creche... emolumentos, tributos, impostos,
Ceilândia, Núcleo Bandeirante, autorização e inscrição”.
Taguatinga, Guará, Luziânia, Águas
“MANIFESTAR-SE
Lindas, Cidade Ocidental... “Daí a gente decidiu levar a arte para
ARTISTICAMENTE as ruas. Despertar o sentido de cole-
A ocupação começou a tomar forma tividade, mostrando que manifes-
por ocasião da viagem da geógrafa EM QUALQUER tar-se artisticamente em qualquer
e produtora cultural Nina Puglia à ÁREA PÚBLICA É área pública é um direito, uma forma
Cidade do México. Nascida e criada de exercer a cidadania e de viver a
em Brasília, Nina encantou-se com UM DIREITO, UMA cidade”, explica Nina Puglia.
a efervescência da metrópole mexi-
FORMA DE EXERCER
cana. Viu uma multidão interagindo O FORRÓ PEDE PASSAGEM
nas ruas, produzindo e consumindo A CIDADANIA E DE Vários fatores afastam o público
cultura e arte, ocupando a cidade em do que é público. Um deles é o
VIVER A CIDADE”
seu sentido mais amplo. medo. Aquele sentimento, real ou
imaginário, de que é perigoso fre-
Na volta, o duro despertar para a quentar determinadas áreas porque
realidade brasiliense: espaços públi- Mas havia também uma lei, a de nº “o mundo anda muito violento”.
cos vazios, pessoas enclausuradas em 4.821, de 27 de abril de 2012, de auto-
blocos de apartamentos, a lei do silên- ria do deputado distrital Wasny de “Os espaços em si não são peri-
cio reprimindo até as conversas mais Roure, cravando, logo no artigo 1º, que: gosos. O que os torna perigosos
animadas à noite nos bares, morado- “As manifestações artísticas e cul- são a omissão do Estado e o des-
res do Lago Norte querendo proibir o turais em ruas, avenidas e praças cuido da população”, afirma o
calçadão da Asa Norte, moradores da públicas são livres de qualquer músico e produtor musical Cacai

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Nunes, que decidiu testar a teo- para espalhar talco no salão, pro Vitali e o engenheiro João Couto,
ria promovendo nada menos que pé do povo se arrastar melhor. moradores da Asa Norte, que dan-
um baile dominical de forró bem çavam felizes com a filha Luísa, de 10
debaixo do Eixão, na passagem meses de idade.
subterrânea da 211 Norte. “OS ESPAÇOS EM SI
“Se Brasília não tem praia, vamos
NÃO SÃO PERIGOSOS.
A má fama das passagens para ocupar nossas áreas públicas. É muito
pedestres do Eixão – que os pedes- O QUE OS TORNA interessante quando um espaço cons-
tres desde cedo aprenderam a evi- truído com um propósito definido
tar – é tão grande que muita gente,
PERIGOSOS SÃO A passa a ter outra destinação: aquela
por medo de assalto, prefere arris- OMISSÃO DO ESTADO que nós desejamos”, sorri Mariana.
car a vida lá em cima, na superfície,
driblando automóveis que vêm e E O DESCUIDO DA ROCK À GASOLINA
vão em alta velocidade. POPULAÇÃO” Cansados de reclamar da falta de
espaço para o rock autoral, os inte-
“Nada melhor para quebrar esse grantes das bandas Lista de Lily e The
tipo de estigma do que uma multi- Na quarta edição anual, em 4 de outu- EgoRaptors uniram forças, compra-
dão feliz dançando aqui embaixo”, bro último, o Forró Pé de Passagem ram um gerador portátil à gasolina,
argumenta Cacai, abandonando a juntou mais de 1.500 forrozeiros. plugaram as guitarras e mandaram um
discotecagem por alguns minutos Brasilienses como a bióloga Mariana recado em alto e bom som para os pubs

Foto: Thaís Mallon

Ocupação é... Transformar


em salão de baile o que
era passagem subterrânea
para pedestres

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Foto: Bento Viana
Ocupação Mercado Sul de
Taguatinga: moradores das
quebradas já não precisam
ir ao Plano Piloto para
exercer o direito à cultura

e demais casas noturnas que só abrem as pessoas de seu isolamento”, afirma para as primeiras apresentações da
as portas para bandas que tocam outras Felipe Rodriguez, baixista da banda. Plebe – antes mesmo do disco de estreia,
bandas: “Vai tomar no cover!”. O Concreto Já Rachou – Seabra produz
As apresentações, em locais públicos o Rock na Ciclovia, abrindo espaço para
Nascido em abril deste ano, o Vai Tomar como Torre de TV, Eixão, Praça da bandas iniciantes e veteranas.
no Cover chega e toca do lado de fora Igreja da Vila Planalto e Praça do Relógio
de shows e festas pela cidade afora. (Taguatinga), são sempre gratuitas, mas “A ideia é resgatar aquela coisa do rock
Ninguém ganha dinheiro, mas o obje- os Gatunos aproveitam para passar o na rua”, explica Seabra, que aplaude ocu-
tivo é outro. “É uma forma de mostrar chapéu. A meta é bancar a gravação do pações como a da banda Os Gatunos e
o trabalho, levando nosso som aonde o primeiro CD. Em vez do crowdfunding do pessoal do Vai Tomar no Cover.
público está”, explica Danilo Abreu, bate- via plataformas digitais do tipo Catarse e
rista da Lista de Lily. Kickante, o financiamento colaborativo “É mais ou menos o que a Plebe fazia
na veia, ao vivo e em tempo real. quando começou, há mais de 30 anos.
Também movida à gasolina, a banda Só que, naquele tempo, não existia
Os Gatunos busca unir o necessário ao Fã declarado do rock ocupando as áreas gerador portátil, aí a gente levava uma
imaginário. “A gente optou por fazer ocu- públicas, Philippe Seabra, da Plebe Rude, extensão bem comprida, arranjava
pações não apenas pela falta de espaço dá sua contribuição à causa. No mesmo uma tomada emprestada e começava
para tocar, mas também pelo desejo local histórico (a ciclovia do Lago Norte) a tocar, antes que a polícia chegasse e
de reutilizar as áreas públicas e tirar que há mais de 30 anos serviu de palco botasse a gente pra correr”, lembra.

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A HORA E A VEZ que, em vez de manter o acervo tran-
DAS QUEBRADAS cado a sete chaves, o coletivo optou
Lembra quando as populações das pela ocupação do espaço público e
outrora cidades-satélites – hoje cha- colocou os livros dentro de geladei-
madas de “regiões administrativas” ras coloridas espalhadas pela cidade.
pelo governo e de “quebradas” pelo Quem quiser é só chegar e abrir a
povo – viviam apartadas da vida geladeira, matando a fome de cultura.
cultural do Plano Piloto, porque os
ingressos para show, cinema e teatro

Foto: Bento Viana


eram muito caros e os ônibus desa-
pareciam como num passe de mágica
quando dava meia-noite?

Pois é. Continua igual, só que pior,


por causa do aumento da passagem.
A boa notícia é que a quebrada já não
precisa ir ao Plano Piloto para exercer
o direito à cultura.

“Nós enfrentamos uma espécie de


toque de recolher: o último ôni-
bus que sai da Rodoviária do Plano
Piloto para São Sebastião. Quem
perder, dorme na rua. Sem contar o
preço dos ingressos. Daí que a gente
resolveu fazer cultura aqui mesmo”,
conta Isaac Mendes, do Movimento
Cultural Supernova, responsável
pela realização do Domingo no
Parque, uma das muitas ocupa-
ções artísticas que enriquecem a
cena de São Sebastião, juntamente
com Reggae na Praça, São Samba e
Poesia de Quinta, entre outras.

A efervescência cultural se repete em


quebradas como Samambaia, onde No Mercado Sul, o serviço
é “(re)construir a cidade de
ocupações tipo Sarau Complexo, acordo com o desejo dos
ArtSam e Picnic Literário atraem cada nossos corações”
vez mais público local.

Na falta de bibliotecas públicas em


Samambaia, o coletivo Uniquebra
lançou uma bem-sucedida campanha
de arrecadação de obras literárias (o
projeto Livro Lido, Livro Livre). Só

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FESTA, TRABALHO E PÃO Primeiro foram as vassouras, os
“A liberdade da cidade é muito mais baldes d’água, o sabão em pó, o
que o direito de acesso àquilo que já mutirão de limpeza que atravessou
existe: é o direito de mudar a cidade
mais de acordo com o desejo de nos-
a noite da ocupação (7 de fevereiro
de 2015) e deu cara nova ao velho
Pelo direito
sos corações.” mercado construído antes da inau-
guração de Brasília. à cidade
contra a
A teoria saiu das páginas do livro
Cidades Rebeldes, do norte-ameri- Depois vieram os pincéis e as tintas,
cano David Harvey, uma das maiores os cartazes lambe-lambe, as bandeiri-
autoridades mundiais em Geografia
Humana, e virou cor nas ruínas do
nhas recortadas de jornais e revistas,
as latas de spray transformando ima- especulação.
Mercado Sul, em Taguatinga. Mais ginação em grafites, as palavras de
do que cor: virou vida. ordem e poesia cravadas a estêncil:

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Foto: Bento Viana
Quase da noite para o dia, lojas fecha- as oficinas de arte urbana e farmácia
das há mais de uma década, persis- caseira, os cursos de mecânica de
tentes focos de dengue e abandono, bicicleta e de como fazer o melhor

Ainda viro transformaram-se em espaços aber-


tos à arte, cultura e cidadania.
pé-de-moleque do mundo, o festival
de brincadeiras de rua: bolinha de

este mundo E vieram os bonecos do mamulengo,


gude, pique, ciranda, corda de pular,
guerra de balão d’água...

em festa,
os poetas, músicos e dançarinos, os
lutadores da mobilidade urbana e A disputa com o proprietário das
da comunicação livre, os ativistas lojas antes abandonadas ainda
da revolução digital e dos saberes corre na Justiça. Mas, em apenas
trabalho e pão. antigos, brincantes de todas as fes- oito meses, a Ocupação Cultural
tas, sonhadores de todos os sonhos. Mercado Sul Vive provou que outra
cidade é possível – mais colorida,
E vieram as rodas de prosa sobre mais feliz, mais de acordo com o
temas do interesse de todo mundo, desejo de nossos corações.

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18
Foto: Thaís Mallon
ENTREVISTA

Hamilton de Holanda faz questão Prodigioso, acrescentou duas cor-


de sorrir em Brasília. Nascido no das ao seu instrumento e recebeu
Rio e criado na capital, passava o título de “Hendrix do bandolim”.
suas tardes brincando nas super- “Tocar é algo muito natural para
quadras até o pai chamar para os mim”, diz Hamilton. A cidade onde
ensaios diários. Daí era hora de cresceu ficou na saudade. A cer-
brincar com o bandolim, instru- veja do Beirute, a piscina da Água
mento que ganhou do avô. Da brin- Mineral e o céu da capital federal
cadeira para os programas infantis ele leva pelo mundo guardados no
na TV e o Fantástico foi um pulo. coração. De passagem, Hamilton se
Hamilton já tocava como gente depara com uma noite brasiliense
grande. O tempo passou e ele saiu calada pela Lei do Silêncio. “Uma
de Brasília para ganhar o mundo. cidade sem cultura morre.”

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Você veio para Brasília com 11 meses Há 30 anos, Brasília não tinha tradi- em Brasília, por conta da Escola de
de idade e morou aqui a maior parte da ção de nada. A tradição de Brasília Choro. Eu não tive professor de
vida. Hoje vive no Rio e virou cidadão eram as tradições que chegavam bandolim, por exemplo. Eu tive que
do mundo. Do que você mais sente com as pessoas que vinham de estudar violino porque não tinha
saudade de Brasília? fora. Hoje em dia você já tem uma professor de bandolim na época, e o
Da minha família e dos meus amigos. síntese, você reconhece coisas bra- violino era o instrumento que tinha
Do Beirute... [risos] Na verdade, é um silienses, vê o Pedro Martins [bra- a afinação mais próxima. Na minha
pacote. É difícil falar assim tudo. Mas siliense de 22 anos, vencedor da época, tinha o Clube do Choro, o
o principal é a família. O que mais me Socar Guitar Competition de 2015, Gate’s, o Teatro dos Bancários, as
faz falta é essa coisa amistosa e edu- no Festival de Montreux] tocando salas do Teatro Nacional. E tinha
cada que as pessoas têm aqui. Os gru- guitarra e pensa: “Pô, isso é uma alguns bares, tinha o Bom Demais –
pos, as amizades, os encontros. Aqui música de Brasília”. Eu fui exposto a eu era pequeno nessa época. Tinha
você faz amigo de verdade. influências diversas, de choro e de um movimento crescente.
Mas muita gente diz exatamente o tudo, sabe? Da música nordestina Você vê essa tendência aqui hoje
contrário, que em Brasília as pessoas e da música goiana. Isso me deixou em dia?
não se relacionam. com a mente aberta. Eu sou natural A partir do ano passado é que come-
É só uma questão de Brasília ter sido do choro e do samba, vamos dizer çou esse movimento errado da Lei do
planejada pra andar de carro e não a assim. Devo muito isso a Brasília e Silêncio, que me preocupa. Me preo-
pé. Isso não quer dizer que as pessoas a ter vivido aqui. cupa porque uma cidade sem cultura,
não façam amizade. Muito pelo con- ela morre, né? Mas nem 8 nem 80. A
trário. As amizades criadas em Brasília quadra residencial não pode virar uma
têm uma profundidade diferente de "EU SOU NATURAL DO fuzarca geral. Precisa achar um equilí-
outras cidades. Brasília tem uma afe- brio, mas a lei que existe tá errada [o
tividade, uma relação com a amizade CHORO E DO SAMBA, limite máximo, de 55 decibéis], não
profunda de verdade. VAMOS DIZER ASSIM. chega nem próximo dos padrões nor-
E da seca, você tem saudade? mais de conversa e som de rua.
Eu não digo que tenho saudade, mas DEVO MUITO ISSO Tem muito bar com música ao vivo
eu gosto da seca. Eu me sinto em casa. sendo multado, fechando as portas. O
A BRASILIA E A TER
Mas o que dá mais saudade é você próprio Beirute, que não toca música
poder olhar para cima e ver a natu- VIVIDO AQUI." nem ao vivo nem mecânica, foi mul-
reza. Dizem que a nossa praia é o céu, tado por causa de conversa alta.
que você nem precisa olhar pra cima Eu tô chocado. Mas é verdade que,
pra ver o céu. É difícil encontrar uma O que você nota de diferente na quando a cidade é administrativa, ela
cidade com essa disposição. cidade, desde que saiu daqui? tem essa carga toda de ser o centro
Já viu outro céu tão bonito? Brasília é uma cidade grande agora. do poder, daí ela não é tão boêmia.
Eu acho o céu de Sidney bonito tam- Tem até trânsito na tesourinha! Fui Quer dizer, ela poderia ser, mas foi
bém, o de Amsterdam, o de Paris, deixar meu amigo na 114 e fiquei construída para ser administrativa.
o do Rio... Mas é claro que o céu de horrorizado como que a coisa tá Existe um certo cuidado maior com
Brasília me faz falta, imagina! Este crescendo. a ordem. Eu desejo que encontrem
céu é aquele tipo de céu que você Onde você tocava quando começou esse equilíbrio, ou que, de repente,
levanta a mão pro alto, aperta a mão a sua carreira? Tinha muitos espaço Brasília tenha um lugar próprio para
de um anjo e diz: “Oi, meu amigo”. pra música? a boemia, como a Lapa.
[risos] Tão pertinho assim. Brasília cresceu muito. Com cer- Você já tocou na rua por aqui?
Sua música tem alguma coisa de teza, hoje tem mais lugar para tocar. Muito. Sabe onde? Na Praça dos Três
Brasília? O choro, nesse tempo que eu passei Poderes, de madrugada. [risos] Já
Tem demais. Na verdade, eu só sou fora... Eu fico pensando na quan- toquei muito violão ali, tomando vodca
o que sou porque vivi em Brasília. tidade de grupo que pintou aqui e fazendo festa com a moçada.

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Foto: Bento Viana
Boa parte da sua carreira você fez "A GENTE ENSAIAVA As superquadras eram muito legais.
aqui em Brasília, fora do eixo Rio-São A gente tinha um descampado na
Paulo. Foi difícil ir embora? QUASE TODOS OS frente do prédio. Ali a gente jogava
Eu gosto demais de Brasília. Meu DIAS EM CASA E bola, jogava bete, jogava beisebol,
irmão [Fernando César] – a gente brincava de carniça, brincava de
tinha um grupo, o Dois de Ouro – EU NUNCA SENTI tudo ali.
não sai daqui de jeito nenhum. Eu me As outras crianças ficavam curiosas
COMO OBRIGAÇÃO."
decidi pelo Rio porque é muito bom com a sua vida de artista?
para o meu trabalho e porque eu tinha Sempre houve a curiosidade.
essa vontade de viver na cidade onde e Carranquinha [personagens do Quando eu fui no Fantástico, eu era
nasci. E daí eu fui e meus filhos nas- programa]. Quem é de Brasília dessa pequenininho. Tinha aquela curiosi-
ceram lá, minha família mora lá. Tô lá, época sabe do que eu estou falando. dade, os colegas de escola querendo
mas tô sempre aqui, sempre voltando. Tinha também o Zé Gatão. Para mim saber... Primeiro no Dom Bosco,
Mas, desde o começo, eu pensava isso sempre foi normal. Tocar, para depois no Sigma. A música tem esse
que eu tocava para todo mundo, que mim, sempre foi como comer, esco- poder de juntar as pessoas. Então eu
não tocava só para Brasília. Brasília é var os dentes, tomar banho ou brin- tinha muito amigo em volta. Tinha a
minha inspiração. É a cidade onde eu car com os amigos. Era sempre muito Semana Cultural do Sigma, que a
morava. Mas eu sempre pensei em legal. Dava 7 da noite e a gente tava gente ficava esperando chegar e daí
viajar e tocar por aí. embaixo do prédio e aí descia o meu montava um grupo com os amigos...
Você começou a tocar ainda criança, pai: “Bora ensaiar”. Normalmente, As amizades que eu fiz tinham sem-
em programas de TV da cidade. uma criança tá no meio da brinca- pre alguma coisa ligada à música.
Como era ser criança e já levar a deira e não quer parar. Eu não me Nessa época você chegou a flertar
música a sério? lembro de achar aquilo ruim. com o rock, né? Como foi isso?
Eu toquei no Carrossel [da TV Como era ser criança em Brasília Brasília, devo isso a Brasília. Na
Brasília], cara. Toquei com Cacareco naquela época? época tinha Legião Urbana, Capital

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Foto: Bento Viana
Inicial, Plebe Rude e mais um bocado que tinha o Jimi Hendrix, mas nunca eles resolveram me dar um instru-
de bandas fazendo sucesso, e eu era tinha ouvido para valer. Essa coisa mento de cordas. E meu pai tocava
de pré-adolescente pra adolescente. mais despojada, bandolim em pé e na violão também, tinha cavaquinho em
Então, eu também tive a minha correia, eu peguei do Armandinho. casa. Mas a verdade é que eu não sei
banda de rock, Os Entregadores de Eu não peguei do Jimi Hendrix. Mas o por que exato.
Pizza. Eu tocava baixo. O baterista como o Armandinho foi influenciado E como você chegou ao bandolim de
era até irmão do Jhander, que era o pelo Jimi Hendrix e pelos Beatles, 10 cordas?
guitarrista da Plebe Rude. A gente talvez tenha vindo por aí essa influ- Foi uma vontade musical, direta-
fazia apresentação na garagem. No ência. Mas ela não é nada direta. Eu mente ligada à polifonia. Eu ouvia
salão de festa do bloco de um deles, acho isso engraçado [a comparação um pianista, um violonista, um acor-
na verdade. com Jimi Hendrix]. O cabelo é pare- deonista, e tinha vontade de fazer
E os vizinhos não reclamavam do cido. [risos] aquilo ali, tocar os três elementos da
barulho? Por que você escolheu o bandolim? música: a melodia, o acorde e o ritmo,
Olha, eu vou te dizer que muito pelo Cara, foi um presente de Natal do meu tudo ao mesmo tempo. Então eu pedi
contrário. Eu tive uma vizinha no avô. Essa é a grande questão da minha para um amigo fazer um bandolim
andar de baixo que quando a gente vida. Eu tenho teorias. Uma delas um pouco maior, com 10 cordas -- um
ficava muito tempo sem ensaiar ela é a de que meu avô gostava muito luthier lá de Sabará [Minas Gerais],
ligava pra reclamar: “E aí? Vocês não da música que o Sérgio Bittencourt chamado Virgílio Lima. Ele fez o
vão tocar não?”... fez pro pai dele, Jacob do Bandolim, primeiro, ficou legal pra caramba.
De onde vem o título de “Hendrix do chamada Naquela mesa. Minha vó Isso já tem 15 anos. E durante esse
Bandolim”? também adorava essa música. Eu já tempo eu venho desenvolvendo a
Dos Estados Unidos, cara. Pessoal tocava a escaleta, aquele piano de técnica. Tanto que esse show atual,
jornalista de lá que inventou essa boca pequenininho. Talvez também Pelo Brasil, é de bandolim solo.
moda aí. Na verdade, eu conheci por eu ser muito pequeno e não con- E o legal é que hoje em dia os luthiers
o Jimi Hendrix depois disso. Sabia seguir tocar muitas músicas seguidas do Brasil já estão fazendo bandolim

23
de 10 cordas. Tem uma galera nova vai fazer muitos amigos na sua vida”. E
se interessando pelo instrumento. eu aprendi música daí. Se for só pelo
Eu fiz um site [hamiltondeholanda. trabalho, não presta. Tem que ter
com/caprichos/] e o pessoal pode diversão no meio e tem que ter essa
baixar as partituras de graça. Pode verdade artística.
baixar o áudio de graça. Pessoal pode Mas seu espetáculo [Pelo Brasil]
rearranjar. Eu entro no youtube e é tão tecnicamente meticuloso!
fico emocionado de ver a molecada Como assim “é só diversão”?
tocando. Uma galera de fora tam- Olha, eu tento fazer tudo como se
bém. Ontem eu vi um francês com fosse uma coisa só. É trabalho, mas
um bandolim de 10 cordas tocando é diversão. É claro que pegar o avião
Capricho de Santa Cecília. às 4h da madrugada pra fazer show
Tem dias em que você olha e se não é diversão. Mas no geral a vida
espanta com tudo o que conquistou é assim, a gente tem que aprender a
até agora, o sucesso no Brasil e no lidar com as coisas que não gosta pra
exterior? poder fazer aquilo que mais gosta.
Todo dia, cara. Eu me surpreendo O Garrincha dizia que estava sem-
porque eu sempre achei música uma pre brincando de bola, mesmo se
coisa natural. Nunca foi profissão. fosse num jogo de Copa do Mundo.
Nunca pensei que ia ganhar dinheiro. É isso. Eu gosto de brincar de bandolim.
Que ia sobreviver da música. Eu
me lembro que meu pai me falava:
“Aprende a tocar o bandolim que você
Foto: Bento Viana

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AGATETEPÉ

Agá-tetê-pê
aplicativos culturais
Dicas de sites e
Street Music Map
A fim de unir artistas de rua e fãs do mundo todo, o aplicativo Street Music Map oferece, de forma prática e
gratuita, um canal em que você divulga seu artista de rua preferido por meio de um vídeo de 15 segundos.
É conectar pra conhecer diferentes culturas e ritmos musicais.

Projeto Olhe Porta Cutas Catraca Livre


O primeiro banco de currículos Primeiro site brasileiro de curtas- O app do portal alternativo bra-
online para pessoas em situação de metragens que oferece, de forma sileiro fornece informações sobre
rua, proporcionando oportunidades simples e gratuita, mais de mil programas culturais e de lazer
no mercado de trabalho. O projeto curtas na íntegra. Você ainda pode gratuitos (ou de até R$ 16) na sua
trabalha em parceria com ONGs e o enviar um filme seu para o site cidade. Além de ser uma plata-
objetivo é ligar esses moradores aos e criar sua própria cinemateca. forma colaborativa, na qual você
possíveis empregadores. Disponível também para Iphone, também pode divulgar e dar dicas
pra galera.
projetoolhe.com.br Ipod e Ipad.
catracalivre.com.br/aplicativo
portacurtas.org.br

25
26
OLHAR

A mulher
e sua força misteriosa
Por Mirian Leitão

Elas foram chegando carregando seus consegue, se amparada, dar alguns E elas vivem só para seus filhos?
filhos. O problema é que nem todos passos. Todas as mães me contaram, Não. Elas vivem suas vidas. A mãe da
eram pequenos. Alguns haviam cres- naquele dia, como se fossem feitos jovem que tivera sarampo na infância
cido e pesavam, mas os braços fortes olímpicos, cada uma das vitórias que me contou, na equoterapia, que vol-
das mães os carregavam. Dediquei haviam conquistado na equoterapia. tara a estudar anos antes, completara
aquela segunda-feira a ficar ali com Os cavalos são seres mágicos e con- o segundo grau e estava entrando na
elas e as crianças. Algumas precisa- seguem efeitos terapêuticos impres- faculdade de Pedagogia. Perguntei o
vam apenas ser amparadas ou cui- sionantes, mas o que me encantou foi que ela faria depois do curso, e ela me
dadas porque eram os casos mais a força das mulheres. Elas falavam de disse que gostaria de trabalhar em
simples, como síndrome de Down e seus filhos com amor, eles não eram uma entidade que cuidasse de crian-
autismo, mas a maioria tinha restrição apresentados como um problema. ças especiais, porque achava que sua
severa. Havia casos de paralisia cere- Contaram como haviam adaptado experiência de vida lhe ensinara como
bral, doenças congênitas, traumas do suas vidas para se dedicar às crianças. lidar com todo o tipo de restrição e
nascimento, acidentes. poderia ajudar as mães.
“Especiais são essas mães”,
Uma menina já no fim da adolescên- me disse meu sobrinho, Elmar, lendo No hospital, encontrei no corredor
cia, tinha tamanho de adulta, mas a meu pensamento. uma mãe muito jovem, pouco mais
mãe a carregou para tirá-la da van da que uma menina. Ela falou toda
prefeitura que fazia o transporte. Ela E como elas conseguem quando entusiasmada para o grupo de con-
nasceu normal e assim ficou até os não é apenas um momento, mas sim tadores que o seu filho estava para
oito meses. Teve, então, uma febre a vida inteira? No final daquele dia, ter alta. Desde que ele nasceu,
forte, que os médicos não diagnos- eu estava emocionada com as histó- o menino estava hospitalizado
ticaram e trataram de forma errada. rias das crianças e de suas mães. e ficou por longo tempo na UTI.
Era sarampo, atingiu o cérebro e ela Foram meses e ela se mudou para
ficou paraplégica e com sérios pro- Outro dia, nas últimas férias, passei o hospital para amamentar o filho
blemas cognitivos. uma tarde em um hospital público e ficar ao lado dele. “Ele não está
de Brasília com um grupo de con- lindo?”, perguntou a mãe mos-
Quando ela começou o tratamento tadores de histórias para crianças trando a foto no celular. Cada uma
no Centro de Equoterapia que doentes. Ao chegar nas enferma- dessas histórias aumenta o orgulho
organizamos na pequena fazenda rias, de novo eram as mães que cui- que sinto de ser integrante dessa
que tenho em Minas, a menina nem davam de seus filhos. Com paciên- parte da humanidade.
se segurava ereta na cadeira. Hoje cia infinita e enorme carinho.

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ÁGUA E ÓLEO
Lei do Silêncio

Poluição Sonora
Frederico Flósculo
Professor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da UnB

Antes de mais nada, não se fala aqui de Lei do Silêncio, Há a intenção de desqualificar a fiscalização e os denun-
mas de Lei da Poluição Sonora. Lei do Silêncio é denomi- ciantes nas vizinhanças urbanas. Além disso, a poluição
nação pejorativa, que tenta associar o controle da polui- sonora chega a ser apresentada como inevitável, como
ção sonora à ditadura da autoridade pública, repressora algo associado à vida urbana em sua alegria e pujança.
e fiscalizadora etc. O que esse deputado tem na cabeça? Por que ele busca
anular parâmetros sérios para a fiscalização da polui-
Tudo começa com a eclosão, em nosso espaço político e ção sonora e impedir que a população, em todas as suas
de debates urbanos, do Projeto de Lei nº 445/2015, do diferentes sensibilidades, reclame da poluição sonora
deputado distrital Ricardo Vale (PT-DF). Essa iniciativa com base em norma técnica, qualificada?
busca superar a legislação vigente, a Lei nº 4.092/2008,
de forma que chamou a atenção dos urbanistas e das Fica evidente a agressão ao interesse público a despeito
lideranças comunitárias por eliminar totalmente as do lobby de empresários. Quando analisamos esse pro-
Normas Técnicas da ABNT que tratam da poluição jeto de lei e lemos sua interessante “justificativa”, pas-
sonora, amplamente utilizadas pela legislação federal, samos a entender que o deputado faz uma estranha e
estadual e municipal brasileira. enviesada advocacia, em nome da atividade econômica
de bares com música (ao vivo ou não), com caixas de som
A proposta de mudança nos critérios de mensuração da e amplificações diversas, que são citados como prejudi-
poluição sonora é chocante. Toda a fundamentação cien- cados pela ação da fiscalização governamental.
tífica acumulada por organizações técnicas nacionais e
da própria Organização Mundial da Saúde foi “rifada” de Ou seja: uma proposta de lei tola e repleta de problemas
forma tosca, grosseira. Pior: a proposta de lei cria uma sis- de concepção e legalidade, que coloca esse legislador
temática de qualificação dos abusos da poluição sonora (de e sua advocacia em confronto com as comunidades de
quaisquer fontes) que exige medições absurdas na casa do vizinhança. Música não é barulho e deve ser objeto de
reclamante. Isso expõe as pessoas, ao exigir que as medi- leis que promovam a cultura, sem equívocos.
das sonoras em suas residências ou em hospitais atinjam
índices altíssimos de barulho.

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Censura Cultural Gabriela Tunes
Ativista do grupo
Quem Desligou o Som?

A Lei nº 4.092/2008, conhecida por Lei do Silêncio, tem sido auditiva do ser humano, a poluição sonora de até 55 dB não
motivo de muita polêmica. Primeiramente, é preciso conside- causa problema algum. E que, entre 56 dB e 75 dB, não existe,
rar a ausência de debates e a forma açodada como foi apro- a princípio, nenhum dano à saúde, o que só começa a ocorrer
vada na Câmara Legislativa. Entrou em plenário na última a partir de 76 dB. Em outras capitais do Brasil e do mundo é
semana do ano legislativo de 2007, não recebeu nenhum comum encontrar limites maiores para emissão sonora. Em
parecer escrito, não foi discutida nem debatida com a popu- Barcelona, Bogotá, Buenos Aires, Madri, Salvador, Belém, os
lação e, já no final de janeiro do ano seguinte, foi sancionada limites para períodos noturno e diurno são 60 e 70 dB, para
pelo governador. áreas comerciais.

Embora tenha por objetivo manifesto garantir o sossego Outra questão importante refere-se ao modo como as afe-
e coibir a poluição sonora, dado o caráter extremamente rições são realizadas. Em Brasília, as medidas são feitas nas
restritivo da norma, ela acaba por proibir a execução de proximidades das fontes emissoras, resultando daí que pra-
música ao vivo em bares e restaurantes. A lei traz limites ticamente todas as atividades ultrapassam os limites da lei.
para emissão sonora que variam entre 45 e 60 decibéis, a Interessante seria realizar as medidas no local do suposto
depender se a área é comercial, residencial ou mista. Tais incômodo. Assim, evitar-se-ia a confusão entre proteger o
limites são muito próximos das emissões sonoras de ativi- incomodado e silenciar o emissor, que converte uma lei que
dades cotidianas. Uma conversa entre duas pessoas pode deveria ser contra a poluição sonora em uma lei anti música.
atingir 70 dB, uma lavadora de pratos produz 80 dB. Várias
atividades da cidade produzem pressão sonora acima dos Da forma como foi redigida e como vem sendo aplicada,
limites estabelecidos, mas a lei atua quase exclusivamente a Lei do Silêncio brasiliense funciona como uma forma de
sobre a música ao vivo em bares. censura. Ora, ao se constatar que, no Distrito Federal, há
uma lei antipoluição sonora cuja aplicação só se realiza
Defensores da rígida norma que vigora em Brasília alegam contra atividades culturais, fica evidente que se tem aí
que a lei foi elaborada tendo por base estudos da Organização uma ferramenta de censura, disfarçada em lei de proteção
Mundial de Saúde. O que eles não citam é que, de acordo ambiental e manutenção da ordem.
com as mesmas pesquisas, no que diz respeito à capacidade

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3X4

Rogério Soares
de Araújo
Por José Rezende Jr.

Não teve pai nem mãe. Não sabe pequena, cobre apenas 15 meses de percorre a linha do tempo no sentido
quem o abandonou naquele orfa- um total de 44 anos de vida, mas conta inverso, desliza o dedo da última foto,
nato, na capital paulista. Foi cres- uma longa história. A história de uma a mais recente, até a primeira, a que
cendo sem nome, até que, aos 6 ou 7 metamorfose. O período de 15 meses mais teme, a que mostra um homem
anos de idade, um juiz olhou para ele em que um homem conhecido como magro, sem nome, sabonete, escova
e decretou: “Você se chama Rogério “Barba”, que havia perdido tudo, até de dente ou esperança, a barba
Soares de Araújo e nasceu em 23 o próprio nome, voltou a se chamar enorme, o olhar perdido. E repete,
de agosto de 1971”. Rogério Soares de Araújo. como se fosse um mantra: “Mas pra
você perder tudo de novo e voltar até
Os dados falsos na certidão de nasci- Todo dia, várias vezes ao dia, Rogério aqui, irmão, pode levar um dia só”.
mento serviram para a matrícula na retira do bolso a linha do tempo,
escola, mas tiveram pouca utilidade ao passa lentamente o dedo indicador A LINHA DO TEMPO E DA VIDA
longo da vida: o menino cresceu sem sobre cada um dos sete rostos, con- Cajuru (interior de São Paulo) – Aos
festa de aniversário e, depois de tanto versa com os sete Rogérios, partindo 8 anos de idade, Rogério vive em um
tudo perder para as ruas e as drogas, do primeiro até chegar ao último. lar para crianças e adolescentes, que
um dia perdeu até o nome inventado. “É, irmão... Pra você sair daqui e che- é, ao mesmo tempo, creche, abrigo
gar até aqui, foram 15 meses, demo- para crianças cujos pais perderam
Hoje carrega no bolso uma espécie rou pra caramba, irmão.” a guarda dos filhos (por negligência
de linha do tempo: uma sequência de ou maus tratos) e orfanato (embora
sete fotos 3x4, com sete diferentes E quando bate a vontade doída e doida todos, exceto Rogério, tenham pelo
rostos das pessoas que ele foi e é. A de beber um simples copo de cerveja menos o pai ou a mãe). Nos dias de
linha do tempo que cabe no bolso é ou fumar um cigarro comum, Rogério visita, todo mundo recebe visita,

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31
Foto: Bento Viana
menos ele. Não entende por quê. dentes, comer na hora certa, dormir
“PRA VOCÊ SAIR DAQUI
Contam-lhe uma mentira: “Um dia na hora certa. Nada de crack, nada
alguém vem te ver”. E CHEGAR ATÉ AQUI, de álcool, nada de cigarro.

FORAM 15 MESES, MAS


De tanto ninguém nunca vir, acaba Por volta dos três meses de interna-
descobrindo a verdade. Rogério PRA VOCÊ PERDER TUDO ção, a abstinência o devora. Rogério
agora sabe que não tem ninguém sente na boca o sabor inexistente
no mundo. Rebela-se. Foge de
DE NOVO E VOLTAR ATÉ do álcool. Toda noite sonha que
volta para São Paulo, vai viver na AQUI, IRMÃO, PODE acende o cachimbo de crack e toda
rua, conhece a cocaína e o crack, noite acorda antes da primeira bafo-
assalta para manter o vício, leva tiro, LEVAR SÓ UM DIA”. rada. Sem o poderoso anestésico
arruma empregos (sonoplasta em do álcool e do crack, a dor de dente
uma rádio, cozinheiro em um time dói até na alma. Rogério desiste. Diz
de futebol) que logo perde para o o álcool–combustível comprado em que não aguenta mais, avisa que vai
vício. Passa por centros de recupe- postos de gasolina. Já levou facada, embora. Elvira, a missionária que o
ração para dependentes químicos, já deu e recebeu porrada. Quase tirou das ruas, chora, mas chora de
mas as recaídas são frequentes. morreu, quase matou. Só à noite, um jeito que Rogério não conhece.
Envolve-se com traficantes. Com na hora de estirar o corpo magro
medo dos bandidos e da polícia, foge na calçada, quando o efeito do crack “Ela chorava por dentro, ela tava
de São Paulo para São Carlos (SP), e do álcool começam a se dissipar, chorando por mim, que nunca cho-
depois Uberlândia (MG), depois Rogério pensa na vida. E é nessas rei por ninguém, que nunca nin-
Goiânia, enfim Brasília. horas que a vida dói. guém chorou por mim. Eu pensei:
‘Essa mulher não é minha mãe, não
Brasília (Distrito Federal) – Aos 43 Em uma madrugada, quando não é minha irmã, não é nada minha, e
anos de idade, Rogério dorme nas aguenta mais, pede socorro à mis- ela tá sofrendo por minha causa!’
calçadas do Setor Comercial Sul. sionária evangélica que distribui Aí eu chorei pela primeira vez na
Não toma banho há meses. Não comida aos que vivem em situação vida e disse pra ela: ‘Tá bom, eu fico,
escova os dentes há anos. A barba, de rua: “Me tira daqui”. mas não fico por mim, fico por você,
razão de ser do nome que ganhou fico por vocês.’ Até aquele dia eu não
nas ruas, desce até quase o peito. O QUE É O AMOR ligava quando via alguém chorando,
Quando o crack e o álcool cedem Os primeiros dias de internação na eu virava as costas e ia embora,
algum espaço à fome, o “Barba” cata Cristolândia são o inferno na Terra. não tava nem aí, eu não gostava de
comida do lixo. Desacostumado a seguir regras, mim, como eu ia gostar dos outros?
Rogério é obrigado a cumprir a difí- Aquela foi a primeira vez que o sen-
Não tem razão para viver. Ou cil rotina do abrigo onde vive até timento de outra pessoa tocou em
melhor, a razão para viver é o que, hoje, na Ceilândia, na companhia mim. Hoje eu posso dizer que amo
aos poucos, lhe rouba a vida: os de dezenas de outros dependentes as pessoas. Não, hoje eu acho que
cachimbos improvisados de crack, químicos. Tomar banho, escovar os posso dizer que tô aprendendo a

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amar as pessoas. Porque, se você que não conseguiram sair das ruas. esquecer, retira da boca os den-
parar pra pensar, o que é o amor? Aos 44 anos, Rogério voltou a estu- tes postiços, substitutos das duas
Você sabe? Eu não sei. Ninguém dar. Faz, com empenho e orgulho, dezenas que perdeu para o crack, o
nunca me ensinou.” a quinta série na Escola dos Meninos álcool e a rua. E assim, momentane-
e Meninas do Parque, voltada para amente sem dentes, quase de novo
ROGÉRIO DIANTE a população em situação de rua. o “Barba”, só que sem barba, Rogério
DO ESPELHO Quer chegar à faculdade, formar- conversa com Rogério: “Você é
Aos 44 anos, livre das drogas, -se em Assistência Social, dar aos outra pessoa, irmão, aquela pessoa
Rogério teve direito à primeira outros a oportunidade que teve, dar que você era não existe mais”.
festa de aniversário de sua vida, a si mesmo uma lição avançada do
com bolo, refrigerante e tudo, aprendizado de amor ao próximo. E só então, convencido de que é
promovida pelos missionários, Depois de muitos anos, reaprendeu mesmo outra pessoa, recoloca os
no mesmo Setor Comercial Sul a se olhar no espelho. “Converso dentes, sorri e segue adiante.
onde vivia. Os convidados foram comigo mesmo, bato papo, troco
os antigos parceiros de infortúnio altas ideias”. Para lembrar de nunca

Foto: Bento Viana


"Ela tava
chorando
por mim,
que nunca
chorei por
ninguém."

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INSTANTES

Bento Viana
Textos: Marcela Lemgruber

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Nascido em Nova Friburgo/RJ, em 1971, ano, com uma luz diferente a cada dia”.
Bento Viana chegou ainda criança em Na época, ele tinha apenas 8 anos e,
Brasília, “cidade onde você pode ver com a capital, conheceu também sua
o nascer e o pôr do sol 365 dias por primeira câmera fotográfica.

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O espírito desprendido e apaixo-
nado pelas delicadezas da natu-
reza levou Bento a voar o mundo.
Antártida, Kilimanjaro e Amazônia
marcaram sua carreira, mas foi na luz
do cerrado que encontrou seu lugar:
“No horizonte, visto da ponta da Asa
Sul, surge o sol dourado. Boa parte
da cidade ainda dorme quando o
azul que restou da noite vai dando
lugar ao amarelo do sol, revelando
uma cidade linda e colorida.”

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Para Bento, fotografar é trans-
formar sentimentos em ima-
gens. E foi esse desafio que
inspirou Brasília Vista do Céu,
sua obra de maior repercussão.
“Lúcio Costa dizia que o céu
é o mar de Brasília e foi nave-
gando neste mar que encontrei
imagens novas para mostrar ao
mundo uma Brasília diferente e
ainda não vista.”

“As curvas das tesourinhas, os arcos


da ponte JK e tudo mais ganham vida
na aurora. O dia continua a chegar e
as sombras mudam, revelando nuan-
ces que meu olhar ainda não tinha
percebido. Vejo os traços de Lúcio
Costa e Niemeyer, os jardins de Burle
Marx e me encanto com a Praça das
Fontes e a Praça dos Cristais.”

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“O painel do Athos no Teatro
Nacional e a Praça Portugal formam
a planície de Nazca do planalto.
O Museu da República revela a
leveza do concreto em sua densi-
dade. À tarde, Brasília volta a se
colorir para a chegada da noite.
A Esplanada parece uma grande pista
de pouso, mas é o corpo do avião que
faz minha imaginação voar alto.”

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Nesta primeira edição da Traços,
Bento selecionou fotos inéditas de
seu acervo para dividir com você:
“Estas fotos são meu presente para
todos os brasilienses e brasilei-
ros que admiram Brasília. Cidade-
Monumento e museu vivo da nossa
história ao ar livre. Capital deste
grande país.”

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TOCA RAUL

Scalene
Por devana babu

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Foto: Bento Viana
O currículo é vasto. Na estrada desde além de um vocal que vai do terno e doce,
2008, já tocaram no Lollapalooza ao agressivo rasgado. Recentemente
e no SXSW, lançaram três álbuns, assinaram com o selo Slap (Som Livre),
vários clipes, e já possuem fãs lançaram clipe com a banda Far From
espalhados pelo globo. Se já eram Alaska, engataram uma música na trilha
reconhecidos por quem gosta de rock da novela Verdades Secretas, lançaram
de qualidade, após participarem do pro- uma campanha para ajudar uma fã que
grama Superstar e tocarem só músicas sofre de uma doença rara. Retornarão ao
autorais, passaram a ser respeitados em Lolapalooza 2016.
todo o país. O som da banda é algo como
um “stoner pop” atmosférico, que une facebook.com/bandascalene
peso e leveza em melodias elaboradas, youtube.com/scalenetube
Foto: Bento Viana

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Miudinho
Só pra chingar um pouco

“A música que mais detesto é ‘A Barata “A música que eu odeio é o jingle do


–Só pra Contrariar’. Quando eu fazia posto Ipiranga, porque ela é repe-
passeios da escola, sempre cantavam tida incansavelmente em várias edi-
essa música. Eu ficava muito pressio- ções da propaganda com pequenas
nado pra saber o que fazer com a alterações. É o tipo de branding de
barata da vizinha. Suava e não queria marca que não me seduz e só me
que chegasse minha vez.” faz remeter àquela marca de uma
Ramón Lima – forma negativa.”
Estudante de Artes Cênicas Caio – Estudante de História

“Eu não gosto da música Up Town “A que eu mais odeio é beber, cair e
(de quem é essa música?). Ela me levantar. Todo final de ano eu vou
lembra minhas aulas de acrobacia. pro Nordeste, e as músicas que
Lá a gente tem que ficar fazendo estouram aqui em fevereiro/março,
flexão e agachamento e são os três lá estouram em setembro/outubro.
minutos mais demorados da minha Eu ia pro apartamento da minha vó
vida. Essa música me remete a dores que é de frente para um semáforo.
e tal, mas é positivo pro meu corpo.” Toda vez que ele fechava, parava
Lauana Vieira – um carro tocando essa música. Eu já
Estudante de Engenharia Florestal detestava ela por si só e ainda ficava
ouvindo aquela música de cinco em
cinco minutos. Pra piorar, quando
o sinal abria, minha tia, desafinada,
começava a cantar. O que era ruim
ficava pior!”
Ricardo Rezende –
Estudante de Letras

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BUTECO

Outra história de Brasília


Por André Giusti
Carioca radicado desde 1998 em Brasília, André Giusti publicou, entre outros, Voando pela noite (até de
manhã), A liberdade é amarela e conversível, A solidão do livro emprestado e Eu nunca fecharei a porta da gela-
deira com o pé em Brasília. O conto a seguir integra a coletânea 50 anos em 6–Brasília, prosa e poesia.
www.andregiuisti.com.br/

Joanir apoia as mãos cruzadas na ponta do cabo de ou cinco, ele nunca disse, mas sabe que Joanir sabe.
vassoura. Deixa o pensamento escapar pelos olhos e E que tem medo, o pior.
seu rosto pende para baixo, pesado de uma preocu-
pação ainda maior que aquele corredor que ele não Tem também Estéfane, a filha do meio, que voltou
esfregou nem metade. Toda hora interrompe e fica com as crises de epilepsia. A mulher há quatro dias - o
olhando o final do corredor, mas não espera nada mesmo tempo em que fala da arma - chega no hospi-
dali. O problema é a arma que o primo pediu para ele tal, espera, espera e volta. Não tem médico, não tem
guardar em casa, e por isso a mulher enche a cabeça remédio, e a menina se torcendo toda. Joanir olha o
de Joanir há quatro dias. Mas hoje ela ameaçou cha- corredor, mas não espera nada dali, sacode a cabeça
mar a polícia, jogar a arma na vala, ir embora com como quem sacode uma caixa para confirmar que está
as crianças. Não quer arma em casa, aquele é um vazia. E diz “tudo se ajeita, tudo”, bem na hora em que
lar de Deus nosso senhor Jesus Cristo. Joanir sem dobra lá no fundo o desembargador Antero Pimentel da
jeito de falar pro primo, um chegado de tantos anos. Mota, que vem desviando do balde, do rodo, do esfre-
E sem coragem também. O primo é parente, mas é gão cinza esticado no chão de mármore, de um vidro
bandido, transa merla e cocaína, já matou quatro de limpa tudo e qualquer coisa. Não vem satisfeito da

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vida, nunca vem satisfeito o desembargador, ainda mais trate de terminar essa limpeza antes das oito e meia,
topando com gente da laia de Joanir, que em silêncio que não quero mais chegar aqui e ter que desviar do
ou assobiando sambas tímidos vai tirando do caminho senhor e de seus baldes e panos imundos. Levante mais
guimbas de cigarro e copos descartáveis. No primeiro cedo da cama, chegue antes ao serviço. E o desembar-
dia ali Joanir bem que cumprimentou o desembargador, gador desaparece gabinete adentro, deixando Joanir
recolheu a vassoura com as duas mãos postas junto ao mastigando os próprios dentes, sentindo raiva da
peito, sorriu envergonhado e deu bom dia mais ainda, mulher em casa que não se cala, das tremedeiras da
como achou que fosse o certo. Antero Pimentel da filha, do primo que é do bicho, do dia escuro quando
Mota passou apressado com seus sapatos pesados, sai, das pernas cansadas no ponto de ônibus.
mas até que olhou Joanir do alto de seu pra lá de um
metro e 90, por trás dos óculos dourados, e crispou o Não dá cinco minutos e lá vem Dona Wanda, a secretária
rosto achando mesmo um achincalhe aquele mulato de peitos gordos contidos num vestido de seda, a maquia-
manchado de micose, magro que nunca pôs gravata, gem acentuando as fendas da velhice. Não é pessoa ruim,
querendo parecer civilizado e se dirigindo a ele, presi- mas se o desembargador mandar, anda de quadro pelo tri-
dente da corte especial do tribunal pleno, a mais alta bunal, late e sacode um chocalho amarrado na bunda. Pede
instância da justiça no país. compreensão, o desembargador anda nervoso, são deci-
sões que precisam ser tomadas por uma pessoa do tope
Também, parou por ali: Joanir nunca mais deu bom dele e que o senhor, seu Joanir, não tem capacidade de
dia; era feio, mas não sem vergonha. Agora, quando avaliar, fora o que aconteceu com a filha do outro desem-
o desembargador aponta no fim do corredor, Joanir bargador, doutor Osório, amicíssimo do doutor Antero, o
abaixa a cabeça, não olha, é como se fosse vento pas- senhor leu no jornal, estuprada e morta, ele anda abalado,
sando. Aproveita e dobra a força de esfregar aquele a esposa com trauma foi pro estrangeiro, as pessoas de
chão, mais um pouco e arranca uma placa de granito. bem estão apavoradas.

Antero Pimentel da Mota vem em direção ao gabinete, Joanir deixa escapar que tem seis meses também estu-
carrega seu azedume e faz barulho com seus sapatos de praram e mataram a filhinha do compadre. Apoia as
defunto. Passa cada vez mais depressa e pesado, tru- mãos cruzadas outra vez na ponta do cabo da vassoura.
culento, no fundo querendo que aquele quase crioulo E ainda deixaram o corpo no quintal da casa. Ah, mas
entre em sua frente para poder esmagá-lo com seus não é a mesma coisa, seu Joanir, não é a mesma coisa,
pés sem proporção. e Dona Wanda sorri certa de que não é mesmo, dá as
costas com seu traseiro de máquina de lavar e também
Na porta do gabinete, bem próximo a Joanir, o desem- some gabinete adentro.
bargador estaciona aquele esqueleto paleolítico e des-
cansa a respiração ofegante de arrastar o corpanzil. Joanir descruza as mãos e a vassoura livre vai perdendo
Fica ali parado, aguardando que a respiração se acalme. o equilíbrio aos poucos até estalar no chão. O desânimo
Joanir pressente que o homem olha para ele e por isso dobra o tamanho daquele corredor. Deu uma vontade
inclina de vez o rosto ao contrário, dá mais força no de ir até em casa, e sair de novo dizendo pra mulher
braço, ainda acaba transformando esse chão em espe- olha, tô sumindo com isso. Se o primo perguntasse, ele
lho. Joanir se imagina um pássaro na gaiola espiado não esconderia nada: usei, sim, primo. Quis mostrar
pelo gato da casa. Joanir sabe que o gato não está ali à prum sujeito que debaixo da terra os bichos comem a
toa, o gato é mau e não gosta de pássaros feios, pardais carne sem saber se é de rico ou se é de pobre.
escuros que dão em qualquer fio de alta tensão.
Joanir olha, mas não enxerga o corredor. Repete feito
Escute – e parece que é aberto um calabouço quente e reza decorada: tudo se ajeita, tudo. Sacode a cabeça
úmido quando fala Antero Pimentel da Mota com sua como quem sacode uma caixa vazia.
voz amarga de antipatias e repugnâncias –, o senhor

49
Foto: Bento Viana

Era segunda-feira e o gari Izaqueu mesma ideia que ele. “Não sabia que JK veio à tona devido à febre do
Cruz passava pela ponte JK sob o ia dar esse tanto de gente”, Izaqueu stand up paddle (ou simplesmente
calor de meio-dia. Voltava do Plano confessa, perplexo. SUP), prancha sobre o qual o atleta
Piloto para Santa Maria e a margem rema em pé. O sargento do exército
do lago Paranoá corria refrescante Ele não imaginava, mas a orla pró- Ed Wilson, que aluga o equipamento
e promissora pela janela do carro, xima à ponte JK transformou- para a prática do esporte nos finais
completamente deserta. Izaqueu -se num point irresistível para os de semana, viu o movimento crescer
não teve dúvida: decidiu ali, na hora, moradores das cidades do DF e do de 2014 para cá. “Depois que o cara
o programa de fim de semana. Entorno, que começam a descobrir pega o jeito, ele vem sempre que
os lazeres do lago. Quem passa de pode para curtir”, afirma.
No domingo seguinte, juntou a família carro nos finais de semana de sol
em dois carros e foi. Quando chegou pode ver a área apinhada de gente. A estudante Letícia Fernandes mora
ao destino, o lago continuava lindo, em Taguatinga e foi pela primeira vez
mas o cenário já não era exatamente De acordo com os frequentadores, com os amigos e interessou-se pelo
o mesmo: uma multidão havia tido a o potencial turístico da orla da ponte esporte. “Só nadei no lago quando

50
Deu praia
no lago
Paranoá começa a ter gente
além da paisagem

Por Marcus V. F. Lacerda

caí do jet ski no Pontão”, conta. Já outra margem do lago consolidou-se explica ele, sentado no cascalho ver-
Hudson Vargas, representante de há bastante tempo como um tradi- melho da margem do lago, sentindo a
vendas de Vicente Pires, tomou uma cional point candango. O Piscinão falta de um pouco de areia.
decisão mais acertada: comprou do Lago Norte, como é conhecido,
um bote. “Eu vim uma, duas vezes, foi parcamente implantado em O cenário do Piscinão é bem dife-
paguei pra andar no SUP. Daí eu vi 2001, mas o espaço já era utilizado rente daquele da orla da ponte JK.
o preço do bote e resolvi comprar, bem antes disso. O som automotivo marca presença,
porque saía mais barato”, explica ele, por meio de uma dúzia de carros, cada
satisfeito com o investimento. Nonato Mendes é autônomo e traba- qual tocando uma música diferente.
lha nos finais de semana fazendo repa- O comerciante José Santos não
As imediações da ponte JK estão ros na casa dos outros. A irmã, Vanda se incomoda com a babel musical.
sendo descobertas agora pelos Mendes, é cuidadora e vai ao Piscinão “Pessoal tá aí e ouve o que quiser. As
banhistas. No entanto, a alguns qui- desde sempre. Desta vez quem deci- meninas vêm cá e pedem para colocar
lômetros dali entre as quadras ML diu pelo programa foi Nonato. “Tava sertanejo e funk”, diz ele, exibindo,
5 e 7 na Estrada Parque Paranoá, todo mundo em casa e tava calor”, orgulhoso, o som do automóvel.

51
As barracas que se instalam no “O SOM o lago entrou em estado de eutro-
Piscinão ficam cheias de gente dan- fização, que ocorre quando os
çando. Ali, a paquera é mais solta
AUTOMOTIVO MARCA níveis de fósforo e nitrogênio pro-
que na beira da ponte. “Pessoal na PRESENÇA, POR MEIO vocam a proliferação das algas,
JK e na Ermida é muito playboyzi- diminuindo os níveis de oxigênio.
nho, só fica se amostrando”, critica DE UMA DÚZIA DE “Quem entrasse naquela água
Amanda Nani, caixa de super- CARROS, CADA QUAL podia desenvolver de micose a
mercado da Cidade Ocidental. hepatite”, lembra o biólogo.
A vigilante Camila Santos confirma: TOCANDO UMA
o Piscinão ferve mais. “Aqui é só na Mas os garotos da Vila Planalto
MÚSICA DIFERENTE.”
piscadinha”, comenta a jovem mora- daquela época não estavam nem
dora do Paranoá. aí. “Você entrava na água de roupa
Foto: Bento Viana

Esportes tornaram a orla


da Terceira Ponte popular
há cerca de um ano

PASSADO POLUÍDO construção de Brasília no que diz e ela ficava verde”, conta o hoje
Durante muito tempo, o Lago respeito ao esgoto e ao lixo. comerciante Edson Ramos. Irinaldo
Paranoá foi famoso pelo fedor Gomes também brincava nas águas
e pela sujeira. De acordo com o A própria construção do Paranoá turvas do lago com os amigos, todos
urbanista Federico Flósculo, todo desencadeou um quadro ambien- submersos e de olhos abertos.
esgoto do Plano Piloto era despe- tal bastante grave. “Na época, não
jado em suas águas. “Não houve se tinha uma noção mais profunda “Depois a gente tomava banho em
um plano de saneamento e este da ecologia dos lagos”, explica o casa e não dava nada”, diz Irinaldo,
foi o único erro de Israel Pinheiro”, biólogo Fernando Starling. Sem garantindo que os banhos no lago
diz o acadêmico, apontando a um plano de manejo e recebendo nunca lhe fizeram mal.
negligência do responsável pela grande quantidade de dejetos,

52
Foto: Bento Viana

Prainha da MI é opção tanto


dos baladeiros quanto das 53
famílias da região
Foto: Bento Viana

54 JK: de cartão postal a


Ponte
ponto de encontro
Se, para quem nadava, havia um Unidas para o Desenvolvimento
risco para a saúde – ainda que (Pnud). Técnicos suecos vieram a
aparentemente anulável sob água Brasília pesquisar um plano para a
e sabão, a pescaria estava libe- despoluição do lago. Os especialis-
rada. “Não havia metais pesados tas recomendaram a implantação
ou bactérias que infectassem os de duas estações de tratamento de
peixes e os tornassem impróprios esgoto no Plano Piloto, uma na Asa
para o consumo”, explica o biólogo Sul e outra na Asa Norte.
Fernando Starling. Quando jovem,
Iranildo pescava no lago. “Era polu-
ído, mas dava peixe”, lembra ele, que
hoje não encontra muito o que pes-
car. Por conta da má fama do lago,
muitos pescadores ocultavam a ori-
gem dos peixes. “Aqui na Vila todo
mundo sabia muito bem de onde
eles vinham”, conta Iranildo.

Muitos dos que naquela época foram


morar na Vila Planalto foram transfe-
ridos da Vila Amaury, bairro que foi
encoberto pelo lago. Depois que o
espelho do Paranoá cobriu as casas
do lugar, uma arapuca foi armada
para os meninos que nadavam por
ali. Maria do Chapéu, pioneira de
Foto: Bento Viana

77 anos que até hoje mora na Vila


Planalto, lembra dos acidentes com Famílias no lago:
crianças que pisavam nas casas técnicos duvidavam
disso nos anos 1970
submersas para apoiarem-se nos
telhados que quebravam e cediam.
As casas, então, se tornavam gaiolas
das quais poucos conseguiam escapar. “O estudo apresentado pelos suecos
“Eu tive um sobrinho que quase afo- mostrava a gravura de uma família
gou numa dessas, mas graças a Deus na beira do lago. Os técnicos da
salvaram ele”, conta Maria do Chapéu. Caesb olharam a imagem e duvida-
ram que aquela cena pudesse acon-
Se as casas submersas já não amea- tecer algum dia”, lembra Fernando
çavam os banhistas desavisados com Starling. Trinta anos depois, o domin-
a cheia do lago, o fedor insuportável gão de Izaqueu e família mostra que
acabou sendo sanado graças ao cons- os suecos tinham razão.
trangimento enfrentado pelo ditador
Ernesto Geisel. Com vergonha do
mau cheiro reinante na capital da
República, Geisel assinou uma coo-
peração com o Programa das Nações

55
Movimente-se Quantas vezes você já ouviu que não
Por devana babu

o que viria a ser a Capital Federal até os


existe nada para se fazer em Brasília? Esse dias atuais. Hoje, apesar do culto à ordem
mito persegue a nossa cidade desde seus e ao silêncio, a cidade respira, é viva! E para
primórdios. Desde a era do barro e dos quem não sabe, existem alternativas cultu-
esqueletos de concreto que rascunhavam rais para todos os gostos.

Cansado do engarrafamento de todo dia? Cansado


das mesmas baladinhas sórdidas com as mesmas
playlists banais? A fim de um happy hour gratuito
e maneiro? Toda sexta, no início da noite, Felipe
Rodriguez e Helder nos oferecem uma discoteca-
gem especial, para lá de inusitada, no aconchegante
La Ursa Café Caixa Cultural (Setor Bancário Sul,

Tuba
Quadra 4). Ótima pedida para o começo da sexta.
Apenas tome cuidado para não ir parar no outro La Ursa,
que fica no Setor Bancário Norte. Esse já é outro rolê.

facebook.com/tubapeloradio

pelo
Rádio

56
Imagine um cineclube no qual é possível assistir a filmes in-
dependentes em meio a puffs confortáveis, em uma atmos-
fera de lounge, entre uma cerveja e uma discotecagem alter-

Cineme-se
nativa. Imagine que tem pipoca grátis! Esse é o Cineme-se.
Uma terça-feira sim, e uma terça-feira não, os produtores
Gustavo Bill e Daniel Spot convidam um DJ e um cineasta
de Brasília, que apresenta um curta-metragem autoral e
outro que queira mostrar ao público. O rolê começa às 20h.
Só não esqueça sua carteira de identidade, ou será barrado
na entrada do Clube da ASCEB, na 904 Sul.

facebook.com/cinemesebrasilia

Toda terça-feira é dia de engraxar os coturnos, vestir os co-


letes, dar um tapa no maquinário e partir para a Torre de
TV. Uma legião de Motoclubes de Brasília, apreciadores e
curiosos se reúne, toda semana, no maior Moto Meeting
da América Latina, com seus carros e motos clássicas, para
tomar uma bela cerveja, ouvir bandas e DJs, bater um bom
papo e apreciar a culinária brasiliense nas barraquinhas.
pointdasmaquinas.com

Point
Das Máquinas 57
RASCUNHO

Carla Andrade
Mineira de Belo Horizonte radicada desde 2000 em Brasília, Carla Andrade acumula prêmios em concursos de São Paulo,
Rio, Minas e Distrito Federal. A seguir, poemas inéditos e publicados nos livros Conjugação de pingos da chuva,
Artesanato de Perguntas e Voltagem.
www.carlaandrade.com.br/

DO ESPELHO HORIZONTE DE CINZAS

Essa mulher no espelho Brasília nasceu quase morta,


tem o mesmo olhar asmática de vertigens,
abotoado da menina que roubava rampa aérea para náuseas do horizonte.
as sombrinhas de cogumelos
das árvores e dos pastos. Uma terra de muletas
embrulhou a criança
Esse olhar no espelho parece sem umbigo.
bolinhas de gude
na escada rolante, Em cadeira de balanço,
olhos inconsequentes. ossos cobertos pela manta do céu,
veias limítrofes da alma,
Essa mulher no espelho Brasília olha,
tem gosto de hóstia mas não vê.
ao lembrar
dos dedos de menina Tem poeira nos olhos,
a lambuzar o próprio sexo. doença nos pés, não anda,
escora em buritis.
Essa mulher é a mesma
que se atira nas raízes do seu colo O ar não circula.
e se retira com nacos de barro Acumula nos poros
de obra inacabada. de cada viga
de ferro, concreto.
Esse reflexo no espelho é o
reflexo de tantos outros reflexos. Brasília é funcional,
Máscaras de pétalas papel passado, mais adicional.
secas pelo tempo.
Nasceu velha
Coragem. para ser jovem
Pediu para o homem. e não sabe
Essa mulher ainda sou eu? se é bela ou feia.
Megamíni Voltagem–7Letras
Brasília morreu quase torta.
Foi enterrada por homens de terno cinza.
Artesanato de Perguntas–7Letras

58
59
É OUTRA HISTÓRIA

Descobrimentos, açoitamentos
Por Nelson Fernando Inocencio da Silva
Coordenador do curso de graduação em Artes Plásticas da UnB. Membro do Comitê Institucional
Gestor do Programa de Iniciação Científica da UnB.

Quando, em sala de aula, começo a discorrer sobre a Além da persistência do equívoco que reside na inven-
História da Arte no Brasil, a partir de registros arque- ção de um fato histórico, supostamente heroico, exis-
ológicos deixados pelos povos pré-coloniais, quero, tem questões não menos relevantes. Já se tornaram
sobretudo, apresentar ao público discente outras algo enfadonho, por exemplo, as constantes afirmações
possibilidades de interpretação deste país. Uma delas idealistas que nós, brasileiros, fazemos de nós mesmos.
alude à construção de narrativas excêntricas e que, ao Embora digamos para os quatro cantos do mundo que
menos, coloquem sob suspeita o discurso baseado no somos a maior demonstração da diversidade cultural
mito civilizador fundado na ocupação protagonizada e étnico-racial, muito provavelmente poucos de nós
Foto: Bento Viana

pelos conquistadores ibéricos. saberiam com o mínimo de embasamento, discernir

60
algumas singularidades que constituem tal diver- Historicamente no Brasil, houve a consolidação de uma
sidade. Assim, afirmar de modo entusiasmado, por cultura visual capaz de nos levar a interpretar as dife-
exemplo, que precisamos respeitar “nossos índios” renças como dessemelhanças, aludindo ao senador e
sugere a seguinte pergunta: Quais? Será que real- ex-ministro da Educação Cristovam Buarque. Depois de
mente saberíamos identificar elementos que dis- meio milênio de contatos, tensões, confrontos, acordos,
tinguem Terenas, Baniwas, Kadiwéus, Ashaninkas, é possível entender, por intermédio de análises distin-
Yanomamis, Waujas, Marubos, Kaxinawás, Krahôs, tas do mainstream, que os processos de formação da
Nambikwaras, Kayapós, Yawalapitis, Xavantes, entre nação brasileira são outros quinhentos. Poderíamos
tantos outros povos? Quanta gente, ao visitar a região elencar várias obras que, tal como a Primeira Missa no
amazônica, inadvertidamente adquiriu objetos Brasil, contribuíram para a constituição de um “lugar
artesanais que acreditava ser “autêntica” cerâmica de índio” no imaginário social, falemos das artes plás-
Marajoara, apesar das evidências de falseamento ticas ou mesmo da fotografia em seu estágio inicial na
acerca da arte produzida por aquela sociedade. segunda metade do século XIX.

Ainda vale ressaltar outros enganos. O imaginário


social está repleto deles. Particularmente nos chama
a atenção, inclusive na contemporaneidade, a famige-
rada expressão “programa de índio”, pela sua terrível
conotação pejorativa. O que dizer, então, da tortura
a que são submetidas nossas crianças nas séries ini-
ciais? A cada 19 de abril, habitualmente, os pequenos,
impelidos a homenagear os índios brasileiros, são pin-
tados de forma que mais se pareçam com Apaches,
Navarros, Cheyennes ou algo que o valha. Até quando
falamos de povos nativos das Américas, e tão somente
deles, não nos escapa o sentimento de colonizados.

Não foi por acaso que certas práticas se tornaram cor-


riqueiras permitindo-nos ver de maneira natural aquilo
que é absurdo. O predomínio das imagens que dão
sustentação a interpretações superficiais das culturas
autóctones vem de longa data. Se não vejamos, o qua- Precisamos atravessar quase todo o século XX
dro intitulado A Primeira Missa no Brasil, obra de auto- para que fosse possível vislumbrar alguma chance
ria de Vitor Meirelles, que consta no acervo do Museu de mudança no olhar permanentemente exoti-
Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, explicita as zante de parcelas expressivas da sociedade brasi-
populações indígenas tratadas como coadjuvantes na leira sobre povos indígenas. Prática que, em última
composição de uma cena que certamente teria seus análise, representa a morte simbólica. A ridicula-
desdobramentos, conforme a letra da música do com- rização de que foi alvo o deputado federal Mário
positor, cantor e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, Juruna, nos esperançosos anos oitenta, eviden-
Primeira Missa/ Primeiro índio abatido também/ Que Deus cia as limitações e a incompreensão da diversi-
deu. De proporções monumentais (2,68 x 3,56), a pin- dade que, contraditoriamente, costumamos cele-
tura a óleo produzida pelo artista brasileiro em Paris, no brar como um importante traço de nossa cultura.
ano de 1860, era apenas um dos resultados da relação Diante do diagnóstico, tudo leva a crer que preci-
de dependência entre a Academia de Belas Artes e o samos de tratamento, e de preferência xamânico.
Império e, por conseguinte, do dirigismo que o Estado
exercia sobre aquela escola de artes visuais.

61
TOCA RAUL

Ataque

62
Beliz
Por Marcela Lemgruber

Foto: Bento Viana

63
Foto: Bento Viana

A vida não é só lutar e sofrer, afirma o MC e do rap e hip hop, agrega em suas can-
produtor musical Alisson Melo, umas das ções influências da música negra ameri-
oito cabeças que fazem parte do grupo cana como, jazz e funk, além de ritmos
Ataque Beliz. A banda, formada no brasileiros, como sambarock e embo-
Paranoá em 2001, agrega caracterís- lada. Recentemente o grupo lançou o
ticas de cada um de seus integrantes single Calmaê com a participação da
para formar sua própria identidade. premiada cantora Ellen Oléria.
A realidade social brasileira e situações
vividas no dia a dia servem de inspiração facebook.com/AtaqueBelizOficial
para o grupo que, sem perder a essência youtube.com/AtaqueBeliz

64
Holofote
A música acalma até a mais furiosa das feras. Mas, no tempo
livre, as feras podem muito bem se deliciarem com um bom filme
ou algum livro. Seguem, aqui, algumas sugestões de colaborado-
res dedicados a essas artes.

THE STORY OF SONNY BOY SLIM


Gary Clark Jr.
Por ser guitarrista, negro e evocar os climas psicodélicos,
com som distorcido e voz suave, Gary Clark Jr logo foi
comparado a Jimi Hendrix. Natural da cidade de Austin,
Texas, foi apadrinhado por Jimmie Vaughan, irmão do
Música

saudoso Stevie Ray, e logo passou a dividir palco com lendas


como Eric Clapton, Buddy Guy e Jeff Beck. Seu terceiro
trabalho, Blak and Blu, de 2012, lhe rendeu duas indicações
ao Grammy, ganhando como “melhor performance de R&B
tradicional” com Please Come Home. Em setembro deste
ano, soltou o quarto disco, The Story of Sonny Boy Slim.

SOUND & COLOR


Alabama Shakes
Como o nome diz, é do estado do Alabama. Começou em 2009
e tem como principal destaque a ótima cantora, compositora
e guitarrista negra Brittany Howard. As influências vão da
soul music de Otis Reding e Sharon Jones a nomes mais atuais
do blues rock, como Drive-By Truckers e The Detroit Cobras.
Após lançar, de forma independente, o disco de estreia, Boys &
Girls, recebeu três indicações ao Grammy com a música Hold
On. Em abril, lançaram o segundo álbum, Sound & Color.
Marcos Pinheiro é jornalista musical e comanda o programa Cult 22, na Rádio Transamérica.

65
HOLOFOTE

LAVOURA ARCAICA
Luiz Fernando Carvalho
Não devemos colocar um Muro de Berlim entre filmes nacionais e estrangeiros ou,
mais especificamente, americanos. O Brasil tem filmes riquíssimos quando se trata
Filmes
de técnica. Um grande exemplo é o filme Lavoura Arcaica, em que o cineasta Luiz
Fernando Carvalho soube adaptar tão fielmente, de forma linda e surreal, uma obra
literária em obra da sétima arte. Um filme sem defeito nos quesitos roteiro, direção e
claro, direção de fotografia, que leva a assinatura do Walter Carvalho.

CÃES DE ALUGUEL
Quentin Tarantino
Às vezes pensamos que fazer cinema é algo inalcançável devido aos orçamentos.
Alguns filmes são a prova contrária disso. Um deles é Cães de Aluguel, o primeiro
longa do cineasta Quentin Tarantino. Um filme feito com baixo orçamento,
de forma independente, mas que não deixa de ser bom e prender o telespectador.
Apesar da fama de Tarantino pelo excesso de sangue em seus filmes, o longa
possui um ótimo roteiro com diálogos bem elaborados capazes de fazer você
entrar em uma cena de ação sem precisar vê-la.

Nilmar Paulo é cineasta e já trabalhou em curtas, clipes e no documentário Seu Estrelo e a Criação do Brinquedo.

O LOBO DO MAR
Jack London
Clássico de Jack London, O Lobo do Mar narra as desventuras de Humphrey, jovem de
vida fácil dedicado às letras, em embate permanente com o implacável Wolf Larsen.
Após ser resgatado de um naufrágio, Humphrey é impedido de voltar ao continente
Livros

pelo capitão Larsen, que decide “educar” o rapaz para lidar com a dura realidade
da vida. É nesse confronto dos dois, que representam, de um lado, o idealismo e a
civilidade e, do outro, a brutalidade de um mundo irracional que o livro encanta com
uma prosa afiada que mescla aventura e romance filosófico.

A ESTRADA
Cormac McCarthy
Em um mundo em ruínas, onde a civilização desabou, um pai e seu filho percorrem
a paisagem devastada em busca da sobrevivência, incertos de que viverão até o dia
seguinte. No caminho, trombam com bandidos, assaltantes, assassinos – os outros
sobreviventes. Em A Estrada, esse cenário desolador serve para Cormac McCarthy
traçar uma belíssima história de esperança e afeto, metáfora para um mundo talvez já
irremediavelmente perdido, mas que insiste em seguir adiante.

Pedro Galas é jornalista, mestre em Literatura Brasileira Contemporânea, professor de língua portuguesa e um apaixonado por livros.

66
18 de novembro
marcha das
mulheres
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Marcha das
#vemmarcharcomagente
Mulheres
Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver
Negras
CONCENTRAÇÃO A PARTIR DAS 9H
NO GINÁSIO NILSON NELSON BRASÍLIA

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