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PELÉ REI DO FUTEBOL, NO BRASIL

E NO MUNDO, ÚNICO E INSUBSTITUÍVEL

LULA,
TERCEIRO ATO
NA POSSE, O PRESIDENTE PROMETE
COMBATER A DESIGUALDADE EM TODAS AS
SUAS DIMENSÕES. É A FALA DE UM ESTADISTA
ANO XXVIII N° 1241 R$ 27,90
11 DE JANEIRO DE 2023
Exercite sua solidariedade!
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em situação de vulnerabilidade por meio de
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11 DE JANEIRO DE 2023 • ANO XXVIII • N° 1241

O pontificado de Joseph Ratzinger


será lembrado pela renúncia, a
primeira em seis séculos. Pág. 46

6 A SEMANA Pela
36 R E PA R A Ç Ã O
9 AFONSINHO primeira vez em 522 anos, Nosso Mundo
19 JAQUES WAGNER
os povos indígenas 46 O B I T U Á R I OBento XVI
poderão decidir sobre viveu mais preocupado em
o próprio destino defender dogmas do que
Seu País em se conectar com fiéis
41 O P O S I Ç Ã O O bolsonarismo
26 P E L É Sinônimo do
Brasil e cidadão fiel
da Vila Belmiro,
é obrigado a render-se
à realidade, volta para casa
48 R E I N O U N I D O O Partido
Conservador perde apoio
Plural
52
sempre jogou no e acaba órfão de liderança diante dos sacrifícios
time do coração 44 E N S I N O S U P E R I O R
impostos pelo Brexit
30 M E M Ó R I A Pelé teve A gestão Bolsonaro 50 C I Ê N C I A A busca pela PARA TODOS
coadjuvantes à altura OS GOSTOS
VAT I C A N M E D I A /A F P E D I A M O N D F I L M S / C J E N M

devastou duas região que assinala o


de sua ascensão e glória, universidades dedicadas início da interferência
no Santos e na Seleção humana no ambiente
à integração regional
32 S A Ú D E A nova ministra, O CINEMA SUL-COREANO SE FAZ
Nísia Trindade, começa CADA VEZ MAIS PRESENTE NAS
por um “revogaço” de
decisões obscurantistas SALAS BRASILEIRAS E VAI DOS
das gestões anteriores FILMES DE ARTE AO TERROR
PRIMEIRA SEMANA
54 TH E O B S E R V E R A reinvenção de
LULA INICIA SEU TERCEIRO Bessie Smith 56 L I V R O S Cormac McCarthy
Capa: Pilar Velloso.
Fotos: Ricardo Stuckert e GOVERNO BUSCANDO SE LIVRAR mostra um planeta à beira da aniquilação
Arquivo/Agência Estado DO ENTULHO BOLSONARISTA 58 C H A R G E Por Venes Caitano

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4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, Lucas Neves, estava dando certo, do Nordeste com
Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
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perigosos escudeiros, a serviço até
JANEIRO DE 2027
mesmo do golpismo. Lula fará contra- Não se faz um sucessor em quatro
ponto a toda essa irracionalidade. Para anos, a menos que fosse a própria
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. quem deseja viver num país civilizado, Dilma Rousseff. Lula foi preso injusta-
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tem-se a esperança de um governo hu- mente e acabou reconduzido à Presidên-
manamente viável e são. cia. Por ter sofrido um golpe, a volta
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AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo Os segmentos golpistas da socie- Lula deveria buscar a reeleição em
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Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva nos petistas, não deixarão a vitória de teremos um sucessor pronto.
Lula passar em brancas nuvens. Logo Ivan Tranquelin
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cabo nesses quatro anos do governo ca e incômoda em vários momentos.
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A PANTOMIMA PATÉTICA E Lars von Trier demonstra em todas
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Mino Carta resumiu o cenário com problema com as mulheres, mas as suas
perfeição. Que prazer vê-lo sempre questões não param por aí. Apesar de
brilhante, um gênio sagaz do nosso tempo. gostar da estética de Dogville, Trier me
Edimilson Hernandes embrulha o estômago.
Martha Jares
MISTO À BEIRA DO ABISMO
Admiro muito Ailton Krenak, um
dos mais brilhantes pensadores da

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C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 5
A Semana
Forças Armadas/ O inimigo ao lado
Não estamos
em Tombstone
O brigadeiro Marcelo Damasceno e o golpismo à espreita
A Polícia Federal, por
determinação do ministro

N
Gilmar Mendes, do STF,
omeado comandante da For-
cumpriu na terça-feira 3
dois mandados de apreensão ça Aérea Brasileira, o brigadeiro
de armas em endereços Marcelo Damasceno é, nas pala-
ligados à deputada Carla vras do ministro da Defesa, José
Zambelli, que às vésperas Múcio, “legítimo herdeiro dos valores demo-
do segundo turno das eleições O comandante
cráticos”. Nada de surpreendente. Múcio é só praticamente
presidenciais, em outubro,
perseguiu, revólver em punho, outro civil, de uma lista infinita desde o fim pediu desculpas
da ditadura, a se curvar aos caprichos dos por aceitar o cargo
um homem pelas ruas do
Jardim Paulista, bairro de militares. Ao assumir o comando da Aero-
São Paulo. Em decisão náutica na segunda-feira 2, Damasceno des-
anterior, Mendes havia
tilou o ressentimento dos oficiais com a tro-
suspendido o porte da
parlamentar bolsonarista ca de governo. Não citou Lula, praticamen-
e determinado que te pediu desculpas à família e aos amigos por
ela entregasse os aceitar o cargo e manteve a espada na cabeça
armamentos em seu poder. da nova administração, com as exigências de
praxe de uma turma que se considera acima
dos cidadãos comuns. “Como filho desta pá-
tria idolatrada, não fugiria nem me furtaria
à nobre missão. E que a incompreensão de guês claudicante, traço inconfundível do ofi-
alguns mais próximos revertam-se em futu- cialato brasileiro. Em qualquer outro pa-
ro entendimento”, discursou. “Estou abso- ís onde o poder militar se submete ao civil,
lutamente convicto de que as Forças Arma- Damasceno nem assinaria o termo de posse.
das continuarão a usufruir dos projetos es- Seria enviado diretamente à reserva.
tratégicos por parte da Presidência da Re-
pública e do Ministério da Defesa, assim co- P.S.: A exoneração imediata dos quase 8 mil
mo do tratamento gentil e harmonioso aos militares entrincheirados em cargos civis foi
assuntos de defesa”, prosseguiu em portu- um ato de coragem do novo governo. 

Comunicação/ ANTÍDOTO CONTRA A MENTIRA


PIMENTA ANUNCIA SECRETARIA PARA COMBATER DISCURSO DE ÓDIO E FAKE NEWS

Ao tomar posse na terça-feira Act, aprovado na Europa. equilíbrio de direitos”, diz


3, o ministro-chefe da Secre- “Não é para privilegiar amigos Brant, doutor em Ciência Polí-
taria de Comunicação Social nem perseguir inimigos.” tica pela USP e mestre em
da Presidência, Paulo Pimen- Batizada de Secretaria de Regulação e Políticas de Co-
ta, anunciou a criação de uma Políticas Digitais, a nova es- municação pela London
estrutura para combater a trutura será chefiada por School of Economics. O mo-
desinformação e o discurso João Brant, secretário-execu- delo deve ser debatido com a
de ódio nas redes sociais. “O tivo do Ministério da Cultura sociedade civil e o Congres-
mundo inteiro está fazendo na gestão de Juca Ferreira so. “Ainda temos de conver-
essa discussão”, justificou, ao (2015-2016). “Vamos buscar sar, pensar nos mecanismos
“Não é para privilegiar amigos nem citar normativas em debate respostas efetivas e durado- para proteger grupos vítimas
perseguir inimigos”, esclarece nos EUA e o Digital Services ras baseadas o tempo todo no e mitigar riscos.”

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
11.1.23

O que os olhos
São Paulo/ não veem...

A cloroquina Dois policiais do 3º Batalhão


de Polícia Militar de Novo

da Cracolândia Hamburgo, no Rio Grande


do Sul, foram afastados após
Tarcísio de Freitas quer aumentar a revelação de imagens de
uma violenta abordagem
vagas em comunidades terapêuticas realizada na noite de domingo,
1º de janeiro. Registrado pela
fresta de uma porta, o vídeo
mostra um policial cobrindo
a cabeça de uma mulher
algemada com uma sacola
plástica. O tenente-coronel
Jacques Peiter, comandante
do batalhão, acionou a
corregedoria da corporação

O
para investigar o episódio,
governador de São Paulo, Tarcí- nicas, que mais se assemelham a prisões ma- classificado como
sio de Freitas, afirmou, na segun- nicomiais. Além disso, especialistas alertam “incompatível com a atividade
da-feira 2, que pretende aumen- que as internações compulsórias são pouco policial”. No fim do ano, o
governo gaúcho realizou um
tar o número de vagas em comu- efetivas e, ao retornar ao convívio social, a
pregão eletrônico para aluguel
nidades terapêuticas para dependentes quí- grande maioria dos usuários retoma o con- de 1,1 mil câmeras corporais
micos. Caberá ao seu vice, Felício Ramuth, do sumo de entorpecentes. para PMs, mas o projeto ainda
PSD, coordenar as iniciativas para o enfren- Desta vez, ao menos o governador mencio- não foi implementado.
tamento do problema, sobretudo na região nou iniciativas como aluguel social e habita-
da Cracolândia, no Centro da capital. ções comunitárias para dependentes quími-
A iniciativa segue as diretrizes propostas cos em situação de rua. É um tímido avanço
na política nacional de combate às drogas de em relação ao discurso focado exclusiva-
Jair Bolsonaro. A maioria das comunidades mente na repressão policial e nas interna-
terapêuticas é gerida por instituições religio- ções forçadas, que marcaram sua campanha
sas. O Conselho Federal de Psicologia cole- e a atuação do governo estadual nas últimas
ciona denúncias de privação de liberdade, três décadas. Nesse período, a Cracolândia
maus-tratos e trabalhos forçados nessas clí- só se espalhou pela cidade.
L U C A M E O L A , C A M PA N H A F R E I XO 2 0 2 2 , G U S TAV O

Migração partidária/ DE MALAS PRONTAS


NOMEADO NA EMBRATUR, FREIXO DEIXA O PSB E ANUNCIA FILIAÇÃO AO PT
B E ZERR A / P T N A CÂ M A R A E SO N ERY/ FA B

Seis meses depois de ingres- ciar a escalação final da Es- derada pelo PT em 2022. Ao
sar no PSB para disputar o go- planada dos Ministérios. cabo, a bancada socialista na
verno do Rio de Janeiro, Mar- Freixo tomou a decisão logo Câmara despencou de 32 pa-
celo Freixo decidiu se filiar ao após a derrota nas urnas, em ra 14 deputados. “Preciso es-
PT. Nomeado por Lula para outubro, mas optou por pos- tar num lugar que tenha cons-
presidir a Embratur, ele entre- tergar o movimento, para não trução partidária, coisa que
gou a carta de desfiliação passar a impressão de que es- não teve no PSB. Um lugar
pessoalmente ao presidente tava de olho em cargos no go- que tenha trabalho de base”,
da antiga legenda, Carlos Si- verno. Ao jornal O Globo, ele disse. “Era o que eu queria fa-
queira, em 30 de dezembro, lamentou a decisão do PSB de zer no PSB, mas não foi possí- O então candidato parecia bem à
após o novo presidente anun- não ingressar na federação li- vel, não era esse o projeto.” vontade com a estrela vermelha

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 7
A Semana

Venezuela/ Crise em Nárnia


Tensão na Coreia

O presidente norte-
-americano, Joe Biden,
Juan Guaidó é destituído do posto de “presidente interino”
parece sentir saudades
dos tempos da Guerra Fria.
Não bastasse a crescente
animosidade em relação
à China, os EUA estão O faz de conta
dispostos a colocar a mão chega ao fim
novamente no vespeiro
da Coreia. Em resposta
aos testes atômicos e às
bravatas do ditador Kim
Jong-un, o governo da
Coreia do Sul anunciou a
implantação, em parceria
com Washington, de
operações de ativos nucleares
na região. “Para responder
aos norte-coreanos, os dois
países discutem maneiras de
compartilhar informações,
planejamento e execução
conjunta”, afirmou o
porta-voz Kim Eun-hye.

Q
uando a oposição venezuelana gentina, e Iván Duque, na Colômbia. Infe-
decidiu instalar um “governo pa- lizmente, o faz de conta custou caro aos ve-
ralelo” e proclamar Juan Guaidó nezuelanos. Na tentativa de desestabilizar
“presidente interino”, Nicolás Maduro, os EUA e a União Europeia, como
Maduro foi espirituoso ao definir se jogassem Banco Imobiliário, entregaram
a iniciativa: o reino de Nárnia, em referên- a Guaidó a administração de bilhões de dó-
cia ao mundo fantástico criado pelo escri- lares pertencentes ao país, decisão que apro-
tor irlandês Clive Staples Lewis. Pois bem, fundou a crise humanitária, ao lado das du-
passados quatro anos, Nárnia vive uma cri- ras sanções econômicas. Sem o biombo do
se institucional. Os principais partidos opo- “governo paralelo” e com as mudanças em
sitores do chavismo decidiram “destituir” Brasília e Washington, Maduro ganha no-
Guaidó, incapaz de se firmar como uma op- va chance de abandonar os pendores auto-
ção real de poder e em baixa entre os eleito- ritários. Entre os objetivos diplomáticos de
res (sua aprovação desde 2019 caiu de 60% Lula está a reincorporação da Venezuela nos
M A RCELO CA M A RGO/A BR

para 20%). O “impeachment” coincide com o acordos sub-regionais, o que só é possível se


fim de mandato de Jair Bolsonaro no Brasil, os vizinhos aceitarem as regras democráti-
último apoiador do “governo paralelo” nas cas. Na virada do ano, o presidente venezue-
Américas. Antes dele, saíram de cena os ou- lano (o de verdade) fez um aceno a Joe Biden:
tros três pilares da aventura: Donald Trump, declarou-se pronto a retomar as relações di-
nos Estados Unidos, Mauricio Macri, na Ar- plomáticas com os EUA.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
AFONSINHO

Adeus, companheiro

tempo em que se atribuía aos seus olhos São até hoje vívidas aquelas peloti-
► Esta semana, à última esbugalhados a capacidade da visão pa- nhas negras, que pareciam fantasmas
hora, depois de muito norâmica exibida em seu modo de jogar. dentro da camisa do Santos F.C. Que
Uma das primeiras imagens de Pelé a saudade me bate agora dos amigos Dor-
chorar, criei coragem ficar cravada na minha memória remonta val, Coutinho etc.
para prestar homenagem à minha infância. Quando garoto, fui le- Anos depois, eu teria a felicidade de
a Pelé e vim a vado por um primo mais velho ao Estádio compartilhar, dentro do campo, a mes-
do Pacaembu, em São Paulo, para assistir ma camisa peixeira e também encon-
Santos acompanhar ao jogo entre Paulistas e Pernambucanos. tros como adversários. Mas o maior dos
sua despedida Lembro-me de ver, em um campo mo- encontros foi mesmo o do “Passe Livre”.
lhado pela chuva, uma bola passada com Como Ministro dos Esportes, entre
força à meia altura e ele, simplesmente, 1995 e 1998, Pelé, mesmo depois de ter
deixou que ela batesse no peito do pé e, deixado o cargo, fez questão de levar às

F
icamos, quase todos, um tempo cobrindo seu marcador, fosse encontrar últimas consequências o ato oficial da
suspensos no ar até que se abris- o ponta-esquerda, livre, para avançar até abolição do “passe”.
se um buraco sob os nossos pés: a linha de fundo. Graças a ele tivemos a pá de cal nes-
Pelé estava morto. E o mistério da mor- se vínculo de natureza escravagista que
te sempre suscita em nós, de forma ine- Contar jogada por jogada inesquecível sempre fora uma “pedra na chuteira”
vitável, memórias e reflexões. levaria todo o tempo do século no qual ele daqueles que, como eu, tiveram o fute-
Apenas cunhar em Pelé o título de foi escolhido o melhor atleta – não só jo- bol transformado em profissão, tama-
rei, ou até mesmo de eterno, é, em cer- gador. Mas, antes dessa imagem que ci- nha a paixão pela bola.
ta medida, subestimar o significado de tei, houve outra, em um cinema, ainda Mais adiante teríamos ainda outros
sua obra de vida. Um rei tem seus limi- em São Paulo, perto do Largo Santa Ifigê- encontros, sendo o mais significativo de-
tes. É rei disso, rei daquilo, e limitado a nia, região central da cidade, logo depois les o momento no qual, convocados pelos
um espaço determinado. do desembarque da sagrada Seleção de colegas da luta antimanicomial, utiliza-
Pelé transcendeu isso tudo. Ele mos- 58 com o nosso primeiro título mundial. mos o esporte como apoio ao tratamento
trou, por meio de seu futebol e de sua No quinto gol da final, ele apenas dei- psiquiátrico. Essa iniciativa, que eu acre-
história, que o sentido da vida está aci- xou que a bola do cruzamento tocasse dito ser de suma importância, corria sé-
ma de nossas vãs filosofias, e até mes- sua cabeça e, resvalando na trave, fos- rios riscos justamente em Santos, que era
mo das ideologias. Ele foi único, como se morrer mansamente no fundo da re- uma “ponta de lança” do projeto.
cada um de nós. de, deixando o goleiro agarrado à bali- Menos tempo atrás, o companheiro me
O conservador Pelé demonstrou de za depois de tentar, inutilmente, impe- convidou para tomar café em sua casa, no
que forma se pode, por meio da simpli- dir o desfecho. Guarujá, mas fui adiando a visita e, diante
cidade, alcançar o que de mais comple- Ao surpreendente lance sucedeu-se do agravamento de sua doença, não con-
xo há em uma vida. Ele, com sua arte, foi um turbilhão de imagens repisadas pela segui visitá-lo em condições difíceis.
reverenciado rigorosamente por todo o televisão. Impossível esquecer do apare- Esta semana, à última hora, depois de
arco da diversidade humana. lho em preto e branco do vizinho, diante muito chorar, criei coragem para prestar
Pelé nasceu como um artista pron- do qual eu, garoto apaixonado pela bola, uma homenagem ao amigo e fui a Santos
B A P T I S TÃ O

to. Sua essência está explicitada na ima- passava a seguir ainda mais fielmente o acompanhar sua despedida.
gem que traz no seu olhar e no seu sorri- conselho do sábio popular: “Agarrado à Adeus ídolo, companheiro e amigo. •
so – das últimas às primeiras. Houve um bola como a um prato de comida”. redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 9
CA PA

A posse
do líder
A FUGA DE BOLSONARO PROPICIA
O FELIZ ENCONTRO DE
LULA COM O SEU POVO

por MINO CA RTA

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
L
ula concluiu a epo- Os representantes do povo brasileiro chegam para transmitir
a faixa e ao chefe botocudo Raoni cabe um papel importante
peia do menino nor-
destino que veio a
São Paulo na boleia
de um caminhão pa-
ra ascender ao longo
dos anos ao comando
da Nação. Pronunciados foram dois dis-
cursos, um no Congresso, outro no parla-
tório do Palácio do Planalto, para a mul-
M Ô N I C A Z A R AT T I N I E S E R G I O L I M A /A F P

tidão aglomerada na Praça dos Três Po-


deres. Foram falas extremamente subs-
tanciosas, traçadas para definir a pauta
do governo destinado a enfrentar os pro-
blemas brasileiros, a fim de resolvê-los
no menor espaço de tempo possível.
A tônica confere aos problemas sociais
uma primazia às condições do povo brasi-
leiro, atingido pela miséria e pela fome, ou
seja, por um desequilíbrio monstruoso na

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 11
CA PA

distribuição de renda. Neste momento, o


presidente se comove e, como já se deu em
muitas outras ocasiões, as lágrimas for-
talecem o pronunciamento. Em busca do
equilíbrio, o presidente anuncia uma série
de providências determinantes nos cam-
pos da Educação e da Saúde: é o encami-
nhamento de um programa de bem-estar
social de largo alcance.
CartaCapital apoia in totum os propósi-
tos presidenciais, que correspondem exa-
tamente às nossas esperanças, entre elas o
cancelamento integral de toda e qualquer
herança bolsonarista. Trata-se até de re-
cuperar as chaves dos gabinetes do tercei-
ro andar o Palácio do Planalto, que o ener-
gúmeno demente carregou ao sair de ce-
na. De todo modo, a ação purificadora exi-
ge a punição dos famigerados integrantes
da chamada República de Curitiba, Sergio
Moro e Deltan Dallagnol, condutores da
Lava Jato, ponto inicial de muitas vicissi-
tudes políticas e sociais que se seguiram.

O
governo de total respeito,
montado na fase de transi-
ção, conta com conselhei-
ros inspiradores de gran-
de qualidade. No gabinete
brilha a estrela de vários velhos amigos
de CartaCapital. De Celso Amorim, es-
calado como conselheiro especial na de-
finição da política externa, a Flávio Dino
no Ministério da Justiça, passando por
Jaques Wagner na liderança do Senado,
Wellington Dias, convocado para cuidar
do Bolsa Família a partir do Ministério do
Desenvolvimento Social, Luiz Marinho
no Ministério do Trabalho, Marina Silva
no Meio Ambiente, Rui Costa na Casa
Civil, Alexandre Padilha nas Relações
Institucionais e Camilo Santana condu-
zindo o Ministério da Educação.
Ao atual prefeito de Araraquara, Edinho
Silva, certamente caberá alguma fun-
ção estratégica. Permito-me esperar que
Marco Aurélio Santana Ribeiro, o Marcola,
outro amigo muito querido, siga para o Pla-
nalto para, entre outras funções, cuidar
da agenda de Lula. Tive a oportunidade Uma aliança decisiva

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
de privar com ele, em Curitiba, quando da Passeio no vetusto Rolls-Royce presidencial pular à posse do presidente pela terceira
entre os aplausos da multidão
prisão do chefe na sede da Polícia Federal, vez, a conferir a Lula uma dimensão de lí-
e constatei seu caráter e senso de respon- der e estadista de um Brasil esperanço-
sabilidade invulgares. so, embora CartaCapital percebe a dú-
Lula também se refere ao golpe sofrido vida que a esperança contém. Nem mais
por Dilma Rousseff e a afirmação encerra nem menos que a multidão aglomerada
a ameaça de dias difíceis para o usurpador diante do Palácio do Planalto, confiamos
Michel Temer, que prendeu a presidente no empenho do líder.
no Palácio da Alvorada, onde CartaCapital Mundo afora, a imprensa e a opinião
a entrevistou naquele momento contur- pública anotam o significado dos eventos
bado, para colher um depoimento digno e brasileiros. Sinais inequívocos de uma si-
valente em meio à tormenta. Não é arris- tuação que aponta no País uma liderança
cado, de todo modo, prever turbulências transparente da América Latina. A fuga
a curto prazo, a partir do anúncio da re- de Bolsonaro para os Estados Unidos ofe-
vogação de privatizações e impedir novas. receu a Lula a oportunidade de conduzir
As reações dos opositores chegam até as cerimônias da posse a um script ines-
à compra de emissoras de rádio e televi- perado e mesmo assim comovente. E na
são para produzir programas virulentos encenação cabe a relevância do papel re-
E VA R I S T O S Á /A F P E S E R G I O L I M A /A F P

contra o novo presidente. Como sempre, servado à delegação popular chamada a


aplaudimos, aqui do nosso canto, a pauta cumprir a cerimônia da passagem da faixa
do novo governo, sem deixar de perceber presidencial. Marcante a subida da ram-
os embates que a determinação presiden- pa com Lula de braço dado com o cacique
cial inevitavelmente vai provocar. Cre- Raoni, devidamente paramentado pelo
mos que Lula saiba dos riscos a correr, seu traje oficial, cocar e tudo o mais. Na-
mas as dificuldades são evidentes, sus- da a merecer surpresa, de braço dado en-
cetíveis de produzir turbulências a cur- A tragédia do desiquilíbrio social frentaram a rampa o chefe da nação in-
to prazo. Impressiona a participação po- move a comoção de Lula dígena e o chefe de todos os brasileiros. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 13
CA PA

O discurso
e a ação
PARA DE FATO COMBATER A DESIGUALDADE,
PROMESSA NA POSSE, LULA TERÁ DE ENFRENTAR
INTERESSES PODEROSOS E SECULARES

por A NDR É BA R ROCA L

A
o assumir o poder esta será a grande marca do nosso gover- Que seis bilionários brasileiros tenham
em 1º de janeiro no”, disse Lula agora. “Por isso, eu e meu uma riqueza equivalente ao patrimônio
de 2019, Jair Bol- vice, Geraldo Alckmin, assumimos ho- dos 100 milhões mais pobres. Que um tra-
sonaro tinha em je, diante de vocês e de todo o povo bra- balhador ou trabalhadora que ganha um
mãos um discur- sileiro, o compromisso de combater dia e salário mínimo mensal leve 19 anos para
so escrito por au- noite todas as formas de desigualdade.” O receber o equivalente ao que um super-
xiliares a conter presidente recém-empossado citou ainda -rico recebe em um único mês”, insistiu.
a expressão “desigualdade social”. Eram um “grande mutirão” e uma “frente ampla No fim do primeiro ano de Bolsonaro,
palavras para pronunciar do parlatório, contra a desigualdade”. “É inadmissível o Brasil aparecia em um estudo da ONU
a sacada na frente do Palácio do Planalto, que os 5% mais ricos deste País detenham com a medalha de prata em concentra-
sede do governo. No rito das posses presi- a mesma fatia de renda que os demais 95%. ção de renda. O 1% mais rico embolsa-
denciais brasileiras, há dois discursos. O va 28% das riquezas nacionais. Perdía-
primeiro no Congresso, diante dos parla- mos somente para o Catar (concentra-
mentares, inclusive aqueles de oposição. O GOVERNO ção de 29%), emirado minúsculo (1% da
O outro, do parlatório, com o chefe da na- PROMETE MUDAR população brasileira) e autocrático, no
R I C A R D O S T U C K E R T E T O M A Z S I LVA /A B R

ção perante uma plateia de simpatizan- O SISTEMA qual é impossível separar a fortuna real
tes, presume-se. Cerca de 40 mil brasilei- do PIB. A desigualdade econômica não
ros ouviram Lula, da Praça dos Três Po-
TRIBUTÁRIO E é, no entanto, a única na mira no tercei-
deres, mencionar 19 vezes o termo “desi- TAXAR OS MAIS ro mandato de Lula.  Há também aque-
gualdade”, que Bolsonaro havia se negado RICOS, COMO la entre mulheres e homens e entre ne-
a citar quatro anos antes e que o próprio ACONTECE NOS gros e brancos no mercado de trabalho,
petista não utilizara duas décadas atrás, na política e no setor público.
em sua primeira posse.
PAÍSES Tarefa monumental para quatro
“Foi para combater a desigualdade e su- DESENVOLVIDOS anos. As disparidades estão entranha-
as sequelas que nós vencemos a eleição. E das na vida nacional graças, entre ou-

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
No terceiro mandato, há mais mulheres na equipe ministerial do que antes. tras razões, a três séculos de escravatu-
À multidão, o petista comprometeu-se a reduzir as diferenças sociais, raciais e de gênero
ra. “Ouso dizer que o Brasil ainda não en-
frentou a contento os horrores da escra-
vidão”, disse o ministro dos Direitos Hu-
manos, Silvio Almeida, negro, no mais
contundente discurso ministerial de
posse nos últimos dias. “O que permite
que a obra da escravidão se perpetue no
racismo, na fome, no subemprego e na
violência contra os homens e as mulhe-
res pretas e pobres deste País.” 
Na posse da pasta da Previdência, Car-
los Lupi defendeu uma nova reforma no
setor. Quer remover certas dificuldades
impostas à aposentadoria pela mudan-
ça operada no governo Bolsonaro. Es-
pécie de contrarreforma. Lula não gos-
tou da declaração, pois o assunto não ti-
nha sido discutido previamente. E con-
vocou uma reunião ministerial para a
sexta-feira 6, na qual pretendia avisar
que ninguém deve anunciar nada sem
combinar antes com ele.
Outro bate-cabeça envolveu Flávio
Dino, ministro da Justiça, e José Múcio,
da Defesa. Este maneirou com os golpis-
tas bolsonaristas acampados na porta de
quartéis. Ao tomar posse, classificou os
protestos como “manifestações da de-
mocracia”. Dino quer o fim imediato dos

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 15
CA PA

acampamentos. A trajetória dos dois ex- O Brasil é o vice-campeão em concentração dos impostos indiretos, que incidem sobre
plica suas posições. O titular da Justiça é de renda. Perde apenas para o Catar, o consumo e, por isso, pesam mais entre
emirado minúsculo e autocrático
do PSB, progressista. Múcio era do parti- os pobres. Uma família carente não eco-
do da ditadura no passado, a Arena. Foi es- nomiza, gasta tudo com a própria sobrevi-
colhido por Lula como superior das For- No discurso de posse no Congresso, Lula vência (comida). Quanto mais um produ-
ças Armadas em razão do estilo jeitoso, disse que “as responsabilidades por este to é tributado, pior para ela. Cerca de 40%
traço necessário para lidar com a atual ca- genocídio hão de ser apuradas e não de- da carga fiscal brasileira advém da taxação
serna. Aliás, há uma crise à vista com o vem ficar impunes”. E no caso de Bolsona- indireta (ICMS, ISS, IPI etc.), conforme
Exército no governo. Está na mesa do mi- ro, haverá processos na Justiça comum, pesquisa de 2021 do Instituto de Estudos
nistro da Controladoria-Geral da União, agora que ele perdeu o foro privilegiado? para o Desenvolvimento Industrial, o Iedi.
Vinicius Marques de Carvalho, o caso do No caso das sete imputações de crime co- Na OCDE, clube de países ricos e simpati-
sigilo de cem anos imposto pelo Exército mum feitas ao capitão pela CPI da Covid, zantes ao qual o Brasil deseja aderir desde
ao processo que absolveu o general Eduar- vai depender do que o procurador-geral o governo Temer, a média é de 32%. Aqui,

M A RCELO CA M A RG O/A B R , R ED ES SO CI A IS E R A IM U N D O PACCÓ/A F P


do Pazuello de punição por ter, como ofi- da República, Augusto Aras, fará com a renda e patrimônio respondem por 29%
cial da ativa, subido em um palanque polí- papelada até setembro, quando termina da carga. Lá, por 39%. A reprodução do pa-
tico-eleitoral com Bolsonaro em março de seu mandato. Aras está sentado sobre o drão da OCDE melhoraria a vida e o po-
2021. Carvalho decidirá se o Exército de- documento desde outubro de 2021. der de compra dos brasileiros mais pobres
ve ou não liberar o acesso ao processo para sem aumentar a carga geral. Seria uma re-

A
aqueles que o solicitaram via Lei de Aces- declaração sobre punir distribuição do ônus. Mas, claro, haverá
so à Informação. Segundo CartaCapital genocidas foi a surpre- gritaria dos perdedores, os endinheirados.
apurou, a CGU dirá ao comando que o si- sa do discurso de Lula no A reforma dos tributos indiretos foi de-
gilo não se justifica.  Congresso. Naquele do batida no Congresso no governo Bolsona-
Pazuello foi no ano passado o segun- parlatório, como se viu, o ro. Há uma proposta na Câmara, de au-
do deputado federal mais votado no Rio destaque foi o compromisso com o comba- toria do deputado paulista Baleia Rossi,
de Janeiro pelo PL de Bolsonaro. O man- te às desigualdades. Um tema que tem tu- presidente do MDB, e outra no Senado, do
dato o ajudará a se proteger de processos do para esbarrar no Congresso, ao menos amapaense Davi Alcolumbre, do União
por sua atuação como ministro da Saúde naquilo que atinge o bolso do topo da pirâ- Brasil. O espírito de ambas é o mesmo:
na pandemia? O Brasil acumula 693 mil mide. O governo está disposto a comprar a pôr fim ao emaranhado de legislações re-
mortes por Covid, 10% do total mundial, briga da taxação dos mais ricos logo após gionais e nacional por meio da criação de
embora tenha 2,5% da população global. o Legislativo votar mudanças nos chama- um imposto novo e unificador. Mas há di-

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ferenças. O projeto de Alcolumbre pre- 20 mil cidadãos que, estima a Receita Fe-
serva a guerra fiscal (oferta de benesses deral, embolsa 230 bilhões de reais por
por um estado a uma empresa, em tro- ano limpinhos de IR. Guedes queria ta-
ca de investimentos) e garante certa au- xar esses bem-aventurados. Enviou um
tonomia legal às unidades da Federação. projeto ao Congresso em 2021, a propor
O de Rossi tem como um de seus cabe- uma mordida de 20%. O “Leão” estima-
ças o economista Bernard Appy, escolhi- va uma arrecadação de 58 bilhões de reais
do pelo ministro da Fazenda, Fernando anuais. Os deputados aprovaram o texto,
Haddad, para ser assessor encarregado embora tenham reduzido a alíquota a 15%
do tema “reforma tributária”. Na segun- e aproveitado para diminuir também, de
da-feira 2, o ministro reuniu-se com a 15% para 8%, o Imposto de Renda das em-
colega do Planejamento, Simone Tebet, presas. A bancada do PT votou a favor do
e ouviu por que o governo Bolsonaro não projeto, que depois empacou no Senado.
encampou essa reforma. Paulo Guedes, o

O
finado “Posto Ipiranga”, exigia em troca Marinho volta ao Ministério do Trabalho. utra mudança que Lula
a volta da CPMF, contou Tebet. Almeida pronunciou um discurso contundente quer para o Imposto de
A intenção de Haddad é abraçar a par- Renda também estava
tir de abril a reforma dos impostos indi- nos planos de Guedes. É o
retos. Liquidado esse tema, Lula preten- fim das deduções de gas-
de mandar ao Congresso uma proposta de tos com planos de saúde. O desconto re-
alteração no Imposto de Renda e sobre pa- presenta uma renúncia fiscal de 25 bi-
trimônio. Foi o que Haddad disse no fim lhões por ano, de acordo com as estima-
de novembro, em uma confraternização tivas da antiga equipe econômica. Em um
da Febraban, a federação dos bancos. E o evento em 13 de dezembro, ainda antes da
que repetiu em uma entrevista nos últi- posse, o petista comentou a situação atual
mos dias, na qual teorizou que o Estado da seguinte forma: de um lado, o SUS com
brasileiro promove alguma distribuição longa fila de espera para os mais pobres
de renda via gasto público, mas vai na con- conseguirem consulta com especialista,
tramão quando se trata de tributar. Um de outro, a classe média que paga convê-
documento de 2019 do PT a defender uma nio e abate a despesa de declaração anual
“reforma tributária justa e solidária” dá de ajuste. “E não digam que eu sou radical:
pistas sobre o que pode vir por aí. Taxação eu faço exame todo ano e todo ano o que eu
de jatinhos e iates com IPVA, elevação do gasto eu desconto do Imposto de Renda.
“IPTU dos fazendeiros” (o ITR), que ren- Portanto, quem está pagando o tratamen-
de uma ninharia hoje, instituição de tri- to que nós temos é o pobre”, afirmara na
butos sobre grandes fortunas e grandes ocasião. “É por isso que nós precisamos
heranças e retomada do Imposto de Ren- pensar numa reforma tributária para ver
da sobre lucros e dividendos distribuídos se a gente consegue corrigir um pouco as
SILVIO DE ALMEIDA,
a sócios de uma firma.  injustiças.” Na educação, acontece o mes-
A isenção de IR nos lucros e dividen- MINISTRO DOS mo. Há dedução do Imposto de Renda das
dos é uma jabuticaba existente apenas no DIREITOS despesas com ensino privado, renúncia
Brasil e na Estônia. Surgiu em 1995, pri- HUMANOS: “O fiscal da ordem de 5 bilhões anuais.
meiro ano do governo Fernando Henri- O mercado de trabalho é outra fonte
BRASIL AINDA NÃO
que Cardoso. Uma festa para os super- de desigualdades que precisam ser ata-
-ricos, contratados para trabalhar co- ENFRENTOU A cadas, segundo o novo ministro do Tra-
mo “pessoa jurídica”. Um empregado CONTENTO OS balho, Luiz Marinho, ocupante da pasta
com carteira assinada paga até 27,5% de HORRORES DA no primeiro mandato de Lula. A posse do
Imposto de Renda (foram 36 milhões de ex-sindicalista foi um caso raro no qual
ESCRAVIDÃO”
declarantes no ano passado). Os super-ri- o antecessor, José Carlos Oliveira, este-
cos não pagam quase nada, uma trupe de ve presente à solenidade e até discursou.

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 17
CA PA

“A desigualdade está enraizada no mundo para negociar apoio ao governo, diz um


do trabalho e nele é reproduzida entre ho- parlamentar. Não seria de bom-tom ele e
mens e mulheres, brancos e negros. Pro- seu partido pularem abertamente do colo
mover a igualdade nas condições de tra- de Bolsonaro para o de Lula. Mas o petis-
balho e de remuneração entre mulheres, ta pode confiar no parlamentar? Este, res-
homens, negros e brancos será uma prio- salte-se, não conta mais com o orçamen-
ridade deste ministério”, afirmou Mari- to secreto, proibido em dezembro pelo Su-
nho. Dados do IBGE, o órgão oficial das premo Tribunal Federal. 
estatísticas, mostram que negros e pardos Com o Congresso fechado até o fim de
ganham, em média, cerca de 60% do salá- janeiro, o presidente da República come-
rio de um branco, 1,8 mil e 3 mil, respecti- çou a usar a caneta. No dia da posse, bai-
vamente. Os autodeclarados negros e par- xou uma medida provisória a assegurar o
dos, registre-se, compõem 55% da popu- valor de 600 reais para o Bolsa Família,
lação. No caso das mulheres, o salário é promessa de campanha. Assinou também
de 80% daquele recebido por um homem, um decreto a restringir a circulação de ar-
2 mil e 2,6 mil, respectivamente. E, res- mas, na contramão do que tinha feito o an-
salte-se também, elas são 52% da popu- tecessor. Quem quiser requerer o porte e
lação. No ano passado, o governo Bolso- a posse de armas a partir de agora terá de
naro patrocinou uma lei de igualdade sa- provar a necessidade. O mesmo decreto
larial entre homens e mulheres, de olho criou um grupo de trabalho no Ministé-
no voto feminino. O Congresso aprovou- rio da Justiça para estudar uma nova re-
-a em setembro. Dino assumiu o compromisso de identificar os gulamentação para o Estatuto do Desar-
mandantes do assassinato de Marielle Franco mamento, de 2003. Flávio Dino prometeu

O
futuro Congresso ten- na posse encontrar os mandantes do as-
de, no entanto, a ser uma se Lula ou Bolsonaro, o Parlamento saí- sassinato, em 2018, da vereadora Marielle
barreira às ambições re- do das urnas seria de centro-direita. Franco e seu motorista, Anderson Gomes.
distributivas do governo A montagem do atual ministério não foi Anielle Franco, irmã de Marielle, é a atual
Lula. Não só pelo fato de o suficiente para garantir a Lula uma sólida ministra da Igualdade Racial.
partido de Bolsonaro, o PL, ter elegido 99 base de apoio no Congresso. Ainda serão A área ambiental mereceu a maior cane-
deputados, a maior bancada da Câmara, necessárias conversas e negociações, es- tada de Lula. Com cinco decretos, o presi-
nem por figuras como Damares Alves, pecialmente na Câmara, disse a presiden- dente ressuscitou planos de ação contra o
Hamilton Mourão e Sergio Moro terem te do PT, Gleisi Hoffmann, a CartaCapital. desmatamento, viabilizou o uso do Fundo
chegado ao Senado. A bancada patronal é Um terreno em que, digamos, o “proble- da Amazônia, formado com dinheiro do-
formada por 210 parlamentares, 35% do ma” é Lira, candidatíssimo à reeleição pa- ado por Alemanha e Noruega, e proibiu o
total de deputados e senadores, e a banca- ra o comando da Casa em fevereiro. O de- garimpo artesanal, entre outras coisas. A
da sindical, por apenas 41, ou 7%, confor- putado do PP escondeu-se atrás do partido posse de Marina Silva como ministra do
me tradicional radiografia legislativa feita União Brasil, agraciado com três pastas, Meio Ambiente, três dias depois dos decre-
pelo Diap, o Departamento Intersindical tos, foi uma das mais concorridas. A do vi-
de Assessoria Parlamentar. Os patrões, ri- ce-presidente Geraldo Alckmin como mi-
cos, vão votar contra os interesses da sua O CONGRESSO, nistro da Indústria, na véspera, também
classe? A favor do fim das deduções de saú- DOMINADO POR reuniu um público grande no Planalto.
de e educação do Imposto de Renda? Da Elogiado pelo presidente da Confedera-
taxação de jatinhos e iates com IPVA? A
EMPRESÁRIOS, ção Nacional da Indústria, Robson Andra-
propósito, em 2003, primeiro ano de Lula, SERÁ UM de, Alckmin defendeu a “reindustrializa-
CAROLINA ANTUNES/MJSP

o governo propôs uma reforma tributária EMPECILHO ÀS ção” do País e até falou em “política indus-
com cobrança de IPVA em jatinhos e ia- REFORMAS QUE trial”, conceito que o “mercado” sataniza.
tes. O texto foi aprovado na Câmara, mas Com o compromisso de combater as
engavetado no Senado. Adendo: o atual
DISTRIBUAM RENDA desigualdades, é de se perguntar: quan-
presidente da Câmara, Arthur Lira, re- E PATRIMÔNIO do começará a satanização do próprio
petia durante a campanha que, ganhas- presidente? •

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
JAQUES WAGNER

O Brasil está de volta

Brasil, de braços dados com a esperança”. Promoção da Igualdade Racial, o Brasil


► E o ressurgimento O Brasil voltou para ouvir o presiden- voltou a ser um país comprometido com
do País não poderia te Lula pedir que essa alegria “seja a ma- o enfrentamento ao racismo. O órgão vai
téria-prima da luta de amanhã e de todos ampliar a política de cotas nas universi-
ter acontecido de modo os dias que virão e que a esperança fer- dades e no serviço público, além de reto-
mais simbólico do que mente o pão que há de ser repartido entre mar políticas voltadas ao povo negro na
presenciando Lula subir todos”. E que, na luta pelo bem do Brasil, saúde, na educação e na cultura. O pre-
usemos “as armas que nossos adversá- sidente fez questão de dizer que temos o
a rampa do Planalto de rios mais temem: a verdade, que se sobre- dever de “enterrar a trágica herança do
braços dados com o povo pôs à mentira; a esperança, que venceu o nosso passado escravista”.
medo; e o amor, que derrotou o ódio”. O O Brasil voltou a ter um Ministério da
País voltou a reunir todas as condições Cultura. A refundação do MinC reacen-

O
início de um novo ano sempre para tornar a ser uma potência ambien- de a esperança num setor produtivo que
nos inspira a renovar as espe- tal e a liderar globalmente as discussões emprega milhões de brasileiros e brasi-
ranças e a desejar que um ciclo sobre o enfrentamento às mudanças cli- leiras, e concretiza o restabelecimento de
de crescimento se estabeleça em nossas máticas. Teremos novamente uma ges- políticas de incentivo e acesso aos bens
vidas. Só que, desta vez, o mundo intei- tão ambientalmente responsável, capaz culturais, interrompidas pelo cenário
ro acompanhou a chegada de 2023 com de incentivar a bioeconomia e empre- perverso de perseguição à cultura e aos
uma única certeza: “O Brasil está de vol- endimentos da sociobiodiversidade, in- nossos artistas nos últimos anos.
ta”. A frase, dita por Lula durante a COP vestir na agricultura familiar e fomen- É chegada a hora, portanto, de abra-
27, no Egito, se materializou em uma tar uma indústria cada vez mais verde. çarmos o desafio de reconstruir este
grande celebração no último dia 1º de país. A realidade que se apresenta não é
janeiro, quando ele foi novamente em- O Brasil voltou para ver o presidente nada fácil, uma vez que os buracos deixa-
possado presidente da República. E o Lula, no seu primeiro dia de governo, edi- dos no orçamento pelo governo anterior
ressurgimento do País não poderia ter tar uma série de decretos que, entre outras são enormes, além do desmonte crimino-
acontecido de modo mais simbólico do coisas, abre espaço para a reestruturação so da rede de proteção social que cons-
que presenciando Lula subir a rampa do do Conselho Nacional do Meio Ambiente, truímos. Por isso, e por tantas outras ra-
Planalto de braços dados com represen- revoga a decisão que flexibilizava as leis de zões, acredito que 2023 será inteiramen-
tantes da sociedade civil e exaltando to- combate ao garimpo ilegal e ainda resta- te dedicado a organizar a casa e a reco-
da a diversidade do povo. Essa cena fi- belece o Fundo Amazônia. Com esse dis- locar as coisas em seus devidos lugares.
cará marcada para sempre na história. positivo criado por Lula em 2008, serão Essa missão deve ser encarada com
O Brasil voltou a se enxergar, a se reen- destravados os 3,3 bilhões de reais dispo- trabalho, união e muito diálogo. Tenho
contrar e a celebrar o fato de que, agora, níveis e devemos receber novos repasses certeza de que, sob a liderança de Lula,
temos novamente um líder que governará para fortalecer ações de prevenção, mo- vamos conseguir devolver a esperança ao
para todas e todos, “olhando para o nosso nitoramento e combate ao desmatamen- povo e fortalecer cada vez mais a nossa
luminoso futuro em comum, e não pelo re- to da maior floresta tropical do mundo. democracia. Pois como lembrou o pró-
trovisor de um passado de divisão e intole- O Brasil voltou para reconhecer a prio presidente: “Sob os ventos da rede-
rância”, como o atual presidente ressaltou. grandeza e valorizar a importância dos mocratização, dizíamos: ditadura nunca
Brasília voltou a ser ocupada por sorrisos nossos povos originários. Para isso, de mais! Hoje, depois do terrível desafio que
de alívio, gritos de esperança e tomada por maneira inédita, Lula criou o Ministério superamos, devemos dizer: democracia
brasileiras e brasileiros de todos os cantos, dos Povos Indígenas e deixou claro que a para sempre!”. E assim será, pois o ver-
testemunhas desse importante capítulo. estes brasileiros e brasileiras “devemos dadeiro Brasil, aquele que pertence a to-
B A P T I S TÃ O

Naquele 1º de janeiro, Lula fez questão de respeito e com eles temos uma dívida his- dos nós, enfim está de volta. •
reafirmar que “a alegria tomou posse do tórica”. Com a recriação do Ministério da sen.jaqueswagner@senado.leg.br

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 19
CA PA

Lula e o
desenvolvimento
PARA OS VANGUARDISTAS DO ATRASO, TUDO
QUE NÃO É CORTE DE GASTOS É GASTANÇA

por LUIZ GONZAGA BELLUZZO

C
ompreendi, desde o foram revigoradas pelo avanço do atraso “Ultimamente, parecia que Ray Dalio
início da jornada, que das classes dominantes e de seus segui- não estava lendo o Wall Street Journal em
deveria ser candidato dores. É isso mesmo, o Avanço do Atraso. sua villa de 2 mil metros quadrados pe-
por uma frente mais Tais manifestações do retrocesso la manhã, mas sim Das Kapital, de Karl
ampla do que o cam- ocorrem mesmo depois dos fracassos e Marx. ‘O capitalismo não funciona mais
po político em que tropeções do capitalismo tutelado pelo para a maioria das pessoas’, diz Dalio.
me formei, manten- ideário neoliberal. Em todas as regiões Até agora, o homem não foi suspeito de
do o firme compromisso com minhas ori- do planeta, é intenso o debate crítico que tendências socialistas. Ele é o criador do
gens. Esta frente se consolidou para im- reavalia as concepções e procedimentos maior fundo de hedge do mundo, estima-
pedir o retorno do autoritarismo ao País.” das políticas econômicas. do em cerca de 22 trilhões de dólares”.
A mediação democrática sugerida nas No dia 30 de dezembro de 2022, a re- No mesmo dia, o site Project Syndicate
linhas e entrelinhas do discurso de posse vista alemã Der Spiegel publicou uma ma- ofereceu aos leitores um artigo de Laura
do presidente Lula já sofre o assédio das téria sobre as desventuras do capitalismo Tyson, ex-chefe do Conselho de Asses-
falanges conservadoras e midiáticas. Ma- em sua forma contemporânea. A matéria sores Econômicos do Presidente na era
téria da Folha de S.Paulo, na edição de 2 de começa com o multimilionário Ray Dalio:  Bill Clinton. Nesse artigo, Tyson avalia
janeiro de 2023, adverte os leitores: os três programas econômicos de John
“Os discursos de posse do presidente Biden: Infrastructure Investment and
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste do- NA ÁREA Jobs Act (550 bilhões de dólares), Chips
mingo (1º) foram recebidos com ressalvas AMBIENTAL, and Science Act (280 bilhões), e Inflation
por analistas do mercado financeiro, que Reduction Act (394 bilhões).
se preocupam com a expectativa de um
O BRASIL TEM Nos arraiais dos vanguardistas do
governo muito interventor na economia”. UMA CONDIÇÃO atraso abrigados na Tropicália, a trilio-
Essas manifestações têm sido repetidas MUITO FAVORÁVEL nária investida desenvolvimentista nor-
nos cantos e recantos da grande mídia. São PARA RECEBER te-americana receberia impropérios dos
a expressão político-midiática das diver- sabichões das cavernas: gastança!  
gências lógicas e ontológicas sempre laten-
INVESTIMENTOS Tyson escorrega ao afirmar que estas
tes nas sociedades modernas urbano-in- ESTRANGEIROS não são medidas tradicionais de gastos
dustriais. No Brasil, essas discrepâncias para estimular a demanda. Em vez dis-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Ele está disposto a levar
adiante um programa
de reconstrução

so, são investimentos do lado da oferta to privado, não para substituí-lo. Assim, uma condição muito favorável para
para aumentar a capacidade econômi- uma parte significativa de seu financia- receber investimentos estrangeiros.
ca dos EUA, tanto em geral quanto em mento – na verdade, a maioria, no caso do Poderia emitir os Green Bonds, que se-
setores-chave, como semicondutores e IRA e do Chips – vem na forma de crédi- riam acolhidos ou comprados por insti-
energia renovável. tos fiscais para as empresas”. tuições financeiras privadas do mundo
Keynes ensinou que demanda efetiva O discurso de posse atesta que Lula es- inteiro, além do financiamento que po-
é um conceito fundado no “estado de ex- tá disposto a levar adiante um programa deria ser provido pelos bancos públicos
pectativas” dos que decidem a produção. de reconstrução: “Hoje, nossa mensagem internacionais 
Não se confunde, portanto, com o que se ao Brasil é de esperança e reconstrução. O Brasil pode apresentar projetos im-
convencionou chamar de demanda agre- O grande edifício de direitos, de sobera- portantes de transição energética. Tem
gada, um conceito-resultado. A interse- nia e de desenvolvimento que esta Na- gente muito capacitada para isso. A Pe-
ção entre as funções de oferta e de de- ção levantou, a partir de 1988, vinha sen- trobras seria transformada em uma em-
manda determina um ponto em que se do sistematicamente demolido nos anos presa de energia. Ela pode fazer isso por-
efetivam as decisões dos empresários-ca- recentes. É para reerguer este edifício de que tem muita competência e qualidade
pitalistas, a partir de certo estado de ex- direitos e valores nacionais que vamos técnica. Ademais, é preciso olhar o cená-
pectativas. Esse ponto se desloca ao lon- dirigir todos os nossos esforços”. rio internacional para negociar com os
go da curva de “demanda efetiva” diante prováveis parceiros na incontornável de-

E
das mudanças das avaliações empresa- stamos na era da hiperin- fesa do meio ambiente. 
riais. Na realidade, Keynes está afirman- dustrialização. Os méto- Para os economistas do mercado, a
do a interdependência entre oferta e de- dos da indústria invadi- construção institucional das formas po-
manda na economia capitalista. O inves- ram os serviços e o agro- lítico-sociais voltadas para o desenvolvi-
timento é gasto, quase sempre financiado negócio. A reindustrializa- mento não deve existir, porque o merca-
a crédito, que amplia a capacidade produ- ção vai exigir uma estratégia mais abran- do é o mercado em qualquer lugar. Estão
tiva. Afeta, portanto, oferta e demanda.  gente. Temos espaços na infraestrutura, apoiados em suposições que afirmam a
M A RCELO CA M A RGO/A BR

Em seguida, Tyson recupera-se e diz nas políticas ambientais e na transição eficiência do mercado na alocação de re-
que “todos os três programas são basea- energética se tivermos competência pa- cursos. Não há o que fazer, não há por que
dos no modelo público-privado que tem ra montar projetos eficientes com a par- gastar os neurônios, já escassos, em uma
sido crítico para a competitividade dos ticipação privada. Estado e mercado não estratégia de reconstrução estrutural.
EUA no século passado. Eles são projeta- se opõem, mas se complementam.  Isso lembra uma série de televisão dos
dos para atrair e acelerar o investimen- Na questão ambiental, o Brasil tem anos 60, Papai (o mercado) Sabe-Tudo. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 21
CA PA

A reação
do capital
NÃO É POSSÍVEL CRESCER SEM GASTO
PÚBLICO, MAS O MERCADO INSISTE NA
CANTILENA DA AUSTERIDADE FISCAL

por CA R LOS DRU MMON D

N
unca antes no tiu a redução dos preços dos combustí-
Brasil, a não ser veis nos últimos meses, seria prorroga-
nos mandatos da por ao menos dois meses, ao contrá-
anteriores de Lu- rio do que pretendia o ministro da Fa-
la, o dito mercado zenda, Fernando Haddad. Os investido-
ficou tão inquieto res receiam, com razão, uma redução dos
e a mídia mostrou lucros da Petrobras e consequente dimi-
tanta subserviência aos interesses das nuição dos dividendos que irão receber, cesso decisório rotineiro em um gover-
instituições financeiras como aconteceu em decorrência da prorrogação da re- no democrático. A verdade é que o minis-
nos dias seguintes à posse do novo presi- núncia fiscal, isto é, da manutenção dos tro da Fazenda, Fernando Haddad, está
dente. O alarde dos meios de comunica- preços baixos dos derivados. Há, no en- certo ao pleitear o fim da renúncia fiscal,
ção em torno das preocupações de execu- tanto, outros aspectos a considerar. para recuperar recursos fundamentais
tivos e acionistas de bancos e corretoras Ao insistir na reversão imediata da de- às políticas públicas, mas Lula também
deixou claro que, ao menos do ponto de soneração, com alta instantânea dos pre- tem razão ao adiar essa reversão, devido
vista desses setores, nada é mais impor- ços dos derivados, e criticar a mudança ao forte impacto do preço dos derivados
tante para a vida e o bem-estar da socie- de posição de Brasília sobre o assunto, o de petróleo em todo o sistema de preços
dade do que seguir as prioridades que eles mercado e a mídia dão as costas ao pro- e no poder aquisitivo da população, po-
elegeram. A ordem é, ao que parece, dei- sição que prevaleceu.
xar barato o terrorismo social e político A choradeira dos investidores e seus
da gestão precedente e incorporar como agentes, a venda em massa de ações da
A ESTUPIDEZ DO
fato da vida o terrorismo econômico dos Petrobras, a recriminação da decisão fi-
defensores da austeridade eterna. TETO DE GASTOS nal do governo e a sua total acolhida pe-
A forte queda da Bolsa e a alta do dó- TEVE COMO MAIOR la mídia mostram tanto o domínio do in-
lar na primeira segunda-feira após a pos- PREJUDICADO teresse do acionista privado no interior
se foi atribuída à informação de que a re- da empresa pública quanto o acerto do
O SUS, DIZ LULA
núncia fiscal eleitoreira do ICMS, ope- presidente Lula de retirar do programa
rada pelo governo anterior, que permi- de privatização a petroleira, assim como

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
tam o fracasso da tentativa ultraliberal
de impulsionar a economia apenas com
A mídia não presta atenção investimento privado.
à maior taxa de juros do
mundo, queixa-se Haddad Em seu discurso de posse no Senado,
Lula mencionou a “estupidez do teto de
gastos”, que teve como “talvez o maior
prejudicado o SUS, uma das mais demo-
cráticas instituições criadas pela Consti-
tuição de 1988”. Nas declarações de agen-
tes do mercado aos jornais ficou eviden-
te, no entanto, o medo provocado pela
derrubada definitiva da regra autoritá-
ria. Como disse um executivo de correto-
ra ao Valor, “coloca dúvidas sobre a ma-
nutenção de uma política fiscal controla-
da”. Essa “política fiscal controlada”, ca-
be frisar, jamais existiu, pois o teto não
foi respeitado em orçamento algum des-
de a sua instituição, apesar de a regra es-
tar inscrita na Constituição.

A
obsessão em relação à po-
lítica de austeridade radi-
cal desconsidera a expres-
siva geração de superávits
primários nos governos
Lula, com uma média anual de 3,4% do
PIB. Comprovadamente ineficaz e inde-
vidamente constitucional, o teto de gas-

os Correios, a EBC, o Dataprev, a Nuclep,


o Serpro e a Conab. Acrescente-se que,
ao determinar o fim de várias privatiza-
ções em preparação, Lula suprime um
negócio atraente para as instituições fi-
nanceiras, de intermediação da venda de
empresas estatais e participações acio-
nárias, e esta é parte da explicação para
NELSON A L MEIDA /A FP E M A RCELO CA M A RGO/A BR

a reação negativa do mercado ao governo.


A PEC da Transição, obra de engenha-
ria política imposta pela irresponsabili-
dade do governo anterior, que não pre-
viu recursos no Orçamento para pagar o
Auxílio Brasil, foi apelidada por meios de
comunicação, como a Folha de S.Paulo,
de “PEC da Gastança”. Se não for corte,
é gastança, parecem decretar o merca-
do e a mídia. Não explicam, porém, co-
mo seria possível retomar o crescimento
sem elevar o gasto público, nem comen- O problema não são os interesses do mercado, e sim a subserviência dos meios de comunicação

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 23
CA PA

tos era a única regra fiscal do mundo com


aquele status. Uma anomalia que funcio-
nou como uma espada de Dâmocles sobre
a cabeça dos governos durante os sete anos
em que vigorou e, não fosse a sua derruba-
da por Lula, continuaria por mais 13 anos.
É importante destacar que, para o
mercado, tanto a PEC dos Precatórios,
que inverteu as expectativas positivas
quanto a uma redução da relação dívida/
PIB, quanto a PEC Kamikaze, outro no-
me da bilionária compra de votos, ambas
do governo Bolsonaro, e a PEC da Transi-
ção, do atual governo, de urgência urgen-
tíssima para aplacar a fome, tratar doen-
ças e resolver outras necessidades de de-
zenas de milhões de pessoas, têm exata-
mente a mesma importância por aumen-
tarem gastos, apesar de tratarem de de-
sembolsos com finalidades completa-
mente diferentes. O problema não está,
contudo, em uma propalada insensibili-
dade do mercado diante da urgência do
gasto social, mas na sua regulação insu-
ficiente e na submissão da mídia aos inte-
resses das instituições financeiras.

N
ervoso diante do fim do
teto, da suspensão das Os defensores da austeridade parecem não se to expressivo do endividamento público,
importar com a qualidade da merenda escolar
privatizações, de um su- que os gastos autorizados pelo Congresso
posto risco de revisão da se destinam aos mais pobres e a investi-
reforma da Previdência, nomista Fábio Terra, professor da Uni- mentos com alta capacidade de dinami-
de mudanças no marco regulatório do sa- versidade Federal do ABC e do Programa zar a economia e, assim, melhorar a ati-
neamento, do cancelamento de isenções de Pós-graduação em Economia da Uni- vidade econômica privada e o potencial
tributárias, o mercado e a mídia dão de versidade Federal de Uberlândia. “PEC arrecadatório público. “A gastança que se
barato, no entanto, a alta radical dos ju- da Gastança sugere farra com dinheiro constata é a de palavras e análises rastei-
ros no Brasil, provocada pela “farra elei- público, uso de recursos públicos sem li- ras e míopes”, dispara Terra. O professor
toral” de 300 bilhões de reais promovi- mites e propósitos. É uma péssima desig- da UFABC sublinha o fato de que a po-
da pela administração anterior, lembra nação. Foge aos olhos de quem utiliza es- lítica fiscal dos governos Lula concreti-
Haddad. Os juros aumentaram de 2% pa- sa expressão, que as despesas a mais au- zou uma “coordenação pragmática”, com
ra 13,75% e o País, apesar de ter uma in- torizadas pela PEC da Transição têm li- uma atração do investimento privado
flação menor que a dos EUA e dos países mite, não implicam gasto público sobre o que permitiu, inclusive, o enfrentamento
europeus, tem hoje a maior taxa de juros PIB maior e têm finalidades específicas anticíclico da crise subprime de 2008. Es-
real do mundo. criteriosamente delimitadas, sobretudo sa coordenação incluiu “uma boa cone-
A elaboração de um novo arcabou- uma política social que busca melhorar xão das políticas monetária, fiscal, cam-
ço fiscal, conforme definido na PEC de as condições de vida da população mais bial e de transferência de renda e dessas
Transição e prometido por Haddad pa- pobre, abandonada nos últimos quatro políticas com as necessidades e capaci-
ra este semestre, é fundamental para en- anos”, destaca o economista. dades do setor privado”.
cerrar o “eterno debate” sobre a questão Os adeptos da expressão desconside- Apesar de os juros medidos pela taxa
da política fiscal, chama atenção o eco- ram que a PEC não implicará crescimen- Selic permanecerem acima de dois dígi-

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
vernos anteriores de Lula. Segundo Ter- butária recorde, a regra do teto de gas-
ra, o presidente “coordenava muito bem as tos está impondo cortes. Não por acaso,
expectativas empresariais, nada era feito no último relatório trimestral, entregue
de forma voluntarista ou como surpresa, em novembro, o governo propôs mais um
tudo era conversado, compreendido, co- corte, muito associado a um crescimen-
municado, ou seja, coordenado. A coor- to das despesas obrigatórias, pelo repre-
denação era pragmática, não impunha ao samento anterior das filas da Previdên-
setor privado o que ele deveria fazer, mas cia, que foram sendo reduzidas mais re-
o trazia a participar, o que chamamos de centemente e isso aumentou as despesas
crowding in no economês”. obrigatórias e exigiu um corte nas dis-
Foi a melhor época de crescimento do cricionárias. E a composição dos gastos
País nos últimos 40 anos, destaca o pro- federais acaba recaindo sempre sobre as
fessor da UFABC, e foi muito eficaz para duas principais despesas que não são to-
combater os efeitos da crise do subprime. talmente obrigatórias, saúde e educação
Os setores público e privado estavam nu- e investimentos, que já estavam em um
ma mesma direção econômica, de mãos patamar bastante reduzido.
dadas. “Quando isso é bem feito, como nos

O
governos Lula I e II, a economia deslancha. novo arcabouço fiscal,
Em dezembro de 2008, o desemprego es- que o governo prevê con-
tava ao redor de 6%, foi a 9% em março de cluir ainda no primeiro se-
2009, com o Brasil atingido pela crise, e en- mestre, deve considerar os
cerrou 2009 em 6% novamente. Eis o que seguintes princípios, de
coordenação gera, sucesso econômico.” acordo com Dweck: 1) É preciso substi-
Terra sugere que o atual governo siga o tuir todo o conjunto de regras fiscais exis-
que se fez na passagem de Lula I para II, tentes; 2) Há necessidade de se levar em
com a lógica do PPI-PAC. Levará um bom conta uma taxa de crescimento real po-
tempo até o País se livrar de todos os efei- sitiva dos gastos, para evitar o efeito re-
tos perniciosos do atual arcabouço fiscal. cessivo de uma norma como o teto de gas-
tos entre 2003 e 2009, caindo para me- “As três principais regras fiscais precisam tos; 3) Deve-se contemplar a possibilidade
nos de 10% apenas quando o Brasil foi ser revistas: a regra de ouro, a meta de re- de existência de um piso, a ser observado
contaminado pela crise do subprime, o sultado primário prevista na lei de respon- mesmo em situações em que seja necessá-
investimento agregado foi recorde no pe- sabilidade fiscal e o teto de gastos”, subli- rio algum tipo de redução de gastos. Esse
ríodo. “A explicação é que a política fis- nhou a economista Esther Dweck, profes- piso deveria ser, no mínimo, o crescimento
cal construiu o Projeto Piloto de Inves- sora da UFRJ, em debate na Unicamp na populacional, para evitar a queda do gasto
timentos até 2005, que mapeou neces- véspera da sua nomeação como ministra per capita como ocorreu nos últimos anos;
sidades e áreas estratégicas de investi- de Gestão e Inovação do governo Lula. 4) Deve-se levar em conta o ciclo eleitoral;
mento, e depois tornou-se o Programa Neste ano, diz, mesmo com uma recu- 5) É recomendável não prever a priori o ta-
de Aceleração do Crescimento, na pas- peração da economia e arrecadação tri- manho do Estado, isso tem de ser feito pe-
sagem de 2006 para 2007. Com o PAC, la política; 6) É indispensável que o gover-
o investimento público se harmonizou no tenha capacidade de atuar em momen-
com o privado e isso fez com que o inves- OS GOVERNOS tos de crise; 7) Requer-se muita transpa-
timento sobre o PIB em 2008 e em 2010 rência quanto a indicadores e metas fis-
PA U L O H . C A R VA L H O /A G . B R A S Í L I A

ANTERIORES DE
fosse recorde desde os anos 1980, apesar cais, mas não com periodicidade bimestral
dos juros altos”, ressalta. Em paralelo, o LULA GERARAM e sim com base em um plano que permi-
Bolsa-Família e a valorização do salário SUPERÁVITS ta garantir uma trajetória sustentada da
mínimo puxaram o consumo privado e DE 3,4% DO PIB, dívida de médio e longo prazo; 8) É preci-
estimularam a iniciativa privada. so evitar que o emaranhado de regras se-
EM MÉDIA,
Cabe ressaltar, neste momento de re- ja utilizado para criminalizar a política
clamações e temores empresariais, que a TODOS OS ANOS fiscal e repensar o arcabouço fiscal para
atual gestão detém a experiência dos go- se aproximar de uma meta de inflação. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 25
Seu País

Sinônimo
de Brasil
PELÉ Cidadão fiel da Vila Belmiro,
sempre jogou no seu time do coração
e do gramado do Santos saiu somente
para encerrar a carreira no exterior
P O R M I N O C A R TA

H
ouve uma coincidência na
definição de Jô Soares e do
acima assinado, absoluta-
mente involuntária de
ambas as partes: dizíamos
que Pelé é sinônimo de Brasil. Um rei
Esta alegria foi sem sucessor na terra do futebol. Com
compartilhada
numa das vezes por Pelé de camiseta canarinho o Brasil
plateias fluviais nunca perdeu, do Mundial da Suécia, em

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 36
NESTA Reparação. Pela primeira vez
SEÇÃO em 522 anos, os povos indígenas
vão decidir sobre o próprio destino

1958, ao do México, em 1970, contra a mil gols e, solene, soletrou que tinha marcou quatro gols iguais. Ao partir do
Itália, batida por 4 a 1. E ele ali, impon- pouco mais de um metro e sessenta. seu campo, semeou todos os adversários
IM AG ES/A FP E ACERVO/ FIFA

derável e inspirador. Até um gol de ca- Estava errado, obviamente, a altu- pelo caminho, entrou na área inimiga e
beça neste jogo Pelé fez, ao pular bem ra certa era um e setenta e dois, mas em ludibriou o arqueiro, sem a mais pálida
WAGNER MEIER /GE T T Y

mais alto do que seu marcador, dono de campo parecia um gigante, e de certa for- chance de interceptar aquela estocada fi-
estatura alentada. Com a expressão da ma era, conforme constatei no primeiro nal. Pepe, endiabrado ponteiro-esquer-
típica sabedoria infinita, um jornalista jogo assistido logo após a minha segun- do, marcou mais duas vezes naquela go-
nativo apressou-se a informar sobre o da chegada ao Brasil. Tratava-se de um leada empolgante, a justificar até um cer-
baixo porte do nosso autor de mais de embate entre Santos e São Paulo e Pelé to espanto de minha parte.

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 27
Seu País

Disse-me Sócrates, certa vez: “Pelé é o cia, incorruptível: o jogo fluía dele qual crença de que surgira no gramado quem
atleta perfeito”. Como tal ele deixou bo- fosse imposição da natureza, como o tro- era capaz de parar o rei, tola esperança
quiaberto o mundo, para permanecer vão de pronto se segue ao raio desenha- que Pelé logo se incumbiu de desfazer.
único até hoje. Tudo emanava de sua do no céu da tempestade. Em uma par-
postura mágica, tudo no seu movimen- tida disputada em Milão, antes da Copa Ao seguir para o Cosmos, contratado
to manifestava-se com uma naturalida- do Chile, Pelé teve de se haver com um a elevado preço, e por causa disso dispos-
de implacável, na qual a velocidade tinha marcador tinhoso, Giovanni Trapatto- to a mudar de país ao cuidar pela primei-
a sua necessária importância, mas o ses- ni, que mais tarde se tornaria treinador ra vez do pé-de-meia, Pelé foi para a ter-
tro era inigualável, patrimônio exclusi- bem-sucedido na Alemanha e na seleção ra de Tio Sam como formidável garoto-
CONTEÚDO E ACERVO/NEW YORK COSMOS

vo. No Mundial do Chile, em 1962, ma- azzurra. A exibição de Pelé foi medíocre -propaganda do futebol, reconhecimento
chucou-se logo, mas a sorte brasileira foi e apareceram sonhadores inclinados à que ninguém lhe nega, à luz da competi-
A R Q U I V O / A F P, A R Q U I V O / E S T A D Ã O

poder contar com Garrincha excepcio- tividade que os EUA ganharam nos em-
nalmente inspirado, a suprir com honra bates internacionais. Pela primeira vez,
uma ausência que parecia fatal. ele cuidara das suas próprias finanças,
Infelizmente, o futebol atravessou assunto que até então assumira para ele
No Cosmos de Nova
épocas amargas, por obra de dirigentes pouca ou nenhuma importância.
empenhados em manipular resultados. York fez questão Quem não o dispensou de uma se-
Pelé, contudo, já estava aposentado. E de de manter o número leção ideal foi o jornalista João Salda-
resto o rei seria, em qualquer circunstân- 10 na camiseta nha, comunista declarado e, portanto,

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Dois gols entregues à história:
o primeiro contra a Itália no México,
derrotada por 4 a 1. Abaixo, o nosso
herói acaba de marcar seu milésimo gol

afastado da Seleção logo após ser defi-


nida a escalação às vésperas da revoada
vitoriosa até o México. Sobraria a tare-
fa para Zagalo, o ex-ponteiro-esquerdo
canarinho, já então considerado moder-
no por se antecipar às soluções ignora-
das pelos titulares da posição. O México,
graças em primeiro lugar ao desempe-
nho de Pelé, foi o pedestal da fama do
Brasil como terra do futebol. Na volta
da Seleção após o tri, o ditador Emílio
Garrastazu Médici recebeu os vencedo-
res na Praça dos Três Poderes, em Brasí-
lia, e se permitiu empinar a redonda em
algumas deploráveis embaixadas.
Estive com Pelé mais de uma vez. Em
uma delas, ele era ministro dos Esportes
do presidente Fernando Henrique Car-
doso. Ficou-me a impressão de um cida-
dão consciente do seu papel e da sua in-
fluência, incapaz de dizer àquela altura
que o povo brasileiro não sabe votar. A
morte do craque definitivo me entriste-
ce bastante. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 29
Seu País

O rei e sua corte


MEMÓRIA Pelé teve coadjuvantes
à altura de sua ascensão e glória,
no Santos e na Seleção Brasileira
P O R L AU R I N D O L E A L F I L H O *

J
ustas e merecidas as home- Vasconcelos e Tite, com o técnico Lula
nagens prestadas a Pelé. Po- no comando. Não era fácil.
deriam ter sido maiores, não Dentro, não saiu mais. A primeira
fosse a insensibilidade ar- porta abriu-se no feriado de 7 de se-
gentária de muitos dos seus tembro de 1956, em Santo André, num
colegas de profissão, ausentes e silen- amistoso contra o Corinthians local.
tes. Aqui, faço o inverso. Lembro alguns Estive lá, com meu irmão, levado por
daqueles que, como coadjuvantes, for- meu pai. A imagem na lembrança é tur-
maram na corte do Rei, criando o ter- va. Um pequeno estádio e muita gente
reno fértil para a sua ascensão e glória. apinhada foi o que restou. Só mais tar-
Começo por Valdemar de Brito, de de, ao ler coisas do futebol, soube que
quem pouco se fala. Craque da bola, ar- aquele jogo havia se tornado histórico. de Pelé desabrochava ao lado da sutile-
tilheiro, de um futebol lembrado por ra- No segundo tempo da partida, o ga- za milimétrica dos dribles de Pagão e
ras e pálidas fotografias, teve a iniciati- roto entrou no lugar do artilheiro Del das arrancadas com finalizações bom-
va, como técnico do Bauru Atlético Clu- Vecchio e fez seu primeiro gol como pro- básticas de Pepe. 
be, de levar para o Santos aquele garo- fissional do Santos, na vitória por 7 a 1.  A Seleção Brasileira seria o rumo na-
to de 15 anos, conhecido como Dico. Sa- tural de Pelé. E nela ele se tornaria ra-
gacidade que ao menos não foi esque- A carreira deslanchou, num time pidamente a estrela principal. Os novos
cida, posteriormente, no seu tempo de cada vez mais forte, realizando tem- coadjuvantes, em 1958, eram Gylmar,
comentarista de futebol da Rádio Na- poradas constantes ao redor do mun- Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nil-
cional de São Paulo, onde trabalhamos do, ganhando títulos. No ataque santis- ton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Va-
juntos. Era apresentado como “o craque ta, uma nova parceria goleadora se for- vá e Zagallo. No Santos, a corte do Rei
do passado, comentarista do presente, mava, consagrada pela imprensa como tinha, além de Gylmar e Zito, Getúlio,
descobridor de Pelé”.   o trio PPP, Pagão, Pelé e Pepe. O gênio Ismael, Mauro, Dalmo, Calvet, Lima,
Com 15 anos, o Dico que virou Pelé Dorval, Mengalvio, Pepe, Edu, Couti-
entrou num time fortíssimo, bicam- nho e suas tabelinhas com Pelé, além
peão paulista (1955/1956), destruidor de tantos outros. 
da hegemonia do “trio de ferro” pau- Ao testemunhar aquele primeiro gol
listano, formado por Corinthians, São Valdemar de Brito do Pelé, em Santo André, não poderia
Paulo e Palmeiras. Não custa lembrar imaginar que alguns anos depois, co-
a formação mais constante, na qual o
o descobriu. Com mo repórter esportivo, estaria acompa-
garoto teria de abrir espaço: Manga, Pepe e Pagão formou nhando de perto o auge da carreira de-
Hélvio e Ivan; Ramiro, Formiga e o trio PPP. Sem le. A minha durou exatos dez anos, de
Zito; Alfredinho, Álvaro, Del Vecchio, falar em Garrincha 1962 a 1972. Suficientes para ser teste-

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Fortaleza. A peregrinação até
a Vila Belmiro, castelo de onde Pelé
comandou seu reinado, ao lado
ou contra príncipes do futebol

para a Inglaterra, surgiu um estranho


critério político-geográfico: dez jogado-
res do Rio, dez de São Paulo, um de Mi-
nas Gerais (Tostão) e um do Rio Grande
do Sul (Alcindo). Não podia dar certo.

Pelé e Garrincha participaram da Se-


leção juntos pela última vez no jogo de
estreia, na vitória contra a Bulgária por
2 a 0. Poupado na partida seguinte con-
tra a Hungria, vi um Pelé cabisbaixo e
preocupado, assistindo ao jogo perto
de mim, numa bancada do estádio do
Everton, em Liverpool. Voltou a jogar
contra Portugal, para ser caçado e sair
de campo derrotado, sem camisa, como
mostra uma das fotos mais tristes de sua
carreira. Não por acaso, na saída do gra-
munha da história de muitas das cenas mado, o meu entrevistado foi Oto Glória,
exibidas à exaustão pela tevê nos últi- o técnico brasileiro vencedor da partida. 
mos dias. Nem todas são alegres. O ex- A derrota não esperada, como em
cesso de jogos e a falta da rigidez neces- 1950, serviu para que novos métodos
sária da arbitragem para coibir jogadas e novos atores entrassem em cena pa-
violentas, como ocorre atualmente, re- ra atuar com Pelé, já amplamente con-
sultavam em ausências importantes e sagrado. E foi assim que Félix, Carlos
N E L S O N A L M E I D A /A F P E D O M Í C I O P I N H E I R O / E S TA D Ã O C O N T E Ú D O

seguidas de Pelé. Como ao ter de deixar a Alberto, Brito, Piazza, Everaldo, Mar-
Copa de 1962, no Chile, logo no segundo co Antônio, Clodoaldo, Gerson, Riveli-
jogo. E não participar das finais da Co- no, Jairzinho, Tostão e todos os demais
pa Intercontinental, vencida pelo Santos daquela seleção passassem a integrar o
contra o Milan, no Maracanã, em 1963.  enorme séquito que, ao longo dos anos,
Em 1966, com a mídia contando co- contribuiu para a consagração do Rei.
mo favas contadas a conquista do tri na   De minha parte, a última vez que vi
Inglaterra, deu tudo errado. A prepara- Pelé de perto foi há muito tempo, num
ção no Brasil foi anárquica e a expecta- hotel de praia no Guarujá, onde me
tiva de vitória açulou todo tipo de in- cumprimentou a certa distância, fa-
teresses. A ponto de serem convocados zendo um V com os dedos. Sabia, com
mais de 40 jogadores na fase preparató- certeza, que ali estava também um dos
ria, fazendo treinamento e se concen- seus súditos. •
trando em diferentes cidades brasilei-
ras, tendo Pelé como principal atração. *Foi repórter esportivo da Rádio Nacional de
Na hora de selecionar os 22 que iriam São Paulo e da TV Globo entre 1962 e 1972.        

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 31
Seu País

Hora da faxina
“Nísia Trindade é a pessoa certa
na hora certa”, afiança o fundador da
Agência Nacional de Vigilância Sanitá-
ria, a Anvisa. “Sou até suspeito para fa-
LUZES Primeira mulher a chefiar o lar, porque a apoiei na eleição da Fiocruz
Ministério da Saúde, Nísia Trindade e cheguei a me manifestar publicamente
contra a manobra de Jair Bolsonaro, que
anuncia um “revogaço” das decisões não queria reconduzi-la ao posto depois

obscurantistas de gestões anteriores de ela ter sido reeleita pela comunidade


acadêmica. Ela fez uma gestão fantásti-
POR RODRIGO MARTINS ca, tem uma visão de mundo muito boa,
sabe o peso da desigualdade na saúde e
valoriza muito a pesquisa e o ensino”.

C
A avaliação é compartilhada pelo in-
om 2,7% da população riência na administração pública direta fectologista Marcos Boulos, professor
mundial, o Brasil concen- chegou a ser levantada por alguns críti- da Faculdade de Medicina da USP: “Ní-
tra mais de 10% do total de cos, que consideram o cenário desafiador sia é uma pessoa extremamente quali-
mortes por Covid-19. Fo- demais para alguém que nem sequer ge- ficada, administrou com competência a
ram quase 700 mil óbitos riu uma secretaria municipal de saúde. Fiocruz, tem um diálogo fácil com as pes-
e a tragédia poderia ser ainda pior, não Não se pode, porém, menosprezar a im- soas e sabe se assessorar adequadamen-
fosse a existência de um Sistema Único portância da Fiocruz, com um orçamen- te. Claro que há outros nomes que pode-
de Saúde com expertise em programas to anual superior a 5,4 bilhões de reais, riam ser indicados, mas ela também vem
de imunização em massa. Mesmo com algo intangível para boa parte dos muni- para reforçar a participação das mulhe-
um presidente da República sabotando cípios brasileiros, observa o médico sa- res no governo, o que é muito justo”.
sistematicamente a vacinação, ao atra- nitarista Gonzalo Vecina. Ao assumir a Saúde, na segunda-feira
sar a compra de imunizantes e ao seme-
ar fake news sobre a eficácia deles, o Bra-
sil hoje dispõe de 81,7% da população
protegida contra o coronavírus. Isso só
foi possível graças ao trabalho desenvol-
vido por instituições centenárias, a
exemplo da Fiocruz, que produziu mais
de 153,2 milhões de doses da vacina
Astrazeneca/Oxford apenas em 2021.
WA LT E R S O N R O S A / M S E M I N I S T É R I O D A S A Ú D E

Fundada em 1900 e presente em quase


todos os estados, a Fiocruz foi responsá-
vel ainda pela fabricação dos primeiros
kits para o diagnóstico de Covid-19, no
mesmo mês em que foi confirmada a pri-
meira morte pela doença no País.
O papel desempenhado pelo institu-
to no enfrentamento à pandemia pesou
na decisão de Lula nomear a socióloga
Nísia Trindade, que comandou a Fio-
cruz nos últimos seis anos, para chefiar Missão. “Lula tem reiterado a preocupação com represamento de exames, cirurgias
o Ministério da Saúde. A falta de expe- eletivas e diversos procedimentos”, disse Trindade, ao tomar posse na segunda-feira 2

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Na presidência
da Fiocruz, a nova
ministra controlava
um orçamento
bilionário

2, Trindade lamentou o período de “nega-


ção da ciência” que marcou a gestão Bol-
sonaro e anunciou a extinção de dezenas
de decisões obscurantistas tomadas por
seus antecessores. “Serão revogadas, nos
próximos dias, as portarias e notas técni-
cas que ofendem a ciência, os direitos hu-
manos, os direitos sexuais reprodutivos,
e que transformaram várias posições do
Ministério da Saúde em uma agenda con-
servadora e negacionista”. Bastou dar es-
sa declaração para a ministra se tornar
alvo da artilharia bolsonarista, sobre-
tudo de parlamentares que nem sequer
enrubescem ao repetir tantas mentiras.

O deputado federal Mario Frias, ex-


-secretário especial de Cultura de Bolso-
naro, compartilhou nas redes sociais uma
manchete produzida pelo site Brasil Sem
Medo, cujo editor é investigado no inqué-
rito das fake news do STF, dizendo que
Trindade anunciou o “fim das posições
pró-vida do governo”. A publicação tra-
zia um escandaloso alerta: “o aborto vem
aí...”. Ex-ator da série global Malhação,
Frias lamentou que “que alguns ‘cristãos’
ainda apoiam esse governo”. Em aparen-
te tabelinha com o correligionário, a de-
putada estadual Ana Campagnolo, do PL
de Santa Catarina, emendou nos stories:
“Crente que vota no Lula vai pro inferno”.
Deputado mais votado do Mato Grosso do
Sul, Marcos Pollon estendeu o alcance da
maldição: “Você católico que ajudou a ele-
ger é responsável”.
Na verdade, a ministra defende apenas

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 33
Seu País

o que é previsto em lei: o direito ao aborto A “PEC da Transição”


legal em caso de estupro, de risco à vida
da mãe e de feto anencéfalo. Espantosa-
acrescentou 22,7
mente, o Ministério da Saúde criou em- bilhões de reais para
pecilhos burocráticos para a interrup- a saúde em 2023
ção da gravidez até mesmo nessas si-
tuações. Trindade prometeu ainda re-
ver as recomendações para o tratamen-
to da Covid-19 e os retrocessos na saúde
mental. De fato, na gestão anterior, a pas- lizada e a baixa cobertura vacinal estão
ta chegou a sugerir o uso da cloroquina e entre os desafios mais urgentes. Os pro-
de outras drogas ineficazes contra o co- blemas que a nova ministra enfrentará
ronavírus, contrariando as indicações da são do mesmo tamanho, talvez até maio-
Organização Mundial da Saúde. Na saú- res, que a expectativa da população em
de mental, liberou a eletroconvulsotera- relação à melhora dos serviços de saúde”.
pia, eufemismo de eletrochoque, e incen- Trindade parece ciente do tamanho
tivou a internação de dependentes quí- da encrenca. “O presidente Lula tem rei-
micos em clínicas de reabilitação geri- terado a preocupação com represamen-
das por igrejas sem o mínimo de preparo. to de exames, cirurgias eletivas e diver-
O entulho reacionário representa, po- sos procedimentos. Essa tem que ser
rém, o menor dos problemas da nova mi- uma agenda do Estado, da sociedade e
nistra. Descontadas as despesas extraor- da academia”, diz. A equipe de transição,
dinárias para o combate da Covid-19, a da qual ela também fez parte, identificou
Saúde perdeu 10,7 bilhões de reais entre ainda a desestruturação de políticas até
2019 e 2021, revela um estudo publica- então bem-sucedidas, como o Programa
do pelo Instituto de Estudos Socioeconô- Nacional de Imunizações (PNI), o Mais
micos, mais conhecido pela sigla Inesc. Médicos, a Farmácia Popular e as ações
Em perspectiva mais ampla, levando em para a prevenção e tratamento de infec-
conta o impacto do teto de gastos, um dos ções sexualmente transmissíveis, como
desastrosos legados deixados por Michel a Aids. “Na verdade, o Ministério da Saú-
Temer, as perdas chegam a 60 bilhões de de perdeu a capacidade de coordenação
reais nos últimos cinco anos. do sistema, perdeu a autoridade sanitá-
ria. A ministra terá de reconstruir essa
A “PEC da Transição”, negociada pela articulação rapidamente, pois tudo no
equipe de Lula no fim do ano passado, ga- SUS depende muito de uma concertação
rantiu o acréscimo de 22,7 bilhões de re- com os demais entes federativos”, avalia
ais no orçamento do Ministério da Saú- Chioro. “A União não coloca em prática
de para 2023. “O momento é alvissarei- política alguma nessa área. Tudo que é
ro. Não apenas houve a recomposição dos concebido em Brasília e financiado pelo
mais de 10 bilhões cortados ao longo da governo federal acaba implementado pe-
gestão Bolsonaro, como sobraram 12 bi- los estados e municípios. Resgatar o pac-
lhões. Pela primeira vez na história, te- to interfederativo é, portanto, o primei-
mos uma equipe que entra com recursos”, ro grande desafio”.
observa o ex-ministro Arthur Chioro, Boulos concorda com a avaliação de
que fez parte do grupo de trabalho da que o Ministério da Saúde perdeu a au-
Saúde no gabinete de transição. “Houve, toridade sanitária nos desvairados anos
porém, o desmonte de muitas políticas de Bolsonaro. “É preciso voltar a levar a
públicas, em todas as áreas. Não sobrou sério as ações de prevenção, por meio da
nada em pé. As filas para atenção especia- vacinação e da vigilância epidemiológi-

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
san, divulgado em junho do ano passa-
do, o Brasil voltou a registrar internações
por desnutrição provocadas pela fome.
A trajetória de queda da mortalidade in-
fantil foi interrompida e a mortalidade
materna aumentou.
Reconhecido por possuir um quadro
técnico qualificado, o Ministério da Saú-
de também perdeu numerosos servidores
que poderiam contribuir no esforço de
reconstrução das políticas públicas. “Nos
últimos anos, sobretudo após a chegada
dos militares, na gestão do general Edu-
ardo Pazuello, muitos foram persegui-
dos e anteciparam a sua aposentadoria
ou se afastaram. Sim, diversos técnicos
e especialistas permaneceram na pasta
para resistir, mas outros tantos resolve-
ram aderir. Nísia terá de caminhar sobre
um campo minado”, adverte Vecina. “O
Brasil precisa voltar a ter uma máquina
pública republicana. Esses militares pre-
cisam ser enxotados e processados, por-
que muitos deles cometeram atos ilegais
e devem pagar por isso. Chega de anistia.
Precisamos aprender com a Argentina
e buscar reparação exemplar, até para
Problemas. O programa Farmácia restabelecer a normalidade democrática”.
Popular foi abandonado e a cobertura
vacinal despencou nos anos Bolsonaro Além das denúncias de superfatura-
mento da compra de vacinas, os milita-
res estão envolvidos em numerosos epi-
ca, para evitar a repetição das catástrofes sódios de negligência. Talvez o mais es-
ocorridas nos últimos anos”, afirma. “O candaloso deles tenha sido protagoniza-
Brasil é uma referência mundial em cam- do pelo próprio Pazuello que, avisado por
panhas de imunização em massa, total- ofício com dez dias de antecedência sobre
mente gratuitas, mas agora corre o risco a iminente falta de oxigênio em Manaus,
da reintrodução do sarampo e do retorno permitiu que o estoque se esgotasse, o que
de doenças erradicadas, como a poliomie- provocou a morte de dezenas de pacien-
lite, devido à baixa cobertura vacinal”. tes de Covid-19 por asfixia. Vecina desta-
RODRIGO NUNES/MS E UNICEF BRASIL

Os dados do PNI reforçam o alerta do ca, ainda, que a população precisa com-
infectologista: em 2021, a vacinação in- preender qual era o real intento da dupla
fantil no país chegou a 68% de cobertu- Temer e Bolsonaro, para que não come-
ra, frente a 97% em 2015. “É o pior nível ta o mesmo erro no futuro. “O projeto de-
em três décadas, graças ao descaso do les sempre foi a destruição do Estado pa-
governo Bolsonaro”, acrescenta Boulos. ra a geração de lucrativos negócios para a
Com 33 milhões de cidadãos em situação iniciativa privada. Infelizmente, essa fi-
de grave insegurança alimentar, segun- cha ainda não caiu para muitos brasilei-
do o último levantamento da Rede Pens- ros, que renovaram o voto no capitão”. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 35
Seu País

Cinco séculos
tério, tenha um orçamento que lhe per-
mita atuar de forma efetiva. “A ideia do
governo é ter um orçamento que atenda

depois...
às principais demandas, mas isso ainda
será definido com o presidente Lula e a
Casa Civil”, comenta Guajajara. Um pri-
meiro passo foi dado, uma vez que a Fu-
REPARAÇÃO Pela primeira vez na história os nai – agora Fundação Nacional dos Po-
povos indígenas terão o poder de decidir vos Indígenas – deixou o Ministério da
Justiça, levando consigo um orçamento
sobre o seu próprio destino no País estimado para 2023 em 800 milhões de
reais. “Há a promessa de que esse valor
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L
seja complementado.”

Nas conversas com Lula que antecede-

E
ram a sua nomeação ao MPI, Guajajara re-
um momento único para o vogação, logo após tomar posse, do decre- forçou que a regularização fundiária das
" Brasil após 522 anos de au-
sência dos povos indígenas
to, baixado por Jair Bolsonaro, que permi-
tia atividades de mineração em TIs e em
TIs é a pedra fundamental do novo mi-
nistério. Essa importância é ressaltada
nos processos decisórios.” áreas de conservação ambiental, amea- por Xakriabá: “O governo deverá avan-
Não poderia haver defini- çando a Amazônia e outros biomas. çar nos processos de demarcação, tendo
ção mais precisa do que a dada pela depu- O clima é de celebração pela histórica em vista que a sua não realização é uma
tada federal Célia Xakriabá, do PSOL, pa- conquista política, mas todos sabem que das maiores responsáveis pelos conflitos
ra a grande expectativa dos 305 povos in- haverá muito trabalho pela frente. Sem territoriais”, observa a deputada. Para o
dígenas do País quanto ao início do ter- tempo nem para atender ao telefone nos coordenador-executivo da Articulação
ceiro governo Lula. A criação do inédito últimos dias, a nova ministra monta do dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Klé-
Ministério dos Povos Indígenas e a inte- zero sua equipe ao mesmo tempo que lu- ber Karipuna, está dada “uma oportuni-
gração da agora rebatizada Funai à nova ta para que o MPI, a sigla do novo minis- dade de avançarmos, com toda a cautela
pasta são os atos inaugurais de uma polí-
tica que promete, nos próximos quatro
anos, acelerar os processos de demarca-
ção e homologação de novas Terras Indí-
genas (TIs) e combater crimes ambientais
que atingem diretamente as populações
originárias, como desmatamento, garim-
po, biopirataria e narcotráfico.
A nomeação de duas reconhecidas li-
deranças – Sônia Guajajara e Joênia
Wapichana – para os respectivos coman-
dos do novo ministério e seu principal ór-
gão executor confirmou a promessa feita
por Lula de entregar aos próprios indíge-
nas a responsabilidade pela execução das
políticas públicas para o setor. O presiden-
te deve anunciar ainda este mês a homolo-
gação de 13 novas Terras Indígenas. Outra
sinalização positiva dada por Lula foi a re- Funai. A posse de Joênia Wapichana (cocar branco) foi celebrada com uma pajelança

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Sônia Guajajara
assume a chefia do
novo ministério,
ao qual a Funai
será incorporada

necessária, na política de demarcação e


proteção dos territórios indígenas, que es-
tá paralisada há mais de seis anos”. Ele res-
salta que existem TIs com seus estudos re-
alizados e prontas para ser homologadas.
“O movimento indígena quer colaborar
para que essa nova política saia do papel.”

Criada há 56 anos e responsável pela


condução dos processos de demarcação,
a Funai voltará a jogar no mesmo time
dos indígenas após quatro anos de des-
mantelamento do órgão, desvalorização
de seus servidores e conivência crimino-
sa promovidos pela gestão anterior, co-
mandada pelo bolsonarista Marcelo Xa-
vier. Na segunda-feira 2, a cerimônia de
posse de Joênia Wapichana, deputada fe-
deral da Rede que não se reelegeu, trans-
formou-se em uma grande pajelança na
sede do órgão, com a participação de re-
J O E D S O N A LV E S /A N A D O L U A G E N C Y/A F P E M A U R O P I M E N T E L /A F P

presentantes de dezenas de etnias.


Após a dança com maracás e a defu-
mação para purificar o ambiente, os pre-
sentes prestaram homenagem ao indige-
nista Bruno Pereira e ao jornalista Dom
Phillips, assassinados no ano passado por
criminosos ambientais que atuam no Vale
do Javari, no Amazonas. “Depois de tan-
ta afronta e retrocesso, com o único ór-
gão indigenista totalmente sucateado, ho-
je retomamos a Funai”, disse a nova pre-
sidente. O principal desafio do órgão, avi-
sa Wapichana, será “fortalecer direitos,
principalmente no que diz respeito à de-
marcação de Terras Indígenas”.
“Na última vez que estivemos na se- Verba extra. A ministra espera que o orçamento de 800 milhões de reais aumente

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 37
Seu País

de da Funai, em Brasília, fomos recebi- Em janeiro, Lula melhorar a capacidade de demarcação,


dos pela polícia com spray de pimenta e fiscalização e proteção das TIs por par-
pretende demarcar
balas de borracha”, lembra Xakriabá. Ela te da Funai, é necessário recuperar o le-
celebra a nova etapa: “A posse foi um mo- 13 Terras Indígenas gado construído, especialmente, nos go-
mento de ressignificação e de repensar o e iniciar o processo vernos de 2003 a 2016”.
compromisso do Brasil com os povos in- de expulsão de Kléber Karipuna conta que a vincula-
dígenas. Pela primeira vez em 56 anos, garimpeiros ilegais ção da Funai ao novo ministério, embora
um indígena ocupa esse lugar”, emenda não consensual, foi amplamente debatida
a parlamentar, para quem “as nomeações antes de ser aprovada no GT da transição.
de Sônia Guajajara e Joênia Wapichana “A Apib defende essa integração por en-
mostram que os povos indígenas são pro- tender que uma das principais bandeiras
tagonistas deste governo”. Outra deputa- de luta dos povos indígenas, a demarca-
da federal indígena eleita em outubro, Ju- ção de terras, será objeto de um trabalho
liana Cardoso, do PT, diz que, “além de qualitativo e técnico, com antropólogos

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Conflitos. Lula pretende fazer uma
visita ao Vale do Javari, onde o indigenista
Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom
Phillips foram barbaramente assassinados

afirma Xakriabá. Ainda sem data defini-


da, está sendo articulada também uma vi-
sita de Lula ao Vale do Javari.
Para Karipuna, ao revogar o decre-
to que permitia o garimpo nas TIs, Lu-
la mostrou à sociedade que “implemen-
tará uma política de combate a ativida-
des nocivas, como o garimpo ilegal, a ex-
ploração madeireira, a pirataria da biodi-
versidade e o narcotráfico”. A expectativa
dos indígenas é pela concretização de um
programa de expulsão dos invasores: “O
trabalho conjunto do movimento indíge-
na com o MPI e a Funai permitirá uma
cobrança para que essas medidas possam
ser efetivadas. Precisamos discutir mui-
to rapidamente a formação de uma for-
ça-tarefa envolvendo outros ministérios,
além de órgãos como Ibama, ICMBio e
Polícia Federal, para promover uma ação
de desintrusão e paralisação completa da
exploração garimpeira. Apenas a revoga-
ção do decreto não surtirá o efeito de saí-
da imediata, principalmente nos territó-
rios Ianomâmi e Munduruku”.

Para além do MPI e da Funai, os olhos


dos povos indígenas estão voltados à atu-
ação de Weibe Tapeba, também oriundo
e outros especialistas, inclusive do pró- dígenas, janeiro verá também o início do movimento e novo titular da Secretaria
prio movimento indígena”, diz. Ele acres- das ações para a retirada do garimpo ile- Especial de Saúde Indígena (Sesai), vin-
NELSON A L MEIDA /A FP E FELIPE W ERNECL /FUN AI

centa que “a vinda da Funai para o MPI gal das reservas. De maneira articulada, culada ao Ministério da Saúde: “Atuar em
é uma conquista que precisa ser traba- o Congresso Nacional e o MPI anunciarão parceria com ele será prioridade. Há um
lhada com responsabilidade, em conjun- o lançamento de duas campanhas nacio- risco grande de a saúde indígena entrar em
to com outros órgãos do governo, como, nais – “Demarcação Já!” e “Fora Garim- colapso”, alerta Sônia Guajajara. Para evi-
por exemplo, o Ministério da Justiça”. A po!” – que devem impulsionar o proces- tar esse esgotamento, acrescenta Juliana
saída da Funai da alçada do MJ também so de desintrusão dos garimpeiros dessas Cardoso, será fundamental a recomposi-
é considerada uma decisão acertada por áreas. “Agora que os parentes indígenas ção do orçamento do setor. “Isso se fará
Xakriabá: “Só foi decidido que a Funai estão ocupando lugares de articulação e priorizando a reformulação dos contratos
ficaria com o MPI a partir de análises que execução, de poder segurar na caneta e ter de trabalho dos profissionais e garantindo
garantiram a segurança jurídica, política um diálogo direto com o presidente Lula, a participação e o controle social dessa po-
e administrativa da mudança”. é preciso ter a responsabilidade de retirar pulação aos serviços de saúde. Trabalha-
Além do anúncio das novas Terras In- os garimpeiros dos territórios indígenas”, remos para que os nossos povos originá-

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 39
Seu País

rios tenham acesso irrestrito aos serviços A Secretaria Além de atuar para derrubar o PL 191,
públicos de saúde”, enfatiza a deputada. que regulamenta garimpo em TIs, e se
Outra medida ambicionada é a forma-
Especial de Saúde colocar de forma contrária aos diversos
ção de agentes indígenas de saúde. “O go- Indígena ficará projetos bolsonaristas que atentam con-
verno estimulará programas de capacita- sob o comando tra o meio ambiente, a maioria da Ban-
ção em todas as áreas de atuação, para que de Weibe Tapeba cada do Cocar pretende ser propositiva.
possamos garantir atendimento de qua- Entre os projetos elencados estão aque-
lidade”, diz Cardoso. Inicialmente, esse les que tratam de temas como demarca-
atendimento será realizado nos 34 Dis- ção dos territórios indígenas, fortaleci-
tritos Sanitários Indígenas do País sob mento das políticas públicas para os in-
a coordenação da Sesai. “É importante Guedes, do PT, e Silvia Waiãpi, do PL, a dígenas isolados, ampliação da política
reconhecer os conhecimentos medicinais única de direita, que comandou a Sesai de acesso e permanência para o ensino
dos povos originários, potencializando, durante o governo Bolsonaro. Comple- superior, criação de programa específico
por exemplo, o programa Farmácia Viva, ta a bancada a própria Sônia Guajajara, de segurança alimentar, acesso ao pro-
com o intuito de valorizar os saberes dos que deixou o mandato para assumir o grama de moradia que atenda às neces-
nossos antepassados.” MPI. A ausência da nova ministra, as- sidades de cada povo, valorização da lín-
sim como a de Wapichana, é minimizada gua e dos saberes indígenas na escola, va-
Em 2023, a participação indígena por Xakriabá: “A Bancada do Cocar não lorização da Política Nacional de Gestão
no Parlamento também é recorde. No se dilui. Ao contrário, ela está espalhada Territorial e Ambiental de Terras Indí-
Senado, há os autodeclarados indígenas em outros espaços importantes”. A depu- genas e criação do Programa de Apoio à
Wellington Dias, do PT, agora ministro tada diz considerar “fundamental o mo- Formação Superior e Licenciaturas In-
do Desenvolvimento Social, e Hamilton mento de ‘poder fazer’ proporcionado pe- terculturais Indígenas.
Mourão, eleito senador pelo Republica- la criação do MPI”, mas ressalta que a lu- As lideranças que compõem a Apib es-
nos. Na Câmara dos Deputados, a eleição ta nas ruas não será abandonada: “Se as peram o início de um período de colabo-
de cinco novos parlamentares indígenas nossas vozes não forem suficientes do la- ração e boa vontade política: “Nossa ex-
fez nascer a “Bancada do Cocar”. Além de do de dentro, vamos continuar convocan- pectativa é de que, com os nossos quadros
Xakriabá e Cardoso, foram eleitos Paulo do o movimento indígena do lado de fora”. técnicos qualificados, consigamos fazer
um bom trabalho nesses espaços que va-
mos ocupar dentro do governo e que tra-
tarão verticalmente da realidade dos po-
vos indígenas”, diz Karipuna. Ele ponde-
ra, porém, que os indígenas devem per-
manecer atentos: “Queremos manter o
movimento aguerrido e combativo, para
que consiga ajudar os parentes que esta-
rão no governo e, quando for necessário,
possa fazer cobranças para que as ações
sejam realizadas a contento”. A hora, diz o
coordenador, é também de manter os pés
no chão. “Sabemos do enorme desafio que
será implementar a pauta indígena den-
L.C.NUNES OLIVEIR A /SESAI/MS

tro de um governo de ampla coalizão, com


diversos atores. Inclusive alguns com os
quais temos sérios problemas, como o
agronegócio. Mas já tivemos, nestes pri-
meiros dias, sinalizações muito positivas
do presidente Lula. Acredito que esteja-
mos iniciando um ciclo positivo para os
Respeito. O governo quer valorizar os conhecimentos medicinais dos povos indígenas povos indígenas no Brasil.” •

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Seu País

72 horas depois
Melancolia. Nem os extraterrestres
atenderam ao apelo. Agora resta esperar
a volta do Messias. Melhor sentado

OPOSIÇÃO O bolsonarismo é obrigado


a render-se à realidade e acaba órfão mando. A volta do Messias só convenceu
poucos fanáticos e a maioria dos acam-
POR RENÉ RUSCHEL
pados nas portas dos quartéis decidiu,
mesmo a contragosto, seguir o conselho
do ex-vice-presidente Hamilton Mourão:

A
reunir as trouxas e voltar para casa.
s últimas 72 horas de es- cursou no parlatório do Palácio do Pla- Bolsonaro jogara a toalha 48 horas an-
pera pela intervenção mi- nalto. Alguns recalcitrantes mantiveram tes. Na sexta-feira 30, o ainda presiden-
litar, federal ou espacial se a esperança – a principal fake news do dia te embarcou em um avião da Força Aé-
E VA R I S T O S Á /A F P

encerraram no domingo dava conta de que a posse era ilegítima, rea Brasileira em direção à Flórida, on-
1°, quando Lula subiu a pois a verdadeira faixa continuava sob os de se enfurnou na casa de um conhecido
rampa cercado por populares, recebeu a cuidados de Jair Bolsonaro, que em bre- lutador de MMA. Carlos, o filho 02, o es-
faixa de presidente da República e dis- ve retornará ao Brasil e assumirá o co- perava. Em sua última live no YouTube,

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 41
Seu País

Retiro. Depois de curtir a depressão no publicanos, ex-ministro da Infraestru- disposição e habilidade para influen-
Palácio do Alvorada, Bolsonaro embarcou tura e empossado governador, trouxe ciar as eleições municipais de 2024 e pa-
no avião da FAB rumo à Flórida, episódio
apenas um colega da esfera federal para vimentar uma nova candidatura presi-
conhecido como o “Dia do Fujo”
a equipe. Wagner Rosário troca a Con- dencial em 2026? A base bolsonarista no
troladoria-Geral da União por um pos- Congresso se manterá fiel ou se rende-
to semelhante em âmbito estadual. No rá às contingências do poder? Segundo
na quinta-feira 29, o capitão consolou os Distrito Federal, comandado pelo reelei- o cientista político Cláudio Couto, pro-
apoiadores e profetizou: “O mundo não to Ibaneis Rocha, Anderson Torres, ex- fessor da FGV, o capitão não é propria-
acaba em 1° de janeiro”. O planeta talvez -titular da Justiça, reassume o cargo de mente um líder, mas um político que em
não, mas e o universo paralelo do bolso- secretário de Segurança Pública.  determinado momento conseguiu ca-
narismo? A foto do gabinete onde Bol- talisar a extrema-direita e acabou por
sonaro despachava no terceiro andar No Rio de Janeiro, Cláudio Castro, elei- exercer esse papel. Pela votação obtida
do Planalto parcialmente desmontado, to no primeiro turno com apoio de Bolso- na disputa presidencial, afirma Couto,
estampada em diversos jornais e pelas naro, não empregou ninguém do Planal- Bolsonaro estaria apto a ser uma refe-
redes sociais, resumiu o abandono de to Central. Castro, aliás, antecipou o ho- rência opositora, se não tivesse demons-
Brasília após a derrota no fim de outu- rário de sua posse no Palácio Guanaba- trado tanta fragilidade por meio do “si-
bro. Ante o silêncio do mandatário, o Pa- ra para assistir o presidente Lula subir a lêncio ao fim do mandato, pelos atos e o
ís viveu uma inesperada sensação de nor- rampa em Brasília. Os ministros milita- discurso derrotista na despedida e fu-
malidade nos dois meses que separaram res da reserva – Paulo Sérgio Nogueira, ga”. O cientista político vê semelhan-
o resultado das eleições e a posse de Lula. Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno ças entre o ex-presidente e o então se-
Talvez tenha sido o melhor período dos – voltam a vestir seus pijamas. Sete ser- nador Aécio Neves. O tucano, descreve,
últimos quatro anos. vidores públicos de carreira reassumem emergiu como uma liderança forte após
A vida também não anda fácil para ex- suas funções e cinco outros terão de cum- a derrota apertada para Dilma Rousseff,
-integrantes do governo, ávidos por bo- prir quarentena de seis meses para re- em 2014, mas jogou tudo pela janela ao
quinhas nos estados governados por bol- gressar à iniciativa privada.  apostar no discurso de ódio e rancor e ao
sonaristas. Poucos conseguiram garan- O fim melancólico do mandato enter- questionar o resultado da eleição. Ape-
tir um emprego pelos próximos tempos. ra a promessa de Bolsonaro de liderar a sar de reeleito deputado federal por Mi-
Em São Paulo, Tarcísio de Freitas, do Re- oposição? O ex-presidente terá cacife, nas Gerais no ano passado, Aécio é uma

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
sombra do que foi no passado, um espec- Bolsonaro parece calização e da estridência. “A ala radi-
tro a rondar os corredores do Congresso. cal tenderá a ocupar espaços exíguos
Quanto à base de apoio, Couto acredi-
ter desperdiçado e poderá terminar por seguir novas li-
ta que, caso a “liderança” de Bolsonaro a chance de liderar deranças de direita.”    Em relação aos
comece a se esvair, a tendência é de dis- a oposição ao fugir governadores, o professor não acredita
persão. O mesmo se aplica aos governa- para a Flórida em um rompimento formal, oficial, mas
dores. “Se a bancada no Congresso não no afastamento paulatino, uma vez que
tiver capacidade de articulação com os a maioria precisa governar de forma
partidos, os governadores também de- pragmática, a fim de manter uma rela-
vem se afastar.”  ção institucional amistosa com o gover-
Para Aldo Fornazieri, professor da Es- Rio Grande do Sul, que tenta ao mesmo no Lula. “Com o passar do tempo, os go-
cola de Sociologia e Política de São Pau- tempo se afastar do transe bolsonaris- vernadores devem buscar um caminho
lo e autor do livro Liderança e Poder, ape- ta sem perder a confiança do eleitorado. político próprio, considerando as movi-
sar do elevado capital político e eleitoral, Coincidência ou não, Mourão, no último mentações partidárias e com os olhos
o isolamento e o abandono provocaram pronunciamento oficial em cadeia de rá- voltados às eleições municipais de 2024
desgastes significativos na imagem de dio e televisão, optou pela estratégia de e, depois, às eleições gerais de 2026.”
Bolsonaro. “A viagem para os Estados dar uma no cravo e outra na ferradura:
Unidos foi vista por muitos como fuga. criticou o ex-chefe pela omissão e fez crí- O futuro de Bolsonaro é uma incóg-
Além disso, ele não dispõe de um discur- ticas severas a Lula. Entre os bolsonaris- nita. O ex-presidente obteve mais de
so político elaborado. É agressivo, trucu- tas mais militantes, o discurso do gene- 58 milhões de votos. Dos 27 governa-
lento e sem conteúdo.” Nesse sentido, diz ral, que exortou o desmonte dos acampa- dores eleitos, 13 lhe declararam apoio.
o professor, o capitão terá dificuldade pa- mentos nas portas dos quartéis, foi lido Três conquistaram os maiores colégios
ra liderar a oposição. Um novo líder, acre- como traição e rendição. eleitorais do País: São Paulo, Minas Ge-
dita, tende a brotar no Congresso, uma Em relação à bancada parlamentar, rais e Rio de Janeiro. Além dos víncu-
vez que “a maior parte de seu eleitora- será preciso, acredita Fornazieri, dis- los com Arthur Lira, presidente da Câ-
do não é bolsonarista, mas conservado- tinguir o bolsonarismo stricto sensu mara e candidatíssimo à reeleição, o ca-
ra e de direita”. Fornazieri cita o general dos parlamentares que apoiaram o ca- pitão espera emplacar um ex-ministro,
Hamilton Mourão, senador eleito pelo pitão sem rezar pela cartilha da radi- Rogério Marinho, do PL do Rio Grande
do Norte, no comando do Senado. Lu-
la, por sua vez, atraiu mais partidos pa-
ra a base de apoio no Congresso, mas o
número ainda é insuficiente para garan-
tir uma margem folgada que permita, ao
mesmo tempo, aprovar reformas e evi-
tar ameaças à governabilidade. Sem o fo-
ro privilegiado, Bolsonaro terá de res-
ponder por inúmeros processos em pri-
meira instância, além das ações que con-
M A RCELO CA M A RGO/A BR E CÉSA R ITIBERÊ /PR

tinuam a tramitar no Supremo Tribunal


Federal por ameaças às instituições. Na
terça-feira 3, senadores da CPI da Covid
prometeram enviar à Justiça a lista de
crimes imputados ao ex-presidente pe-
la má gestão da pandemia. Até então, as
denúncias acumulavam poeira nas ga-
vetas do procurador-geral da Repúbli-
ca, Augusto Aras, que, desde o domingo
1°, nada mais pode fazer por aquele que
Pijama. No carteado ou à beira da piscina, Heleno poderá se expressar livremente o conduziu ao cargo. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 43
Seu País

eu pudesse conviver em diversidade”, con-

Cambalache ta. “Naquela cerimônia, tive a oportunida-


de, juntamente com uma colega argentina
e outro uruguaio, de entregar a Lula uma
ENSINO SUPERIOR Sob Bolsonaro, duas carta com o desejo de que, em 2060, quan-
universidades para a integração regional do a cápsula deve ser aberta, tenhamos
derrubado muros e construído pontes nu-
foram devastadas pela falta de recursos ma América Latina única, mas diversa.”
Passados 13 anos, os muros parecem ca-
e pelo aparelhamento de religiosos da vez mais sólidos. Após o golpe que desti-
POR MARIANA SER AFINI tuiu Dilma Rousseff, tanto a Unila quanto
a Unilab acabaram se afastando dos pro-
jetos iniciais e, como todas as demais uni-

O
versidades federais, passaram a lutar pe-
sonho da integração regio- objetivo jamais foi atingido. Nenhuma de- la sobrevivência, em meio aos sucessivos
nal é antigo na América La- las chegou a ultrapassar a marca dos 40%. cortes orçamentários de Michel Temer e
tina. Vem desde as guerras O campus da Unila não saiu do papel e as Jair Bolsonaro. Há, porém, quem resista
de independência encam- aulas seguem divididas em diversos pré- para o cumprimento do plano original.
padas por Simón Bolívar e dios espalhados pela cidade. Ainda as-
Manuela Sáenz. Apesar disso, o Brasil se- sim, a universidade ousou ampliar o le- “Ano após ano, o orçamento vem cain-
gue virado de costas aos países vizinhos, que e receber até mesmo refugiados de do. A receita é sempre inferior ao que pre-
enquanto contempla o horizonte além da guerra. “Temos estudantes de países la- cisamos para levar adiante os projetos de
Linha do Equador. Já a preocupação em tinos, africanos, da Rússia”, conta o rei- pesquisa e extensão”, denuncia o reitor.
se conectar com as nações africanas é tor Gleisson Brito. Quando eles concluem O desafio imediato, acrescenta Brito, é
mais recente, e remete a um projeto de po- o curso e retornam aos seus países, esses conseguir captar mais recursos e recru-
lítica externa voltado à estratégia “Sul- alunos se tornam “pequenos embaixado- tar estudantes vindos de fora. Para isso,
-Sul”, cujo objetivo é a construção de par- res do Brasil, e levam com eles, além da ex- será essencial um olhar atencioso do Mi-
cerias entre os países situados na perife- periência de ter estudado em uma univer- nistério da Educação, que fechou as por-
ria do capitalismo, o que foi abandonado sidade internacional, a missão da integra- tas para o diálogo nos anos Bolsonaro.
nos últimos anos pelo Itamaraty. ção”, acrescenta, orgulhoso. “Aprendemos a conviver com a crise. Se
Na tentativa de viabilizar o sonho de Aluno da primeira turma, Alexandre for preciso atrasar o aluguel, nós atrasa-
Bolívar, há pouco mais de dez anos nasce- Andreatta é mestre em Relações Interna- mos. Mas são inaceitáveis os cortes de re-
ram no Brasil duas universidades federais cionais e depositou seus sonhos em uma cursos para bolsas de permanência e pro-
com caráter totalmente distinto das de- cápsula do tempo lacrada na aula inaugu- jetos educacionais.”
mais. A Unila, localizada em Foz do Iguaçu, ral da universidade, em 2010. “A Unila te- Quando se pensa em um projeto de in-
na tríplice fronteira entre Brasil, Argenti- ve importância enorme na minha forma- tegração dessa magnitude, é de se esperar
na e Paraguai, busca a integração dos pa- ção, não apenas profissional, mas tam- que surjam alguns obstáculos. “Os alunos
íses da América Latina. Já a Unilab, com bém humanística e cidadã. Permitiu que da Unila vêm de cidades pequenas, do in-
três campi localizados em Acarape e Re- terior dos países vizinhos. A burocracia
denção, no interior do Ceará, e São Fran- brasileira e a barreira do idioma são as
cisco do Conde, no interior da Bahia, atrai primeiras dificuldades que eles encon-
estudantes, professores e pesquisadores Professores e alunos tram ao chegar em Foz do Iguaçu”, expli-
de nações africanas de língua portuguesa. ca a professora e gestora de políticas de as-
As duas universidades nasceram no
da Unila e da Unilab, sistência estudantil Jorgelina Tallei, ar-
fim do segundo governo Lula, com a am- que acolhem latinos gentina residente no Brasil há mais de 20
bição de ter 50% do corpo docente e dis- e africanos, clamam anos, que até hoje não perdeu o sotaque.
cente formado por estrangeiros, mas esse pelo socorro de Lula O mais difícil, contudo, é permanecer

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Barreira. A asfixia financeira impede
as instituições de ampliar as vagas para
estrangeiros, como previa o plano inicial

toria contra os grupos de estudantes in-


dígenas, quilombolas e pessoas de “corpos
desviantes”. Faltam recursos para políti-
cas de permanência e a reitoria estimula
intrigas entre estudantes estrangeiros e
brasileiros, a fim de enfraquecer a resis-
tência estudantil. “Na falta de restauran-
tes universitários, às vezes um estudan-
te de um prédio precisa caminhar até ou-
tro, a 5 quilômetros, só para poder jantar”,
revela a estudante Geyse Anne da Silva,
bacharel em Humanidades, estudante de
Pedagogia e diretora do DCE da Unilab.

Ana Paula Rabelo, professora do cur-


so de Letras, explica que, no princípio,
a Unilab não era tão conhecida entre os
moradores dos municípios onde os campi
foram instalados, regiões marcadas por
altos índices de vulnerabilidade social
e distantes das capitais. Quando os dis-
cursos de gênero, raça e classe começa-
ram a se destacar, esse entorno da univer-
sidade não estava preparado para o deba-
te. “Com isso, as igrejas mobilizaram um
na universidade. Sem políticas de assis- em outro país, sem falar a língua direito, e grupo de alunos evangélicos e passaram a
tência estudantil, muitos acabam desis- ainda sem os recursos que foram prome- fazer manifestações religiosas dentro da
tindo. A Unila e a Unilab prometem bolsas tidos? Foi desesperador”, destaca Tallei. faculdade. Eles foram fundamentais pa-
aos estudantes brasileiros e estrangeiros Na Unilab, a situação é ainda mais gra- ra a eleição do reitor-pastor. Tudo ocorreu
de baixa renda. Ao circular pelos corredo- ve. Além da falta de recursos, docentes e na esteira do projeto Escola Sem Partido.”
res da Unila, não é difícil perceber que se estudantes se dizem vítimas de represá- “A Unilab nasceu da resistência do po-
trata de um perfil muito diferente dos alu- lias da reitoria, hoje ocupada por um pas- vo preto, dos indígenas e quilombolas. Não
nos de outras universidades. Quase nin- tor bolsonarista. “Topo conversar, mas é é à toa que mesmo com tudo isso nós ain-
guém chega de carro, ninguém é visto com melhor que não seja sozinha, porque esta- da estamos aqui lutando”, afirma Costa,
tênis de marca nos pontos de ônibus, os mos sofrendo muitas perseguições”, expli- pesquisadora do Núcleo de Estudos Afri-
rostos carregam as marcas de histórias de ca a professora Jacqueline Costa, do Insti- canos, Afro-brasileiros e Indígenas. Sem
superação. Se a bolsa não cai no dia certo tuto de Humanidades da Unilab, antes de perder a esperança, ela conta que, recen-
na conta bancária, o aluno não come, não organizar uma reunião com colegas e alu- temente, alunos e professores redigiram
UNIL A-IME A /UFPR

se locomove, não paga o aluguel da pen- nas para relatar os problemas. uma carta a Lula. “É um pedido de socor-
são. E abandona o curso. “Muitos alunos A conversa aconteceu por videochama- ro. Nós e a Unila somos universidades ca-
foram embora para seus países de origem da com seis mulheres, quase todas pre- çulas e vamos precisar de muita atenção
durante a pandemia. Imagine você estar tas. Elas denunciam perseguição da rei- do presidente para continuar existindo.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 45
Nosso Mundo

O doutrinador
OBITUÁRIO O papa Bento XVI viveu
mais preocupado em defender
os dogmas da Igreja Católica do
que em se conectar com os fiéis
POR SERGIO LIRIO

D
ois velórios dividiram a ro gesto de desprendimento de um sacer-
atenção do mundo ao longo dote que se definia como “simples e hu-
da semana. Não por acaso, milde servo na vinha do Senhor”. Histo-
os homenageados simboli- riadores e cronistas católicos certamen-
zavam uma religião. Em te oferecerão uma versão diferente. Em
Santos, uma multidão pisava em um san- boa medida, durante oito anos de pon-
tuário, o gramado da Vila Belmiro, para tificado, Bento XVI colheu o que plan-
prestar homenagens a Pelé, chamado de tou. Ratzinger assumiu uma Igreja divi-
rei, mas que não deixava de ser uma di- dida, manchada por intrigas e escânda-
vindade, a maior, do futebol, cuja legião los, após a morte de João Paulo II, de quem
de fiéis ao redor do planeta supera o cris- foi o mais bravo vassalo. Como chefe da
tianismo, o islamismo e o budismo. No Va- Congregação da Doutrina da Fé, o antigo
ticano, mais de 200 mil católicos oraram Santo Ofício da Inquisição, levou a termo fé (a seu favor pesa o fato de que nenhum
pela última vez por Bento XVI, o papa a incumbência de combater o relativismo jovem alemão escapava dos serviços mi-
emérito, o primeiro de sua posição em seis e o “esquerdismo” na Cúria, parte da lu- litares naquela época). A Teologia da Li-
séculos a renunciar ao posto em vida. Fos- ta anticomunista travada pelo polonês bertação na América Latina foi dizimada
se um atleta do esporte bretão, Joseph Karol Wojtyla – guerra na qual o Banco e os resultados estão aí. Apartada dos hu-
Ratzinger seria um zagueiro de várzea, do Vaticano “exorcizou” até o dinheiro su- mildes e necessitados, concentrada na li-
brutamontes, instruído a evitar o ataque jo de mafiosos e ditadores em nome dos turgia e nos dogmas, ao gosto do intelecto
dos adversários a pontapés e caneladas, desígnios divinos de combater os gentios. do então cardeal, a Igreja latino-america-
embora cultivasse a imagem de intelec- Missão dada, missão cumprida, poderia na perdeu progressivamente terreno para
tual e chamasse a atenção das revistas de repetir Ratzinger, integrante da juventu- o neopentecostalismo. O Brasil, outrora
moda pelo modo peculiar de se vestir – de hitlerista antes de seguir o caminho da “maior país católico do mundo”, tornou-se
seus chapéus eram classificados de “ex- terreno propício à expansão evangélica.
travagantes” e os sapatos exclusivos che-
garam a ser confundidos com peças da Introspectivo e canônico, Bento
maison Prada, especulação desmentida XVI fez raras concessões, o que lhe va-
pelos assessores do pontífice. No campo leu o apelido de “rottweiler de Deus”. Um
teológico, era um legítimo cruzado.
Seu pontificado ano depois de ser nomeado papa, durante
A hagiografia tende a transformar em será lembrado pela palestra na Universidade de Regensburg,
virtude a renúncia em 2013, justificada renúncia, a primeira na Alemanha, recorreu a um imperador
por problemas de saúde. Seria o derradei- em seis séculos bizantino para ligar o Islã à violência. O

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 48
NESTA Ressaca. Eleitores
conservadores se sentem
SEÇÃO frustrados com o Brexit

Missão. O ex-pontífice, de 95 anos,


foi fiel escudeiro de João Paulo II no
combate à Teologia da Libertação, parte
da cruzada anticomunista. Herdou um
Vaticano dividido e cheio de escândalos

autoexílio no mosteiro Mater Ecclesiae, lo-


calizado nos jardins do Vaticano. Morreu
aos 95 anos, no último dia de 2022. Em en-
trevista ao jornal italiano La Repubblica,
Georg Ganswein, seu secretário pessoal,
afirmou que o pontificado do alemão foi
assombrado pelo diabo e negou que os es-
cândalos tenham influenciado a renúncia.
“É óbvio, como diria o papa Francisco, que
o mau da fita, o maléfico, o demônio, não
dorme”, declarou. “Fica claro que ele ten-
ta sempre atingir onde os nervos estão ex-
postos e fazer o maior estrago possível. E
senti-o muito contra o papa Bento XVI.”

Francisco dedicou a missa de ano-


-novo ao antecessor. “Hoje confiamos o
amado papa emérito Bento XVI à San-
tíssima Mãe, para acompanhá-lo na sua
passagem deste mundo para Deus”, orou.
discurso provocou protestos intensos vestigação de crimes e afastado acusados “Estamos todos unidos, com um coração
em países muçulmanos e Ratzinger viu- de pedofilia, Ratzinger nunca conseguiu e uma alma, a agradecer pelo dom deste
-se obrigado a pedir desculpas pelo “la- se livrar da imagem de conivência com fiel servo do Evangelho e da Igreja.” As
mentável mal-entendido”. Em 2009, sus- os abusos. Na terça-feira 3, um tribunal homenagens duraram até a quinta-feira
pendeu, sob protestos da comunidade ju- alemão anunciou a manutenção de um 5, quando o ex-pontífice foi sepultado. A
daica e de autoridades alemães, a exco- processo contra o ex-papa mesmo após renúncia do alemão Ratzinger e a esco-
munhão de bispos tradicionalistas radi- a morte. Bento XVI é acusado de aco- lha do argentino Jorge Bergoglio, que,
cais, entre eles Richard Williamson, ne- bertar casos de pedofilia na diocese de torcedor do San Lorenzo, compreende os
gacionista do Holocausto durante a Se- Munique. Os 85 anos de então pesaram “mistérios” do futebol, equivale ao mila-
gunda Guerra Mundial. e o papa inspirou-se em Gregório XII, que gre da conversão da água em vinho. Os
O pontífice tentou superar as contro- deixou o cargo em 1415 como parte da so- dilemas do catolicismo continuam vivos,
vérsias, mas não resistiu a dois escânda- lução do cisma católico. Em 28 de feve- mas Francisco deu uma guinada no estilo
los incontornáveis: as crescentes acusa- reiro de 2013, quase dois meses depois de do pontificado: restabeleceu o princípio
ções de abusos sexuais contra párocos e ter expulsado o mordomo Paolo Gabriele, cristão de acolher quem sofre e denunciar
as revelações do Vatileaks, o vazamento acusado de vazar os papéis do Vatileaks, quem abusa do poder. Sob seu papado, a
VAT I C A N M E D I A /A F P

de documentos oficiais que expuseram as Ratzinger despediu-se dos fiéis na varan- Igreja mostra-se mais aberta, universal,
intrigas palacianas e, pior, os escândalos da de Castel Gandolfo, residência oficial. empenhada em ouvir e dialogar em vez
financeiros na administração do incalcu- “Deixarei de ser papa, mas me tornarei de doutrinar. A coragem e a simplicida-
lável patrimônio da Igreja. Apesar de ter um peregrino”, anunciou. de transformaram Bergoglio no estadis-
tomado posições firmes, autorizado a in- Na última década, Ratzinger viveu em ta que Bento XVI almejava ser. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 47
Nosso Mundo

A ressaca do Brexit
1 ponto porcentual atrás dos liberais de-
mocratas e em ascensão. Antes mesmo
de a agremiação ser particularmente co-
nhecida, 19% dos entrevistados disseram
O Partido Conservador considerar o voto no Reform UK e sua
perde apoio popular diante dos sacrifícios agenda populista sobre imigração, ges-
tão adequada do Brexit e redução dos im-
impostos pela saída da União Europeia postos, entre eles 23% dos eleitores con-
servadores e 11% trabalhistas.
P O R TO B Y H E L M , M I C H A E L S AVAG E E DAV I D B A R N E T T
Um desses convertidos é o empresá-
rio David White, de Barnsley. Até poucos

H
dias atrás, ele era conselheiro conserva-
á cerca de três anos, Boris centes em contrário do ex-ministro de dor na cidade de South Yorkshire, mas
Johnson conquistou a vitó- Oportunidades, Jacob Rees-Mogg. Para depois desertou e se juntou ao Reform
ria em uma eleição dispu- os brexiters que seguiram Johnson, não UK. “Quando anunciei a mudança, olhei
tada pelos conservadores era para ser assim. Ele havia prometido para minha página no Facebook com um
sob o slogan simples: “Fa- um novo amanhecer de independência, pouco de apreensão”, diz. “Eu esperava
ça o Brexit”. Na manhã seguinte, o então desregulamentação, prosperidade base- um pouco de críticas, mas tive apoio ma-
primeiro-ministro exortou todos a “en- ada em acordos comerciais globais e im- ciço, até mesmo dos conservadores mais
contrar um desfecho” para a questão eu- postos mais baixos. Em vez disso, a rea- renomados.  Mesmo os trolls que nor-
ropeia que dividiu seu partido e o país por lidade é de diminuição da influência do malmente aparecem não disseram na-
tanto tempo. Ele pediu ao povo britâni- Reino Unido, acordos comerciais insa- da. Acho que, de repente, perceberam que
co que se unisse, “deixasse a cura come- tisfatórios ou nenhum (principalmente o Reform UK é a verdadeira ameaça nas
çar” e se concentrasse no NHS, o siste- com os EUA), burocracia extra, exporta- próximas eleições.” White coloca a imi-
ma público de saúde. O Partido Conser- ções reduzidas, Produto Interno Bruto gração no topo de sua lista. “É uma das
vador rompeu a “parede vermelha”. Eles mais baixo e impostos mais altos. principais questões do Brexit. Está fora
pareciam invencíveis, enquanto o traba- O Brexit e o medo de um governo de da escala. Há um hotel na estrada lota-
lhismo enfrentava questões existenciais. Jeremy Corbyn ajudaram o Partido Con- do. Recebi um vídeo, na outra noite, de
Agora, a cerca de dois anos para a próxi- servador a obter uma maioria de 80 as- imigrantes neste hotel, do lado de fora jo-
ma eleição geral e com Johnson e sua su- sentos. Mas os apoiadores desconten- gando futebol à meia-noite com os holo-
cessora, Liz Truss, ambos depostos pe- tes do Brexit se sentem traídos. Segun- fotes acesos e tomando café, e isso irrita.”
los deputados da legenda, os trabalhis- do eles, a iniciativa foi catastroficamen- Por toda esta parte de South Yorkshire,
tas têm entre 15 e 20 pontos porcentuais te mal administrada e precisa de nova como em grande parcela do muro verme-
à frente nas pesquisas. gestão. E exatamente isso oferece o Re- lho, há desilusão com os trabalhistas e
O NHS está de joelhos e assolado por form UK, última encarnação do partido também com os conservadores.  Lynne
greves, sem dinheiro e pessoal, inunda- Brexit, que aparece com 8% em recente Dunning mora perto da antiga vila mi-
do de pedidos de demissão. Nem 1 cen- pesquisa da Opinium para The Observer, neira de Goldthorpe, a 13 quilômetros de
tavo dos 350 milhões de libras sema- Barnsley, há 47 anos. “Os cidadãos se sen-
nais que Johnson prometera ao serviço tem abandonados por ambas as partes”,
de saúde após a aprovação do Brexit pin- afirma. “Votei no Brexit, mas o que te-
gou nos cofres do sistema. Cada vez mais, As pesquisas mos não é o que os eleitores votaram. Não
o empreendimento do Brexit é visto por parece ter acontecido como foi prome-
líderes empresariais e economistas co-
eleitorais apontam tido. Acho que muitos se sentem assim.”
mo um desastre autoinfligido que enfra- de 15 a 20 pontos Um grupo de figuras proeminentes da di-
queceu severamente a economia britâni- de vantagem para reita acaba de lançar uma tentativa de ob-
ca, apesar das contínuas afirmações re- os trabalhistas ter maior controle sobre o Partido Conser-

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Infiltrado? Eleitores tories acreditam
que o premier Sunak e outros integrantes
do partido planejam uma guinada
à esquerda. O Brexit virou pesadelo

reita. O que vemos hoje é um golpe e um


sequestro do Partido Conservador pelo
centro-esquerda. Os tories seniores com
quem falei também estão frustrados.”
Cruddas prossegue:  “Algo vai aconte-
cer, pois os filiados não querem Rishi
Sunak. Ele foi imposto. As probabilidades
estão contra, mas ele está lá sob falsos pre-
textos. Somos uma organização de cen-
tro-direita que quer capacitar os integran-
tes e seguir os nossos princípios. Acha-
M A R T Y N W H E AT L E Y/ N 1 0 D S E W I K T O R S Z Y M A N O W I C S / N U R P H O T O /A F P

mos que o Partido Conservador foi infil-


trado por não conservadores”. Os senti-
mentos de traição do Brexit, avalia, con-
tribuem para o descontentamento. “Vo-
tamos pelo Brexit. E precisamos conti-
nuar a controlar as nossas fronteiras. Es-
vador, para impedir o que consideram uma lutamente, temo isso”, diz Cruddas. “Exis- tas são políticas de centro-direita pelas
mudança para a esquerda, para um tipo so- te um canal para gente de direita e centro- quais o país votou. E até agora não acon-
cial-democrata de Partido Tory. Peter Cru- -direita encontrarem um novo lar, e esse é teceram e vamos ser punidos nas urnas.”
ddas, ex-tesoureiro da legenda, está envol- o Partido da Reforma. Se os integrantes do Com esse tipo de opinião agora bastante
vido na Organização Democrática Conser- Partido Conservador querem ser de cen- comum no Partido Tory, Richard Tice, lí-
vadora, que visa dar aos integrantes mais tro-esquerda, isso é com eles.  der do Reform UK, saboreia a perspecti-
poder sobre as seleções de deputados e elei- va de mais deserções. “Estamos poten-
ções de liderança. Segundo ele, um “arras- Mas então acho que você verá grandes cialmente vendo os últimos dias do últi-
to para a esquerda por parte da atual lide- mudanças no cenário político. Porque, mo governo de maioria conservadora em
rança” abre o flanco para a ascensão de quer você concorde ou não, acredito que nossa vida”, diz. “E esse é um pensamen-
agremiações como o Reform UK. “Abso- este país é um eleitorado de centro-di- to emocionante.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 49
Nosso Mundo

As primeiras
lam mudanças nos estratos e significam o
início de uma nova época. Uma dessas pla-
cas, numa encosta do Monte San Nicola,

marcas
na região italiana da Puglia, celebra o iní-
cio do Pleistoceno há 2,6 milhões de anos,
o precursor do Holoceno. “Não há dúvida
de que a humanidade desempenha um
Cientistas buscam papel importante que influencia a geolo-
a região que assinala o início da indelével gia do nosso planeta”, afirma o geólogo e
professor Jan Zalasiewicz, da Universida-
interferência humana no ambiente de de Leicester, no Reino Unido. “A ques-
tão é: que local exemplifica melhor essas
POR ROBIN MCKIE
mudanças?”

D
Exemplo importante dos impac-
entro de algumas sema- Mundial, quando países de todo o mun- tos causados pelos seres humanos é
nas, geólogos vão escolher do embarcaram numa enorme expansão oferecido pelo alumínio, acrescenta
um lugar que demonstre econômica e industrial conhecida como Zalasiewicz. “Na natureza, o alumínio
de forma mais vívida co- a “grande aceleração”. Isso desencadeou metálico puro é muito raro. Existe ape-
mo os seres humanos mo- o Antropoceno, argumenta-se. nas em pequenas quantidades. Pratica-
dificaram a estrutura da superfície do Mas exatamente onde essa transforma- mente, todo o nosso alumínio vem de mi-
nosso planeta. Eles escolherão um sítio ção deve ser registrada ainda não foi deci- nérios nos quais o metal formou compos-
que, acreditam, ilustra melhor quando dido. Uma lista de nove locais, incluídos tos com outros elementos. Nos últimos
nasceu uma nova era – chamada de An- os recifes de coral na Austrália, camadas cem anos, extraímos esses óxidos, hidró-
tropoceno – e sua antecessora, o Holo- de lodo (silte) no Canadá e núcleos de ge- xidos e silicatos, os processamos e produ-
ceno, chegou ao fim. lo na Antártida, foi criada no ano passado zimos cerca de meio bilhão de toneladas
O Holoceno começou no fim da últi- pelo Grupo de Trabalho do Antropoceno de alumínio metálico, usando-o para fa-
ma era glacial, 11,7 mil anos atrás, quan- como os melhores candidatos para ofere- zer de tudo, de panelas a aviões.”
do as grandes geleiras que cobriam a Ter- cer marcadores, em seus sedimentos, que Esses bens foram depois descarta-
ra começaram a recuar. Em seu rastro, mais bem demonstrem as mudanças que dos quando perderam a utilidade. Em-
os humanos modernos se espalharam levaram à nova era. Os votos dos integran- bora tenha ocorrido alguma reciclagem,
inexoravelmente pelo planeta. O Homo tes estão em fase de apuração, e uma lista o alumínio metálico – outrora tão raro –
sapiens floresceu durante o Holoceno, mas restrita será criada para a consideração fi- espalhou-se pelo planeta. “Por si só, es-
nossa expansão teve consequências geoló- nal ainda em 2023, início de um processo se seria um sinal claro para alienígenas
gicas. Os minerais que extraímos, os gases que vai exigir que três outros órgãos gra- que pousassem num futuro distante de
que liberamos com a queima de combus- duados apoiem a proposta. O lugar vence- que algo especial acontecia na Terra nes-
tíveis fósseis e o material radioativo que dor será então marcado com uma placa de te momento”, acrescenta Zalasiewicz.
produzimos começaram a causar mudan- latão, usada para definir áreas que reve- O aparecimento de alumínio metá-
ças fundamentais na geologia da Terra. lico não é, porém, o único marcador do
Como resultado, muitos cientistas Antropoceno. Outro exemplo é forneci-
acreditam que o Holoceno acabou e de- do pelo elemento plutônio. Ele é muito
ram o nome de Antropoceno ao seu subs- A expansão do raro, ou ao menos era até o nascimento
tituto, medida que reconhece pela pri- da era atômica. Bombas nucleares, tes-
meira vez os seres humanos como in-
Homo sapiens tadas na atmosfera, expeliram plutônio
fluenciadores planetários. Quanto à da- provocou mudanças que se depositou no solo em quantidades
ta desse acontecimento, a maioria apon- fundamentais na facilmente detectáveis. “Se você exami-
ta os anos posteriores à Segunda Guerra geologia do planeta nar algumas medidas do Antropoceno,

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
O Homo sapiens
forjou a própria
destruição

como o alumínio, verá um crescimen- gia da Terra nesse processo, entre elas a que demonstram uma mudança de épo-
to constante em quantidades ao longo ostra-do-pacífico e o mexilhão-zebra, es- ca fundamental.”
do século passado”, acentua o professor te último espalhado da Eurásia na água Esse ponto foi endossado por
Colin Waters, também da Universidade de lastro descarregada por grandes na- Zalasiewicz: “No futuro distante, deze-
de Leicester. “Mas, até o fim da Segun- vios, deslocando os mariscos nativos nas de milhões de anos a partir de agora,
da Guerra Mundial, não havia plutônio em grande parte do planeta, incluindo as espécies avançadas ainda serão capa-
no solo. Então, repentinamente, houve a América do Norte. “Outro indicador é zes de detectar como modificamos a Ter-
muito dele. Isso o torna um marcador fornecido pelos plásticos que se torna- ra. Precisamos perceber isso agora. To-
muito bom para o início do Antropoceno ram amplamente utilizados na década dos os nossos edifícios e estradas terão
KEVIN WEBB/NHM-LONDON

e sugere uma data de nascimento no de 1950, que a maioria de nós aponta co- desmoronado muito antes, mas as mu-
início dos anos 1950.” mo o alvorecer do Antropoceno”, acres- danças sutis que fizemos nos sedimen-
centa Waters. “A principal coisa que te- tos persistirão e mostrarão que uma civi-
Outro sinal claro que indica a entrada mos de decidir agora é qual dos locais que lização global um dia dominou este pla-
em uma nova era geológica é fornecido selecionamos fornece o sinal mais claro neta com efeitos duradouros”. •
pelas espécies que ajudamos a dissemi- entre as medidas escolhidas – plutônio,    
nar pelo globo, homogeneizando a biolo- alumínio, plástico e outras variáveis – Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 51
Plural

Para todos os gostos


CINEMA A produção sul-coreana se faz cada vez mais presente
nas salas brasileiras e vai dos filmes de arte ao terror e à ação
P O R A N A PAU L A S O U S A

F
az quase 20 anos que a im- didato brasileiro ficava de fora. Antes de chegar à short list do Oscar,
prensa e os pesquisadores, O filme é Decisão de Partir, de Park Chan-wook percorrera, assim como
em diversos países, tentam Chan-wook, em cartaz nos cinemas bra- Bong Joon-ho, diretor de Parasita (2019),
explicar o sucesso do cinema sileiros desde a quinta-feira 5. Chan-wook vencedor do Oscar, um longo caminho
sul-coreano. Há poucas se- faz parte da primeira geração de cineastas de premiações importantes e reconhe-
manas, no Brasil, o tema voltou à baila sul-coreanos que passaram a marcar pre- cimento internacional.
porque, mais uma vez, um filme da Co- sença, de forma sistemática, nos princi- A primeira premiação em Cannes
reia do Sul chegava à short list do Oscar pais festivais internacionais e a adentrar acontecera em 2004, quando levou o
de filme internacional, enquanto o can- no circuito de arte de vários países. Prêmio do Júri por Oldboy (2003). Es-

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 56
NESTA Livro. Após um hiato de
SEÇÃO 16 anos, Comarc McCarthy
lança um novo romance

Estilos. Decisão de Partir (à esq.),


premiado em Cannes, está em cartaz.
O terror A Maldição – Despertar dos
Mortos foi lançado no fim de 2022

O valor médio de produção na Coreia


do Sul é de 20 milhões de reais. Bacurau
(2019), vencedor do Prêmio do Júri em
Cannes e considerado um filme caro
para os padrões do cinema brasileiro,
custou 8 milhões de reais.
É claro que um alto orçamento não
garante um filme bom nem é condição
imprescindível para que uma obra tenha
sa premiação se repetiria alguns anos americanos desse tipo que chegam aqui. repercussão internacional – o cinema
depois, com Sede de Sangue (2009). O modelo de produção da Coreia do Sul é pródigo em exceções. Mas é fato tam-
Decisão de Partir também saíra premia- permite projetos muito bem realizados. bém que um filme como Decisão de Partir,
do de Cannes, em 2022, pela direção, e A percepção do valor de produção é al- envolvente thriller de clima noir e pegada
antes mesmo da indicação ao prêmio ta, e faz com que eles tenham condições romântica, jamais poderia ser o que é se
norte-americano tinha sido vendido pa- de disputar espaço nas salas de cinema.” tivesse sido feito com recursos escassos.
ra vários territórios – entre eles, o Brasil. Embora, para os padrões hollywoodia-
“A quantidade de títulos sul-coreanos nos, o valor de produção do cinema sul-co- Embora a constituição da indústria
que chegam para nós, por meio dos agen- reano seja baixo, para os brasileiros ele é audiovisual sul-coreana tenha se dado
tes de vendas internacionais e produto- bastante elevado. Marte Um teve orçamen- com grande apoio do Estado, por meio de
ras locais, é muito grande”, diz Gabriel to de produção de 1,2 milhão de reais e seu políticas de desenvolvimento de infraes-
Gurman, codiretor da Diamond, distri- lançamento foi feito com 650 mil reais. trutura e subsídios para diferentes elos
buidora do filme na América Latina. “E Decisão de Partir, por sua vez, teve um da cadeia audiovisual – com grande foco
são filmes que falam com públicos com- custo estimado, de acordo com o Internet na distribuição –, o investimento, hoje, é
pletamente diferentes, indo do filme de Movie Database, de 50 milhões de reais. majoritariamente privado.
arte ao público de cinema de gênero.” Enquanto a produtora de Marte Um é O cinema, além disso, nutre e é nutri-
uma pequena empresa de Minas Gerais, do pela chamada K-culture, que engloba
No fim do ano passado, a Diamond, a Filmes de Plástico, o grupo por trás de filmes, séries, música – o famoso K-pop –,
que trabalha com cinematografias de vá- Decisão de Partir é o CJ E&M, conglo- literatura, games, moda etc., e que se tor-
rias nacionalidades, havia colocado outros merado sul-coreano de entretenimento nou o exemplo máximo do soft power, ex-
dois filmes sul-coreanos nas salas brasi- e varejo – a mesma produtora de Parasi- pressão nascida nos meios acadêmicos
leiras: o terror A Maldição – Despertar dos ta e, inclusive, do filme anterior de Park para definir o poder de um país de cons-
Mortos, escrito por Yeon Sang-ho, rotei- Chan-wook, A Criada (2016). truir uma imagem positiva por meio de
rista de Invasão Zumbi (2016), e o filme de valores intangíveis, como a cultura.
ação Ligação Explosiva. Em abril, lança- A onda sul-coreana – a Hallyu – remon-
rá Broker: Uma Nova Chance, cujo ator foi ta à década de 1990 e fez parte de uma
DIAMONDS FILMS/CJ ENM

premiado no Festival de Cannes. Impulsionados por complexa estratégia política e econômi-


“A Maldição dos Mortos tem, dentro ca do governo, que, com o passar do tem-
dos filmes de gênero, uma qualidade de
políticas públicas po, tornou o investimento em filmes e sé-
produção similar à de filmes norte-ame- na década de 1990, ries lucrativo, a ponto de interessar não
ricanos”, diz Gurman. “Ele não deve na- os filmes hoje são apenas a grandes grupos locais, mas até
da, em termos de qualidade, aos filmes um ótimo negócio mesmo a Hollywood. •

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 53
Plural

A reinvenção
futuro e os royalties eram opcionais.
Em um eco da famosa frase de Chuck

de Bessie Smith
D de que o hip-hop era “a CNN dos ne-
gros”, o blues registrou uma história al-
ternativa de atos racistas, de pobreza e
injustiça, mas também de óbvias insinu-
Jackie Kay mistura pesquisa ações sexuais e bons momentos.
Depois da Grande Depressão, o blues
histórica, memória pessoal e imaginação mudou e avançou para o Norte dos Es-
para recuperar a trajetória da blueswoman tados Unidos, mas, na década de 1920 e
antes disso, as blueswomen como Smith
POR KIT T Y EMPIRE eram festeiras do Sul do país, vestidas
com capricho.
A teatralidade das trupes em turnê era

A
movida por um senso de ocasião e por be-
blueswoman Bessie Smith de canções de Smith, seu mito e seu “be- bida ilícita. Embora Smith tivesse sucesso
(1894-1937) era uma per- lo rosto negro”. suficiente para possuir seu próprio vagão
sonagem complexa, uma Os pais adotivos de Jackie eram esco- de trem, sua pele mais escura lhe custou o
superestrela autodidata ceses brancos comunistas que amavam lugar em mais de um show. E a Black Swan,
cuja biografia é muitas ve- blues e jazz. A música com que presen- primeira gravadora de propriedade de um
zes mais estranha que a ficção. Seus fei- tearam a filha ressoou profundamente e negro, achou-a pouco refinada.
tos se tornaram lendas. Smith era formi- de inúmeras maneiras na jovem, fazen-
dável. Supostamente, enfrentou sozinha do-a se sentir “intimamente conhecida”. Se as canções de Bessie contaram à
uma tentativa da Ku Klux Klan de incen- E st a reed iç ão op or t u n a de jovem Jackie Kay uma “história secre-
diar sua tenda de shows. Bessie Smith, com uma nova introdução ta” sobre o sofrimento feminino, a his-
Smith cantou o sofrimento feminino e exaltando sua relevância contínua, tória ainda menos pública era a das re-
viveu as tragédias de suas canções, geral- mapeia parte da distância percorrida lações entre pessoas do mesmo sexo.
mente na ordem inversa. Jackie Kay, auto- tanto pela indústria editorial quanto O relato de Jackie também conta uma
ra de Bessie Smith (DBA, 256 págs., 74,90 por Jackie Kay, hoje poeta laureada na história  queer,  de artistas femininas
reais, tradução de Stephanie Borges), bio- Escócia. O tempo não esmaeceu a erudi- sexualmente vorazes e altamente
grafia eloquente e emotiva, destaca a fre- ção criativa incansável do livro. solventes, como Bessie e Ma Rainey
quência com que Smith escreveu letras Misturando rigor acadêmico, autobio- (1886-1939), retratada em um filme bio-
com uma terrível presciência. grafia autoral e licença poética, a seleta bi- gráfico recente, e dos buffet flats, nos
Originalmente publicado em 1997, o li- bliografia da obra reúne 22 títulos. Jackie quais festas selvagens e licenciosas da-
vro foi um empreendimento alegre e for- traça o apogeu das  blueswomen, desde vam aos participantes total liberdade pa-
malmente ousado. Em seguida, fez par- as rainhas do vodu até a era da cera ra serem eles mesmos.
te de uma série chamada Outlines, que e dos “discos de raça”, quando os di- As contradições abundam num livro em
buscava documentar “uma curta história reitos autorais ainda estavam no que a verdade emocional joga contra o fa-
não oficial, sincera e divertida da arte, to histórico, e Jackie Kay imagina como as
vida e sexualidade lésbica e gay”. coisas poderiam ter sido. Embora o mate-
Passados todos esses anos, Bessie rial de Bessie Smith abranja uma grande di-
Smith continua sendo um ato de testemu- A eloquente e versidade de temas, a maioria das canções
nho íntimo, uma biografia sobre uma associadas a essa célebre figura  queer é
artista americana negra, bissexual e da
emotiva biografia sobre amar homens, aponta a autora.
classe trabalhadora escrita por uma cé- da cantora, lançada Bessie era orgulhosa e intimidada, ge-
lebre poeta escocesa que reconheceu a em 1997, ganha uma nerosa e imprudente, uma bêbada vio-
própria negritude e estranheza por meio oportuna reedição lenta que foi brutalizada por um mari-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Espelho. Jackie, premiada poeta
escocesa (à esq.), reconheceu a
própria negritude e estranheza
por meio das canções da artista
bissexual e de origem simples

do abusivo que ela parecia não conse-


guir deixar. Ela teve um longo relacio-
namento com uma confidente próxima,
com quem talvez nunca tenha feito sexo.
O texto está cheio de perguntas. Há ra guardava seus bens mais preciosos.
também passagens nas quais a biógra- Jakie enumera seu conteúdo: letras
fa imagina os pensamentos mais ínti- inéditas, “plumas de avestruz” e uma
mos da cantora de blues, ou assume um mecha de cabelo da sobrinha e assessora
olhar poético, imaginando o que nunca Ruby Walker. Mas, entre as cartas e tra-
foi – não poderia ter sido – registrado. jes antigos, a autora coloca “uma panela
gigante de ensopado de galinha, ainda fu-
Neste momento histórico em que se megante, com a tampa inclinada para o la-
trava uma guerra entre fato e conjectu- do”, “uma jarra de ar noturno do Harlem”
C A R L VA N V EC H T E N E D E N I S E E L S E

ra, a opção de Jackie significa caminhar e o Rio Tennessee, com partituras de blues
em uma corda bamba delicada. Mas seu mente quando Jackie tenta escrever no “transformadas em pequenos barcos”.
propósito, em 1997, era filtrar verdades vernáculo dos negros sulinos. Outras são O lirismo faz uma sanfona de tempo e
emocionais íntimas do registro históri- emocionantes. espaço, levando o redemoinho de artefa-
co mais seco, um processo conhecido na Em uma delas, quase no meio desse tos – evidências concretas e monumen-
criação de qualquer filme biográfico ou livro semelhante à máquina do tempo tos ao sentimento – a subir em um cres-
alegoria ficcional de um astro do rock. Tardis (do seriado Dr. Who), ela imagi- cendo inebriante. •
Às vezes, essas passagens em itálico na o conteúdo de um baú real – o San-
soam um pouco desajeitadas, principal- to Graal da biógrafa –, no qual a canto- Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 55
Plural

Os filhos da
sabemos quem as enuncia – nos joga num
labirinto de embates. A trama se passa em

bomba atômica
1980, um momento crucial na história dos
Estados Unidos, marcado pela ascensão
e pelo fortalecimento do neoliberalismo.
Quando a narrativa começa, Alicia,
LITERATURA Em seu primeiro romance portadora de esquizofrenia, já se matou
na instituição onde estava internada. O
desde A Estrada, de 2006, Cormac lugar se chama Stella Maris, título do ro-
McCarthy flerta com a ciência e mostra mance subsequente do autor, a ser lan-
çado no Brasil no primeiro semestre de
um planeta à beira da aniquilação 2023. Stella Maris, situado em 1972, traz
uma série de conversas da personagem
P O R A LYS S O N O L I V EI R A com seu terapeuta.

McCarthy raramente foi um escritor de

T
personagens femininas fortes. Uma das ex-
oda história física se trans- seja histórica, como em Meridiano de ceções é Rinthy, protagonista de Outer Da-
" for ma nu ma qu i mera Sangue (1985). Não é surpresa, portanto, rk (1968), retratada a partir da relação in-
com o passar do tempo”, que ele retome a questão. Mas, no novo li- cestuosa com o irmão de quem engravida.
diz uma personagem no vro, ao contrário do que fez, por exemplo, Em O Passageiro, Alicia é uma figura do-
novo romance de Cormac na famosa Trilogia da Fronteira, publica- minante, embora apareça em flashbacks.
McCarthy, O Passageiro. A narrativa his- da nos anos 1990, um complexo western Bobby seguirá ambiguamente apaixonado
tórica é, para o autor norte-americano, a existencialista, o autor nos oferece uma por ela, anos depois de sua morte.
força motora da sociedade e das tramas escrita lacônica, contida. Ele, por sua vez, é contratado para
que ele engendra. “As coisas separadas de Muitas das informações de O Passageiro encontrar um avião particular que caiu
suas histórias não têm significado. Elas vêm dos diálogos, nos quais a ausência de próximo a New Orleans. Lá chegando,
são apenas formas”, escrevia ele três dé- marcação das falas – ou seja, nem sempre descobre que a caixa-preta sumiu, e ape-
cadas atrás, em A Travessia (1994). nas nove corpos foram encontrados, ape-
No novo livro, o primeiro em 16 anos, sar de dez pessoas terem embarcado.
o autor dá forma à história por meio da McCarthy coloca seus personagens a
narrativa íntima de um irmão e uma ir- vagar em um mundo destituído de senti-
mã. Lidando com temas caros à sua obra, do. Se, em A Estrada, livro que lhe rendeu o
como família e apocalipse, ele não se con- Pulitzer e um filme protagonizado por Vi-
tenta em ficar na zona de conforto e am- ggo Mortensen, o planeta estava destruído,
plia desta vez seu horizonte para ques- em O Passageiro o mundo está em processo
tões científicas. de aniquilação, mas ninguém se dá conta
Bobby Western e sua irmã, Alicia, são os disso. É como se os personagens lutassem
filhos de um colega fictício de trabalho de de maneira vã contra a força da história.
Robert Oppenheimer, o físico conhecido “(Bobby) Western entendia plena-
como “o pai da bomba atômica”. Esse dado mente que devia sua existência a Adolf
biográfico marcará a vida dos irmãos: eles Hitler. Que as forças da história que ti-
carregam como herança não apenas a ge- O PASSAGEIRO nham dado origem à sua vida conturbada
nialidade do pai, mas o peso da destruição. Cormac McCarthy. Tradução: Jorio passavam por Auschwitz e Hiroshima, os
McCarthy, de 89 anos, sempre esteve Dauster. Companhia das Letras eventos gêmeos que selaram para sem-
(392 págs. 84,90 reais)
interessado no fim do mundo, seja de for- pre o destino do Ocidente”, diz o narra-
ma explícita, como em A Estrada (2006), dor. Do Ocidente, de Bobby e de Alicia. •

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
VITRINE
POR A NA PAU L A SOUSA

O impressionante conto Pai Contra Mãe,


retrato da época da escravidão feito por
Machado de Assis, ganhou nova vida gra-
ças à Cobogó. A edição (72 págs., 62 reais)
traz três textos com reflexões contemporâ-
neas sobre o racismo, a literatura e o País,
e ilustrações assinadas por Márcia Falcão.

A Segunda Espada: Uma História de Maio


(Estação Liberdade, 176 págs., 56 reais) é
o primeiro romance de Peter Handke desde
que ganhou o Nobel, em 2019, e foi critica-
do por sua postura política. O protagonista
é um homem que deseja vingar a mãe, acu-
sada de ser simpatizante do nazismo.

A Loteria, um dos mais célebres contos de


BEOWULF SHEEHAN

Shirley Jackson (1916-1965), dá título à


coletânea lançada pela Alfaguara, com tra-
dução de Débora Landsberg. A Loteria
e Outros Contos (264 págs., 79,90 re-
ais), evidencia a astúcia narrativa da mestra
Projeto. O autor, de 89 anos, sempre esteve interessado na ideia de fim do mundo norte-americana da literatura de horror.

C A R TAC A P I TA L — 1 1 D E J A N EI R O D E 2 0 2 3 57
VENES CAITANO

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Seu leão pode colorir a
vida de muitas crianças
Doe seu Imposto de
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